Design em fluxo - Processos e temporalidades dos memes de internet

DESIGN EM FLUXO PROCESSOS E TEMPORALIDADES DOS MEMES DE INTERNET PA UL A SC H U A BB

Universidade do Estado do Rio de Janeiro Centro de Tecnologia e CiĂŞncias Escola Superior de Desenho Industrial

Paula Alexandre Schuabb

Design em fluxo: processos e temporalidades dos memes de internet

Rio de Janeiro 2017

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Paula Alexandre Schuabb

Design em fluxo: processos e temporalidades dos memes de internet

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Design, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Orientador: Prof. Dr. Marcos André Franco Martins Coorientador: Prof. Dr. Ricardo Artur Pereira Carvalho

Rio de Janeiro 2017

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CATALOGAÇÃO NA FONTE UERJ/REDE SIRIUS/CTC/G A ficha catalográfica deve ser preparada pela equipe da Biblioteca e o prazo de entrega será de até 3dias úteis, após o recebimento das informações sobre o trabalho. Ela deverá ser inserida neste local.

Na versão impressa, deverá constar no verso da folha de rosto.

Formatar a fonte conforme o modelo escolhido para todo o trabalho (Arial ou Times New Roman) A ficha desta máscara foi inserida através do recurso de selecionar, copiar e colar especial como documento do Word (objeto). É possível editá-la dando dois cliques em cima da ficha com o botão esquerdo do mouse.

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta tese/dissertação, desde que citada a fonte. __________________________________ Assinatura

____________________________ Data

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Paula Alexandre Schuabb

Design em fluxo: processos e temporalidades dos memes de internet

Dissertação apresentada, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre, ao Programa de Pós-graduação em Design, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

Aprovada em 30 de agosto de 2017.

Banca Examinadora: _____________________________________________ Prof. Dr. Marcos André Franco Martins (Orientador) Escola Superior de Desenho Industrial - UERJ _____________________________________________ Prof.ª Dra. Noni Geiger Escola Superior de Desenho Industrial - UERJ _____________________________________________ Prof. Dr. Viktor Henrique Carneiro de Souza Chagas Universidade Federal Fluminense

Rio de Janeiro 2017

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DEDICATÓRIA

Para minha mãe, Lourdes, que sempre me incentivou a estudar.

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AGRADECIMENTOS

À querida Silvinha Steinberg, pelas opiniões, por me apresentar não somente à esta escola, mas ao meu orientador, que representam um antes e um depois em minha vida; Ao meu orientador, Marcos Martins, pela dedicação, por todas e tantas contribuições; Ao meu coorientador, Ricardo Artur, por todo incentivo e colaboração; Ao grupo de pesquisa de extensão, Estudos da Imagem nas Redes Sociais, em especial Bárbara Emanuel, Camila Rodrigues, Renata Perim e Giana Larocca (#time), por todo conhecimento compartilhado; Às(os) tantas(os) mestrandas(os) e doutorandas(os) que tive a oportunidade de conhecer ao longo das aulas e nos cafezinhos dos intervalos, pessoas tão interessantes com quem pude aprender e dividir pensamentos; À Noni Geiger, pelas inspirações; Ao Viktor Chagas, cujo trabalho é importante fonte de referência para esta pesquisa; Ao Daniel Portugal, por aceitar fazer parte da banca como suplente; Ao Pedrão Luiz Souza, pelas histórias e conversas valiosas; Aos professores, aos funcionários e à coordenação do programa de Pós-Graduação em Design, pela convivência enriquecedora; Aos meus pais, Lourdes e Paulo, e ao meu irmão, Diogo, pelo apoio incondicional; Ao Alvaro Faria, pelo carinho e companhia nos muitos momentos de ansiedade; Às amigas e amigos queridos, que não desistiram de mim neste longo período de sucessivas ausências; Às amigas e amigos com quem trabalho, por todo apoio e compreensão para que eu pudesse dedicar o tempo necessário à esta pesquisa. Em especial, Waltinho Romano, Carol Silveira, Thata Barreto, Vivi Davico, Gi Maciel e Aninha Dickstein, obrigada por insistirem.

Ao JV, que vai ficar muito orgulhoso disso tudo!

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Fonte: Google imagens, 2016.

Autor desconhecido

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RESUMO SCHUABB, Paula Alexandre. Design em fluxo: processos e temporalidades dos memes de internet. 2017. 172 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Escola Superior de Desenho Industrial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Na passagem do século XX para o século XXI, vimos a internet se expandir mais rapidamente que outros sistemas de comunicação. O fácil acesso a ferramentas de edição de texto e imagem, por sua vez, popularizou processos de escrita visual. O modelo de difusão um-para-todos, característico dos grandes veículos de mídia, foi impactado pelo novo modelo todos-todos, característico da web colaborativa, com seus fóruns, blogs e mídias sociais. As pessoas, no papel de consumidoras, produtoras e propagadoras de conteúdos digitais, encontraram nas interfaces fluidas e dinâmicas das mídias sociais espaço propício para a proliferação de peças de mídia. Dentre estas peças, imagens conhecidas como memes de internet espalharam-se pelos diálogos em rede. Compartilhados de pessoa em pessoa, memes tornaram-se uma linguagem em si, através da qual é possível expressar-se diante das mais diversas questões cotidianas, sociais e políticas. Nesta pesquisa, investigo a produção e o consumo de memes de internet compartilhados em mídias sociais a partir de temas de grande repercussão nacional. Busco processos e temporalidades associados a estas soluções flexíveis e alteráveis que, fruto do design vernacular, ou mesmo profissional, espalham-se rapidamente por interfaces digitais. Em seus fluxos, que se dão em torno da construção coletiva de identidades meméticas, são formados conjutos de peças de mídia em constante mutação.

Enquanto registro vivo de fluxos de produção e compartilhamento de ideias, memes de internet constituem uma base consistente, vasta e acessível, para análise de uma nova linguagem narrativa que emerge da cultura digital.

Palavras-chave: Meme de internet. Escrita visual. Remix. Design. Interfaces digitais. Mídias sociais. Cultura digital. Tempo real.

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ABSTRACT SCHUABB, Paula Alexandre. Design in the flow - Processes and temporalities of the internet memes. 2017. 172 f. Dissertação (Mestrado em Design) – Escola Superior de Desenho Industrial, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

In the transition from the twentieth to the twenty-first century, we witnessed the internet expand faster than any other previous communication system. Easy access to text and image editing tools, in turn, popularized visual writing processes. The one-to-many broadcasting model, so characteristic of major media outlets, was impacted by the new many-to-many model, characteristic of the collaborative web with its online boards, blogs, and social media. People, as consumers, producers and propagators of digital content, found in the fluid and dynamic interfaces of social media a conducive space for the proliferation of digital media pieces. Among these pieces are the images known as internet memes, which have spread through networked dialogues. Shared from person to person, memes became a language in and of itself, and through them people can express themselves before the most diverse daily, social and political issues. In this research, I investigate the production and consumption of internet memes that have been shared in social media after events of great national repercussion. I seek for the processes and temporalities associated with these flexible and alterable solutions that, as a result of vernacular or even professional design, can rapidly spread through digital interfaces. In their flows, which take place around the collective construction of memetic identities, sets of media pieces in constant mutation are formed. As a living record of production flows and idea sharing, internet memes provide a consistent, vast and accessible basis for analyzing a new narrative language that emerges from the digital culture.

Keywords: Internet meme. Visual writing. Remix. Design. Social media. Digital interfaces.

Digital culture. Real time.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Figura 2 –

Memes de internet, em painéis que comparam o poder aquisitivo do brasileiro antes e depois da disparada do dólar, em 2015........................

15

A maneira como é dobrado o papel higiênico repete-se em diferentes hotéis em todo o mundo...........................................................................

22

Figura 3 –

O costume de celebrar aniversários com bolos e velas, em dois momentos diferentes na história............................................................... 26

Figura 4 –

Comparativo entre os fatores de replicação genética (Darwin) e os fatores de replicação cultural (Dawkins).................................................. 28

Figura 5 –

Colagem do tipo exploitable que deu origem ao meme Tourist guy................................................................................................ 30

Figura 6 –

Meme Happy cat....................................................................................... 31

Figura 7 –

Cenas do vídeo “Eta Giovanna o forninho caiu!!!!”................................

32

Figura 8 –

Memes criados a partir de cenas do vídeo “Eta Giovanna o forninho caiu!!!!”....................................................................................................

33

Figura 9 –

Memes com o personagem “Chico Buarque triste feliz”.........................

35

Figura 10 –

Vídeo “Alô vó, tô reprovado”, no canal de Whindersson Nunes no Youtube, com mais de 8 milhões de visualizações..................................

40

Número de visualizações dos vídeos mais populares, no canal da Rede Globo, no Youtube...................................................................................

41

Número de visualizações dos vídeos mais populares, no canal “whinderssonnunes”, no Youtube............................................................

42

Figura 13 –

Cenas do vídeo “Já acabou, Jéssica?”......................................................

43

Figura 14 –

Memes criados a partir do vídeo “Já acabou, Jéssica?”...........................

44

Figura 15 –

Interface geradora de memes do site Meme Generator............................

45

Figura 16 –

Interface geradora de memes do site Quick meme................................... 46

Figura 17 –

Página de customização do meme “Já acabou, Jéssica?” no site Meme Generator………………………..............................................................

47

Metameme com o personagem Grumpy Cat, ironizando o uso da Impact.......................................................................................................

48

Figura 11 – Figura 12 –

Figura 18 –

11

Figura 19 –

Comparação do aproveitamento de espaço entre Arial Black e Impact... 48

Figura 20 –

Meme de classificados, recebido pelo WhatsApp.................................... 49

Figura 21 –

Memes de classificados, em suas variadas formas de produção..............

50

Figura 22 –

Meme reconhecido por 66% dos respondentes........................................

51

Figura 23 –

Meme Caneta Desmanipuladora............................................................... 52

Figura 24 –

Image macro com personagens do filme “Alien – O oitavo passageiro”. 52

Figura 25 –

Peça da Casa & Vídeo exposta no Metrô do Rio de Janeiro..................

55

Figura 26 –

Peças da Casa & Vídeo expostas no Metrô do Rio de Janeiro...............

55

Figura 27 –

Citações à obra “O Grito”......................................................................... 57

Figura 28 –

Anúncios criados pela Koppel & Scher para a marca de relógios Swatch......................................................................................................

59

Cartaz criado por Herbert Matter (1934) e cartaz criado por Paula Scher (1984).............................................................................................

61

Figura 30 –

Remixes produzidos durante a Copa do Mundo de 2014........................

62

Figura 31 –

Image macros do meme “Podolski brasileiro”......................................... 63

Figura 32 –

Trechos do vídeo em que Edinair é flagrada registrando a presença e saindo sem trabalhar.................................................................................

66

Figura 33 –

Trechos de vídeo remix sobre a personagem Senhora.............................

66

Figura 34 –

Memes da personagem Senhora...............................................................

66

Figura 35 –

Memes “...por favor, nunca te pedi nada”, do tipo catchphrase..............

68

Figura 36 –

Memes “Você percebe que está ficando velho quando...”, do tipo catchphrase............................................................................................... 68

Figura 37 –

Memes #sqn (“só que não”), do tipo catchphrase.................................... 69

Figura 38 –

Cópia do vídeo original de Nissim Ourfali, publicada em canal de terceiro no Youtube e postagem do dono do canal, no Twitter................ 73

Figura 39 –

Memes criados a partir do vídeo original de Nissim Ourfali...................

73

Figura 40 –

Cartazes originais, criados pelo governo inglês, em 1939.......................

76

Figura 41 –

Site gerador de memes do cartaz “Keep Calm and Carry On”................

77

Figura 29 –

12

Figura 42 –

Memes brasileiros do cartaz “Keep Calm and Carry On”.......................

77

Figura 43 –

Memes do cartaz “Keep Calm and Carry On” pelo mundo...................

78

Figura 44 –

Timeline do Facebook, no dia 3 de maio de 2017.................................... 81

Figura 45 –

Interface do Facebook, com atualização em tempo real e inúmeros estímulos à interação................................................................................

83

Figura 46 –

Memes usados como tema de matérias em três veículos jornalísticos..... 86

Figura 47 –

Memes publicados durante o primeiro tempo da partida entre Brasil e Alemanha.................................................................................................. 87

Figura 48 –

Memes publicados durante o segundo tempo da partida entre Brasil e Alemanha.................................................................................................. 88

Figura 49 –

Coleções de memes de internet, criadas durante as partidas da Copa do Mundo de 2014......................................................................................... 91

Figura 50 –

Postagens de divulgação do questionário da pesquisa sobre imagens.....

Figura 51 –

Memes com a temática da zoeira.............................................................. 96

Figura 52 –

Memes “Vem pra rua”.............................................................................. 98

Figura 53 –

Memes “Não é pelos 20 centavos”........................................................... 98

Figura 54 –

Memes “O gigante acordou”....................................................................

98

Figura 55 –

Memes “Não vai ter copa”.......................................................................

99

Figura 56 –

Vomitaço na página do Ministério da Cultura (MinC), no Facebook...... 100

Figura 57 –

Vomitaço na página do PMDB................................................................. 101

Figura 58 –

Vomitaço em memes de internet..............................................................

101

Figura 59 –

Memes que refletem diferentes posicionamentos políticos em relação ao governo brasileiro................................................................................

102

94

Figura 60 –

Pessoas chegando atrasadas para as provas.............................................. 104

Figura 61 –

Memes postados minutos antes do fechamento dos portões....................

105

Figura 62 –

Atrasados se jogam contra portões, para entrar nos locais de prova........

106

Figura 63 –

Imagens que se repetem em diferentes locais de provas..........................

107

13

Figura 64 –

Postagens contendo imagens da cobertura jornalística, ressignificadas como memes de internet........................................................................... 108

Figura 65 –

Espetacularização do evento na cobertura do portal de notícias Terra....

Figura 66 –

Apropriação de imagem da estudante atrasada, que virou meme no primeiro dia de prova, como alerta para o segundo dia............................ 109

Figura 67 –

Pessoas que foram aos locais de prova, registrando aqueles que chegaram atrasados................................................................................... 109

Figura 68 –

Estudante que foi a um local de prova assistir aos atrasados...................

110

Figura 69 –

Postagem textual de expectativa, antes do fechamento dos portões........

112

Figura 70 –

Remix em memes sobre atrasados............................................................ 113

Figura 71 –

Cinco diferentes composições, produzidas a partir de combinações de imagens reais do evento com referências da cultura popular...................

114

Memes com a estudante Evelyn, criados a partir de imagens da cobertura jornalística................................................................................

115

Figura 73 –

Estudante que chegou atrasada em 2014, mas chegou a tempo em 2015

116

Figura 74 –

O meme “Senhora” no contexto do Enem................................................ 116

Figura 75 –

Personagens comentam sobre os atrasados no Enem...............................

117

Figura 76 –

Intervenções urbanas................................................................................

119

Figura 77 –

Memes de internet que indiretamente sugerem crítica à cultura do espetáculo.................................................................................................

119

Figura 72 –

Figura 78 –

109

Meme “John Travolta confuso”................................................................ 122

14

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO............................................................................................... 15 1

DOS MEMES AOS MEMES DE INTERNET............................................

21

1.1

Base biológica para o estudo dos memes......................................................

23

1.2

Replicação cultural por processos de imitação............................................

24

1.3

Replicação cultural em ambientes digitais...................................................

29

2

PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO COLETIVA........................................

36

2.1

Consumidores como produtores e propagadores........................................

38

2.1.1

Ferramentas geradoras de memes de internet................................................... 45

2.2

A escrita visual do remix................................................................................ 53

2.3

Viralização e apropriação..............................................................................

3

TEMPORALIDADES DE PRODUÇÃO E CONSUMO............................ 70

3.1

Propagação e envolvimento na cultura digital............................................. 71

3.2

A aceleração em interfaces fluidas e dinâmicas...........................................

79

3.3

Conexão em tempo real..................................................................................

84

4

IDENTIDADES MEMÉTICAS EM FLUXO..............................................

88

4.1

Coleções flexíveis e alteráveis........................................................................

90

4.2

O humor nos memes de internet...................................................................

93

4.3

Engajamento e agência política.....................................................................

96

5

#SHOWDOSATRASADOS2015...................................................................

103

5.1

Repetição e deslocamentos.............................................................................

103

5.2

O riso coletivo.................................................................................................. 110

64

CONSIDERAÇÕES FINAIS......................................................................... 121 GLOSSÁRIO................................................................................................... 146 REFERÊNCIAS.............................................................................................. 153 APÊNDICE 1 – Resultados do questionário de pesquisa................................ 161

15

INTRODUÇÃO

Por volta dos anos 2000, com a popularização da internet, um tipo peculiar de imagem começou a se espalhar pelas superfícies digitais das telas eletrônicas, compondo uma espécie de painel da maneira como as pessoas se relacionam com questões cotidianas, políticas e sociais, e diante delas se expressam. Estas imagens, conhecidas como memes de internet1, são criadas, produzidas e compartilhadas pelas pessoas com seus pares, em mídias sociais, a partir de temas afeitos aos grupos em que estão inseridas, ou nos quais pretendem inserir-se.

Pessoas as utilizam com a função da fala nas conversas das quais participam, individualmente ou em grupo, seja colocando temas em pauta ou fazendo comentários. As combinações de referências que surgem destas conversas, por sua vez, geram novos memes, em um fluxo constante de novas combinações. Através da apropriação de imagens e textos circulantes na grande mídia, ou mesmo do registro de eventos e situações cotidianas, conteúdos são editados e publicados para expressar opiniões, emoções e reações pessoais diante dos mais variados temas. A motivação principal para esta pesquisa foi o fato de que os memes de internet (Figura 1) tornaram-se uma linguagem em si, cada vez mais presente na dinâmica de interação em mídias sociais, de forma que procurei analisar seus principais fluxos de consumo, produção e propagação.

Figura 1: Memes de internet, em painéis que comparam o poder aquisitivo do brasileiro antes e depois da disparada do dólar, em 2015: à esquerda, uma viagem internacional; à direita, o consumo de cerveja importada.

Fonte: Facebook, 2016.

1

Segundo o dicionário Oxford, o meme é: “(1) Um elemento de uma cultura ou sistema de comportamento passado de um indivíduo para outro por imitação ou por outros meios não genéticos. (2) Uma imagem, vídeo, parte do texto, etc., normalmente de natureza bem-humorada, que é copiada e espalhada rapidamente por usuários da internet,

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Nas duas últimas décadas do século XX, vimos o enorme avanço da tecnologia eletrônica e informática transformando o modo como as pessoas se comunicam, acessam informações e as compartilham entre si. De pequenos núcleos sociais locais, passamos à escala global. Muitas soluções e dispositivos foram comercializados e popularizados: microcomputadores e softwares, internet, correio eletrônico, mensagens instantâneas, celulares e câmeras digitais. Na década de 1990, o rápido desenvolvimento da internet e da web, revolucionou muitas áreas da atividade humana, entre elas, o design e todo o processo de criação e produção de comunicação visual. “A experimentação em computação gráfica agitou ideias modernas e pós-modernas de design, potencializou retomadas do retrô e excentricidades, além de criar um período de pluralismo e diversidade no design” (MEGGS; PURVIS, p. 627). Como aponta Souza (2008), o computador modificou a vida das pessoas em dimensão maior do que o automóvel em vários aspectos. “Especificamente na área do design, ele trouxe modificações radicais em métodos de trabalho, tempo e operacionalidade que, logicamente, influenciam seus resultados inclusive formais” (SOUZA, p. 23-24).

O desenvolvimento tecnológico, aliado a novas ferramentas de comunicação, representou ganho expressivo de tempo na produção profissional de imagens e em sua circulação. “No início do século XXI, muitas pessoas já haviam se tornado dependentes da internet para acesso a informações e entretenimento, fenômeno que afetou todos os aspectos da sociedade e da cultura” (IDEM, p. 627). Na evolução tecnológica que se seguiu, o computador tornou-se móvel, a tecnologia wireless ofereceu mobilidade em alternativa aos cabos para conexão, e mídias sociais como Linkedin (2003), Orkut (2004), Facebook (2004), Youtube (2005) e Twitter (2006) abriram espaço para novos hábitos de relacionamento interpessoal. Mas acredito que uma mudança bastante significativa para a produção e disseminação de imagens tem sua origem na evolução dos aparelhos celulares, que, a partir dos anos 20002, ao tornarem-se smartphones e reunirem um conjunto de ferramentas populares e fáceis de serem utilizadas, possibilitaram que pessoas com um celular nas mãos pudessem fotografar ou buscar uma imagem na internet, editá-la, acrescentar texto e publicála para toda a sua rede social, em um curto espaço de tempo. Segundo pesquisa realizada pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo3 (FGV-SP), em maio de 2016, o número de smartphones no Brasil era de 168 milhões, enquanto os computadores eram 160 milhões.

Estes números somados representam 1,6 aparelho conectado à internet para cada habitante do país. A projeção para 2018 é de 416 milhões de aparelhos celulares. E o crescimento do 2 3

Fonte: Techtudo, 2012.

Fonte: Folha de São Paulo, 2016.

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tráfego de dados móveis até 2018 deverá ser onze vezes o atual, crescendo mais de 60% ao ano. Esses dados ajudam a entender por que o Brasil aparece em quinto lugar no ranking mundial de viciados em smartphone4. De acordo com a consultoria Flurry, é considerada viciada a pessoa que abre aplicativos mais de 60 vezes ao longo de um dia. Se, nos anos 1990, designers se adaptavam aos computadores e aos softwares para produzirem imagens profissionais, a partir dos anos 2000, pessoas com um celular ou um computador, mais alguns aplicativos instalados, também passaram a ter condições de produzir imagens e disseminá-las para o mundo. A produção de imagens (tanto a profissional quanto a popular) encontrou espaço para se proliferar em um fluxo que ultrapassou relações sociais locais e ampliou a proporções globais as fontes para troca de informação. Enquanto registro destes fluxos de produção e compartilhamento de imagens nas mídias digitais, os memes de internet fornecem material consistente, vasto e acessível, que enriquece e torna possível a proposta desta pesquisa exploratória, de investigar sua linguagem peculiar, emergente da cultura digital.

Partindo deste dispositivo de linguagem, busco investigar dinâmicas de produção e consumo de conteúdos nas mídias sociais, através da análise de memes de internet, desde estruturas e personagens recorrentes, até peças produzidas e compartilhadas a partir de temas de grande repercussão nacional. O cenário de pesquisa é a internet, e os memes analisados são fruto de coleta iniciada em 2014, quando comecei a acompanhar em tempo real a reação popular a eventos de grande visibilidade midiática, como, por exemplo, a Copa do Mundo no Brasil (2014), as provas do Enem (2015), o processo de Impeachment da então presidenta Dilma Rousseff (2016), a manifestação popular pedindo a renúncia do presidente Michel Temer (2017), entre outros. Os métodos de coleta consistiram de acompanhamento diário de perfis produtores de memes e da minha própria rede nas mídias sociais; do acompanhamento de hashtags5 em mídias sociais; de buscas por imagens através da ferramenta Google imagens; de pesquisa em acervos pessoais e/ou colaborativos on-line; bem como, de registros jornalísticos. Vale ressaltar que, atualmente, diversos veículos jornalísticos vêm se utilizando de compilados de memes como linha narrativa para suas matérias, o que reflete a influência dos memes de internet na produção e no consumo de conteúdos das mídias de massa.

Além de analisar determinadas padronizações nas composições gráficas dos memes de internet, busquei motivações e caminhos percorridos até estas soluções flexíveis e alteráveis que, oriundas aparentemente do design vernacular, espalham-se rapidamente por interfaces

4

Fonte: Techtudo, 2016.

Palavras-chave sobre um assunto, ou expressões, antecedidas pelo símbolo da tralha (#) que agrupam postagens em redes sociais. Hashtags funcionam como hiperlinks e são indexáveis por mecanismos de busca. Ver glossário, p. 126.

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digitais, de pessoa em pessoa, até propagarem-se em larga escala. Busquei investigar possíveis aspectos projetuais ou processos recorrentes dentro dos fluxos que se dão em torno da construção colaborativa de identidades meméticas – formadas por conjuntos de peças de mídia em constante desenvolvimento – e mapear ferramentas facilitadoras, ou mesmo, indutoras de tais fluxos, de forma a identificar influências e interseções entre o design profissional e as criações populares, peculiares ao universo dos memes de internet. Relações entre o vernacular e o profissional serão abordadas a partir da maneira como o popular apropria-se do mainstream, ressignificando-o e devolvendo-o à cultura de massa, em um processo de retroalimentação. E também a partir das interferências do design de interação na produção vernacular, através de interfaces e templates para customização de imagens, que facilitam e estimulam a interação, o engajamento, a produção e o compartilhamento. Entendo que a presença do design não esteja refletida apenas nos aspectos formais das peças produzidas, estando também na maneira como a troca de informações se dá nas redes, através das interfaces fluidas e dinâmicas que as apresentam. Mas não me aprofundarei na análise gráfica destas ferramentas, optando por voltar minha atenção para o viés de sua influência na produção e no compartilhamento dos memes de internet, sob a ótica de seus processos e temporalidades. No entanto, elas foram fundamentais para o mapeamento e a coleta dos memes analisados. As mídias sociais escolhidas como fonte para esta pesquisa foram o Facebook, o WhatsApp, o Youtube, o Twitter e o Instagram, por estarem entre as mídias sociais mais populares6 utilizadas atualmente no Brasil.

Esta pesquisa contou também com a realização de um questionário on-line sobre o uso de memes de internet em conversas pessoais. Ele foi divulgado em páginas e grupos de variadas temáticas no Facebook e no WhatsApp, de forma a equilibrar as áreas de atuação dos respondentes e evitar uma possível concentração em áreas de conhecimento como o design e a comunicação, potencialmente mais afeitas a programas e aplicativos de edição de imagens.

Através do questionário, busquei encontrar pistas sobre os caráteres de automatismo e intencionalidade presentes na replicação dos memes de internet. Em um universo de 562 pessoas respondentes, como comentarei pontualmente no decorrer da pesquisa, pude identificar, entre outras questões, o quanto o termo meme é conhecido enquanto recurso de retórica visual, em meio ao conjunto de imagens comumente compartilhadas nas redes; se de fato estas pessoas enjagam-se na produção de memes ou apenas compartilham os que recebem; quais os recursos utilizados para produção de memes; e com quais principais objetivos utilizam memes em suas conversas. As imagens selecionadas para o questionário, 6

Fonte: Marketing de Conteúdo, 2017.

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assim como aquelas utilizadas como exemplo ao longo dos capítulos, foram analisadas a partir de uma perspectiva retórica, com base no esquema proposto por Foss (1994), o qual “centra-se na identificação crítica da função comunicada por uma imagem, avaliação do suporte fornecido para a função e avaliação da legitimidade dessa função7” (FOSS, p. 218).

Através dele não avaliarei o mérito artístico ou a excelência estética dos memes, mas a sua influência nas redes e os processos criativos que afetam tal influência.

Mas, para chegar aos memes de internet como hoje os conhecemos, no capítulo 1, passarei por teorias e conceitos que norteiam os estudos da memética, pois eles ajudarão a ter mais clara a relação entre a transmissão cultural e a replicação por imitação, importante para o entendimento dos memes de internet. O capítulo 2 é dedicado aos processos em torno da produção e do compartilhamento dos memes de internet, os quais representam mudanças significativas nos papéis das pessoas, que, para além de consumidoras, com a Web 2.0, passam a ser também produtoras e propagadoras de conteúdos. E para tal, precisam envolverse com práticas e linguagens das mídias digitais – apropriações, remixagens, propagações por viralização – contando com recursos gráficos e ferramentas facilitadoras para a criação e o compartilhamento das suas colaborações. Em seguida, no capítulo 3, analiso a urgência como tempo das redes, estimulada pela própria dinâmica temporal das mídias sociais, e de suas interfaces, em permanente atualização. Nesta cultura da atenção, que opera sob a lógica da propagação e do envolvimento, estamos expostos a novas temporalidades e velocidades, a novas experiências de fluxo e obsolescência, que influenciam diretamente na maneira como as pessoas assimilam e propagam as informações ao seu redor. No capítulo 4, apresento a ideia de identidade memética: fator em torno do qual uma coleção de objetos de mídia pode ser agrupada, de forma a caracterizar-se como um meme de internet, reforçando seu caráter de conjunto e refutando a percepção de que memes existam enquanto itens isolados. Entre as diversas abordagens possíveis de uma identidade memética, o humor, em especial, é percebido como estreitamente relacionado aos memes de internet, mas, em contraponto, e para dar visibilidade a abordagens mais sérias em torno do fenômeno, neste capítulo analiso também a agência política dos memes, enquanto potentes ferramentas de engajamento e manifestação diante de causas sociais. E, finalmente, no capítulo 5, faço o estudo de caso do evento #ShowDosAtrasados2015, sob a ótica da comicidade e do espetáculo, no qual analiso o papel atuante e decisivo das pessoas no consumo, produção e propagação de conteúdos e produtos de mídia, e a sua relação com o humor.

Apoiarei-me nos estudos de Richard Dawkins (1979 [1976]), biólogo evolucionista responsável por cunhar o termo meme para representar uma unidade de replicação cultural, 7 Tradução da autora. No original: “…centers on the critic's identification of the function communicated by an image, assessment of the support provided for the function, and evaluation of the legitimacy of that function.”

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análoga ao conceito de replicação genética; nos aprofundamentos do estudo da replicação por processos de imitação, propostos por Susan Blackmore (2000), através da teoria da memética; nas análises de Limor Shifman (2014) sobre o desdobramento digital dos conceitos de cópia e imitação em memes de internet; bem como em seus questionamentos, alinhados com os de Henry Jenkins (2014), sobre a visão estritamente biológica do fenômeno, propondo uma participação humana mais ativa em termos de propagação de ideias nas mídias digitais.

Embora a ideias iniciais acerca dos memes tenham surgido na biologia, analisarei o fenômeno considerando aspectos da psicologia, sociologia, pedagogia, tecnologia da informação, design, comunicação e marketing, olhando para os memes de internet enquanto produção recente que dá visibilidade a novas formas de geração e propagação de ideias, de pessoa em pessoa, por meio de dispositivos digitais. Recorro aos conceitos de ciberespaço e inteligência coletiva, de Pierre Lévy (1999); às indagações de Lev Manovich (2001) sobre novas linguagens e possibilidades estéticas, que tornam-se possíveis a partir da informatização da cultura; à visão de uma “forma moda” aplicada à sociedade pós-industral, na qual Gilles Lipovetsky (1989) aponta a reordenação dos processos de produção e consumo de massa, que passam a operar sob a lógica da obsolescência, da sedução e da diversificação; às análises de Lawrence Lessig (2008) sobre a popularização do remix – enquanto linguagem resultante de uma sociedade cuja cultura é midiática e de massa – diante de uma legislação que atua impeditivamente sobre o universo da imagem, mas que historicamente sempre permitiu a citação em sua forma escrita; ao entendimento de Michele Knobel e Colin Lankshear (2007) a respeito da cultura digital, na qual linguagens como o remix e os memes de internet devem ser entendidas enquanto novas formas de letramento; aos efeitos da globalização sobre a formação de identidades coletivas, que para Zygmunt Bauman (1999) operam a partir de novas temporalidades e do encurtamento dos espaços; aos estudos de Henry Bergson (2007 [1900]) sobre os mecanismos da comicidade; às análises de Guy Debord (2013 [1967]) sobre a sociedade do espetáculo e transformação da vida comum em entretenimento; aos registros históricos no campo do design, por Philip P. Meggs e Alston W. Purvis (2009); à necessidade de atualização do pensamento visual, a partir de seus fundamentos, diante da assimilação de ferramentas tecnológicas na prática do design, apontada por Ellen Lupton e Jennifer Cole Phillips (2015 [2008]). Este quadro teórico será complementado, ao longo da pesquisa, por outros autores, cujos estudos procurei direcionar a temas específicos tratados em cada capítulo.

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1. DOS MEMES AOS MEMES DE INTERNET

No caminho proposto por esta pesquisa, partirei de uma revisão sobre teorias e pesquisas cujos conceitos envolvem os memes, desde as suas manifestações analógicas, até chegarem às mídias digitais. A ideia de replicação cultural como metáfora da replicação genética é a base biológica do estudo dos memes, que traz elementos cruciais para o entendimento do seu desdobramento na internet. Muitas características importantes dos memes como replicadores de cultura não seriam visíveis por uma análise embasada somente em estudos contemporâneos. Embora o fenômeno dos memes de internet, com suas especificidades e peculiaridades, seja apenas parte (não menos importante) das manifestações da replicação cultural humana, maior e mais abrangente, que se dá por processos meméticos, eles apontam para a necessidade de atualização destes conceitos, de forma a ressignificá-los.

