Jornalismo & Jornalistas

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ENTREVISTA

M a n u e l A n t ó n i o Pi n a

U

ma conversa com Manuel António Pina assemelha-se mais a uma partida de mini golfe do que a um jogo de pingue-pongue. A «bola» circula por um labirinto de histórias, lembranças e citações, mas raramente perde o sentido. Numa mesa do restaurante Convívio, no Porto, de que é frequentador habitual, a conversa fluiu durante mais de três horas, num tom descontraído, pausado, que se distancia do «corredor de velocidade» que diz ser quando escreve as crónicas diárias de 1400 caracteres. Sempre com o humor, ironia e sabedoria que o caracterizam.

nem isso. A minha geração (e do José Saraiva, do Alberto Carvalho, do Pereira Pinto...) foi até recebida com muita suspeita, a mesma com que depois do 25 de Abril foram recebidos os primeiros licenciados em comunicação social. Ali no JN a coisa não foi tão dura como foi noutros sítios, embora no dia-a-dia houvesse bastante hostilidade. Os tarimbeiros achavam que entravam indivíduos que nunca tinham entrado num jornal e que julgavam saber tanto quanto eles. Diz-se que o Pina teve ali algum rasgo, que conseguiu escapar ao ‘disse, fez, aconteceu’?

Vêm de sempre. Tenho um temperamento nocturno, venusiano. Começo a acordar quando Vénus aparece no horizonte, às seis, sete da tarde e dá-me vontade de dormir quando aparece a estrela da manhã, às seis da manhã.

Em vez de começar a contar as coisas cronologicamente, por exemplo, comecei a inverter, a começar pelo presente e depois voltar ao passado, fazer uma espécie de montagem cinematográfica. Há um livro que me marcou muito quando tinha para aí 20 anos, do Roland Barthes, O Prazer do Texto. Veio ao encontro daquilo que sentia. Os livros são uma revelação porque acabam por mostrar aquilo que sabíamos ou pressentíamos. A lição fundamental do livro é que o texto que não é feito com prazer, com gozo, nunca vai suscitar prazer aos outros.

Os seus horários naturais adequavam-se bem aos do jorna-

Procurou sempre esse prazer na escrita?!

lismo portanto....

Procurei também por uma questão egoística, se não era um pincel estar ali aquelas horas todas contrariado. Quem escreve - e na literatura ainda mais - acaba sempre por se escrever a si mesmo, escreve com a sua cultura, com a sua experiência, às vezes até com a sua disposição. Numa das primeiras notícias que escrevi o Manuel Ramos [antigo director do JN] chamou-me: «Você fez-me redescobrir o prazer dos pontos e vírgulas».

É um bom dia?!

Levantei-me há bocadinho, às duas da tarde [são quatro e meia]. Esses horários vêm dos tempos em que trabalhava no Jornal de Notícias (JN)?

A profissão começava a horários diurnos, eu é que tive horários nocturnos, de facto. Quando entrei para o jornal quem estava de piquete ficava até às três da manhã. Até me custa dizer isto, mas na tropa (tantos amigos morreram lá e outros ficaram com traumas de guerra...), o que me custava mais era levantar de manhã e no entanto entrava às dez. Na tropa, a minha especialidade era acção psicológica, guerra psicológica, propaganda e contra propaganda. Quando começou no JN ainda estava na tropa. Era conhecido pelo “senhor costas”...

[risos] Sim, pelos fotógrafos. Tive de pedir licença ao Estado Maior do Exército... foi indeferida. Aconselharamme a assinar com pseudónimo e eu escolhi os meus dois nomes do meio, António Mota. Os fotógrafos do jornal tinham indicação para só me fotografarem de costas! Entrei no primeiro concurso que o JN abriu. E depois do 25 de Abril foi sempre assim. O Conselho de Redacção [CR] tinha muita força, não entrava ninguém pela porta do cavalo. Na altura, também, o CR tinha voto deliberativo sobre o director. Só dávamos voto favorável aos directores depois de eles se comprometerem por escrito a só admitirem pessoas com o nosso aval. Na altura, o conflito partidário era muito duro, nós dissemos que não a muita gente se não aquilo desequilibrava. O CR participava na orientação ideológica do jornal. Tinha incomparavelmente muito mais poder do que tem hoje. Esse concurso abriu lugar a outro tipo de jornalistas?

Quando entrei para o jornal havia duas categorias, os repórteres e os redactores. O que os distinguia era que o redactor escrevia em definitivo e os outros tinham de ser corrigidos. Muita gente tinha a escolaridade primária ou 12 |Jul/Set 2011|JJ

Ainda se lembra por que quis seguir jornalismo?

A matéria-prima do jornalismo é a mesma da literatura, são as palavras. Tinha que ter uma profissão qualquer (só acabei o curso de Direito quando saí da tropa). Ainda acumulei a advocacia e o jornalismo durante alguns anos, mas acabei por desistir da primeira. E a literatura, porque é que não se assume como escritor?

Não me sinto muito à vontade... não é uma profissão para mim, é uma devoção. O jornalismo serve para ganhar a vida e a literatura para tentar salvá-la, seja o que for que isso signifique. Sei uma coisa que não significa... como diz um verso do Fernando Lemos, salvar a vida não é aprender a nadar, é uma coisa mais profunda. O que é que o jornalismo ensinou à literatura e vice-versa?

O jornalismo ensinou uma coisa fundamental, a humildade. Como diziam os velhos tipógrafos, no dia seguinte o jornal é para embrulhar peixe. Os escritores têm tendência a sacralizar muito aquilo que fazem, vejo aí muitos em pose para a eternidade. «Daqui a cinco mil anos ainda se hão-se ler os meus livros», diz o Lobo Antunes. Ele sabe lá, nem daqui a 50! Morreu o Eugénio de Andrade e desapareceu completamente... o Carlos de Oliveira, escritores fantásticos, ninguém se lembra deles... Para as crónicas diárias do JN tenho de fazer 1400 car-


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