Carne falsa

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carne falsa

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.patrĂ­cia galelli

carne falsa

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© Copyright 2013 by Patrícia Galelli Todos os direitos desta edição são reservados. Coordenação editorial Carlos Henrique Schroeder Júlia Studart Manoel Ricardo de Lima Revisão dos originais Marcos Leptretinf Capa Editora da Casa sobre pintura de Fernando Lindote

Galelli, Patrícia Carne falsa - Patrícia Galelli Rio de Janeiro/Jaraguá do Sul : Editora da Casa, 2013. 88 p. ISBN 978-85-8081-030-1 1. Contos Brasileiros I. Título.

04-6834

CDD-869.93

[ 2013] Todos os direitos dessa edição reservados à Editora da Casa CNPJ 07.855.644/0001-00 www.editoradacasa.com.br Distribuição: atendimento@designeditora.com.br

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Sumário 1. explicações da costela esquerda 13 17 18 19 20 21 22 23 24 25 26 27 29 30 32 33 35 36 37 38 39 40 41

Pandora lágrima de cotovelo digo que não dói olhar para mim eu nunca soube direito anfitriã notícias bilhete de geladeira qual de nós duas é o nosso homem trauma de trepas sal a gosto mulher invertebrada ele não veio por inteiro ¼ da cara dele fluxo da decepção encarnada encharcada do azul de tão burra Antonio Carlos a três metros de mim sala de observação pó no arrepio da pele o corpo é cidade planejada retorno do fim trauma de esperas Mãe Bárbara Lúcia Helena

2. faca de desossa 44

obituário

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45 46 48 49 50 51 52 53 55 56 57 60

costela pichada um pedaço de garoto numa bicicleta marquise terminal estilhaço e como ontem brita leve intestino de cão papel de segunda naquilo que a alma fica quando a gente dorme o afeto são moscas importadas éramos três sonos leves

3. câmara fria 62 63 65 67 68 72 75 76 77 78 79 82 84 86

trauma de esperas relato sobre o mofo sonho de hormônio dicionário amor que não foi azar nascido da falta de ação povoação sideral ligações internacionais fotografias da solidão passada família marginal observação da minha cura que não acham grego falar como uma cadela carne falsa

para Dennis

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Eu não queria isto, não isto (mas ouça com calma, querer é o que os corpos fazem e hoje somos apenas fantasmas)... (Marina Tsvetayeva)

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1.

explicações da costela esquerda

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Pandora para Gabriéla Bresola

Sandro Linhares lava alma e hematomas no chuveiro. esfrega muito as unhas tingidas de azul-negro do acúmulo de sangue nos dois polegares do pé, sempre atingidos pelos seus acidentes-dia. os artelhos de Sandro Linhares sabotam o banho e o cuidado que ele aplica aos dedões, quando, para segurar um dos pés e esfregar uma das unhas azuladas, lança o peso ao outro, que só conseguiria equilibrar um corpo desses se o artelho tivesse magnífica articulação. a barba de Sandro Linhares dobra a esquina rumo ao umbigo e a correnteza de pontos pretos cessa na papada. eu gosto de descrever o rosto de Sandro assim, como água na cara, escorrida, que pinga de mentira. Sandro nunca canta no chuveiro, no fundo eu sei que ele tem medo; pensa ser deixa para a mulher lhe perguntar o que há. Pandora. a mulher de Sandro Linhares, cabelos negros, pele muito branca, linda, sabe. Pandora fica à espreita na saleta verde dos humanos não-praticantes (seu quarto – e nunca o quarto do casal). ela se queixa das palavras que não viram ações dignas nessa altura do casamento. Pandora boceja o tranquilo do mundo e sempre cerra os lábios com sorriso de braços abertos: faz cafuné no cachorro que não tem nome e levanta só para conferir o banho do marido.

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ela caminha vagarosamente até o banheiro. abre a porta com cuidado e o barulho não cresce. Pandora espia dali e sente o ar embaçado encobrir suas nuances de ira, o semblante muda; o marido nu, olha, esfrega os hematomas dos pés. esfrega o azul colado na unha. Pandora não aguenta. Pandora entra, o aviso é o soco na porta e. – você me acha ridícula porque tenho aversão a silicone, porque detesto qualquer anomalia cirúrgica, porque não chupo, porque não trepo de qualquer jeito, porque organizo na minha cabeça passo a passo pra ser bonito, tipo amor pra sempre. você acha que chupar é legal na primeira noite, mas eu sinto nojo. você não devia estar aqui. Sandro Linhares é um cara de sorte. mas leva susto e, para acreditar mais de verdade no que acaba de ouvir, volta a ter os dois pés no chão. fica estático; dá até para ver Pandora e o ataque de histeria nos olhos arregalados de Sandro. – o que você pensa que está fazendo? a vida toda lamento ter desperdiçado meu tempo com você. você é um fantasma, Sandro. e abaixa a cabecinha, a Pandora, com a decepção que lhe afaga as ventas. – eu sou tão idiota. Pandora levanta a cabeça agora. – eu sou tão idiota por você existir e viver aqui. eu tenho

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vontade de me beliscar toda. me beliscar pra acordar a vida. o que você pensa que eu sou? “sim, você é um fracasso, Pandora”. “Pandora, a semideusa”, “a que possui todos os dons.... sim, do fracasso!”. eu só posso ser uma espécie em extinção. Pandora sai do banheiro e bate a porta, está muito, muito braba. olha para o cachorro demoradamente, ofegante. volta à porta do banheiro, abre e entra com a pior ira de todas. – o atlântico vai inundar este banheiro, o anel de saturno vai agarrar sua garganta até que você aprenda a enxergar a mulher que tem. a hora que você sair daí eu vou esfolar a sua cara, Sandro. e você não faz nenhuma pergunta? acha que é fácil viver olhando pra tua cara depois do que me fez? vem dizer que a culpa é da sua mãe...? qual é, hein? Pandora senta no vaso, coloca a cabeça entre os joelhos, agarrada nos cabelos; daí levanta a cabeça e aproveita para trocar o absorvente sujo de sangue. ela treme, mas não chora. Sandro ameaça abrir a boca, mas Pandora o faz recuar iniciando o discurso aos gritos. – quer me cortar em lascas para montar uma mulher do jeito que você quer? como é a mulher que você quer? por acaso, você quer alguma mulher? quem sabe uma com boca de dragão, nariz de rabo de tatu e bunda de rinoceronte? eu odeio você, Sandro. eu odeio olhar pra sua cara, eu odeio a sua mãe.

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Pandora deixa o absorvente sujo na tampa do lixo até que coloque o limpo. Sandro tenta pegar a toalha. Pandora percebe a movimentação de Sandro, está atenta a qualquer movimentação de Sandro. abre o lixo para jogar o absorvente sujo, mas não. olha para o sangue. olha para Sandro. ele foge para dentro do box. o box moderno, de vidro, que Pandora finge ser um quadro negro; e ela a menina escolhida para apagar toda a lição do dia – esfrega o absorvente, espalha o sangue, espanta Sandro para a parede. – cala a boca, que agora eu estou falando. não pense que eu vou ficar em silêncio depois de tudo o que me fez passar. eu vou esfregar esse absorvente na sua cara pra lembrar com quem você está lidando. mas Pandora joga o absorvente no lixo, lava o rosto e passa as mãos sobre a cabeça, molhando também os cabelos. Sandro está dentro do box, encostado na parede, estático e mudo. ela continua com os gritos, e gritos, enquanto ele, como se a parede fosse uma areia movediça, some cada vez mais para dentro dela. – desgraçado. você foi preparado para o amor da maneira mais monstruosa que eu poderia imaginar. você é insano. “Sandro, o insano!”, por que não? seu filho da puta. eu vou te matar!

