Quasi-Nacional: descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens"

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Quase-nacional Descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens

Por Patrícia Gouvêa

UCAM - RJ 2002


UNIVERSIDADE CANDIDO MENDES – UCAM Centro de Estudos Afro-Asiáticos – CEAA

Curso de Pós-Graduação Latu Sensu Especialização Fotografia como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais

Quase-nacional Descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens

Por Patrícia Gouvêa

Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Especialista em Fotografia como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais

Orientador: Milton Guran, Professor Doutor

Janeiro de 2002 Rio de Janeiro


À memória de meu avô Alfredo dos Santos Gouvêa, imigrante português.

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Agradecimentos: Emanoel Castro, Nelson Gouvêa, André Viana, Hugo Rocha, Simone Rodrigues, Gladys Sabina Ribeiro, Milton Guran, Ana Maria Mauad, Angela Magalhães, Nadja Peregrino e um especial muito obrigada à jornalista Cecília Etchecoin, por ter me acompanhado ao longo do período de produção destas imagens.

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Sumário

I – Introdução II – Metodologia e Plano de Trabalho

Parte 1 – Quase-nacional: do português de Portugal ao português do Brasil 1.1

– Entre Cá e Lá

1.2

– Comunidade luso-brasileira: utopia ou realidade?

1.3

– Identidade Portuguesa e o regionalismo como eterno retorno

Parte 2 – Descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens 2.1 – Observador participante com a câmera na mão 2.2 – Descobrindo ou contando uma história? 2.3 – Mapeando e fotografando o tema

III – Considerações Finais IV – Bibliografia

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Pátria Soube a definição na minha infância. Mas o tempo apagou As linhas que no mapa da memória A mestra palmatória Desenhou. Hoje Sei apenas gostar Duma nesga de terra Debruada de mar Miguel Torga

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I – Introdução “O que não somos – porque nada o é – como realidade, nós o somos se como realidade o amamos e por meio desse amor nos conferimos existência, apenas, mas sem limites, saudade.” Eduardo Lourenço*

Portugal. Para onde esta palavra nos leva? Que sentimentos e idéias ela evoca? Certamente, junto à imagem do país que um dia ousou transpor os limites de seu pequeno território para se lançar ao mar e “conquistar” a exótica porção do Mundo da qual o Brasil era parte - em nome da fé católica, do interesse exploratório-econômico e do poder político (com todas as boas e más conseqüências que esse empreendimento acarretou) -, Portugal nos lembra também tradição, comida boa e farta, vinho sempre à mesa, campos verdes e cultivados. Mais. Portugal nos lembra um ancestral da família esquecido num retrato já apagado pelo tempo, o português do botequim da esquina ou um parente próximo que, mesmo morando por aqui há anos, teima em manter um sotaque carregado. No meu caso, Portugal lembra tudo isso e mais um pouco. De portugueses descende grande parte da minha família e isso se percebe nos costumes, no biotipo, no jeito de se relacionar e de amar. E Portugal lembra, sobretudo, saudade. Esse

sentimento,

tão

presente

na

prosa

e

no

verso

portugueses, cantado nos fados e nas modinhas, sempre me pareceu fazer parte da condição do português no mundo. Ser português, (em Portugal ou em qualquer parte onde por acaso um deles se estabeleça, é ter saudade.

*

Ver Lourenço, 1999:136. 5


Além dos meus portugueses “chegados”, conheci alguns na Alemanha e nos Estados Unidos que, apesar de morar nesses países há alguns anos (às vezes vidas inteiras), falavam sempre de saudades: da aldeia natal, do clima muito melhor, das gentes mais solidárias, de um país incomparável. Em 1999, já então motivada pela curiosidade desse discurso da saudade

e

pela

herança

cultural

portuguesa

que

marca

tão

fortemente a cidade do Rio de Janeiro, tomei conhecimento do tamanho e organização da colônia lusa nesta cidade. A aproximação se fez através da imagem, fotografando de forma intuitiva e sem estudo teórico prévio as atividades promovidas por algumas casas regionais que fazem parte do grande corpo de associações que congregam os imigrantes portugueses e seus descendentes. Neste processo de descoberta através da imagem, e que será abordado mais detalhadamente na segunda parte deste relato, uma questão, no entanto, ficava cada vez mais evidente, mesmo para um fotógrafo sem formação em Ciências Sociais como eu: a insistência presente no discurso da colônia – nem sempre explícito, mas notado nas ações - em demarcar uma fronteira identitária que separaria o modo de ser português do modo de ser brasileiro. Um ano depois eu interromperia esta série de fotos pela necessidade de realizar uma pesquisa teórica que me possibilitasse conceitualizar melhor o objeto de estudo que tomava forma nas imagens produzidas, sem a qual eu acabaria por não perceber as informações sutis que se revelavam aos meus olhos. É neste contexto que o curso de pós-graduação “Fotografia como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais” abriu-me a possibilidade de estudar as relações entre essas duas áreas do conhecimento e verificar quais caminhos poderiam ser seguidos na pesquisa.

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Portanto, antes de falar sobre o processo de descoberta do tema através do uso do suporte imagético, a proposta é discutir a construção de uma suposta identidade portuguesa, onde a saudade, mais do que um sentimento típico deste povo é presença que domina e liga os dois espaços e os dois tempos que caracterizam a vida de quem emigra, constituindo, desta forma, “a força em que a construção da identidade ancora” (Capinha, 2000:110).

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II – Metodologia e Plano de Trabalho No intuito de proporcionar uma leitura mais dinâmica e crítica da série de imagens que será apresentada neste relato, o plano de trabalho será dividido da seguinte forma: Parte 1 – Quase-nacional: do imigrante português ao português do Brasil Discutiremos como a saudade, mais do que um “sentimento nacional” do povo português, perfaz um dos muitos aspectos enaltecidos de uma identidade que se deseja diferente da brasileira. Essa constante afirmação de uma fronteira identitária que separaria o “ser português” do “ser brasileiro” coloca em xeque a tão propalada “irmandade luso-brasileira” presente no discurso oficial da colônia. Uma retórica que, na verdade, mascara situações, históricas e atuais, de profunda desigualdade e cujo principal suporte tem sido – e continua a ser – a língua portuguesa. Através de um breve relato histórico da emigração portuguesa para o Brasil desde os fins do século XIX até a década de 1960 (quando o fluxo migratório começa a decair), será possível entender o

que

levava

um

imigrante

português

a

se

transformar

em

“português do Brasil”. Veremos, por fim, como a prática do regionalismo - operada pela sistematização de rituais de memória - e da vida associativa colaboram

para

a

manutenção

e

coesão

interna

da

colônia

remanescente.

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Parte 2 – Descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens Paralelamente à apresentação e à análise das fotografias produzidas sobre o assunto, serão discutidas questões relativas ao uso da imagem nas ciências sociais, assim como os embates, soluções, vantagens e desvantagens de se contar uma história com imagens.

