Revista PRISMA LGBT - Edição Piloto

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REVISTA PRISMA LGBT


REVISTA PRISMA LGBT

Bem vindos à revista Prisma LGBT, revista que trabalha com o conceito de produção colaborativa/coletiva, incentivando a interação e participação de sua comunidade de leitores/produtores, por meio do compartilhamento e construção de conhecimento. As páginas da revista estão abertas a toda comunidade LGBT de Santa Maria, RS, que quiserem contribuir com a publicação enviando artigos, ensaios, resenhas, ilustrações, fotografias, poesias, contos, poemas, músicas, reportagens e crônicas, sempre abordando um tema em comum: o universo LGBT. Seu principal objetivo é servir como canal de expressão e intercâmbio de informações culturais, artísticas, políticas entre outras, sendo um espaço de troca LGBT. A revista é a edição piloto de um projeto acadêmico experimental e colaborativo, no qual para o seu desenvolvimento foi preciso 1 ano de estudo sobre a história da imprensa gay, o perfil do público que ela vai atingir e projeto editorial e gráfico para revista.

*Os textos assinados são colaborações enviadas para a revista por meio de edital de chamada pública de trabalhos. As opiniões e posicionamentos são de responsabilidade de seus autores.

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Editorial

Saudações Prismáticos Eis que finalmente vem ao mundo a revista Prisma LGBT, projeto experimental que tenta trazer um foco diferencial em relação à abordagem da mídia hegêmonica sobre a comunidade LGBT. Nesta edição vamos conhecer algumas drags da cidade, descobrir talentos locais, conhecer personalidades da cidade, além de discutir e dialogar sobre inúmeros assuntos relacionados ao mundo LGBT. Delicie-se e boa leitura!!!! Projeto Experimental apresentado como Trabalho de Conclusão do Curso de Comunicação Social - Produção Editorial, Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Federal de Santa Maria.

fb.com/RevistaPrismaLGBT/

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Expediente PROJETO EDITORIAL E GRÁFICO, DIAGRAMAÇÃO, EDIÇÃO E CAPA

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Pablo Mello (Acadêmico do curso de Comunicação Social - Produção Editorial da UFSM)

ORIENTAÇÃO

Liliane Dutra Brignol (Prof. Dra do Departamento da Ciências da Comunicação da UFSM) Carolina Bonoto Espindola (Mestranda do PPG da Comunicação UFSM)

COLABORADORES

Pedro Henrique Machado, Gabriel de Oliveira Soares, Lucas Visentini, Cauê Rodrigues, Manuel Luthiery, Monise Farias, Nicolle Sartor, Nanda Xavier, Edimar Oliveira Daniel Gonçalves, Gabriel Abrantes, Ariel Barcellos, Cláudia Samuel Kessler, Diego Azambuja, João Esmério, Thobias Toniolo, Fernanda Gabriela Soares dos Santos, Felipe Severo, Felipe Freitag, Gabriel Zanini, Rodrigo Quevedo Fagundes, Flavi Ferreira Lisbôa Filho, Ney D’ Ogum, Matheus Fontella, Ettore Stefani, Kevin Pereira, Luis Gustavo, Rodrigo Cassenego, Rafael Rangel Winch, Rogério Pomorski, Ellé de Benardini e Jamille Coletto

REVISÃO TEXTUAL

Pablo Mello

A revista PRISMA LGBT traz em suas páginas uma tecnologia para tornar a experiência do leitor mais interativa e diversificada. O QR code leva além do papel, possibilitando a visualização de vídeos e diversos websites relacionados ao conteúdo desta publicação. Para utilizá-lo, basta instalar um aplicativo de leitor de QR Code no seu smartphone, disponível para o sistema Android, BlackBerry, iOS e Windows Phone. A seguir, aproxime a câmera do seu celular do código de cada página e aproveite o máximo de conteúdo que a Prisma disponibliza para você.


GLOSSÁRIO DOS TERMOS GêNERO Conceito formulado em 1970, a partir do movimento feminista, de modo a distinguir dimensões biológicas e sociais. Ou seja, gênero se difere de sexo sendo um produto da realidade social.

LGBTQI Apesar da sigla LGBT ser a mais utilizada no Brasil, no âmbito internacional inclui-se também o “Q” e o “I”, para representar as palavras “queer” e “intersexuais”.

ORIENTAçãO SEXUAL Refere-se à atração afetivo-sexual direcionada para pessoas de mesmo gênero, gênero diferente ou mais de um gênero, podendo incluir práticas sexuais, atração e afeto. Não é algo fixo e/ou definitivo.

SEXUALIDADE Engloba a maneira pelas quais as pessoas expressam e vivem seus desejos e prazeres corporais.

LéSBICA Mulher atraída afetiva, emocional ou sexualmente por outra mulher.

Sexo Biológico Conjunto de informações genéticas, órgãos genitais, caracteres sexuais secundários e capacidade reprodutiva, que diferia classicamente machos e fêmeas. É um conceito criticado no campo das ciências sociais e humanas.

HOMOSSEXUAL Termo cunhado para se referir a pessoas que se relacionam afetiva ou sexualmente com pessoas de mesmo gênero. Considera-se incorreto usar o termo HOMOSSEXUALISMO uma vez que o sufixo “ismo” remete à doença.

INTERSEXUAL Termo que se refere a uma variedade de condições (genéticas e/ou somáticas) com que uma pessoa nasce, apresentando uma anatomia reprodutiva e sexual que não se ajusta às definições típicas de feminino ou masculino.

CISGêNERO Pessoa que se identifica com o gênero que lhe foi atribuído no nascimento.

heteroSsEXUAL Pessoa que se relaciona sexual e/ou afetivamente com pessoas do gênero diferente do seu.


PANSEXUAL Pessoa que se relaciona sexual e/ou afetivamente com pessoas de forma abrangente, sem restrições de gênero.

IDENTIDADE DE GêNERO Experiência interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo.

ANDROGINIA Indivíduos que assumem postura social, especialmente na questão do vestuário, que mescla e infringe divisões por gênero.

DRAG QUEEN Pessoa que utiliza roupas tidas como femininas de forma extravagante e, por vezes, satírica para apresentações artísticas. É uma personagem, não uma identidade.

DRAG KING Geralmente mulher que se utiliza de roupas tidas como masculinas, utilizando o exagero e a sátira para apresentações artísticas. É uma personagem, não uma identidade.

TRANSEXUAL Pessoa que se identifica, através da nominação, vestimenta e transformações corporais (caso desejem) como pertencentes a um gênero diferente daquele atribuído no nascimento.

TRANSGêNERO Terminologia utilizada para descrever pessoas que transitam entre os gêneros. São pessoas cuja identidade de gênero transcende as definições convencionais de sexualidade.

TRAVESTI Pessoa designada como sendo do sexo masculino, mas cuja identidade de gênero é geralmente feminina, assumindo papéis de gênero diferentes daqueles impostos pela sociedade. É uma identidade.

BISSEXUAL Pessoa que se relaciona sexual e/ou afetivamente com um ou mais gêneros. Não tem nada a ver com indecisão.

HETEROnormatividade Termo que descreve o conjunto de normas sociais que associam o comportamento heterossexual ao “padrão”. Essa expressão é utilizada para se referir à ideia de que o comportamento heterossexual é o único válido socialmente ou, em alguns casos, o único existente.


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poliamor

Tem como objetivo múltiplas relações afetivas, normalmente com envolvimento profundo e planejamento de longo prazo. Os adeptos não costumam adicionar ao acordo da relação a possibilidade de terem relações informais e fazerem sexo casual.

LGBTfobia A expressão é utilizada de forma mais abrangente que HOMOFOBIA, uma vez que inclui mais explicitamente Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transexuais.

NãO BINARIEDADE Pessoas que não se identificam totalmente com a concepção binária de gênero (homem/mulher) e se colocam em algum ponto fora desta.

Relação aberta Há algumas aberturas na relação, mas ainda se pretende manter o casal principal como prioridade. Estas aberturas são pontuais e, na maioria das situações, estritamente sexuais.

gordofobia Consiste na estigmatização, exclusão, desvalorização e hostilização das pessoas gordas e é disseminada nos mais variados meios socioculturais. Sendo uma opressão estrutural envolvendo questões como acessibilidade, mobilidade, patologização, negligência médica e falta de representatividade.

ASSEXUAL Forma de manifestação da sexualidade humana baseada na ausência de interesse sexual por pessoas, não sendo impeditiva da formação de laços românticos ou afetivos com terceiros.

MISOGINIA Ódio e repulsa às mulheres e/ou a figuras femininas, é uma forma de manifestação intensa de sexismo. Está diretamente relacionada com práticas de violência contra a mulher.

FEMINISMO Movimento político, filosófico e social que defende a igualdade de direitos entre homens e mulheres. Seu principal objetivo é construir uma melhor condição de IGUALDADE entre as pessoas independentemente de sexo/gênero.

GLS A sigla GLS é excludente porque não identifica as pessoas bissexuais, travestis e transexuais. Dessa forma, não deve ser empregada como referência à esfera política das diversas vertentes dos movimentos LGBT.

QUEER Termo resignificado, que atualmente se refere àquelas pessoas que não são cisgêneras ou heterossexuais e que não se baseiam na binariedade para a construção de um gênero ou identidade.


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DIÁLOGOS

Escrito por

Rafael Rangel Winch*

Jornalista e Mestrando em Comunicação Midiática (UFSM)

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SOBRE LUGARES E REPRESENTAÇÕES: AS PESSOAS LGBT NAS NARRATIVAS JORNALÍSTICAS

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TV

ara começar esta reflexão, gostaria de sublinhar, ainda que brevemente, o tão referenciado e discutido papel social do jornalismo. Reconheço, então, algumas de suas principais finalidades: informar sobre o que é importante e relevante; orientar as pessoas em seu cotidiano; interpretar a complexa realidade; fiscalizar os poderes públicos e privados; e dar a ver a diversidade inerente a qualquer sociedade. No que concerne a este último atributo, é perceptível sua fragilidade e inconsistência nas narrativas jornalísticas, em especial, nas notícias que envolvem fatos relacionados a segmentos historicamente marginalizados, como as pessoas LGBT.


REVISTA PRISMA LGBT Nosso jornalismo, é preciso dizer, ainda dá passos lentos no que diz respeito à apresentação de novas abordagens e enquadramentos de fatos relacionados às lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais. Vários problemas nos textos noticiosos podem ser elencados, dentre eles: a confusão – e falta de elucidação – entre identidade de gênero e orientação sexual; o reconhecimento da homoafetividade em âmbito privado e desde que ela esteja contornada por uma estrutura heteronormativa padronizante (relações monogâmicas e posições binárias, por exemplo); a hierarquia das representações, onde nota-se a predominância dos homens gays brancos, pertencentes às classes altas em detrimento de outras LGBT, tais como as mulheres lésbicas negras e periféricas; a inferiorização das travestis e transexuais, muitas vezes, tratadas como seres masculinos e “jogadas” em seções e editorias específicas dos noticiários, como a Polícia ou Seguran-

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ça (casos de brigas e crimes, entre outros), espaços em que as personagens são narradas como encrenqueiras, perigosas, inusitadas e inferiores. O olhar e falar sobre o outro – sobretudo, o diferente em relação aquilo que é percebido socialmente como majoritário ou “normal” – é historicamente problemático para as histórias tecidas pelo jornalismo, visto que os conteúdos informativos são edificados com base em determinadas normas, valores, sanções e parâmetros da cultura profissional. Ademais, toda produção noticiosa nunca estará totalmente desprendida das dimensões econômica e política das organizações midiáticas, bem como da percepção de público (audiência imaginada) dos veículos. Logo, discutir a pluralidade da vida social, como no caso da comunidade LGBT, é um processo atravessado por inúmeros elementos internos e externos à prática jornalística.


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TV

Essa compreensão das redes contextuais do fazer jornalístico é fundamental, uma vez que ela nos ajuda a ter uma relação menos ingênua com as narrativas, que também são discursos e, por isso, disseminam sentidos ancorados em ideologias e imaginários coletivos determinados. Ao reconhecermos o jornalismo como um campo marcado por disputas e negociações, torna-se mais nítida a compreensão sobre a complexidade intrínseca ao ato de narrar, mesmo que todo dizer – posto como narrativa – seja inevitavelmente opaco e pleno de significações. Os lugares conferidos às pessoas LGBT nas construções jornalísticas são, portanto, fragmentos da realidade, nunca acabados, totalizantes ou inquestionáveis. No entanto, apesar dos constrangimentos diversos do ofício, é fundamental que os jornalistas, intérpretes e mediadores dos acontecimentos, lutem por pautas que visibilizem outras formas de expressão de gênero e sexualidade para além do regime da heteronormatividade. A inclusão efetiva de situações e temáticas pertinentes à comunidade LGBT não basta se isso não vier acompanhado de um investimento maior na qualidade das narrativas. Em meio à atual cena contemporânea, marcada pela concentração midiática e pela ascensão de discursos conservadores e de ódio, cabe, ainda, o empenho dos veículos alternativos e independentes dos grandes poderes. Iniciativas jornalísticas locais e comunitárias também são importantes, uma vez que as pessoas LGBT se encontram em diversos lugares, desde os grandes centros urbanos até as cidades do interior.