Segundo o biólogo evolucionista, Richard Dawkins (1979 [1976]), quase tudo que é incomum no homem pode ser resumido na palavra cultura. Para ele, a transmissão cultural é análoga à transmissão genética, de forma que, buscando um substantivo para significar uma unidade de transmissão cultural, ou como chamou, uma unidade de imitação, Dawkins propõe o termo meme, em analogia ao termo gene. Entendidos como estruturas vivas, não metafóricas, memes são melodias, idéias, slogans, modas do vestuário, culinárias e artesanatos, ou seja, informações culturais que são transmitidas de pessoa em pessoa ao longo de gerações. E, para ele, da mesma maneira como os genes se propagam de corpo para corpo através de espermatozóides e óvulos, os memes se propagam de cérebro para cérebro, por meio de um processo que poderia ser chamado de imitação. Com base na teoria da “Seleção Natural” (DARWIN, 1859), a memética propõe que os memes se replicam por processos de variação, seleção e hereditariedade e, assim como os genes, alguns memes são mais propensos a serem mais bem sucedidos que outros. Sob esta lógica, um meme pode ser entendido como uma unidade de informação capaz de ser transmitida de um cérebro para outro, sendo o fundamento essencial de uma ideia a ser copiada e compartilhada por todos os cérebros que a compreendam, como uma forma abstrata de informação, que existe independentemente dos veículos que a propagam. Segundo a tese da psicóloga, pesquisadora do campo da memética, Susan Blackmore (2000), tudo aquilo que pode ser aprendido por processos de imitação é um meme, incluindo-se todas as possíveis formas de informação. Para a autora, nós humanos somos veículos propagadores de memes, tanto quanto livros, canções, jogos, ou rolos de papel higiênico, que são dobrados de maneira semelhante em hotéis por todo o mundo para

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demonstrar que foram especialmente preparados para os hóspedes (Figura 2). O exemplo é utilizado por Blackmore para ilustrar como esta prática se espalhou como um meme entre as mais diferentes culturas, em uma intrínseca relação com o veículo que a transmite.

Figura 2: A maneira como é dobrado o papel higiênico repete-se em diferentes hotéis em todo o mundo.

Fonte: Google imagens, 2016.

Partindo da analogia genética de Dawkins e considerando estudos posteriores no campo da memética, a pesquisadora de cultura popular e novas mídias, Limor Shifman (2014) sugere olharmos para unidades difusas de informação como se incorporassem diversos aspectos passíveis de serem imitados pelas pessoas. Isto para entendermos os memes não como entidades unitárias que se propagam, ou como fórmulas de boa propagação, mas como “grupos de unidades de conteúdo”8 com características semelhantes, como coleções. Outro aspecto importante em relação à dinâmica de replicação cultural diz respeito à ideia de agência. Memes de internet evidenciam o papel ativo da participação humana no processo de cópia, em contraponto à visão estritamente biológica do fenômeno, para quem a participação seria passiva. É portanto no que diz respeito à participação humana no processo de propagação dos memes de internet que encontramos divergências em relação aos conceitos de replicação cultural análogos à genética: enquanto Dawkins (1979 [1976]), ou mesmo Blackmore (2000), vêem os seres humanos como veículos a transmiti-los de cérebro em cérebro, sendo vetores passivos de transmissão cultural, diferentemente – e assim como Shifman (2014) e Jenkins (2014) – proponho enxergarmos as pessoas como atuantes no processo de transmissão, pressupondo intenções, em uma participação humana ativa e colaborativa.

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Tradução da autora. No original: “groups of content items”.

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1.1 Base biológica para o estudo dos memes

Em “O Gene Egoísta” (1976), Richard Dawkins considera a teoria da Evolução, de Charles Darwin (1859), como a primeira explicação coerente e convincente de por que nós humanos existimos. Partindo desta teoria, com foco na replicação da espécie humana, Dawkins identifica o egoísmo e o altruísmo como duas características cruciais para um gene ser bem sucedido. Entendidos como formas de sobrevivência ou recursos de autopreservação, o egoísmo “implacável e universal” (DAWKINS, 1979) relaciona-se à preservação de um membro individual, e o altruísmo à sua relação com o grupo de que é parte. Ao chamar os genes de egoístas, ele recorre à metáfora apenas para efeito de visualização da competição na qual uns seguiriam replicados em detrimento de outros.

Se um determinado conjunto de matérias primas químicas era abundante na Terra antes do surgimento da vida, e se estas substâncias orgânicas se concentravam localmente sob influência de energia, como a luz ultravioleta proveniente do sol, havia aí uma possibilidade de tais elementos se combinarem em moléculas maiores, no caldo primitivo que acredita-se ter constituído os mares de 3 a 4 bilhões de anos atrás. Em um dado momento neste caldo primitivo, Dawkins aponta a possibilidade do surgimento de uma molécula particularmente notável, formada acidentalmente. Ele a chama de replicadora, não por ter sido maior ou mais complexa, mas por possuir a capacidade de criar cópias de si mesma. Como molde de uma combinação de elementos, estando os mesmos presentes em determinada condição propícia, tais moléculas combinariam-se automaticamente em uma seqüência que imita a do próprio replicador original, formando uma cadeia estável de formação. Embora tal fato possa sugerir uma população grande de réplicas idênticas, Dawkins (1979 [1976]) sugere o erro como propriedade importante a ser considerada em qualquer processo de cópia, de forma que a partir de cópias errôneas, o caldo primitivo tenha enchido-se não de réplicas idênticas, mas de uma diversidade de moléculas replicadoras (descendentes de um mesmo ancestral). Neste caldo, aquelas de maior longevidade, mais estáveis em alguma medida, apresentavam a tendência de tornarem-se mais numerosas. Para Blackmore (2000), tudo se deu com base em um “procedimento austero e irracional”, no qual se criaturas vivas variam, e se, devido ao seu aumento geométrico em números, em algum momento acontece uma luta pela vida, então seria extraordinário que não houvesse alguma variação útil para o bem-estar de uma criatura.

Um indivíduo com essa característica útil tem melhor chance de ser preservado na luta pela vida e produz descendentes com a mesma característica. O processo encadeado de replicação,

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seleção e hereditariedade, descrito por Darwin em sua teoria da Seleção Natural (1859), tornou-se base fundamental para os estudos que vieram a ser desenvolvidos mais tarde no campo da memética.

Na visão de Blackmore, a teoria da Seleção Natural seria um sistema caótico, um “esquema para criar o design a partir do caos, sem o auxílio da mente” (DENNETT apud BLACKMORE, 2000, p. 12)9. Segundo a autora, o design encontrado na natureza, como desdobramento de processos evolutivos, aconteceria espontaneamente quando milhões de criaturas, ao longo de milhões de anos, estivessem a produzir descendentes capazes de sobreviver. E o próprio meio ambiente estaria em constante mudança por conta destes desenvolvimentos. Em termos biológicos, sistemas caóticos, muito sensíveis às condições que os originam, são suscetíveis a pequenas alterações que podem acarretar resultados diferentes, levando a processos evolutivos. Neste modo de ver, a evolução segue um “algoritmo simples” (IDEM, p. 12) sendo um sistema caótico, cujos desdobramentos podem ser incrivelmente complexos. E no surgimento da vida neste planeta, uma vez rodando este algoritmo, seria “resultado inevitável que o design fosse criado a partir do nada, não sendo possível a previsão do seu resultado” (BLACKMORE, p. 12). Embora a evolução possa sugerir uma ideia positiva em termos de progresso, especialmente por sermos nós humanos produtos dela, ela não é reconhecida como fruto de qualquer intenção, de forma que simplesmente tenha acontecido, sendo desejada ou não. No processo evolutivo genético, devido à competição entre as variadas formas de vida, as menos propensas a resistir acabam tornando-se menos numerosas, até o ponto de terem suas linhagens extintas. Após inúmeras transformações ao longo de sua evolução, os replicadores sobreviventes vieram a receber o nome de genes e nós, seres humanos, segundo Dawkins (1979 [1976]), acabamos nos tornando suas “máquinas de sobrevivência”.

1.2 Replicação cultural por processos de imitação

A transmissão cultural não é exclusiva da nossa espécie e, segundo Dawkins (1979 [1976]), ela é análoga à transmissão genética, à medida que dela se possa originar algum tipo de evolução. O canto de uma determinada espécie de pássaro, por exemplo, é passível de evoluir 9 Daniel Clement Dannett, filósofo americano, em A perigosa ideia de Darwin (1995), descreveu todo o processo evolutivo como um algoritmo (algoritmo evolutivo), que produziria resultados a partir de procedimentos irracionais.

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ao longo de sua existência, a partir de novas combinações ou mesmo de erros no processo de replicação entre os integrantes do grupo. Mas para o autor, seria a espécie humana aquela que realmente mostrou o que a evolução cultural pode ser capaz de fazer. Dawkins (1979 [1976]) se restringe a usar o conceito de gene apenas como analogia à replicação. Buscando algum princípio que também conferisse validade universal à biologia, e que caracterizasse a vida, onde quer que ela se encontre e qualquer que seja a base de sua química, chegou ao entendimento de que toda vida pode ser caracterizada por uma “sobrevivência diferencial de entidades replicadoras” (DAWKINS, p. 122), sendo o gene (molécula de DNA) a entidade replicadora mais comum em nosso planeta. Mas o gene não seria a única. Segundo Dawkins, um novo tipo de replicador surgiu recentemente neste planeta, o qual ainda em um estágio de infância, encontra-se vagueando em seu próprio caldo primordial, mas já conseguindo uma mudança evolutiva a uma velocidade ainda maior que a do gene: “o caldo da cultura humana”. E o termo meme, enquanto sua entidade replicadora, é proposto pelo autor para definir uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação – sendo ele mesmo ironicamente formado por uma replicação de sílabas: “Precisamos de um nome para o novo replicador, um substantivo que transmita a idéia de uma unidade de transmissão cultural, ou uma unidade de imitação. ‘Mimeme’ provém de uma raiz grega adequada, mas quero um monossílabo que soe um pouco como ‘gene’. Espero que meus amigos helenistas me perdoem se eu abreviar mimeme para meme. Se servir como consolo, pode-se, alternativamente, pensar que a palavra está relacionada à ‘memória’, ou à palavra francesa même.” (DAWKINS, 1979, p. 122-123)

Memes replicam-se por processos de imitação e, tal qual os genes, alguns são propensos a serem mais bem sucedidos que outros. Seu valor de sobrevivência é atrelado a qualidades associadas ao potencial de replicação. Uma unidade cultural é capaz de se manter ao longo do tempo e das gerações por formas variadas de registros, que estão além dos próprios indivíduos. Não sendo replicadores de alta fidelidade, em sua transmissão os memes estão sujeitos a mutações contínuas e misturas. Considerando que cada indivíduo tenha sua maneira particular de interpretar uma ideia, as diferenças nas maneiras como as pessoas a representam não devem ser consideradas parte fundamental do meme. O meme é a ideia em si. Os bolos de aniversário, com velas a serem sopradas, ou mesmo o “Parabéns pra você” cantado em torno do aniversariante, são memes que se espalharam, no ocidente, ao longo dos séculos, sem que possamos precisar a origem exata deste costume (Figura 3). Embora definidos como unidades culturais, alguns memes tendem a ser replicados juntos, através da união de ideias que se reforçam mutuamente, em “complexos coadaptados de memes”

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(DAWKINS, 1979). Memeplexos10, ou complexos de memes, são grupos de memes que se replicam juntos, em cadeias complexas de conceitos e comportamentos. A essência da ideia de um memeplexo é a de que memes se replicam melhor como parte de um grupo do que isoladamente. Religiões e sistemas políticos, por constituírem-se em grandes agrupamentos de informações, cujos dogmas (ou subconjuntos) são replicados de pessoa em pessoa, ao longo de muitas gerações, são exemplos de memeplexos.

Figura 3: O costume de celebrar aniversários com bolos e velas, em dois momentos diferentes na história: à esquerda, cartão postal alemão de 1920 (Paul Finkenrath, Berlin); à direita, comemoração cubana, em 2017.

Fontes: Wikipedia, 2017; Flavio Emanuel, 2017.

Segundo a memética, a vida humana é permeada e atravessada por memes e as suas consequências. Vocabulários, histórias, hábitos e habilidades adquiridas via outras pessoas, jogos, canções, regras, e qualquer informação aprendida através de processos de imitação, podem ser considerados memes, de forma que o entendimento de uma teoria da memética depende diretamente do entendimento da imitação. Para Blackmore (2000), os memes se espalham indiscriminadamente, sem a preocupação de terem ou não utilidade, neutralidade, vantagem ou prejuízo para nós humanos. Sendo uma ideia brilhante, um avanço científico ou tecnológico, uma canção chiclete, uma pirâmide de vendas, novas formas de fraude, falsas doutrinas, dietas mentirosas ou curas mágicas, “os memes não se importam. Eles são egoístas como os genes e seu único objetivo é o de espalharem-se” (BLACKMORE, p. 6-7). A metáfora do egoísmo aplicada à ideia de replicação cultural por Dawkins (1979 [1976]), e posteriormente reforçada por Blackmore (2000), propõe que para pensar memeticamente, não devemos ver nossas ideias como criações nossas, trabalhando para nós, mas como memes egoístas autônomos, trabalhando apenas para serem copiados. Nós humanos, por nosso poder de imitação, segundo esta teoria, seríamos seus hospedeiros ideais.

10 Hans-Cees Speel foi quem primeiro usou o termo “Memeplexo”, como abreviação da ideia de “complexo coadaptadado de memes”, proposta por Dawkins (SHIFMAN, 2014).

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Para melhor entendimento do caminho percorrido pelos estudos da memética, é todavia necessário compreender as metáforas biológicas que os sustentam. Seguindo os moldes da replicação genética, para que o meme possa ser considerado um replicador, ele também deve sustentar o “algoritmo evolutivo” (DENNETT apud BLACKMORE, 2000) que é baseado em variação, seleção e hereditariedade, conforme a teoria da Seleção Natural.

Analisando os memes a partir destas três características, encontramos a variação (erro) na própria transmissão de pessoa em pessoa, à medida que as informações ao serem repassadas (copiadas) ganham e perdem detalhes, como no exemplo dos bolos de aniversário, ou mesmo se pensarmos em conversas corriqueiras de bar, que dificilmente poderiam ser replicadas na íntegra. Já no fato de que alguns memes ganham mais atenção do que outros, sendo mais lembrados, copiados e compartilhados, enquanto outros são esquecidos, chegando a desaparecer, identificamos a característica da seleção. Em que momento da história humana, por exemplo, começamos a nos organizar em rodas? Se não podemos dizer com precisão quando este modelo de distribuição espacial de pessoas surgiu, somos testemunhas de que ele continua sendo replicado, como um meme de sucesso. Em contrapartida, outros modelos semelhantes, dos quais não lembramos ou fazemos mais uso, ficaram perdidos na história, fracassando como memes. E, finalmente, considerando que, mesmo havendo variações no processo de transmissão cultural, algo do original precisa ser mantido para configurar-se como imitação ou cópia, estaria na ideia principal que é retida, a hereditariedade da replicação. As roupas que vestimos nos mostram como o conceito de cobrir o corpo para nos protegermos do clima, ou para participar de celebrações, se manteve durante toda a humanidade, embora as variações em torno das nossas indumentárias sejam quase infinitas.

Ao observarmos os memes sob estes aspectos, os vemos corresponderem-se ao algoritmo evolutivo de Dennett, encaixando-se perfeitamente no conceito de replicação cultural. E se existem razões pelas quais alguns memes têm sucesso, em detrimento do fracasso de outros, do ponto de vista da memética, essas razões recaem tanto sobre a natureza dos seres humanos, quanto sobre a natureza dos próprios memes: os seres humanos, agindo concomitantemente como imitadores e selecionadores, seriam, ao mesmo tempo, máquinas replicadoras e o meio ambiente seletivo para os memes; já os memes influenciam sua própria hereditariedade a partir dos truques que exploram, das maneiras como se agrupam e dos seus processos de evolução memética (BLACKMORE, 2000). Dawkins aponta aquelas que considera as características definidoras do sucesso memético na replicação cultural como sendo a fecundidade, a longevidade e a fidelidade de cópia. E, na maneira como as definiu, é possível encontrar uma relação direta de complementaridade com as variantes da replicação evolutiva

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descritas anteriormente: a fecundidade, dizendo respeito ao número de cópias produzidas, como consequência, irá resultar em variação; a longevidade, tratando do quão longe no tempo uma cópia é capaz de chegar, não pode ser pensada dissociada da seleção; e a fidelidade de cópia, ao apontar para o quanto é mantido de uma ideia original ao longo do seu processo de replicação, acaba funcionando como uma escala de hereditariedade (Figura 4).

Figura 4: Comparativo entre os fatores de replicação genética (Darwin) e os fatores de replicação cultural (Dawkins).

Fonte: Gráfico produzido pela autora; ilustração de autor desconhecido.

Buscando uma diferenciação clara entre genes e memes, Blackmore (2000) propõe que pensemos da seguinte forma: a teoria evolucionista descreve como soluções de design podem surgir a partir da competição entre replicadores. Genes são um exemplo de replicador e memes são outro. A teoria geral da evolução deve se aplicar a ambos, mas os detalhes específicos de como cada replicador trabalha podem ser bastante diferentes. Genes são instruções para fabricação de proteínas, alojadas nas células do corpo (como moléculas de DNA) e transmitidas por reprodução. Sua competição conduz à evolução do mundo biológico.

Memes são instruções para a realização de comportamentos, alojadas no cérebro (ou em objetos como livros, imagens, construções urbanas) e transmitidas por imitação. Sua competição conduz à evolução da mente. Ambos os replicadores devem obedecer aos princípios gerais da teoria evolucionista e, neste sentido, são semelhantes. Mas para além deste fato, eles podem ser, e de fato são, muito diferentes – de maneira que, sob o olhar da memética, estão relacionados apenas por analogia (BLACKMORE, 2000).

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Ao nos apresentar, a nós humanos, como “máquinas de memes” (meme machines), Blackmore defende que muitos aspectos da natureza humana seriam melhor explicados pela teoria da memética do que por qualquer outra teoria disponível. Para ela, a teoria memética começaria com um único e simples mecanismo: a competição entre memes para entrar nos cérebros humanos e serem repassados novamente. A partir deste mecanismo, a “teoria [memética] poderia dar origem à explicação de diversos fenômenos, como a evolução do enorme cérebro humano, a origem da linguagem, nossa tendência a pensar e falar muito, o altruísmo humano, até a evolução da internet” (IDEM, p. 9). A autora defende que a mente humana se desenvolveu progressivamente de forma a dar conta da infinidade de unidades culturais (memes) que precisou guardar e replicar ao longo da sua evolução. Mas a visão puramente biológica, que exclui a participação humana em termos de intenção sobre o que é transmitido culturalmente, deve ser observada com atenção e voltarei a ela mais adiante, quando analisar a replicação memética sob o ponto de vista dos memes de internet.

1.3 Replicação cultural em ambientes digitais

Entre o final dos anos 1990 e início dos anos 2000, a popularização do computador, dos softwares e da internet criou tecnicamente um ambiente propício para a dissolução de hierarquias, democratizando o acesso à informação. E mais recentemente, democratizando a própria produção de informações, ampliando consideravelmente as interfaces para trocas culturais: “Para além de uma física da comunicação, a interconexão constitui a humanidade em um contínuo sem fronteiras, cava um meio informacional oceânico, mergulha os seres e as coisas no mesmo banho de comunicação interativa. A interconexão tece um universal por contato” (LÉVY, p. 127).

Os memes de internet, como hoje os conhecemos, ressignificaram o conceito de meme e tornaram-se representantes dos mais variados elementos da cultura popular em ambientes virtuais. As principais características atribuídas aos memes foram amplificadas pela internet: a propagação de pessoa em pessoa ganhou o potencial de atingir escalas massivas em curtos espaços de tempo; a replicação por processos de cópia e imitação passou a contar com a facilidade de uma enorme variedade de ferramentas de edição e customização; e a ideia de competição e seleção veio ao encontro de uma internet colaborativa, na qual as pessoas

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tornaram-se participantes ativas não só na produção, mas também na curadoria das informações que são mantidas e compartilhadas, através de wikis11, acervos em sites geradores de memes, blogs e postagens em mídias sociais. Enquanto fenômeno de replicação cultural, os memes de internet “moldam pensamentos, formas de comportamento e ações de grupos sociais” (SHIFMAN, p. 18).

Neste ecossistema constituído pelo ciberespaço, o compartilhamento de imagens com legendas sobrepostas tornou-se uma prática generalizada, em fóruns on-line, entre usuários de programas como o MS Paint e o Photoshop. Conhecidas como image macros12, estas composições tornaram-se um tipo de liguagem recorrente em sites como o Something Awful13 e o 4Chan14. Os memes de internet nasceram nestes sites de fóruns. Something Awful, criado em 1999, foi pioneiro nesta linguagem. A criação de imagens através do uso de softwares de edição era estimulada em atividades semanais que propunham modificação de imagens existentes para criação de paródias, compartilhadas entre os membros dos seus fóruns. Muitos memes de internet conhecidos surgiram ali, entre eles, o Happy cat, primeira instância de image macros de gatos felizes, e o Tourist guy, colagem do tipo exploitable15, na qual simulase um turista em visita ao World Trade Center, em Nova York, tirando uma foto com o suposto avião causador do atentado de 11 de Setembro vindo em sua direção (Figura 5).

Figura 5: Colagem do tipo exploitable que deu origem ao meme Tourist guy.

Fonte: Know Your Meme, 2017.

A legenda “I Can Has Cheezburger?”, utilizada no meme Happy cat (Figura 6), escrita com a fonte Impact, abriu caminho para que a fonte fosse utilizada na legendagem de 11

Tipo de enciclopédia on-line, colaborativa e gratuita, que utiliza a inteligência coletiva para produção de conhecimento no domínio público. Ver glossário, p. 152.

12 Imagem com legenda sobreposta, cuja mensagem costuma variar entre o bom-humor, a ironia e a crítica, usada em conversas para transmitir sentimentos e/ou reações. Ver glossário, p. 150.

13 Disponível em: <http://www.somethingawful.com/>. Acesso em 29/4/2017.

14 Disponível em: <http://www.4chan.org/>. Acesso em 29/4/2017.

15 Composição na qual uma imagem é manipulada, de forma a recontextualizar uma cena ou personagem central, através de colagem digital de tom cômico. Ver glossário, p. 148.

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outros memes protagonizados por gatos, os LOLcats (Laughing Out Loud cats), surgidos posteriormente em fóruns do site 4Chan, criado em 2003 por um também frequentador dos fóruns do Something Awful. O site 4Chan, um imageboard16 com painéis de discussão basicamente alimentados por imagens, tornou-se uma espécie de nascente memética, da qual surgiu uma infinidade de memes, entre eles Advice animals17, Rage comics18, Rickrolling19 e o próprio formato exploitable. Termos como “win” (ganhar), “epic” (épico) e “fail” (falha), onipresentes na cultura memética, foram criados ou popularizados em fóruns do 4Chan, assim como o formato image macro e a fonte Impact, utilizada na cor branca, com o contorno preto.

Figura 6: À esquerda, meme Happy cat; à direita, desdobramentos de memes inspirados no Happy cat.

Fonte: Know Your Meme, 2017.

E o que faz algo tornar-se um meme de internet? Em pesquisa focada em vídeos publicados no Youtube norte-americano, nos quais selecionou um grupo de 30 vídeos de grande popularidade e com alto volume de derivações, Shifman (2014) identificou características de potencial memético, que apareceram combinadas na maioria dos vídeos estudados. Conteúdos gerados por pessoas comuns tendem a gerar mais derivações meméticas que conteúdos produzidos profissionalmente. A simplicidade na construção do conteúdo, tanto do ponto de vista da ideia, quanto da estrutura visual, facilita a sua imitação por parte das pessoas, dentro de possibilidades de soluções caseiras, com recursos limitados e baixo nível de conhecimento de ferramentas de edição. A repetição, como recurso de linguagem, complementa a simplicidade, sendo encontrada tanto em conteúdos caseiros, quanto em 16

Tipo de fórum de internet, que opera principalmente através da postagem de imagens. Ver glossário, p. 150.

Image macros de animais e personagens, cujas mensagens são conselhos. Ver glossário, p. 147.

18 Séries de quadrinhos com personagens criados em softwares simples de desenho, como o MS Paint, que abordam o cotidiano de forma bem-humorada ou irônica. Ver glossário, p. 151.

19 Espécie de pegadinha na qual um link supostamente relevante dentro de um determinado assunto, quando clicado, redireciona a pessoa para o hit de 1987 de Rick Astley, "Never Gonna Give You Up". Ver glossário, p. 151.

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conteúdos profissionalmente produzidos, pois além de estimular a participação pela imitação, potencializa a memorização. O humor aparece como fator memético recorrente e se apresenta dividido entre conteúdos cujos protagonistas intencionalmente buscam uma abordagem engraçada, e aqueles sem a intenção de humor por parte de seus protagonistas (registros de cenas reais). A ludicidade, na intenção clara de humor, a incongruência no encontro inusitado de dois elementos e o prazer associado a ver alguém em situação de inferioridade são atributos que também apareceram associados às derivações cômicas. E as excentricidades – decorrentes de combinações de conteúdos de origem pessoal, aparentemente sem um tema concreto, adicionadas a elementos da cultura popular e/ou outros fatores meméticos como o humor, por exemplo – acabam ganhando vantagem em termos de replicação, uma vez que o espírito lúdico pode ser imitado e combinado com temas diversos de preferência pessoal (SHIFMAN, 2014). Em um único exemplo de viralização de conteúdo, que repercutiu em 2014 na internet brasileira, podemos encontrar quase todos estes componentes. Neste que aparenta ser um ambiente doméstico, a menina Geovanna sobe em uma mesa para dançar, enquanto é filmada pela prima Wanessa. Durante um dos passos, ela se apoia no forninho preso à parede, que não aguenta o seu peso e cai em cima dela (Figura 7).

Figura 7: Cenas do vídeo “Eta Giovanna o forninho caiu!!!!”.

Fonte: Youtube, 2014.

A cena de Geovanna segurando o forninho enquanto a prima vai em busca de ajuda viralizou, virou meme, e a menina passou a figurar como o personagem “Giovana do forninho” (Figura 8). Analisando o vídeo20 do ponto de vista do seu conteúdo, encontramos potenciais fatores meméticos como ter sido gerado por uma pessoa comum e ser uma solução caseira, feita com o recurso simples de uma câmera de celular. E o seu componente de humor decorre tanto da espontaneidade da cena inusitada (não-intencionalidade), quanto da situação de inferioridade em que se coloca a personagem, por consequência de um ato mal calculado.

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Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=UXuAM_qOc4s>. Acesso em 30/4/2017.

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Figura 8: Memes criados a partir de cenas do vídeo “Eta Giovanna o forninho caiu!!!!”.

Fonte: Google imagens, 2016.

Para entender a dinâmica de produção e transmissão de ideias contida no fenômeno dos memes de internet, devemos antes revisar o conceito de “unidade de replicação cultural” proposto por Dawkins (1979), entendendo que estamos diante, não de itens isolados como propõe o autor, mas de grupos de informações, com características comuns, cujos significados se constrõem a partir do olhar sobre seus conjuntos. Quando olhamos para um meme de internet, encontramos um grupo de “unidades difusas21” (SHIFMAN, 2014), que apresentam diversos aspectos passíveis de serem imitados pelas pessoas. No capítulo 4, tratarei mais detalhadamente da organização dos memes de internet em torno de coleções, mas tomo aqui inicialmente a definição de Shifman, para caracterizar os memes de internet como: “(a) um grupo de itens digitais com características comuns de conteúdo, forma e/ou abordagem, que (b) foram criados com a consciência de uns sobre os outros, e (c) foram distribuídos, imitados, e/ou transformados através da internet por muitos usuários.” 22 (SHIFMAN, p. 41-42)

No âmbito da transmissão cultural, uma outra questão observada por Dawkins (1979 [1976]) parece não operar do mesmo modo quando relacionada aos memes de internet: a longevidade. Apontada pelo autor como uma das três características definidoras do sucesso memético na replicação cultural, a longevidade não parece ser uma questão, ou mesmo um objetivo, em se tratando de memes de internet. Ao invés de pensarmos nos memes de internet como se estivessem em uma luta pela sobrevivência, proponho pensá-los como linguagem, a partir de uma função retórica associada ao engajamento popular em temas e eventos de maior ou menor propagação nas redes. A questão que pretendo ressaltar é o fato de que fenômenos meméticos na cultura digital muitas vezes têm o seu tempo de duração (e significado) 21

Tradução da autora. No original, “diffused units”.

Tradução da autora. No original: “(a) a group of digital items sharing common characteristics of content, form, and/or stance, wich (b) were created with awareness of each other, and (c) were circulated, imitated, and/or transformed via the internet by many users”.

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circunscrito ao do próprio evento que os originou, pois é comum que memes de internet sejam produzidos a partir de eventos de grande exposição midiática. O que me leva a não atrelar imediatamente a longevidade à ideia de sucesso memético, uma vez que ela se mostra bastante relativa enquanto medida de tempo diante da efemeridade também característica dos memes de internet. Proponho, portanto, entendê-la como uma possível consequência da combinação dos múltiplos fatores de potencial memético dentro do processo de replicação.

Enquanto alguns fenômenos meméticos têm um período de duração muito curto, como os memes gerados durante um evento como a Copa do Mundo de Futebol, por exemplo, outros parecem ser mais resistentes no tempo, demonstrando maior flexibilidade e potência de adaptação. É o caso de personagens meméticos ou de estruturas retóricas pré-definidas como os catchphrases23. Estes tipos de meme de internet, quando tornam-se reconhecidos por padrões de personalidade ou comportamento, ou por suas estruturas facilmente adaptáveis, são replicados pelas pessoas continuamente, correspondendo a uma infinidade de intenções de abordagem, funcionando como facilitadores discursivos. Ainda assim, quando estes personagens e textos meméticos apresentam um maior grau de longevidade, em termos de propagação ao longo do tempo, não necessariamente estarão tratando de um tema único, ou mesmo aproximado do seu original. Suas identidades são apropriadas para tomarem parte em conversas sobre os mais variados temas, podendo inclusive uma mesma imagem ou personagem, ser usado como base para ideias e posicionamentos completamente opostos. A unidade em torno de um tema central comum aos memes, neste caso, dá lugar à unidade em torno de um personagem, de uma imagem, ou de uma estrutura retórica, como acontece com a capa do primeiro LP de Chico Buarque, que, apropriada pela cultura digital, transformou-se em um meme bastante popular. Sua composição imagética, que sugere um dual pane24, apresenta dois closes do rosto do compositor, dispostos lado a lado. Em um ele está sorrindo, no outro está sério. O meme “Chico Buarque feliz triste” apóia-se na ideia de que algo positivo, subitamente torna-se negativo, e vice-versa. A imagem também funciona espelhada, o que aumenta as possibilidades de releituras. E sua estrutura, tanto a visual, quanto a discursiva, é de fácil compreensão, ou seja, todos os ingredientes para um meme de sucesso (Figura 9).

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Meme cuja estrutura narrativa (textual ou imagética) pressupõe uma ideia a ser substituída ou completada. Ver glossário, p. 147.

24 Estrutura narrativa composta por sequência de 2 quadros. Ver glossário, p. 147.

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Figura 9: Memes com o personagem “Chico Buarque triste feliz”.

Fonte: Google imagens, 2016.

Para entendermos os movimentos e mutações culturais, possibilitados por novas tecnologias da informação, conforme aponta Lévy (1999), é preciso antes compreender a primeira grande transformação social neste sentido: a passagem da cultura oral à cultura escrita. Nas sociedades orais, as mensagens eram recebidas no mesmo tempo e lugar onde eram emitidas, de forma que emissores e receptores pudessem compartilhar uma situação e, possivelmente, um universo semelhante de significação. Com a escrita, os textos separaram-se dos contextos em que foram produzidos, criando um espaço comunicacional, no qual tornouse possível tomar conhecimento das mensagens produzidas por outras pessoas, milhares de quilômetros distantes, ou mesmo mortas há séculos, ou produzidas em culturas e sociedades diferentes. Diante das possibilidades reais de geração de ruídos de recepção ou de interpretação, no que tange à recepção, foram desenvolvidas práticas de interpretação, de tradução, e tecnologias linguísticas como gramáticas e dicionários. Em relação à emissão, mensagens passaram a ser concebidas de forma a poder circular em toda parte, independentemente das suas condições de produção, contendo em si mesmas, chaves para sua interpretação. Segundo Lévy (1999), este esforço prático corresponde à ideia do universal: “Esta universalidade, adquirida graças à escrita, só pode ser construída, portanto, à custa de uma certa redução ou fixação do sentido: é um universal ‘totalizante’. A hipótese que levanto é que a cibercultura leva a co-presença das mensagens de volta a seu contexto como ocorria nas sociedades orais, mas em outra escala, em uma órbita completamente diferente. A nova universalidade não depende mais da auto-suficiência dos textos, de uma fixação e de uma independência das significações. Ela se constrói e se estende por meio da interconexão das mensagens em si, por meio de uma vinculação permanente com as comunidades virtuais em criação, que lhes dão sentidos variados em uma renovação permanente” (LÉVY, p. 15).

