LIVRO QUEIJO - CAP 1

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INTRODUÇÃO + CAPÍTULO I O QUEIJO DE COALHO EM PERNAMBUCO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS


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O QUEIJO DE COALHO EM PERNAMBUCO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS


Introdução

IN TRO DU ÇÃO

Neste trabalho, tratamos da história que envolve o leite, buscando suas origens no mundo antigo. Destacamos a trajetória da pecuária, que após milênios de existência, fez-se presente nas terras que foram correntemente denominadas de Brasil¹, desde o período da colonização europeia, que predominantemente se realizou através dos domínios de portugueses, espanhóis e holandeses. O estudo da produção leiteira tornou-se possível com o aprofundamento sobre um dos seus derivados: o queijo - especificamente sobre uma de suas variedades conhecida como Queijo de Coalho - a partir de um diálogo com diferentes fontes históricas. Fomos em busca das memórias e lembranças, culturalmente construídas, de maneira a alcançar uma compreensão histórica do Queijo de Coalho na Região do Agreste do Estado de Pernambuco. A Região, que se constitui o cenário mais específico da pesquisa, permitiu um entendimento e fez emergir referências da história universal na perspectiva da construção de uma história que também evocou a memória local, a partir da demanda de criadores de gado leiteiro, contemporaneamente produtores de queijo, com o destaque para o Queijo de Coalho. Tal relevância se faz aos que nesse encadeamento trazem de forma coletiva e consigo a perspectiva de sustentabilidade familiar, na especificidade produtiva de queijo, de maneira que possam contribuir numa dinâmica com a efetivação de políticas públicas que contemplem o Nordeste do Brasil, em seu fortalecimento.

Inicialmente, a busca de interesse por essa área, despertou em seus autores diferentes motivações sobre esta região do Estado, polarizada na chamada Região de Garanhuns, ao serem também envolvidos pelas origens e vivências interioranas. Os autores com formação profissional em História, Arquivos e Tecnologias em Laticínios, integram instituições acadêmicas e tecnológicas do Estado de Pernambuco, com atuação na Universidade de Pernambuco - UPE, e no Instituto de Tecnologia de Pernambuco - ITEP, vinculados através de convênios com a Secretaria de Ciência e Tecnologia de Pernambuco - SETEC, de modo que se voltaram à história, buscando também aprimoramento técnico e enriquecimento interdisciplinar de diferentes aprendizagens que se constroem no espaço da pecuária e de seus derivados. A atividade pecuarista, secularmente presente nos sertões, ora tratada com ênfase ao conhecido Agreste, área de penetração do interior de Pernambuco, teve a existência de quadros naturais que foram ‘desbravados’ em roteiros com direções que se distanciavam do Litoral, na classificação de Hilton Sette² ao discutir a região que se constituiu o criadouro de gado para abastecer o consumo da carne das áreas mais desenvolvidas, como força para moer os engenhos e carregamento da cana-de-açúcar, e até mesmo para diversificar o uso do couro para manufaturas que se multiplicariam nesse âmbito do País. Por sua vez, Manoel Correia de Andrade (1961)³, argumenta sobre as áreas ocupadas nos tempos da colonização,

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quando nos meados do século XVII, na abrangência da sesmaria de Ororubá4, na então capitania de Pernambuco, já existiam solicitações de sesmeiros, em função de quem fosse tratar do gado, a fim de que as terras a serem doadas fossem situadas nas áreas serranas, providas de águas com solos férteis na perspectiva de precisarem de gêneros alimentícios e autoabastecimento. As áreas estudadas, do ponto de vista de diferentes pesquisadores, foram ocupadas com alianças, recuos, deslocamentos em várias direções e grandes perdas, muitas vezes com dizimações de indígenas ou de descendentes africanos aquilombados, quando da formação de novas povoações. Nessas áreas estão situados, na atualidade, os municípios de Garanhuns, Pesqueira, Pedra, São Bento do Una, Venturosa e Arcoverde, dentre tantos outros que contemporaneamente, nas bordas do Sertão e na Mesorregião do Agreste de Pernambuco, ocupam a denominada Bacia Leiteira do atual Estado. Neste sentido, afirmamos que as discussões teóricas de geógrafos e historiadores como Andrade (1961,1986)5, constituíram-se fontes basilares indispensáveis na trajetória deste trabalho e na compreensão de novas paisagens, de modo a subsidiar a análise final dessa produção, assim como se formou, em nosso entendimento, um aporte que foi articulado a outros estudiosos interessados pela temática. Na região de Garanhuns e seu entorno, “área de expansão palmarina”, na medida da destruição do grande Quilombo dos Palmares, no final do