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Parte 1 – Quase–nacional: do imigrante português ao português do Brasil 1.1 – Entre cá e lá* “O mundo, cuidava eu, girava na louca vertigem dos sonhos que me percorriam as veredas das palmas das mãos. Ó inquietante estar! A peregrinação obsessiva e melancólica A dispor do corpo, os sonhos, cada vez mais na sombra E a regatear outros espaços”. João Barcellos†

Esse vasto mundo - objeto de desejo para o viajante, sempre em busca do desconhecido, do “outro” sonhado em livros, imagens e falas - coloca-se também ao imigrante (e talvez ao português em geral) como um motivo recorrente de peregrinação. O movimento infinito em busca da descoberta, da conquista, sentido já fortemente pelo viajante, gera, em quem imigra, o sentimento de permanência da viagem. Um espaço “entre”, um cá e lá em dois espaços e dois tempos: o passado e a terra que se deixa para trás e o futuro a se construir no novo lugar. Para

um

imigrante

recém-chegado,

o

presente,

muito

raramente, se apresenta como possibilidade imediata de felicidade. A realidade

adquirirá

contornos

difusos,

entre

o

concreto

e

o

imaginário, perfazendo um espaço-tempo onde se ficará sempre pela metade. “Essa contínua incorporação e superposição do passado no presente talvez

seja característica de enclaves imigrantes em qualquer parte do

mundo. Aparentemente, as representações simbólicas e as práticas sociais associadas a Portugal, parecendo reproduzir fotografias de tempos e espaços

vividos,

podem

ser

interpretadas

como

mera

nostalgia.

*

Alusão ao livro Cá & Lá, do poeta português Fernando Lemos, radicado em São Paulo. Ver Capinha, 2000:135. †

Ver Capinha, 2000:141.

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Entretanto, essa (re)construção de camadas de tempo e espaço da terra natal, sobrepondo significados e valores culturais que estão muitas vezes em conflito, reflete a forma como migrantes percebem e

confrontam

mudanças

dramáticas

nas

suas

condições

de

existência. Essas representações de múltiplas camadas de tempo e espaço são constitutivas da saudade – uma construção cultural originada no século XVI, que define a identidade (peregrina) portuguesa. De um lado, como parte constitutiva do ‘eu’ ou da pessoa, a saudade tende a ser caracterizada como ‘a experiência desenraizada localizada entre as memórias do passado e o desejo do futuro’ ou, simplesmente, no dizer de um jovem imigrante, como ‘as memórias que tocam a alma’. Essas memórias estão intrinsicamente associadas aos tempos e espaços vividos anteriormente à emigração, ou seja, à ‘saudade da terra’. De outro lado, como parte constitutiva da memória histórica coletiva de Portugal, ou da ‘invenção da tradição’ (para usar a expressão de Hobsbawn), a saudade é narrada como ‘a essência do caráter nacional português’ e, portanto, como sinônimo da comunidade política imaginada. Temporalmente, esse imaginário se volta à era dos descobrimentos e à subseqüente história da imigração, abrangendo, especialmente, as explorações marítimas e a separação de parentes espalhados pelo mundo.” (Bianco, 1998:291-292, grifo meu)

Não é à toa que a imagem do mar aparece com tanta freqüência

na

prosa

e

no

verso

produzidos

pelos

imigrantes

portugueses como metáfora da união desses dois espaços (PortugalBrasil) e entre os dois tempos (passado e presente). Uma presença que une duas vivências da identidade. A identidade portuguesa, sempre entre o longe e o perto, numa língua que embala gentes e continentes, que reflete e que constrói mitos de grandezas e sacrifícios, se alargaria ao tamanho do mundo, pois

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“a voz do meu país é a voz do mar profundo e a voz do mar é a voz do mundo”*

Nesse espaço do “eu” duplo, no qual a saudade se constitui em representações normalmente

de

múltiplas

contendo

valores

camadas

de

tempo

em

conflito,

culturais

e

espaço podemos

entender porque o imigrante escolherá estratégias de sobrevivência que irão lidar, simultaneamente, com o desejo de assimilação e a afirmação de resistência cultural. Condenados que são a emigrar por se encontrarem alijados do centro econômico em seus países, os emigrantes acabam por se (re)encontrar

em

situação

de

exclusão

em

seu

novo

espaço

geográfico. Daqui resulta a ambigüidade presente nos discursos sobre a identidade dos imigrantes – sua própria fala e a fala oficial. Enquanto o discurso oficial dos representantes da colônia (reafirmado pelos governos brasileiro e português) tende a um enaltecimento exagerado das afinidades entre os dois povos, um outro, percebido nas falas dos imigrantes e seus descendentes, destaca, ao contrário, tudo aquilo que os difere do “ser brasileiro”, e que transparece em códigos de conduta. Obviamente, a retórica da “irmandade luso-brasileira”, tão atacada por parte de intelectuais portugueses aqui radicados e não ligados à colônia, cumpre os objetivos políticos de defesa de um grupo que, de majoritário até a proclamação da República em 1889, passa a ser, desde então, minoritário dentro da sociedade brasileira. Tratando-se, portanto, de um discurso identitário delimitador de diferença, veremos, mais adiante, quais os pontos levantados que demarcariam uma fronteira entre o “ser português” e o “ser

*

Rui Assis e santos, citado em capinha, 2000:133-134. 12


brasileiro” e que investe a colônia de uma representação de si eternamente reforçada no ambiente associativo.

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1.2 – Comunidade luso-brasileira: utopia ou realidade?

[...] sei que cheguei ao brasil numa nau d’asas e logo eu descobri coisas tamanhas sei que cheguei ao brasil numa nau d’asas e logo descobri que terreiro de desgraças [...] neste belo brasil brasileiro tão falado e encantado fazendo sonhar portugueses estupidamente esquecidos da história e querendo esta mantida ou vertida em estórias pra melhor sonhar com o império tropical das casas grandes e senzalas [...] João Barcellos*

“Portugal, o Brasil, e as colônias tomariam o nome genérico de Estados Unidos da Lusitânia (...) Os E.U.L. ficariam formados por uma república federal (Brasil), uma república unitária (Portugal) e oito domínios coloniais, a sua capital seria o Rio de Janeiro e haveria um Presidente dos E.U.L”. Heitor Cabral*

O

principal

fator

determinante

para

o

grande

fluxo

de

emigração em Portugal foi, sem dúvida alguma, o processo de desfiguração do campesinato português a partir do final do século XIX até a década de 1930. Segundo Lobo (2001:175),“estima-se que a diminuição total dos salários reais dos trabalhadores rurais neste período foi de 30%. Houve crises periódicas de desemprego em 1933 e 1938. As condições de vida dos trabalhadores

rurais

eram

precárias:

jornadas

de

até

doze

horas,

alimentação insuficiente, habitação de chão de terra e telha vã ou de colmo. (...)Os pequenos proprietários rurais do norte, de onde provinha a maior *

Ver Capinha, 2000:145.

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parte da emigração, não tinham facilidade de acesso ao crédito, nem ao mercado

externo,

que

pagava

melhor

pelos

produtos.

A

pequena

propriedade familiar resistia graças ao trabalho excessivo dos membros da família, adultos e crianças, e à redução das despesas ao mínimo. As melhorias

técnicas

e

a

mecanização

concentraram-se

nas

grandes

propriedades, cujas terras eram mais férteis.”

