Pausa

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Words fall from our mouths. Franz Ferdinand

Pausa para ser lido nos intervalos

BELO HORIZONTE MARÇO DE 2008 NÚMERO DOIS


A lei obriga tradução meio-fio prosa Sobre a arte marginal ensaio turn on the bright lights insight O último cigarro prosa

expediente Conselho Editorial Alexandre Fantagussi Erick Costa Maraíza Labanca Rafael Reis II Projeto Gráfico e Direção de Arte Fernanda Gontijo II Colaboradores Ana Fernandes Rafael Carvalhaes Suellen Dias II Capa Rafael Carvalhaes II Revisão Isabela Monteiro II Impressão Guia Prático II Tiragem 1.000 exemplares II Informações Críticas Comentários Envio de Material Contato jornal.pausa@gmail.com II As opiniões expressas nos textos assinados são de responsabilidade exclusiva dos respectivos autores II Favor não deixar este jornal em vias públicas.

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Rafael Carvalhaes


rené char Loi oblige L’étoile qui rauquait son nom indéniable, Cet été de splendeur, Est restée prise dans le miroir des tuiles. Le féroce animal sera domestiqué! Sitôt que montera la puissante nuit froide, Où les yeux perdent tôt la clarté d’utopie, Parole d’albatros, je l’ensauvagerai.

A lei obriga A estrela que rouqueja seu nome inegável, – Este verão de esplendor –, Ficou presa no espelho das telhas. O animal feroz será domesticado! Tão logo alteie a pujante noite fria, Em que os olhos perdem a claridade da utopia, Palavra de albatroz, enselvagerá-la-ei.

erick costa


meio-fio

Torneando as máquinas

Falávamos crônicas, com o desconto do deboche. Na geometria caótica da cidade iluminada pela noite, dizíamos os medos, como numa truncada conversa de meninas. A medida do olhar não saía das mãos. Mas o gosto amargo do excesso de cerveja nas papilas confundia as falas. (Afiar as línguas.) Apenas dois contos sem riso. Poderia ser grave?, perguntava paralítico. “Quero duas doses desse corpo que trago pra mim”. Num gole infinito. E chega! Só pode se perder quem domina a justa medida dos gestos, sabíamos. Ele diria: as mesmas mazelas ainda, cercando o acaso. E molhando nossas mãos, a chuva, tudo que dura pela descontinuidade. Um embate. O tempo ilimitado entre dois pingos de chuva sobre a cidade prata - virando água. Atravessava as galerias. Estava sempre entre dois lugares. Pare! “Mais uma” – pedi, estancando os passos. Cristalizado o gesto, esse cáustico gesto sobre os rostos vis, pensaríamos nas linhas do mapa que o metrô desenhou embaixo dos carros. E outras geografias subterrâneas. O tempo na minha mão, nada fora dessa hora, cinza hora a perder-se de manhã. Fugitivos, corríamos em calçadas sujas, noturnas. Um movimento repetido à exaustão. Seria tarde? Por uma vez, estalamos as mãos, com uma falsa ironia na esquina dos olhos. E um beijo sem gênero na longa avenida de putas invisíveis. Porque foram beijos invisíveis nas avenidas sem nome.

Maraíza Labanca II 5


SOBRE A

ARTE MARGINAL Belo Horizonte, dois mil e..., um bar qualquer. Uma pessoa vem em direção à mesa daqueles que bebem e conversam, traz uma mochila; aproxima-se de nossa mesa e perguntanos se gostamos de poesia. A pergunta se choca contra nossos ouvidos, desvio meu olhar, mas, confesso, além da agressão, há uma réstia de luz que fascina. Penso em responder um sim enfático, mas hesito. Digo sim, meio sem jeito; a pessoa então me estende a mão com um volume encadernado. – Você está me dando? – Não, vendendo... – Obrigado, não me interessa. Esse fato é corriqueiro e, pode-se dizer, faz parte da vida nas grandes cidades. Artistas que se dizem marginais circulam diariamente por bares, praças, shows, trazendo nas mochilas suas obras; na pele, o estigma do artista marginal.