Se podemos, a partir do encurtamento das noções de tempo e espaço possibilitado pelas conexões digitais em rede, pensar em um retorno a moldes de emissão e recepção de mensagens semelhantes aos da oralidade, não podemos ignorar que este retorno, por sua vez,

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engloba também a escrita. Pensando a partir dos memes de internet, o compartilhamento de contextos em tempo real e a construção colaborativa de significados, vêm também carregados dos modos de uma escrita, embora não necessariamente universalizante. Nos memes de internet, escrita e oralidade podem confundir-se ao ponto de parecerem acontecer quase simultaneamente, se pensarmos no contexto vivo de produção e propagação das redes. Há uma espécie de sensação retórica de acompanhamento de eventos no momento em que estão acontecendo, de forma que, em alguns casos, o evento seja a sua própria narração. Veremos um exemplo desta dinânica no capítulo 5, no qual estudo o caso do #ShowDosAtrasados2015.

Assim como a imprensa, no século XIV, e a fotografia, no século XIX, revolucionaram o desenvolvimento da sociedade e da cultura modernas, nas palavras de Manovich (2001), estamos hoje no meio de uma nova revolução midiática, de substituição de tudo relativo à nossa cultura por formas de produção, distribuição e comunicação mediadas por computador: “Esta nova revolução é, sem dúvida, mais profunda do que as anteriores e estamos apenas começando a sentir seus efeitos iniciais. De fato, a introdução da imprensa afetou apenas um estágio da comunicação cultural – a distribuição de mídia. No caso da fotografia, sua introdução afetou apenas um tipo de comunicação cultural – imagens estáticas. Em contraste, a revolução da mídia computacional afeta todos os estágios de comunicação, incluindo aquisição, manipulação, armazenamento e distribuição; ela também afeta todos os tipos de mídia – textos, imagens estáticas, imagens em movimento, sons e construções espaciais” (MANOVICH, p. 43).

2. PROCESSOS DE CONSTRUÇÃO COLETIVA

Ao longo do século XIX, as pessoas passaram a conviver com espaços urbanos cada vez mais fragmentados e desconhecidos, atravessados por tecnologias como o trem e o telégrafo, pela dinâmica da produção industrial e pelos fluxos de informação tipográfica e visual. Desta forma, a percepção dos indivíduos enquanto “observadores”, como aponta Crary (2012 [1990]), foi alterada, principalmente em sua relação com o tempo. A modernização trouxe consigo uma ininterrupta e constante criação de novas necessidades, novos modos de produção e consumo, em processos que interferiram diretamente no cotidiano das relações sociais e dos quais as pessoas tornaram-se indissociáveis: “Novos modos de circulação, comunicação, produção, consumo e racionalização exigiram e deram forma a um novo tipo de consumidor-observador” (CRARY, p. 23). A identidade discursiva deste observador é

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influenciada por novas dinâmicas que englobam práticas sociais e domínios do saber (corpos, signos, imagens, linguagens, relações de parentesco, práticas religiosas e nacionalidades), além de mercadorias, riquezas e da força de trabalho. Se, de um lado, a modernidade mostrouse indissociável de uma reconstrução do observador, para o autor, do outro lado, ela mostrouse inseparável também de uma proliferação de signos e objetos circulantes cujos efeitos coincidiram com a sua visualidade.

Na passagem do século XX para o século XXI, o surgimento da internet novamente alterou a percepção humana sobre o tempo e o espaço, com a virtualização da economia e das relações sociais, através da digitalização dos seus processos. A emergência do ciberespaço propiciou relacões pessoais independentes de lugares geográficos ou da concomitância do tempo, através dos constantes desenvolvimentos de ferramentas de telecomunicação e telepresença. Neste espaço, desenvolveu-se uma cultura particular, cuja aspiração é pela construção de laços sociais independentes de territórios, relações institucionais ou de poder, sustentados no compartilhamento de saberes, na aprendizagem cooperativa, em processos abertos de colaboração. No ecossistema de ideias da internet, inteligências individuais somadas e compartilhadas, assim como memórias, imaginações e percepções, potencializaram as trocas de conhecimento e a aprendizagem coletiva. Para Lévy (1999), “O ciberespaço, dispositivo de comunicação interativo e comunitário, apresenta-se justamente como um dos instrumentos privilegiados da inteligência coletiva” (LÉVY, p. 29). No contexto da cibercultura, a figura do consumidor-observador, identificada por Crary (2012 [1990]), ganha acesso a ferramentas que lhe permitem ser também consumidor-produtor-propagador de informações e ideias.

Alterando a lógica comunicacional da transmissão um-para-todos, característica dos grandes veículos da mídia de massa como o rádio e a televisão, o espaço livre e colaborativo da internet – com suas ferramentas de criação e edição de textos e imagens, acessíveis e populares – permitiu às pessoas produzirem e propagarem conteúdos para as suas redes, chegando a alcançar volumes de audiência tão grandes quanto os alcançados pelos veículos de massa. Passamos a um modelo de comunicação todos-todos, no qual a participação ativa das pessoas sobre a circulação e o consumo de conteúdos e produtos impactou estruturas sociais.

Poderes estabelecidos (políticos, econômicos e sociais) e a própria produção industrial, precisaram buscar formas de convívio e adequação a um consumidor atento, informado e capaz de mobilizar-se em potentes grupos de influência. A um consumidor-produtor de informação, de conteúdos e de peças de mídia (originais ou apropriadas dos conteúdos e produtos da mídia de massa), que ora surge na figura de colaborador, ora na de concorrente.

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E, por sua vez, a um consumidor-produtor-propagador, que reverbera conteúdos (originais ou de terceiros) para suas redes, contribuindo com fluxos que irão definir, no tempo, o que terá visibilidade e o que será mantido em circulação. Nesta dinâmica, que condiciona a circulação dos conteúdos nas redes, os memes de internet aparecem como materialização da participação ativa deste indivíduo consumidor-produtor-propagador. Por mais simplicidade, e muitas vezes simploriedade, que sua estrutura possa apresentar, em um meme é possível identificar rastros do consumo prévio de informações e produtos de mídia, da intenção de produção de novas ideias e conteúdos, bem como a escolha de determinados aspectos e abordagens a serem ressaltados. E, na duração e intensidade dos seus compartilhamentos, podemos vislumbrar o potencial de circulação e fixação de determinadas ideias e conteúdos na memória cultural.

O uso das imagens como forma de registro e representação de momentos da vida em sociedade sempre fez parte da cultura humana, mas o que podemos constatar, neste início de século, é o aumento substancial do volume de imagens produzidas e circuladas pelas pessoas, extrapolando as fronteiras da produção audiovisual profissional. Em meio a estas imagens, os memes de internet vêm configurando-se como característicos dos diálogos em mídias sociais.

Com abordagem recheada de humor, ironia e crítica, sua base criativa se constrói, principalmente, a partir do excesso de imagens mídiaticas a que estamos expostos diariamente. E no universo dos memes de internet, estas referências são constantes e aparecem sob a forma de remixagens, em um conjunto de práticas sociais e comunicacionais de combinações e colagens de informação, a partir das tecnologias digitais.

2.1 Consumidores como produtores e propagadores

Na cultura participativa da internet, ou Web 2.025, novos tipos de empresas de mídia passaram a utilizar redes sociais e conteúdos gerados ou moderados pelas pessoas, criando novos valores atrelados ao consumo de conteúdos, através do suporte à cultura participativa e da exploração da “inteligência coletiva” (Lévy, 1998). Segundo Jenkins (2009) – que esteve à frente do programa de Estudos de Mídia Comparada do Massachusetts Institute of Technology (MIT) durante a década de 2000 – num mundo de convergência das mídias, a circulação de conteúdos depende diretamente da participação ativa das pessoas que, enquanto

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Termo criado por Tim O’Reilly, em 2004.

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consumidoras, são incentivadas a procurar informações e a fazer conexões em meio a conteúdos dispersos por múltiplas plataformas de mídia. Para o autor, a convergência não é resultado das novas tecnologias simplesmente, por mais sofisticadas que possam ser. A convergência é um fenômeno que acontece dentro dos cérebros de indivíduos consumidores, em suas interações sociais com outros indivíduos, de forma que cada um vai construindo um repertório próprio a partir de fragmentos de informação extraídos da cultura midiática, combinados aos eventos da sua vida cotidiana. “Por haver mais informações sobre determinado assunto do que alguém possa guardar na cabeça, há um incentivo extra para que conversemos entre nós sobre a mídia que consumimos” (JENKINS, p. 30).

A internet, enquanto técnica produzida dentro de uma cultura, cria possibilidades para esta cultura, de forma que “algumas opções culturais ou sociais não poderiam ser pensadas a sério sem sua presença.” (LÉVY, p. 25). As tecnologias de comunicação, em constante desenvolvimento, não determinam a cultura ou as relações sociais, mas as condicionam. A internet permitiu o surgimento de conteúdos produzidos por indivíduos dentro das suas limitações, técnicas e geográficas, e a sua disseminação em larga escala pelo globo, dando visibilidade a muitos pequenos públicos consumidores, segmentados e agrupados por interesses comuns, em uma realidade virtual e paralela à dos grandes veículos de massa. As pessoas não somente passaram a criar conteúdos e produtos concorrentes, mas também a influenciar diretamente na circulação e no consumo de todo tipo de mercadoria disponível. De check-ins em cinemas e restaurantes, passando por rankings de melhores e piores, postagens de recomendação ou crítica, sugestões de melhorias e de novos produtos, até criações e adaptações de roteiros, personagens ou utilidades para produtos, o poder de influência dos indivíduos migrou dos pequenos círculos para as grandes massas, potencializado pelo acesso às mídias sociais. Nelas esse poder de influência, transmitido de pessoa em pessoa, pode desdobrar-se em mobilizações tão expressivas, ao ponto de desviarem ou mudarem completamente rumos tomados por marcas e instituições.

A ampla circulação de informação somada ao potencial de engajamento das redes, criou um cenário propício às mais diversas manifestações, com todas as suas possibilidades e objetivos. Causas políticas e sociais, consumo de modismos, culto a celebridades: os interesses em torno de grandes mobilizações nas redes podem ser muitos e variados. Nesta economia, em que a disputa é pela atenção, receitas e técnicas para ganho de audiência, como as utilizadas por grandes veículos de mídia, podem a qualquer momento ser furadas pela imprevisibilidade de conteúdos amadores, às vezes de baixíssimo orçamento, que tornam-se enormes sucessos populares. Por volta de 2010, o adolescente de Palmeira do Piauí (PI),

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Whindersson Nunes Batista, de 15 anos, começou a fazer vídeos para o seu canal no Youtube.

Dois anos depois, a paródia em estilo de clipe musical “Alô vó, tô reprovado” (Figura 10) viralizou nas redes e alcançou 5 milhões de visualizações. Em 2013, o canal sofreu um ataque hacker, foi excluído e precisou ser recriado. Desde dezembro de 2016, “whinderssonnunes” tornou-se o canal brasileiro com mais seguidores no Youtube, passando de 18 milhões. Por enquanto, o youtuber26 é o mais influente do Brasil e o segundo mais influente no mundo, segundo pesquisa realizada pela Snack Intelligence27. Seu conteúdo inclui paródias, vlogs28, músicas autorais e críticas de filmes, em edições simples, cenários e figurinos caseiros. Tudo começou com um quarto bagunçado, que servia de fundo para o jovem, quase sempre sem camisa, falar de forma bem humorada sobre assuntos do seu dia-a-dia e da sua infância. Ao todo, seus cerca de 270 vídeos publicados já foram assistidos mais de 1 bilhão de vezes.

Figura 10: Vídeo “Alô vó, tô reprovado”, no canal de Whindersson Nunes no Youtube, com mais de 8 milhões de visualizações.

Fonte: Youtube, 2017.

O canal de Whindersson e outros canais independentes dividem a atenção das redes com grandes veículos de mídia, e alternam-se como líderes de influência em rankings cada vez mais presentes nas mesas das equipes de marketing das empresas, atentas e preocupadas em manter clientes e audiência. Hoje, a audiência média de um canal como a TV Globo é de 6,6 milhões de espectadores – alcançando picos de audiência em torno dos 14 milhões de 26 27 28

Personalidade que alcança notoriedade através de vídeos autorais divulgados no YouTube. Ver glossário, p. 152.

Fonte: Blue Bus, 2017.

Tipo de blog pessoal, cujo conteúdo principal é composto por vídeos. Ver glossário, p. 152.

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espectadores, em alguns episódios de novelas29. Sua página no Facebook tem 13,6 milhões de seguidores e seu canal do Youtube cerca de 660 mil seguidores. Quando comparamos os números de visualizações dos vídeos mais populares da Rede Globo, em seu canal no Youtube (Figura 11), e os de um jovem youtuber como Whindersson (Figura 12), considerando-se os investimentos em equipe e infraestrutura para produção dos conteúdos, entendemos o impacto da presença de consumidores-produtores-propagadores no cenário midiático, e como, diante disso, as empresas precisaram repensar suas estratégias para dialogar e dividir espaço com seus próprios consumidores.

Figura 11: Número de visualizações dos vídeos mais populares, no canal da Rede Globo, no Youtube.

Fonte: Youtube, 2017.

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Ibope/MW Planview/PNT Completo – Março de 2016 a Fevereiro de 2017.

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Figura 12: Número de visualizações dos vídeos mais populares, no canal “whinderssonnunes”, no Youtube.

Fonte: Youtube, 2017.

A inteligência coletiva propiciada pela Web 2.0 estimulou a inclusão, a participação em massa, o compartilhamento de experiências e a definição de papéis válidos e reconhecidos para todos, condicionando a participação nas redes ao conhecimento prévio de repertórios comuns aos seus participantes, tanto em relação aos conteúdos compartilhados, quanto às práticas de compartilhamento. Através da apropriação de produtos da mídia de massa ou do registro de situações comuns e cotidianas, conteúdos são editados e remixados com o objetivo de expressar opiniões, sentimentos e reações pessoais durante conversas, individuais e/ou coletivas, sobre os mais variados temas que possam estar em pauta. Os memes de internet, enquanto parte desses conteúdos, consequentemente, acabam dando visibilidade a determinados aspectos e acontecimentos cotidianos da vida em sociedade, podendo torná-los relevantes ao ponto de virarem pauta para a própria mídia de massa, em um fluxo constante de troca de referências e informações, que se retroalimentam. Como discurso público, memes têm um papel importante na construção de identidades de grupo e na definição de fronteiras sociais. Embora a produção de tais peças venha tornando-se facilitada pelo surgimento de

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ferramentas e templates acessíveis, sua criação e entendimento requerem uma espécie de alfabetização memética. Sob este aspecto, os memes de internet apresentam-se como instrumento mediador, um novo gênero midiático (LANKSHEAR e KNOBEL, 2007), já que o tipo de recurso comunicativo que empregam pode ser reconhecido, não apenas por suas características de estrutura ou estilo, mas também pela maneira com que abordam temas e contextos, através de múltiplos compartilhamentos. O entendimento das mensagens contidas nos memes requer diferentes níveis de conhecimento: enquanto alguns memes podem ser criados e entendidos com facilidade, por pertencerem a repertórios bastante populares, outros exigem conhecimento mais aprofundado da subcultura memética digital. Shifman (2014) identificou gêneros de memes de internet a partir da origem das imagens utilizadas em sua criação. Ela aponta a documentação de momentos da vida real, a manipulação explícita de conteúdos da mídia de massa e o universo de conteúdos digitais e orientados a memes como as três principais fontes de insumos para a produção memética americana a partir dos anos 2000. Associando a cultura participativa à facilidade de acesso a câmeras digitais e ferramentas de edição de imagens, acredito ser consequência que o registro de situações reais e corriqueiras tenha se amplificado nas mídias digitais, o que também pode ser verificado nos conteúdos meméticos que circulam pela internet brasileira. Soma-se a isto o fato de na dinâmica de produção e compartilhamento de memes, ser parte do processo memético a constante renovação de personagens e/ou estruturas narrativas, que irão converter-se em repertório comum, servindo de insumo para conversas em rede. É o caso da briga entre duas amigas, que, em novembro de 2015, por ciúmes de um namorado, rolaram aos tapas pelo chão, em frente à escola, enquanto um colega de classe filmava tudo com o celular (Figura 13). A cena, protagonizada por Lara e Jéssica, ambas alunas do ensino fundamental de uma pequena cidade da Zona da Mata mineira, viralizou nas mídias digitais, de forma que a pergunta de Lara ao final da filmagem — “Já acabou, Jéssica?” — virou bordão, ocupou as timelines e tornou-se parte do repertório memético nacional. Seguindo um fluxo característico de fenômenos meméticos, a imagem amadora disponibilizada na rede logo foi apropriada e começou a aparecer sob variadas abordagens e formatos, remixada ao Figura 13: Cenas do vídeo “Já acabou, Jéssica?”.

Fonte: Youtube, 2015.

repertório midiático de quem as produzia.

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Usada em postagens, comentários e outros tipos de conversas em rede, nos mais variados contextos (Figura 14), não apenas a imagem de Lara foi apropriada, mas também a camisa do estado do Pará, que usava no dia, ou simplesmente a pergunta que fez à colega Jéssica ao final da briga. A personsagem que não se dá por vencida, que pergunta “Já acabou?”, em postura de quem está pronta para a briga, nascia ali.

Figura 14: Memes criados a partir do vídeo “Já acabou, Jéssica?”. À esquerda, remix com cartaz do filme “Kill Bill”; No meio, acima, colagem tipo exploitable sobre imagem de briga de gatos; No meio, abaixo, remix com o programa televisivo Globo Repórter; À direita, remix com cartaz do filme “Jogos Vorazes”.

Fonte: Google imagens, 2016.

Uma vez que a circulação de conteúdos nas redes tenha passado a depender diretamente da participação ativa das pessoas – que, enquanto consumidoras-produtoraspropagadoras, geram valor para esses conteúdos engajando-se com os mesmos e compartilhando-os em suas redes digitais –, me parece consequência natural que o protagonismo de pessoas comuns, em situações corriqueiras, tenha seu lugar garantido no cenário colaborativo de uma Web 2.0, tanto como estímulo a novas produções, quanto em termos de empatia. As pessoas identificam-se com conteúdos desta natureza e sentem-se impelidas a contribuir com os seus próprios, por meio de conexões com tudo o que vier a fazer parte dos seus repertórios pessoais e cotidianos.

“A obra virtual é ‘aberta’ por construção. Cada atualização nos revela um novo aspecto. Ainda mais, alguns dispositivos não se contentam em declinar uma combinatória, mas suscitam, ao longo das interações, a emergência de formas absolutamente imprevisíveis. Assim, o evento da criação não se encontra mais limitado ao momento da concepção ou da realização da obra: o dispositivo virtual propõe uma máquina de fazer surgir eventos” (LÉVY, p. 136).

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2.1.1. Ferramentas geradoras de memes de internet

Seguindo o modo peculiar de criação e compartilhamento de imagens, desenvolvido em fóruns e imageboards como o Something Awful (1999) e o 4Chan (2003), e posteriormente Reddit (2005), Tumblr (2007), 9Gag (2008), Imgur (2009) e outros, o estilo image macro foi sendo adotado na criação de memes. O uso de GIFs animados30 e imagens intercalados aos diálogos, da forma como acontece atualmente em ferramentas como o Facebook Messenger ou o WhatsApp, tem sua raiz nestes ambientes. A composição image macro, que estabeleciase e começava a ser reconhecida nos fóruns on-line, foi seguida por ferramentas geradoras de memes, à medida que surgiam na internet: Cheezburger31 (2007), Meme Generator32 (2009), Ragemaker33 (2009-2010), Quick Meme34 (2011), Imgur35 (2013) e Giphy36 (2013).

Figura 15: Interface geradora de memes do site Meme Generator.

Fonte: Meme Generator, 2017.

30 Tipo particular de GIF (Graphics Interchange Format) composto de várias imagens exibidas em sequência, compactadas em um só arquivo de imagem. Ver glossário, p. 149.

31 Disponível em: <http://www.cheezburger.com/>. Acesso em 16/4/2017.

32 Disponível em: <https://memegenerator.net/>. Acesso em 16/4/2017.

33 Disponível em: <http://ragemaker.net/>. Acesso em 16/4/2017.

34 Disponível em: <http://www.quickmeme.com/>. Acesso em 16/4/2017.

35 Disponível em: <http://imgur.com/>. Acesso em 16/4/2017. O Imgur surgiu em 2009, como um imageboard, e sua ferramenta geradora de memes foi lançada em 2013.

36 Disponível em: <http://giphy.com/>. Acesso em 16/4/2017.

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A primeira ferramenta geradora de memes a oferecer image macros com a fonte Impact, foi o site Meme Generator37 (Figura 15), materializando a composição visual que passou a ser o template padrão oferecido pela grande maioria dos sites customizadores de memes (Figura 16). Neles, basicamente, a pessoa pode escolher a imagem para o seu meme – seja a partir do banco de imagens do site ou subindo uma imagem própria – e contar com dois campos de texto para a composição: um no topo e outro na base. Conforme a extensão do texto, menor fica o tamanho da fonte. Alguns geradores permitem mais de dois campos de texto, ou a livre localização dos mesmos sobre a imagem, ou ainda a escolha de fontes e cores diferentes, mas em sua maioria, os geradores funcionam com estrutura fixa e uma fonte padrão (Impact branca, com contorno preto).

Figura 16: Interface geradora de memes do site Quick meme.

Fonte: Quick Meme, 2017.

Sites geradores de memes começaram como iniciativas de membros de fóruns on-line e imageboards, com o intuito de manter a produção de imagens que os alimentavam, mas acabaram contribuindo para a disseminação do memes de internet enquanto dispositivos dialógicos em conversas on-line, extrapolando fronteiras. Migrando para e-mails, chats, aplicativos de troca de mensagens e para as redes sociais, memes passaram a refletir reações e opiniões públicas sobre os mais variados temas e acontecimentos. Seus geradores não apenas consolidaram uma estética, mas um padrão de comportamento em relação à participação das

37

Fonte: KnowYourMeme, 2017.

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pessoas nas redes. Eles condicionaram o olhar sobre as informações disponíveis, imagéticas e textuais, como passíveis de serem ressignificadas e compartilhadas sob a forma de colagens simples e efêmeras, para serem consumidas em localizações específicas de tempo e contexto.

Projetados para utilização fácil e rápida, com interfaces objetivas e recursos limitados, os geradores de meme foram rapidamente popularizados. Seguindo a dinâmica colaborativa do ciberespaço, ao mesmo tempo em que consolidam a linguagem, são constantemente alimentados por contribuições individuais, formando grandes bancos de imagens circulantes nas redes. Aquelas que se sobressaem, seja pela visibilidade ganha em fenômenos virais, ou pela seleção espontânea dos seus usuários no dia-a-dia, acabam entrando para o hall da fama memético, ganhando páginas próprias e menções em acervos de referência, como o Know Your Meme38 ou a própria Wikipedia39. A circulação de um conteúdo nas redes, em termos de alcance, pode significar um número muito grande de pessoas sendo por ele impactadas. Se a mensagem cria identificação nas pessoas, tem linguagem simples e é fácil de ser copiada, ela se torna um convite à apropriação. Foi o que aconteceu com o vídeo “Já acabou, Jéssica?”.

Após sua enorme circulação através de compartilhamentos nas redes, no dia seguinte ao da briga, a cena principal do vídeo figurava entre as imagens mais populares do site Meme Generator, garantindo o seu espaço na galeria de personagens meméticos (Figura 17).

Figura 17: Página de customização do meme “Já acabou, Jéssica?” no site Meme Generator.

Fonte: Meme Generator, 2017.

38

Enciclopédia virtual colaborativa, que cataloga memes de internet para conhecimento geral de usuários da internet. Disponível em: <http://knowyourmeme.com/>. Acesso em 16/4/2017.

39 Enciclopédia virtual colaborativa, que utiliza a inteligência coletiva para produção de conhecimento no domínio público. Disponível em: <https://www.wikipedia.org/>. Acesso em 2/5/2017.

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Como os próprios membros do site Know Your Meme fazem questão de ressaltar (Figura 18), não é uma forma específica ou a fonte Impact que fazem de uma imagem com legenda sobreposta, um meme. Brideau e Berret (2014) apontam que o fato de fazer parte do pacote de 11 fontes oferecidas pelo sistema operacional Windows, no início dos anos 90, colocou a Impact em praticamente todos os computadores pessoais do mundo, justo quando a internet chegou até eles. Os autores sugerem que a Impact entrou na programação dos scripts Figura 18: Metameme com o personagem Grumpy Cat, ironizando o uso da Impact.

Fonte: Know Your Meme, 2017.

geradores de memes, “talvez porque o programador estivesse procurando uma estética de caixa alta ou divertida, mas certamente porque a Impact era

praticamente garantida de estar na lista de fontes da maioria dos computadores40” (BRIDEAU; BERRET, p. 308). Considerando que as 11 fontes eram Andale Mono, Arial, Arial Black, Comic Sans MS, Courier New, Georgia, Impact, Times New Roman, Trebuchet MS, Verdana, e !"#$%&'((ou Webdings), a Impact, juntamente com a Arial Black, pelo seu peso, acabavam chamando mais atenção, mas o aproveitamento de espaço da Impact (mais condensada) e a regularidade de seu kerning podem ter sido vantagens competitivas decisivas em relação à Arial Black (Figura 19). E, em se tratando de uma programação que precisava prever as inúmeras possibilidades de imagens a serem utilizadas como fundo para o meme, a escolha da fonte na cor branca, com contorno preto, foi um reforço à garantia de leitura das legendas.

Arial Black Impact

GANHO DE ESPAÇO PARA A LEGENDA GANHO DE ESPAÇO PARA A LEGENDA

Figura 19: Comparação do aproveitamento de espaço entre Arial Black e Impact.

Fonte: Produzida pela autora, 2017.

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Tradução da autora. No original: “Impact became the meme font when it was programmed into meme-generating scripts, perhaps because the programmer was looking for an aesthetic that would be loud or playful, but certainly because Impact was practically guaranteed to be in the font list of most computers”.

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Como veremos no capítulo 4, à respeito da formação de identidades meméticas, memes de internet configuram-se sob características e dinâmicas específicas, recorrendo a múltiplos possíveis formatos, sempre passíveis de novas formulações. No movimento de popularização do acesso a ferramentas de edição de texto e imagem, sites geradores de memes constituem-se em facilitadores de extrema relevância para o empoderamento da figura do consumidor-produtor-propagador de conteúdos. Mas em se tratando de um fenômeno relativamente recente e sujeito à urgência das interações sociais em tempo real, devemos considerar que toda e qualquer ferramenta que permita juntar imagem e texto torna-se valiosa e pode ser utilizada para criação de memes de internet. A própria funcionalidade de captura de telas (printscreen), presente em computadores, tablets e smartphones, torna-se também recurso, ao passo que permite transformar em imagem conteúdos editados em todo e qualquer software disponível nestes aparelhos. No conjunto de peças de mídia que formam um meme, podemos identificar esses variados processos de produção.

Tomemos como exemplo o meme de classificados, cuja circulação é mais comum em mensagens do aplicativo WhatsApp. A ideia central é anunciar uma falsificação de algo como se fosse um original. A imagem costuma ser uma fotografia de situação real em que um animal, ou objeto, aparece fantasiado, maquiado ou acrescido de algum acessório que configure aparentemente o item anunciado. Mas a falsificação é evidente e faz parte do meme. No texto do anúncio, que segue junto à imagem, mas não sobre ela, além dos dados da venda há sempre um alerta

às

pessoas

potencialmente

dispostas

a

desmascarar a farsa: “Não estrague o negócio dos Figura 20: Meme de classificados, recebido pelo WhatsApp. Fonte: Acervo da autora, 2016.

outros”. A composição usual deste meme resulta dos próprios recursos oferecidos pelo aplicativo (Figura 20), mas as soluções encontradas pelas pessoas para participar da brincadeira evidenciam a diversidade de recursos que acabam sendo utilizados (Figura 21).

50

Figura 21: Memes de classificados, em suas variadas formas de produção.

Fonte: Acervo da autora, 2016.

Para vender o filhote de Batman, a pessoa usou o campo de legenda, disponível junto ao upload de imagem, no próprio WhatsApp; para vender o filhote de dinossauro, a pessoa usou a ferramenta de vendas on-line do Facebook; para o filhote de Pokemon e o Minion, composições feitas em programa de edição de texto e imagem, podendo ser Word, Photoshop, Corel, Illustrator ou similar; já para o filhote de Tartaruga Ninja, colagem derivada dos recursos descritos anteriormente. É recorrente neste tipo de meme, que as pessoas façam capturas de tela de conversas no WhatsApp, para compartilhar todo o anúncio como uma imagem única. Comentários são ainda acrescentados a estas capturas, como no caso do filhote de Elba Ramalho, em que a mensagem de alerta é repetida abaixo da imagem.

Em questionário on-line realizado durante esta pesquisa, respondido por 562 pessoas, apenas 25 delas (4%) disseram não compartilhar imagens em mídias sociais. Entre as restantes, perguntadas sobre a origem das imagens que compartilham, mais da metade (58%) disse buscar as imagens na internet de acordo com a sua intenção de fala. E em sua grande

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maioria, seguem a lógica de propagação das mídias sociais: compartilham conteúdos que aparecem em suas timelines (77%) ou que recebem nas trocas de mensagens com amigos (70%). Entre as pessoas que compartilham imagens, apenas 26% disseram criá-las. O computador aparece entre os principais recursos para produção de memes (61%), mas ao somarmos aplicativos mobile para montagem de fotos (38%) e aplicativos mobile geradores de memes (26%), o celular acaba superando o computador enquanto ferramenta para criação de memes, aparecendo em 64% das respostas.

Na questão em que apresento seleção de vinte e seis imagens, com o objetivo de testar o reconhecimento de memes de internet, das oito imagens consideradas memes por mais da metade dos respondentes, todas de fato são memes, e são protagonizadas por pessoas ou por personagens. Entre as oito, apenas uma, a quarta mais selecionada (Figura 22), apresentou o formato image macro, com legendas superior e inferior em fonte branca com contorno preto, característico dos templates oferecidos por geradores de memes. Ainda assim, a fonte não é a Impact. Este resultado reforça a ideia de que,

embora

geradores

de

memes

constituam-se em facilitadores, diante da enorme

variedade

de

ferramentas

disponíveis, as pessoas recorrem àquelas que mais lhes sejam confortáveis ou acessíveis. Mas se há um entendimento conceitual da ideia de meme de internet, em detrimento de uma simples associação Figura 22: Meme reconhecido por 66% dos respondentes.

Fonte: Google imagens, 2107.

formal, apenas com estas repostas me parece difícil afirmar. Entre as opções a serem identificadas pelos respondentes,

estava o meme Caneta Desmanipuladora (Figura 23), cuja ideia central consiste na edição explícita de manchetes publicadas por grandes veículos, para que, reescritas, revelem uma suposta manipulação intencional da verdade. Este meme, que não apresenta imagens de pessoas ou personagens, não se baseia no humor e cuja composição não segue o padrão image macro, foi identificado como meme por apenas 10% dos respondentes. Em contraponto, a associação formal, combinada a características de linguagem como o humor e a ironia, ou a temas de bastante visibilidade midiática, acabou induzindo à percepção de determinadas imagens como sendo memes. É o caso da imagem de divulgação do filme “Alien – O oitavo passageiro” (Figura 24), um image macro no qual a atriz Seagourney Weaver aparece

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abraçada com o seu algoz no filme, sob a legenda “A vida é muito curta para manter velhos rancores”. Embora tenha alcançado grande circulação na rede, ela não apresentou (no tempo decorrido desta pesquisa) volume de variações que sugira um fenômeno memético – mas, ainda assim, esta imagem, um image macro com legenda branca e contorno preto, na fonte Impact, foi reconhecida como meme por 46% dos respondentes.

Figura 23: Meme Caneta Desmanipuladora.