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João era menino diferente, Estava longe do bom padrão. Não parecia com sua gente, Causava em todos certa aversão. Tão delicado de corpo e mente, Mantinha feminina a feição. Deixava os pelos sempre bem rentes, Falava bastante com a mão. Mesmo vendo seu pai descontente Cansado da mãe e seu sermão,

Ilustração por: Revista Átimo

De algo ele estava convicto e crente: Mulheres não lhe davam tesão. Um dia resolveu ser valente, Foi encontrar-se lá no porão. Colocou um vestido, contente. Maquiou-se com grande emoção.

O descobrimento do não-João Escrito por

Ettore Stefani*

*Mestrando em Comunicação Social (UFMG)

No espelho viu-se sorridente, Descobriu-se não mais solidão. Foi quando disse em fala potente: “Meu nome nao é mais João”.


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artigo


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O CINEMA GAY NO BRASIL: UMA LEITURA COMPARATIVA Escrito por

Rodrigo Quevedo Fagundes* Flavi Ferreira Lisbôa Filho**

*Graduado em Comunicação Social – Publicidade e Propaganda (UFSM) **Doutor em Ciências da Comunicação pela UNISINOS e Prof. Dr. do Departamento de Ciências da Comunicação UFSM

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a atualidade vemos o crescimento cada vez maior de produções cinematográficas que exploram a identidade e a representação. Assim, tivemos interesse em estudar como são representadas essas identidades e de que forma elas contribuíam para uma construção social do homossexual a partir do cinema brasileiro. Desta forma, optou-se pela análise comparativa entre dois filmes, um relacionado ao cinema queer e outro não. Podemos definir queer como um conjunto de ideias que propõe uma concepção fluída de identidade. A partir do questionamento das relações estáveis entre o sexo biológico (cromossômico), o gênero e a orientação sexual, propondo uma multiplicidade de formas de gênero e sexo e não só as centradas em um binarismo limitador de hétero/homo, masculino/feminino. Dentro desse conceito apresenta-se o poder sexual como o principal motivo da existência de fronteiras e divisões sexuais junto com o seu desejo de ordenação da sociedade por meio da regulação das relações sexuais.

No campo audiovisual, como forma de combater essas estratégias sociais normalizadoras nos filmes, surgiu o Cinema Queer para apresentar personagens e histórias que normalmente não são representados em produtos midiáticos e, quando representados, são feitos através de um olhar heteronormativo e silenciador dos discursos dessas minorias. Além disso, é muito comum vermos gays afeminados sendo tratados como piada através de histórias que causam mais preconceito até mesmo na comunidade LGBTI, mostrando gays ativos com superioridade em relação aos passivos. Partindo deste pressuposto, procuramos entre os últimos filmes lançados aqueles que tivessem popularidade e um olhar diferente sobre a homossexualidade. Ainda, que possuíssem diferentes narrativas e formas de tratar o assunto. Daí a escolha de Tatuagem (2013) e Hoje eu quero voltar sozinho (2014).


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18 REVISTA PRISMA LGBT Tatuagem, de Hilton Lacerda, mostra a história de Clécio, líder de uma trupe de teatro/ cabaré localizada no Nordeste do Brasil que apresenta resistência política por meio de provocação e deboche à ditadura militar de 1978. Clécio conhece Fininha, um soldado de 18 anos, com o qual acaba se envolvendo e assim, provocando mudanças em ambos. Hoje eu quero voltar sozinho, de Daniel Ribeiro, apresenta Leonardo, um adolescente cego, que procura por sua independência se livrando da superproteção da mãe. Gabriel, um novo aluno na escola, acaba despertando em Leonardo sentimentos que até então, para ele, pareciam confusos. Mesmo que os dois filmes apresentem histórias de amor entre dois rapazes, a narrativa e o discurso que passam em tela são muito diferentes. Daniel Ribeiro com Hoje eu quero voltar sozinho, nos apresenta um filme de amor adolescente que se diferencia dos demais nesse gênero por apresentar como protagonista dessa história dois meninos, um deles deficiente visual. Exceto por essa característica, o restante da narrativa apresenta clichês adolescentes. O filme segue também todos os padrões heteronormativos que a sociedade impõe aos gays para serem aceitos. Leonardo e Gabriel são meninos brancos, cisgêneros, de corpos magros e que não questionam de nenhuma forma as normas. Ambos são masculinizados, tendo as suas identidades sexuais completamente de acordo com o sexo cromossômico. Personagens negros e pobres são higienizados de cena, os únicos negros são uma das professoras e o aluno novo no final do filme. Isso tudo só dá forças ao sistema heteronormativo. Os protagonistas não tem “jeito de gay”, seguem um modelo estético eurocêntrico e a relação íntima entre eles não passa de um beijo, o que para alguns héteros pode ser um alívio, pois um casal gay ter protagonismo em um filme tudo bem, mas já seria um exagero querer mostrar o sexo entre dois homens. Em contraponto a Hoje eu quero voltar sozinho, Tatuagem é um filme onde a homossexualidade é essencial para a construção da história. A história contada também é de amor, mas ela tem como plano de fundo um época de opressão, fazendo com que seja discutido muito sobre a liberdade em todas as suas formas. Ao tratar o sexo, a nudez e a homossexualidade com naturalidade, Tatuagem está indo contra os padrões da época e questionando o porquê de tamanha discriminação com afetos diferentes, enquanto o que realmente prejudica a sociedade são a violência e a repressão. Os personagens homossexuais são todos cisgêneros, mas quebram algumas regras da heteronormatividade, possuindo trejeitos mais femininos e utilizando da feminilidade em suas apresentações. Usam maquiagem, salto alto, roupas e acessórios que os fazem transitar entre ambos os gêneros. Fininha, mesmo sendo o mais “másculo”, é o passivo na relação sexual, contrariando os pensamentos preconceituosos e machistas de que o passivo seria o mais feminino do casal, a “mulher” de uma relação entre dois homens – como se ouve falar pelo senso comum.


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O filme mostra o beijo gay e insinua o sexo oral e anal entre dois homens de maneira quase explícita. Tatuagem apresenta também maior diversidade de etnias e uma realidade mais periférica do Brasil. Os protagonistas mesmo sendo brancos e dentro dos padrões de beleza não seguem tanto o modelo eurocêntrico, tendo características e aparência étnicas brasileiras. A popularidade de Hoje eu quero voltar sozinho nos cinemas foi muito maior do que Tatuagem. A forma como trata a temática, adaptando-se à heteronormatividade, fez com que Hoje eu quero voltar sozinho atingisse, além do público LGBTT, héteros que só aceitam gays “afetados”, como eles próprio dizem, quando podem rir deles e que não querem assistir a um filme que trata de questões polêmicas com mais profundida, questionando o próprio pensamento deles e apresentando um relacionamento homoafetivo de forma mais explícita como faz Tatuagem. Segundo dados do Grupo Gay da Bahia, somente em 2015 foram documentados 319 mortes de LGBT no país. É preciso incentivar a produção de mais filmes queer no Brasil, que servirão como meio de crítica social, denunciando o problema de sustentar normas conservadoras construídas culturalmente ao longo dos anos, que só contribuem para o crescimento de uma violência preconceituosa e discriminatória, que inferioriza, humilha e mata.

REFERÊNCIAS FOUCAULT, Michel. A história da sexualidade 1: a vontade de saber. 1 ed. São Paulo: Paz e Terra, 2014. GABRIELA, Ana. Cinema Queer. Disponível em: <http://www.revistacapitolina.com.br/ cinema-queer/>. Acesso em: 02 out. 2015. JÚNIOR, S. P. C. et al. Homossexualidade e construção de papéis. Revista de psicologia, Fortaleza, v. 1, n. 1, p. 43-48, jan./jun. 2010. Disponível em: <http://www.periodicos. ufc.br/index.php/psicologiaufc/article/viewFile/46/45>. Acesso em: 27 out. 2015. LOURO, Guacira Lopes. Cinema e sexualidade. Educação e realidade, Porto alegre, v. 33, n. 1, p. 81-98, jan./jun. 2008. Disponível em: <http://seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/6688>. Acesso em: 09 set. 2015.


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ARTE POR

Ettore Stefani*

*Mestrando em Comunicação Social (UFMG)


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entrevista

NEY D’ OGUM ENTREVISTA POR

Matheus Fontella* Flavi Ferreira Lisbôa Filho**

*Acadêmico de Comunicação Social – Relações Públicas (UFSM) **Doutor em Ciências da Comunicação pela UNISINOS

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omossexual militante das causas LGBT, Nei é natural de Santa Maria - RS, onde morou até os seis anos de idade. Logo, mudou para outras cidades do interior do Rio Grande do Sul devido ao trabalho de seus pais. Hoje ele é universitário e está casado há 23 anos. Forte personalidade local, conhecido pelas suas ações no ativismo das minorias sociais, lutou desde jovem como um defensor do movimento LGBT na cidade de Santa Maria - RS.


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22 REVISTA PRISMA LGBT Como foi sua infância e suas primeiras percepções individuais como homossexual? NEI D’OGUM: Sempre mantive uma boa relação com meus pais e meus cinco irmãos. Frequentei a escola regularmente e logo percebi que tinha envolvimento sentimental com meninos. Aos 11 anos, voltei a morar em Santa Maria para meus irmãos poderem estudar. Ao ingressar no ensino médio, comecei a me deparar com os primeiros problemas enquanto homossexual. Quando você expos a sua orientação sexual à família, como foi? NEI D’OGUM: Aos 19 anos quando resolvi expor para os meus familiares minha orientação sexual, começaram a surgir os primeiros conflitos, dentro da minha própria casa, na escola, na comunidade do samba. Também fui criticado no clube de negritude do qual participava, ou seja, em todos os ambientes sociais em que frequentava. Como se deu seu empoderamento? NEI D’OGUM: Sofri muita discriminação por parte da minha família, irmãos, cunhados e principalmente dos meus pais, mas também tive o apoio forte de dois dos meus irmãos. Nesse processo de aceitação, percebi que meus amigos LGBT estavam cada vez mais sendo violentados e discriminados, além de amigas transexuais que estavam morrendo de AIDS ou sendo assassinadas. Por não me conformar com essa situação, comecei então a minha transição para o movimento de militância LGBT na cidade de Santa Maria, por não aceitar essas situações.

Quais suas principais percepções sobre as instituições de ensino quando se trata de minorias LGBT? NEI D’OGUM: Meninos ou meninas que possuem características de homossexuais, seja gays ou lésbicas, mais aparentes, sofrem discriminação maior em relação aos demais. Na própria escola, na comunidade em que morava, via constantemente meninos afeminados sendo agredidos fisicamente. Enquanto acadêmico de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Maria, o que você acha que podia ser aprimorado no trato das minorias sociais? NEI D’OGUM: Atualmente, ainda tem muitas pessoas que reproduzem muito preconceito, no universo acadêmico também e, muitas vezes, esta pauta deixa de ser debatida com a devida ênfase que deveria obter. Precisamos de mais espaços para assuntos como estes virem a público.


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“O LGBT nasceu para amar intensamente, beijar loucamente, ser feliz e cada vez mais brilhar e brilhar”.

Nei D’ogum

Sua vida recentemente foi retratada em um documentário, conte para nós um pouco mais... NEI D’OGUM: O documentário “Pobre Preto Puto” foi produzido pelo produtor Diego Tafarel, que conheci na produção de um curta. Em meio a produção, ele se interessou em realizar um documentário retratando as minhas lutas na militância enquanto ativista. A produção teve duração de um ano, com pesquisas, coletas de depoimentos, com captação de imagens e etc. O documentário, após finalizado foi inscrito no último Festival de Gramado, foi selecionado entre os 24 primeiros, dos mais de 900 inscritos, trazendo assim para a nossa Santa Maria o prêmio “Kikito” de produção executiva. Tendo em vista melhores condições para um convívio social entre as novas gerações, que recado você deixa para desconstruir os preconceitos? NEI D’OGUM: Digo que cada vez mais nós LGBT devemos “sair do armário” e lutar pelo firmamento na sociedade em que vivemos. Buscar desconstruir essas barreiras, publicizar a nossa identidade e assegurar uma integridade física, pois vivemos em um país que a média de vida de uma travesti é de 34 anos.

Assista o teaser do documentário Acesse o QR code ao lado


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DESCOBRIR.