Havia, portanto, muitos fatores de expulsão do campo para a cidade e para o exterior. A alternativa de emigração para o exterior, em geral, preferida, é explicada por Lima como a saída encontrada pelo emigrante para não perder o prestígio familiar e o lugar que lhe cabia na comunidade de origem. Vender as suas terras e tornar-se um assalariado numa cidade portuguesa, ou então, conservar a posse dessas terras pouco lucrativas e tornar-se um semi-proletário rural era, para um aldeão, um grande motivo de vergonha, o equivalente a “manchar o nome da família”. “Na lógica do imigrante, por mais paradoxal que possa parecer à primeira vista, ele partiu porque queria ficar” (Lima, 1973:209). Migrava-se com o desejo de enriquecimento para aumentar as potencialidades produtivas das terras familiares e prosseguir sendo um camponês. Essa grande importância dada ao grupo familiar e à aldeia de origem

onde

aspectos

como

organização,

trabalho

coletivo,

solidariedade e harmonia são sempre destacados, encontra eco dentro da concepção das sociedades utópicas clássicas. Estas – tal qual Utopus, idealizada por Thomas Morus em 1516 e considerada matriz do gênero – seriam marcadas “pela regularidade e pelo planejamento interno, pela uniformidade social e supressão dos conflitos, pela igualdade e conseqüente supressão das classes, por um coletivismo que tem em vista sempre a felicidade coletiva, e por um extremo dirigismo e vigilância, por parte do Estado, da vida *

Citado em Paulo, 2000:237 15


pública e privada dos cidadãos. São também sociedades do trabalho, onde toda ociosidade é banida”. (Souza, 2001:14) O estado de espírito utópico é, de certa forma, incongruente em relação à realidade encontrada nos centros urbanos mas, ainda assim, vivido no imaginário do imigrante, mesmo em menor escala, em sua aldeia de origem através da solidariedade do trabalho coletivo nas colheitas, nos mutirões, na ajuda mútua e nos laços de consangüinidade entre as famílias. A utopia de organização grupal harmoniosa e de espírito de solidariedade será revivida pelos imigrantes no Brasil nas associações (beneméritas, culturais e recreativas) que compõem a Obra Associativa dos Portugueses no Brasil. Essas casas foram de grande importância para a união da colônia principalmente durante os períodos de crise, como a depressão econômica mundial de 1929 a 1933-34 e, no caso do Brasil, principal nação de destino, pela política anti-migratória do início do primeiro governo de Getúlio Vargas. Gladys Sabina Ribeiro, comentando a revitalização da questão do nacionalismo na década de 1920, destaca o fato de que, em busca de uma modernidade para o país que o livrasse de seu passado colonial e imperial, sinônimos de atraso para parte da intelectualidade brasileira, passou-se a associar o imigrante português a tudo o que havia de maléfico em nossa sociedade, inclusive o movimento anarquista e a desordem econômica e social. O movimento nacionalista travestiu-se de antilusitanismo e era comum ouvir-se nas ruas gritos de “mata galego”, “desordeiro anarquista”, “português burro”, “aventureiro vagabundo” etc, além de agressões físicas que eram denunciadas semanalmente pelos jornais da colônia. Apesar dessas perseguições, ao longo de todo o século XIX e até as leis restritivas da Era Vargas, decorrentes da grande recessão do pós-Guerra, (mas que abriam exceções à fatia de imigrantes

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agricultores que abasteciam as fazendas de exploração do café) a população portuguesa não parou de crescer na capital brasileira, chegando o Rio de Janeiro a ser considerado, no censo de 1950, a terceira cidade do mundo com maior população lusa, com 196.000 imigrantes, 10% do número total de habitantes dessa cidade. O período entre 1900 e 1920 foi o de maior fluxo de entrada de lusos no Brasil. De 1901 a 1910 foram 218.193 pessoas e de 1911 a 1920 houve um aumento para 321.507 pessoas. Por fim, entre 1921 e 1930 este número caiu para 286.772, resultando um total de 826.472 portugueses durante todo o período de 1900 a 1930. Nesses totais, o elemento masculino e a população jovem (até mesmo crianças entre 8 e 12 anos eram enviadas, sozinhas, por suas famílias) fizeram-se presenças destacadas. “Os locais privilegiados de chegada no outro lado do Atlântico permaneceriam

basicamente

os

mesmos:

as

cidades

litorâneas,

principalmente o Rio de Janeiro, onde as raízes portuguesas permaneciam muito fortes. Com o pequeno comércio projetando-se como a melhor das oportunidades para os meninos-homem em busca da tão sonhada promoção social, a capital brasileira tornou-se sonho ou pesadelo para muitos jovens, ‘símbolos vivos de uma pátria pobre a esvair-se em gente pobre pelo Mundo’.” (Menezes, 2000:169)

Estima-se que em 1919 só nos estados do Rio de Janeiro, Minas Gerais e Espírito Santo, havia um milhão de portugueses, e que nos núcleos de Santos, Bahia, Pernambuco, Rio Grande, São Paulo (que hoje tem a segunda maior colônia de portugueses no Brasil) e Maranhão, e em outros menores (Ceará, Piauí, Mato Grosso e Paraná), existiriam cerca de 300.000 homens. A partir de 1930 o governo Vargas, ao mesmo tempo em que mantinha a política nacionalista de restrição imigratória em favor do trabalhador nacional, foi desenvolvendo uma maior abertura à colônia

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portuguesa. A questão da unidade nacional preocupava o governo frente à ameaça representada pelas fortes colônias alemães no sul do país e o grande número de imigrantes japoneses em São Paulo. Passou-se então a criar critérios de seleção de imigrantes que levassem em conta não só a capacidade de trabalho, mas também as características étnicas e afinidades espirituais. O português, pelas afinidades histórica, lingüística e religiosa passou a ser o preferido como imigrante em potencial, sendo eximido das cotas oficiais de imigração. Também não podemos esquecer a forte afinidade que foi-se desenvolvendo entre os dois Estados Novos, o brasileiro e o salazarista. Se num primeiro momento o discurso oficial do governo salazarista, apesar de reconhecer o Brasil como “país irmão”, criticava o “emigrar” como abandono das terras e da família, já em 1950, assimilando o emigrar como algo irreversível, “um destino do povo português”, aponta o Brasil como a melhor alternativa para quem queira “tentar a vida” no estrangeiro. Esta visão positiva da emigração

obviamente

poupava

o

governo

das

críticas

pela

ineficiência em criar melhores condições econômicas no país que evitassem o esvaziamento populacional, principalmente do campo. É, portanto, nesta época que a ideologia de uma “comunidade luso-brasileira” cresce e fortalece a troca de favores entre os dois Estados Novos. O imigrante português passa a ser visto como um quase-nacional*, merecedor de tratamento especial em relação aos outros povos imigrantes. A ideologia do quase-nacional atingiu seu ápice quando da assinatura do Tratado de Amizade e Consulta, de 1953

(Lobo,

2001:

215-216),

“(...)

justificado

pelas

afinidades

espirituais, morais, étnicas e linguísticas entre Portugal e Brasil, que *

Em 1941, quando da visita da Embaixada especial para agradecer a participação do Brasil nas Comemorações Centenárias de 1940 em Portugal, Marcello Caetano e o professor Barreto Campelo, do Recife, teriam cunhado o termo “quasi-nacional” (sic) para ser aplicado ao emigrante português, em termos da sua condição jurídica no Brasil, o que só ocorrerá formalmente trinta anos mais tarde. (Paulo, 2000:138139). 18


perduravam há mais de três séculos, e pela necessidade de consagrar num instrumento político os princípios que norteassem a comunidade lusobrasileira no mundo. O tratado estabelecia a consulta mútua dos países signatários sobre os problemas internacionais de seu manifesto interesse comum. Cada uma das partes contratantes acordava conceder aos nacionais da outra tratamento especial, que os equiparasse aos respectivos nacionais em tudo que de outro modo não estivesse diretamente regulado nas disposições constitucionais das duas nações. (...) Comprometiam-se as partes contratantes a tomar as disposições para regulamentar o tratado, a desenvolver os meios de promover o progresso, a harmonia e o prestígio da comunidade lusobrasileira no mundo, a extensão de todos os privilégios gozados por estrangeiros a portugueses, no Brasil, e a brasileiros, em Portugal.”