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lágrima de cotovelo

ela se divide em tipos com detalhes minuciosos de muitas mulheres. uma só, para um só. e em tantas se transforma, o tempo deixa. ele não entende que ela só sabe chorar pelos cotovelos e que é amor, mesmo assim – essa coisa que faz arder a compaixão que nasce com a gente. ela briga, diz nomes feios, morde, manda ele embora e depois diz “me morro toda sem você”. então jorra dela o amor, ao ouvir ele dizer que basta que ela o mande se foder num dia e lhe diga oi no outro.

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digo que não dói olhar para mim

perdôo a dor, que desistiu de mim e a solidão, que não foi tanta como eu quis (Vitor Ramil)

finalmente não tenho nada. saio com feridas pelo corpo (olhos, ouvidos, barriga, costas, braços e pernas); por que não tive varicela quando era criança? saio com olhos inchados de certas saudades e algum pesar. sem saber por que fui sabotada, saio com a garganta em plástico. levo roupas, não todas, alguns livros e algum choro no compartimento secreto. deixo colchão, fotografias, televisão. levo carteira de vacinação e contrato de trabalho. levo os rascunhos, deixo as histórias. ganho e perco a liberdade. ganho e perco lar, família, dois ou três amigos. ganho panela, sabonete líquido e hidratante. minha cabeça coça, mas estou limpa. digo que sim. digo que não dói olhar para mim: eu quis ver.

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eu nunca soube direito

ela sempre foi feia, de dores fingidas. tão estúpida quanto sua imagem vazia no espelho. sempre sorri para que ela morresse. bebia ao leite, limão e mel, para acalmar os maléficos do corpo. bebia doses ridículas de fé em pensamento positivo, receita infalível das orações ensinadas pela avó por parte do pai. desci escadarias, paguei entradas de cinema, paguei comida chinesa. paguei com a cara o preço da vontade que ela tinha de tirar com a minha – receita infalível para que ela dormisse dentro do vento, um perfume adocicado de sonífero. aprendi a gostar de goiabada com queijo. aprendi a esperar madrugada adentro. aprendi a dar em silêncio. a conviver com a dúvida do amor dela por mim. mas aprendi tanto, que me faz tanto bem a feiúra dela quanto a minha própria. acho que sorrir eu nunca soube direito. quando a engoli, há quinze anos e nove meses, não imaginava o monstro que vomitaria.

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anfitriã

Júlio fica na chuva, há tempo não é mais peso de porta. causa disso Dona Isaura trata todo mundo, muita cor, comida e guaraná barato. Isaura é verbo impositivo. Isaura vê, espremendo os olhos bem fininhos à procura das coisas todas que existem para serem vistas. Isaura!, os olhos dela me disseram bem dentro dos meus. e exauri ali mesmo, com o pratinho descartável nas mãos, cheio de torta laranjada. exaurir é verbo definitivo, bem dentrinho, que é para ninguém (todos simpáticos demais), tomar conhecimento: meu estado de espírito todo alvoroço morrendo de vontade de sexo em hora que não é boa - reunião de gentes felizes, ou quase. viro uma coisa bem pequena nessa hora, porque os olhos de Isaura me despem e eu peladíssima sobre o sofá quero livrar meus neurônios das vibrações premonitórias apegadas à pele. outro trequinho de plástico me dá, cheio de meleca amarela de manga e sorvete. Isaura é mesmo o nome dela e combina muito com o Dona precedente, mas entende pouco que para engolir isso eu preciso de água.

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notícias

diz que não quer voltar; que não entende por que tomou tanto leite de cabra, se leite de soja tem sabor de baunilha; que você não está fazendo o tratamento da gastrite; que os remédios mofam na gaveta das calcinhas; que você sente azia terrível. diz que você tem um homem que lhe come bem e que o resto você tolera como pode.

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bilhete de geladeira

chegue pelado, me traga uma cerveja e o resto deixa que eu faรงo.

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qual de nós duas é nosso homem

que uma de nós desliza a mão pelo corpo, enquanto a outra chora no banheiro.

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trauma de trepas

a vagina se fecha por pequena chapa de acrílico na forma de folha de laranjeira. do material quase plástico, quase vidro, espécie de horror estica espécie de braço mecânico até a garganta. é um sistema acionado por neurônios que falham propositadamente suas atividades elétricas quando ela ensaia resposta. não consegue mais transar. ela sofre de tristeza específica; ela não suporta mais ser um colchão com buraquinho.

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sal a gosto

vermelho. morro de medo que falte freio justo agora e eu arrebente este parachoque na bunda do Toyota. câimbra no pé, arrepio na espinha, um desprazer. tenho 40 anos. tenho quatro filhos. tenho saído com homens elásticos na cama, estátuas na mesa, imbecis na rua. não aparento a idade. sou discreta, sou um vidro de grãos de café na última mesa da cafeteria central. não ligo se não gozo - eu não gozo. nem com os homens que tenho saído. eu tempero os corpos para outra comer depois.

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mulher invertebrada

não sei como vai ser quando ele chegar. é tão amável, me enoja. não suporto o jeito ligeiro de deslizar pelo meu corpo, como se vida e morte estivessem juntas a serem decididas no jogo, como se fossem as duas partes da penetração. ao meu lado, ele me faz viver sozinha, então eu não sei por que enlaço meu braço nele e deixo minha mão descansar ali na pança para dormir. não sei por que me encho de miséria para fazer do sono dele uma noite segura e nem me importo com as putas que rebolam nos sonhos dele. me dói dizer assim, com a franqueza de quem desdobra os sentimentos sem piedade, que nunca o amei e espero, exaustivamente, por alguém que não conheço. até esqueço, chego realmente a esquecer do quanto pesa essa saudade pelo que não tenho, mas um filme sozinha em que um amante morre embalado por outro me deixa assim. eu não sei como vai ser quando ele chegar. não sei se vou reconhecê-lo de imediato, se me perco e me encontro sobre o corpo dele ou se ainda haverá corpo. é essa falta que rima o meu fracasso com a sorte, o futuro paralelo que eu quero. sou uma mulher invertebrada, um cogumelo à espera da industrialização para ser comida de uma vez e, enfim, me encontrar na alucinação de alguém, ninguém.

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ele não veio por inteiro

aquele nariz redondo na ponta, como se uma bola de gude tivesse nascido pelo excesso de cartilagem, não me engana. o cara é daqueles que viram o mundo num viés abarrotado de vazios e encontram vísceras de vida própria, maleáveis à vontade que inventam. usa óculos. talvez usasse antes, quando ainda se usava óculos para dar aos olhos os graus que foram embora. ou aos que vieram faltando – aos que não vieram. ele não veio por inteiro. mas veio, eu esperava. do tipo que cruza os braços nas costas, e fuça modos, respiros, delírios, frequências, qual um furão faminto, ele modela minha curiosidade com ar desinteressado – jeito desprezível. gola polo cantando o pescoço, calça suja por falta de tempo, ele acelera. eu retraio. e nos perdemos. o quarto é um tabuleiro de xadrez. o tabuleiro, um tapete para lagartixas. pintamos num dia vago, numa sexta. folgas passam mais rápido que esses fogos de palha, que a gente, para anteceder o processo, corta o fio a assassinar os possíveis prazeres (as folgas são a gula desesperada pelo doce depois de comer o tempo – e o doce nunca vem). pintei pouco. tive uma crise de asma e passei a respirar só por dentro. morri de amores mil vezes por ele lá dentro. uma prova a mais de que amor não mata

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sério, se faz de coisa, de foda, e pendura a gente atrás da porta até passar a ilusão. ele parecia sempre, porque eu nunca consegui passar a certeza no pão e me satisfazer. aparecia e virava fumaça, do tipo que se dissipa sem se perder. gostava de jogo e isso explicava. sempre gostou, eu acho. eu não sabia que gostava também. em combustão, fiquei suspensa e tóxica na atmosfera do jogo. dei as cartas. mas a cartada, por mais que forje as ressonâncias estratégicas e vença os compassos, vive na craca incrustada no tédio. aí descartei. não tive saída.