No meu trabalho eu quero expulsar. Tirar. Despir. Eu me pergunto quais são as minhas verdadeiras necessidades... as vezes eu só quero respirar... Texto e Arte por

Nanda Xavier* *Acadêmica de Artes Visuais na UFSM

Quer conhecer outros trabalhos da Nanda Acesse o QR code ao lado


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++ Ilustrado por: George Terry

ARTIGO

DOS DESEJOS DO EU-LÍRICO AOS DESEJOS DO POETA: CONSIDERAÇÕES ACERCA DA SEXUALIDADE DE FEDERICO GARCÍA LORCA Escrito por

Felipe Freitag*

*Mestre em Estudos Linguísticos pela UFSM


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26 REVISTA PRISMA LGBT morte de Federico García Lorca (1889-1936) durante a Guerra civil espanhola1 trouxe e ainda traz debates sobre os reais motivos de seu assassinato. Há dados que apontam para dois aspectos a respeito disso: o poeta ligava-se às vertentes comunistas e o poeta era homossexual. Lorca morrera em agosto de 1936, em consequência de “heridas producidas por hecho de guerra.” (GIBSON, 1996, p. 251). Essa resenha tratará do aspecto homossexual de sua morte, trazendo elementos de estilo (mormente a simbologia) de um poema de Lorca para presumir sua sexualidade. Também, situar-se-á a homossexualidade ao longo da história, de maneira a alocar uma síntese dessa orientação afetivo-sexual e seus desdobramentos na sociedade. A obra de Lorca, sobretudo a poética e a dramática continuam no século XXI, além de prementes dentro da herança cultural literária, tanto em termos de leitura de sua arte, quanto de pesquisas acadêmicas sobre ela, suscitando interesse pelo desvelamento de seu assassinato: “Si los fascistas creian que, al eliminar tan vilmente al mejor poeta granadino de todos los tiempos, iban a enterrar también su voz, es decir sua obra, se equivocaron rotundamente.” (GIBSON, 1996, p.5). Estudos recentes apontam para a questão da homossexualidade de Lorca, que em meio à Guerra civil espanhola, somente poderia ser libertada, ou expressa em sua produção artística, ora por simbolizações, ora por linguagem referencial. Ao que parece, seus desejos encontram-se em seu fazer literário. Pode-se afirmar que, o poeta e dramaturgo viveu uma homossexualidade reservada, conceito de Passamani (2009, p.106), o qual diz respeito a não vivência da sexualidade no plano público. Juan Luis Trescastro foi o responsável pelos “tiros en el culo por maricón”, o que corrobora a tese de que a morte de Lorca não foi ocasionada apenas por seu ideário socialista, mas por conta da sua sexualidade, uma vez que, pelo relato de Trescastro e Ruiz Alonso, no fim dos anos 1960 (término da ditadura franquista) a maneira do fuzilamento (tiros no ânus do homossexual) representa suas motivações2. Analisemos alguns elementos do poema Da fuga (HOYO, 1965), de Lorca:

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“A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) foi resultante de divergências políticas e ideológicas que dividiam a sociedade em relação às reformas sociais e econômicas propostas e algumas efetivadas ao longo da Segunda República (1931-1936). [...] O conflito é considerado um dos mais violentos da história da Península Ibérica, na qual a luta ideológica entre duas frentes – Popular (composta pela esquerda: comunistas, anarquistas, liberais-democratas, nacionalistas da Galícia, País Basco e Catalunha) e “Nacionalista” (composta por monarquistas, falangistas, militares de extrema direita, latifundiários e setores da Igreja Católica) – dizimou boa parte da população, deixando um rastro de morte, destruição e miséria, empobrecendo a Espanha e fazendo-a estagnar por várias décadas. Cabe esclarecer que, o regime franquista, tomou o poder com o final da Guerra Civil, em abril de 1939. Por sua vez, o General Franco se autoproclamou “Caudillo de España por la Gracia de Dios”, ao ter conseguido sufocar os republicanos, com o auxílio externo, e ter tomado as principais cidades esquerdistas espanholas (Madri, Barcelona, Valencia, Murcia e Alicante). O regime possuía características fascistas peculiares que o aproximava da Alemanha de Hitler e da Itália de Mussolini, sintetizando o que ficou conhecido por “franquismo”.” (HYPÓLITO, 2010, p. 67).


REVISTA PRISMA LGBT Perdi-me muitas vezes pelo mar, o ouvido cheio de flores recém cortadas, a língua cheia de amor e de agonia. Muitas vezes perdi-me pelo mar, como me perco no coração de alguns meninos. Não há noite em que, ao dar um beijo, não sinta o sorriso das pessoas sem rosto, nem há ninguém que, ao tocar um recém-nascido, se esqueça das imóveis caveiras de cavalo. Porque as rosas buscam na frente uma dura paisagem de osso e as mãos do homem não têm mais sentido senão imitar as raízes sob a terra. Como me perco no coração de alguns meninos, perdi-me muitas vezes pelo mar. Ignorante da água vou buscando uma morte de luz que me consuma. O poema “Da fuga” (HOYO, 1965) traz elementos estilísticos e/ou figurativos que indicam a possibilidade de alusão à homossexualidade do poeta e dramaturgo. A partir da análise semiótica, pautada nos símbolos, pode-se afirmar que: o mar indica ambivalência, o que concerne à vida vivida versus à vida pensada (ROSA, 2009, p. 20). Daí já se depreende o binarismo entre o que se é e o que se precisa ser diante das circunstâncias. Quando o eu lírico do poema em questão sentencia no último verso do poema: “Ignorante da água, vou buscando uma morte de luz que me consuma” os símbolos água, morte e luz podem ser interpretados da seguinte maneira:

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A água também está associada à simbologia do feminino e à purificação (ROSA, 2009, p. 75). O feminino do eu-lírico somente se purificará quando sua aproximação com o feminino acontecer. A morte liga-se à vida, é “o manancial da vida espiritual” (ROSA, 2009, p. 78), enquanto a luz representa a tríade vida, salvação e felicidade, em contraponto com a escuridão (ROSA, 2009, p. 85). Espiritualmente, o sujeito-lírico buscava no feminino e na purificação a consolidação da sua vida via felicidade. Nada o atingiria, senão a morte. É interessante perceber que a ambivalência que se cria é, justamente, entre os elementos de vida e morte, mas a morte aqui não é física, ela é a postergação dos desejos3 , que não podem ser revelados no meio social.

Cabe salientar que nunca se soube ao certo onde foi o local do assassinato de Lorca. Seu corpo, até hoje, não foi encontrado. O único depoimento é sobre as circunstâncias de sua prisão: “Ruiz Alonso foi o responsável pela prisão de Federico García Lorca, e a periculosidade por ele atribuída ao Lorca foi a causa da prisão do poeta, e tal prisão desencadeou na morte do poeta. Um dos detalhes mais importantes da participação de Ruiz Alonso é o fato dele ter conseguido a prisão de Lorca sem a autorização de nenhum general, como que um trunfo próprio deste que nem ao menos era membro da Falange.” (ALVES, 2010, p. 01).


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28 REVISTA PRISMA LGBT Dentro desse desvelamento da homossexualidade de García Lorca, pretende-se micro-inscrever uma historicidade da sexualidade, antes de considerar conclusivamente os aspectos finais desse trabalho. É durante as épocas medieval e clássica que se instaura uma ameaça da sexualidade, sendo que se tinha o temor de que a mesma não respeitasse a ordem do mundo. Assim, “os padres deveriam inquirir seus paroquianos sobre práticas sexuais que tentassem enganar a natureza em busca da esterilidade, como a sodomia ou o coito interrompido, mas também sobre atos em desacordo com os papéis sociais” (BOZON, 2002, p.20). Com isso normatizava-se o sexo e as posições naturais (homem sobre a mulher). Controlar a carne é um designo de Deus e da natureza, para tanto a ordem do sexo prevalecia à base do temor. A valência dos sexos se dá pela relação binária e diferencial, “onde o feminino está sempre assinalado no lado inferior” (BOZON, 2002, p.23). “O binômio comer/dar está fundamentado na metáfora da absorção, apropriação e consumo do parceiro passivo (a mulher ou um sujeito simbolicamente feminilizado) pelo sujeito ativo”. (BOZON, 2002, p.23). Então, a identidade sexual, perpassa pelo papel que se tem durante o coito. Quem

desempenha um papel ativo na relação entre dois homens, geralmente não perde sua designação, sendo preservada a sua masculinidade. “As mulheres aparecem como receptáculos vazios e passivos, além de objetos maleáveis à mercê dos homens” (BOZON, 2002, p.24), em vista disso o papel passivo na relação entre dois homens vem revestida de preconceito, pois o sujeito passivo assume o papel feminino, de receber, ficando sob a égide da masculinidade desestruturada. Na Grécia, a construção lícita do sexo para os homens constituía-se de formas diversas: “Um cidadão adulto podia perfeitamente ter relações com um escravo, uma escrava ou um jovem imberbe, assim como outras mulheres além da sua, mas de modo algum com outro cidadão” (BOZON, 2002, p.26). É com o Cristianismo institucionalizado que a ética sexual se produz na sociedade e dita as regras de conduta nas relações sexuais. “Os textos de Santo Agostinho (séc.V) teorizavam a recusa à concupiscência (desejo) e ao prazer” (BOZON, 2002, p.26), tendo a procriação como a máxima do ato sexual. O casamento cristão, como instituição a partir dos séculos XII e XIII, delimita ainda mais a atividade sexual, pois deve ser praticado apenas com o cônjuge e para fins de

Freud (1900) conceitua o desejo como o movimento que se regula em detrimento do prazer e do desprazer, ou seja, o desejo, ou libido, mobiliza o aparelho psíquico a tornar reais as demandas do consciente e do inconsciente. Para viver estavelmente, o sujeito deve equilibrar suas pulsões de modo a investir sobre elas respostas físicas, não as acomodando somente no psiquismo. O desejo é, então, uma forma de descarga das pulsões, tanto de vida, quanto de morte. 3

4 A semiótica dentro da semiologia compreende a análise dos modos de constituição de todo e qualquer fenômeno (verbal e não verbal) de produção de significado e de sentido. Conforme o legado de Charles Sander Peirce, em sua nomenclatura triádica de concepção dos signos (ícone, índice e símbolo), pautou-se no conceito de símbolo para esse trabalho. Símbolo, então, é, um produto da consciência coletiva sobre determinado signo.


REVISTA PRISMA LGBT reprodução. A entrada dos homens na sexualidade obedece à masculinização, negando assim quaisquer comportamentos afeminados, sendo passíveis de rejeição por “ferir” a virilidade dos outros homens, tomados como um todo social que deve manter a sua conduta de macho. É dentro de uma concepção surgida no século XIX, que os corpos de machos e fêmeas apresentam-se como opostos e ordenados. Já na contemporaneidade, a sexualidade se destaca e a procriação acaba tendo um lugar reduzido e marginal e, por conseguinte, é uma experimentação pessoal e de construção do sujeito. “O repertório se ampliou, as normas e trajetórias da vida sexual se diversificaram, os saberes e as encenações da sexualidade se multiplicaram” (BOZON, 2002, p. 43). A dissociação entre sexualidade e procriação acontece com a segunda evolução contraceptiva, a partir dos anos 1960, nos países desenvolvidos. É assim que a sexualidade assume um papel social, em que o indivíduo busca o relacionamento não mais para se reproduzir, mas para constituir um conhecimento do próprio corpo, para revelar sua autonomia, visando desejo e prazer: “As revoltas gay de Stonewall, na cidade de Nova York em 1969, o surgimento de um movimento gay e a decisão da Associação Psiquiátrica Americana, em 1974, de não mais considerar a homossexualidade uma doença mental”, segundo Bozon (2002, p. 54) são alguns dos importantes passos dados pela revolução sexual. Os anos de 1970 permitiram o “sair do armário”, instaurando um tempo de atos políticos pelos direitos LGBTTs. Nos anos 1980, emergiu a epidemia de AIDS (chamada de a peste gay), e os homossexuais foram fortemente atingidos (isso bastou para que a aceitação da sociedade decaísse e para que a intolerância sexual se mostrasse mais ávida do que nunca). Todo sujeito traz em si a fragmentação e a adaptação, os papeis se adotam conforme a di-

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Pintura por: Alice Wellinger


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30 REVISTA PRISMA LGBT luição de seus gostos: “Em termos de Bataille (1979), falaríamos da “desordem organizada”, que a transgressão institui” (PERLONGUER, 1987, p. 277). “As construções simbólicas são simultaneamente produções sociais que sempre decorrem de práticas sociais” (LAPLANTINE, 1994, p. 116). Logo, as construções do sujeito social relevam-se não somente na prática dessa sociabilidade, mas também na produção de representações. Aqui, vemos na obra de Lorca, essa referência simbólica de um mundo vinculado aos seus ideais, que muitas vezes deviam ser atenuados. A homossexualidade do poeta se justifica pelos elementos simbólicos que o mesmo apregoa em sua arte literária (aqui, no caso, o poema analisado sob a ótica semiológica ), já que a palavra é utilizada como empreendimento de mobilizar objetivos e anseios, ou psicanaliticamente, pulsões e desejos. Temos então, um eu-lírico errante, que tenta encontrar mecanismos de expressão da sexualidade a partir da arte literária, ou na arte literária. Sua individualidade (personalidade), por certo está acima de sua sexualidade, mas por ser esse “Dom Quixote” (sempre à procura) é que se perde e que se encontra ao mesmo tempo quando projeta imagens da inesgotável latência por descortinar socialmente o que literariamente o faz. O “sair do armário” de Federico García Lorca é referenciado em sua produção literária, muito mais do que no plano sociocultural. REFERÊNCIAS ALVES, Syntia. A violência do silêncio – a morte de Federico Garcia Lorca. Disponível em:<http://www.pucsp.br/revistaaurora/ed7_v_ janeiro_2010/colunas/download/ed7/7_coluna. pdf>. Acesso em: 21 fev. 2016. BOZON, Michel. Sociologia da sexualidade. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004. FREUD, Sigmund. A Interpretação dos Sonhos (I) (1900). In: ESB, Obras Psicológicas Completas. Rio de Janeiro: Imago, 1996. GIBSON, Ian. El asesinato de García Lorca. Barcelona: Plaza & Janés Editores S.A, 1996.