século XVII, diz Andrade que foi dada margem para que diversas sesmarias fossem doadas em áreas que antes estiveram fora do domínio português. Foi ainda nessa área que foi empreendida uma luta contra os cariris revoltados, ante os pecuaristas em expansão, em nome de uma suposta guerra justa. Nessa área do Sertão tal contexto levou os índios à bancarrota e ao recolhimento nas serras e locais de brejos menos acessíveis e menos cobiçados pelos criadores de gado. Na pesquisa, trazemos a identificação da formação da Bacia Leiteira no Agreste e da expansão da criação de gado, com os criadores que na história chegam ao início do século XX, especificamente, já de maneira explícita com a qualidade do leite, do pasto, conforme registro da literatura em Garanhuns, cidade situada há aproximadamente 240 km da cidade do Recife, capital pernambucana6. Diante da nova proposição dos criadores, também ocorreram ações governamentais através do Estado, ainda nas primeiras décadas do século referido, com publicações durante o Governo do Dr. Manoel Antônio Pereira Borba, então Governador de Pernambuco, que destacavam os cuidados com o consumo do leite, da manteiga e do queijo, cujas ações alcançariam a então capital do Brasil, Rio de Janeiro, por ocasião da I Conferência Nacional da Pecuária (1917)7. Apesar das preocupações iniciadas no século passado, ainda persistem no campo vários problemas que também tem sido objeto de atuação da popu-


Introdução

lação, levantados por movimentos sociais, projetos públicos, organizações políticas, ações governamentais, não governamentais, instituições jurídicas, comissões interinstitucionais e cooperação internacional. Contemporaneamente, na Região, há muito a ser propiciado a sua população na perspectiva de qualidade de vida com a sustentabilidade, cuja população produtiva inclui a base familiar, assim como mantém a presença pecuarista com o leite, o queijo e outros derivados em sua alimentação. Por sua vez, essa base econômica tem se constituído uma memória que ultrapassa os anos e se faz voltar ao fazer, ao cuidar, ao degustar e ao lembrar, indo a repercussões que transpõem a comercialização no tempo, assim como o espaço inicial da produção do queijo, que traz reputação em Pernambuco. Nessa história, se inserem o campo, a rua, a casa, o fabrico caseiro, a feira, o comércio em outros ambientes com histórias e memórias que fluem na produção dessa análise histórica. No uso de memórias auditivas e visuais e fontes escritas, simultaneamente foram garimpados e inter-relacionados diferentes acessos aos livros, álbuns, periódicos, almanaques, dicionários, publicidades, receitas, dados estatísticos e mapas, numa diversidade de fontes que fizeram emergir novos resultados. Fomos ao diálogo com estudiosos da memória como Maurice Halbwachs (2004)8, sociólogo francês que, na década de 30 do século passado, admitia que existia as memórias individuais e memórias coletivas, de modo que ao

indivíduo passaria a caber a participação atuante nessa classificação ao se organizar em torno de uma pessoa ou mesmo de uma sociedade. Por sua vez, memória e história fazem emergir o passado. No entanto, faz-se necessária uma diferenciação nessas concepções. Quando o sociólogo diferenciou memória e história, passou-se a discutir se a memória coletiva ou social poderia ou não ser entendida como história. Em sua interpretação mais recente diz Márcia D’Aléssio que “a história começa quando a memória social acaba, e a memória social acaba quando não tem mais como suporte um grupo”9. Contudo, nesta ausência há como salvar lembranças, também fixadas por escrito, pois mesmo que os pensamentos passem ou as palavras se acabem entende-se ainda que os escritos constituem outra possibilidade de permanência de maneira que buscamos os registros possíveis no presente trabalho. Percebemos ainda que essa pesquisa existiria com mais dificuldade se não houvesse a viabilização do Projeto de Sustentatibilidade da Cadeia Agroalimentar do Leite de Base Familiar em Pernambuco, de 2005 à 2008, com fomentos do Ministério da Ciência e Tecnologia, através da Financiadora de Estudos e Projetos - FINEP; do projeto de Indicação Geográfica do Queijo de Coalho do Agreste de Pernambuco pelo Serviço Brasileiro de Apoio a Micro e Pequena Empresa - SEBRAE, de 2008 à 2011; além do projeto do Conclusão do dossiê de reconhecimento para a Indicação de Procedência do Queijo