O número de entrada de imigrantes portugueses manter-se-ia elevado até meados da década de 1960 quando o Brasil, atingindo certo grau de desenvolvimento, passou a demandar mão-de-obra qualificada,

principalmente

técnica,

e

não

mais

artesãos,

comerciantes e ex-agricultores (principais ocupações dos portugueses nos centros urbanos brasileiros). Sem colocação no mercado brasileiro, os portugueses passaram a escolher outros destinos migratórios, principalmente os Estados Unidos

e

França.

“Nos

dados

estatísticos

da

população

das

comunidades portuguesas do mundo, de 1983, o Brasil e os Estados Unidos figuram em primeiro lugar, com 1.500.000 habitantes, seguidos pela França, com 900.000, pela África do Sul com 600.000 e pela Venezuela, com 500.000” (Lobo, 2001:231).

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1.3 – Identidade portuguesa e o regionalismo como eterno retorno “Os meus olhos são dois peixes(bis) Que navegam na lagoa Ai choram rios de sangue Por uma certa pessoa” Chula de Pias, do folclore da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria

Como vimos anteriormente, o fato de portugueses e brasileiros se

relacionarem

como

grupos

sociais

diferenciados

tem

sido

encoberto por uma super valorização das semelhanças culturais – principalmente língua e religião - e pela imagem ideológica de uma “comunidade

luso-brasileira”.

Esta

crença

numa

suposta

homogeneidade cultural e social entre portugueses e brasileiros talvez seja uma das causas da ausência de informações sobre as formas encontradas pelos portugueses para enfrentar a sua situação de grupo minoritário. Em sua tese de mestrado A Missão Herdada: Um estudo sobre a inserção do imigrante português, Maria Helena Beozzo Lima discute essa retórica da “irmandade luso-brasileira” ao analisar as fronteiras definidoras do grupo português na forma como são expressas pelos próprios imigrantes e como se deu o processo de inserção dos mesmos na sociedade brasileira. A antropóloga, a partir de dados levantados em sua pesquisa de campo realizada na Casa do Minho (um dos locais de congregação da colônia portuguesa no Rio), e que funciona como um estudo de caso, destaca três aspectos que colaborariam para a idéia de um grupo português separado da sociedade brasileira (1973:3): 1. Os imigrantes portugueses se consideram pessoas que diferem do restante da população brasileira por terem origem e formação diferentes;

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2. Eles possuem um grande número de associações que se apresentam como a atualização de sua identidade étnica e se baseiam em padrões exclusivos de relacionamento; 3. Estas associações, e a Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras à qual é atribuído o direito de representação do grupo como um todo, constituem uma expressão da organização de imigrantes portugueses a partir de critérios étnicos. Grupo étnico não é aqui concebido em termos culturais mas sim como um tipo de organização social que se auto-afirma através do reforço e manutenção das características próprias que o distinguiriam da sociedade brasileira de maneira positiva. A insistência na demarcação de uma fronteira definida aparece mais claramente no sistema de funcionamento e atividades das associações portuguesas em geral (recreativas, beneficentes e culturais), chamadas por Maria Helena Beozzo de “agências étnicas formalizadas” que visam, sobretudo, a coesão e manutenção do grupo com fins obviamente políticos, já que a maior parte dos presidentes dessas associações são comerciantes e industriais bemsucedidos. *** A Obra Associativa dos Portugueses do Brasil foi iniciada em 1837 com a fundação do Real Gabinete Português de Leitura, num período ainda embrionário de organização da colônia, e ganharia maior dimensão e força na década de 1920 com a criação de diversas Casas Regionais. Estas casas foram criadas à semelhança das instituições que apareceram em Portugal no início do século XX, decorrentes de um movimento de recuperação das raízes regionais feito pelos aldeões que haviam migrado para os principais centros urbanos do país, Lisboa e Porto.

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Em Lisboa é fundado em 1905 o Club Transmontano, em 1915, o Grêmio Beirão, e em 1923 o Grêmio Alentejano. São realizados inúmeros congressos organizados pelas elites locais para o debate das principais questões regionais, o que leva as casas regionais a se popularizarem para além das fronteiras portuguesas. Dentro deste espírito, são fundados no Rio de Janeiro, principal centro de atração dos emigrantes, diversos centros regionais como a Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro (1923), a Casa do Minho (1924) e a Casa dos Poveiros (1928). A partir da década de 1950 - quando o regime salazarista investe profundamente nas relações com a sua colônia radicada no Brasil - há uma nova “onda” de regionalismo e são criados outros núcleos de agremiações regionais como a Casa do Porto (1945), a Casa dos Açores (1952), a Casa das Beiras (1953), a Casa de Vila da Feira e Terras de Santa Maria (1953), a Casa Regional de Aveiro (1958), a Casa de Viseu (1966) e a Casa Aldeias de Portugal (1966), entre outros. *** As associações portuguesas estão divididas nas seguintes categorias segundo objetivos específicos*: 1. Associações Recreativas: 1.1 Casas ou Centros Regionais: criadas, dirigidas e mantidas por portugueses de uma determinada região de Portugal e que visam promover a recreação de seus associados, obedecendo aos padrões tradicionais de sua região de origem. 1.2 Clubes portugueses: é o caso do Clube Ginástico Português, inaugurado em 1868, o Club de Regatas Vasco da Gama, fundado em

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1898, a Associação Atlética Portuguesa, de 1924, e o Arouca Barra Clube, aberto em 1967, que visam proporcionar diversão aos associados, mas não se propõe à prática do regionalismo. 2. Associações Beneficentes: 2.1 Sociedades de socorro mútuo: dedicam-se a oferecer alguma forma de assistência aos imigrantes portugueses, bem como às suas famílias como ajuda financeira em caso de desemprego, doença ou invalidez do sócio e à família em caso de falecimento do mesmo, assistência jurídica etc. É o caso da Obra Portuguesa de Assistência (1921) e a Sociedade Beneficente Luso-Brasileira (1880), bem como o das irmandades e ordens religiosas como a Venerável Irmandade do SS. Sacramento Santo Antônio dos Pobres e Nsa. Senhora. dos Prazeres (1807)

e outras mais antigas como a Venerável

e

Arquiepiscopal Ordem 3a. de Nsa. Senhora do Monte do Carmo (1648) e a Venerável Ordem Terceira de S. Francisco da Penitência (1619). 2.2 Beneficências:

propiciam

assistência

médica

e

hospitalar

gratuita aos sócios e mantém hospitais e ambulatórios médicos como a Real e Benemérita Sociedade Portuguesa de Beneficência, fundada em 1840 e a Real e Benemérita Sociedade Portuguesa Caixa de Socorros D. Pedro V, de 1863. 3. Associações Culturais: englobam escolas, bibliotecas e gabinetes de leitura criados, mantidos e dirigidos por portugueses como o Centro Cultural da Comunidade de Língua Portuguesa (1961), o Liceu

*

Os exemplos dados se referem ao Estado do Rio de Janeiro, mas o mesmo esquema, em menor escala, é encontrado em outras cidades do Brasil com forte presença lusa como São Paulo, Belém, Belo Horizonte, entre outras. 23


Literário Português (1868), a Fundação Cultural Brasil-Portugal (1981), além do já citado Real Gabinete Português de Leitura.