HOYO, A. del. Federico Garcia Lorca, Obras Completas: Recompilación y notas de Arturo del Hoyo. Madrid: Aguilar, 1965. LAPLANTINE, François. Aprender Antropologia. São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. PASSAMANI, Guilherme Rodrigues. O arco-íris (des) coberto. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2009. PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O Negócio do Michê – A prostituição viril em São Paulo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. ROSA, Maria Cecília Amaral de. Dicionário de Símbolos. São Paulo: Editora Escala, 2009. SANTAELLA, Lucia. O que é semiótica. São Paulo: Brasiliense, 2007.


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Ilustração por

Nicolle Sartor

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32 REVISTA PRISMA LGBT CALA A BOCA Escrito por

Cauê Rodrigues*

*Graduando em Psicologia na UNISINOS

Me acusaram pelo que sou O tal menino delicado e diferente Cada palavra era uma facada Que atravessava o meu peito Olha lá o viadinho De quê mundo tu é? Como pode não gostar de mulher? Segundo Bolsonaro, me faltou laço Já pela Igreja, um demônio que se apossou Homem eu já não era Abominação me restou Me calaram por muito tempo Até que meu ser não aguentou A dor fez eu me encarar Vi que o tal monstro não era feio E decidi tentar me aceitar Gostei de tirar a máscara Até que aprendi a me amar E hoje travei uma luta As facas no meu peito Fui tirando uma a uma Transformei em palavras Desatinei a chorar Decido: nenhum passo atrás Sou VIADO sim e vou lutar.


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++ ENSAIO

“Somos o que somos. Inclassificáveis.”

Café-da-manhã em Plutão e outras possibilidades de sexualidade

Escrito por

A.Antunes

Fernanda Gabriela dos Santos*

*Prof de Filosofia no Colégio Estudual Manoel Ribas


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uando teremos o direito de vivenciar a nossa sexualidade sem que alguém nos diga como ela deve ser exercida? Quantos e quantas precisarão morrer para que a nossa sexualidade seja respeitada?

No filme Café-da-manhã em Plutão, o personagem principal sonha em tomar café da manhã em outro planeta. Por quê? Porque é travesti. Ser travesti não deve ser algo simples em nenhum lugar do planeta, imaginemos então o personagem em uma pequena cidade. Para tornar a trama ainda mais complexa, o personagem é filho do padre da cidade com a empregada. Simples? Ruim? Tentemos imaginar essa história como podendo ser a história de vida de qualquer um de nós. Por que não? O personagem, ao nascer é abandonado pela sua mãe na porta da igreja. Adotado por uma família local, passa a envergonhá-los quando expressa atenção demasiada pelo universo feminino. Interessa-se por roupas de meninas, maquiagens e veste-se como tal. Seus amigos são uma negra, um aspirante a terrorista e um menino portador de síndrome de down, a saber, os excluídos da História Oficial da pequena cidade. Nessa perspectiva, segundo Bourdieu (1994, p.30): “A atenção ao espaço de relações no qual os agentes se movimentam implica uma ruptura radical”. As relações estabelecidas no espaço em que a narrativa se passa não abrem espaço para os que não se encaixam, por outro lado, os que não estão representados se uniram: são desiguais por sua cor, por sua sexualidade, por seu modo de pensar a política ou por ter uma síndrome. Não se encaixam na sociedade desigual a qual nasceram e seus sonhos também nela não cabem. Na adolescência, Patrick, o personagem principal, resolve procurar seus pais. A mãe, que nunca conheceu, ele denomina de Dama fantasma. Assim como no livro em que o filme é baseado, as desventuras do protagonista são contadas em trinta e seis capítulos. A mensagem? Devemos viajar muito longe para podermos nos olhar. O protagonista parte em busca do desconhecido para saber de sua mãe. Sem saber sobre espera, sem pensar se haverá volta. Tudo pode ser doloroso ou lindo. Não há como descobrir antes de tentar, mas simplesmente ficar onde está já é doloroso o suficiente. Impossível assistirmos ao filme e não reproduzirmos as nossas próprias histórias, pensarmos sobre as desventuras de nós mesmos. Quem nunca se sentiu no lugar de Patrick e sonhou com o seu Café-da-manhã em Plutão? Quantos caminhos percorremos até voltar? REFERÊNCIAS BOURDIEU,P. Lições de aula. São Paulo: Ática, 1994.

Assista o filme online Acesse o QR code ao lado


ESPELHO-OHLEPSE Escrito por

Lucas Visentini*

Ilustração

Daniel Gonçalves**

REVISTA PRISMA LGBT

*Mestre em Educação ** Estudante da E.E.E.M XV de Novembro

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++ CONTO


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itara-se por muito tempo perante o espelho que pendia, perplexo, sobre a imóvel penteadeira branca ao lado de sua cama antes de se dar conta do cansaço estampado em seu rosto fino e pálido de estudante que passara a noite preparando-se para as últimas provas do semestre da faculdade de letras. Face levemente enegrecida pelas profundas e simétricas olheiras que a madrugada em claro lhe causara, após a leitura de trezentas e doze viscosas páginas sobre Teoria da Literatura. – Nesse estado não dá pra ir à aula…, balbuciou para o espelho, mirando-se bem no fundo dos olhos, ao confidenciar-lhe sua vaidade feminina. A caixinha de música sobre a penteadeira com a esbelta bailarina que nunca cansa de dançar com a mesma melodia testemunhava o porta-joias semiaberto com acessórios que mesclavam cordões e anéis de ouro e prata com bijuterias baratas e adornos de plástico vagabundo. Ao lado dos adereços, repousava o estojo de maquilagem repleto de batons, pós compactos, blush, rímel, corretivos, sombras, bases, delineadores, dentre outros materiais para o indispensável make-up diário. “Café!”, exclamou em pensamento, ao tentar encontrar uma solução para se livrar da sonolência perturbadora. Buscara, então, uma xícara de café bem forte e fumegante para se despertar antes de sair para a aula. Enquanto sorvia lentamente o líquido intenso e amargo – não colocara um único grãozinho de açúcar – olhava atentamente cada uma das cores das diferentes maquilagens sobre a cômoda. Então pensou em silêncio, talvez pelo torpor causado pela madrugada não-dormida: – Por que se contentar com o preto-e-branco se a natureza oferece o fascínio dos mais diversos matizes?

Como não se encantar com a cor dourada, que mais parece um resquício de raio de sol? E o que dizer do sabor agridoce do verde? O verde-claro é mais doce e o verde-escuro é mais acre. O azul tem cheiro de mar e céu, tudo misturado em um só – com uma pitadinha de sal. O preto tem um toque aveludado, como em um bicho-de-pelúcia. O branco é (in) amigo do negro e é fofinho como as nuvens, mas pode ser rígido e inflexível como um osso de touro. O vermelho me mata em sangue no pulso: morri! O prata é como se fosse o cinza agraciado com o brilho da luz da Lua em sua intensidade noturna. As cores lhe davam a certeza de que, se as possuísse, teria de algum modo poderes sobre si ou sobre outrem. E como haveria de ser diferente? Desde os tempos de Cleópatra se sabe do poder que a maquilagem possui. Não foi por acaso que ela conquistou um imperador. Dentre tantos outros homens, é claro! Pintar-se era, portanto, um modo de se descobrir diferente e de encantar(-se). Sim. Sim. Bebera o restante do café em um único gole. Aproximou-se do espelho e, como de costume, começou a se maquilar, ao degustar com os olhos cada uma das cores disponíveis perante si e o espelho. Não se contentaria com o preto. Não suportaria apenas o branco. O cinza, mistura de ambos, seria a condenação à morte. E… Voilà! Com a explosão de cores finamente combinadas, maquilara-se como nunca, nada mais impedia agora de ir à aula, fazer as benditas provas e desvendar todos os mistérios da Teoria da Literatura. Ele nunca sai de casa sem maquilagem. Nunca. Ah! Sim, sim: ELE.


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++ PERFIL Nome Élle de Bernardini Idade 25 anos Atividade Profissional Artista Visual

Élle de Benardini Foto por: Leticia Durlo

Élle nasceu no Rio Grande do Sul, e seus pais se separaram quando criança. Desde então, morou em várias cidades, até vir parar em Santa Maria em 2009. Em 2011 se mudou para Londres onde fui estudar Ballet Clássico na Royal Academy of Dance. Hoje, Élle trabalha com performances e instalações, mas sua formação vem da dança, do corpo. Já iniciou a cursar faculdade de Jornalismo, Artes Cênicas, e no momento Filosofia. Tem se dedicado sempre à arte, desde a infância. Toda a sua vida está relacionada com ela. Confira nas próximas páginas um bate-papo que a revista Prisma realizou com ela.


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38 REVISTA PRISMA LGBT Como se descobriu Élle? Não houve tal processo. Desde a infância nunca me vi como homem ou mulher, mas não compreendia direito a exigência que os outros me faziam em agir de um modo ou de outro a parecer isso ou aquilo. Para mim todo esse processo sempre foi natural. Uma pessoa que desde criança nunca se definiu, se enquadrou em um gênero ou outro. Apesar da aparência feminina nunca tomei hormônios, ou fiz qualquer procedimento cirúrgico, nem pretendo fazer. Não me descobri, eu sempre estive ali, expostas, desarmada, aberta, sem medo de parecer isso ou aquilo, foram os outros que me descobriram, que me notaram. Tive sorte na vida de ter uma família que me deu proteção para que eu pudesse me expressar sem sofrer preconceitos e violência. Portanto acredito que sou o que sou, e todos somos, potência de virmos a ser aquilo que quisermos ser. Ponto. Você, como artista visual, deve ter realizado diversas performances. Quais delas você mais gostou? De todos os meus trabalhos o mais significativo deles é: “As Lágrimas do Artista”, uma performance que se tornou um vídeo-performance, que hoje faz parte do acervo do Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli – Margs, em Porto Alegre. O fato desta performance estar neste importante acervo faz dela uma obra seminal, mas não só por isso. Soma-se todo um contexto de vida pessoal bastante particular que me levaram a sentar e lembrar do passado e chorar durante 20 minutos, esta é a performance, sentar, lembrar e chorar. Realizada a primeira vez no Memorial da América Latina em São Paulo, em maio de 2015. Ela nasceu dentro de todo um contexto, social, político, e pessoal. E isso faz dela para mim e para muitos uma obra importante da minha trajetória artística. Eu destacaria ela hoje.

Foto por: Ronai Rocha


REVISTA PRISMA LGBT Como chegou até a Vogue Itália?

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tem fez uma foto, ou melhor uma colagem de quatro fotos tiradas em sequência, serem aprovadas pela Vogue e publicadas no site da revista. O mérito é todo da fotografa, é um trabalho dela, onde eu simplesmente colaborei.