Fonte: Google imagens, 2017.

Figura 24: Image macro com personagens do filme “Alien – O oitavo passageiro”.

Fonte: Google imagens, 2017.

Variados fatores podem ser combinados para que um determinado conjunto de peças de mídia se constitua em um meme de internet. Ao considerarmos memes como coleções, uma imagem avulsa, dissociada de um fluxo de apropriações, à princípio, não deve ser entendida como tal. A consolidação da composição image macro a partir de ferramentas geradoras de memes, e a própria função comunicada por essas ferramentas (geradoras de memes), estimula a associação equivocada da forma com o fenômeno. Além disso, a relação estreita com o humor e as fronteiras sutis entre memes e a viralização de conteúdos, podem contribuir para suposições tendenciosas. Por isso o desafio de um olhar distanciado, principalmente no tempo, para que seja possível identificar, num conjunto de peças em constante atualização e mutação, aquilo que irá configurar-se como uma identidade memética.

Algo que pode ser facilitado em se tratando de eventos de maior visibilidade midiática, ou com grande volume de propagação, mas que torna-se mais complexo e desafiante em se tratando de temas e contextos relacionados a grupos restritos, ou de menor de circulação.

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2.2 A escrita visual do remix

Utilizados pelas pessoas para estabelecerem diálogos nas mídias sociais, os memes de internet resultam de uma linguagem que requer repertório comum de referências entre aqueles que a utilizam. Eles requerem uma expertise cultural, nas palavras de Lankshear e Knobel (2007), para quem os memes de internet devem ser entendidos como uma nova experiência de letramento, por serem “formas socialmente reconhecidas de gerar, comunicar e negociar conteúdos significativos por meio de textos codificados dentro de contextos de participação em discursos” (LANKSHEAR; KNOBEL, p. 4). Conteúdos midiáticos, que habitam o imaginário coletivo, aparecem regularmente refletidos em memes de internet, por meio de variadas abordagens e conexões, traduzidas por um processo que se constitui em um retrato preciso desta relação: o remix. O remix é uma linguagem multimídia de comunicação, através da qual cita-se conteúdos de várias fontes para criar-se, a partir deles, novos conteúdos. Sendo um texto, uma imagem ou um vídeo, o remix é colagem. “Ao remix cabe fazer algo de novo41” (LESSIG, p. 52): ele se configura na combinação de elementos da cultura de massa e acontece ao aproveitar o significado criado originalmente pelas referências combinadas, para, a partir delas, construir novos significados. Em uma remixagem, a produção de significados se baseia fortemente nas referências culturais que traz consigo.

A convergência de mídias, ao estimular o consumo de novidades na busca por entretenimento, ampliou os repertórios pessoais para reapropriações por processos de remix, materializados em dublagens, legendagens, reedições de trailers e “photoshopagens42” – gíria popularmente utilizada para designar montagens de imagens, feitas em computador, nas quais imperfeições ficam evidentes, aparentando terem sido feitas de maneira rápida e descompromissada. No livro “Novos fundamentos do design” (2015), Ellen Lupton e Jennifer Cole Phillips falam de como, na década de 90, os professores de design se viram obrigados a ensinar (e a aprender) o uso de programas de computador, e do desafio de fazê-lo equilibrando habilidades técnicas com o pensamento visual e crítico. Segundo as autoras, embora seus alunos se mostrassem desconfortáveis construindo conceitos de maneira abstrata, eram hábeis em utilizar computadores para trabalhar e retrabalhar elementos da cultura pop.

Este detalhe, em especial, chama a atenção para o fato de como o consumo de produtos da indústria cultural aparece assimilado em nossos cotidianos. E assim também acontece com as 41 42

Tradução da autora. No original: “The remix is meant to do something new”.

O termo é uma apropriação do nome do programa de tratamento de imagens Photoshop. Ver glossário, p. 151.

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ferramentas tecnológicas de comunicação, de forma que a linguagem do remix torna-se uma habilidade natural desses jovens, já nascidos imersos em uma cultura de consumo multimidiática, na qual as imagens, elas mesmas, adquirem um caráter ferramental.

“A preferência modernista por formas sintéticas e simplificadas convive agora com o desejo de construir sistemas que produzam resultados inesperados. Hoje em dia, o impuro, o contaminado e o híbrido parecem tão interessantes quanto formas polidas e perfeitas. Pensadores visuais buscam, frequentemente, alcançar resultados intricados partindo de regras ou conceitos simples, em vez de reduzir uma imagem ou uma ideia a seus componentes mais elementares.” (LUPTON; PHILLIPS, p. 8)

Podemos encontrar no resultado de criações por processos de remix, a mistura de imagens profissionalmente elaboradas com imagens amadoramente improvisadas. Destas remixagens, resultantes de colagens e interferências feitas sobre imagens cuidadosamente produzidas para serem perfeitas, oriundas de conteúdos televisivos, do cinema, ou de peças publicitárias, derivam imagens caseiras, de pouca qualidade, toscas. As interferências e edições feitas sobre estas imagens polidas as transformam em imagens poluídas. No fluxo diário de imagens midiáticas, Martins (2010) identifica a presença recorrente destas duas frequências: “imagens polidas”, altamente manipuladas e retocadas; e “imagens poluídas”, estas toscas, de baixa resolução, em geral de proveniência amadorística. Segundo o autor, a familiaridade e a estranheza que tais imagens, individualmente ou combinadas, inspiram e provocam “são tributárias a uma pedagogia midiática que nos permite, hoje, associá-las respectivamente aos valores de artifício e evidência” (MARTINS, p. 267). A ideia de que o bom funcionamento de parte da engrenagem midiática necessite de imagens polidas (artifício) e poluídas (evidência) em constante alternância e entrecruzamento dialoga com a estética do remix, que busca em referências da mídia de massa imagens que serão combinadas, ou entre elas, ou com imagens caseiras e amadoras, para criação de novas imagens. O resultado final destas combinações, em sua maioria, tende a ser de pouca resolução e repleto de ruídos.

Considerando o “descontrole” – sujeira, ruído, pouca nitidez e baixa resolução – apontado pelo autor como característico das imagens poluídas, podemos incluir os memes de internet no fluxo de circulação deste tipo de imagem, e quem sabe encontrar neles evidências desta forma de escrita, emergente de um ciberespaço habitado por consumidores-produtorespropagadores de conteúdos. Diante das proporções que alcançou, o fenômeno dos memes de internet já não pode ser ignorado pela grande mídia, pois ele a retroalimenta, provendo insumos e referências.

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As peças de varejo da rede de lojas Casa & Vídeo (Figuras 25 e 26), com a hashtag #AquiTemDeTudo, criadas pela agência Mullen Lowe e recentemente expostas nas estações do Metrô do Rio de Janeiro, são reflexo daquele que talvez seja um ponto de virada na assimilação da estética poluída dos memes de internet pelo marketing das empresas, no que tange

ao

acabamento

polido

comumente

valorizado pelas agências de publicidade. Com excessão da área inferior das peças – destinada às imagens dos produtos anunciados, sua descrição e preço – os memes que as ilustram evidenciam uma criação aparentemente amadora o suficiente para fazer com que um designer passante desprevenido esboce uma

reação inicial de

grande desconforto diante das peças. Não apenas a sua direção de arte é tosca, mas também o encaixe das peças na estrutura da mídia out of Figura 25: Peça da Casa & Vídeo exposta no Metrô do Rio de Janeiro.

Fonte: Acervo da autora, 2017.

home evidenciam o descontrole comumente encontrado em produções vernaculares. Mas, assim como devem ser observados os memes de

internet, e todas as peças de mídia produzidas dentro de uma cultura de consumo multimidiática, cuja economia é a da atenção, estas criações publicitárias também não podem ser analisadas isoladas do seu contexto cultural, uma vez que a maneira como se precipitam em nossa direção é reflexo da cultura na qual se inserem.

Figura 26: Peças da Casa & Vídeo expostas no Metrô do Rio de Janeiro.

Fonte: Acervo da autora, 2017.

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Mas se de um lado temos consumidores-produtores-propagadores, cercados por um universo infinito de informações culturais multimidiáticas a lhes estimular a participação, de outro, encontramos barreiras legais associadas a direitos autorais sobre imagens e sons produzidos pelas mídias de massa. Esta questão sensível atravessa a cultura participativa da Web 2.0, seguindo em direção oposta à cultura livre, aberta e colaborativa das redes. Para além das fronteiras digitais, Lessig (2008) levanta uma questão inquietante em relação à maneira como estabelecemos culturalmente o uso da citação, partindo do exemplo das criações literárias. Para o autor, a escrita – no sentido tradicional das palavras colocadas no papel – é a forma última de criatividade democrática, considerando que todos dentro de uma sociedade tenham acesso aos meios para fazê-lo. Ensinados a escrever, entendemos que citar é parte essencial desta escrita, de forma que a liberdade de citar e de construir sobre as palavras de outros é tida como parte do processo por todos aqueles que escrevem. Enquanto escrever com textos é uma habilidade comum a todos que passam por processos de alfabetização, a produção de filmes ou a gravação musical foram, durante a maior parte do século XX, incumbidas a profissionais. O que acontece, então, quando escrever com imagens torna-se tão democrático quanto escrever com textos?

“Se podemos citar o texto de Hemingway ‘For Whom the Bell Tolls’ em um

ensaio, podemos citar um trecho do filme de Sam Wood sobre o texto de Hemingway ‘For Whom the Bell Tolls’ em um filme. Ou se podemos citar a letra de uma canção de Bob Dylan sobre o Vietnã, podemos citar uma gravação de Bob Dylan cantando esta letra em um vídeo sobre esta guerra. O ato é o mesmo; apenas a fonte é diferente. E as medidas de justiça também poderiam ser as mesmas: é realmente apenas uma citação? É devidamente atribuído o crédito? E assim por diante. (...) No entanto, por mais semelhantes que estes atos de citação possam ser, as normas que os governam hoje são muito diferentes43” (LESSIG, p. 53).

Fato é que citações existem desde muito tempo antes da internet com suas ferramentas populares de edição de textos e imagens. A obra “O grito”, de Edvard Munch (1893) habita o imaginário coletivo – ao minímo na cultura ocidental – representada pela figura ambígua e andrógina que a protagoniza. O artista norueguês deixou quatro versões da obra, que veio a tornar-se a representação do horror nas apropriações que dela mais tarde foram feitas. “O grito” já foi e continua sendo citado, parodiado e remixado na arte, no design, na literatura, no cinema e na publicidade, nas mais variadas mídias e suportes, como por exemplo: na capa do 43

Tradução da autora, No original: “If we can quote text from Hemingway’s “For Whom the Bell Tolls” in an essay, we can quote a section from Sam Wood’s film of Hemingway’s “For Whom the Bell Tolls” in a film. Or if we can quote lyrics from a Bob Dylan song in a piece about Vietnam, we can quote a recording of Bob Dylan singing those lyrics in a video about that war. The act is the same; only the source is different. And the measures of fairness could also be the same: Is it really just a quote? Is it properly attributed? And so on. (…) Yet, however similar these acts of quoting may be, the norms governing them today are very different.”

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livro de ficção científica, “Do Androids Dream of Electric Sheep?” (1968), de Philip K. Dick; na serigrafia “The Scream (after Munch)” (1984), de Andy Warhol; na máscara do personagem principal do filme de terror “Pânico (Scream)” (1994); na cadeira Scream (2013), de Angelo Dall’Aglio, para a marca italiana Bontempi; no emoji “Face screaming in fear”.(2015)

; na charge “Donald Trump inauguration (apologies to Munch)”, de Peter

Brookes (2017) para o jornal The Times; entre muitos outros, como podemos ver na seleção abaixo (Figura 27). Estes são apenas alguns exemplos recentes de um processo de apropriação que vem acontecendo, possivelmente, ao longo dos dois últimos séculos.

Figura 27 (continua): Citações à obra “O Grito”. De cima para baixo, da esquerda para a direita: Capa do livro de Philip K. Dick; serigrafia de Andy Warhol; Cartaz do filme “Pânico (Scream)”; Cartaz do filme “Esqueceram de Mim (Home Alone)”; Capa da revista Style Weekly; e Prato de IdaFrost.

Fontes: Pinterest.com; Google imagens; Youtube, 2017.

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Figura 27 (continuação): Citações à obra “O Grito”. De cima para baixo, da esquerda para a direita: cena do filme “Looney Tunes De Volta à Ação (Looney Tunes Back in Action)”; charge de Peter Brookes; videoinstalação de Ariel Ziv; escultura com Lego, de Nathan Sawaya; peça de campanha do Google; cadeira de Angelo Dall’Aglio; fôrma de gelo “Ice Screams”; e boneco “The Screaming Scream”.

Fontes: Urielziv.com; Hgfs.com.au; Pinterest.com.

A questão sobre a citação de imagens no design ganhou visibilidade com a polêmica em torno de uma peça criada por Paula Scher, para a marca de relógios Swatch. Na década de 1980, a designer ficou conhecida por soluções gráficas que dialogavam com estilos do passado, criando novas possibilidades estéticas. Chamada para desenvolver uma campanha inspirada nos anos 50, o primeiro trabalho apresentado pela Koppel & Scher para a Swatch

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foram paródias a anúncios encontrados em revistas da época – nos quais a designer notou que os produtos anunciados traziam sempre uma promessa de melhoria, ou seja, com eles tudo ficava melhor. Um dos anúncios criados mostra a imagem de uma mãe atormentada com a guerra de almofadas de suas filhas, sob o título: “Desde que adquirimos Swatch, minhas meninas vão dormir na hora certa e são muito populares!” Os títulos abordam supostas melhorias percebidas na vida das famílias, enquanto as imagens são carregadas de ironia (Figura 28).

Figura 28: anúncios criados pela Koppel & Scher para a marca de relógios Swatch.

Fonte: Retinart.net

Mas foi um cartaz criado por Scher em 1984, que tornou-se o estopim de uma ampla discussão sobre os limites entre a citação, a paródia e o plágio, no design. Se para o público em geral, a questão passou despercebida, para os designers, no entanto, a imagem era familiar.

Scher apropriou-se de um cartaz que o designer gráfico suíço, Herbert Matter, criou para o Swiss National Tourist Office and Swiss resorts, em 1934 (Figura 29). Segundo a comunidade profissional de designers, AIGA – na qual a designer já foi contemplada em várias premiações –, “seguindo à risca o cartaz de Matter, Scher acabou por criar uma imagem própria do seu tempo, trazendo ainda uma pitada de humor para aqueles que perceberam a sua intenção44 (BROWER, 2014)”. No entanto, desde a sua veiculação, o cartaz vem sendo exemplo e alvo de críticas e discussões a respeito da utilização explícita de referências em trabalhos de designers, como um aspecto empobrecedor e pasteurizador dos processos criativos. O ponto 44 Tradução da autora. No original: “Sticking close to the source, Scher at once created an image that’s completely of its own time and manages to poke a bit of fun for those in the know”.

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ao qual quero chegar com estes exemplos de remixes das obras de Munch e de Matter, deve desviar o nosso olhar para além dos escritórios de design ou das agências de publicidade, conduzindo-o à cultura na qual estamos submersos desde a modernidade: “Quando você dá um giro de 360 graus, quantos anúncios diferentes ou logotipos você vai ver ao seu redor? Em seu carro, em seu relógio de pulso, em um cartaz. Se você entra em qualquer supermercado ou restaurante ou em qualquer lugar para fazer compras, há sempre uma trilha sonora tocando.

Sempre há... meios de comunicação. Há anúncios. Há revistas em todos os lugares... É o mundo em que vivemos. É a paisagem ao nosso redor45 (HOSLER apud LESSIG, p. 71)”.

A barreira visual pela qual estamos rodeados, nos é também a base para a formação de um repertório cultural próprio. “Para qualquer um que viva em nossa era, uma mistura de imagens e sons comunicará muito mais poderosamente que qualquer ensaio de oitocentas palavras do New York Times46” (LESSIG, p. 74)”. Quando cruzamos os estímulos cada vez mais visuais, trazidos pela comunicação de massa, com o acesso a ferramentas que facilitam exponencialmente os recursos para a edição de imagens – primeiro chegando às mãos dos profissionais, para logo em seguida chegar a todas as pessoas – temos um casamento perfeito, no qual os estímulos podem ser respondidos, na mesma linguagem em que são recebidos.

Neste contexto, diante de questões como o plágio, ou por que o artista do remix não cria suas próprias imagens ou sons originais – evitando utilizar imagens e sons produzidos por terceiros – devemos buscar entender por que os signos contidos nas colagens têm importância para o remix: “Seu significado não vem do conteúdo do que é dito; Ele vem da referência, expressado exclusivamente na presença do original. Imagens ou sons coletados do mundo real são para o remix o que as cores de uma paleta são para a pintura47 (LESSIG, p. 74)”. O que se pretende dizer com um remix tem um ponto de partida, que é o da referência citada – e junto dela, todo o seu significado apreendido coletivamente – de forma que não há sentido em criar algo novo, nunca visto antes por ninguém, para transmitir uma mensagem que depende diretamente do reconhecimento prévio de determinados signos. Sem a citação, a mensagem de um remix perde o objetivo em relação à sua intenção original. O remix presente no cartaz de Scher acaba configurando-se como uma resposta aos múltiplos e crescentes estímulos de

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Tradução da autora. No original: “When you turn around 360 degrees, how many different ads or logos will you see somewhere in your space? On your car, on your wrist-watch, on a billboard. If you walk into any grocery store or restaurant or anywhere to shop, there’s always a soundtrack playing. There’s always… media. There’s ads. There’s magazines everywhere… It’s the world we live in. It’s the landscape around us.”

46 Tradução da autora. No original: “For anyone who has lived in our era, a mix of images and sounds makes its point far more powerfully than any eight-hundred-word essay in the New York Times could.”

47 Tradução da autora. No original: “Their meaning comes not from the content of what they say; it comes from the reference, which is expressible only if it is the original that gets used. Images or sounds collected from real-world examples become “paint on a palette.”

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consumo cultural, facilitada pelo acesso a ferramentas de edição e manipulação de imagens – naquela época, restritos a profissionais, agências e escritórios de design. Processo que vemos hoje acontecer de maneira popularizada, através do uso de computadores e smartphones, somados ao acesso à internet.

Figura 29: À esquerda, cartaz criado por Herbert Matter (1934); À direita, cartaz criado por Paula Scher (1984).

Fonte: Retinart.net, 2017.

A internet e as tecnologias digitais abriram as possibilidades de escrita visual para as massas. Usando as ferramentas da tecnologia, até mesmo as mais simples, qualquer pessoa pôde começar a escrever usando imagens, sons e vídeos. Muitas inovações tecnológicas cresceram em torno destas práticas sociais e culturais, potencializando suas conexões. “O que aconteceu num mundo pré-digital, ocorre agora num escopo e numa velocidade exponencialmente maiores, graças aos favorecimentos garantidos pelas ferramentas sociais on-line” (JENKINGS, p. 36). A cultura digital permeia o nosso estilo de vida a tal ponto que a criação de conteúdos remixados torna-se uma forma cada vez mais frequente de escrita. Tudo que é produzido pela cultura de massa, e pode ser digitalizado, é passível de ser remixado e de ser transformado em meme de internet, inclusive outros memes. Elementos recorrentes em mensagens trocadas pelas mídias sociais, estas colagens geram novas leituras e significados a partir do que é encontrado no cinema, na música, no design, na arte, nos conteúdos televisivo, jornalístico e publicitário, na ficção e na realidade, oriundos das mais diversas partes do

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mundo. As ressignificações contidas nessas produções tornam-se reflexos de identidades que se formam por processos de miscigenação cultural. O torneio da Copa do Mundo de futebol torna-se um contexto interessante neste sentido, uma vez que reúne e dá visibilidade a diversas culturas. Isto se reflete nos memes de internet produzidos ao longo da competição, de forma que podemos encontrar composições como a que traz o jogador holandês Van Persie (conhecido por dar grandes saltos para cabecear bolas) voando com a turma de Peter Pan, em uma suposta terra de “zoeira never ends” – trocadilho que tranforma “Neverland” em uma expressão que é ela própria um meme de internet. Ou a maçã símbolo da Apple, como se tivesse sido mordida pelo jogador uruguaio Luis Suárez, após episódio em que, pela terceira vez, o jogador mordeu um adversário em campo. Cenas do filme “O Sexto Sentido” (1999) e cenas do programa de televisão “Turma do Chaves” são usadas para parodiar a goleada de 7x1 da Alemanha sobre o Brasil. Cenas dos filmes de uma campanha publicitária do portal Bom Negócio são combinadas para representar a rixa esportiva entre Brasil e Argentina (Figura 30). Ou ainda o jogador alemão Podolski, que ao demonstrar publicamente que se sentia em casa no Brasil, ganhou a simpatia popular e virou o meme “Podolski brasileiro”, aparecendo relacionado a diversas situações típicas da vida dos brasileiros (Figura 31).

Figura 30: Remixes produzidos durante a Copa do Mundo de 2014.

Fonte: Facebook, 2014; Twitter, 2014; Google imagens, 2014.

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Figura 31: Image macros do meme “Podolski brasileiro”.

Fonte: Twitter, 2014.

Na cultura participativa da Web 2.0, as pessoas enquanto consumidoras-produtoraspropagadoras, remixam, ou citam, uma ampla gama de referências para produzir algo novo.

Ao contrário de um texto, no qual as citações seguem em uma única linha, mídias remixadas podem citar sons sobre imagens, vídeo sobre texto ou texto sobre sons. As citações misturamse, tal qual aparecem combinadas no espaço ao nosso redor, para resultar no trabalho criativo.

O remix é um ato essencial da criatividade, expresso na liberdade das múltiplas possibilidades de combinações de referências. Lessig (2008) salienta que crucial é reconhecer que esta criatividade, materializada no trabalho criativo remixado, não compete com, ou enfraquece, o mercado e a indústria cultural. Eles são complementares. O remix reflete a capacidade que toda uma geração tem de falar. Conforme aponta Jenkins (2014), quando um material é produzido em um formato fechado visando uma audiência, ele corresponde com imperfeições às necessidades dessa audiência e seus membros tendem a reformatá-lo para atender melhor aos seus interesses. O conteúdo propagado é reescrito, tanto ao ser submetido a processos de remixagem e sampleamento, quanto ao ser inserido em conversas nas redes sociais, através de metacomentários. Este processo contínuo de transformação do propósito original de uma peça de mídia, e da sua recirculação estão corroendo as fronteiras percebidas entre a produção e o consumo de mídia. Também para Lévy (1999), não fosse pelos problemas jurídico-financeiros que tolhem produtores, as hipermídias seriam muitas vezes construídas a partir de imagens e textos já disponíveis. Os espaços virtuais, em sua essência, são construídos sobre citações: hipertextos, hiperlinks, hashtags, incorporações (embeds) e os próprios compartilhamentos de conteúdo. A ideia de obra, no que diz respeito às peças de mídia produzidas na cultura digital, varia conforme a nitidez dos seus limites. Quanto mais a peça é aberta à interação, à interconexão ou à criação coletiva, menos nítido é o seu limite e mais distante se coloca da definição clássica de obra.

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2.3 Viralização e apropriação

Em uma operação inversa a das citações e paródias de obras de arte, peças publicitárias ou de design, nas quais busca-se o reconhecimento pela fama intrínseca às referências remixadas, os memes de internet podem remixar conteúdos absolutamente desconhecidos, e através de seus processos de cópia e compartilhamento, acabar conferindo-lhes fama e reconhecimento. Um fator determinante neste sentido é o potencial de viralização dos conteúdos nas redes.

Segundo o dicionário Michaelis, um vírus é um organismo infeccioso diminuto, sem capacidade metabólica independente, reprodutivo apenas no interior das células hospedeiras; ou um programa fraudulento que se instala em computadores podendo causar vários tipos de danos, alguns irreparáveis, como a paralisação total da máquina. Para Dawkins (1979 [1976]), alguns memes como a religião, ou mesmo jogos infantis, teriam espalhado-se de cérebro em cérebro ao longo de gerações, por um processo que ele define como viral, defendendo que as mentes humanas são de fato infectadas por estas ideias, independentemente de suas vontades.

Mas para tratarmos de conteúdos que circulam pela internet, a partir deste ponto, traçaremos um caminho distinto em relação ao uso do termo vírus. É importante deixar claro que me apropriarei do termo biológico para efeito de representação metafórica da rapidez com que alguns conteúdos se espalham pelas mídias digitais, e também pelo fato de que popularmente o fenômeno tenha ficado assim conhecido. Mas reconheço que esta metáfora é um ponto de crítica à visão biológica da memética, exatamente por sugerir uma analogia que prejudica o entendimento em torno da participação humana ativa na produção e disseminação de ideias, seja dentro ou fora das mídias digitais, como fazem questão de ressaltar Jenkins (2014) e Shifman (2014).

No que tange aos ambientes virtuais, os termos viral e meme são utilizados alternadamente, com relativa frequência, e muitas vezes confundidos, apesar de apresentarem características próprias. A distinção entre eles não é tarefa fácil, principalmente pelo fato de se relacionarem intrinsecamente no fluxo de compartilhamento de conteúdos. Pensando a partir de suas “variações” (SHIFMAN, 2014), o conteúdo viral é uma peça única, audiovisual e/ou textual, que é copiada de pessoa em pessoa, exponencialmente, atingindo grande alcance em espaços relativamente curtos de tempo, sem que seja alterada; já o meme é sempre uma coleção de mensagens, audiovisuais e/ou textuais, que também são copiadas de pessoa em pessoa, podendo atingir um grande alcance em espaços relativamente curtos de tempo, mas com a premissa de serem alteradas durante o processo. Um único vídeo, sozinho, não será um

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meme de internet. Mas ele poderá ser parte de um meme, se for identificado como pertencente a um grupo de mensagens que juntas configurem-se em uma identidade memética, ou poderá ainda ser um vídeo memético, se dele vierem a surgir derivativos.

Evitando uma diferenciação muito direta entre virais e memes, correndo o risco de perderem-se nuances que se dariam nas fronteiras de distinção entre estes dois tipos de informação cultural, Shifman (2014) sugere pensarmos o viral e o memético como se fossem duas extremidades de um espectro dinâmico, com diferentes modos de engajamento, e não pensá-los em uma formulação passivo versus ativo. Reforçando sua relação complexa, a autora especula sobre a probabilidade de não haver de fato um conteúdo viral puro, uma vez que ao atingir um alto grau de popularidade na internet, um viral está demasiado sujeito a que alguém, em algum lugar, acabe por alterá-lo. E por outro lado, há o fato de muitos conteúdos meméticos se originarem de conteúdos virais. Considerando que de um viral podem surgir derivativos, ela sugere separar os memes entre os que são deflagrados por um texto, foto ou vídeo específico (quase sempre viral), do qual surgem muitas versões; e aqueles que compreendem muitas versões aparentemente evoluídas simultaneamente, sem uma base fundadora identificada, comumente baseados em fórmulas ou gêneros meméticos.

Assim como nos casos “Giovanna do forninho” e “Já acabou, Jéssica?”, analisados anteriormente, um outro exemplo desta dinâmica entre virais e memes pode ser observado a partir do episódio que ocorreu em 28 de setembro de 2015, quando o vídeo48 de uma matéria da TV Anhanguera, viralizou na internet brasileira (Figura 32). Nele, Edinair Maria dos Santos Moraes, servidora da Assembleia Legislativa de Goiás (Alego), é filmada durante três dias registrando a presença e saindo sem trabalhar. Ao ser questionada sobre o fato, ela nega.

Quando a repórter diz: "A senhora fez, nós temos gravado”, a servidora sai correndo e é seguida pela jornalista, que a chama: "Senhora, senhora, por que a senhora está correndo se não é funcionária da Assembleia?". Edinair foge deixando a repórter sem resposta. O vídeo foi replicado por milhares de pessoas. Quase simultaneamente à sua propagação, começaram a surgir apropriações meméticas nas quais Edinair figurava como a personagem Senhora (Figuras 33 e 34). A partir de imagens congeladas do vídeo original, a situação de alguém que foge de uma pergunta funcionou como um catchphrase, ou seja, como um convite para a enorme gama de apropriações que se seguiram no Twitter, no Facebook e no Youtube. Neste episódio, pudemos identificar o processo de viralização acontecendo quase em paralelo à memetização do vídeo, ao que identificamos nos seus fluxos a variação proposta por Shifman: 48

Vídeo disponível em <http://g1.globo.com/goias/noticia/2015/09/servidores-da-assembleia-batem-o-ponto-e-saemsem-trabalhar-video.html>. Acesso em 02/07/2016.

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sendo a viralização do vídeo o catalizador do processo, através da circulação do vídeo original, logo seguida por desdobramentos meméticos em vídeos editados, image macros, exploitables, nas infinitas possibilidades de combinação dos processos de remix.

Figura 32: Trechos do vídeo em que Edinair é flagrada registrando a presença e saindo sem trabalhar.

Fonte: TV Anhanguera, 2015.

Figura 33: Trechos de vídeo remix sobre a personagem Senhora.

Fonte: Youtube, 2015.

Figura 34: Memes da personagem Senhora.

Da esquerda para a direita, acima: image macro em 4 panel com trechos do vídeo original; e ilustração 3 panel inspirada no vídeo original; abaixo: remix com colagem tipo exploitable.

Fonte: Google imagens, 2015.

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Tanto o conteúdo viral quanto o memético envolvem engajamento na comunicação, embora associados a diferentes níveis. No caso do viral, a comunicação é passível de metacomentários personalizados – que são os comentários feitos pelas pessoas ao compartilharem os conteúdos em suas redes –, enquanto o conteúdo memético convida à alteração da mensagem propriamente dita. Virais e memes são originados de fatores distintos, ou seja, as características que levam alguém a apenas replicar um conteúdo não são necessariamente as mesmas que as estimulam a imitá-lo e a apropriar-se dele. A tentativa de diferenciá-los se faz útil no sentido de entender que fatores motivam as pessoas a repassar um conteúdo, ou a engajar-se criativamente com o mesmo.

Com base em dados coletados por Jonah Berger e Katherine Milkman49, que estudaram as características que potencializam tendências de compartilhamento na internet americana, Shifman (2014) identificou fatores estimuladores da viralização. Conteúdos que causam bem-estar em quem os recebe, de forma a projetar positivamente a imagem de quem os envia – percebidos como novidades, surpreendentes, interessantes, de uso prático, e com linguagem simples, fácil de ser assimilada, têm grande potencial de serem compartilhados.

Assim como conteúdos que provocam excitação em quem os recebe, seja positiva ou negativamente. A excitação positiva está associada à sensação de elevação diante de coisas grandiosas, como belezas naturais, descobertas científicas ou grandes vitórias, e a excitação negativa, ao gerar raiva ou ansiedade, estimula também o engajamento. Campanhas de objetivo político ou comercial, podem tornar-se virais quando há estímulo ao compartilhamento de conteúdo, ou a algum tipo de engajamento, como um voto, uma participação local, ou a compra de produtos. E a própria origem de um conteúdo (profissional ou amador), seja ela expressa na reputação do seu autor, ou na visibilidade que a ele é dada, acaba tornando-se um potencial fator estimulador de propagação. Estas informações conectam o ato de viralização de um conteúdo à intenção de uma imagem que se queira projetar socialmente. Conteúdos virais, compartilhados em sua íntegra, mesmo que não acrescidos de opiniões, acabam acrescentando qualidades a quem os envia, por simples associação.

Já os fatores meméticos que funcionam como gatilhos para a apropriação são principalmente o humor, pessoas comuns, situações inusitadas, repetição e excentricidades.

Mas, em especial, as imagens comuns, de atos falhos, incongruentes ou de montagens malacabadas, ao apresentarem falhas de produção e/ou linguagem, expressas em montagens feitas com poucos recursos gráficos – seja pela otimização do tempo, por falta de habilidade técnica, 49 Jonah Berger e Katherine Milkman, “What Makes On-line Content Viral?”, Journal of Marketing Research, 49 no.2 (2012): p. 192-205.

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ou pela própria atuação de seus protagonistas –, acabam servindo como potente estímulo para novas leituras e complementações. Essas brechas são como convites para outras pessoas preencherem as ausências deixadas. Na lógica da cultura digital, que é baseada no envolvimento ativo das pessoas, esta “incompletude50” (SHIFMAN, 2014) funciona como gancho para o diálogo e para a consequente propagação memética, pois “conteúdos ruins geram bons memes na cultura participativa contemporânea51” (IDEM, p. 86). Um exemplo desta dinâmica ocorre com memes do tipo catchphrase, nos quais uma expressão, um bordão ou frase popular, propostos em um tipo de estrutura narrativa a ser completada, deixam espaço para serem ressignificados em múltiplos contextos de interesse. Nessas estruturas, textos podem aparecer combinados com imagens, em image macros, composições tipográficas, ou sob a forma de textos simples e hashtags. Como exemplos temos o meme “…por favor, nunca te pedi nada”, comumente combinado com pedidos estapafúrdios ou impossíveis, o meme “Você percebe que está ficando velho quando…”, que se relaciona com dificuldades humanas cotidianas, e o meme #sqn (também encontrado na versão expandida #SoQueNao), que funciona como negação irônica para algo que tenha sido dito antes (Figuras 35, 36 e 37). Catchphrases não dependem de fenômenos virais e surgem espontaneamente nas timelines para expressar as mais diversas intenções de comunicação.