Todas estas instituições estão subordinadas à Federação das Associações Portuguesas e Luso-Brasileiras, criada em 1931 para representar todas as associações portuguesas do Brasil frente aos governos brasileiro e português. A Federação foi também idealizada em substituição às inúmeras tentativas fracassadas de centralizar todas as casas regionais em uma única Casa de Portugal. Mas por que a prática do regionalismo, já tão forte entre os imigrantes nesta época, impossibilitou a criação de uma casa que congregasse os interesses da colônia em nível nacional, já que outras tentativas de coesão do grupo tiveram sucesso, como a criação da Câmara Portuguesa de Comércio e Indústria, instalada aqui em 1912? O fato é que os centros regionais passaram a ser os maiores catalizadores

na

construção

de

redes

de

relações

entre

os

portugueses dispersos por todo o Estado do Rio, que passaram a se estruturar em função de valores e padrões exclusivos de seu grupo étnico. Criaram tal autonomia e desenvolveram interesses tão particulares que ficou impossível reuni-los em uma só casa. Não

podemos

nos

esquecer

também

que

os

imigrantes

operavam uma transposição direta das aldeias para os centros urbanos receptores, sem passar por um estágio intermediário no território português. Assim, a memória dos tempos pré migratórios é sempre voltada para a aldeia, Portugal raramente aparece enquanto memória de “centro”, o que, de certa forma, nos ajuda a compreender a visão uma tanto idealizada que os imigrantes tem de seu país de origem num período onde as condições de existência e trabalho eram, na verdade, freqüentemente inumanas.

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Além disso, ser fundador ou diretor de uma associação é uma posição de grande prestígio aos olhos dos demais membros da colônia. Esses espaços funcionam, portanto, como metáforas da ascensão e prestígio social que os imigrantes desejariam dentro do corpus da sociedade brasileira. Isso justifica também o grande número de segmentações, decorrentes ou não de conflitos, que levam à criação de novas associações. *** A prática do regionalismo operada no ambiente das Casas ou Centros Regionais funciona, como já mencionado anteriormente, como uma atualização dos valores de convívio em uma aldeia portuguesa. “Os resultados dessas atividades se, de um lado, são apenas simbólicos, de outro se apresentam revestidos de grande utilidade prática. Reforçam os padrões de reciprocidade” (Lima, 1973:116) do grupo, incentivando-o a adquirir e manter os mesmos padrões de conduta outrora cultivados e que poderiam se perder se acaso este optasse pelo “modo de ser e viver brasileiro”. Destacamos

em

seguida

alguns

comportamentos

que

comporiam um código de conduta de acordo com a identidade portuguesa: Disciplina do trabalho O português enriquecia no Brasil pela sua capacidade de dedicação

ao

trabalho

e

pela

sua

fácil

adaptabilidade

às

circunstâncias oferecidas, mesmo tendo aqui chegado sem formação prévia. Seus descendentes vão, necessariamente, defender essa postura como algo que os difere dos brasileiros. “(...) era importante para o imigrante português no início do século reforçar a imagem de trabalhador moderno, urbano, capaz de trazer a “ordem e o progresso” para a nova pátria, conforme o interesse das autoridades brasileiras.” (Nogueira, 2000:199)

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Educação A educação portuguesa tradicional necessariamente implica num respeito, acima de tudo, à figura do pai. O “pai português” é associado ao provedor, àquele “que merece o respeito dos filhos e da mulher porque cumpre com seu dever de sustentá-los e ampará-los, gozando de uma autoridade que lhe permite orientar “bem sua família” (Lima, 1973:153). Necessariamente, a “mãe portuguesa” é aquela que respeita e honra seu marido e que cuida da educação dos filhos dentro dos princípios religiosos e de apego à família e às tradições. Casamentos É comum nesta colônia de imigrantes a endogamia, com parceiros vindos “da terra”, ou ainda, a preferência pelos casamentos com os filhos, já “brasileiros”, dos “patrícios” mais chegados, em quem

se

pode

depositar

confiança,

que

a

educação,

presumivelmente, é a mesma. Participação ativa na vida associativa: O imigrante que não toma parte na vida de sua casa regional – seja na administração, na organização das atividades ou tão somente visitando a casa nos dias de festa - é considerado um fracassado pelo resto da colônia. Como não galgou posições que lhe confiram prestígio, ele não “melhorou de vida” no Brasil. As atividades oferecidas por uma Casa Regional são inúmeras, visando suprir todos os momentos de lazer dos imigrantes e seus descendentes para que esses – principalmente os jovens - não se desvirtuem do ambiente “saudável” que lhes é oferecido.Todas as

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noites e todos os fins de semana, quando os associados dispõem de horas de lazer, são-lhes oferecidas atividades aos mesmos - torneios esportivos, ensaios do rancho, aulas de trabalhos manuais etc – como num grande playground comunitário. O esquema abaixo, da Casa do Minho, funciona, com algumas modificações, para todas as Casas Regionais visitadas:

I – Atividades Programadas A – Festas Típicas 1. festas trabalho 2. festas religiosas 3. festas baseadas na cozinha regional 4. festas juninas B – Festas Sociais 1. reuniões dançantes 2. almoços C – Competições Desportivas D – Excursões E –Comemorações baseadas nos padrões de relacionamento familiar (festas dos dias das Mães, dos Pais etc) II – Atividades Rotineiras (reuniões administrativas etc) III – Atividades Eventuais (casamentos, bodas, aniversários etc)

De todas as atividades programadas, as que atraem um maior número de sócios são as festas típicas, onde procura-se reproduzir as situações sociais típicas da região que batiza a Casa. As festas típicas mais importantes para a reafirmação da identidade regionalista são as festas trabalho, verdadeiras dramatizações de eventos próprios do tipo de exploração agrícola familiar representadas pelos componentes

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do Rancho Folclórico das Casas. Este é normalmente comandado por um diretor responsável pela pesquisa do folclore da região, incluindo danças, cancioneiro e vestimentas (que são encomendadas em Portugal para reproduzirem com exatidão os tecidos usados no ambiente rural). As festas trabalho, que normalmente são promovidas na maioria das casas, são a Vindima (colheita das uvas e preparo do vinho), a Espadelada (serões que se realizam nas aldeias para o preparo do fio de linho), a Desfolhada (representação do preparo do milho para ser armazenado) e a Malhada (ritual da “batida do centeio” para separar o grão). Cada

Casa

tem

também

suas

festas

religiosas,

muitas

comemoram o Natal, a Páscoa e o dia de Reis, além de quase todas promoverem procissões pelos bairros nos dias de suas respectivas santas padroeiras. A apresentação do Rancho é sempre esperada nestas festas, pois a estrutura de suas intervenções é baseada numa rememoração do drama da emigração: na entrada o apresentador exalta as identidades étnica e regional da Casa; na representação em si – seja ela um conjunto de danças folclóricas ou a encenação de uma atividade rural – são lembrados os padrões de relacionamento desejados pelo grupo; e, por fim, na saída, é feita uma despedida à aldeia ou à região, e reafirmada a coragem do emigrante em partir. *** Todas

as

atividades

desenvolvidas

pelas

associações

portuguesas têm ainda um pressuposto fundamental: o de que a colônia portuguesa teria em relação à sociedade brasileira um passado histórico que a colocaria no papel de detentora das verdadeiras raízes da nação brasileira. De grupo minoritário, ela reinventa para si a posição de grupo majoritário doador de cultura: o

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velho Portugal que dá ao Brasil – terra de tantas oportunidades posto que ainda não totalmente explorado – sua tradição e sua língua. Trabalhando sempre num espaço dual – passado/presente, campo/cidade, velho/novo – o imigrante português, em seu processo de inserção na sociedade brasileira, ainda teria de lidar com uma última e definitiva oposição: deixar a condição de trabalhador assalariado para a de negociante estabelecido. É neste momento, quando a oportunidade de tornar-se patrão significa maiores possibilidades de enriquecimento e de retorno à terra natal, que a maioria dos imigrantes portugueses optava pela permanência no Brasil, onde já havia construído uma nova vida, uma nova família e uma nova teia de relações no ambiente associativo. “A afirmação de que haviam decidido ficar no Brasil porque já possuíam um ambiente aqui aparece junto à declaração de estarem ligados à sua Casa Regional, parecendo indicar que, se a solução que o imigrante encontrou para o impasse em que se encontrava no período pré-imigratório foi emigrar, a solução que a ele se apresentou como ideal para resolver o impasse em que se via no “depois” foi associar-se à sua Casa Regional, onde o relacionamento entre as pessoas reproduz o padrão da comunidade de origem.“ (Lima, 1973:257)

De imigrante português, ele passará a ser, para sempre – mesmo voltando a morar em Portugal no fim da vida para ali morrer, numa tentativa de reconstituir seu “eu partido” – um “português do Brasil”.