Foto por: Wallesca Timmen

A Vogue foi resultado de um ensaio que fiz com a fotógrafa Letícia Durlo. Ela veio até minha casa-ateliê, e durante uma tarde me fotografou. Num ambiente bem descontraído, quase sem maquiagem, sem roupas exuberantes. Mas o olhar singular que ela

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Você é modelo, certo? Você acredita que a moda pode quebrar padrões de gênero? Digamos que eu fiz trabalhos como modelo fotográfica. Para estilistas, editoriais de moda, programas de TV, matérias de revista, enfim... Mas não sou uma modelo, sou uma artista visual com formação em dança, em Ballet e Butoh. Acho que por isso talvez eu tenha chamado atenção da moda, por ter sido sempre magra pelo ballet. E sim, a moda é uma poderosa ferramenta de construção e definição de gênero, é nela que se reflete toda a questão da aparência, e do poder também. A moda ajuda a moldar a personalidade, a expressar a identidade. Também pode ser bastante cruel com aqueles que não tem recursos para ter acesso aos bens de consumo. Porque moda é estilo, e estilo é consumo, e consumo


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Foto por: Leticia Durlo

é dinheiro. A moda, como a arte, é um mercado de luxo, pelo menos a moda que eu tenho em mente e que me influência particularmente, como a alta costura francesa. São mercados para públicos bem exclusivos. E poderosa quando o assunto é aparência, construção de imagem pessoal. É mais do que simplesmente ajudar a quebrar padrões de gênero, porque isso não é papel da moda, ela reflete os acontecimentos presentes, e a questão de gênero é presente, então é certo que aparecerá na moda também. Mas quando falamos de roupas, que uma travesti usa, que uma drag queen usa, não estamos falando da moda, nestes casos são questões pessoais. A moda começa a surgir quando o ato pessoal de se vestir começa a ser pensado, problematizado, combinado, desconstruído, construído, e principalmente comercializado como um estilo temporário que passa a influenciar o modo como as pessoas se vestem de tempos em tempos. Não se enquadrar em classificações impostas pela sociedade e cultura é um ato político? Para alguns é, soa pelo menos um ato político, já para mim não. Não se enquadrar em um determinado gênero é uma questão pessoal, de identidade pessoal. Para responder essa pergunta com mais precisão precisaríamos antes definir a que estamos nos referindo quando falamos: “classificações impostas pela sociedade”, se são as de gênero, eu penso que não, não é um ato político. A sexualidade de alguém, como essa pessoa percebe seu corpo e se coloca no mundo é questão muito mais pessoal, psicológica, até mesmo artística, do que política. A política se realiza para mim em ações sociais voltados ao bem comum. Quando você pega este fato de não se enquadrar nos gêneros estabelecidos e faz algo com isso para além disso, escreve um texto, faz uma tese, uma obra de arte, etc, aí sim esses objetos, essas ações, que saem da esfera do privado para comunicarem algo a outros, podem vir a ter caráter político por excelência, do contrário, é mais um processo pessoal e íntimo. Em


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*Todas as fotos foram cedidas para a revista prisma pela autora

Foto por: Rodrigo Ricordi

Foto por: Ronai Rocha

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“Não me considero nada mais complexo do que simplesmente, humana. Um animal humano com potências.” Élle de Benardini

Foto por: Rafael Happke


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REVISTA PRISMA LGBT 43 primeira instância relacionado ao sujeito, depois aos outros. A política é o campo do outro, das relações sociais, não das relações intimas e pessoais do sujeito consigo mesmo, estás, por sua vez, inclusive, devem ser preservadas da política, para melhor eficiência da própria política. Você se considera Queer? Eu entendo Queer como um termo de uma teoria, um conceito. Então dentro desta visão eu responderia não. Não me considero nada mais complexo do que simplesmente, humana. Um animal humano com potências.

Exato. Devem evitar os rótulos e os nominalismos, a fim de experimentarem-se como seres humanos potentes, não limitados por gênero ou definições. Seres que transitam, que tem potência de serem e estarem no mundo para além de qualquer definição... A própria ciência é ela um conjunto de teorias falsas, provisórias, a ideia de ciência como um conjunto sólido de verdades é uma visão ingênua. Se a ciência pode ser relativa, como demonstrou Einstein, então o que mais precisa ser dito sobre o ser, para que entendam que ser é uma questão ampla, de vastos horizontes, muito maiores do que o fato de termos um pênis ou uma vagina. O que acha da adoção do nome social na UFSM? Um avanço social, uma conquista de um grupo de pessoas que se organizaram e lutaram para conquistar este direito, para estas pessoas ele tem um significado forte, para mim é um direito que já deveria existir, um avanço, uma conquista. Mas eu não tenho carteira de nome social, nem adotei nos documentos dentro da academia nome social, porque não vejo necessidade, mas esta é uma questão pessoal, justamente pelo que já disse, não quero ser mulher ou homem, então o nome que esta ali é mera formalização, a mim não influencia em nada. Mas entendo que para outros isso é um problema, e que bom que foi resolvido.

Foto por: Jamille Coletto e Sara Gonzalez / Revista O QI

Você acredita que as pessoas devem fugir de nominações e serem o que quiserem?


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44 REVISTA PRISMA LGBT Como é o seu relacionamento com colegas e professores na universidade? Que tipos de dificuldades (estruturais/sociais) você enfrentou por ser quem é dentro da universidade? Uma relação normal. Nunca tive nenhum problema, nenhum episódio de preconceito. Isso depende muito de como você se coloca nas relações sociais. Eu sempre fui muito segura de mim, e sempre tive recursos para me defender, então as pessoas pensaram, e continuam pensando duas vezes antes de tomarem qualquer atitude preconceituosa comigo. Mas eu sei que nem todos tem a mesma segurança e recursos que eu, e sofrem abusos. Eu lamento que isso ocorra ainda mais dentro de uma instituição de ensino. Mas eu pessoalmente não tenho nenhum fato a destacar, é uma relação normal, pacífica, e formal. Como unir filosofia e arte contra o preconceito?

Foto por: Vitor Ceolin

Foto por: Natasha Azambuja

A resposta para esta pergunta daria uma tese de doutorado. Inclusive a união de filosofia e arte é meu objeto de pesquisa dentro do curso de filosofia. Nunca pensei isso ligado ao combate ao preconceito, teria que pensar melhor. Mas a filosofia e a arte têm o poder de pôr as pessoas para pensarem, refletirem, saírem de suas zonas de conforto, com isso podem abrir as mentes, ajudar a esclarecer falsas ideias que se têm dos gays, daqueles que não se enquadram, digamos assim. Arte e filosofia poderiam contribuir com o combate ao preconceito deste modo, levando as pessoas a pensar melhor, a refletir. Agora como unir tudo numa teoria, num sistema, que possa ser aplicado, eu vou ficar devendo. Quem sabe daqui uns anos numa próxima entrevista à Prisma eu responda, porque desejo vida longa à revista. Avant!


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++ ARTIGO UM OLHAR PARA A TEMÁTICA HOMOSSEXUAL NA LITERATURA INFANTIL:O GATO QUE GOSTAVA DE CENOURAS Escrito por

Gabriel de Oliveira Soares*

*Aluno do Programa de Pós-Graduação em Ensino de Ciências e Matemática do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA)

A

tualmente, a produção literária voltada para o público infantil tem conseguido relacionar temáticas sociais antes ignoradas pelos currículos escolares, ao abordarem assuntos como meio ambiente, multipluralismo cultural e a homossexualidade. Ramos (2009, p. 293) destaca que os textos literários têm refletido as alterações verificadas na “forma de pensar e de estar das pessoas, na relação que estabelecem com os outros e com a diferença que os caracteriza, dando voz (e às vezes também forma e cor) a preocupações candentes, tanto do ponto de vista social, como cultural e até político”. Nesse sentido, o trabalho com obras literárias em sala de aula pode contribuir para o êxito de um dos objetivos dos Parâmetros Curriculares Nacionais da Educação Nacional, o qual visa desenvolver nos alunos, o respeito à “diversidade de valores, crenças e comportamentos relativos à sexualidade, reconhecendo e respeitando as diferentes formas de atração sexual e o seu direito à expressão, garantida a dignidade do ser humano” (BRASIL, 1998, p. 311). Também, leva-se em consideração o que afirma Silva (2014, p. 26) em que,


O trabalho em sala de aula com livros que tematizam a homoafetividade é bastante relevante e produtivo na medida em que se busca amenizar conflitos escolares decorrentes da falta de informação e preconceito. Sabemos que há jovens estudantes homoafetivos que se sentem acuados num ambiente que deveria proporcionar a educação de uma maneira geral, incluindo aí a amizade, a solidariedade e principalmente o conhecimento e o respeito à diversidade de gênero e de sexualidade.

Desta forma, o objetivo deste trabalho é analisar a obra O gato que gostava de cenouras, do escritor Rubem Alves (2001), com objetivo de evidenciar o tratamento do tema homossexualidade, presente nesta obra. Inicialmente, é interessante destacar que a história se desenvolve através de metáforas, feitas pelo autor, que objetivam garantir uma abordagem sutil e clara da obra, levando em consideração o público alvo do livro. Mesmo assim, este traz discussões pertinentes nesse sentido, ao relacionar as diversas situações com o tratamento da homossexualidade humana. A história se desenvolve em torno do protagonista Gulliver, um gato que recebeu este nome devido ao famoso aventureiro Gulliver, do clássico As aventuras de Gulliver, de Jonathan Swift. Seus pais lhe deram este nome porque sonhavam que ele seria “um gato enorme, forte, valente, caçador”. (ALVES, 2001, p. 6). Entretanto, logo no começo do livro, vemos a negação de Gulliver para com sua própria espécie, relacionando-a com o fato de que o gato, não gostava de comer deliciosos ratinhos recém-nascidos, pardais saborosos ou peixes perfumados. O gato gostava de comer cenouras. Dessa forma, o personagem rompe com o comportamento natural e “socialmente esperado” de todo gato, ao mesmo tem-

po em que Gulliver, ao comer cenouras, exterioriza sua atitude homossexual ainda desconhecida por si próprio, através do alimento e do ato de comer. Nesse sentido, A ideia de naturalização de determinados comportamentos em torno das masculinidades e das feminilidades esta amplamente incorporada em nossa sociedade (...); Tais comportamentos, percebidos de forma essencializada (meninos são mas agitados, agressivos, meninas são mais meigas, passivas; meninos devem gostar de determinadas coisas, meninas de outras), estão pautados por relações de poder entre sexos desde a infância. (FELIPE; BELLO, 2009, p. 148).

Os pais do gato, preocupados com a situação do filho, levam-no ao médico, para tratar sua condição, como vemos no trecho, “Seus pais acharam que ele estava doente. Levaram-no ao médico. Mas depois de muito examiná-lo o médico concluiu que ele não tinha doença alguma. A doença dele — se é que é doença — não está no corpo. Deve estar na alma...” (ALVES, 2011, p. 6). Fato esse que condiz com a situação de muitos homossexuais hoje em dia. A família, em vez de conversar com a própria pessoa, para tentar compreender a situação do indivíduo, busca maneiras para solucionar aquilo que consideram um problema. Gulliver, ainda tentou comer um rato um dia, mas acabou vomitando, pois, “sua alma era feita de cenouras e não de ratos” (ALVES, 2011, p. 6).


Outro aspecto discutido no começo do enredo é a solidão de Gulliver. No trecho “Seus pais estranhavam que ele fosse um solitário, estava sempre sozinho. Não andava com os outros gatos. Claro que não. Os outros gatos gostavam de sair juntos para caçar e comer ratos” (ALVES, 2011, p. 6), percebe-se que Gulliver, por não se enquadrar nos padrões socialmente aceitos pelos gatos, era marginalizado socialmente. Ainda, no trecho, “Gulliver tornou-se objeto de zombaria. Seus colegas lhe puseram o apelido de coelho...” (ALVES, 2011, p. 8), percebe-se mais claramente este fato. Freitas e Pereira (2013, p. 63), ao refletirem sobre este tema, afirmam que “os homens sofreram no passado e ainda sofrem com os estigmas que a sociedade lhes impõe e, em muitos casos verídicos e infelizmente trágicos, saltam para fora da ponte da vida, ao se verem excluídos diante de uma sociedade cristã que desconhece o direito ao amor”. O próximo passo dos pais, após a consulta com o médico, foi levar Gulliver à igreja. Vemos, no trecho, a preocupação dos pais e a participação do padre na história, Os pais, padecendo com o sofrimento do filho, resolveram apelar para a religião. Pra Deus tudo é possível. Mandaram então que o Gulinho fosse conversar com um padre. O gato-padre era um gato impressionante. Pelo lustroso, pretíssimo, olhos verdes, longo rabo encurvado. Seu nome era D. João Severo. Ele abriu um livro sagrado e disse que Deus, o Gato Supremo, determinara que ratos, passarinhos e peixes são os manjares dos deuses. Assim, por determinação do Deus-Gato, gatos têm de comer ratos, passarinhos e peixes. Comer cenouras é pecado mortal. É contra a natureza. Aí lhe falou sobre o inferno, um lugar terrível para onde vão todos os gatos que comem cenouras. — Esse será seu destino se você não mudar seus hábitos alimentares — rematou (ALVES, 2001, p. 10-12).