Figura 35: Memes “…por favor, nunca te pedi nada”, do tipo catchphrase.

Fontes: Google imagens, 2017.

Figura 36: Memes “Você percebe que está ficando velho quando...”, do tipo catchphrase.

Fontes: Google imagens, 2017.

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Tradução da autora. No original: “incompleteness”.

Tradução da autora. No original: “bad texts make good memes in contemporary participatory culture”.

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Figura 37: Memes #sqn (“só que não”), do tipo catchphrase.

Fontes: Google imagens, 2017.

A maneira como os termos meme e viral são usados popularmente tornou-se um problema no mercado da comunicação e do marketing, como critica Jenkins (2014), por mistificar o entendimento de como os conteúdos se propagam nas mídias digitais, levando profissionais a empreenderem grandes sagas para alcançar o resultado da viralização, tão almejado pelas marcas. Para o autor, a metáfora viral não dá conta de descrever sutilezas comportamentais no processo de compartilhamento, em que pessoas avaliam um conteúdo e decidem quando e com quem compartilhá-lo, ou mesmo como propagá-lo. Como mencionei anteriormente, a principal crítica dos estudos de mídia em relação à analogia genética, diz respeito à participação das pessoas, de forma que não podemos ignorar o fato de que elas também tomam decisões conscientes ao propagar conteúdos, expressando suas mais diversas visões. Como aponta Jenkins (2014), é irônico que uma retórica sobre públicos passivos, infectados por vírus da mídia, tenha ganhado tamanha relevância ao mesmo tempo em que se reconhece que as pessoas são participantes cada vez mais ativas na construção de significados na mídia conectada por redes. Ele propõe o conceito de propagabilidade (spreadability), e o seu desdobramento na expressão mídia propagável (spreadable media), para evitar metáforas como a da infecção ou contaminação, de forma que a mídia propagável inclua os conteúdos replicados e os apropriados. A intenção do autor de apresentar uma alternativa às metáforas biológicas, à princípio, me parece um desafio diante da grande absorção dos termos meme e viral pela cultura digital, o que reflete nas estratégias dos grandes produtores de mídia, e por elas é reforçado. No entanto, é crucial ver para além da efetividade da proposta de Jenkins (2014), a sua preocupação em evidenciar a participação humana em termos de engajamento e decisão sobre o que propagar, para que as pessoas não sejam tratadas como portadoras passivas da mídia viral, reforçando que suas escolhas, investimentos, interesses e propósitos determinam o valor dos conteúdos.

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3. TEMPORALIDADES DE PRODUÇÃO E CONSUMO

Memes de internet circulam pelas redes em grupos de peças de mídia, que vão relacionandose seja por um tema em comum, uma determinada imagem, ou por sua estrutura narrativa, em um fluxo de reapropriação a ser repetido por cada pessoa que lança um nova peça na rede, visando fazer parte de uma conversa. Eles podem surgir simultaneamente em vários pontos da rede, agrupar-se localmente em torno de um tema, ou aparecer sem que haja qualquer previsibilidade de tempo. Suas dinâmicas temporais variam conforme a própria cultura digital, em constante atualização, sujeita à instantaneidade das informações, à disputa pela atenção, à potência das viralizações, à efemeridade.

Podemos enxergar o comportamento ansioso das redes sob a ótica de uma “estética do consumo” (BAUMAN, 1999), operada por uma lógica da insuficiência e do esquecimento, na qual as pessoas, sempre em movimento, são estimuladas ao consumo de novidades, à experimentação constante, ao colecionismo de prazeres efêmeros e substituíveis. Na sociedade de consumo, “agir assim é uma compulsão, um must, para os consumidores amadurecidos, formados; mas esse ‘must’, essa pressão internalizada, essa impossibilidade de viver a vida de qualquer outra forma, revela-se para esses consumidores sob o disfarce de um livre exercício de vontade” (IDEM, p. 91). Esta estética do consumo, descrita por Bauman, por sua vez, aponta para uma ordenação da sociedade sob a “forma moda” (LIPOVETSKY, 1989). Nesta sociedade que se organiza em torno da criação de necessidades, e onde a produção e o consumo de massa são regidos pela obsolescência, pela sedução e pela diversificação, produtos são despadronizados para multiplicar escolhas e opções, através de customizações em pequenas diferenças combinatórias. Conforme aponta Lipovetsky, desde os anos 1950, as indústrias de consumo alinharam-se abertamente aos métodos da moda feminina, apresentando uma “mesma inconstância formal, mesma obsolescência ‘dirigida’, permitindo tornar prescrito um produto por simples mudança de estilo e de apresentação” (IDEM, p. 164), de forma que a liberdade de escolha seja exercida a partir de conjuntos prédeterminados de possibilidades.

A insuficiência que nos faz querer algo, a sedução que nos faz querer logo, a diversificação que nos fazer querer mais, a obsolescência que nos faz querer o novo, e o esquecimento que nos faz querer novamente, estão refletidos na cultura digital, não apenas no consumo de informação, mas também na ânsia pela participação. Para Lev Manovich (2001), tecnologias como o livro impresso, o cinema e a informatização, cada uma a seu tempo,

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trouxeram mudanças significativas para além do consumo de informação, influenciando também a maneira como as sociedades se organizam em torno da sua cultura. É curioso notar que a ansiedade produzida pela sociedade de consumo, combinada aos estímulos da Web 2.0 – influência, participação coletiva, colaboração, compartilhamento de experiências e de inteligências – sugere uma cultura de ansiedade na qual o consumo representado pela posse se expande para o consumo da experimentação. Memes de ação popular52 como o “Desafio do manequim53”, “Gangnam Style54”, “Harlem Shake55” ou “Hadouken56”, funcionam como modismos aos quais as pessoas desejam aderir, assim como um novo estilo de barba ou modelo de bicicleta. A constante criação de ferramentas e aplicativos geradores de imagens, através de templates para customização de conteúdos e mensagens, molda-se na urgência do tempo das redes. Estimulada por tal facilitação, a própria utilização de memes de internet como meio de comunicação e expressão, nos mais variados acontecimentos e contextos sociais, de forma popularizada e em massa, demonstra esta estética moda aplicada à cultura. O que ocorre não apenas na cultura digital, mas no próprio ato de comunicarmo-nos em nossa sociedade, tanto no que diz respeito a processos, quanto a temporalidades. A mesma aceleração imposta pela obsolescência programada a reger a sociedade do consumo, dita o tempo de visibilidade e de atenção que daremos a um assunto, dentro e fora das mídias digitais: queremos saber sempre o que vem depois, e logo.

3.1 Propagação e envolvimento na cultura digital

Quando as pessoas passaram a ter acesso a uma infinidade de fontes de informação e entretenimento, a ferramentas de comunicação é às mídias sociais, através da internet, a comunicação de massa precisou ser repensada para adaptar-se a novas possibilidades de consumo. Nas múltiplas maneiras de circulação de conteúdo, de cima para baixo (um-paratodos) e de baixo para cima (todos-todos), do comercial ao originalmente popular, em um modelo híbrido e emergencial, um conjunto de forças passou a determinar como uma 52

Ação de engajamento on-line em que pessoas replicam as ações de outras, sob a forma de uma manifestação popular. Ver glossário, p. 146.

53 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/memes/111484-desafio-manequim-novo-meme-dominar-internetmundial.htm>. Acesso em 16/3/2017.

54 Disponível em: <http://knowyourmeme.com/memes/psy-gangnam-style>. Acesso em 16/3/2017.

55 Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/memes/36790-harlem-shake-um-meme-com-historia.htm>. Acesso em 16/3/2017.

56 Disponível em: <http://mashable.com/2013/03/28/hadouken-meme/#D3x79IXL58qA>. Acesso em 16/3/2017.

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informação é compartilhada, através de culturas e entre elas, de maneira participativa e desorganizada. O modelo de comunicação baseado no sistema um-para-todos produz e distribui um mesmo conteúdo visando atingir um grande volume de público. A cultura digital possibilitou um espaço de comunicação mais flexível, no qual a troca de informações entre as pessoas se desdobra no modelo todos-todos. A comunicação todos-todos rompe barreiras, influencia, condiciona e modifica comportamentos cristalizados pelos modelos tradicionais, através de mudanças conceituais no acesso à informação. Nesta mudança de fluxo, que vai da distribuição para a circulação, encontra-se sinalizado o movimento em direção ao modelo mais participativo de cultura, no qual o consumidor-produtor-propagador deixa de ser apenas consumidor de mensagens pré-construídas, assumindo o seu papel ativo, moldando, compartilhando, reconfigurando e remixando conteúdos, como integrante de comunidades mais amplas e de redes que permitem propagar ideias para além de vizinhanças geográficas.

Diante de formas cada vez mais penetrantes de circulação da mídia, o potencial técnico e cultural das pessoas de compatilharem conteúdos por motivos próprios, seja com a permissão de dententores de direitos autorais, seja contra a vontade deles, pode ser pensado em termos de propagação. Jenkins (2014) usa o termo “propagabilidade” (spreadable) para se referir aos recursos técnicos que tornam mais fácil a circulação de um tipo de conteúdo em relação a outros, às estruturas econômicas que sustentam ou restringem sua circulação e aos atributos de um conteúdo que despertam a motivação em torno do seu compartilhamento pelas pessoas com seus pares. O propagável é algo em torno do qual pode ser estabelecida uma conversa. E são conversas o que encontramos ao olharmos para pessoas conectadas através das mídias digitais. Nesta “ecologia da mídia” (JENKINS, 2014), torna-se importante entender os mecanismos de participação das pessoas, em uma cultura na qual as práticas de circulação exercem considerável impacto sobre os tipos de conteúdo que irão circular, como irão circular e quais interferências poderão sofrer ao longo do seu fluxo de propagação.

Os aspectos socioculturais que conferem significados aos memes, que fazem com que sejam aceitos ou rejeitados, bem como os fatores que definem sua entrada ou saída na circulação de mensagens, são condicionados por contextos. Fatores externos e não controláveis influenciam, ou mesmo definem, o caminho que eles irão percorrer, se irão atingir grande escala de circulação, enfim, o seu potencial memético, que é o de ser imitado e transmitido de pessoa em pessoa. Uma vez publicado na internet, um conteúdo está sujeito à apropriação por parte de todos aqueles a ele expostos. E a sua possibilidade de circulação é infinita e difícil de ser controlada, principalmente em se considerando a velocidade de transmissão alcançada pelas tecnologias de comunicação. Um exemplo para ilustrar esta

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dinâmica é o vídeo do Bar Mitzva de Nissim Ourfali. O pai do menino publicou o vídeo comemorativo, produzido especialmente para a ocasião, no Youtube, em 2012, para os convidados da festa. Na época, os blogs de humor Jesus Manero57 e Não Salvo58 tiveram acesso ao vídeo e o publicaram em seus canais. Nas duas semanas que se seguiram, estima-se que o vídeo tenha atingido 3 milhões de visualizações59. Nesse curto espaço de tempo, o vídeo viralizou, virou piada popular e uma cena sua, em especial, transformou-se em meme: nela o menino aparece em cima de uma baleia, cantando a letra “Vamos para a baleia”, em alusão a supostas viagens para a Praia da Figura 38: Acima, cópia do vídeo original de Nissim Ourfali, publicada em canal de terceiro no Youtube; abaixo, postagem do dono do canal, no Twitter.

Fontes: Youtube, 2016; Twitter, 2016.

Baleia, no litoral paulista. O Youtube e o Google foram processados pela família, sendo o primeiro judicialmente obrigado a retirar o vídeo do ar, e o segundo a excluir as

menções ao mesmo. Mas a dinâmica da circulação de informação na internet se mostrou impeditiva para esse controle, à medida que cópias do vídeo começaram a ser publicadas por outras pessoas (Figura 38). Ainda em julho de 2016, a consulta ao termo “Vamos para a baleia” exibia cerca de 173 resultados no Youtube e cerca de 4.800 resultados no Google, entre eles, uma enorme quantidade de memes (Figura 39).

Figura 39 (continua): Memes criados a partir do vídeo original de Nissim Ourfali.

Fonte: Google imagens, 2016.

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Disponível em: <http://jesusmanero.blog.br/>. Acesso em 30/4/2017.

Disponível em: <http://www.naosalvo.com.br/>. Acesso em 30/4/2017.

Fonte: Consultor Jurídico, 2016.

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Figura 39 (continuação): Memes criados a partir do vídeo original de Nissim Ourfali.

Fonte: Google imagens, 2016.

Observando esta dinâmica de interação sob a lente ciberespacial de Lévy (1999), podemos pensar em todos os conteúdos que circulam nas redes como se estivessem mergulhados em um “banho fervilhante de vida” (LÉVY, p. 118). Embora a metáfora utilizada pelo autor possa sugerir a ideia de “caldo primordial”, de Darwin (1859) – que serviu de base para a definição do termo meme, por Dawkins (1976) – o que irá torná-las crucialmente diferentes é a participação ativa e intencional das pessoas, contida na ideia da propagação de conteúdos. Qualquer que seja a mensagem abordada por estes conteúdos, ela se encontra conectada a outras mensagens, a comentários, a repertórios em constante atualização, às pessoas que se interessam por ela, aos fóruns onde é mencionada e debatida.

“Seja qual for o texto, ele é o fragmento talvez ignorado do hipertexto móvel que o envolve, o

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conecta a outros textos e serve como mediador ou meio para uma comunicação recíproca, interativa, interrompida” (LÉVY, p. 118). Nisto está a vida acontecendo, ou a cultura se transformando, de maneira veloz e constante, através das escolhas que fazemos sobre o que iremos propagar para os nós que formam as nossas redes.

Neste complexo de informações, o compartilhamento de conteúdos se dá por dinâmicas de propagação que irão variar no tempo, conforme o contexto em que surgem.

Como vimos no capítulo 2, a respeito das diferenças entre virais e memes de internet, o nível de envolvimento está diretamente relacionado ao fluxo de propagação. Virais, por serem repassados sem alteração no conteúdo original, atingem velocidade maior e conhecimento mais uniforme do assunto. As pessoas em um fluxo de propagação viral são expostas a um mesmo conteúdo. Seu alcance se assemelha ao da transmissão televisiva, para uma enorme audiência, mas seu modo de consumo, passado de pessoa em pessoa, não exige atenção simultânea. Já os memes de internet apresentam variações de temporalidade, à medida que requerem conhecimento prévio do tema tratado, tanto por quem vai parodiá-los, quanto por quem irá consumi-los a partir de paródias. Quando o meme surge relacionado a um conteúdo viral, ambos fenômenos podem acontecer quase simultaneamente no tempo, mas a compreensão e o significado do meme tendem a ficar atrelados ao do conteúdo viral, assim como o seu tempo de sobrevivência. Diferentemente, no caso de personagens, catchphrases e outras fórmulas meméticas, que surgem em múltiplos contextos, sua temporalidade é imprevisível, pois atrela-se ao interesse e à memória das pessoas, uma vez que estão sujeitos a serem selecionados em meio aos tantos outros conteúdos disponíveis nas redes. Mas fato é que, tanto em um, quanto no outro caso, os memes de internet exigem maior envolvimento que os virais, pois, além da replicação, compreendem a produção de uma nova peça de mídia.

E esta peça, condicionada por contexto ou tema específico, deve funcionar como dispositivo dialógico junto a um grupo, seja ele restrito ou massivo. Pensando em grupos como redes, nelas a propagação de memes pode exercer diferentes papéis, além da sua função dialógica.

Em redes temáticas, de interesse comum, ou grupos fechados, a propagação memética ajuda a fortalecer a ligação entre seus membros, construindo e/ou reforçando a identidade do grupo.

Em redes sociais, ela funciona como ferramenta de projeção pessoal, através da qual é possível somar atributos à imagem pessoal, de forma a mostrar-se antenado, bem-humorado, engajado político e socialmente, etc.

Se barreiras físicas e fronteiras territoriais podem ser atravessadas pelas mídias digitais, barreiras culturais acabam interrompendo o fluxo de circulação de memes de internet, quando olhamos para a escala global. Exatamente por que memes requererem repertório comum, conhecimento prévio do tema abordado e do seu contexto específico. Aqueles que transpõem tais barreiras, o conseguem porque têm um tema que alcança visibilidade para

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além do seu território ou contexto de origem, como no caso de personalidades públicas, personagens ficcionais populares ou de grandes eventos internacionais como a Copa do Mundo. Ou porque são originados da própria cultura digital e do universo dos memes, cujos personagens, imagens ou estruturas narrativas, conseguem manter algo de sua ideia original mesmo quando apropriados por outras culturas e por diferentes línguas. Sites e aplicativos geradores de memes, com seu alto potencial propagador, desempenham um papel importante neste modo de disseminação de conteúdos através de colagens de referências culturais, tal qual pássaros que saem pelo mundo espalhando sementes. O cartaz “Keep Calm and Carry On” – parte de uma série de cartazes criados pelo governo inglês, em 1939, para elevar a auto-estima dos ingleses que se preparavam para a Segunda Guerra Mundial – foi considerado uma ideia fracassada em relação ao seu propósito e não chegou a ser utilizado na época (Figura 40).

Figura 40: Cartazes originais, criados pelo governo inglês, em 1939.

Fonte: Keep Calm and Carry On, 2017.

Em 2000, redescoberto entre itens de um leilão, foi usado na decoração de uma loja de livros. O grande interesse das pessoas fez com que os donos o reproduzissem para estampar uma série de produtos. Fizeram também um livro que fornecia informações visuais para a modernização e comercialização da frase (Figura 41). Uma vez na internet, a ideia, antes inadequada, virou meme (Figura 42) e o cartaz “Keep Calm and Carry On” se espalhou pelas redes, não incólume como um viral. Remixado sob as mais diversas propostas, seu objetivo motivacional original se manteve, mas tudo o que está depois da palavra “and” pertence agora ao universo da apropriação. Ele é um exemplo de meme que conseguiu transpor barreiras culturais (Figura 43), mantendo seu conceito original. Há mais de 10 anos, apropriações deste cartaz vêm sendo propagadas nas redes, espalhando-se por todo o mundo.

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Figura 41: Site gerador de memes do cartaz “Keep Calm and Carry On”.

Fonte: Keep Calm and Carry On, 2017.

Figura 42: Memes brasileiros do cartaz “Keep Calm and Carry On”.

Fonte: Google Imagens, 2017.

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Figura 43: Da esquerda para a direita, acima: meme holandês (“Fique calmo, mas seja rápido”); meme russo remixando o cartaz inglês com o desenho animado japonês Pokemon (“Fique calmo e Zzz”); meme italiano (“Fique calmo e siga em frente”); meme americano (“Fique calmo e celebre a parada gay”). Abaixo: meme húngaro (“Fique calmo e ame basset”); meme japonês (“Fique calmo e siga em frente”); meme brasileiro (“Fique calmo e diga sim”); meme mexicano remixando o cartaz inglês com o personagem Quico, do programa televisivo Turma do Chaves (“Fique calmo e não se misture com essa gentalha”).

Fonte: Google imagens, 2017.

Em seus estudos sobre o pós-colonialismo, Homi K. Bhabha (1988) sugere uma passagem da cultura como epistemologia (tendência a uma totalidade) para a cultura como lugar enunciativo, como produção irregular e incompleta de sentido e valor. Em um processo mais dialógico e liberal é possível abarcar deslocamentos e realinhamentos resultantes de articulações culturais e de movimentos de transição, que necessariamente acompanham qualquer tipo de transformação social. O presente enunciativo é um espaço cultural para a abertura de novas formas de identificação, que mexem com a continuidade das temporalidades históricas e com a ordem dos símbolos. Segundo o autor, esta estratégia discursiva é libertatória porque as identificações culturais emergentes são articuladas pelas próprias pessoas, como sujeitos da sua história e da sua experiência. Embora a questão levantada por Bhabha (1988) seja mais abrangente e trate dos efeitos políticos, filosóficos, artísticos e literários sofridos por países colonizados por grandes potências, podemos encontrar um paralelo nas mudanças ocorridas nos modelos de comunicação, ao passarem da difusão um-para-todos para o modelo em rede todos-todos, que possibilitou às pessoas participação ativa na produção de conteúdos e influência direta na sua propagação.

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3.2 A aceleração em interfaces fluidas e dinâmicas

Na cultura digital, uma exclamação como “Você não conhece o Snapchat60?!” em um momento anterior foi “Está todo mundo no Orkut61!” ou “Qual seu ID no ICQ62?”. Para além dos modismos, mídias sociais surgem de tempos em tempos, substituindo-se umas às outras, como novidades a serem consumidas, mas também como ferramentas de comunicação em rede, que apresentam e moldam padrões comportamentais, estéticos e de linguagem, sendo os mesmos absorvidos por enormes grupos de pessoas. Estas ferramentas vão sendo assimiladas no dia-a-dia, de forma que “Não estamos mais nos relacionando com um computador por meio de uma interface, e sim executamos diversas tarefas em um ambiente ‘natural’ que nos fornece sob demanda os diferentes recursos de criação, informação e comunicação dos quais precisamos.” (LÉVY, p. 38). Tais ferramentas condicionam certas práticas culturais. Ora, hoje achamos natural um mural digital, ou um grupo de WhatsApp, repleto de mensagens recheadas de memes, GIFs animados, figurinhas63 e Emojis64. Tornou-se um costume, assim como há bem pouco tempo atrás, era costume parabenizar um aniversariante através de uma ligação telefônica. À medida que as tecnologias de comunicação são popularizadas, elas são absorvidas nos hábitos cotidianos. Elas possibilitam novos mecanismos de relacionamento interpessoal e formas de expressão, mas também criam novas tensões. Voltando ao contexto da data de aniversário, antes das mídias sociais, uma pessoa recebia felicitações por telefonemas, cartas, e-mails, mensagens ou mesmo pessoalmente. Mas cada uma dessas mensagens era recebida isoladamente e o seu teor conhecido, a princípio, apenas pelas pessoas envolvidas no ato da felicitação. Aqueles que lembravam da data do aniversário provavelmente sabiam que outros também dariam suas felicitações ao amigo em comum, sem no entanto saber como ou em que momento, a menos que estivem todos reunidos. Hoje, quando entramos em uma mídia social no dia do aniversário de um amigo, este fato nos é

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Snapchat é um aplicativo de mensagens baseado em imagens efêmeras, no qual usuários podem tirar fotos, gravar videos, adicionar textos e desenhos à imagem que irão compartilhar, escolhendo o tempo que a imagem ficará disponível para os seus contatos. Após aberta, a imagem somente pode ser vista pelo tempo pré-determinado, que varia entre 1 e 10 segundos, no máximo. Após ser vista, a imagem é excluída do dispositivo e também dos servidores.

61 Orkut foi uma rede social filiada ao Google, criada em 2004 e desativada em 2014. Seu alvo inicial eram os Estados Unidos, mas a maioria dos seus usuários acabaram sendo os brasileiros e os indianos. No Brasil a rede social chegou a ter mais de 30 milhões de usuários, sendo depois ultrapassada pelo Facebook.

62 ICQ foi um dos primeiros programas de mensagem instantânea da internet, criado em 1996, inicialmente para usuários do sistema operacional Windows. Hoje ele está disponível para todas as plataformas.

63 Imagens gráficas estilizadas (estáticas ou animadas) utilizadas para expressar emoções e reações em conversas através do Facebook Messenger. Ver glossário, p. 149.

64 Pequenas imagens gráficas que representam expressões faciais, símbolos e objetos, utilizados em conversas on-line para substituir palavras ou complementá-las. Ver glossário, p. 148.

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imediatamente lembrado pela própria interface, como um estímulo à felicitação. Não bastando o lembrete, algorítmos tratam de nos exibir uma janela para o mural do aniversariante, na qual nos deparamos com todas as outras felicitações já recebidas. Podemos ler as mensagens, saber quem as mandou e a que horas. E podemos ver também a reação do amigo aniversariante para cada uma destas interações felicitosas. Este fenômeno de congratualção coletiva estimula a participação, estimula um certo voyerismo, mas funciona como um balizador para o teor das mensagens, podendo impactar sua espontaneidade, ou mesmo reprimi-las. Não pretendo generalizar esta prática, extendendo-a a absolutamente todas as pessoas – pois que ainda um número considerável de pessoas no mundo não está conectada à internet, ou possui um smartphone –, nem a todas as culturas, mas esta situação exemplifica um entre os tantos outros desdobramentos da estreita relação entre tecnologias digitais e práticas culturais.

Conforme contextualiza Manovich (2001), à medida que, ao final da década de 1990, a utilização da internet tornou-se lugar comum e o computador deixou de ser associado à uma ferramenta, mas à uma máquina universal de mídia – utilizada não apenas para criação, como também para armazenamento, distribuição e acesso a todo tipo de mídia – a distribuição de todas as formas de cultura tornou-se computadorizada (computer-based). Estamos cada vez mais em interface com dados culturais como textos, fotografias, filmes, músicas, mapas e etc.

“Em resumo, não estamos mais em interface com um computador, mas com a cultura digitalmente codificada65” (MANOVICH, p. 80). Entre o final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, Walter Benjamim (2008 [1936]) descrevia a percepção da vida em sociedade como temporal e cinética, fruto de uma modernidade que subvertia a possibilidade de uma visão contemplativa por parte do indivíduo enquanto observador. Já não havia, nos novos espaços urbanos, nas tecnologias ou nas funções econômicas e simbólicas das imagens e produtos daquela época, o “acesso puro a um objeto em sua unicidade; a visão é sempre múltipla, contígua e sobreposta aos outros objetos, desejos e vetores. Mesmo o frio espaço do museu é incapaz de transcender um mundo em que tudo está em circulação” (BENJAMIM apud CRARY, p. 28). Como aponta Crary (1990), a experiência da percepção não poderia ser pensada isolada do contexto e dos estímulos existentes em torno do objeto observado. O que possivelmente distingue a situação descrita por Benjamin de outros momentos anteriores na história, em relação à experiência da observação, é o volume substancial e crescente de estímulos visuais que passaram a disputar simultaneamente a nossa atenção. Podemos pensar que os conteúdos consumidos hoje nas interfaces digitais operam em uma mesma lógica, na 65 Tradução do autor. No original: “In short, we are no longer interfacing to a computer but to culture encoded in digital form.”

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qual a própria tela do computador ou do smartphone, que permitem que eles surjam diante de nós, é também carregada de outros estímulos. E a maneira como essas informações são reunidas e apresentadas, em rolagens infinitas que sobrepõem informações umas às outras, acaba por tornar-se condicionante da percepção que teremos delas. Que importância daremos a um conteúdo em relação ao conjunto infinito de outros assuntos potencialmente interessantes que se encontram escondidos no rolar do mouse? Ou ainda, como ser percebido em meio a tanta informação?

Segundo matéria publicada em 201466, pelo Facebook, existem 1.500 postagens, em média, que podem aparecer na timeline de uma pessoa, a cada vez que ela se conecta à plataforma (Figura 44).

Para pessoas com muitos amigos, ou que curtem muitas páginas, pode haver até 15.000 postagens, em potencial, a cada acesso. Mesmo considerando que a lógica dos algorítmos do Facebook opta por critérios de relevância para exibir apenas trezentas dentre cada 1.500 postagens, ainda assim falamos de um volume muito grande de informação, que provavelmente não será consumido em sua totalidade, mas que funciona como um mecanismo viciante, companhia garantida por horas e horas, enfim, um estímulo constante para aqueles que queiram testar limites.

Estes números referem-se especificamente ao conteúdo exibido pelo mecanismo de rolagem infinita da timeline, que pode ser consumido tanto dentro da própria interface do Facebook, de forma 66

Disponível em: <https://www.facebook.com/business/news/BR-Alcance-organico-no-Facebook-suas-duvidasrespondidas>. Acesso em 19/03/2017.

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resumida, quanto apontar para interfaces externas ao Facebook, por meio de hiperlinks. Cada conteúdo apresentado traz consigo uma diversidade de estímulos à interação, como os likes e as suas variações de emoções (

),

comentários, compartilhamentos, marcações de pessoas em fotografias, entre outros. Às muitas possibilidades de ação estimuladas na timeline, somam-se todos os demais estímulos que a margeiam dentro da própria interface. Cada um desses estímulos, por sua vez, constitui-se em mais possibilidades de interação, produção e acesso à informação: chamadas à publicação, agenda de aniversariantes, agenda de eventos, atalhos para grupos e páginas assinadas, muitos anúncios, uma janela ainda mais voyer que exibe, em tempo real, os conteúdos com os quais seus contatos estão interagindo, ou a janela incorporada do Messenger, que exibe quem está disponível para conversa (Figura 45). Estas são algumas entre as várias distrações disponíveis em uma única mídia social, que por sua vez, é uma entre as tantas interfaces abertas por uma pessoa que passe o tempo considerável que passamos atualmente diante de telas digitais. Assim como o flâneur identificado por Benjamin (2008 [1936]), a andar pelas calçadas dos grandes centros, estamos nós passeando entre as múltiplas telas digitais, também expostos

a

novas temporalidades, velocidades e experiências de fluxo e obsolescência, a uma nova densidade e sedimentação da memória visual. Seguimos como Figura 44: Timeline do Facebook, no dia 3 de maio de 2017.

Fonte: Acervo da autora.

consumidores móveis “de uma sucessão incessante de imagens ilusórias semelhantes a mercadorias” (CRARY, p. 29).

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Vemos o desejo pelo novo, apontado por Bauman (1999) em relação à sociedade de consumo, na ânsia por novas informações, que reflete-se no consumo maior e mais frenético de conteúdos nas timelines das mídias sociais. Estas interfaces funcionam como “interfaces culturais” (CRARY, 1990), através das quais acessamos os mais diferentes objetos culturais, nos relacionamos e interagimos com a nossa cultura.

Figura 45: Interface do Facebook, na qual cada detalhe é projetado para estímular a interação.

Fonte: Acervo da autora.

Todas as referências nelas encontradas vão formando os repertórios que servirão de base para conversas em redes sociais, de forma que recorrentemente acabem retornando às timelines, sob variadas abordagens, o que se manifesta de forma ainda mais evidente nos remixes dos memes de internet. A relação que tecemos com estes assuntos, e como iremos

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relacioná-los no conjunto de informações que populam nossos repertórios pessoais, segue a lógica e a velocidade das redes. Falamos de um assunto enquanto os grupos dos quais fazemos parte estão falando sobre ele e mudamos de assunto quando um novo é trazido ao grupo. O tempo pode variar de um para outro, mas ele inevitavelmente estará refletido no tempo de rolagem das timelines. O que é curioso em relação à operação dos memes de internet neste fluxo, é que muitos deles acabam retornando à pauta, em curtos ou longos espaços de tempo, não necessariamente sob a mesma abordagem original do seu surgimento, mas remixados e recontextualizados ao ponto de trazerem do assunto que os originou apenas uma imagem, um traço de abordagem ou uma expressão derivada. O assunto em si pode não voltar, mas traços dele, gravados na memória coletiva, aparecem como ferramentas ou máscaras a serem usadas por aqueles que desejem comentar os novos assuntos que as mídias sociais, cedo ou tarde, colocarão em pauta.

3.3 Conexão em tempo real

Se de um lado temos mercado e sociedade funcionando sob a lógica do consumo acelerado e da obsolescência programada, de outro temos como ferramentas de comunicação e de relacionamento social, interfaces ágeis e dinâmicas projetadas para encurtar espaços, minimizar o tempo e estimular a participação em massa. A internet espalha-se por uma infinidade de objetos, em gadgets67 que nos acompanham por onde vamos. Estamos interconectados todo o tempo, a cada instante. E, portanto, estamos suscetíveis a um enorme volume de informação a nos pedir atenção. Se não podemos atender a todos os anseios de atenção que recebemos, podemos escolher alguns privilegiados a dividerem-na. Nossa atenção está hoje partilhada em abas, aplicativos e aparelhos, que ligados simultaneamente, nos permitem participar virtual e coletivamente de tantos quantos acontecimentos quisermos, comentando-os e interagindo com os demais participantes que em torno deles se agrupam.