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1/4 da cara dele

desejava intensamente que a vida pudesse ser desligada antes de se dar o desligamento – como acontecia com as ligações da central telefônica. o riso reprimido, tanto quanto o deboche na mesma circunstância, pode ganhar proporções internas tamanhamente destruidoras. ele tinha as entradas da careca e estava prestes a parecer com um grego. enquanto eu só conseguir ver um quarto da cara dele, ficarei à vontade para continuar olhando.

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fluxo da decepção encarnada

construir para imediatamente destruir, eu disse. a vida é isso mesmo, verdadeiras relações de reciprocidade somente se for para vingança. ele respondeu ombros. amor é conversa de quem não tem o que fazer – continuei (eu tive essa coragem) – a decepção é natural, porque a ilusão afaga e depois espanca. ele disse que eu não existo, que sou um produto das ideias dele. ele pediu para eu ser sincera. eu fui. então ele disse que as palavras que eu disse eram ácidas; que não falasse mais assim. não disse mais e também não agradou. queria que eu falasse o que cabia no ouvidinho. me recusei, claro, acho um saco. foi quando me chamou de “decepção encarnada”. eu disse vai, sai da minha vida. ele não foi. em papo menos escuro, quis conversar sobre aquele dia. eu disse não. eu disse daquele dia muito, várias vezes, só não era o que ele queria ouvir, dó. fica quieto, besta. acatou. fez poema pensando em mim, mas que servia para a decepção causada por outras pessoas. disse para ele chamar de “decepção encarnada” – o poema –, me chamou de tonta. li e não soube o que dizer. então disse imbecil. ele só gostava de mim porque eu escrevia, só isso. gostava do meu pessimismo e de agredir a rotina besta que eu ainda vivo. eu gostava dele; um pouco, às vezes. mas isso só até o dia em que ele disse que eu era a mulher da vida dele. aí deu errado, menino, virei a tristeza em pessoa,

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decepção ressuscitada na lata. é uma história que não esqueço, porque tenho memória boa. a dele é de peixinho dourado. esquece do que me fala. esquece. tudo sempre é novo. viaja o mundo do aquário, mil voltas ao mundo do aquário. é novo, a mesma água de sempre é sempre a água nova, porque ele esquece. feliz, coitado. mas é mentira, porque ele é quem não existe. ele é que foi só um produto das minhas ideias – comprado no crédito, parcelado em dez, sem juros.

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encharcada do azul de tão burra

tudo bem, não senti nojo. mas esse câncer de pele logo agora que namoro me deixa em convulsão, eu sinto a ternura inquisitória da auto-piedade. me seguro, de tesoura em punho, aperto o dedo mínimo com as unhas. as ideias vulgares pensadas pelo dedo definem o meu rumo de agora. a visão é egoísta, o recipiente é míope. o câncer de pele são os olhos do vigilante de um panóptico, egoísta e míope. um câncer de pele logo agora que namoro me deixa encharcada de carinho, humanoide pronta para despedaçar. eu tinha um homem difícil, só agora que namoro. a face esquerda do rosto dele tem marca do atentado com aparador de barbas. quase o suicídio, não fosse minha intervenção. ele era indiferente, esse homem. eu que mudei tudo. ele era inseguro demais e eu chorava, sempre. eu tinha o coração azulado, de tanto açúcar. me incomoda ter só coração. o pós-operatório não deprime agora e o dedo pensa muito bem sobre o futuro. o homem difícil e o namoro, juntos; meu asco da auto-piedade e o vigilante do panóptico, cegos. está tudo mais certo que antes, era um câncer. eu tinha o coração muito azul, de tão burra.

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Antonio Carlos a três metros de mim

o que era a porra do “em todo o caso”, que eu nunca entendia. em todo final de noite, estava lá o “em”, o “todo” e o “caso” – um certificado, o prêmio para a minha perda de tesão. as explicações de Antonio Carlos, muito gente até os quinze, diga-se de passagem, há tempos interrogavam minha desaparição do quarto, beiravam o corredor quando a porra não vinha, e não vinha. não poderia acabar assim, sobre o direito, a teologia, a política, o meu interesse. sabe, não era sexo, nem coisa afrodisíaca. conhecimento tático – hum, do tato. era puro conhecimento didático, estático, sem vai, sem vem, sem fomos. o primeiro volume dos em-todo-caso que ele escreveu despe a carne do desamparo e tem circunstâncias fatais. os argumentos e fotos que ele partiu ao meio a fim de consertar o passado desfilam em forma de letras para que eu nunca, jamais (sob hipótese alguma), os descubra. do ponto de vista dele à porta do guarda-roupa dava cerca de três metros. não gosto dessa coisa de números, mas é que eu ficava sempre em frente à porta do guarda-roupa. Antonio Carlos chegou assim, com olhos de sobrevivente de Auschwitz, nos desencontros entre os “poderias” que já foram. e eu embarquei nessa de “a cada segundo o teto desaparecia debaixo dos meus pés e eu não sonhava,

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que a cabeça não alcançava as nuvens e não havia ninguém lá”, como ele escreveu. o teto sempre abaixo dos pés. entenda, o deixei porque foi assim. e quanto à ela. ah, ela é o que sou de ausência.

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sala de observação

nos braços, manchas roxas aconchegam o rancor, não há mais que uma fábrica de lágrima dentro do cérebro, fechada para balanço. a língua dorme entre os dentes e o resto do corpo se mantém quente com ajuda de máquina. agora não houve amanhã para ela. um fio corta o estado clínico, um fio corta o espírito. uma lâmina corta a barriga e o processo cirúrgico retira útero, trompas e ovários. ela é o que resta de mulher : pequeno rosário nas mãos, segura a migalha do casamento.

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pó no arrepio da pele

é por dentro que parte. as paredes internas, o líquido parecido com água suja de pincel velho. no chão do céu do corpo pisam os donos de usinas do tempo, eu fujo para os braços do meu poço. tenho a mesma escala de palidez que de manhã, engoli a seco esse gesso. é boa a persistência da minha saliva. volto de presente, talvez conseguisse racionar o sossego e ele durasse agora. paredes nascem entre as pálpebras, fecho os olhos como jeito de ir a lugar que abrace; ainda que frio, ainda que duro, ainda que a casa me pergunte por que a ânsia de afeto a ponto de cegar desse jeito. nesse escuro há de se ver luz em solidão causada, eu digo. e que agora estou no pó acumulado no arrepio de meus pelos, deitada à monotonia da minha pele.

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o corpo ĂŠ cidade planejada

cardiologista, terça-feira, 10h. ginecologista, quinta-feira, 9h. dermatologista, segunda-feira, 8h30. intervençþes humanas nas ruas da aorta, da vagina e da epiderme.

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retorno do fim

o tanque vazio. três da manhã e o sentimento que mais atiro contra as carretas desta BR ainda seduz fácil o que me resta de ser humano. – abaixa a luz, corno! sempre padeço e doo minha cara à palidez anêmica da preocupação. e nossos quase-fins palpitam numa espécie de coração particular, corrompido por um amor estuprado e doentio. não há posto de gasolina por perto. não sei como está e por que eu. que morra, que se dane... que droga – eu acelero. a gente acabou e não termina. é o nó que não desata, que emenda, que demora. o impasse que exaure, que deturpa, me enfraquece. uma criança que carrega nas costas mais de três décadas incabíveis na cabeça. a questão me derrete feito ferro que funde e se molda. mas qual o metal, endureço - não tem jeito. que diabos a criatura quis fazer com aquela merda de bicicleta?