E mais uma vez, a influência da igreja no processo se faz com a cultura de medo, condenando os fatores que não seguem aquilo que lhe é certo, condenando a homossexualidade. Desta forma, o autor evidencia o preconceito sexual através da história de um gato, onde é possível perceber a intenção de informar e educar as crianças sobre o assunto da homossexualidade. Não achando resposta na igreja, Gulliver vai para a psicanálise. Afinal, seus pais acreditavam que haveria uma cura para o “problema” do gato. Gulliver fez várias sessões e a análise durou vários anos, mas o Dr. Gatan não conseguiu resolver a situação de Gulliver. Por fim, para dar sentido à busca do porquê de Gulliver gostar de cenouras, Rubem Alves parte para a ciência. Gulliver vai conversar com um professor na escola. O trecho abaixo mostra parte da fala do professor em seu diálogo com Gulliver: — Por vezes, o disquete DNA não funciona da forma esperada. E, quando o bichinho nasce, nasce um pouquinho diferente. Alguns, chamados daltônicos, não veem as cores do jeito como a maioria vê. Outros, chamados canhotos, funcionam melhor com a mão esquerda que com a direita. Eles têm de


tocar violão ao contrário — e deu uma risada. — Parece que esse é o caso daqueles que têm uma dieta de amor diferente daquela reconhecida como padrão. O padrão é gato comer rato. Mas você gosta de cenoura. — Os chamados heterossexuais amam o diferente: o corpo dos homens se comove ao ver um corpo de mulher; o corpo das mulheres se comove ao ver o corpo de um homem. Mas o corpo dos homossexuais, quem sabe se por obra do DNA, se comove ao ver um corpo igual ao seu. Tal como aconteceu com Narciso, aquele do mito dos gregos: ele se apaixonou por sua própria imagem refletida na água da fonte. É tão interessante isso: que nosso sexo seja movido por uma imagem! (ALVES, 2001, p. 14-16).

Vemos aqui, a fala de alguém que, pela primeira vez na história, não quer “consertar o gato”. O professor o aceita como é, e isto deixa Gulliver o mais feliz possível. Entendê-lo como um gato que gosta de cenouras porque é assim que se sente feliz, era o que mais queria. De repente, Gulliver compreendeu que o professor sabia tudo sobre ele. Sabia e compreendia. Compreendia e não queria consertá-lo, não queria torná-lo igual aos outros. Ele era amigo. “Meu Deus!”— ele gritou em silêncio.“Eu tenho um amigo! Eu tenho um amigo!” E a felicidade de ter um amigo foi tão grande que ele se pôs a chorar como nunca chorara. Ele gostava era de comer cenouras. Não queria gostar de comer nem ratos nem passarinhos nem peixes. Não queria ficar igual aos outros. Seu único desejo era não ter vergonha. Seu único desejo era que os outros deixassem que ele fosse o que era: um gato que gostava de cenouras! Em resumo: ele queria ter amigos. Porque um amigo é isso: alguém de quem não é preciso se esconder. Mas agora ele tinha um amigo. Olhou para o professor, enxugou as lágrimas de alegria e não disse nada. Não era preciso. (ALVES, 2001. p. 16-18). Neste momento, Gulliver soube que haveria alguém no mundo que o aceitaria como ele é, sem julgá-lo por gosta de cenouras. E esse é o objetivo principal da história. Levar as crianças a refletirem o diferente, o desconhecido, mas não com olhos de julgamento, de “cura” como no caso de Gulliver, mas com olhos de aceitação. A produção literária infantil, contendo a temática homossexual apresenta um grande leque de possibilidades de trabalho em sala de aula. Exemplos disso são os livros Meus dois pais, de Walcyr Carrasco (2010); Tango tem dois papais. Porque não?, de Béatrice Boutignon (2010); Eu tenho duas mães, de Marcia Leite (2010); É proibido miar, de Pedro Bandeira (2002); Menino ama Menino, de Marlene Godinho (2000); onde se apresenta a homossexualidade com intuito de discutir a nova formação da família, a diversidade de gênero, a homossexualidade em si, entre outros temas.


Desta forma, o trabalho com estas literaturas no âmbito escolar pode pautar discussões pertinentes no âmbito educacional, e a prova disso é o livro O gato que gostava de cenouras que, ao abordar com metáforas a história de Gulliver, reflete parte de contexto social em que são tratados os homossexuais, com um olhar de preconceito e exclusão, levando os alunos a refletir a sua própria concepção de homossexualidade e construir um olhar de aceitação. Como em O Livro dos Abraços (2005) de Eduardo Galeano, Diego era um menino que não conhecia o mar. Seu pai levou-o para conhecer, e diante a tanta imensidão, ele ficou paralisado. Pediu para seu pai ensiná-lo a olhar. E este também é o dever do professor. Ensinar os alunos a olhar para a situação, com um olhar de aceitação. REFERÊNCIAS ALVES, R. O gato que gostava de cenouras. São Paulo: Loyola, 2001. BRASIL. Parâmetros Curriculares Nacionais. Temas Transversais. Orientação Sexual. Brasília: MEC/SEF, 1998 FELIPE, J.; BELLO, A. T. Construção de Comportamentos Homofóbicos no Cotidiano da Educação Infantil. In: JUNQUEIRA, R. d. Diversidade Sexual na Educação: problematizações sobre a homofobia nas escolas. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade, UNESCO, 2009, p. 141- 158. FREITAS, M.; PEREIRA, S. M. C. A homossexualidade no universo infantil de Gulliver. Cadernos Cespuc, Belo Horizonte, n. 22, 2013, p. 58-67. GALEANO, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM Pocket, 2005. RAMOS, A. M. Saindo do armário – Literatura para a Infância e a reescrita da homossexualidade. Revista Forma Breve, Aveiro, Portugal, n. 7, 2009, p. 293-312. SILVA, L. F. Menino Ama Menino: Impasses e soluções no diálogo entre gerações na narrativa infantojuvenil de feição homoafetiva. Momento, Rio Grande, v. 23, n. 2, jul./dez. 2014, p. 25-34.


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em foco

Aurora Wachowski/ Eros Ariel/ Kevin Pereira Ariel Barcelos ESTUDANTE DE LETRAS/INGLÊS

“Ser drag não tem como definir e essa é a parte mais legal. Para mim, o que era ser drag, no começo, não é nada do que eu faço hoje. No momento que tu fizer alguém sentir alguma coisa diferente, eu acho que o meu papel como drag tá feito. Não é só a maquiagem, o rosto que vão te transformar é o comportamento”.

ESTUDANTE DE DESENHO INDUSTRIAL

“Ser drag é acima de tudo, liberdade. É uma expressão artística, unida por vários fatores como moda, maquiagem, performance e entretenimento. O mais importante é estar ciente das opressões de uma sociedade e que gênero é uma construção social, sendo capaz de transitar por todas essas definições sem ofender a ninguém”.

Aimée T. Gentil/ Felipe Severo JORNALISTA

“Encaro drag como um hobby, algo que me diverte e que espero que divirta aos demais. Porém, além disso, considero drag uma expressão artística revolucionária, contestatória e política. Também é uma arte riquíssima, criativa e inovadora. Pra mim drag é o casamento perfeito entre arte, diversão e militância”.

Lolli Flop/ Luis Gustavo FORMADO EM TEATRO E GRADUANDO EM ARTES CÊNICAS

“Ser drag é uma forma de me manter atento enquanto ser artístico e político com os propósitos que tenho com desconstrução de gênero, ressignificação de estereótipos, como também é estudo, é pesquisa, é treino. Dedicação e doação”.

Donna Le Blanc/ Gabriel Zanini FOTOGRÁFO E MAQUIADOR.

“Eu criei a Donna com a intenção de mostrar para o mundo que todos são livres pra ser o que quiserem, e que padrão não pode limitar alguém. Eu quero que as pessoas não tenham que se preocupar com “isso é pra homem” e “isso é pra mulher”, e se sintam confiantes para colocar pra fora tudo que elas sentem vontade”.


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FOTOGRAFIA POR: Rogério Pomorski

Magenta Cianureto/ Rodrigo Cassanego DESIGNER DE PRODUTO

“É bem difícil definir o que é ser drag só se montando para saber. As pessoas acham que quando você está de drag você não é uma pessoa, elas acham que tu é tipo uma entidade”.

Valquíria de Morte/ João Esmério ESTUDANTE DE LETRAS

“Ser drag, eu diria que é transformar-se, é realmente essa questão da pessoa te ver drag e não te reconhecer como pessoa”.

Micka Valga/ Diego Azambuja ESTUDANTE DE GEOGRAFIA E TRABALHA COM ATIVIDADES DE GÊNERO E SEXUALIDADE NAS ESCOLAS

“Drag pra mim é acima de tudo transgressão e quebra de padrão de gênero”

Loretta Cornish/ Gabriel Abrantes ATOR

“Ser drag pra mim é usar a arte drag para algo, seja pra provocar a sociedade, problematizar questões pouco valorizadas, como campo de experimento... O fazer drag vai muito além de bate cabelo e disputa de beleza, drag é político, drag é confronto e drag é arte. Pra mim drag é infinito, um campo cheio de gostos, tipos e jeitos!”


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palavra drag teve sua origem nos EUA por volta de 1870. As hipóteses que explicam a origem da expressão são muitas e entre as mais aceitáveis, “drag” seria uma sigla para “dressed as girl” (vestido como menina). A prática era comum quando alguns atores das peças de Shakespeare eram homens e tinham que assumir papéis femininos no palco. Outra hipotése é “drag” ter o sentido de “arrastar” e se relacionaria com os imensos e pesados vestidos usados no final século XIX, que faziam com que o homem vestido de mulher literalmente se arrastasse nos palcos. A tradição do transformismo se manteve, o que criou uma associação direta entre ser gay e ser drag queen, o que nem sempre existe. O que antigamente era apenas parte do entretenimento, hoje é utilizado como forma de questionar as estruturas de gênero e liberdade sexual. Ariel Barcellos vivia em um lugar muito pequeno e sem nenhuma cultura LGBT, e segundo ele o seu primeiro contato com o mundo drag foi tardio. ”Vivi muito tempo sob a sombra de um preconceito acerca da falta de informações sobre performances de gênero e drag queens”. Ariel teve seus primeiros contatos na adolescência, quando começou a se interessar por maquiagem. “Quando conheci o trabalho de algumas drags e maquiadores que consegui unir uma forma de expressão autêntica, com a transformação completa da maquiagem. A partir desse momento, eu comecei a gostar de drag queens e me apaixonar por essa arte e por tudo que ela carrega”. Assim, nascia Eros Ariel, nome escolhido por Ariel para a sua drag “Eros pela simbologia por ser o filho de Afrodite e deus do amor {...{ e Ariel por ser um nome tanto usado por

homens, como por mulheres”. Devo usar o nome que foi motivo de chacota por muito tempo como uma forma de empoderamento”. Já Aimée (drag vivida por Felipe Severo) nasceu em um impulso, na segunda Drag Night – antiga festa que acontecia no boteco do Rosário. “Alguns dias antes, conversei com uma amiga para que ela me maquiasse, gastei toda uma grana que tinha juntado em roupa, sapato e peruca e fui. Como acabei ganhando o prêmio de melhor montação nesta festa, tive que me montar e fazer uma apresentação na festa seguinte. Com isso começou o vício. Seu nome de drag surgiu de dicas de amigos. “Aimée do verbo amar em francês, que vinha bem ao encontro da personalidade que eu queria pra minha drag: amável, divertida, adorável… O Gentil foi por ser o oposto do meu sobrenome como boy. E o T. no meio foi só pra criar um trocadilho”.


REVISTA PRISMA LGBT Luis Gustavo lembra exatamente a data em que Lolli Flop veio ao mundo “Comecei em 25 de setembro de 2015, vestindo uma calça-saia preta e uma bata bege que surgiu de um brechó naquela manhã. Por algum motivo ainda desconhecido por mim, Lolli nasceu com seis sobrancelhas. E ainda mantive elas mais quatro montações. Mas depois elas foram abolidas, restando apenas duas”. O nome veio em virtude da união de dois termos do inglês: Lolli para aproximar da palavra pirulito em inglês; enquanto Flop é “uma brincadeira com a gíria “Flop” (algo como criar uma expectativa e não alcançar) vide álbum Lotus da Christina Aguilera e o ArtPop da Lady Gaga). Donna LeBlanc, drag vivida por Gabriel Zanini é super fã da Lady Gaga . Seu nome veio da TV e o sobrenome foi um presente de uma de suas melhores amigas. Seu primeiro contato com o mundo

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drag foi a partir do acompanhamento do início da carreira de Jeffree Star, mas o que lhe motivou a se jogar no mundo drag foi um amigo que lhe mostrou as músicas da Adore Delano. A primeira vez que viu uma drag ao vivo foi na festa em que se montou pela primeira vez. Já Magenta, personagem de Rodrigo Cassarrego, teve seu primeiro contato com o mundo drag através das drags da cidade, como conta “antes de conhecer o RuPaul eu conhecia a Taylla , depois conheci a Lili e depois a Felícia”. O nome de Magenta veio do filme musical Rock Horror onde há uma personagem de mesmo nome. Além disso, o nome tem a ver com o que ela faz, “Eu trabalho com arte, cores e tudo mais, é uma das cores da escala CMYK, já o sobrenome Cianureto, Magenta diz ”por que é um veneno, acho que tinha a ver com a personagem”.