Tornou-se costume durante transmissões ao vivo, que as pessoas estejam conectadas à internet, utilizando um segundo aparelho (segunda tela), para através dele postar seus comentários durante as transmissões. Uma pesquisa do Conectaí Brasil68, plataforma web do

67

Aparelhos eletrônicos portáteis como smartphones, tablets ou relógios inteligentes, com funções práticas específicas. Ver glossário, p. 149.

68 Fonte: Correio Braziliense, 2015.

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instituto Ibope, que estuda hábitos e costumes dos internautas brasileiros, revelou que, em 2015, entre mil pessoas entrevistadas em todo o país, 72% disseram acessar mídias sociais enquanto assistem a programas televisivos. Campeonatos esportivos como a Copa do Mundo de Futebol ou as Olimpíadas; prêmios internacionais, do Nobel ao Oscar; o final de um reality show ou de uma novela; todos estes têm em comum o fato de durante suas transmissões, serem comentados por seus públicos em tempo real. Podemos ainda estender esse comportamento àquelas pessoas que de fato estão presentes nos espaços físicos destes acontecimentos, trasmitindo-os e comentando-os; Esse volume de conversas nas redes é tão significativo, que hoje algumas novelas brasileiras têm gravadas mais de uma possibilidade de final, de forma a poderem responder à expectativa do público, que é acompanhada e analisada pelas emissoras durante a sua transmissão. Para além de saber se as pessoas assistem ou não a um conteúdo, gostam ou desgostam do mesmo, a análise destas conversas costuma ser rica em feedbacks e insights, à medida que o público não apenas comenta, mas cria e compartilha novos conteúdos a partir dos produtos que consome. Surgem ideias originais para novos produtos, remixes que conectam e criam relações com outros produtos e marcas, em uma troca orgânica e espontânea, que estabelece conexões entre a intenção dos produtores e a expectiva dos consumidores, através da colaboração. Dessa forma, o usuário não está no centro, ou sendo observado de longe. Ele está ao lado, interferindo diretamente no resultado final do produto que será apresentado.

A participação das pessoas ajuda a guiar, ou mesmo a definir, conteúdos produzidos pelos grandes veículos de mídia, e esses conteúdos muitas vezes acabam sendo absorvidos e utilizados pelos mesmos em sua íntegra, pois através do seu conjunto é possível tecer a narrativa de um acontecimento. Não por acaso, encontramos hoje, nas editorias de jornais, retrospectivas de eventos populares contadas através de memes de internet (Figura 46). Estas narrativas refletem a visão coletiva dos acontecimentos, e organicamente acabam por apontar aspectos que ficam ressaltados em sua história, pelo menos no que diz respeito ao imaginário popular. Assim como descreveu Barthes, em relação às transmissões radiofônicas durante as manifestações estudantis de maio de 1968, na França, que a narração de um repórter a cobrir ao vivo um acontecimento misturava-se ao mesmo, ao ponto de não poder ser dissociada do mesmo em seu “regime simbólico” (BARTHES, 2004 [1984]), também as narrativas construídas pelos veículos de mídia e pelas pessoas, juntas e misturadas, passaram a compor o registro simbólico dos acontecimentos, materializado na escolha coletiva das memórias que o compõem.

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Figura 46: Memes usados como tema de matérias em três veículos jornalísticos.

Fontes: Exame, 2014; O Dia, 2015; e Zero Hora, 2016.

Se já se podia pensar na ideia de tempo real com a transmissão ao vivo pela rádio ou mesmo pela tv, com a internet e suas ferramentas de comunicação ampliou-se o potencial de participação e a aglomeração em torno dos acontecimentos, de forma que muito mais pessoas passaram a interagir como se estivem lado a lado. E ampliaram-se também os assuntos a ganharem visibilidade. Se reality shows televisivos já tratavam de explorar o voyerismo, confinando pessoas comuns em ambientes monitorados e assisitidos em tempo real, vídeos e imagens caseiras somam-se a esta temática explicitando o interesse do público muito além dos estúdios profissionais. O evento #ShowDosAtrasados2015, analisado no capítulo 5, nos mostra como é possível montar-se um espetáculo em tempo real, criado e assistido simultaneamente por um grande grupo de pessoas, através da internet, a partir das imagens de uma cobertura jornalística, com data e hora para acontecer. “A cultura de massa é uma cultura de consumo, inteiramente fabricada para o prazer imediato e a recreação do espírito, devendose sua sedução em parte à simplicidade que manifesta” (MANOVICH, p. 210). Manovich (2001) identifica nos produtos culturais pós-industriais, o que chamou de “cultura clip”, referindo-se à maneira como são concebidos a partir de fórmulas já experimentadas, por processos de repetição de conteúdos, estruturas e estilos, de forma que a individualidade que apresentam em suas mínimas variações esteja enquadrada em esquemas típicos. A simplicidade, em se tratando do consumo imediato destes produtos culturais, é o que muitas vezes o torna possível, e o que, por sua vez, aproxima as pessoas comuns dos produtos, enquanto produtoras também. A mesma repetição de fórmulas, que facilita a produção de novos produtos culturais à velocidade prentendida para o seu consumo, é também fórmula de alto potencial memético, que estimula e encoraja a participação e o engajamento popular.

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Pensando com o entusiamo de Lévy, nos encontramos em um espaço aberto, animado por comunicações transversais, caótico e fractal, movido por processos de inteligência coletiva, no qual “a densidade dos links e a rapidez de circulação são tais que os atores da comunicação não possuem mais nenhuma dificuldade séria para compartilhar o mesmo contexto, ainda que essa situação seja ligeiramente escorregadia e muitas vezes confusa” (LÉVY, p. 118).

Neste espaço em movimento constante, memes de internet conectam indivíduos aos seus coletivos. E o compartilhamento de significados é determinante nos processos de ressignificação, que se estabelecem nestas conexões, quando conteúdos meméticos são reapropriados para dar sequência às conversas mediadas por redes digitais. Estas conversas vão desde a troca de mensagens entre pessoas e/ou grupos de amigos, até hashtags que reúnem milhares de pessoas em torno de um tema específico. Os memes de internet, enquanto resultado de múltiplas apropriações, partem da intenção de quem os produz, mas ganham significado conforme vão sendo consumidos nos grupos onde se inserem. Podemos tomar a Copa do Mundo de 2014 como exemplo de contexto em que a atenção de um grande volume de pessoas se voltou para um mesmo tema, ao mesmo tempo. Em um de seus momentos mais marcantes – a vitória da Alemanha sobre o Brasil, por um placar de 7 x 1 – o Twitter registrou o maior volume de postagens simultâneas até aquela data. O que se verificou no decorrer deste episódio foi uma conversa entre milhares de pessoas, mediada por hashtags, na qual os diálogos se davam quase simultaneamente à transmissão pela televisão. Se é possível montar uma retrospectiva do campeonato em memes de internet, é também possível, em um olhar ainda mais aproximado, montar uma restrospectiva específica da partida entre o Brasil e a Alemanha, na qual fica evidenciado um registro em tempo real dos principais lances da partida (Figuras 47 e 48).

Figura 47: Memes publicados durante o primeiro tempo da partida entre Brasil e Alemanha.

Fonte: Twitter, 2014.

88

Figura 48: Memes publicados durante o segundo tempo da partida entre Brasil e Alemanha.

Fonte: Twitter, 2014.

4. IDENTIDADES MEMÉTICAS EM FLUXO

No fluxo de circulação dos memes de internet, significados vão sendo construídos pelos coletivos, por processos de interação, no tempo de propagação das redes. Sua presença na memória social fica sujeita à constância desta circulação, à medida que o conhecimento no espaço das redes é continuamente reconstruído, complementado e decrescido de dados, por todas as pessoas que o alimentam. E quando falamos em um processo contínuo de construção de significados, falamos de “inteligência coletiva” (LÉVY, 1994): da colaboração entre muitos indivíduos em suas diversidades, na qual cada pessoa contribui com seu repertório de experiências vividas, reconhecendo que todas têm algum conhecimento, mas nenhuma tem o conhecimento completo de tudo. O resultado de processos colaborativos pode ser identificado no conjunto das contribuições individuais. A própria lógica em que se estruturam as mídias digitais funciona de maneira fractal e modular, à medida em que elas são compostas por muitos componentes, estes também, formados por componentes ainda menores, operando sob a mesma estrutura modular. Em menor ou maior escala, “Elementos de mídia, sejam eles imagens, sons, formas, ou comportamentos, são representados por coleções de amostras discretas (pixels, polígonos, voxels, personagens, scritps). Eles são combinados para formar objetos maiores, mas mantém sua identidade em separado” (MANOVICH, p. 51).

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Seguindo a dinâmica dos processos de construção coletiva e a lógica estrutural dos meios digitais, os memes de internet também se organizam a partir de seus conjuntos. São muitas e variadas as peças de mídia através das quais manifesta-se um meme de internet: imagens, textos, vídeos, sons, jogos, sites, e o que mais possa ser digitalizado e distribuído na internet. Mas para que toda essa variedade de peças pertença ao universo semântico de um meme, algo deve ser comum a todas elas: algo a ser repetido e passível de ser identificado em todas as peças criadas, mesmo considerando-se alterações e variações que venham a acontecer em torno do seu elemento comum ao longo da propagação. Algo a partir do qual significados possam ser criados. À esta característica comum, que reúne peças de mídia em uma coleção, agrupando-as como parte de um meme de internet, chamarei aqui de identidade memética.

Embora a temática de um meme possa variar tanto quanto varia a cultura humana, algumas motivações costumam ser identificadas com regularidade quando investigamos a formação de identidades meméticas: situações reais que tornam-se públicas, conteúdos veiculados em mídias de massa, modismos (sejam de comportamento ou de linguagem), estruturas narrativas e personagens reconhecidos no universo dos memes de internet. Posto um elemento comum em torno do qual o meme de internet será criado, todos os demais fatores relativos às peças que irão compôr sua identidade memética, seus processos e temporalidades tornar-se-ão imprevisíveis. O mapeamento do fenômeno em tempo real e o acompanhamento do seu desdobramento tornam-se necessários para a compreensão inicial das referências que o meme irá ativar, mas somente um distanciamento no tempo será capaz de mostrar com maior clareza o possível significado do seu conjunto. Uso aqui o termo “possível” por considerar que alguns significados são tão intrínsecos ao repertório de determinados grupos, que não fazer parte dos mesmos pode dificultar a compreensão mais precisa das suas reais motivações.

“Este é um ponto importante quando se trata de compreender a internet, as práticas on-line e o ’conteúdo’ on-line. Quase tudo disponível on-line tornase recurso para as mais diversas formas de criação de significados. Na maior parte dos casos, os significados criados não são inteligíveis para muitas pessoas ou, em alguns casos, não o são para uma grande maioria. Alguns podem ser compartilhados apenas por ‘iniciados’ em grupos de interesse bastante restrito ou ‘panelinhas69’” (LANKSHEAR; KNOBEL. p.5).

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Tradução da autora. No original: “This is an important point when it comes to understanding the internet, online practices and online ‘content’. Almost anything available online becomes a resource for diverse kinds of meaning making.

In many cases the meanings that are made will not be intelligible to people at large or, in some cases, to many people at all. Some might be shared only by “insiders” of quite small interest groups or cliques.”

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4.1 Coleções flexíveis e alteráveis

Memes de internet introduzem uma novidade na propagação de imagens, que se reflete em um aspecto essencial: eles são sempre “coleções” (SHIFMAN, 2014). Seu estudo é diretamente atrelado aos contextos em que ocorrem e, na alta velocidade de propagação que atingem, é difícil uma visão mais ampla do fenômeno em tempo real, sob o risco de perderem-se nuances que representam indícios da sua constante mutação. “O olhar do pesquisador se dá sempre em retrospecto, porque é assim que o conjunto ganha sentido”, afirma o pesquisador da área de estudos de mídia, Viktor Chagas (2015), para quem os memes de internet, enquanto construção compartilhada de significados, são uma experiência de memória social. O conceito de coleção, no entanto, não deve ser confundido com o de memeplexo, embora ambos tratem de agrupamentos. A diferença essencial diz respeito à maneira como os memes foram inicialmente definidos, a partir da visão biológica, como unidades de replicação cultural. Sob esta forma de enxergar um meme, ele seria uma unidade de ideia (uma canção, uma receita, um jogo) que se replica independentemente. E unidades de memes podem aumentar o seu potencial de propagação sendo replicadas em conjunto, como acontece no caso da religião (unidades de orações, de rituais, de mandamentos, etc.). Neste caso, temos um memeplexo: um agrupamento de unidades de memes que funcionam isolados ou juntos. Mas quando falamos em memes de internet, não devemos pensar em itens isolados, ou tampouco olhar para uma peça unitária de mídia como se fosse um meme. Um meme de internet é sempre uma coleção de peças digitais. Um meme de internet pode originar-se de uma mesma imagem que recebe diferentes legendas sobrepostas, por processos de apropriação, em variados momentos e contextos; e é também um fenômeno que consegue agrupar elementos muito distintos, que em um primeiro olhar poderiam não ser reconhecidos como um grupo, mas que surgindo no decorrer de um determinado contexto, ou abordando um tema em comum, acabam relacionando-se e criando significado em seu conjunto, formando uma coleção.

Poderíamos então pensar que um meme de internet é por si um memeplexo? Para tal, seria necessário que cada item que compõe o conjunto de um meme de internet, por sua vez, fosse capaz de replicar-se independentemente, bastando-se em si, o que de fato pode acontecer, mas não é verificado como padrão no fenômeno dos memes de internet. Algo mais próximo desta ideia talvez esteja no conjunto dos memes de internet produzidos ao longo da Copa do Mundo de 2014. Composto por muitas coleções de memes – praticamente uma coleção para cada partida ou episódio mais popular decorrido ao longo do torneio – este grande conjunto de

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coleções poderia ser entendido como um memeplexo, uma vez que cada coleção funcionou isoladamente, sendo propagada de forma independente (Figura 49).

Figura 49: Coleções de memes de internet, criadas durante as partidas da Copa do Mundo de 2014.

Fonte: UOL Copa, 2014.

Sob o ponto de vista das coleções, Shifman (2014) propõe 3 dimensões de um meme passíveis de serem imitadas pelas pessoas: o conteúdo (content); a forma (form); e a abordagem (stance). O primeiro é o próprio conteúdo de um texto ou informação, no que diz respeito a ideias e ideologias nele contidas. A forma é a encarnação física da mensagem, percebida pelos nossos sentidos. A terceira dimensão é apresentada como um novo olhar sobre o estudo dos memes, representando a maneira como as pessoas se colocam em relação à informação, seus códigos linguísticos, aqueles com quem irão compartilhá-la e os seus possíveis replicadores. Quando aplicamos estas dimensões ao conceito de identidade memética, conteúdo, forma e abordagem aparecem como os elementos comuns que, combinados em suas mais variadas possibilidades, em torno de uma ideia central, irão compôr a identidade memética de uma coleção. A abordagem, como característica passível de ser

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memetizada, é uma contribuição importante na definição de memes de internet proposta por Shifman (2014). Com base em conceitos retóricos e estudos de mídia, a abordagem pressupõe estruturas de participação para delinear quem estaria apto a participar de uma conversa, e como, mensagens-chave para dar o tom e o estilo da conversa, além de funções comunicativas fundamentais para a comunicação humana. Somando a abordagem à forma e ao conteúdo da mensagem, uma pessoa ao compartilhá-la, pode decidir o que imitar e o que alterar, em relação à orientação discursiva pretendida. Este aspecto dá visibilidade ao componente de intencionalidade humana, não previsto nos primeiros conceitos acerca dos memes.

Mas se os memes de internet configuram-se em uma linguagem amplamente repercutida em mídias sociais, o fenômeno é ainda pouco estudado e compreendido, principalmente no cenário da pesquisa científica. Diante da multiplicidade de exemplares, seu mapeamento é tarefa difícil, à medida que requer a definição de parâmetros, com base em estratégias de busca. “Um dos possíveis critérios, a relevância do meme, implicaria a determinação de parâmetros subjetivos de julgamento, envolvendo variáveis de difícil avaliação” (EMANUEL; RODRIGUES; CUNHA, 2015). Iniciativas de mapeá-los e/ou de organizá-los em conjuntos foram surgindo organicamente na internet, em sites geradores de memes como o Cheezburger70 (2007), o Memegenerator71 (2009) ou o Ragemaker72 (20092010); em sites de cultura digital, como o youPIX, que criou a Memepedia73 (2009), primeira base de dados brasileira sobre memes, alimentada editorialmente; e no site Know Your Meme74 (2007), que buscou sistematizar coleções de memes, de maneira aberta e colaborativa, criando uma metodologia base para classificar e padronizar submissões de dados por parte da sua comunidade. Como informações básicas a serem preenchidas, o site propõe: nome, imagem de exemplo, origem, e ano de surgimento; e campos abertos para detalhamento do processo de compartilhamento do meme pela rede, temas relacionados e links de referência. Embora tenha tornado-se uma das bases mais completas de referência sobre o fenômeno memético, o próprio site faz questão de destacar sua opção por não criar categorias específicas para agrupá-los sob estruturas e características estilísticas, apontando como motivo o caráter mutável desses objetos que vão sendo transformados ao longo do seu fluxo de apropriação, suscetíveis às atualizações constantes de recursos para geração de imagens. Já o site Museu de Memes75 (2015), que reúne vasto acervo de memes de internet circulantes em 70 71 72 73 74 75

Disponível em: <http://www.cheezburger.com/>. Acesso em 16/4/2017.

Disponível em: <https://memegenerator.net/>. Acesso em 16/4/2017.

Disponível em: <http://ragemaker.net/>. Acesso em 16/4/2017.

Disponível em: <http://youpix.virgula.uol.com.br/memepedia/>. Acesso em 27/4/2017.

Disponível em: <http://knowyourmeme.com/>. Acesso em 27/4/2017.

Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/>. Acesso em 27/4/2017.

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mídias sociais brasileiras, coletados desde 2011, propõe uma classificação através de cerca de 30 categorias, que funcionam como tags76, de forma que cada exemplar possa ser incluído em mais de uma categoria. O objetivo principal do site ao reunir esta coleção é o de registrar e estimular o pensamento teórico em torno do tema, de forma que uma classificação, embora difícil por seu caráter mutável, seja necessária como base para o pensamento teórico. Para Chagas (2015) – mesmo considerando-se os memes como gênero midiático, produção típica da era digital – é comum em tentativas de classificação, que seus conteúdos sejam avaliados a partir do seu formato gráfico. Quando a ideia de meme de internet é diretamente associada a subgêneros específicos, como image macros, exploitables, ou catchphrases, por exemplo, corremos o risco de enxergá-los como itens individuais e com significação própria, de forma que torna-se crucial entender que “memes não se tratam de unidades, peças avulsas e isoladas, com significado intrínseco” (CHAGAS, 2015). Eles são conjuntos, em movimento, de imagens e textos, frutos de múltiplas apropriações.

4.2 O humor nos memes de internet

Dentre as características de grande pontencial memético, o humor, em especial, aparece sempre associado aos memes de internet, ao ponto de os mesmos muitas vezes serem tomados por um tipo de piada popular da internet, ou por parte de uma “cultura do besteirol” (MUSEU DE MEMES, 2015). No questionário realizado durante esta pesquisa, quando indagados sobre boas oportunidades para usar memes nas conversas, 85% dos respondentes apontaram usá-los quando querem ser engraçados. 75% os utilizam para “zoar” algo ou alguém, o que, nas redes, costuma ser traduzido em brincadeiras, galhofas, pegadinhas e trolagens77. E 74% usam os memes para serem irônicos. Se, no resultado desta questão sobre intenções de comunicação, podemos identificar o humor como principal abordagem – confirmando as pesquisas realizadas por Shifman (2014) –, ele também mostrou-se uma característica percebida como inerente aos memes de internet na própria abordagem utilizada pelas pessoas ao compartilharem o próprio questionário em suas redes (Figura 50). Mesmo evitando intencionalmente usar a palavra meme para divulgá-lo – mas, talvez, por eu ter utilizado um personagem memético para ilustrá-lo – a associação com o humor apareceu nos 76

Palavras-chave usadas para agrupar arquivos, páginas e outros conteúdos na internet. Ver glossário, p. 152.

Versão abrasileirada do termo “trolling”, derivada de “trolling for suckers” (em tradução livre, “lançando iscas para trouxas”). Trolls têm por objetivo criar polêmicas e confusões nas redes sociais. Glossário, p. 152.

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compartilhamentos da postagem inicial de divulgação do questionário, que foi correlacionado a algo “divertido” de ser respondido.

Figura 50: Na coluna da esquerda, acima, capa do questionário e, abaixo, postagem inicial de divulgação.

Na coluna da direita, compartilhamentos do questionário.

Fonte: Acervo da autora, 2017.

Muitos dos fatores que aparecem associados ao potencial memético de um conteúdo, estão intrinsecamente relacionados aos elementos de construção da comicidade apontados por Bergson (2007 [1900]): pessoas comuns, em situações reais nas quais não tenham a intenção de serem engraçadas; atos falhos que chamem a atenção para o físico das pessoas, quando o que está em jogo é uma questão moral; a combinação de elementos incongruentes, em encontros improváveis; ou mesmo a sensação de superioridade diante de alguém que pareça estar em condições piores, são fatores que, combinados em estruturas aparentemente simples de serem entendidas, e repetidos muitas vezes, acabam despertando o riso nas pessoas.

Embora o humor seja, em si, um fator de alto potencial memético, é interessante notar que, em contrapartida, os demais fatores que estimulam a apropriação memética de conteúdos (pessoas comuns, simplicidade, repetição e excentricidades) também apresentam alto pontencial cômico, de forma que o humor acaba perpassando os memes de internet nas suas várias possibilidades de manifestação. Quando olhamos novamente para os memes “Senhora”, “Giovana do forninho” e “Já acabou, Jéssica?” – todos protagonizados por pessoas

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comuns, sem a intenção de serem engraçadas e em situações aparentemente corriqueiras, mas que as colocam em situação de inferioridade, chamando atenção para seus corpos e configurando-se excêntricas devido aos seus desdobramentos – vemos reunidas características de alto potencial memético que, por sua vez, são também potentes estímulos cômicos. Da relação estreita entre o potencial memético e o potencial cômico, deriva o entendimento equivocado de que memes de internet sejam sempre engraçados. Memes de internet não pressupõem o humor, mas os fatores mencionados anteriormente contribuem para que tal característica seja presente em sua grande maioria, principalmente quando consideramos o uso associado da ironia e do sarcasmo, como ferramentas de crítica social. Abordo esta e outras nuances da relação entre o humor e os memes de internet no estudo de caso do #ShowDosAtrasados2015.

Recursos de linguagem e estruturas narrativas encontradas em charges, cartuns e tiras, surgidos ao longo do século XIX, são constantemente revisitados pelos memes de internet que, embora criados e produzidos por pessoas comuns, mantém as mesmas temáticas, bebendo na temporalidade de notícias recentes e em fatos da atualidade, ou retratando situações corriqueiras do cotidiano da vida em sociedade. O resultado final dos memes é, em geral, tosco e cheio de ruídos, ou mesmo repetitivo em sua composição, por variar conforme a disponibilidade de acesso a ferramentas de edição. Mas, em certa medida, assim como nas charges, por exemplo, resulta também do tempo disponível para que não se perca um tema em pauta. E assim como os seus precursores, os memes de internet também recorrem ao humor.

Na cultura digital brasileira, o termo “zoeira” e as suas versões “zueira” ou “zuera” refletem um estado de espírito brincalhão e surgem associados à prática de produção de memes de internet, e à intenção de provocar risos, de forma desordenada e avolroçada, típica das dinâmicas coletivas que se dão em torno dos fenômenos meméticos. O termo é em si um meme (Figura 51) e aparece muitas vezes complementado pela expressão “não tem fim”, ou sua versão em inglês “never ends”, também característica do universo memético. Ao mesmo tempo em que reforça uma predisposição constante à brincadeira e ao divertimento, o bordão associado ao meme sugere também uma intenção velada por testar limites. Caso em que piadas, sátiras e paródias em forma de memes podem ser usadas para perseguições a pessoas e páginas na internet, ou para atrapalhar mobilizações, campanhas e outros eventos digitais, através de trolagens. Memes de internet têm um enorme potencial de engajamento e são potentes dispositivos para a propagação de ideias, mas quando utilizados como recurso para trolagens, tendem a acabar limitados, ou mesmo relacionados, a objetivos fúteis, inócuos, ou à simples zoeira. Esta tendência, no entanto, assim como todo conteúdo propagado em larga

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escala, está sujeita ao impacto de interferências e apropriações de consumidores-produtorespropagadores. Como veremos no capítulo seguinte, memes de internet são capazes de protagonizar mobilizações de impacto significativo em dinâmicas sociais, promovendo eventos que revelam seu poder de agência política na sociedade, sendo o humor uma das suas vertentes.

Figura 51: Memes com a temática da zoeira.

Fonte: Acervo da autora, 2017.

4.3 Engajamento e agência política

O engajamento via redes emerge em uma era na qual a influência das organizações políticas formais precisa ser exercida também nas mídias sociais. À medida que mais e mais pessoas compartilham suas opiniões e críticas com seus pares nas redes, as plataformas tecnológicas tornam-se palco para o engajamento político e social em torno de temas que acabam tomando lugar na agenda pública da política nacional. Nestas plataformas, energizadas pela ação digitalmente coordenada de milhares de pessoas, os memes de internet têm um papel

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importante: como mensagens personalizadas e compartilhadas facilmente por muitas pessoas, eles tornam-se ferramentas valiosas para estimular grandes volumes de pessoas a engajarem em movimentos e causas. Neste contexto, memes de internet estabelecem ligações entre o pessoal e o político, funcionando tanto como discurso crítico, como de banalização. “Eles combinam distinção e identidade, e parecem assumir, para si e à sua maneira, a tarefa de resolver o problema da adequação do discurso político aos novos meios” (CHAGAS, 2015).

Uma vez tendo como base estruturas compartilhadas que estimulam a variação, eles facilitam a participação em ações públicas coletivas, de forma que as pessoas ainda mantenham seu senso de individualidade, em uma espécie de “individualismo em rede” (SHIFMAN, 2014).

Estudos realizados em 1950, por Elihu Katz e Paul Lazarsfeld (1955), mostraram que pessoas levam em consideração as opiniões políticas de vizinhos, família e membros da comunidade, de forma que a influência pessoal se torna um aspecto crucial para a persuasão, principalmente em relação às mensagens da mídia de massa (KATZ e LAZARSFELD apud SHIFMAN, 2014). Conforme aponta Shifman, a influência aplicada ao contexto de um vídeo viral, por exemplo, está no seu número de vizualizações que torna-se em um índice de persuasão para a comunidade na qual circula, funcionando indiretamente como uma recomendação ou chancela, que lhe confere reputação digital. Um exemplo deste poder de engajamento pôde ser visto, em 2013, quando o Movimento Passe Livre se destacou no cenário político brasileiro ao participar da organização de protestos, em São Paulo e no Rio de Janeiro, contra o aumento das passagens de ônibus. As imagens da repressão policial contra manifestantes e jornalistas, nos protestos de junho, ganharam enorme visibilidade na mídia e nas redes sociais. Conhecidos como Manifestações dos 20 centavos, Manifestações de Junho ou Jornadas de Junho, estes protestos ganharam apoio popular e, em poucos dias, um grande número de pessoas foi às ruas para tomar parte em manifestações, participando dos novos protestos que foram surgindo em várias outras cidades. Em seu ápice, milhões de brasileiros estavam nas ruas protestando não apenas pela redução das tarifas e contra a violência policial, mas também por uma grande variedade de questões.

As manifestações no Brasil seguiram um processo de propagação semelhante ao de protestos ocorridos em outros países, como a Primavera Árabe (Oriente Médio e Norte da África), o Occupy Wall Street (Estados Unidos) e Los Indignados (Espanha), entre 2010 e 2011. A participação e o engajamento popular nessas manifestações refletiram-se nas mídias sociais, nas quais se fez circular uma infinidade de postagens, em que os memes de internet comunicavam posicionamentos políticos, opiniões e críticas à respeito do tema. Esta mobilização popular pôde ser acompanhada através de hashtags como #VemPraRua,

98

#NãoÉPelos20Centavos, #OGiganteAcordou e #NaoVaiTerCopa, criadas para representar essas causas e os seus desdobramentos, em nível nacional ou local (Figuras 52, 53, 54 e 55).

Hashtags também podem funcionar como memes de internet, à medida que em torno delas há apropriações e variações de mensagens. Mas como sua utilização é bastante abrangente e vai além dos memes, nesta pesquisa, apenas focalizei seu papel como elemento agrupador através do qual foi possível localizar e identificar os conjuntos de identidades meméticas analisados.

Figura 52: Acima, memes “Vem pra rua”; abaixo, memes “Não é pelos 20 centavos”.

Fonte: Google imagens, 2016.

Figura 53: Acima, memes “Vem pra rua”; abaixo, memes “Não é pelos 20 centavos”.

Fonte: Google imagens, 2016.

Figura 54: Memes “O gigante acordou”.

Fonte: Google imagens, 2016.

99

Figura 55: Memes “Não vai ter copa”.

Fonte: Google imagens, 2016.

A característica do humor, bastante manifesta em memes de internet, é também um recurso utilizado para expressar opiniões políticas. Mas é no cenário político que encontramos o viés mais sério dos memes de internet. Se estamos falando de ideias que são apropriadas e compartilhadas de pessoa em pessoa, por representarem visões pessoais e terem um significado comum para um determinado grupo, estamos falando de algo que reflete a própria vida em sociedade e, portanto, não passamos o tempo inteiro rindo de tudo. Somos sérios, principalmente quando isto se torna necessário, o que não significa que ao sermos sérios não sejamos positivos. No entanto, conforme Blackmore (2000) faz questão de ressaltar, devemos considerar que mesmo ideias negativas e/ou discriminatórias podem ter tanto potencial memético quanto ideias positivas. No que tange a questões político-partidárias, segundo Chagas (2015), memes funcionam como excelentes termômetros eleitorais, pois dinamizam e dimensionam a opinião pública: “Funcionando como comentários situacionais, escárnio ou manifestação de apoio explícito, os memes são capazes de descortinar de forma bastante evidente o comportamento das massas em um cenário eleitoral” (CHAGAS, 2015).

No dia 27 de março de 2017, o ministro da cultura apresentou mudanças a serem implementadas pelo Ministério da Cultura (MinC) na Lei Rouanet. Durante a coletiva, o secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, José Paulo Martins, que também participava do anúncio comentou: “Recebia milhares de vômitos [figurinhas] em meu Facebook, mas esses vômitos me ajudaram a pensar nas melhorias para a sociedade brasileira78” (Figura 56). Se o secretário buscou demonstrar uma reação positiva diante das críticas recebidas, assumindo publicamente uma suposta influência da manifestação na definição das mudanças, fato é que o meme conhecido como Vomitaço, há um ano, já vinha provando o potencial das mobilizações em mídias sociais. Entre os dias 10 e 12 de maio de 2016, na ação popular de protesto que

78

Fonte: UOL Entretenimento, 2017.

100

tomou conta do Facebook durante a votação em plenário pelo Impeachment da então

presidenta

do

Brasil,

Dilma

Rousseff, figurinhas de vômito começaram a aparecer aos milhares em comentários na página

do

Partido

Democrático

do

Brasileiro

Movimento (PMDB)

no

Facebook, partido que rompeu a aliança com o governo deposto, especialmente em postagens protagonizadas pelo então vicepresidente, Michel Temer (Figura 57). Em pouco mais de 48 horas, foram cerca de 580

mil

comentários

com

vômitos,

distribuídos por algo em torno de 30 postagens do partido79. A ação espontânea, Figura 56: Vomitaço na página do Ministério da Cultura (MinC), no Facebook.

Fonte: UOL Entretenimento, 2017.

no primeiro momento materializada como um protesto popular, tornou-se um meme de internet (Figura 58), e posteriormente acabou

por

movimento,

configurar-se com

página

em

um

própria no

Facebook – alcançando semanalmente 4,5 milhões de pessoas80 – através da qual são organizadas campanhas e protestos pontuais, contra páginas de instituições e figuras públicas, principalmente do cenário político e cultural brasileiro. Como fenômeno muito recente em termos de articulação política, manifestações deste tipo, originadas em mídias sociais e que utilizam recursos de linguagem menos formais como memes de internet, não contam com o distanciamento histórico necessário para uma avaliação mais contundente da sua agência em termos de resultados práticos. Mesmo não tendo sido capaz de impedir o Impeachment da presidenta, o efeito de agência de uma manifestação deste tipo também deve ser considerado quando “desestabiliza a imagem pública de seus alvos, na medida em que os expõe à crítica, ao ridículo, e fomenta a reflexão de outros internautas, em princípio alheios ao noticiário, sobre o posicionamento político dessas figuras” (CHAGAS, 2016).