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trauma de esperas

tenho aqui dentro uma ferida toda azul, de tanto guardar o amor num cantinho do freezer.

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Mãe Bárbara

intermitência é imaginar médicos especializados em reconstrução de braços e tórax clandestinamente, pós-doce-cuspe-de-um-fuzil. a Mãe Bárbara revoltada pelo assassinato do marido bandido, pré-sequestro que não deu. mulher presa pelos homens que só perguntam na língua torturês. que leitor de jornal veria nas pálpebras fechadas da editoria de polícia aquele montinho de merda pelado, com hemorragia anal, jogado no corredor fétido entre as baias masculinas? a Mãe Bárbara não abriu o bico, seguiu comandante ao sair dali. intermitência é meu café da manhã, manhã de sol, nem saber seu rosto, hematomas ou sepulcro. só querendo ela soubesse, vender liberdade é trocar uma vida por outra.

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Lúcia Helena

As mulheres querem muitos vestidos diferentes porque há muitas mulheres dentro de cada mulher, e é preciso vestir todas elas, nuas elas não podem sair do corpo. (Ana Miranda)

vivo uma gripe que não passa. vivo uma voz que não é a das coisas, é que o nariz entope. é difícil para mulher como eu engasgar essa pedra no sapato de todos os dias. eu não quero, ouviu? – não quero confundir individualidade com automatismo. perca esse fervor de nascença e que te leva ao absurdo, à surpresa. eu vou repetir isso a quantos ventos passarem pelo último vidro que quebrei. a partir de hoje, sou homem. sou visceralmente homem. meus aminoácidos hormonam em figura masculina. não menstruo, tenho hemorragias mensais. meu “amo você” se traduz em suor, sal e cansaço e quantos adeuses você tiver para ouvir. a partir de hoje, penso com o pinto. minto pelo pinto. compro pelo pinto. morro – só por mim. pinto. os fúteis dirão foi traída, decepcionada, se vinga. mas eu não vou contar, é só para vê-los com a cara ingênua, olhos de leite materno. não saberão, nunca vão saber, que é o desejo antigo de deixá-los pequenos. que é o

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gozo de olhá-los de cima, ser cretina, repetir suas vozes dengosas com uma bela passada de mão na bunda, os atacando com a velha frase dos machos: – pega no meu pau, otário!

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2.

faca de desossa

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obituário

não contou que estava grávida, o broto de carne, a carne que lhe doía. sempre de calça vermelha para apagar marcas de sangue. era alguém que tinha pernas que eu queria. apenas as pernas. o barulho da cidade, a minha barba mal desenhada. os dedos amarelos, a fotografia, a caixa de cigarros. esteve grávida e escorria pelas pernas. sempre as pernas. o chuveiro quebrado. a água fria nas costas. a música que eu cantava à beira do umbigo dela. a calça vermelha, o sabonete que corre o corpo, o café que esfria sobre a mesa, a barriga inchada, a mão no suporte do sabonete. calor incapaz, pressão baixa, morte e delicadeza entre os dois corpos. o quilômetro de pernas, a camisola, a chuva de chuveiro e nós sem guarda-chuva. o broto de carne cortado no talo.

feto é planta que anda pelo corpo.

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costela pichada

a costela era o menino. ou qualquer coisa que faria o erro do pai se portar ameno por trás do vidro. a costela era a cabeça do pai abaixo do caixão, na espera. ou qualquer coisa que fizesse a mãe abrir as pernas atrás do muro laranja. as relações bilaterais da família eram repetições de cenas em negativo. o menino é doente. o pai e a mãe eram. ainda erram e ainda embravecem. a costela era o ímpeto do menino, miúdo e tosco de pulmões furados. o vidro, nem sei se não quebrou. o pai e a mãe não sei por que levavam toda hora coisa na boca para respirar. a dor é nanquim sobre papel – é tinta que invade, mancha, cria mais. a família, uma repetição fotográfica de nanquim. ou qualquer coisa que erro e pernas abertas formassem com aquela costela pichada no muro laranja.

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um pedaço de garoto numa bicicleta

não é portuguesa e não está em paredes do tempo colonial. aqui não é a Bahia e nem vai ser Minas Gerais. ainda que também forme uma calçada – tipo a de Copacabana, no Rio – nunca terá o preto e o branco encardido para se brincar de proibir caminhos. desde que está aqui, sempre foi uma calçada. mas virada, que, se for para andar, a gente só consegue com os pés dos olhos. o quadrado 15 por 15 é desenhado com duas minhocas em arco, pequenas. e magras mais que um cabide magro. devem ser do tempo da fome da construção civil. contando três centímetros do começo e voltando outros três do final, num jeito triangular enrustido – contorcido – se mete no perigo das interligações. tal como uma rede de pesca, estendida e sem peixe. a rede desce, com as minhocas que disse. tudo detalhado com cor que pinta a terra. da areia até a argila e o barro de chuva aqui do sul. essas minhocas, numa miséria que murcharia lombrigas, terminam com três rabos de gota. três pingos escorridos (parece que engravidam pelo intestino – se é que minhoca tem). o arco, vendo melhor, se arrasta mais um tanto e fica em S, que nem aquelas curvas que a gente pende para o esquerdo e depois bate a cabeça no vidro do outro lado, que não deu mais tempo de agarrar o puta-merda.

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e eu, que sempre tive muita coisa para fazer na madrugada, agora estou aqui - me misturando com a correnteza da torneira, na tentativa de enganar este arrepio na espinha. enviesado pela dor, ou de tanta, relato Ă pia do banheiro como sĂŁo minhas lajotas.

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marquise

espera a chuva cessar, não cessa. o redor se espalha no espelho que se vê enquanto espera. mistura azul da blusa, batom que usa e cor do custo de vida. enterra olhos em si e vê suor. são gotas de açúcar e de sal – partículas humanas –, se levanta devagar, abraça o poste à frente e se choca contra a luz artificial. nasce arco-íris nas pálpebras quando beija o concreto molhado.

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terminal

Clarice tem uma tatuagem que termina à beira do umbigo: “caixas de fósforo são valas comuns”. Clarice me deixa em nervos, pensa que me ama e essa gente toda. tenho uma tatuagem que termina à beira do ouvido: “spray pra dor de garganta brocha”. Clarice me tira grana, anel e óculos de sol. Clarice morreu e eu fiquei olhando seu corpo perto do terminal. eu quis uma tatuagem que terminasse à beira do hospício: “indigentes morrem toda hora”.

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estilhaço

embarca sem visto pelos quadros da parede; vê o necessário para se perder – viajar em pigmentos, mostruários mensais e agendas do ano passado; coleciona o que não foi do que não volta; descreve em detalhes folhagens esquecidas de canto; olha para as marcas de sapato nos pés contínuos do balcão; percebe os pingos mortos de café com leite das borrifadas desajeitadas que alguém deu ou foi só mais um acidente casual. ele é assim, o olhar se detém ao fio de cabelo perdido no chão, como se o importante fosse não por onde o rato passa, mas os cantos por onde foge ou se esconde; o não visto é o que vê e não vê que o trabalho fica esquecido meio à percepção desses nadas cotidianos. um dia, de chão limpo, térmica limpa e memória vaga, foi demitido sem justa causa. saiu em silêncio. não disse adeus. às onze e quarenta e seis da manhã, ia atravessar a rua. atravessou para o lado dos desempregados. viu quando o grilo marrom acinzentado pulou no seu sapato rachado e sem brilho, mas não viu o carro.