Essa são apenas cinco das nove histórias que serão contadas aqui. A revista Prisma LGBT reuniu em uma super entrevista e ensaio fotográfico nove drags da cidade para contar um pouco sobre suas histórias, seus ídolos, inspirações, performances e outros assuntos que estimulam nossa reflexão. Fiquem bem à vontade e boa leitura.

LORETTA CORNISHW/FOTO ACERVO PESSOAL


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54 REVISTA PRISMA LGBT Quando começou? EROS: Me montei pela primeira vez em Junho de 2015, numa festa criada por algumas drags locais, eu havia estudado por uns meses antes de começar, sempre gostei de maquiagem, então foi a primeira coisa que comecei a treinar. Nessa festa acabei ganhando como melhor drag, então fui convidado a performar na segunda edição, desde esse contato direto com o mundo drag, não consegui mais parar. VALQUÍRIA: Um ano atrás. Tudo começou bem antes de provavelmente me montar. Uma vez que várias coisas foram contribuindo. Na época o Rodrigo tentou me mostrar o seriado RuPaul. Ele sempre tentava me convencer. Eu não entendia, e fui começando a gostar, aprendendo, desfazendo meus preconceitos, justamente pelo fato de eu não entender as coisas, eu julgava. Fui gostando do seriado, me despertou o interesse, conheci drags daqui de Santa Maria. Até que chegou o momento que resolvi me montar.

Já tinha me montado em casa, treinei make e coisas do tipo, depois fui pensando no look e o que a personagem ia representar, qual a mensagem que iria passar. Foi tudo uma construção, depois vi o que podia melhorar ou não. MICKA: Aurora me puxou para o mundo drag e como eu já era dj resolvi conciliar. MAGENTA: Eu comecei meu interesse antes. Eu era colega da Taylla Fenix no colégio e desde pequeno tive convívio com ela. Depois que eu comecei a sair na noite, comecei a ver ela montada e não entendia muito bem. Eu comecei a pesquisar sobre maquiagem e acho desde 2010/11 eu me maquiava em casa. Com o tempo, fui praticando em casa só que eu nunca tinha, digamos essa coragem de sair. Depois de muito tempo resolvi sair montado. Desde aquela época (2010) eu já vinha planejando o que eu queria. DONNA: Eu decidi me montar pela primeira vez no halloween de 2015. É minha data favorita do ano e uma ótima oportunidade pra se

sair de casa de salto e peruca. Um fato engraçado foi que na minha primeira montação, eu fui pra festa de ônibus e passei pelo centro da cidade vestindo apenas lingerie, roupão e um sorriso no rosto. AURORA: Em 2011 eu fui para ensino médio no Maria Rocha, que todos os anos fazia o dia do ridículo. Eu sabia que queria fazer aquilo, por que eu queria trazer uma coisa diferente do que aquilo que eu tinha visto e me montei pela primeira vez. Eu dublei Telephone da Lady Gaga, foi bem legal, eu ganhei o dia do ridículo. Até então, eu não tinha me montado nunca. Ano passado, eu me montei pela primeira vez, mas eu já tinha ideia do que eu queria, eu já tinha a história, a estética da Aurora pronta. Primeiro contato com o mundo drag? LORETTA: Os primeiros contatos foram com filmes. Destaco Rock Horror Picture Show e Priscilla Rainha do Deserto


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LOLLI: Meu primeiro contato mais firme foi em 2014 quando conheci Rupaul’s Drag Race. Pedi o link dessa tal série que todos falavam e, ao assistir, me apaixonei. MICKA: Anos atrás, por 2011, conheci a primeira drag pessoalmente, Lana Danger, a única drag da minha cidade (Ijuí) na época, ficamos tri amigos e somos amigos até hoje! AIMÉE: A primeira drag que vi ao vivo foi Felícia Finamour. Lembro que foi um choque, pois eu não entendia nada sobre drag. Logo depois conheci o realitty show Rupaul’s Drag Race e me apaixonei. AURORA: Um dia eu estava trocando de canal e estava dando RuPaul e a corrida das loucas [...] fiquei apaixonado. O que eles faziam era mágico! Uma pessoa poder fazer tudo aquilo e se transformar em outra coisa completamente diferente. Agora, eu vejo muito o profissional, antes eu via essa mágica.


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Leva alguma coisa da sua personalidade para a sua drag? EROS: Claro, dizer que não levamos nada de nós para a nossa drag é a maior falácia. Eu quem a criei, então, ela é toda eu. É uma expressão visual de tudo que eu gosto e acredito. Me pego cada vez evoluindo um pouco. É preciso muito cuidado para não cometer deslizes e misturar problemas pessoais com nossa arte. A timidez precisa sumir, a postura precisa mudar. Independente do seu personagem é necessário ter carisma e cuidado ao expressar a imagem a qual você deseja.


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MICKA: Micka é como se fosse minha versão exagerada, temos pontos diferentes, mas ela carrega muito de mim, assim como hoje em dia eu também carrego algo dela! AIMÉE: Acho que apenas o meu senso de humor, pois o resto é completamente novo pra mim. Out of drag costumo ser muito mais tímido e reservado, enquanto a Aimée é totalmente extrovertida. LORETTA: A Loretta é uma pessoa muito melhor que eu, acredito que viver ela me

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transformou de uma forma incrível. Aprendi a respeitar todas as letras da sigla LGBT, aprendi a respeitar mais o humano como tal. E aprendi que o confronto é necessário, existe espaços dentro da sociedade e eu quero o meu, fazer drag me trouxe muita consciência sobre isso! LOLLI: A Lolli é mais corajosa. Se permite mais. Gosto de tentar ser mais irreverente, mais divertido quando estou de Lolli.


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58 REVISTA PRISMA LGBT AURORA: Na questão estética, eu nunca tive problemas de usar roupa de Kevin na Aurora/roupa da Aurora no Kevin, por que para mim roupa não tem gênero, então isso é uma coisa que eu descarto. Na questão de personalidade, têm coisas que eu não consigo expressar, como conversar com as pessoas. VALQUÍRIA: O que eu mais carrego é a minha personalidade, por que tenho uma personalidade forte. Eu potencializo muito as coisas, por exemplo, às vezes eu sou na minha, a Val já dá oi para qualquer um. A Val faz isso, por que ela é uma personagem, as pessoas a veem de uma maneira diferente.

MAGENTA: O jeito de tratar as pessoas... Eu tento tratar todo mundo bem, montado ou desmontado, então o que eu identifico mais é o jeito de conversar com as pessoas. Quais são os ídolos da sua drag? EROS: Nunca fui muito de ídolos, nunca consegui me limitar e tirar minha inspiração apenas de

MAGENTA: Os ídolos que me levaram a quer me montar foram a Elvira - Rainha das trevas, Jerri Blank (que é uma coisa meio alternativa), além de uma cantora que tem uma voz bem satânica, Dilana Robbichaux ela me inspirou também visualmente, gosto muito de sua estética.

AIMÉE: São muitos e por diferentes motivos. Entre as drags, as minhas preferidas são as brasilei“Odeio gente famosa, ras Lamona Divine, meus ídolos são as drags Mina de Lyon e Nina Codorna e as desse Brasil que põem a estrangeiras Thorcara a tapa todo dia nos gy Thor, Evah Destruction, Cheddar lugares mais distintos Gourgeous, Katya, Tatianna e Alaska. desse país. Micka Valga Mas também tenho ídolos no mundo da música, como David algumas referências. Bowie, Iamamiwhoami, Tenho diversos gostos e Tove Lo e Clarice Falcão, e personalidades que me personagens de cinema, inspiram, tento absorver um como Silene Seagal (Sanpouco de todos que passam eamento Básico – O Filme), pela minha vida, pois somos Velma Kelly (Chicago), Satformados por muitos ine (Moulin Rouge), Alice contextos diferentes e eu (Closer), Dr Frank-N-Furtacredito que é a percepção e er (Rocky Horror Picture aceitação dessas diferenças Show), Hedwig (Hedwig and que nos faz empáticos , the angry inch) e o Coringa sensíveis e ricos, cultural e do Heath Leadger. Uma referencialmente.


REVISTA PRISMA LGBT verdadeira bagunça que reflete bastante na minha drag e na minha tentativa de fazer algo divertido, exagerado e bizarro. MICKA: Odeio gente famosa, então meus ídolos são as drags desse Brasil que põem a cara a tapa todo dia nos lugares mais distintos desse país. Admiro drag que é muito mais que maquiagem e foto bonita no instagram, gosto de drag política e que tem coragem de sair na rua por a cara a tapa! LOLLI: Primeiramente, Bob The Drag Queen. Ela é engraçada, política e FORTE de um jeito que eu sonho me equiparar um dia. Também admiro e acompanho o trabalho da Belle Zeth Boo, uma drag maravilhosa de Porto Alegre. Aí posso citar algumas de RuPaul que são ótimas, como Ginger Minj, Katya, Alaska, Mariah Belanciaga, Shangela, etc. Pra finalizar, uma grande ídola minha é Tracy Turnblad do musical Hairspray. Aquela personagem AHAZA e eu amo e sou grato a ela e seu discurso. VALQUÍRIA: Eu gosto muito da Lady Gaga, tudo que é pop, diferente me influencia muito, assisto muito clipe.

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62 REVISTA PRISMA LGBT DONNA: Lady Gaga, Madonna, Violet Chachki e Raja são algumas das minhas maiores inspirações. LORETTA: É complicado falar em um ídolo, eu me inspiro em muitas pessoas. Mas acho que Jessie J, Lady Gaga, Coco Chanel, Alaska, Adore, Donna LeBlanc, Pabllo Vittar, Thiago Pethit... AURORA: Meus ídolos são tudo que vem de satânico, como Elisa Lam, aquela louca do elevador que morreu na caixa da água. A Marina Joyce é o novo ídolo da Aurora, tudo que é louco. E digo por mim, que eu aplico na Aurora. Gosto muito das coisas da Björk, acho ela uma pessoa fora da casinha e tudo que é completamente futurista. Uma performance marcante? LORETTA: Eu performei Till it Happens To You da Lady Gaga na lipsync, e foi um dos trabalhos performáticos que mais me empolguei e mais trabalhei em cima, acabou e fiquei com a sensação de missão cumprida. Foram duas músicas e a segunda foi M.I.L.F da Fergie, que também teve bastante trabalho envolvido. Foi lindo e me orgulho muito! VALQUÍRIA: A primeira e única que fiz até hoje, mas foi uma experiência. Eu não tinha, até então, como drag subido em um palco, é muito diferente, você pensa nossa eu deveria ter ensaiado mais, deveria ter feito isso, não deu tempo, deveria ter me preocupado mais com a roupa, não pensei na performance, o que vou fazer agora? Foi no Boteco do Rosário em uma festa que tinha o nome Drag Night. Foi uma performance de natal, eu queria fazer a coreografia da Jingle Bell Rock das Meninas Malvadas, só que eu não consegui pegar a coreografia de última hora, então eu comecei e misturei outras músicas. Acho a experiên“Nós somos autossuficientes, não temos cia sempre válida e com o nenhum produtor, temos que baixar os tempo tu vai aprendendo, melhorando.

programas, editar as músicas, pensar nelas, na roupa, na troca de roupa... Temos que fazer tudo sozinhos, tem que ter muita criatividade, então é saber escolher, pegar suas referências, pensar nos gestos, por que às vezes a gente pensa em fazer algo e na hora sai outra coisa. Valquíria

LOLLI: A primeira performance foi bastante marcante. Performei a música Lollipop, do cantor Mika. Ela aconteceu numa festa no encontro nacional de estudantes de artes que ocorreu aqui em Santa Maria. O extenso público, de todo canto do Brasil


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“Diferente da drags americanas, que têm tudo, as drags daqui são incríveis, por que além de ter criatividade de poder sobressair com pouco material que tem, nós conseguimos, muitas vezes, ter mais talento ou cartas nas mangas do que drags de lá. Eu acho que as drags brasileiras são bem esforçadas e bem criativas para as coisas que têm.” Aurora aplaudindo e gritando “Lolli! Lolli! Lolli!” ao final da performance é uma sensação que eu espero nunca esquecer. AIMÉE: Sou uma drag que prefere estar no meio do público conversando a estar em cima do palco. Não me considero uma boa performer. Porém, das três vezes em que me apresentei, a que mais gostei foi uma festa no Macondo, em que estava vestida de ursinho e distribuindo gummy bear com vodca para a galera, ao som de Open Bar da Pabllo Vittar. DONNA: Eu gosto bastante da performance que eu fiz na Fanclube Ed. Lady Gaga, no Macondo. Eu amo a Lady Gaga e poder participar foi incrível. MICKA: Eu sou apaixonada por neon, então acho que a que eu mais gosto foi a de Dooo It que fiz na lipsync de outubro. AURORA: Eu tenho duas performances que eu gosto muito, que foi a primeira que eu fiz sozinha de Make Love, eu dublei Hold Againsnt Me da Britney Spears, depois Make Love da Inês Brasil, foi ótimo por que eu misturei, a parte futurista de Hold Against Me com Make Love que é mais do povão. E a última que eu fiz no bric, She Wolf da Sia, que eu tive muito trabalho para pegar uma referência para fazer o que eu fiz e ficar o tempo inteiro com uma peruca escondida debaixo de uma touca, estava quente. Depois eu bati o cabelo na farinha, acho que foi uma coisa bem legal. MAGENTA: A performance que eu mais gostei, foi no concurso Miss Drag Queen Rio Grande do Sul que eu participei este ano. Eu


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64 REVISTA PRISMA LGBT fiz toda uma história para performance e na hora deu tudo certo, então para mim foi a melhor coisa e também o reconhecimento.