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Parte 2 – Descobrindo a colônia portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens 2.1

– Observador participante com a câmera na mão “(...) vidente, é aquele que enxerga no visível sinais invisíveis aos nossos olhos profanos.“ Marilena Chauí*

Há muito que se discute no âmbito das Ciências Sociais a questão do observador e o seu grau de interferência na vida e ações do grupo estudado. Essa discussão, de certa forma, recolocou em pauta a importância da subjetividade na pesquisa de campo, parecendo vir relembrar aos cientistas sociais – e especialmente os antropólogos – o caráter primordial desta área de estudos que, no percurso de sua afirmação na academia, vinha se “cientificizando” cada vez mais. Não podemos interpretar uma cultura ou um aspecto verificado em um grupo se não colocarmos a nossa sensibilidade a esse serviço. Nesse processo, obviamente, deixamos nossas marcas como também saímos dele marcados pelas pessoas com as quais convivemos, num aprendizado

dinâmico

e

interativo,

denominado

“observação

participante” (Becker, 1999:47-64). Dessa vivência extraímos uma leitura sempre pessoal – dentre as muitas possíveis - onde estará implícita a nossa autoria. O reconhecimento do estatuto do autor também foi muito importante para a evolução do debate em torno da fotografia. Durante muito tempo - talvez pelo fato de depender de um suporte mecânico para ser feita - ela foi vista como mero instrumento de reprodução do real e o fotógrafo, como um operador de fórmulas.

*

Ver Chaui, 1988:32.

30


Com o surgimento recente das novas tecnologias digitais, a fotografia liberta-se finalmente dos últimos resquícios dos “realistas” de plantão. Não podemos mais nos restringir tão somente à discussão sobre o coeficiente de realidade de uma foto, este debate precisa galgar um grau maior de sofisticação quando o que está em jogo, atualmente, é a possibilidade “real” de criação de mundos virtuais. De qualquer forma, essa revolução tecnológica reforça duas necessidades que se colocam a quem interessado for em pensar a fotografia ou utilizá-la como meio de expressão: 1. A Fotografia não pode ser tomada como uma categoria à parte do universo que engloba os outros suportes imagéticos. Pensála é referir-se ao rico e vasto panorama de produção de imagens. “Se

devemos,

dessa

maneira,

continuar

a

debruçarmo-nos

seriamente sobre a natureza das imagens como objetos, haveremos de nos perguntar, mais fundamentalmente, o que cada uma delas pressupõe em termos de maneira de ver e de modo de pensar: Ver um filme não é olhar para uma fotografia. São atos de observação, posturas do olhar, muito diferentes. “Assiste-se” a um filme, “mergulha-se” numa fotografia. De um lado, um olhar horizontal, de outro, um olhar vertical, abissal. As imagens projetadas levam o expectador num fluxo temporal contínuo, que procura seguir e entender; as fotografias, por sua vez, fixam-no num congelamento do tempo do mundo e convidam-no a entrar na espessura de uma memória. Diante da tela, somos viajantes e navegadores;

diante

da

fotografia,

tornamo-nos

analistas

e

arqueólogos. Posturas diferentes do olhar, sobretudo maneiras diferentes de ver e de pensar o mundo. No primeiro caso, pensa-se o mundo na sua continuidade, no seu fluxo, na sua dinâmica; no outro, pensa-se o mesmo mundo na sua descontinuidade, na sua fragmentação, no seu recorte. Existem, atrás e dentro dessas matrizes imagéticas – fotográfica, cinematográfica, videográfica, informática -, lógicas e filosofias que temos ainda que descobrir.” (Samain, 1998:56, grifo meu).

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2. A Fotografia é sempre produto da interpretação de um autor sobre o mundo objetivo e subjetivo, o visível e o invisível que o cerca. Ela não é uma janela para o mundo e sim uma reconstituição deste. Por isso, sua superfície é significativa, carregada de valores. “Está plena de deuses” (Flusser, 1998:76). Decifrá-la é, portanto, nosso maior desafio. *** A atração dos cientistas sociais pela fotografia e sua utilização como instrumento de pesquisa e da fotografia pelos temas sociais pode ser explicada em termos históricos. Tanto a sociologia como a fotografia “nascem” quase ao mesmo tempo e tendo o mesmo foco de atenção: o Homem e sua existência social. Em 1883, alguns anos apenas após o surgimento – ou reconhecimento oficial do governo francês – do primeiro processo fotográfico, o daguerreótipo (apresentado em 1839 à Academia de Ciência Francesa pelo francês Louis-Jacques Mandé Daguerre), o filósofo francês Auguste Comte publica Opuscules de philosophie sociale, 1819 – 1828, onde dá o nome de sociologia à “ciência que estuda a sociedade, “um grande complexo de relações humanas ou, para usar uma linguagem mais técnica, um sistema de interação” (Berger, 1986:36) Ainda no final do século XIX, enquanto o fotógrafo dinamarquês Jacob Riis publica How the Other half lives (1890), denunciando as péssimas condições de vida da população imigrante no Lower East Side de Manhattan, em Nova Iorque, ou Lewis Hine denunciando o trabalho infantil nos Estados Unidos através de imagens, Alfred C. Haddon, ligado à Universidade de Cambridge, na Inglaterra, envia e lidera uma equipe de expedição “antropológica” para o Estreito de

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Torres (que separa a Austrália das Ilhas do Pacífico) na qual eram incorporadas as novas tecnologias da época – fotografia e cinema. A lista de aproximações entre as Ciências Sociais e a Fotografia é imensa. O mais importante para nós, no entanto, é constatar que “os desafios do uso da imagem são os mesmos que se colocam ao texto etnográfico: eles questionam a capacidade de interpretação, a atividade de observação, a interação com os acontecimentos que pretendemos captar e analisar”. (Alegre, 1998:111) Tanto as Ciências Sociais como a Fotografia – entre uma variedade de disciplinas intelectuais e campos artísticos existentes pensam saber algo sobre a sociedade que vale à pena contar para outros, mas ambas terão que lidar com problemas comuns que essas representações envolvem e encontrar soluções diferentes e de acordo com seus meios. Os interessantes resultados de pesquisas e trabalhos onde as duas áreas são agregadas (tanto em forma de equipe como num projeto solo) só confirmam a grande afinidade de interesses que une cientistas sociais e produtores de imagem. Estes precisam, no entanto, se instrumentalizar reciprocamente, para que tanto os desafios do fazer imagético como aqueles que se colocam aos pesquisadores num trabalho de campo possam ficar mais claros, facilitando, assim, a comunicação, o fluxo da produção e produzindo abordagens corretas do objeto de estudo em questão.