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e como ontem

cara redonda, bolacha, boné fedido, olho para dentro, calça jeans rasgada, gritão, fala porcarias, hematoma na boca, saco plástico, tremedeira, pernas arranhadas, canteiro no asfalto; atravessa a rua, tropeça nas tartarugas, VÃO ATROPELAR! carne moída terminal rótulos cachorro chiclete prefeitura açúcar estalos estampa na blusa mexe com o povo apressado; mexe com as mulheres - cai fora, maluco! descrever banho, descrever almoço, descrever ronco, cozinha, quarto, banheiro, sabonete ou não, xampu ou não, Gillette ou não. descrever o fígado, descrever o pâncreas; a cirrose, o tênis, a boca e como ontem botou fogo à própria casa.

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brita leve

bonezinho maltrapilho, calça de alfaiate com cinto gasto. camisa de botão e sandália marrom de couro. saía e voltava com litro da brava – às vezes não voltava. bebia sempre: ao acordar, antes do café; meio dia e janta, depois às três da manhã. também mijava da sacada e sempre à vista a silhueta do pinto acenava boa noite. ao entardecer, toda vez um susto ao vê-lo à espreita, vulto com o cigarrinho entre dedos e bem disfarçadamente a cachaça entre as pernas da cadeira, pornografia que lhe restava. quando a criançada jogava futebol no quintal, protegia a garrafa dos passes de bola. juiz às avessas, gostava de olhar o voo das britas, decoladas pelos bicos das chuteiras. à marra.

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intestino de cão

vísceras irrompem na esquina enquanto Pedro pula a poça ali. Pedro vinha da Marechal quando a chuva. vixe, quase nunca mais chegava na casa. e ainda aquela coisa toda irrompida ali. a rua era canudo de tomar coca, lotadinha de água suja, pele de cão e um pouco de bosta. logo que Pedro pula a poça, um pouco de intestino se gruda na calça jeans. ai, Pedro, que nunca caminhou direito em toda a vida. e eu penso daqui que o intestino ainda estava para se liberar dos processos que fazia em vida, dentro do cão, produzindo e produzindo a coisa toda que o cão ia largar no canteiro da praça. e a mãe de Pedro logo grita pra mim, que é por qual motivo eu falar tanto a palavra-bosta? bosta é de encher a boca para dizer. BOSTA. isso era Ana quem dizia. merda é um corte, com esse R todo serrote ali. bosta não. bosta é um poço fundo e fundo de se dizer, ainda é palavra que vai para frente, como o peito estufado de muito sentido. aflige o Pedro a víscera partida do cão ali. a calça jeans nova, o dia de voltar na casa. a casa toda cheia do cheiro de cera que a mãe do Pedro passou à mão, agachada, a dor nas costas e o reumatismo. vixe, quanto doía, ela grita pra mim.

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desde a Marechal, Pedro sabia que ia encharcar. e ele me disse, depois, que nunca mais queria ver um cão desses, nesse estado, coitadinho. e a víscera que podia sim ser o intestino agarrada à calça jeans, Pedro, quem ficou olhando? ele todo cheio daquele asco, tipo quando a mentira agarra na perna e fica na garganta o engasgo nojento de um escarro entalado. Pedro, o que aconteceu com o meu cão?

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papel de segunda

esclarecidos os que iluminam as intenções com velas de sete dias. ele não é. não sabe o que quer. cem passos pela madrugada rastejada, pés pelados e pijamas. arrisca tropeço, ou camufla o desejo entre o porta-joias dos hormônios. sempre a dúvida. aponta o lápis. acha, apesar do aspecto alienado, que desponta com a tecnologia vigente. embrulha ideias com papel de segunda, quase parecido com papel higiênico. entre o tempo de sentar, pensar e escrever, a ponta do lápis quebra outra vez. não é por falta de dinheiro. quebra de novo. treme de raiva barata – cortesia de nervos velhos. a madeira, podre que é, não suporta ser cúmplice das merdas que ele escreve. não escreve nada. e escrevia, toda noite, fruto de uma inspiração companheira de bar, sinuca e sucos de acerola. ele não bebe. exige da mulher do Volmir suco feito na hora. acredita profundamente nas propriedades medicinais da fruta, uns dez hectares de cura. sem muitos anexos, optou pela mulher mais perto de casa, que é para não gastar com gasolina, nem cansar as pernas. ele não ilumina as intenções, mas gosta de madrugada, pés pelados, pijamas, desejo. flores? não. ele tem pegada forte; e basta.

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naquilo que a alma fica quando a gente dorme

discussões sobre espaço e tempo se fundem como restos de pão. a matéria se queixa. o ronco avança pelos intestinos – o vômito vem. meu irmão foi até o posto da avenida corrida. até que voltou, nosso pai colocou uma faca na ponta do meu olho esquerdo, não me mexi mais. havia sido estuprada antes, os carros descansavam no acostamento por causa do sol na cara dos motoristas. tenho diploma – nesse tempo eu dava por conta, no estacionamento, no banheiro, no lado inabitado do ginásio. estupro, para mim, de um tempo para cá, é como sexo anal mal feito. um sexo que dói e faz pensar que é o último, mas quando a gente se pega com uma faca na ponta do olho, quase encostando naquilo que a alma fica quando a gente dorme, sabe? que a alma vem um pouco para fora, para a gente poder sonhar mais de verdade... matei meu último namorado porque espancou meu irmão. um dia mato o pai. são restos de pão, de espaço, de tempo.

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o afeto são moscas importadas

devo confessar: serei a última a morrer. tudo antes de mim, se não morre, acabo matando. os neurônios, as células, as vontades e até mesmo os cogumelos chineses milagrosos e fedorentos, que curam, de câncer de pele a hemorróidas. morrem. por si, por mim e através de mim. então, se a verdade fica mais bonita nua, desço até as amarras do cadarço e desato as vertigens e disfarces. os enterros, nunca faço. antes faria o obituário de cada morto num jornaleco qualquer. o perfil seria longo. um a um, montaria quilômetros. palavras, letras, erros de gramática, ortografia, acentuação – parcelas de mortos recicláveis. um a um, os perfis seriam escritos com tipos de antigamente. uma impressão medonha, mas bem diagramada. cada morto teria ainda a contagem de tempo levado para se fazer o perfil. seria contado na proporção do crescimento de meus cabelos. quando corto os cabelos na lua crescente, eles crescem. é até inconsequente a coincidência – acham que minto, como quando eu falo que para sarar terçol é só passar xixi. sempre descrentes, levam minhas demonstrações de afeto como uma espécie de piada mal contada. afetos que não deveriam ser demonstrados. sofri estupidamente durante meses, buscando entender por que o carinho

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saído da minha clausura se ferrava toda vez. os detentos comandavam meu país de sentimentos. os libertos se enrolavam na falta de grades até tropeçarem, caírem e não passarem de vagabundos abandonados. procurei uma amiga para falar. ela, enfermeira veterana, me deu grande ajuda pelo desabafo. quando expliquei os lapsos da fraqueza afetiva que eu guardava, ela logo prescreveu a solução. “tu deve importar moscas tsé-tsé da África”. tive vontade de esfolar a cara dela. mas me contive. exatamente depois de dois dias e quarenta e sete minutos, resolvi pesquisar sobre as glossina palpalis. encontrei um conceito altamente científico no Wikipédia. só não tive capacidade de entender como as tsé-tsé me trariam consolo. mas a enfermeira falou com tanta convicção. enfermeiras não parecem profundas em suas colocações, mesmo assim comecei a procurar o obscuro, o subliminar, se é que existem. minha insistência, meu mantra da salvação. transmite a “doença do sono”, causada pelo tripanossoma brucei e têm três variedades, todas hematófilas. vejamos... é encontrada no lago Chade, ao oeste do Senegal e a leste do lago Victória. vejamos... autoridades da área de saúde cogitam extermínio. o inseto âmbar, tem abdômen listrado. as asas são transparentes. vejamos... nenhum sentido a priori. doença do sono... talvez importar a tsé-tsé me faria perder tempo com pesquisas nada científicas, me mantendo ocupada o bastante para não torrar o saco de ninguém com demonstrações de

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carinho. ou ainda, a “dona cruz vermelha” quis dizer que, ao contrair a doença, eu me livraria desse problema insólito que é a insônia e passaria minhas noites descansando no conforto da cama, sem causar a ninguém o desafeto de ser amado. de fato, como a doença é fatal, eu não mais causaria mal nenhum, mesmo que insistisse nisso. é um assunto deprimente e sem sentido. mas verdade seja dita, nunca pensei num suicídio assim – tão original. sei lá o que a enfermeira quis dizer. numa dessas confundiu a mosca e a “doença do sono” com a apneia. a mosca não vai me matar. daria um belo obituário. mas isso se não for mentira que a verdade fica mais bonita nua.