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de Coalho do Agreste de Pernambuco, pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento - MAPA, de 2010 à 2013; e o apoio de outras instituições governamentais e não governamentais, que em suas dimensões estabeleceram a elaboração de novos conhecimentos. Optamos nesse espaço, inicialmente, em atender a demanda daqueles que entendem de “como fazer o queijo”, uma vez que lidam cotidianamente com o leite, tendo assim surgido a ideia da proposta de “um livro que trate da história do queijo, do leite, na região da Bacia Leiteira do Agreste.”¹ Esta demanda fez legitimar a pesquisa com histórias e memórias do Queijo de Coalho, na ‘arte de fazer’, na relação com estudos que envolvem modos de fazer o queijo, numa atuação da cultura e de novos empreendimentos de sustentação econômica. Pesquisar a cultura na alimentação, com esse importante derivado do leite, nos fez referenciar Michel de Certeau ao comentar que a alimentação não se apresenta ao homem in natura, quando comparada ao fruto que vem da árvore, de maneira que ao ser colhido, mesmo cru, pelo fato de ser comestível, já é culturalizado. Sendo o fazer pensado enquanto prática cultural, o Queijo de Coalho, com os seus odores, gostos e modos de preparo, se interaciona com as lembranças e memórias desse fazer, com quem se apreende na base familiar e a quem se ensina nesta mesma base. Na sustentação econômica, sobretudo na produção das queijarias artesanais, atualmente, no entendimento da maioria de pequenos pecuaristas,

produtores de queijo e comerciantes, vislumbra-se o aprimoramento de novas técnicas e processos de higienização, considerando as normas de saúde da população, na perspectiva de melhoria da qualidade de vida, que somente poderá ser bem mais garantida na efetivação de políticas públicas. Neste sentido, vincula-se também a comercialização do queijo, realizada no cotidiano populacional da Região, sem dispensar a necessidade do aprimoramento tecnológico através de resultados procedentes de estudos e experiências de professores, pesquisadores, técnicos, produtores e lacticínios, que permitam o desenvolvimento humano na sua sustentabilidade sem que possam cair no esquecimento a sua história e as suas memórias.


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Espaço ocupado pelo produtor de queijo de coalho em Pernambuco 1.1. A escuta, o fazer, o buscar Meu nome é Pedro Manoel dos Santos com nascimento no dia 22 de fevereiro de 1928, na Fazenda Redenção, Sítio Saco da serra de Capoeiras, como é conhecido. Sou filho de Sérgio Alexandre dos Santos. Aprendi a fazer queijo com o meu pai, que deve ter aprendido com o pai dele. Ele vendia o queijo, mas era pouco. E fazer naquela época era uma dificuldade. As coisas eram muito devagar e as condições eram muito poucas. Era perto de Capoeiras. Faz muitos anos. A fabricação era igual a de hoje. Mas o coalho era diferente, era de gado. Um pouco do soro e dali fazia o queijo. Mas tudo muito desorganizado. Hoje é mais organizado. Era feito nas mesmas formas que se faz hoje, de madeira. Quando queria forma redonda fazia de gravatá. Não esse que tem o nome hoje. Acho que se acabou. Nem planta se vê mais. Botava essas folhas largas, da largura de uma mão, cortava, emendava e costurava. Tinha uma casinha separada, fora de casa, para fazer o queijo. Os filhos faziam a mãe fazia também. Deve ter mais de sessenta anos que eu fazia isso. O queijo era alvinho, do jeito que é hoje. Se colocasse sal, ele amarelava. (Relato de Pedro Manoel dos Santos, entrevista em 18 de janeiro de 2006 em Capoeiras-PE).