79 80

Fonte: CHAGAS, 2016.

Fonte: CHAGAS, 2016.

101

Figura 57: Vomitaço na página do PMDB. Fonte: Google imagens, 2016.

Figura 58: Vomitaço em memes de internet.

Fonte: Google imagens, 2016.

Durante o processo de votação do impeachment, memes de internet foram usados para expressar os mais diversos posicionamentos políticos, como mostram os exemplos abaixo. A

102

política, tanto no sentido da construção social de poder, quanto no sentido de sistema de governança, está profundamente ligada à produção e ao consumo de memes de internet. A participação política, uma vez ampliada para além de votos e filiações a partidos, passou a incluir, como práticas corriqueiras, comentários em blogs e até mesmo postagens de piadas sobre figuras políticas. Memes e virais têm um papel importante no cenário da participação política baseada na internet – desde campanhas populares àquelas veiculadas pela grande mídia –, pois cumprem funções de persuasão, ação e discussão (SHIFMAN, 2014), contribuindo como estímulos potentes, capazes de influenciar e impactar diretamente em tomadas de decisão. Seu poder de agência, em maior ou menor escala, se faz presente mesmo sob camadas superficiais de diferentes tipos de humor com os quais possam apresentar-se.

Figura 59: Memes que refletem diferentes posicionamentos políticos em relação ao governo brasileiro.

Fonte: Google imagens, 2016.

103

5 #SHOWDOSATRASADOS2015

Neste capítulo, apresento um estudo de caso realizado junto ao projeto de pesquisa de extensão Estudos da Imagem nas Redes Sociais (ESDI UERJ), em parceria com o professor, coorientador desta pesquisa, Ricardo Artur Pereira Carvalho. Inicialmente motivados pela tentativa de compreender a estreita relação do humor com os memes de internet, buscamos um evento que, embora constituído de situações de fracasso e dramas pessoais, mostrou-se uma fonte rica e aparentemente inesgotável de divertimento para aqueles que o acompanhavam, resultando em uma intensa produção de memes. Transformado em entretenimento não apenas por veículos de mídia, mas também, e principalmente, pelas pessoas, o #ShowDosAtrasados2015 acabou revelando aspectos da produção e consumo de cultura – dentro e fora das mídias digitais – que evidenciaram o papel atuante e decisivo das pessoas enquanto consumidoras-produtoras-propagadoras de conteúdos e produtos de mídia.

O evento deu materialidade à inversão da lógica um-para-todos de produção de produtos de entretenimento, tendo nascido e ganhado força (e forma) primeiramente na cultura digital, para somente depois ser apropriado por grandes veículos da mídia de massa. E, além disso, evidenciou também o caráter de imprevisibilidade sobre o gosto popular, aspecto que impacta diretamente no consumo e na circulação de produtos de mídia, sejam eles amadores ou profissionais. Ao acompanhar o #ShowDosAtrasados2015 através dos memes de internet, pudemos identificar uma narrativa sendo contada simultaneamente por muitas pessoas através de um processo no qual elementos foram sendo gradativamente acrescentados às composições das peças, à medida que mais informação sobre o evento circulava nas redes.

5.1 Repetição e deslocamentos

24 de outubro de 2015, primeiro dia de prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). Às 13 horas os portões se fecham e começa o desespero de quem não chegou a tempo.

Pessoas pulam muros, quebram grades, rolam por debaixo de portões automáticos e discutem com os seguranças, que as impedem de prosseguir. Algumas calcularam mal o tempo, outras tiveram dificuldades em achar os locais corretos. Todas terão de esperar mais um ano para tentar vaga em uma universidade (Figura 60). E se sabemos quem são e quais as suas

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histórias, isso se deve à enorme cobertura midiática em torno deste evento, que as apresentou em uma espécie de reality show jornalístico, transformado em entretenimento nacional. Assim como neste gênero de programa televisivo, que é baseado na vida real de pessoas comuns, a realidade de quem chegou atrasado para a prova do Enem era a situação a ser acompanhada por milhares de espectadores atentos às timelines das mídias sociais. Além da hashtag #Enem2015, que apareceu associada a diversos assuntos relativos ao exame, uma outra hashtag foi criada especialmente para acompanhar o momento de fechamento dos portões. A viralização de #ShowDosAtrasados2015 retrata a ansiedade por parte das pessoas em relação a um evento cotidiano, tal qual a que se daria em torno de um capítulo final de novela.

Figura 60: Pessoas chegando atrasadas para as provas.

Fonte: Globo News, 2015.

Desde 2008, a hashtag #enem (acrescida do ano) começou a ser usada para se falar sobre o assunto. Perguntas das provas são tema recorrente, do qual derivam questões sobre acertos, erros, marcação de cartões de respostas e toda uma sorte de projeções futuras de sucesso e de fracasso. Até 2014, pessoas chegando atrasadas para as provas eram mais um entre os muitos assuntos vinculados à hashtag. Em 2015, uma plateia se formou em torno deste subproduto do evento, com data e horário marcados para acontecer: o fechamento dos portões. Durante todo o primeiro dia de prova, a hashtag #ShowDosAtrasados2015 esteve entre os assuntos mais falados no Twitter, no Brasil, chegando a figurar no topo da lista de trending topics81 do microblog.

Uma constante identificada na profusão de mensagens em torno deste tema, seja através das pessoas ou da própria mídia de massa, foi a predominância do humor. Embora uma iniciativa educacional como o Enem seja de extrema importância social e política para o país, e a situação enfrentada por aqueles que perderam a prova seja, em si, frustrante e 81

Lista em tempo real das palavras mais usadas em postagens no Twitter. Ver glossário, p. 152.

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desanimadora, as pessoas viram nela uma oportunidade de piada. Dentre as diversas possibilidades de abordagem crítica para o tema, seja pelo viés social ou político, a seriedade foi deixada de lado e preferiu-se rir de tudo aquilo.

E sendo o humor um fator de grande

potencial memético, a ampla visibilidade dada pelos veículos jornalísticos funcionou como um vasto cardápio de imagens e de histórias para apropriações. Os atrasados eram o tema principal da mobilização nas mídias sociais, nas quais muito também se criou em torno de quem estava apenas assistindo (Figura 61).

Para entender a predominância do humor na reação das pessoas a este evento – a princípio corriqueiro, mas que ganhou a relevância de um grande acontecimento – e o seu consequente reflexo nos memes de internet que circularam nas conversas que se deram em torno da hashtag Figura 61: Memes postados minutos antes do fechamento dos portões.

Fonte: Twitter, 2015.

#ShowdosAtrasados2015, buscamos pistas nos elementos de fabricação do risível propostos por Henri Bergson (2007 [1900]) a partir do teatro de variedades, e na crítica de Guy Debord (2013 [1967]) à espetacularização de eventos cotidianos.

O primeiro, em “O Riso – Ensaio sobre a significação da comicidade”, identificou aspectos e estruturas de construção da linguagem que transformam determinados acontecimentos humanos em fontes de comicidade. Já o segundo, em “A sociedade do espetáculo”, viu na espetacularização de determinados aspectos da vida social e cultural, uma forma de dominação burguesa a partir de processos de alienação pelo entrentenimento.

Observando imagens extraídas da cobertura jornalística do primeiro dia de provas do Enem, encontramos pessoas correndo em desespero, chorando, gritando, caindo no chão, esmagadas entre grades de ferro ou embaixo de portões. Estas narrativas imagéticas nos induzem a relacioná-las a sentimentos de ordem mais dramática, como o sofrimento ou o pesar. Por meio da empatia, seríamos capazes de nos colocar em seus lugares, conectando-nos

106

emocionalmente, de forma que tal ressonância sentimental nos impediria de rir destas pessoas.

Mas não foi isso o que aconteceu em relação aos atrasados do Enem, segundo a maioria das postagens feitas no Twitter e no Facebook, as quais nos servem de base para esta análise. De que forma então estas situações aparentemente tristes, ou inaceitáveis socialmente, acabaram despertando o riso em tanta gente?

Em seus estudos, Bergson (2007 [1900]) identificou mecânicas de automatismo em hábitos sociais humanos, nos quais a comicidade se encaixa como uma espécie de moldura, ficando apenas na superfície das pessoas, naquilo que existe de comum entre elas, e as conecta. No que diz respeito ao comportamento social, esse automatismo estaria diretamente relacionado à forma humana e ao corpo, às suas distrações, aos movimentos e gestos que se repetem, que podem ser imitados. As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na medida em que o corpo nos sugere uma mecânica. Certo movimento de braço, perna ou cabeça, sempre o mesmo, que se repita periodicamente e que seja suficiente para distrair nossa atenção; e uma vez que a repetição o torne previsível, se, no momento em que o esperamos, ele acontece, o riso surge involuntariamente, pois neste mecanismo que funciona automaticamente, está a comicidade (BERGSON, 2007 [1900]). Desviando nossa atenção para a materialidade do corpo (comum aos seres humanos), em detrimento da vitalidade intelectual e moral que nos diferencia, certos automatismos podem tornar cômicos “incidentes que chamam atenção para o físico de uma pessoa quando o que está em jogo é uma

questão moral” (IDEM, p. 43). A ideia de

automatismo proposta por Bergson é verificável nas imagens que registram os atrasados no momento em que encontram os portões se fechando, ou já fechados.

Entendendo a pontualidade como representação do que é socialmente esperado dos indivíduos inscritos no exame, uma vez que estes não sejam capazes de corresponder a esta expectativa, colocam-se diante de uma questão moral em relação à sociedade da qual fazem parte, demonstrando fracasso. Mas supondo-se Figura 62: Atrasados se jogam contra portões, para entrar nos locais de prova.

Fonte: G1 Educação, 2015.

que existiu neste fracasso uma questão moral – diante da qual eram esperadas explicações ou retratações por

107

parte dos atrasados – as imagens produzidas pela cobertura jornalística desviaram a atenção para o aspecto físico das pessoas lançando seus corpos contra portões e grades, na tentativa desesperada de passar pelos mesmos, em vários locais de prova diferentes, de maneira repetida e esperada (Figura 62).

Ao longo de toda a cobertura jornalística aos atrasados do Enem 2015, algumas cenas se repetiram sistematicamente, no que poderíamos chamar de uma espécie de automatismo narrativo. Embora tais situações tenham sido absolutamente reais, foram apresentadas como um quadro cômico, na qual imprevisibilidades eram parte de um cenário maior e previsível. A cena, os portões de entrada dos locais das provas. Do lado de dentro, os seguranças, do lado de fora, os jornalistas. As personagens, estudantes que chegam para fazer as provas. Tudo se passa nos poucos minutos que antecedem as 13h, repetindo sistematicamente uma mesma situação: estudantes correm para conseguir passar pelos portões. Entre correrias, pulos e quedas, corpos se lançam nos espaços ainda abertos de portões que se fecham. Estudantes não conseguem entrar. Alguns ficam presos entre grades e são devolvidos para o lado de fora pelos seguranças, ao que são cercados por jornalistas. Desespero e choro. Nesta situação, que acontece em todos os outros portões, podemos ver o humano servindo de espetáculo ao próprio humano, em uma articulação mecânica de acontecimentos onde as pessoas não têm a intenção de serem engraçadas e a situação cômica é fruto de uma causa natural e espontânea (Figura 63). Três outros elementos identificados neste evento também apresentam alto potencial memético: pessoas comuns como personagens centrais (com suas reações e expressões expontâneas); cenas reais (nas quais ambientes e situações não podem ser controlados); e a repetição (nas situações, expressões ou no próprio conceito de atraso).

Figura 63: Imagens que se repetem em diferentes locais de provas. Acima, closes em rostos de pessoas chorando; abaixo, pessoas em tentam pular os portões fechados.

Fonte: Google imagens, 2015.

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Algumas situações que não são cômicas em si, quando deslocadas para outros contextos, ressignificadas e apresentadas em repetição, acabam tornando-se engraçadas. As mesmas imagens que, nas cenas observadas anteriormente, originalmente não apresentavam aspectos de comicidade, despertaram o riso em milhares de pessoas que acompanhavam o #ShowDosAtrasados2015, manifestando-se em postagens nas mídias sociais (Figura 64).

Figura 64: Postagens contendo imagens da cobertura jornalística, ressignificadas como memes de internet.

Fonte: Facebook, 2015.

Tais cenas evidenciam a espetacularização de dramas individuais que, separados de seus contextos originais, tornaram-se mercadorias de consumo cultural. Como em um espetáculo, a derrota física dos atrasados no deslocamento espaço-tempo compreendido entre suas casas e o local das provas tornou-se uma espécie de competição a ser assistida em rede nacional, formatada em moldes de reality show pela cobertura jornalística (Figura 65) e consumida pelas pessoas como produto de entretenimento. Analisando este cenário a partir da crítica de Guy Debord, nos vemos apresentados a um fluxo de imagens – representações separadas da realidade e tratadas isoladamente – que nos entretém na qualidade de espectadores. A diversão é possível graças ao processo de espetacularização, que separa as imagens da realidade e as converte em mercadorias (DEBORD, 2013 [1967]). Na produção de memes de internet, assim como na fabricação da comicidade ou do espetáculo, o contexto se torna um aspecto crucial, pois ao deslocarmos uma imagem do seu contexto original, nos desconectamos emocionalmente, tornando-nos insensíveis à sua verdade, o que permite que nos sintamos à vontade para alterá-la, ressignificá-la, rirmos dela e a consumirmos como um produto cultural (Figura 66).

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Figura 65: Espetacularização do evento na cobertura do portal de notícias Terra.

Fonte: Facebook, 2015.

Figura 66: Apropriação de imagem da estudante atrasada, que virou meme no primeiro dia de prova, como alerta para o segundo dia.

Fonte: Facebook, 2015.

A grande vigilância em torno dos atrasados, deflagrada no riso coletivo das mídias sociais, também teve o seu paralelo físico na presença de pessoas que foram aos locais de prova especialmente para acompanhar de perto o desespero de quem não conseguiria chegar a tempo. A plateia presente fisicamente em torno do #ShowDosAtrasados2015 contribuiu para a proliferação de imagens do evento, ampliando as fontes de informação e trazendo novos pontos de vista a serem somados ao que era veiculado pela cobertura jornalística (Figura 67).

Mas se, enquanto espectadores, eles estavam ali também no papel de produtores de informação, o espetáculo ao qual assistiam e para o qual contribuíam – dentro de sua lógica própria de aproveitamento da realidade como produto de consumo – os trouxe para dentro do espetáculo, dando-lhes o papel de coadjuvantes. Desta forma, eles também viraram pauta na cobertura jornalística e, por consequência, passaram a habitar o vasto repertório midiático que se apresentava para os produtores de memes de internet (Figura 68).

Figura 67: Pessoas que foram aos locais de prova, registrando aqueles que chegaram atrasados.

Fonte: G1 Educação, 2015.

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Figura 68: Estudante que foi a um local de prova assistir aos atrasados. À esquerda, como pauta da cobertura jornalística; à direita, como meme de internet.

Fontes: UOL Educação, 2015; Twitter, 2015.

5.2 O riso coletivo

Reconhecendo o papel dos meios de comunicação de massa na formação da sociedade do espetáculo – durante a modernidade caracterizado pelo modelo de transmissão um-para-todos – Debord afirma que este papel é apenas seu aspecto mais visível e superficial, mas que redefine a cultura, pois “o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada por imagens” (DEBORD, 2013, p. 14). Por outro lado, entendendo o riso como o riso de um grupo, como tal, ele corresponde às exigências da vida em comum e traz consigo uma significação social. Para Bergson, o riso precisa de eco, de forma que nele esteja contida uma “segunda intenção de entendimento, quase de cumplicidade com outros ridentes, reais ou imaginários” (BERGSON, 2007, p. 5). Assim como entre os espectadores de uma plateia, que se divertem e riem juntos diante de um espetáculo, também a dinâmica na qual se inserem os memes de internet pressupõe o compartilhamento de significados entre as pessoas conectadas ao seu fluxo de circulação nas mídias sociais. Desta forma, poderíamos incluir entre os ridentes reais ou imaginários propostos por Bergson, os ridentes virtuais, como representantes das conexões sociais no ciberespaço. A diferença crucial no papel das pessoas em relação aos memes de internet está no fato de os espectadores terem passado a ser também produtores e propagadores destes conteúdos, não apenas consumindo os produtos culturais – tal qual na época em que o conceito de Debord foi proposto – mas encontrando

111

espaço para intervir nas mensagens e redistribuí-las, podendo até mesmo alcançar um número de pessoas semelhante ao do alcance das mídias de massa.

Ao observar as manifestações de Maio de 1968, na França, Roland Barthes (2004) identificou que a “palavra informativa” contida na cobertura jornalística – representada por seus repórteres e por todos aqueles que do outro lado dos dispositivos de rádio acompanhavam a cobertura simultânea – foi tão misturada ao próprio acontecimento que tornou-se seu sentido imediato e consubstancial. Para ele, “nos termos da cultura ocidental, em que nada pode ser percebido privado de sentido, ela [a palavra informativa] era o próprio acontecimento” (BARTHES, p. 137). Não sendo possível dissociar, no que tange à percepção, o acontecimento em si do repertório criado pelas pessoas, uma vez misturados eles acabaram por construir juntos o seu significado. E não havendo distanciamento suficiente no tempo para que o acontecimento pudesse ser construído como história antes de ser consumido, rompeu-se o controle sobre o que haveria de ficar registrado, de forma que todos com acesso ao acontecimento tornaram-se coautores da sua narrativa. Como veremos a seguir, a ideia de construção coletiva de um acontecimento pode ser aplicada ao fenômeno em torno do #ShowDosAtrasados2015, a partir dos memes de internet produzidos durante o evento.

Desde 2011, o blog independente Não Salvo, referência de troll na internet brasileira, publica anualmente a irônica lista “9 notícias que você deveria ter visto no Enem”, que reúne matérias publicadas nos mais diversos veículos jornalísticos. Em meio aos títulos inusitados ali apresentados, os atrasados foram gradativamente ganhando relevância. A partir de 2013, eles começaram a aparecer em vídeos compilados de “melhores momentos”, reunindo imagens gravadas tanto por amadores quanto por cinegrafistas profissionais. Segundo registros do blog, a lista de 2011 recebeu 232 likes de Facebook. A lista de 2012 apresentou um aumento significativo pulando para 19 mil likes, e já em 2015 esse volume mais que dobrou, chegando aos 40 mil likes. Considerando que o botão like oferece a possibilidade de compartilhamento com toda a rede pessoal do Facebook, esses números representam o enorme potencial de visibilidade destes conteúdos.

O regime simbólico sob o qual se dá um acontecimento, nas palavras de Barthes (2004 [1984]), “está estreitamente ligado ao grau de integração desse acontecimento na sociedade da qual é ao mesmo tempo a expressão e a perturbação” (IDEM, p. 139). Dessa forma, seu campo simbólico não é apenas uma reunião ou um antagonismo de símbolos, mas também um jogo simbólico de regras, jogado por todos que dele fazem parte. Ao escolher dentro do repertório jornalístico os assuntos de seu maior interesse, o próprio público, inicialmente na figura dos trolls, os ressignificou e compartilhou em suas redes, criando um novo

112

acontecimento, paralelo ao próprio evento da prova do Enem. Os seguidores do blog o repercutiram espontâneamente para suas redes, de forma que a mídia de massa fosse impactada por suas próprias imagens ressignificadas nesses compartilhamentos. A repercussão espontânea das imagens dos atrasados retroalimentou a mídia de massa, que por sua vez também se apropriou do acontecimento, transformando-o em pauta para um novo evento de entretenimento a ser midiatizado, mordendo a isca inicialmente lançada pelos trolls, em um fluxo no qual todas as partes jogaram juntas um mesmo “jogo simbólico” (BARTHES, 2004 [1984]).

O primeiro dia de provas do Enem 2015 já se configurava num evento de natural importância social, haja vista o número de pessoas envolvidas – toda a rede em torno dos 8,4 milhões de inscritos82. Mas se a sua repercussão foi potencializada pela expectativa do público em torno do evento paralelo, e pela enorme cobertura da mídia de massa, este acontecimento ganhou ainda uma infinidade de novas leituras com a profusão de memes de internet que se espalharam pelas redes. Enquanto veículos jornalísticos cobriam minuto a minuto o fechamento dos portões, nas mídias digitais, o #ShowDosAtrasados2015 era compartilhado pelas pessoas sob a forma de memes. Durante toda a manhã que antecedeu o fechamento dos portões no Figura 69: Postagem textual de expectativa, antes do fechamento dos portões.

Fonte: Twitter, 2015.

primeiro dia de prova, a hashtag já era utilizada, principalmente no Twitter, por aqueles que aguardavam ansiosos pelo novo espetáculo (Figura 69). Devido à velocidade

de circulação dos memes de internet, seria inviável identificar uma linearidade em sua produção, que costuma acontecer quase simultaneamente em todas as mídias digitais. Mas por algumas características específicas dos canais, é possível supor que determinados caminhos tenham sido seguidos. No Twitter, que originalmente foi projetado apenas para textos, embora seja possível o uso de imagens, é comum a publicação de mensagens textuais, principalmente nos momentos em que o canal é utilizado como segunda tela, durante eventos de grande popularidade. A agilidade na publicação de conteúdos é valorizada por seus usuários. Desta forma, o Twitter acaba concentrando um volume maior de mensagens, principalmente nos momentos iniciais de um evento compartilhado em rede. Já na dinâmica do Facebook, o uso

82

Fonte: G1 Educação, 2015.

113

de imagens é mais valorizado, uma vez que elas potencialmente aumentam as chances da mensagem ser lida83. Na interface do canal, que estimula o recurso das imagens para fins de navegação e entrega de conteúdos, mensagens apenas textuais acabam passando despercebidas. Portanto, antes do fechamento dos portões, quando as pessoas manifestavam apenas a expectativa pelo que estava por acontecer (não havia ainda registros do fato real), aqueles que utilizavam imagens associadas às postagens seguiam a lógica do remix, recorrendo ao próprio repertório imagético dos memes e da cultura massa, ou mesmo às imagens dos atrasados em anos anteriores (Figura 70).

Figura 70: À esquerda, meme com imagem de estudante que chegou atrasada em 2014; à direita, meme com remix a partir de imagem do personagem Jack Sparrow.

Fonte: Facebook, 2015.

À medida que as imagens capturadas durante o evento foram sendo divulgadas, elas começaram a aparecer entre as mensagens publicadas no Twitter e no Facebook. Estas primeiras mensagens associavam as imagens dos atrasados a situações cotidianas diversas.

Aquelas que não necessariamente tratavam do atraso, mantinham-se conectadas pela ideia através do uso da hashtag. Elementos de repetição, característicos no processo produtivo dos memes de internet, foram identificados durante todo o fenômeno em torno dos atrasados do Enem e variaram ao longo dos dois dias, ora na utilização de imagens e mensagens que se repetiam, ora no uso da hashtag e, em alguns casos, na aplicação do conceito de atraso simplesmente. Mas todos giraram em torno de um único acontecimento, um contexto específico, que era o seu elemento agrupador, a sua identidade memética. Outro aspecto a ser considerado é o tempo disponível, pois ele influencia diretamente nas composições meméticas apresentadas. Dialogando com o anseio coletivo de participação no tempo real do 83

Fonte: Social Bakers, 2014.

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acontecimento, o primor gráfico acabou sendo diretamente proporcional à disponibilidade do conhecimento estético e das ferramentas necessárias. Na corrida por participar de um evento memético, cada pessoa irá utilizar as ferramentas e os conhecimentos gráficos que estão ao seu alcance para produzir sua contribuição, de forma que a produção popular torna-se evidenciada neste modelo peculiar de comunicação visual, que valoriza, ao seu jeito, a combinação de imagens e textos. Encontramos um panorama desta variedade nos memes produzidos para o #ShowDosAtrasados2015 (Figura 71).

Figura 71: Cinco diferentes composições, produzidas a partir de combinações de imagens reais do evento com referências da cultura popular.

Fonte: Facebook, 2015.

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No volume de memes de internet que circularam neste período, é possível identificar que algumas imagens da cobertura jornalística foram mais compartilhadas do que outras.

Relembrando o conceito de seleção natural, aplicado aos memes por Dawkins (1976), as escolhas feitas pelo público refletem o potencial memético destas imagens que, de fato, foram as mais apropriadas e remixadas, sendo compartilhadas à exaustão. Um exemplo é a jovem identificada como Evelyn (Figura 72) tentando passar pelas grades do seu local de prova: suas imagens foram as mais propagadas. A estudante foi mencionada em algumas postagens como o melhor meme do #ShowDosAtrasados2015. Se as imagens de Evelyn se mostraram replicadoras de sucesso, o que fez as pessoas preferirem as suas imagens às das outras pessoas atrasadas? Os motivos podem ser muitos, mas um potencial fator estimulador da sua propagação, comum à viralização de conteúdos, pode ter estimulado também a sua memetização: a grande visibilidade dada à imagem da estudante pelos veículos que cobriram o evento. As imagens de Evelyn estamparam muitas das matérias da mídia de massa sobre o #ShowDosAtrasados2015.

Figura 72: Memes com a estudante Evelyn, criados a partir de imagens da cobertura jornalística.

Fonte: Facebook, 2015.

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Os registros das cenas reais saciaram a expectativa daqueles que acompanharam todo o espetáculo. Montado em torno do acontecimento que era a prova do Enem, ele significou um momento de catarse coletiva. Mas a dinâmica de circulação dos memes de internet é variável em relação ao tempo, e embora possa ter sido gerada por este fato específico, sua duração é indefinida. Conteúdos protagonizados por pessoas comuns têm alto potencial memético, principalmente quando em grande exposição midiática. Como consequência, muitas destas pessoas comuns vão parar na galeria da fama dos personagens meméticos. Isso significa que uma vez que suas imagens habitem o imaginário dos produtores de memes de internet, sempre existirá a possibilidade de que a qualquer momento no tempo elas voltem a aparecer, e sem a menor previsibilidade de como ou com o quê estarão associadas.

Seguindo a lógica da produção memética em torno de eventos de muita visibilidade, acreditamos que, em sua grande maioria, as imagens

que

circularam

ao

longo

do

#ShowDosAtrasados2015 ficarão restritas ao período em que o tema pautou as conversas em rede, podendo reaparecer relacionadas ao Figura 73: Estudante que chegou atrasada em 2014, mas chegou a tempo em 2015.

Fonte: Twitter, 2015.

mesmo assunto, quando este novamente estiver em pauta (Figura 73). Mas se alguma entre elas foi absorvida pelo universo memético, a qualquer momento ela poderá reaparecer. É o caso da servidora pública Edinair, que voltou às timelines no contexto dos atrasados do Enem, um mês depois de ter protagonizado seu próprio fenômeno memético. O retorno do meme “Senhora” é um indício de que seu espaço na galeria de personagens dos memes de internet já esteja garantido. A funcionária fantasma que, originalmente, fugia para não ser pega em flagrante, ressignificada, aparece

Figura 74: Meme “Senhora” no contexto do Enem.

Fonte: Facebook, 2015.

fugindo para não ter que explicar por que chegou atrasada à prova do Enem (Figura 74).

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Enquanto as imagens dos atrasados acrescentaram o caráter de realidade aos memes produzidos, outros memes circulantes nas redes somaram-se ao seu fluxo. Utilizando imagens de personagens recorrentes do cenário mídiático, seja de massa ou da cultura de internet, as pessoas (imbuídas das identidades destes personagens) comentavam sobre os atrasados do Enem, criando um cenário metalinguístico no qual os próprios memes opinavam sobre o novo fenômeno memético que acabava de surgir. O atraso como identidade memética foi desdobrado em várias abordagens, na figura de personagens que não estariam dialogando em outra situação que não a ficcional, como facilmente se produz no palco da coletividade das mídias sociais. Nela, Chapolim Sincero, Félix Bicha Má e Pablo Escobar criticam o fato de as pessoas se planejarem com antecedencia para alguns eventos, mas atrasarem-se para a prova do Enem; Rubinho Barrichelo tem seu momento de revanche, reagindo às críticas que o público costuma lhe dirigir a respeito do seu desempenho nas corridas automobilísticas; Dr. Emmett Brown e Marty McFly (do filme “De Volta Para o Futuro”) chegam cedo demais para a prova usando sua máquina do tempo; e a menina Chloe dirige palavras carinhosas de incentivo a quem se atrasou (Figura 75). As características de personalidade que são atribuídas a estes personagens, conforme vão ganhando notoriedade memética, são respeitadas pelas pessoas como se lhes conferissem autoridade, ou uma espécie de credibilidade. Eles são colocados diante de situações às quais tais características possam ser relacionadas, seja pelo tema ou pelo tom que se queira dar à fala. Em seu conjunto de códigos próprios, podemos encontrar nos memes de internet funções de linguagem escolhidas segundo as intenções dos produtores das mensagens.

Figura 75 (continua): Personagens comentam sobre os atrasados no Enem. Da esquerda para a direita: Chapolim Sincero, Felix Bicha Má e Rubinho Barrichelo.

Fontes: Facebook, 2015; Twitter, 2015.

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Figura 75 (continuação): Personagens comentam sobre os atrasados no Enem. Da esquerda para a direita: Pablo Escobar, personagens do filme “De Volta Para o Futuro” e a menina Chloe.

Fontes: Facebook, 2015; Twitter, 2015.

Como alternativa à sociedade do espetáculo, Debord, junto a outros pensadores, propõe uma atitude política e artística de participação total, produção coletiva e anônima, fundamentada na apropriação e ressignificação das ideias presentes na própria sociedade espetacularizada. Dentre as técnicas para essa reação, destaca-se o Détournement, descrito por Guy Debord e Gil Wolman, em 1956, que consiste no desvio, na apropriação e descontextualização para fins de ressignificar a partir de componentes pré-fabricados. A técnica de Détournement faz um claro uso dos signos, estratégias e meios presentes na sociedade para desviá-los e usá-los contra os efeitos da espetacularização. Embora o desvio já tenha sido utilizado para efeitos cômicos em paródias, para Debord e Wolman (1956), a diferença estaria tanto no contexto, como no propósito, não mais de fazer rir, mas de criticar.

De um modo geral, o Détournement pode ser entendido como uma apropriação, uma paródia, mas não apenas com o propósito de citação (que reconhece o valor da obra original) ou do humor, mas de descontextualizar e deslocar o sentido com finalidades críticas e políticas.

Além das formas de apropriação e paródia presentes nas vanguardas modernas como o Dadá, o Surrealismo e a Pop Art, por meio de técnicas como colagens, assemblages, ready-mades, entre outros, a prática do desvio também se estende à produção contemporânea. De acordo com Barbosa e Filho (2011), o détournement é identificado como uma tendência nas obras de intervenção urbana que buscam provocar um estranhamento no público. As obras dos artistas Banksy (Inglaterra) e I♥ (Canadá) são um exemplo deste tipo de crítica à cultura do espetáculo e do consumo, ao misturarem produtos de entretenimento a referências da própria mídia de massa, como forma de questioná-la (Figura 76). A tendência à descontextualização prolifera para além das artes com a cultura do remix, por meio de estratégias presentes na comunicação pela internet, como a manipulação de textos e imagens digitais em sites, blogs, fóruns e mídias sociais. Os memes de internet evidenciam estas estratégias e, através delas,

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ícones de consumo podem ser modificados de forma que lhes sejam conferidos significados subversivos.

Há, portanto, uma semelhança na lógica em que operam o détournement, as paródias, as colagens, as assemblages, os ready-mades, o e os memes de internet. No contexto do #ShowDosAtrasados2015, especificamente, não se identificou movimentação articulada em termos de engajamento coletivo, com propósito

político

considerada

um

evidente, desvio.

que Mas

pudesse em

ser

algumas

manifestações individuais, as narrativas meméticas indiretamente serviram como crítica à midiatização do

evento

acontecimentos

e

à

própria espetacularização de

cotidianos

pelos

meios

de

comunicação de massa, embora não fique claro se Figura 76: Intervenções urbanas. Acima, Caveman Fast Food (Banksy, 2003); abaixo, Nobody Likes Me (I♥, Canadá).

Fontes: Stencil Revolution, 2016; Citylab, 2014.

esta, de fato, foi a intenção de quem os propagou (Figura 77).

Figura 77: Memes de internet que indiretamente sugerem crítica à cultura do espetáculo: captura de conversa no Messenger (esquerda) e montagem 4 panel da menina Chloe.

Fonte: Facebook, 2015.

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A manifestação crítica nos memes produzidos nos parece mais evidente no próprio uso do humor, a partir do momento em que o observamos sob a perspectiva de uma função social.