33


34


2.2 – Descobrindo ou contando uma história? Milton Guran observa no fazer fotográfico de cunho social e documental dois momentos distintos que, muito adequadamente, podem ser aplicados ao processo de um trabalho de campo antropológico ou sociológico: o momento do “descobrir” e o momento do “contar”. “A fotografia produzida “para descobrir” corresponde àquele

momento

da

observação

participante

em

que

o

pesquisador se familiariza com o seu objeto de estudo, e formula as primeiras questões práticas com relação à pesquisa de campo propriamente dita. É o momento de impregnação, no sentido empregado por Olivier de Sardan (1995:79), em que o pesquisador vivencia o cotidiano de uma comunidade e começa a “perceber alguma coisa”, sem entretanto saber exatamente do que se trata. (...) O pesquisador tem, a esta altura, mais perguntas do que respostas, e as fotografias vão refletir esta situação.(...) A fotografia “para contar” corresponde ao momento em que o pesquisador compreende e, de certa forma, domina o seu objeto de estudo, podendo, portanto, utilizar a fotografia para destacar com segurança aspectos e situações marcantes da cultura estudada.” (Guran, 1997:2 - grifo meu)* Apesar de poder constituir dois momentos distintos nas intenções do pesquisador, o material produzido pode muitas vezes subverter essa ordem, mesmo não estando o fotógrafo consciente de todos os aspectos do seu tema. É o elemento surpresa agregado à sensibilidade

de

quem

está

por

trás

da

câmera

fotográfica.

*

Apesar de no campo das Ciências Sociais o “fazer” estar mais associado ao método de pesquisa antropológico ou sociológico, na pesquisa histórica, embora envolvida com um recuo maior no Tempo, também podem ser observados os dois momentos citados: “descoberta” e “desenvolvimento” de um tema.

35


Mesmo sem ter definido a abordagem exata do objeto em questão e desenvolvido um estudo teórico capaz de lhe fornecer dados sutis ocultos sob a aparência imediata das coisas, pode o fotógrafo, também, no processo de descoberta de um tema, já estar contando uma história. Isso se dá justamente pelo caráter mutante e fluido das organizações sociais em si. Se isto, por um lado, torna o fazer fotográfico desafiante e complexo, faz também com que um tema, aparentemente finito, possa ser desdobrado em vários aspectos, várias inserções no tempo e várias interpretações vindas de pessoas diferentes. Assim,

ao

me

aproximar

fotograficamente

da

colônia

portuguesa do Rio de Janeiro (motivada por um interesse mais geral pela formação da cidade do Rio e suas heranças arquitetônicas e culturais), acabei refazendo os caminhos de meu avô paterno – um imigrante português que aqui chegou como tantos outros e que não cheguei a conhecer, mas de quem guardo a lembrança apagada de duas fotografias. E aproximando-me de sua curta trajetória de vida, deparei-me com a história da imigração portuguesa para o Brasil e com a complexa questão da identidade do imigrante – tantas relações que antes não previra. Voltando mais uma vez à fotografia, se agora analiso essas imagens e percebo o olhar surpreso e atônito de quem ainda não sabe interpretar todos os sinais visíveis e invisíveis, parto agora em busca de outra etapa, na qual poderei verdadeiramente contar o que meus olhos – após tanto aprendido – sinalizam, investigam e desvelam nos cantos mais recônditos dos seres e das coisas.

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2.3 – Mapeando e fotografando o tema Como já dito, em 1950, o Rio de Janeiro, até então considerado o grande centro da emigração portuguesa, registrava a presença de 196 mil portugueses (10% da população total da cidade segundo o censo daquele mesmo ano), sem contar os que estavam em situação ilegal. Naquele tempo, como ainda hoje, os portugueses e seus descendentes dedicavam-se ao comércio, sobretudo na área dos comestíveis, como os cafés, as panificações, as leiterias, os talhos, como também papelarias e lojas de vestuários. Muitos exerciam atividades domésticas (fato não muito comum hoje em dia) e eram barbeiros e alfaiates. Alguns mais afortunados, como Albino da Souza Cruz, fundador da Cia. de Cigarros Souza Cruz, constituíam fortuna trabalhando no ramo da indústria da construção civil, do mobiliário, da ourivesaria e de bebidas. Casa do Porto - Tijuca Aniversário do Rancho Folclórico Armando Lessada

37


Apesar de nunca terem formado guetos, a sua distribuição pela cidade sempre tendeu pela concentração em determinados bairros, que ficam próximos das zonas de trabalho tradicionais da cidade. Em alguns deles, predominam conjuntos de casas, as “vilas”, como a que até hoje é conhecida pelo nome de Portugal Pequeno, na verdade uma concentração de casas perto da zona portuária da cidade de Niterói, hoje decadente, mas que já foi um dos núcleos mais fortes da colônia no Estado do Rio. O Centro da cidade do Rio, onde estão algumas associações de porte, como o Real Gabinete Português de Leitura e o Liceu Literário Português, foi até 1930 o local de concentração das atividades comerciais da colônia, o que explica que tenham elegido bairros e arredores como os que deram origem à Cidade Nova, Estácio e Catumbi como locais de moradia. Apesar de hoje decadentes, ainda ali se localizam algumas associações importantes da colônia como a Associação Luso-Brasileira de Imprensa e a Casa das Beiras. Casa das Beiras - Rio Comprido Procissão de Nossa Senhora dos Remédios, padroeira da casa

De todos os bairros da Zona Norte, os que contam com o número mais significativo de portugueses é a Tijuca e o Rio Comprido, onde há também as Casas Regionais mais tradicionais, 38


como a Casa de Trás-os-Montes e Alto Douro, a Casa do Porto, a Casa dos Açores, a Casa dos Poveiros, a Casa de Vila da Feira e Terras de Santa Maria e também o Orfeão Português. Casa dos Poveiros - Rio Comprido Procissão de Nossa Senhora d´Assunção, padroeira da casa

Existem

ainda

pequenas

concentrações

em

bairros

mais

periféricos da cidade, como Jacarepaguá (originalmente formado por quintas de pequenos lavradores e onde hoje está a Casa Aldeias de Portugal), nos subúrbios, como Méier, Engenho Novo e Vila da Penha (onde se encontra a Casa de Viseu, uma das maiores da colônia) e em bairros da Zona Sul, como Botafogo e Cosme Velho (onde fica a Casa do Minho), para onde se dirigiram os portugueses mais abastados a partir de 1950. Muitos destes portugueses passaram a residir na Barra da Tijuca a partir do boom imobiliário do bairro no início da década de 1990, onde já existia desde 1967 o Arouca Barra Clube, hoje um dos mais freqüentados por seus descendentes e onde acontece todos os anos o Festival do Folclore, com a participação de todos os ranchos das Casas Regionais.

39


Casa de Aveiro - Maria da Graça Procissão de Nossa Senhora da Saúde, padroeira da casa

É importante notar que bem próximo à cidade do Rio existem núcleos importantes como os de Petrópolis, Teresópolis, Nova Friburgo e na já citada Niterói. Casa dos Poveiros - Rio Comprido Procissão de Nossa Senhora d´Assunção, padroeira da casa

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Casa do Porto - Tijuca

Rosinha da Serra de Arga (...) Ó minha Rosinha Eu quero-te tanto Como à rosa brava (bis) Criada no campo Criada no campo Criada no campo Ó minha Rosinha Eu quero-te tanto (bis) Do folclore da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria

Casa Aldeias de Portugal - Jacarepaguá

41


Rancho Folclórico Adulto Casa de Viseu

Casa de Viseu - Vila da Penha Procissão de Nossa Senhora da Conceição, padroeira da casa

42


O período de execução dessa primeira fase de “descoberta” do projeto foi de fevereiro de 1999 a janeiro de 2000. Os três primeiros meses foram gastos com contatos telefônicos a partir da lista de 60 associações

reconhecidas

pela

Federação

das

Associações

Portuguesas e Luso-Brasileiras, numa tentativa de se fazer um mapeamento das atividades regulares oferecidas pelas mesmas neste período. Casa Aldeias de Portugal Jacarepaguá Rancho Lavradeiras de Portugal - Representação da Vindima