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Vamos aqui relatar depoimentos que trazem experiências de pessoas produtoras de Queijo de Coalho, que remontam há mais de cem anos ao seu fazer, como também ao seu aprender. O município capoeirense, distante da cidade de Garanhuns aproximadamente trinta quilômetros, tem apresentado mudanças na atividade da pecuária, produção e comércio do queijo, na visão do depoente, que fala principalmente da organização, comparando com a situação de sua infância. Contudo, existe a permanência em sua oralidade. Pois ele fala do soro animal, muito utilizado na época, da forma que se preserva, ainda com a madeira. Lembra da alternativa do queijo redondo e do local de fabrico, externo a casa. Todos participavam daquela produção nitidamente familiar. E, ainda, trata da coloração do queijo e da influência do sal sobre as mudanças da sua cor. Eu sou José Belizário da Silva. Nasci em 10 de outubro de 1919. Como aprendi a fazer Queijo de Coalho? Os meus pais faziam em São Domingos – Buíque. Minha mãe era da Pedra, morreu com 115 anos. Para fazer o queijo, o leite era puro, puro. Queijo bom. Eu fazia queijo com as mãos, espremendo com as mãos. O coalho era de gado ou de bode. As formas eram de madeira: quina-quina ou cedro amarelo. Num tacho de barro, eu pasteurizava a coalhada. Para vender o queijo era em Arcoverde. Entregava nas bodegas e no mercado de farinha. Para isso,

eu fazia diariamente e ia juntando. Quando queria fazer forma redonda pegava folha de pau mole e arredondava. Se quisesse aumentar o leite, no Sertão, com o gado de leite no cercado, tínhamos que lhes dar farelo e caroço de algodão, pela manhã, após a ordenha. À tarde, já se usava a palma. Assim o leite aumentava. É bom... (Relato de José Belizario da Silva, entrevista em 08 de março de 2006 em Buique-PE). Por sua vez, no segundo relato, seu autor consegue, em poucas palavras, falar do leite utilizado, de sua qualidade e do complemento da ração diária. Trata do coalho natural, da forma de madeira e do seu estilo. Insere, em sua fala, o comércio no entorno de onde se produzia queijo, a variedade de locais de vendas. Relata que desenvolveu habilidades para trabalhar até mesmo as formas, para adquirir outras formas. Pode-se observar aqui como o produtor de queijo é múltiplo em suas habilidades. Procuramos a partir desses relatos iniciais, entender o quanto o ser humano tem buscado inventar, inovar, desde os primórdios de sua história em busca da alimentação, a partir de observações, ações, produções, com o exercício de sua criatividade, conseguindo grandes transformações, incluindo a alimentação na dinâmica de sua existência. Há de ser considerado que: O alimento se constitui uma categoria histórica, pois os padrões


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de permanência e mudanças dos hábitos e práticas alimentares tem referência na própria dinâmica social. Os alimentos não são somente alimentos. Alimentar-se é um ato nutricional. Comer é um ato social, pois constitui atitudes ligadas aos usos, costumes, protocolos, condutas e situações. Nenhum alimento que entra em nossas bocas é neutro à historicidade da sensibilidade gastronômica, que explica e é explicada pelas manifestações culturais e sociais como espelho de uma época e que marcaram uma época¹³ Neste sentido, entendemos que, por muito tempo, a história do queijo foi ignorada no âmbito da historiografia brasileira. Junto a esse produto, revela-se a cultura de quem o faz, de quem degusta, de quem comercializa e de quem organiza novas maneiras higiênicas de tratar o queijo. Daqueles que pri-

mam pela qualidade de vida de pessoas do Agreste de Pernambuco e de pessoas oriundas de outras terras que passaram a conhecer o Queijo de Coalho produzido nessa área do Estado. Nos tempos mais antigos, na identificada pré-história, registrou-se que os homens se alimentavam de frutos, raízes e vegetais. Com o domínio da técnica da caça, por volta de 15.000 a 6.000 a. C., eles também passaram a desenvolver a domesticação de animais, de mamíferos, do gado, de modo que Nascimento¹⁴ vem afirmar que houve pratica da pecuária nas proximidades de Nairóbi, atual capital do Quênia, na África, em torno de 15.000 anos antes de nosso tempo. Muitos séculos decorreram até a colonização dos europeus portugueses na colônia lusitânia criada na América. Nesse período, os portugueses trouxeram a pecuária ao Brasil e, com ela, toda a sua cultura, o gado, o leite e seus derivados.