Se em uma sociedade, grande ou pequena, seus indivíduos precisam estar atentos ao que os cerca, adaptando-se ao ambiente e agindo conforme regras estabelecidas, também sobre eles paira a ameaça da correção, ou ao menos a perspectiva de humilhação, nos casos em que não sejam capazes de seguir tais regras. Esta seria uma função social para o riso: “sempre um pouco humilhante para quem é seu objeto, o riso é de fato uma espécie de trote social” (BERGSON, 2007, p. 101). Considerando o prazer de rir não um prazer puro, exclusivamente estético, ou absolutamente desinteressado, segundo Bergson, a ele podemos misturar uma segunda intenção da própria sociedade em relação aos seus indivíduos, que é a intenção de humilhar ou de corrigir, pelo menos exteriormente, aquilo que se mostra errado socialmente.

Neste trote social são os defeitos alheios que ficam na berlinda, e deles rimos como forma de evidenciá-los e torná-los públicos. Estes defeitos nos fazem rir em função da sua insociabilidade, e não da sua imoralidade, pois “o riso é imcompatível com a emoção” (IDEM, p. 104). De forma que diante de um defeito que desperte simpatia, medo, piedade ou qualquer outro sentimento que nos conecte emocionalmente com aquele que o expõe, perde-se o efeito cômico e não somos mais capazes de rir. O humor não se relaciona com a cobrança moral, mas com um comprometimento com a vida em sociedade. Sendo o riso um modo de correção social, este torna-se mais útil atingindo ao mesmo tempo o maior número possível de pessoas, de forma que a observação cômica acabe indo instintivamente para o geral, escolhendo entre as singularidades, aquelas que sejam passíveis de reproduzirem-se e serem identificadas como singularidades comuns. Ora, quem nunca chegou atrasado a algum compromisso social ao longo de sua vida, intencionalmente ou por um imprevisto? Pois a respeito das pessoas que chegaram atrasadas à prova do Enem – para além dos atributos cômicos contidos nas imagens que circularam, ou da espetacularização que transformou o evento em produto de entretenimento – finalmente chegamos a um motivo capaz de dar significado ao riso coletivo deflagrado nas mídias sociais, nas quais os memes de internet desempenharam

papel

importante

como

ferramentas

de

linguagem.

Através

do

#ShowDosAtrasados2015 tornou-se visível que os indivíduos de uma sociedade ao monitorarem-se e apontarem, no fracasso destes estudantes, falhas a serem corrigidas, articularam em um movimento sutil e inconsciente, uma autoregulamentação – como uma espécie de vigilância social – que se manifestou por meio do humor.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

No levantamento de teorias e conceitos proposto, primeiramente, tracei um roteiro desde a visão biológica dos memes como unidades replicadoras de cultura, até os memes de internet, que apresentam novos componentes de linguagem à ideia de transmissão cultural, para a partir das suas diversas manifestações nos meios digitais, destacar a participação das pessoas nestes processos, enquanto consumidoras-produtoras-propagadoras de peças de mídia. As características definidoras do sucesso memético na replicação cultural (fecundidade, longevidade e fidelidade de cópia) – definidas por Dawkins (1976), com base nos fatores de replicação genética – de fato se aplicam também aos memes de internet, embora algumas destas características apresentem variações, como é o caso da longevidade. Mas esta não é uma questão crucial, se considerarmos que neste estudo, o objetivo não era mapear quanto tempo duram ou quão longe chegam os memes de internet, mas analisá-los enquanto recurso de comunicação visual, que influencia a linguagem, a produção e o consumo de conteúdos e produtos culturais, ao mesmo tempo em que se tornam um registro de uma cultura e do seu tempo. Em meio aos processos identificados como recorrentes na produção de memes de internet, as interseções entre o design profissional e o vernacular são constantes. Seja através da popularização de ferramentas customizadoras, das possibilidades de interação oferecidas por interfaces de conexão social ou pela apropriação e remixagem de produtos veiculados na mídia de massa, o profissional (representado pelo mainstream) e o vernacular (representado pela produção e propagação popular de peças de mídia) se retroalimentam no fluxo urgente e incessante da criação e consumo de novidades.

São muitos os caminhos a serem percorridos e as possibilidades de análise a serem feitas, no campo de estudos dos memes de internet, que, como novo gênero midiático, apresentam características de linguagem que requerem repertórios comuns e uma experiência própria de letramento. Enquanto me preparava para trabalhar nestas considerações finais, recebi de um amigo o vídeo de uma ação realizada pelo site 9Gag, que fez um levantamento junto à sua base de 150 milhões de pessoas, para identificar quais memes deveriam ficar registrados para as gerações futuras. Estes memes foram gravados em um monolito – um memorial físico para os memes de internet – enterrado em local secreto de um deserto nos Estados Unidos, para um dia ser descoberto84. A ação de marketing, realizada ao longo de abril de 2017, conclamava a comunidade em torno do site a impedir que o legado da humanidade fosse “tão chato” (so boring), transformando uma rocha de 24 toneladas no “maior, mais engraçado, mais memético e mais importante monumento da humanidade. (...) O 84

Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WanRFNtFwGI>. Acesso em 5/5/2017.

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primeiro monumento ao humor, feito pelo homem” (9GAG TV, 2017). Exageros e piadas à parte, uma iniativa como esta reflete e reforça a relação intrínseca dos memes de internet com a abordagem do humor – embora, neste caso, seja por demais forçoso o recorte que exclui todas as outras formas e expressões do humor –, mas mais do que isso, quero levar a atenção para como ela materializa a extrapolação da cibercultura para além das fronteiras digitais.

Tendo o computador e a internet como suportes tecnológicos, a maneira de interagir e interpretar o mundo, expressa na popularização da escrita visual, está tomando conta da cultura humana, senão engolindo-a. E neste movimento, seguem junto os memes de internet.

No questionário realizado durante a pesquisa, duas

pessoas

manifestaram

espontâneamente

utilizar memes de internet como tema de conversa em encontros presenciais com amigos; ou em fantasias de carnaval, práticas cada vez mais comuns, que colocam os conteúdos da mídia de massa (que alimentam a cultura popular) a permanentemente múltiplas

dividir

possibilidades

espaço de

com

suas

apropriações

e

releituras, no imaginário coletivo. Das oito imagens consideradas memes por mais da metade dos respondentes, a segunda mais reconhecida como tal foi o meme “John Travolta Confuso” (Figura 78). Uma cena retirada do filme “Pulp Fiction” (1994), de Quentin Tarantino, mostra o personagem interpretado por John Travolta, na sala de uma residência, ouvindo uma voz por autofalantes, sem entender de onde vem o som.

Sua reação de quem não entende o que está acontecendo, virando de um lado para o outro (com os braços abertos e segurando um blazer) foi recortada para virar um GIF animado. A imagem, criada em 2012 por um usuário do Imgur, virou Figura 78: Meme “John Travolta confuso”.

Acima, cena original do filme.

Fontes: Google imagens, 2017.

meme em 2015 e, a partir de então, o personagem memético aparece nos mais variados contextos relacionados a situações de dúvida. Para todos nós

que, de alguma forma, fomos impactados pela versão memética do ator, é muito provável que a mesma torne-se indissociável da imagem que teremos dele daqui em diante, tanto quanto as

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dos próprios personagens que interpretou no cinema. Os memes de internet, enquanto linguagem que utilizamos e pela qual somos impactados cotidianamente, estão cada vez mais condicionando a maneira como percebemos, assimilamos e propagamos cultura. A imagem, estabelecida enquanto expressão artística, jornalística, de entretenimento, de consumo ou de registro, se encaminha em ritmo acelerado para assumir também o papel de fala. Mas não a fala mítica dos afrescos nos templos religiosos ou dos grandes monumentos de representação política e de poder, estabelecidas sobre hierarquias sociais fixas, e sim, a fala das conversas mais corriqueiras, falada por todos e para todos, misturando a co-presença da oralidade e a universalidade da escrita, algo recente demais para que se possa vislumbrar seu impacto a longo prazo.

Memes de internet circulam através de peças avulsas pelas redes, mas na identidade memética que permite agrupá-los em conjuntos está o registro vivo e ubíquo de uma infinidade de vozes a manifestar opiniões, emoções e reações. Seguindo o princípio da modularidade característico do ciberespaço, e que se desdobra nos objetos das novas mídias, uma identidade memética se apresenta como uma coleção, formada por pequenas partes independentes, cada uma delas sendo composta, por sua vez, por pequenas outras partes independentes, sejam elas as referências trazidas por processos de colagem e remix, ou mesmo os pixels e ruídos que as formam. Mas o remix, em especial, nas colagens de referências da cultura popular, revela a maneira fragmentada como percebemos a nossa cultura e como nossos pensamentos e discursos se constrõem a partir de e sobre estas camadas. Neste processo dialógico que se constrói a partir da imagem, não discorremos sobre essas referências, mas falamos através das próprias, em combinações, colagens e agrupamentos visuais, que surgem como indícios de uma reação aos volume aparentemente infinito de estímulos visuais que costumamos receber diariamente. Estas peças, em constante fluxo e mutação, são reveladoras dos nossos hábitos e da nossa cultura.

Vi-me, pois, diante de um grande desafio. De forma que escolhi desenvolver, no decorrer desta pesquisa, aspectos que auxiliaram na construção de uma visão geral do fenômeno dos memes de internet, a partir de produções brasileiras, consciente da impossibilidade de abarcar detalhadamente todas as suas manifestações e nuances, embora as reconheça de grande relevância. Assim como os próprios memes de internet, que por sua natureza são um estímulo à apropriação, também o trabalho que se proponha a estudá-los, em seu fluxo de constante transformação, deve apresentar alguma incompletude, inevitável por um não distanciamento no tempo, mas suficiente para estimular que seja completado com futuras contribuições.

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A escolha de fechar este texto com memes de internet vem da constatação que esta forma dialógica de contar histórias vem desafiando a linearidade tradicional, ou mesmo a ideia de autoria, sugerindo inaugurar novas possibilidades narrativas.

A seguir uma delas.

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GLOSSÁRIO 3 pane Meme de internet com estrutura narrativa composta por sequência de 3 quadros.

4 pane Meme de internet com estrutura narrativa composta por sequência de 4 quadros.

Ação popular Ação de engajamento on-line caracterizada por um comportamento coletivo reiterado, em que pessoas replicam as ações de outras, sob a forma de uma manifestação popular.

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Advice animals Image macros de animais e personagens, cujas mensagens são conselhos, podendo ser motivacionais, de incentivo ou mesmo desestimuladores.

Catchphrase Meme de internet cuja estrutura narrativa (textual ou imagética) pressupõe uma ideia a ser substituída ou completada.

Comportamento social Ação de engajamento on-line na qual um determinado comportamento ou expressão, originado em uma situação real, é imitado por muitas pessoas.

Dual pane Meme de internet com estrutura narrativa composta por sequência de 2 quadros.

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Emoticons Representações pictóricas de expressões faciais criadas a partir da combinação de caracteres. São usados para transmitir emoções ou para influenciar a forma como o texto será interpretado, substituindo palavras ou complemen-tando-as.

Desde a sua introdução no início dos anos 90, os emoticons evo-luíram de simples rostos sorridentes para expressões compostas ou imagens gráficas, conhecidas como emojis.

Emojis Imagens gráficas que representam expressões faciais, símbolos e objetos, utilizados em conversas para transmitir emoções ou para influenciar a forma como o texto será interpretado, substituindo palavras ou complementando-as, da mesma forma como seus precursores, os emoticons.

Exploitable Meme de internet com composição na qual uma imagem é manipulada, de forma a recontextualizar em tom cômico, uma cena ou um personagem central, através de: sobreposição de imagens; do uso de templates; e/ou da inserção de elementos visuais, recortados de fontes externas à imagem original.

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Figurinhas (stickers ou emotions) Símbolos icônicos empregados em conversas e comentários do Facebook Messenger, similares aos emoticons e emojis. Popularmente traduzidos no Brasil como figurinhas, apresentam imagens estilizadas (estáticas ou animadas), utilizadas para expressar emoções e reações em conversas.

Gadgets ou Gizmos Gadgets são aparelhos com funções práticas específicas, para serem utilizados no cotidiano.

São comumente chamados de gadgets dispositivos eletrônicos portáteis como smartphones, tablets, relógios inteligentes, entre outros. Aqueles que possuem um forte apelo de inovação tecnológica e de design também são chamados de gizmos.

GIF animado Tipo particular de GIF (Graphics Interchange Format) composto de várias imagens exibidas em sequência, compactadas em um só arquivo de imagem.

…

Hashtags Hashtags são palavras-chave sobre um assunto, ou expressões, antecedidas pelo símbolo da tralha (#), que funcionam como agrupadores de postagens em redes sociais. Elas funcionam como hiperlinks e são indexáveis pelos mecanismos de busca. Dessa forma, pode-se clicar nas hashtags ou buscá-las em mecanismos como o Google, para se ter acesso ao histórico de participação em uma determinada discussão. Elas também podem se apresentar como memes de internet, à medida que em torno delas há apropriações e variações de mensagens.

Hipertexto É um texto em formato digital, reconfigurável e fluido, ao qual agregam-se outros conjuntos de informação, na forma de blocos de textos, palavras, imagens ou sons, os quais podem ser acessados por hiperlinks (ou simplesmente links). Esses links ocorrem na forma de termos destacados no corpo de texto principal, ícones gráficos ou imagens, e têm a função de

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interconectar os diversos conjuntos de informação, oferecendo acesso sob demanda às informações que estendem ou complementam o texto principal.

Imageboard Tipo de fórum de internet, que opera principalmente através da postagem de imagens. Os primeiros painéis de imagem foram criados no Japão e logo inspiraram a criação de painéis de imagens em inglês. Eles são baseados no conceito dos fóruns anônimos de texto.

Image macro Meme de internet formado por imagem com legenda sobreposta, cuja mensagem costuma variar entre o humor, a ironia e a crítica. Também são usados em conversas para transmitir sentimentos ou reações, de forma semelhante ao uso de emoticons e emojis. É um dos formatos mais populares de memes de internet.

Look-alike Meme de internet que apresenta um painel com imagens de pessoas e/ou personagens, apresentados lado a lado, sugerindo semelhança entre os mesmos

Metameme Meme de internet que faz referência a memes de internet, apresentando elementos intertextuais implícitos ou explícitos

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Pegadinha (Pranking) Ato de pregar peças em outras pessoas, por diversão. Na internet, pegadinhas deste tipo costumam ser compartilhadas em formato de vídeos, em sites como o YouTube, e são comumente associadas ao trolling.

Photoshopagem Gíria popularmente utilizada para designar manipulações e montagens de imagens, feitas em computador, nas quais imperfeições ficam evidentes, aparentando terem sido feitas de maneira rápida e descompromissada. O termo é uma apropriação do nome do programa de tratamento de imagens Photoshop.

Rage comics (ou Rage Faces) Séries de quadrinhos com personagens criados em softwares simples de desenho, como o MS Paint. São tipicamente usados para contar histórias sobre experiências cotidianas, terminando com um toque de humor ou ironia.

Raids (Ataques surpresa) Invasões a sites, semelhantes a ataques hackers. Mas ao invés de tentar interromper o serviço, seu objetivo é atrapalhar a comunidade de um site, assediando ativamente os seus usuários ou assumindo a conversa, através da publicação de conteúdos. Este tipo de ação é comumente organizada em fóruns anônimos, como os do site 4Chan.

Rickrolling Espécie de pegadinha (prank) na qual um link supostamente relevante para um tópico em questão é compartilhado, mas na verdade ele redireciona a pessoa para o hit de 1987 de Rick Astley, "Never Gonna Give You Up." A URL costuma ser disfarçada com um link gerado randomicamente, para esconder de usuários experientes a sua verdadeira fonte. Sempre que a pessoa clica no link e involuntariamente acessa a canção de Rick Astley, diz-se que ela foi rickrolled.

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Segunda tela O termo segunda tela se refere ao costume de se estar conectado a uma mídia social ao mesmo tempo em que se assiste a um programa televisionado, com o intuito de comentar e interagir com outras pessoas sobre o conteúdo deste programa.

Tag Forma de organização e classificação de informações, que utiliza palavras-chave para relacionar informações semelhantes. Essas palavras-chave, conhecidas como tags (etiquetas) ou metadados, são usadas para classificar e organizar arquivos, páginas e outros conteúdos na internet.

Trending Topics ou TT's Lista em tempo real das palavras mais usadas no Twitter. A lista está sempre disponível na lateral esquerda da interface, junto dos conteúdos publicados pelos seus usuários. Sendo um ranking de popularidade dos assuntos, ela acaba exercendo influência sobre novos conteúdos publicados.

Troll (trolling) Expressão disseminada na internet e migrada para o mundo off-line. É derivada da expressão “trolling for suckers”, que em uma tradução livre seria algo como “lançando iscas para trouxas”. Nas redes sociais, é comum que trolls tenham perfis falsos para criar polêmicas e confusões. Geralmente, se apresentam como personagens ingênuos ou inocentes, mas na realidade buscam criticar comportamentos que consideram egoístas ou individualistas, perseguir pessoas e páginas na internet, ou atrapalhar mobilizações, campanhas e outros eventos digitais.

Vlog Também conhecido como Videoblog ou Videolog, o Vlog é um tipo de blog pessoal, cujo conteúdo principal são vídeos.

Youtuber Personalidade que alcança notoriedade em sua área de atuação, com conteúdos produzidos para o seu canal no YouTube. Youtubers tornam-se influenciadores nas mídias digitais, por alcançarem grandes volumes de audiência.

Wikipedia Enciclopédia on-line, colaborativa e gratuita, que utiliza a inteligência coletiva para produção de conhecimento no domínio público.

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161

APÊNDICE 1 – Resultados do questionário de pesquisa on-line sobre imagens, realizada entre 9 e 31 de março de 2017, respondida por 562 pessoas.

162

Daqueles que disseram nĂŁo, todos alegaram saber ou desconfiar saber o que ĂŠ um meme.

163

Entre aqueles que responderam “Outro”, 5 descreveram de que maneira usam imagens em suas conversas: /Promovendo anúncios /E-mail /Uso praticamente em todo tipo de conversa virtual (fora do meio de trabalho e acadêmico). Muitas vezes, já me referi a memes em conversas que aconteceram pessoalmente. / Imageboards anônimos / Usando memes em fantasia de carnaval

164

Entre as 16 imagens apresentadas estavam: 9 memes

1 viral

2 cartões

1 fotografia de frase em muro

2 Fotografias de registro de momento pessoal comentada

1 colagem com legenda sobreposta

Para cada imagem sugerida na questão, foram associadas possíveis intenções de uso: A que ponto chegamos – Meme { Comentar / Criticar / Reclamar } Chapolin gordo – Meme { Ser engraçado / Zoar } Usain Bolt – Viral { Comentar / ser engraçado / compartilhar novidade } Segunda de novo – Meme { Comentar / ser engraçado / reclamar } Giovanna – Meme { Comentar / Zoar / compartilhar novidade } Graffiti – Fotografia de frase em muro { Comentar / criticar / mostrar onde está } Caneta desmanipuladora – Meme { Criticar / manifestar opinião / reclamar / ser irônico } Pug caneiro – Meme { Ser engraçado / zoar } Esse é Geraldo – Meme { Comentar / criticar / manifestar opinião / reclamar / ser irônico } Conselho do dia – Cartão { Comentar / demonstrar carinho / incentivar } Bayer Monsanto – Colagem com legenda sobreposta { Criticar / manifestar opinião / reclamar / ser irônico } Dinofauro – Meme { Demonstrar carinho / Declarar amor } Stories comida – Fotografia de registro de momento pessoal comentada { Mostrar o que está fazendo } Stories selfie com emoji – Fotografia de registro de momento pessoal comentada { Mostrar onde está / mostrar o que está fazendo / reclamar } Talking Tom – Meme { Todas as categorias } Pessoas especiais – Cartão { Comemorar / demonstrar carinho / incentivar }

Entre as 10 imagens mais selecionadas, 7 são memes.

As principais intenções relacionadas a estas 10 imagens foram: Comentar (7) Criticar (4) Reclamar (4) Ser engraçado (4) Zoar (3) Ser irônico (3) Compartilhar novidade (2) Manifestar opinião (2) Mostrar onde está (1) Demonstrar carinho (1) incentivar (1)

165

Aqueles que responderam “Outro”, disseram onde preferem compartilhar imagens: / Pinterest / Snapchat (2) / Chat corporativo (2) / Imageboards / Thumblr / Skype

As redes WhatsApp (84%) e Facebook (74%) aparecem como as preferidas para o compartilhamento de imagens, com diferença percentual bastante acentuada em relação às outras redes.

Entre aqueles que responderam “Outro”, 5 descreveram de onde vêm as imagens que compartilham:

166

/ Fotos / Muita das vezes os memes vem de histórias reais compartilhadas em grupos no facebook / WhatsApp / Pessoais geralmente / Fotografias clicadas por mim / Não sei criar, mas os meus amigos sim... às vezes criam pra mim / Bonequinhos do whatsapp / Fotos que eu tiro (não sei se se enquadraria em "Eu crio as imagens") / Quando vejo séries/animações/filmes, reparo em cenas e expressões de personagens. as vezes crio, as vezes replico de amigos / Fotos de arquivos pessoais

Mais de metade dos respondentes (58%) diz buscar as imagens na internet de acordo com a sua intenção de fala. E em sua grande maioria (70 a 77%), seguem a lógica de propagação das mídias sociais, compartilhando conteúdos que aparecem em suas timelines ou aqueles que recebem em trocas de mensagens. Apenas 26% dizem criar as imagens que compartilham.

O computador (61%) aparece como principal recurso para produção de memes, mas ao somarmos os aplicativos de montagem de fotos (38%) e gerador de memes (26%), o celular supera o computador, aparecendo em 64% das respostas. Gerador de memes na internet (21%) aparece em quarto lugar nas respostas, mas por ser uma ferramenta on-line, tanto pode ser acessada por computadores quanto por celulares.

Apenas 5 respondentes afirmaram desconhecimento (1%) sobre memes de internet, enquanto a grande maioria oscilou entre a certeza (77%) e a desconfiança (22%) de conhecê-los.

167

168

Entre as 26 imagens apresentadas estavam: 20 memes

2 virais (coincidentes com outros formatos

1 cartão

5 colagens com legenda sobreposta

Considerando que responderam esta questão apenas as pessoas que marcaram saber ou desconfiar saber o que é um meme, as 8 imagens mais selecionadas, consideradas memes por mais da metade dos respondentes, são, de fato, memes:

(74%)

(72%)

(72%)

A imagem mais selecionada é o meme “Chloe85”. Recheado de humor e ironia, este meme costuma seguir uma estrutura macro em sequência de quadros, bastante utilizada nos memes de internet, sendo as mais conhecidas o dual pane, o 3 pane e o 4 pane. Embora o exemplo trazido para a pesquisa não utilize a fonte Impact nas legendas, ele mantém o estilo de fonte branca com contorno preto. Além da estrutura em quadros, o humor associado à ironia também costuma ser uma constante nos memes de internet.

As duas segundas imagens mais selecionadas, os memes “Senhora que dormiu no shopping86” e “John Travolta confuso87”, uma estática e a outra em formato GIF animado88, são colagens do tipo exploitable, que prescindem de legendas para o seu entendimento. Este tipo de composição costuma evidenciar imperfeições técnicas na montagem (refletindo a participação 85

A menina “Chloe” aparece em um vídeo viral “Lily's Disneyland Surprise....AGAIN!”, no qual sua mãe faz uma surpresa para a sua irmã mais velha, Lily, dizendo que ao invés de estarem indo para a escola, as meninas estão indo para a Disney. A reação de Lily é o motivo do vídeo, mas as expressões da irmã Chloe – na cadeirinha de bebê, assistindo a tudo aquilo – caíram na graça das pessoas e uma dupla de amigos brasileiros criou o perfil Chloe, no Facebook, para produzir memes a partir das suas expressões. Somente no gerador de memes Memegenerator.net, mais de 8 mil memes já foram criados com a imagem da menina. Disponível em: <https://youtu.be/NGhuLkjl4iI>.

Acesso em 24/4/2017.

86 Em janeiro de 2016, a imagem de uma senhora dormindo começou a circular na internet brasileira, em montagens do tipo exploitable. Combinada a situações em que a sua aparecente posição de relaxamento (braço direito e perna esquerda estirados) interage com cenas conhecidas de filmes, desenhos animados ou registros de acontecimentos populares. A identidade da senhora nunca chegou a ser revelada e a única informação encontrada é de que a foto foi tirada em um Shopping da Zona Sul de Recife (PE). Disponível em: <http://on.ig.com.br/listas-e-memes/2016-0118/uma-mulher-dormiu-no-shopping-e-virou-o-meme-mais-engracado-de-2016.html/>. Acesso em 25/4/2017.

87 A cena, retirada do filme “Pulp Fiction” (1994), de Quentin Tarantino, mostra o personagem interpretado por John Travolta, na sala de uma residência, ouvindo uma voz por autofalantes, sem entender de onde vem o som. Sua reação de quem não entende o que está acontecendo, virando de um lado para o outro (com os braços abertos e segurando um blazer) foi recortada para virar um GIF. A imagem foi criada em 2012, por um usuário do Imgur, para estimular memes do tipo “Como eu me sinto quando...”, mas somente em 2015, quando um segundo usuário do Imgur resolveu aproveitá-la para fazer uma postagem sobre a dificuldade de comprar presente para a filha, inserindo um “John Travolta confuso” na seção de brinquedos de uma grande loja, que a imagem finalmente viralizou. Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/sermons/confused-john-travolta/>. Acesso em 25/4/2017.

88 Glossário.

169

amadora na criação de imagens) e a urgência das redes (encurtando o tempo dedicado à sua elaboração), ambos índices da linguagem dos memes de internet, que também costumam ser reconhecidos pela uma estreita relação com o tosco.

Os três memes mais reconhecidos são casos que somam a viralização prévia de imagens originais, ou uma grande visibilidade midiática dos respectivos temas, com a posterior utilização de uma abordagem (estética e temática) característica dos memes de internet, de maneira que o seu reconhecimento enquanto tais poderia dar-se por uma ou outra via, ou pelo mix das duas, mas o fato de que tenham aparecido como as opções mais reconhecidas entre as apresentadas na pesquisa, reforça a dinâmica de complementação que se dá na relação complexa entre virais e memes.

(66%)

(59%)

(64%)

(63%)

(53%)

A quarta e a sétima imagens mais selecionadas, são variações de um mesmo meme, criado em torno da figura de Bela Gil, apresentadora de um programa culinário sobre alimentação saudável. O bordão “Você pode substituir isso, por aquilo”, usado para incentivar a inclusão de ingredientes mais nutritivos nas receitas, tornou-se um meme do tipo catchphrase, a ser completado pelas pessoas. A quarta imagem mostra a aplicação do bordão à imagem do casamento do ator Eri Johnson, celebrado pelo padre Fábio de Melo. A ironia gira em torno da maneira como a noiva, Alice Souto, olha para o padre, que embora celibatário, é conhecido popularmente como “padre galã”, por sua beleza e simpatia, arrebatando uma legião de fãs nas redes sociais. A estrutura em image macro e legenda com fonte branca e contorno preto, sugerem o padrão reforçado pelos templates oferecidos por geradores de memes. A sétima imagem é um GIF animado de cena recortada do próprio programa, no qual a apresentadora dá uma prova da receita para a convidada, a atriz Carolina Dieckmann, provar. É de costume, no programa, que os convidados não consiguam disfarçar completamente quando não gostam da receita e imagens das suas expressões acabam viralizando.

A quinta imagem mais selecionada, o meme “Senhora”, analisado no capítulo 2, assim como a oitava imagem, o meme “Jesus restaurado89”, também exploram o formato exploitable, remixando os referidos personagens a imagens reconhecidas da cultura popular. A personagem “Senhora” – provavelmente por ter protagonizado a cena em que foge correndo 89

Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/sermons/ecce-homojesus-restaurado/>. Acesso em 25/4/2017.

170

de uma entrevistadora – é inserida em raias Olímpicas, sobre a imagem de Usain Bolt, chegando em primeiro lugar. Já Cecilia Giménez – conhecida pela desastrosa restauração do afresco “Ecce Homo”, em uma igreja na comunidade de Borja, na Espanha – é inserida em cena do filme ET, no qual os personagens fogem na tentativa de proteger o extraterrestre. A imagem do “Jesus restaurado” está montada sobre a imagem do personagem ET, também como se precisasse ser protegida.

Já a sexta imagem mais selecionada, o meme “Batman impaciente90”, é um image macro, no qual os dois balões de diálogo são preenchidos a partir de uma estrutura catchphrase em que Batman reage com impaciência diante de algo tolo (ou considerado tolo) dito por Robin.

Retirado da revista número 153 da DC comics (1965), o meme surgiu originalmente nos Estados Unidos, conhecido como “My parents are dead”, com inspiração mais voltada à ironia e ao humor negro.

Das 8 imagens consideradas memes por mais da metade dos respondentes, todas apresentam imagens de pessoas ou personagens. Apenas uma, a quarta mais selecionada, apresentou o formato image macro, com legendas superior e inferior em fonte branca com contorno preto, característico dos templates oferecidos por geradores de memes. Ainda assim, a fonte não era a Impact. Este resultado nos mostra que embora os geradores de memes constituam-se em facilitadores na produção de imagens meméticas, diante da enorme variedade de ferramentas disponíveis, as pessoas recorrem àquelas que mais lhes sejam confortáveis ou acessíveis. Se há um entendimento conceitual da ideia de meme, em detrimento de uma simples associação formal, é difícil afirmar: o meme “Caneta desmanipuladora” – cuja ideia central consiste na edição explícita de manchetes publicadas por grandes veículos, para que, reescritas, revelem uma suposta verdade manipulada intencionalmente por tais veículos – que não apresenta imagens de pessoas ou personagens, mas somente texto, foi identificado como meme por apenas 10% dos respondentes. No entanto, devemos considerar que a associação formal, combinada à características de linguagem como o humor e a ironia, ou a temas de bastante visibilidade midiática, pode induzir à percepção de determinadas imagens como sendo memes. É o caso da imagem de divulgação do filme “Alien – O oitavo passageiro”, um image macro no qual a atriz Seagourney Weaver aparece abraçada com o seu algoz no filme, sob a legenda “A vida é muito curta para manter velhos rancores”. Embora tenha alcançado grande circulação na rede, ela não chega a ser um meme91, mas foi reconhecida como tal por 46% dos respondentes.

90

Disponível em: <http://www.museudememes.com.br/sermons/batman-impaciente-my-parents-are-dead-batmanslapping-robin/>. Acesso em 25/4/2017.

91 Não encontramos durante a pesquisa ou nas fontes pesquisadas, indícios concretos de um fluxo de apropriações sobre esta imagem, de forma a configurá-la como fenômeno memético, salvo poucas variações na fonte da legenda ou no corte da imagem.

171

(10%)

(46%)

Dois image macros em especial, uma sobre o atentado de 11 de Setembro nos Estados Unidos, e outra sobre uma suposta relação entre a Bayer e a Monsanto, aparentemente feitas em geradores de memes, com legendas superior e inferior, em impact branca e contorno preto, foram reconhecidas como memes, respectivamente, por 22% e 19% dos respondentes. Elas não são memes e não têm abordagem humorada. São bastante críticas, com um toque de ironia. Junto do humor, comentários, críticas e reclamações aparecem como os principais estímulos à utilização de imagens em conversas nas redes sociais. Tais abordagens, associadas à estética mais comum entre memes de internet, podem ser motivo do reconhecimento equivocado destas imagens.

(22%)

(19%)

172

Aqueles que responderam “Outro” disseram que a melhor oportunidade para usar um meme é: /Participar do assunto da vez nas redes sociais /Convidar um amigo a refletir sobre uma atitude ou opinião /Todas as anteriores /Melhor não usar /Não uso

Quando indagados sobre boas oportunidades para usar memes nas conversas, 85% dos respondentes apontaram usá-los quando querem ser engraçados. 75% os utilizam para “zoar” algo ou alguém, o que, nas redes, costuma ser traduzido em brincadeiras, galhofas, implicâncias e trolagens. E 74% usam os memes para serem irônicos. Memes são utilizados para comentar assuntos (63%) e provocar reações (61%), como apontado por mais da metade dos respondentes, reforçando a ideia de que são poderosos estímulos para o diálogo nas redes.

Se no resultado desta questão sobre intenções de comunicação, podemos identificar o humor como principal abordagem, confirmando pesquisas realizadas por Shifman (2014), ele também mostrou-se uma característica percebida como inerente aos memes de internet na própria abordagem utilizada pelas pessoas para compartilhar o questionário.