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éramos três sonos leves

agora acordamos de assalto, assustados com o barulho, um parto de rato no quarto esquecido; parte doída de sair do útero (rato grita muito pra nascer, ou a bolsa). éramos três sonos leves e acordávamos devagar, com parto de rato ou pius de passarinho. agora dormimos depois de tomar comprimidos e o assalto nos faz pular ao fim do efeito; ouvimos estourar a bolsa de emplastro, mãe dos nossos ratos, que gritam fino as primeiras vidas. éramos três sonos leves e dormíamos pouco a noite toda. agora acordamos de assalto, agora somos só dois.

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3.

câmara fria

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trauma de esperas

nĂŁo tenho aqui dentro nenhuma ferida, desliguei o freezer.

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relato sobre o mofo

Por que essa falta de concentração? Se você me ama, por que não se concentra? (Ana C.)

possuo um só núcleo. ainda não sou um cogumelo e tristemente me contento com a forma de bolor, embora crises existenciais me façam acreditar que minha alma é de levedura. levedura é das palavras mais bonitas que não li, porque ler é coisa que bolor não aprende. lembro da minha história como um fardo suave, exatamente pela contradição do peso e da leveza sob um mesmo aspecto, num mesmo ser. levedura. penso que se eu continuasse a ser considerada vegetal, um dia a minha forma bem simples de viver me levaria a ter pétalas, a ter cor de alegria, doce de manga, de mamão, fazer bem para pessoas, essas coisas todas que me nasceriam delicadeza. em 1969, as pessoas conquistaram a lua. eu sei que lua é um satélite e que as pessoas é que dão nome a todas as coisas do mundo. me chamam bolor, me fazem saber que a palavra para minha alma é levedura. nesse mesmo ano em que visitaram o satélite, passaram a chamar meu mundo, minha forma de vida simples, de reino à parte. o reino não integrado, mas que está ali – embaixo das gavetas, atrás das cômodas, vivendo subumanamente

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em paus podres. um reino à parte aos seres que não sintetizam clorofila. este reino, o dos fungos eucarióticos, é universo para minha forma de vida simples. você não pode me ver, faço parte da família microscópica. não sou espório, que forma aquele mofo que dá a ver sua existência se reproduzindo freneticamente nos armários e paredes e outros locais úmidos. assexuadamente, e infeliz, me reproduzo no pão do seu café da manhã. você também não me vê, mas tem nojo de mim. MICROFUNGOS E CIA: FORMA DE VIDA DANINHA E OPORTUNISTA – leio esse slogan na sua testa, propagando a minha invisibilidade no meu reinozinho à parte. e quando você menos espera, um algodão esverdeado aparece na sua frente. sou eu. oi? você me cospe, vomita. olho pra você: oi? minha alma de levedura não está na minha aparência de bolor. se meu aspecto é da leveza do algodão, meu gosto é seu nojo expelido – duramente atinjo seu estômago, acabo com sua rotina. hoje você não passa do café. sou mulher difícil. você se limpa, escova os dentes e sai. assexuadamente, continuo a reprodução do seu fim, vou lhe pregar uma surpresinha na volta. devolvo seu sobrenome. minha alma faz vinho e cerveja para comemorar.

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sonho de hormônio

os hormônios são filhos revoltados do corpo, professores químicos propensos a surtos psicóticos; são os jornalistas do meio celular. “jornalistas são sempre filhos da puta”, sobretudo os do meio celular. os hormônios são gestores financeiros da organização microbiológica e possuem um invejável planejamento estratégico, cuja razão é originar os atos sociais das vítimas (geralmente atos vergonhosos, se levo em consideração a análise dos efeitos de curto prazo). vagarosos e ordinários, os hormônios se divertem às custas da gente. as mulheres e as tabelas para não engravidar, para engravidar; os hormônios e a época fértil, sobretudo a dos homens, a minha; os hormônios e o aborto desajeitado dos possíveis amores. os hormônios completam ciclos viciosos, se divertem com as vontades que inventam e a indústria farmacêutica obviamente fornece drogas para acalmá-los e para mulher ser mais mulher e para homem ser mais homem e para mulher ser mais homem e para homem ser mais mulher. e o que a gente sabe sobre os hormônios, sobretudo o hormônio miserável do amor; não do amor que levanta músculos, sobretudo esse músculo do amor, mas do amor poderoso e ditador que figura entre a ansiedade e o ataque cardíaco que eu sofro toda vez que tento estabelecer conexões humanas com outros humanos e,

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sobretudo, humanos a quem me desmonto em exagerada afeição. o sonho dos hormônios é surrealista; quando dormem, a feição deles é mórbida e o nariz fica constipado pelo excesso de ingestão de calmantes; quando dormem, os hormônios viajam arizonas, sim, imaginando cactos nascendo nos dentes da gente, que sugam toda gota de saliva castigada no deserto do céu da nossa boca. os hormônios sonham com dunas e com peixes de asas, que nadam no mar da desigualdade; o mar que afoga a alteridade antes que ela alcance as relações. quando eu lembro que fui um cachorro pervertido por culpa dos hormônios, penso nela e no fora que ela me deu; e que também eu me daria um fora desses se fosse comigo o que eu fiz para ela. um fora por causa de hormônios; um fora vagoroso e ordinário.

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dicionário

se despe e deixa o roupão verde sobre a luminária. o olhar escorre pelas frestas da parede comida por cupins e os passos seguem estreitos até a cama, em continência urinária – a cortesia militar das mulheres. faz do livro esquecido um tapete-padre para a confissão e sobe com os calcanhares – rachados, de tanto que mente. os coitados que a querem são divididos em grupos e separados por tipo. são colocados em pequenas latas, todos os que telefonam. amor |ô| (latim amor, -oris) s.m. 1. palavra que não limpa unhas – lava as mãos. 2. trova para homem duro, sem lírio de momento para comer.