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1.2. O leite e o queijo nas práticas culturais Existe uma polêmica, na história universal, sobre o local onde teria surgido a cultura da produção de queijo. Existem relatos com influências de visões míticas, bíblicas, gregas e asiáticas. Fala-se sobre a possibilidade do queijo ter nascido na África, possivelmente por essa região ser considerada como berço da Humanidade, uma vez que alguns dos seus povos do Norte, como os haussás, embora não utilizassem o queijo, estavam muito próximos dele, com o uso da coalhada¹⁵. Na mitologia grega, sua difusão incluía o filho de Apolo, Aristeu, que aprendera a coalhar o leite. Por sua vez, na Bíblia, encontra-se, no primeiro livro de Samuel, a menção de Davi presenteando um comandante com uma dezena de queijos, de forma que a são-bentense Ivete de Morais Cintra¹⁶, pôs-se a comentar que foi na Europa, com clima e pastagens adequadas, que houve a ampliação da produção de queijarias artesanais. À medida que se inicia a colonização portuguesa no Brasil, de maneira mais sistemática, a pecuária passa a envolver um grande número de pessoas na produção de queijos, manteigas e outros produtos. Produtos que se desenvolveriam na região, conhecida desde o século XIX, como o Nordeste do Brasil, levando em consideração as queijarias artesanais, especialmente em Pernambuco¹⁷, e bastante presentes na gastronomia local.

Por sua vez, na história do trabalho, apresenta-se a divisão de funções entre homens e mulheres. Diferentes historiadores destacam que a mulher, principalmente nas sociedades agrícolas antigas, exercia, desde muito cedo, as tarefas de plantar, colher, cuidar de animais, de hortas, além de outras atividades. No exercício dessas atividades, as mulheres passaram a aproveitar os excedentes de alimentação, sobretudo o leite, para o fabrico de outros alimentos, numa prática criativa exercida por múltiplas sociedades. Atualmente, no Agreste de Pernambuco, há o registro da presença de muitas mulheres, com vários filhos, que cuidam, ao mesmo tempo, da casa, das pequenas plantações, criam animais, como as “vacas de leite”, e produzem queijo. Elas ainda administram a comercialização dos produtos que não são consumidos por suas famílias.

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NA ROTA DO LEITE: Espaço ocupado pelo produtor de queijo de coalho em Pernambuco

No estudo da alimentação, com a conservação de produtos naturais, tratando das transformações para manter a vida, Certeau vem interpretar que: [...] da Antiguidade até o nosso século, todas as sociedades humanas viviam obsidiadas pela necessidade de proteger as substâncias, de estocar seguramente grãos e alimentos: reservas de grãos enterrados em covas profundas para protegê-los da fermentação, carnes defumadas ou salgadas; excedente de leite transformado em manteiga e em queijos; secagem de frutas e legumes, conservas em óleo, em água com vinagre ou álcool etc. Aqui a criatividade fez maravilhas: cada cultura com suas descobertas¹⁸. Por sua vez, autores como Câmara Cascudo¹⁹, Flandrin e Montanari²⁰ nos fazem entender também que os vários procedimentos de conservação dos alimentos, nas práticas culturais, já existiam desde tempos mais remotos, embora tenham surgido mais tarde outras práticas como a do salgamento e todo tipo de fermentação controlada, permitindo assim a obtenção de alimentos que se conservaram durante muito tempo. Temos neste quadro, por exemplo, a cerveja, o vinho, a sidra, o vinagre, os queijos, o chucrute e os pepinos. O domínio da técnica de conservação por parte dos primeiros homens propiciou uma maior durabilidade dos alimentos, o que, entre outras implicações, possivelmente contribuiu para o

sedentarismo de grupos sociais. Não obstante sejam ignorados os pormenores sobre a origem do queijo como alimento, a História confirma sua antiguidade. Admite-se que tenha sido inventado antes da manteiga, apreciado pelos assírios, caldeus, egípcios e, posteriormente, pelos gregos e romanos, que além de apreciarem o queijo fabricavam diversas variedades e conheciam as suas virtudes, pois utilizavam na alimentação de soldados e atletas. Uma trilha histórica e cultural que um dia alcançaria o Brasil²¹. Percebe-se que a utilização do queijo era muito comum na alimentação daqueles que, no exercício do seu trabalho, despendiam um grande gasto de energia. A elaboração desse alimento baseia-se em três descobertas fundamentais que permanecem na cultura humana: A primeira foi a obtenção do leite, há mais de 10.000 anos, que passou a ser utilizado pelo homem como um componente de sua alimentação desde que surgiu a ideia de ordenhar os animais para beber o líquido. Em segundo lugar a descoberta da influência do fogo e do calor. O leite coalhava e solidificava, escorria um líquido e a coalhada ficava mais consistente. Para acelerar este processo, mais tarde, colocava-se o leite coalhado numa cesta de vime ou outro recipiente provido de furos, para deixar escorrer o “soro”. E a terceira descoberta é o coalho, enzima digestiva que se extrai do estômago do animal.