Em se tratando de um grupo bastante fechado, a receptividade à proposta de um “projeto documental fotográfico” era normalmente ruim e em muitos casos jamais obtive um retorno dos responsáveis por algumas casas (presidentes, diretores ou mesmo secretários), apesar de inúmeros telefonemas insistentes. Deste modo, comecei a fotografar nos locais que iam abrindo suas portas e nas ocasiões que me eram oferecidas, normalmente

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Casas Regionais e suas festas típicas (trabalho, religiosas e as baseadas na cozinha regional). Procurei cobrir, dentro do possível, uma variedade de bairros e assim verificar se o perfil dos freqüentadores e das associações mudava muito. Constatei, no entanto, que em quase todas os padrões de arquitetura se pareciam, com uma sede principal mais antiga onde funciona a administração e um grande ginásio no fundo do terreno feito para comportar os sócios em dias de festa e para servir aos torneios esportivos. O público também não diferia muito já que os sócios de uma Casa costumam freqüentar as outras nos dias das festas típicas. Casa de Viseu - Vila da Penha Procissão de Nossa Senhora da Conceição

Foram fotografadas neste período sete Casas Regionais, numa média de uma Casa por mês, com interrupções nos meses de julho e dezembro de 1999. Assim, em cada mês eu fotografava uma Casa Regional em um fim de semana festivo, sem contar as eventuais visitas feitas durante a semana para conversas informais e coleta de dados.

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Casa das Beiras - Rio Comprido Rainha e Rei do Folclore 1999, casados na vida real

Carinhosa Carinhosa, ó minha carinhosa Ó minha cara linda Ó meu botão de rosa (...) Carinhosa assim te chama Toda a gente no lugar Ó Maria vem prá roda Quero que sejas meu par (...) Os teus olhos são fogueiras Onde os meus querem bailar Hei de cansar os meus olhos À volta do teu olhar Grupo Etnográfico de Cantares e Dançares João Ramalho, Casa das Beiras

Casa das Beiras Crianças do Grupo Folclórico João Ramalho

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Como desconhecia, na época, toda a complexa teia de relações e hierarquia dentro destas associações, muitas informações e oportunidades de bons registros me escaparam; meu olhar se fixava mais nas festividades oficiais, nas representações, no que se descortinava mais facilmente. Mesmo assim, tentava atravessar de alguma forma a espessa camada da encenação das festas, e perceber o que jazia por trás daqueles símbolos eternamente repetidos.

Casa de Vila da Feira e Terras de Santa Maria - Tijuca Almoço da Festa das Fogaceiras

Somente com muito tempo e conversa é possível fazer com que um português abandone o discurso e a postura oficiais que adquire nessas festividades e comece a mostrar suas fragilidades cotidianas, sua vida particular, esse espaço silencioso por onde passeia nossa interpretação. O projeto foi interrompido em 2000 para ser avaliado, mas não esperava que uma pausa tão grande no processo fotográfico fosse

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necessária para que ele finalmente adquirisse consistência de propósitos, para que tivesse uma identidade. Após dois anos de estudo, quero poder voltar a acreditar nessas imagens e descobri-las em sutilezas não vistas. Acima de tudo, desejo me lançar no vasto universo de situações fotografáveis que ainda me resta encontrar para poder, então, contar a parte que me cabe dessa história...

“Ai! À roda, Tirana, à roda Ai! À roda, desta maneira Ai! Mais vale um gosto na vida, ó Tirana! Que cinco reais na algibeira!” Tirana de Cidacos, do folclore da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria.

Casa de Viseu - Vila da Penha Rancho Folclórico

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II – Considerações Finais Vimos, no presente trabalho, de que modo a construção simbólica de uma identidade portuguesa, diferenciada da brasileira, foi um fator determinante na manutenção da colônia portuguesa no Brasil como um grupo capaz de defender seus interesses minoritários frente à nossa sociedade. Através de uma complexa teia de representações que se realizam no plano coletivo, as associações luso-brasileiras conseguem atrair os descendentes dos imigrantes portugueses, especialmente jovens e crianças, e fazer deles seguidores e difusores da cultura portuguesa no Brasil. Uma cultura que está, no entanto, congelada no

período

rural

da

sociedade

portuguesa,

à

parte

das

transformações reais por que vem passando Portugal depois do seu ingresso na Comunidade Européia. Enquanto Portugal reavalia os seus mitos e questiona essa tradição arraigada que veio a se transformar em justificativa para os seus medos e estagnações, a colônia portuguesa do Rio continua a perpetuá-la como única representação possível desse país que ficoulhe fixado na memória da infância. Essa prática de rememorar Portugal através da aldeia, de certa forma, nos fala sobre a importância que alguns povos dão a costumes e manifestações particulares circunscritas ao núcleo familiar e grupal, fazendo-nos refletir sobre o conceito de globalização, tão propagado ao longo da década de 1990 e atualmente merecedor de inúmeras críticas. Ao mesmo tempo em que se defende uma possível “unidade cultural” européia, latino-americana ou mesmo árabe, grupos como o que abordamos neste trabalho fazem questão de demarcar uma fronteira identitária. Acreditando ser este um tema passível de ser contado através de imagens, entramos nessa aventura e, no processo de sua descoberta, começamos a perceber as relações que se colocam ao fotógrafo que propõe documentar um aspecto da sociedade em que 48


vive, assim como os mesmos desafios surgem para o cientista social numa pesquisa de campo, utilize ele ou não o suporte imagético. Esperamos que esta reflexão contribua para que as barreiras que ainda separam cientistas sociais e produtores de imagens possam ser minimizadas. Elas são frutos de preconceitos e da não consciência de que o processo de descobrir e contar uma história aproxima-nos em muitos aspectos.

49


Saudades de Além Mar Portugal, meu Portugal, Como te amo, distante Neste Brasil, tão irmão Embora irmão emigrante... Sinto bastante saudades Na hora de regressar Quando vou à Portugal Desejo logo voltar! No torrão tenho raízes Profundas, de grande porte, Mas a raiz no Brasil É muito, muito mais forte O coração não resiste A tanto amar e querer Em Portugal ou Brasil Ficarei quando morrer. Antero de Macedo*

*

Imigrante português já falecido e sócio da Casa da Vila da Feira e Terras de Santa Maria, gentilmente apresentado por Sérgio Viana, responsável pelo setor de folclore da casa. 2001

50


Bibliografia Livros, Teses e Textos

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*

Uma versão preliminar desse trabalho foi apresentada na II Reunião de Antropologia do Mercosul, realizada no Uruguai em novembro de 1997.

51


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52


GOUVÊA,

Patrícia.

Quase-nacional:

descobrindo

a

colônia

portuguesa do Rio de Janeiro através de imagens. Orientador: Milton Guran. Rio de Janeiro, 2002. 52p. Monografia apresentada como requisito parcial para obtenção de grau de Especialista em Fotografia como Instrumento de Pesquisa nas Ciências Sociais. Centro de Estudos Afro-Asiáticos, UCAM

RESUMO

A imigração portuguesa para o Brasil desde o final do século XIX até a década de 1960. A fronteira identitária que separa o “ser português” do “ser brasileiro” presente no discurso do imigrante português. A prática do regionalismo e da vida associativa na manutenção da coesão interna da colônia portuguesa do Rio de Janeiro. O uso da imagem como instrumento de pesquisa nas ciências sociais. Contando uma história através de imagens.

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