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amor que não foi

viu dois meninos olhando o mar como se a única coisa grande que um dia viram fosse a quantidade de edifícios plantados naquela cidade. ela nunca passava por ali. virava a esquina sempre antes, para não encontrar o último cara que enganou. mas hoje ela não pensou – e as pernas foram por conta. tinha um certo sorriso na cara, algo meio estranho. ela não sorria muito e tinha convulsões quando coisas engraçadas aconteciam. rir significava tosse e ânsia de vômito. ela evitava. havia na mesa, naquela tarde, três opções: primeira: uma corda verde, fina, com o comprimento de mais ou menos 1,20 m e um jacaré feito de miçangas pendurado em uma das pontas. a barriga amarela, olhos negros, sem dentes – um belo chaveiro para uma proposta tão ridícula. segunda: uma faca de cozinha com a lâmina enferrujada. cabo branco, de marfim falsificado, comprada no maior supermercado da cidade - sugestão de uma moça morena de olhos azuis e peitos grandes. já havia picado tomates, cebolas e bifes, mas era ambiciosa (a faca, não a moça). terceira: um maço de cigarros. ela caminhava com passos fortes, devia doer o calcanhar de tanto bater os pés. rápida, não sabia para onde estava indo. ia. ela ainda lembrava, muito vagamente, os olha-

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res dos meninos na praia. o mar era insignificante. era a isca que o sol usava para que mais camarões morressem de câncer de pele. não fazia o menor sentido. só de pensar que os garotos haviam passado bloqueador, o coração palpitava. ela não suportava essa palavra – bloquear, bloqueio, bloqueador, bloqueado – era uma ofensa. por isso, não entrava no mar desde os sete anos. a mesa era de madeira velha. uma toalha de vaquinhas escondia a idade dela. tudo era velho. inclusive a vontade era velha. o compartimento da cozinha, mal iluminado, morto e silencioso, tinha uma parede de cada cor. uma preta, uma vermelha, uma cinza e a outra verde. ninguém ficava muito lá. ninguém aguentava aquele ambiente por mais tempo que o necessário para arrumar alguma coisa, geralmente pão com qualquer outra coisa. decidir nunca foi forte dele. ele morria de dúvidas até para escolher a “qualquer outra coisa” que acompanharia o pão – margarina? maionese? geleia? banha? – era um sufoco. baixa estatura, olhos pequenos, porte fraco. nem a mãe conseguiria mentir que ele, um dia, daria tesão. sedentário, só o exercício de tentar terminar o único poema que havia começado era o que fazia. tinha três versos e duas palavras erradas. uma delas, designava uma doença do esquecimento. Alzheimer, se não me engano. a outra era a palavra “posso” escrita com “ç” – “poço”, que era para onde ele ia toda vez que se dizia capaz de tentar o que fosse. na rua, nunca olhava para lado algum. não era de se estranhar que sempre quase caia. ela tinha o egocentrismo

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como religião. só acreditava nela. se tivesse que brigar, brigava consigo. se tivesse que amar, humilhava asperamente quem pensava ser. levava abobrinhas na sacola, tinha o peso necessário para fazer do produto balanços de uma roda gigante. um erro e as abobrinhas virariam purê de batatas. é, batatas. o exercício de rodar a sacola exigia tamanha concentração e coordenação motora, mas dava prazer. um zero e ele pouca diferença tinham. ele tinha que escolher. rodou a mesa. uma vez, duas. ficou mais de meia hora dando voltas ao redor da mesa, pacientemente. calculando, frio e psicótico, o que cada objeto lhe proporcionaria. deixou os três. pegou a calculadora HP e fechou os olhos. (3336777). por duas horas seguidas fez interpretações com esse número. descobriu que as aranhas são bichos concretistas e que desenvolveram as teias só para não correr risco de perder oportunidades. isso mudou a vida dele. havia chegado a hora. ela parou. não por ter chegado aonde fosse. resolveu encher a cara. o bar era tranquilo. paredes de tijolos maciços. fumaça. cachaça. coca-cola. ela beirava o precipício. lembrava das palavras do médico. não esquecia dos meninos na praia. tentou recordar a última vez que falou com alguém sobre o que tinha. esqueceu. sentou-se na cadeira, a mesa mais escondida – ela, um camaleão. pediu vodca. não tinha. a união soviética do seu peito se desmontou. pediu para que o garçom escolhesse alguma coisa forte, já que não podia beber. dormiu esperando.

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meia volta, chegou à mesa, pegou o maço de cigarros e saiu. arrastando os pés, cabeça baixa, pensativo. pedia perdão à mãe. pedia demissão. não queria mais ser ele, não queria mais que ela fosse ela. parou no bar. pediu fósforo emprestado – nunca havia conseguido ter um isqueiro por mais de dois dias depois de comprá-lo, perdia. era como as borrachas do tempo de escola, sempre desapareciam (chegou a construir uma teoria que acusava moscas verdes de as raptarem, mas jamais seguiu adiante com pesquisas). depositou as primeiras cinzas no cinzeiro da mesa ao lado. optou por morrer lentamente.

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azar nascido da falta de ação

o depois não existe. as coisas destruídas não existem mais. as que ainda falta inventar estão por aí, existem na gente. às vezes faltam por si só; às vezes fazem faltar, fazem falta. deixo tudo para a última hora, sempre. essas coisas que existem ficam escondidas, sabe. o lugar tem o necessário. é meu caos vulgar e desregrado, é terrível porque não tem passado, mas também não tem culpa, penso. o medo me serve de fronteira somente para o tempo. atenção: o tempo é essa criança chorona e desgraçada, que apanha do ócio; o ócio é senhor da dignidade; o trabalho é pouco mais que mera coincidência. e esse estado de inconsciência (seja lá o que isso pode significar) é o fantástico mundo da procrastinação, que me ferra em toda e qualquer responsabilidade. eu preciso dizer que é um paraíso se danar disso. o problema é que não posso viver ali, naquele mundo. vira o inferno essa vida, cheia do azar nascido da falta de ação. é tudo culpa do meu eu lírico, é ele que quer tudo colorido, que se encanta com o depois e acha a procrastinação a demência mais charmosa. eu vejo a procrastinação: cena de cinema em película P & B, cigarrinho na mão, meia luz, barbas, bigodes e chapéu de detetive,

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o exercício máximo da mente: musculosa e burra, um tesão. desoriento a primeira pessoa dos textos que nunca termino para toda a minha falta de mim. a minha primeira pessoa não sou eu. é, em grande parte, outros e mais alguns. nada por completo. um padrão autêntico de tentativas. as primeiras pessoas dos textos que eu fracasso são um retiro bandido das vontades que tenho e que passam. o pó das minhas vontades me leva a viagens por dentro do corpo. é como um vício preguiçoso que preciso para ser. fico guardando pedacinhos de passado para escrever mais tarde, como quem guarda momentos que nunca existiram para viver depois. eu perco o aço da vontade, diluo a vida ao fogo, derrete feito manteiga de fritar bolinhos de chuva. e perco tudo o que não tive. e restam tijolos e motivos cimentados no nada: como uma escala inversa, desconheço aos poucos os tijolos, o aço e o vício preguiçoso. sabão, água, escova de esfregar. apago recados, reprimo o estômago. nas costas, todo o peso da iniciativa e do abandono. as coisas somem, vão sumindo, só existem para desaparecer. quando nasci, bati com a cabeça no joelho. deveria ter ficado. hoje, não caminho de jeito nenhum – alguém tem que me levar. existir para ser apagado: criado para virar ruína: antiguidade para ter valor apenas na fotografia. nada poupará os ouvidos alheios das histórias explicativas que concedo de graça: venham, venham todos!

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histórias ilustres do meu paraíso decaído. deixa pra lá. dentro do corpo, mais toneladas do que não pesa, do que não vende por quilo. não me falta nada: eu que falto, sou ausente como tudo; ausência que castiga, lenta e satírica, como quando o amor queima e acaba.

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povoação sideral

estrelas são pessoas carecas de cabeça para baixo, iluminadas por nossas perguntas.

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ligações internacionais

o avesso pertence, mesmo com o óleo da pele concentrado no nariz; invade os óculos e embaça a vista: avisar que falar mansamente machuca tanto quanto as espadas; que as espadas são perdigotos pontiagudos e que perfuram as máscaras, qualquer delas. os olhos inexatos se protegem com as lentes; dizer para largar o rumo dos outros (será que se masturba, hein?). as peças minúsculas do corpo têm contagem regressiva: perdoar é abrir mão de si mesmo, então amar é viver ao contrário. dizer para. mas o quê? toda vez que tenho uma ideia boa, toca o telefone. corta na hora minhas ligações e silencio.