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A partir do conhecimento e aperfeiçoamento destas técnicas de fabricação de queijo, o homem percebeu a importância do leite e seus derivados em sua alimentação, incorporando esses alimentos em sua cadeia alimentar. No mundo Antigo, no Egito, a alimentação era variada. Os utensílios e os alimentos daquela época têm sido encontrados em túmulos, como o de uma mulher da segunda dinastia (cerca de 3.700 a. C), de maneira que vêm revelar preferências alimentares e preparados culinários daquele período, como a existência do queijo. Revela-se a importância de saber que tipos de alimentos e condições de vida mantinham essas pessoas. Por outro lado, havia proibições alimentares nas sociedades como a hebraica, cujo registro vem indicar: Será, então, proscrito não somente todo prato que misture carne e leite, mas também, o consumo desses dois alimentos durante a mesma refeição: se esta inclui carne, deverá excluir todo laticínio, por exemplo, o queijo. Assim, alguns povos não faziam a mistura do queijo com a carne, uma vez que teriam de optar por um ou outro produto durante a refeição. Na Europa, os etruscos, um dos povos formadores de Roma, eram praticantes da caça e criadores de animais que lhes forneciam carne, lã, leite e seus derivados, como o queijo. Os romanos, também consumiam esse produto, uma vez que eram habituados a comer

alimentos ricos em proteínas de origem animal. O leite e o queijo, por um lado, e a carne e os peixes, por outro, constituíam-se como a alimentação mediterrânea. Na Europa, nas estruturas agrárias feudais, com maior representação na França, com a negociação do uso da terra, o senhor dono do solo recebia, em troca uma parte da colheita, determinado número de cabeças de gado, aves, presuntos, ovos e queijos, além de uma renda fixa em dinheiro. Ainda nos sistemas alimentares, no modelo real e nobiliárquico, o queijo era seguido da carne, do pão e do vinho, enquadrando-se entre os alimentos essenciais. Neste quadro, dá-se espaço destacado aos mosteiros medievais. Assim, nos regimes alimentares da vida do clero, o queijo, junto ao leite e ovos, era considerado uma importante iguaria, reservado às celebrações especiais. Presume-se que o queijo também era moeda de troca entre os senhores e os servos, por ser um alimento considerado rico em proteínas e de baixo custo financeiro. No entanto, cabia à mulher a função de cuidar dos alimentos, em geral tarefa desprezada pelos homens. Legenda da fotografia acima Legenda da fotografia acima Legenda da fotografia acima Legenda da fotografia acima


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Para a mulher que vivia no campo, as condições de vida e trabalho haviam variado excessivamente desde os tempos medievais. No interior da família de camponeses, o trabalho doméstico recaía de forma predominante sobre a mulher quando já nas primeiras horas da manhã ela encarregava-se de tarefas indispensáveis da casa: fazer o pão, ordenhar as vacas, preparar o queijo e a manteiga. Advindas as transformações humanas, os gostos alimentares também

foram se refinando e aprimorando, de modo que o queijo passou a ser um alimento de muita aceitação, deixando de ser fabricado e consumido apenas por famílias de agricultores, para ganhar as prateleiras dos comerciantes do gênero, a partir do momento em que, possivelmente, ganharam outros formatos, cores e sabores. Na França, dentre os mais variados tipos de queijos em formatos e sabores, alguns são identificados pela sua cor.

1.3. O gado na sertanização

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Com o povoamento inicial da Colônia Portuguesa, ficou evidente que a metrópole visava inicialmente o Litoral, embora já tivesse situado os marcos do interior com o rio São Francisco, dois séculos antes, com as expedições exploradoras. Todavia precisavam dominar melhor, explorar tal região quando os rebanhos já incomodavam as grandes plantações litorâneas. Nessa perspectiva, o interior, visto como área de mais difícil acesso, contendo as populações indígenas, foi se constituindo como um outro espaço histórico que se engendrava com as necessidades europeias, sobretudo portuguesas e hispânicas que realizavam longos domínios para o estabelecimento de seus espaços colonizatórios. Assim, buscaram o Sertão. A palavra sertão vem a ser do século XV, de origem portuguesa.