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Há vários equívocos nesse comportamento, a começar pela redundância da expressão. Não existe o artista marginal: o artista é, para o bem ou para o mal (ou para além de ambos), aquele que está necessariamente à margem. Criar é buscar limites, e ultrapassá-los já não é mais uma escolha pessoal. Viver da própria obra não é uma opção do artista – as obras são traiçoeiras, eis o risco principal. Nossa época, de avanços tecnológicos inimagináveis, é rica em paradoxos: nunca foi tão fácil se divulgar ou divulgar o próprio texto, entretanto, cada vez mais os escritores se inscrevem no isolamento e no silêncio. A lógica pode parecer simples: para escrever, basta papel e caneta; para ser lido, basta o leitor. Muitos escrevem, mas pouquíssimos merecem ser lidos. Os artistas que se dizem marginais se julgam vítimas de um mercado editorial elitista, que não lhes abre espaço – eles imprimem seus textos por conta própria e saem às ruas para vender seu material como uma forma de protesto. Por acreditarem na própria arte e fazerem dela um trabalho, reivindicam o direito de serem reconhecidos e, sobretudo, remunerados por essa atividade, para que possam, gozando de um conforto financeiro mínimo, dar maior vazão à sua criatividade e presentear o mundo com sua genialidade. Nada mais distante da realidade mercadológica e – equívoco maior ainda – da realidade artística. Esse ato se esgota num gesto político banal e diz muito pouco respeito ao que se deve entender por uma experiência artística. * O fato de Van Gogh ter vendido apenas um quadro em vida – o Vinhedo Vermelho – é, ainda hoje, bastante comentado como exemplo de injustiça que se pode cometer contra um artista. De fora, percebemos facilmente a incongruência existente entre o anonimato em vida e a sua celebração póstuma desmedida: não há muito tempo, o retrato do Dr. Gachet foi leiloado por US$ 82,5 milhões. A sociedade é cruel, concluímos facilmente. Essa conclusão é apenas parcialmente verdadeira. Sim, a sociedade é cruel, em vários aspectos, e o é também contra os artistas. Mas há ainda uma crueldade maior, que ignora a sociedade e é por ela ignorada, mas não pelo artista: é a crueldade da obra, que não faz concessões.

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Vincent fez da pintura um trabalho ao qual se dedicou integralmente. Seus desenhos de insetos, de paisagens pintadas de memória, de paisagens pintadas ao ar livre, de modelos, de partes do corpo humano (exercícios de livros de pintura então em voga), até os auto-retratos, foram mais do que uma forma de tentar encontrar sua plenitude artística: foram uma forma de diversificar seu trabalho para, talvez, obter algum êxito comercial. Vincent não era apenas consciente de que sua pintura deveria, mesmo que por dinheiro, tocar as pessoas; ele era também esforçado, pintava à exaustão, até onde sua saúde permitia: “a arte é ciumenta, ela não quer que a doença lhe tenha precedência” (Carta 218, escrita em Haia, 1882). Vejo-o em Arles à noite, próximo ao café, com o chapéu cheio de velas diante de uma tela. Concordo com Artaud: definitivamente, essa não é a visão de um louco – antes, de um operário da arte incansável. Da luta que Van Gogh travou contra a pintura, a sociedade e contra si mesmo, certamente ele teria sido derrotado por todos esses adversários, se não fosse a “fé absoluta na arte” de que fala e, sobretudo, um sentimento de humildade em relação a essa crença. Enfatizemos: Vincent vendeu apenas um quadro em vida – e isso choca. Mas isso não é tudo: vários outros foram dados de presente àqueles que, de algum modo, foram tocados por sua pintura (ou o demonstraram). Nem por isso Van Gogh deixou de pintar. * Continuo freqüentando a cidade, mas com muito pouca paciência quando vejo alguém com uma mochila de lado, trazendo nas mãos a própria obra – dois corpos agonizantes que precisam mais de dinheiro que de atenção. Não, isso não me interessa, definitivamente. Mas um dia há de vir um artista, com a mochila ao lado e o trabalho às mãos, e, para a minha surpresa, dirá: tome, se gostar é seu; se não gostar, dê-o para alguém. A ele, eu direi finalmente o sim de uma afirmação absoluta. A ele, esse artista que há de.

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turn on the bright lights


desenham-se austeras imagens a partir dos silêncios cantados. a música se firma, sobretudo, pelo que não diz e descansa exata na raiz do calafrio. mas o suspense é apenas presságio do que não se contém: o som ultrapassa o limite do latente e desperta (ou cria?) o sentir agudo, a urgência. i’ll say it now, because i want it now (i’m timeless like a broken watch) e o repouso não seria mais tão certo, o ritmo, outro. e não haveria delicadeza, porque se encontram na gravidade os vôos e quedas you fly straight into my heart, but here comes the fall haveria uma inabalável arquitetura sonora, de melodia altiva e fúria nos tons can’t you feel all the warmth of my sincerity?

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Ana Fernandes mora em Manaus, Amazonas. O texto que aqui se reproduz foi primeiramente publicado na Revista Trasilau <www.cce.ufsc.br/revistatrasilau>, parceira do jornal Pausa.

O último cigarro Se levantou da cama e ficou andando de um lado pro outro no quarto sem saber exatamente o que fazer. Acendeu um cigarro, sentou na janela e ficou olhando a cidade. Cinza. Fria. A cada tragada, observava de longe o quanto as pessoas eram tristes e vazias. Talvez esse fosse seu último cigarro. Colocou uma gravata e ficou se olhando no espelho. Estava pronta pra ver aquela garota do reflexo ser estrangulada. Passou muito tempo ali. Inerte. Até que deu uma risada e sussurrou: “covarde”. Afrouxou a gravata, pegou sua mochila e foi embora.

Ana Fernandes


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