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fotografias da solidão passada

a manhã boceja o dia e eu quase não me coloco uma roupa decente. arrumo a cama, porque a mãe pode chegar cedo. sou autista e transgrido minhas inutilidades. em-que-meu-deus? vejo Paul Auster enquanto arrumo os travesseiros; ele sempre no canto do quarto, olha fotografias da solidão passada e nunca se dá conta de mim. hoje o dia está laranja. a filha da vizinha abafa o canto dos pássaros e o vento; o som dos carros e do rio; quebra as ondas sonoras do mundo. emana aos meus tímpanos a dose matinal da sua falta de surra. ela me cura do autismo.

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família marginal

se você visse uma foto de perfil dos dedos do seu pé, saberia que eles são seus?

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observação da minha cura que não acham

eu estou doente. quando entro em salas, a percepção acirrada do meu mal vem de fino, quase remoendo meus rins. tenho medo de mover o pé num passo. medo de cair e não saber voltar. esta sala não é grande, nem pequena – esta sala não parece uma sala. é uma salada de frutas com bananas, maçãs, melancia e um mamão inteiro picotado como rascunho de ideia de sala. corri tanto para chegar, sabe, que sequer movi o corpo. corri de casa o desafeto do desespero, traí meu sedentarismo e percebo agora ter atraído o desatino da náusea. vomitei. é inadequada a força que tem minha falta de senso, sabe. com licença. vomitei outra vez. tudo dói. eu estou doente e vou morrer. o diagnóstico: estou doente porque a escola é uma psicopatologia inventada que forma doidos e eles tiram o sustento da minha cura que não acham. meu corpo tem tendência em adoecer e não é de agora. fígado, pâncreas, intestinos.

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tenho câncer em cada órgão. trago no meu peito a esperança de descobrir que pelo menos um pode ser benigno. estou muito doente, muito mal, muito sem forças e mesmo assim procuro ajuda. frequento clínicas há três anos. o resultado são minhas visitas em quadrinhos. coletivo de arte: os quadrinhos saem de punhos canhotos dos dezessete médicos que vi e que me viram. eles me abordaram todos, com seus trinta e quatro olhos clínicos. cegos. maldita formação acadêmica. maldita universidade. maldita dor. sigo semanas na busca da cura para a decepção das palavras malditas que todos eles insistem em dizer com a mesma construção frasal: “está tudo certo com você, os exames não apontam nada”. é mentira! eu estou doente! do-en-te! não é da cabeça. a pele interna do meu estômago (chamem do que quiser, mas não falem de glândulas gástricas e que isso é normal) está corroída pelo meu ácido clorídrico. meus dentes vão derreter em breve. minha saliva é tóxica, faz meu beijo ser tosco, perdi minha namorada. não quero mais me obrigar a comer cenoura o tempo todo para garantir, antes que piore, pelo menos a minha miopia. chega de discussão. quero os empréstimos bancários para buscar alguma alternativa no exterior. aqui neste

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país a ciência é devagar, os médicos são iludidos e drogados. e eu estou doente, poxa. eu vou morrer. não quero mais ouvir piadas, não sou psicótico. não quero saber da porcaria do modelo organodinâmico, com enfoque bio-psico-social, para explicar que porra é responsável por minha doença. “você tem doença mental”. idiotas! não é da cabeça. se parassem de julgar o meu amor-próprio, que me impulsiona a lutar pelos poucos dias que me restam e dessem alguma receita legível para amenizar a agonia da minha dor, mas não. eles riem. como você, doutor. eles riem enquanto eu falo do meu sofrimento, eles sequer me cumprimentam quando entro. e riem alto depois que saio. e riem mais alto quando a porta se fecha e prende a incompetência neste tipo de sala patética que vocês, doutor, me apresentam como consultório. passar bem.

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grego

1. roda a estátua para se aquecer meio à tarde de junho, o grego coça a careca gelada e tira do bolso da calça jeans um maço de cigarros. gosta do projeto gráfico da embalagem, gosta mais do verso camuflado com adesivo do Mickey. escolhe um entre os iguais, agarrando o filtro com as unhas que não cortou na semana passada, o aconchega entre dedos. leva à boca, enquanto observa a nudez da estátua e não entende por que a fizeram segurando uma tocha apontada ao céu. do bolso da calça jeans, tira o antigo isqueiro da Pentus, souvenir de seu país. abre a sacola plástica e encontra o combustível barato. preenche o corpo do isqueiro de querosene, acende o cigarro, a tocha e a praça. 2. um incêndio toma a praça central misteriosamente. ela atende ao telefone e sai aos gritos pelo escritório a chamar pelo gerente da Petnus. ele desmaia. não suporta saber que a nudez mais perfeita já feita pela empresa exportadora de estátuas agora veste os paralelepípedos de cinza. os bombeiros ao telefone informam um custo mais misterioso que o incêndio: os cúbicos que desperdiçaram na praça por causa do fogo.

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ele desmaia de novo e fica mergulhado no sofá. enquanto isso, um grego mistura água, açúcar, limão e cachaça – se inunda sozinho de alegria. 3. os sapatos são largos demais. mas ele os calça todo dia não sente os pés machucados depois que bebe. o grego adora a caipirinha que prepara na bodega ao lado da praça. ele mesmo faz a mistura, trato feito e mantido pela fidelidade. toma as dezessete e se despede. trança as pernas rua afora e segue com um passo na calçada empoeirada e outro na valeta. tira do bolso da calça jeans o pacotinho de sementes de milho Tupens, que carrega aonde for (porque gosta muito do projeto gráfico da embalagem). tira a mão do bolso e a calça jeans. ele enrosca pés, sapatos e alça o voo perdido – cai na valeta, cara na lama, bunda ao léu e estátua até amanhecer. 4. um desconhecido com cara de grego é levado pelos bombeiros ao hospital central. doses de glicose na veia o salvam de maiores convulsões e de morte por afogamento na valeta (em função dos vômitos involuntários durante a madrugada). os médicos fazem uma bateria de exames na cara de grego do desconhecido. ouvem um som estranho vindo do peito dele. instalam o moderníssimo nebulizador Neptus e o deixam em tratamento por 12 horas. o grego morre de câncer de pulmão.

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falar como uma cadela

E os arquivos, Carlos, As caixas de papéis: Túmulos para todos os tamanhos de meu corpo (João Cabral de Melo Neto) 1. respiro a umidade das paredes beges. estou no hospital-hospício, tem alguém que manda em mim nesse hotel de ver a vida passar sem dar condições de desligar o ar condicionado e correr atrás dela. 2. a vida interna é bege. 3. eu estava com um catarro incomodando. fui cuspir ele na pia do banheiro e aluguei uma casa. foi assim que vim morar aqui. 4. estratégias são trabalhadas de forma minuciosa. planejamento estratégico, já ouviu? um mundo ambulante obrigado a viver com outros mundos é predisposto a tantas situações, tantas possibilidades, que não resta muito a não ser o silêncio. ninguéns protegendo suas essências. uns gritam. 5. meu estômago comanda as atitudes que tenho e as que não tenho.

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6. vivo de doenças imaginárias para me privar de esforços necessários. 7. sinto todo o lixo atômico das usinas nucleares dentro da minha cabeça, separado do ambiente exterior apenas pela minha testa. 8. o maior orgulho da minha vida foi consertar um abajur. 9. não lavei as roupas, meus cabelos estão espalhados pela casa toda. sou picada por aranhas enquanto durmo. 10. eu bato o ponto, eu ouço alguém que manda em mim, eu vejo a minha vida lá fora e não posso sair daqui para ir atrás dela. falar como uma cadela é um tiro no arquivo.

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carne falsa

a Ăşltima vez que morri foi tĂŁo bom que sequer pensei em voltar.

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