AIMÉE: Quando tenho que performar, a parte mais difícil costuma ser a escolha da música. Depois disso é só ensaiar uma coreografia básica.

Como é planejada cada performance? LORETTA: Normalmente primeiro eu escolho a música, entendo a letra e depois vejo o que é necessário pra performance. Basicamente isso, nunca é do mesmo jeito. DONNA: Meu estilo drag é como se a Lady Gaga acabasse de sair de um cabaré, então minhas performances geralmente tem uma coreografia e uma troca de figurino. Eu gosto de ter um tempo antes pra ensaiar e saber o que eu vou fazer no palco, improvisar me deixa nervoso. EROS: Como eu me considero uma drag muito nova, ainda não tenho nenhum ritual. O espaço para performances e afins, em SM, ainda não é muito grande, se levado em consideração a quantidade de drags da cidade. Logo, acabamos por não performar muito para sermos capazes de criar um ritual. Cada performance acaba sendo uma experiência nova e uma chance de se tornar cada vez mais profissional, reconhecer nossos erros e melhorar sempre mais. MICKA: Eu me inspiro muito fácil em coisas aleatórias, às vezes vejo um isopor no lixo e pego pra fazer algo, seja roupa, seja performance, tenho ideias bem loucas praticamente “do nada”. LOLLI: Não existe um ritual, na verdade. Depende do que eu sinto necessidade de falar e/ou experimentar naquele momento.

De onde vem a inspiração para compor a drag? EROS: Minha inspiração vem de qualquer lugar coisa que me toque. Meu processo criativo é bem intuitivo. Mas acredito que nossas atitudes intuitivas carregam com elas todo nosso contexto visual e social, então, por mais que seja uma atitude completamente intuitiva, ela carrega consigo tudo o que eu gosto e que de alguma forma me marca. AIMÉE: Procuro estar sempre atento ao que está na minha volta e ao que consumo, pois qualquer coisa pode virar referência: uma vitrine, um desfile, um filme, uma série, fotos do pinterest ou do instagram, uma propaganda de televisão... tudo pode virar uma referência, se eu conseguir pensar em um conceito em cima daquilo. LOLLI: O que mais demandou de inspirações foi a maquiagem, até eu encontrar meu jeito de fazer ela em meu rosto. De resto, eu lido com o que tenho disponível. Claro, sempre tentando aproximar do que me proponho. AURORA: Eu fico assistindo Matrix até me dar dor de cabeça. Como a gente não tem um feedback na relação profissional, acaba não tendo dinheiro, por que tem que pagar contas e tu quer fazer coisas que não tem. O que eu queria mesmo é estar usando uma


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roupa de látex, mas eu posso? Não. Eu sempre tento fazer o máximo para minha drag parecer com aquilo que eu quero, e pegar essas coisas e recriar. Há pouco tempo, eu aprendi a costurar então é uma coisa que já me ajuda muito. Agora eu tô conseguindo me aproximar muito mais das coisas que eu quero fazer. Querendo ou não, tudo é caro, por exemplo, se tu for comprar uma peruca, eu, por exemplo, compro minhas perucas da china, até chegar demora um ano. LORETTA: Acho que minhas maiores inspirações são as Kardashian, algumas drags de RuPaul’s Drag Race e tento trazer o que posso de moda pra Loretta, mas é tudo muito caro e nem sempre tem como realizar tudo pra um look. Perucas eu vou pelo meu gosto mesmo e pelo que acho que pode ficar bom. MICKA: Vejo inspiração em quase tudo que enxergo, gosto de reciclar coisas e como já havia mencionado, às vezes até algo achado no lixo pode virar um acessório shok. MAGENTA: Eu tenho bastante inspiração nos filmes musicais darks. Quanto a gastos, um investimento maior foi no começo com maquiagem e tudo mais. Perucas eu não invisto, por que eu já tenho. Geralmente, quando vou sair e quero roupa nova, o gasto que tenho é com o tecido. Eu costuro, faço todas as minhas roupas e às vezes o João me ajuda. Eu me inspiro também nos anos 80, onde era moda a pessoa ter dread. DONNA: A primeira coisa que eu pensei quando criei minha drag foi “como eu gostaria de ser se fosse uma mulher?”, e como eu sempre amei cabarés, musicais e Lady Gaga, tentei unir tudo e criar algo mais atual. Acho que ainda estou longe do que eu quero, minha ideia seria uma mistura da Cruella De Vil com a Dita Von Teese.

Confira a entrevista completa com as drags Acesse o QR code ao lado


Arte por: Kathlen Castello Branco / Revista Ponto de escambo

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LUTO Escrito por

Cauê Rodrigues* *Graduando em Psicologia na UNISINOS

Hoje, não consigo mais lutar, sou luto Luto que não é meu, está em tantos lugares Aquele silenciado na boca da mulher que grita por liberdade Escorre nos olhos da mãe negra da favela Aquela que chora por saber que seu filho não voltará Esfaqueado pelos Excelentíssimos Torturado junto à democracia Hoje, o luto é substantivo Morto antes de virar verbo Banhado em sangue arco-íris Da minha comunidade crucificada diariamente Presa no pecado de amar Hoje, luto Amanhã, luta

Arte por:

Nanda Xavier


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Fotografia por: Rogério Pomorski


S.E.G.R.E.D.O Escrito por

Cláudia Samuel Kessler*

*Doutora em Antropologia Social (UFRGS)

a quatro chaves escondi um segredo, e adicionei mais três chaves por precaução,

joguei uma num poço escuro, outra escondi atrás do armário, uma enterrada, uma eu dei pra um desconhecido, uma ficou pro porteiro do prédio, uma grudei com chiclete num banco da rodoviária, e a última eu engoli,

pra que ninguém mais soubesse do que se tratava.


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Uma tigresa

DEPOIMENTO

Escrito por

Manoel Luthiery

Fotos por

Camila Nuñez

S

ou Manoel Gildo Alves Neto, na certidão de nascimento, mas me construo enquanto identidade artística sob o pseudônimo Manoel Luthiery. Negro, filho de um casal de pescadores do Rio São Francisco, SIM! Pai da pré-adolescente Inajá, SIM! Artista negro, SIM! Professor de Dança Afro, SIM! Adepto ao Candomblé, SIM! Bissexual (!?), SIM! Entre tantas outras performances e identidades sociais que temos que construir diariamente, o professor, o aluno, o militante, o filho, o pai, o filho de Orisà (OmOrisà) e etc... Dentre todas essas identidades, tem sido necessário me reafirmar, reafirmar quem sou, de onde vim, e o porque estar aqui. Entretanto um dos pilares de toda essa construção, às vezes tem se colocado, mesmo que com

Amor, de maneira contrária. Mãe, aquela Tigresa, SIM, aquela Tigresa que se fez forte no caminho, e no quintal, queimando as mãos na panela de doce de leite, ou estressada após longas horas sentadas tecendo redes, tudo isso pra garantir uma alimentação básica pros seus filhos e uma boa educação.


REVISTA PRISMA LGBT Essa escrita talvez não faça tanto sentido, mas em mim ela abre brechas de memórias delicadas, das dimensões do afeto, do cheiro, do cuidado, do toque de Mãe. Nas vésperas de sair rumo à primeira graduação, minha Mãe me falou:

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- Netinho (apelido carinhoso utilizado pelos familiares para se referir a mim), ande direito meu filho, não ande de todo jeito, cuidado com as amizades...

- Filho pegue toda sacanagem, timotage (se referindo aos três jeitos) que você tem e deixe aqui em casa, aqui atrás dessa porta!

Entre outros tantos conselhos, ali ficava explícito o medo do que o mundo poderia fazer com seu pequeno filho, com seu Netinho, o que rotineiramente o mundo tem feito com Negros e Gays e com Gays Negros.

O medo daquela Tigresa, de agora ter um filho bissexual no mundo, longe de suas garras e do seu colo, fez com que ela sempre que ligasse comentasse:

Ainda hoje me questiono sobre esse preconceito, travestido de cuidado, que eu não sei como dar vazão, só consigo olhar com olhos do afeto. Família, casa, coração de mim, abrigo dos afetos e dos cuidados trocados via metáforas meio esdrúxulas. (...) Obrigado Prisma por me possibilitar essa imersão nas frestas da minha memória, e me refazer a partir da análise, não racional, mas sensitiva de tudo isso.

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72 REVISTA PRISMA LGBT Poesia por THOBIAS TONIOLO* *Graduando em Biomedicina (UNIFRA)

Minhas asas estão presas Presas por grossas argolas cravadas em suas pontas Argolas ligadas ao chão por correntes Furadas, minhas asas de gota a gota sangram E, de gota a gota, meu sangue se esvai Assim como toda a água de meu corpo Desperdiçada por cada lágrima Que descem queimando por meus olhos E que deixam cicatrizes em meu rosto Preso ao chão, acima de mim dirijo meu olhar E vejo um céu a ser crepusculado Mesclado de rosa e anil Onde outros batem as asas E, em bando, voam a mil Exibindo piruetas e felicidade Suas asas brilhando com a liberdade De uma vida despojada e de dignidade De um prazer que minha alma ainda não viu E preso ao chão, há revolta E, desesperadamente, tento voar Batendo ferozmente as asas Consigo subir a um metro Até as correntes fazerem o efeito E me puxarem com um sofrimento Apertando ainda mais minhas asas Me fazendo cair de joelhos Às vezes, as pessoas descem ao chão Assim elas conseguem me ver melhor E me incentivar para uma liberdade lutar E assim consigo voar mais alguns metros Não importando a dor a latejar E o sangue a jorrar de asas a se debater Porém, tudo volta ao zero E ao chão acabo a retornar


REVISTA PRISMA LGBT

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Assim, do chão Vejo as asas prateadas, que encantam ao cintilar Que reluzem quando a luz está a brilhar E que expressam a liberdade que algum dia Hei de provar Algum dia, irei me libertar E minhas asas douradas bater Sentir o vento a me tocar Aliviando o ardor Experimentando lágrimas a se secar Ver o horizonte a me desafiar Observar o sol a me envolver E a chuva a me acariciar Ver as árvores a balançar Com o vento que eu farei Acompanhar o arco íris E descobrir o tesouro quando o final chegar Acompanhar pessoas a voar E nossa liberdade poder compartilhar Até então, vejo o mundo do chão E cada sentimento é desespero Cada pluma de minha asa Ansiada por bater em liberdade Não se passa de um profundo Sincero e distante desejo


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RUÍDO

Pedimos ao nosso público para enviar uma foto e uma frase em resposta a algum esteriótipo relacionado ao LGBT ou expor suas ideias sobre algum assunto do mundo LGBT. Confira algumas delas.

“Fui uma criança negra criada em moldes brancos, isso me matou por dentro. Agora, resolvi deixar minhas raízes renascerem..” Pedro Henrique Machado


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“Você é lésbica por falta de homem” Homem tem em toda esquina, eu gosto é de mulher mesmo e não quero ser aceita por fazer parte do seu fetiche, eu quero porque mereço respeito” Monise Farias


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REVISTAPRISMA PRISMALGBT LGBT 76 REVISTA 76

“Não sai do muro” Que muro? Aqui não existe separação de nada, somos todos um, para que dividir tudo se podemos ser um só!” Diego Azambuja


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“Estamos em constante transformação, podemos ser alguém hoje e outro amanhã, não é possível compreender uma pessoa por completo através de meras predefinições” Jamille Coletto


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“Inspirados na frase dita por Gaga: “E, agora, estou apenas a tentar mudar o mundo, uma lantejoula de cada vez”. Que sigamos na luta, uma lantejoula de cada vez e na certeza de que enquanto houver ódio e intolerância, vai ter LGBT lutando pelo direito de ser e amar quem quiser!”. Edimar Oliveira




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