Contudo, a sua etimologia é pouco esclarecida. O padre João Azpilcueta já pronunciava que a conversão do gentio à fé católica seria vivenciada quando “for povoado este Sertão”. Isto é, o interior. Já o entendimento de sertões, de sertanejo, devem ser brasileirismos (DEL PRIORE, 2000) . Necessário seria, na ótica colonizadora, fortalecer o povoamento da costa, com seus engenhos e comércio próximos, depois se pensaria em alargar a ocupação de terras adentro. Possivelmente, seria elaborado um plano que fizesse com que os produtos ali gerados se tornassem de mais fácil acesso aos portos costeiros, uma vez que seriam exportados, ao mesmo tempo que se tornariam mais baratos. Motivados ainda por interesses mineradores, os colonizadores realizariam migrações para o Sertão, quando também surgi-

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ram as missões religiosas, edificações de capelas e criações de gado nesse contexto de expansão do povoamento. Apesar do padrão lusitano predominar no Sertão, esta parte interna sempre foi percebida e entendida como diferente do Litoral. Não somente pela amplitude da terra, mas também pelo jeito de ser do sertanejo. A palavra sertão, no tempo, deixou de significar apartado do Litoral, e passou a significar região inóspita e sem lei (O Sertão, sem dúvida, era vasto, era esvaziado, no entanto se fazia Brasil). O gado, seria este instrumento de interiorização no Brasil, capaz de produzir riquezas e uma cultura que mais

tarde geraria uma certa diferença do contexto social encontrado no Litoral. O gado foi introduzido a partir das capitanias hereditárias, no século XVI, vindo principalmente das ilhas portuguesas do Atlântico. Chegando, logo se espalhou, a partir de Salvador, fazendo surgir grandes criadores como os Dias d’Avila. Há inclusive, na citação de Gabriel Soares de Sousa (1587) [...] “que o gado procedia das ilhas de Cabo Verde para Pernambuco, multiplicando-se rapidamente os rebanhos bovinos” [.] O mesmo é observado em Capistrano de Abreu quando ele trata da conquista de Sergipe, na última década do século

XVI, relacionando a distribuição das sesmarias com a criação de gado. (In VIANNA, v. I, 1968). Observa-se que, paralelamente, partindo de Pernambuco, ao atravessar as serras de Borborema, Cariris e Ibiapaba, avançava outra série de fazendas de criação, chegando ao Piauí e ao Maranhão, “[...] havendo já ai uma clara divisão dos sertões de dentro: Bahia, e os sertões de fora, Pernambuco ”. A princípio, a criação do gado na colônia era apenas destinada aos trabalhos de tração animal nos engenhos de cana de açúcar, onde essa era a única serventia do animal. Como anteriormente mencionado, os senhores de

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engenho não tinham o hábito de consumir a carne de boi que era destinada para a alimentação dos seus escravos. Já no tempo inicial do primeiro Governador do Brasil, 1549, Tomé de Souza, conforme Regimento Geral (Darcy Ribeiro – A Fundação do Brasil), foram tomadas medidas preliminares quando da regularização das concessões das sesmarias, já existentes, disciplinando-as na forma regimental e distribuindo outras terras pelo recôncavo e interior, inclusive as primeiras vastidões de terras concedidas a seu “filho de criação”, Garcia D`Ávila. Ao mesmo tempo, ele se tornaria poderoso latifundiário, um dos mais prósperos criadores de gado do Brasil, com fazendas espalhadas na região, atualmente denominada Nordeste, sobressaindo as áreas agrestinas e sertanejas de Pernambuco. Por sua vez, a doação que fez ao seu filho Garcia D´Àvila constituíam quatorze léguas de terras outorgadas pelo rei D. Sebastião. Tal doação deu origem à Casa da Torre, o mais amplo latifúndio das Américas. Naquele momento, a Casa da Torre simbolizava, com sucesso, o empreendimento na criação do gado no Sertão, ao permitir um maior conhecimento das áreas do trajeto do gado. Neste entendimento, facilitava o transporte por parte dos vaqueiros e menos temor ao desconhecido. Gabriel Soares, nesse contexto, como senhor de engenho e escritor, via a criação de gado com um certo desdém, devido à prática dessa atividade ser realizada em terras não adaptáveis

ao plantio de cana. Contudo, a elite baiana aceitava bem o grande senhor d’Ávila. Tanto que, em 1587, o referido escritor já o reconhecia como um dos mais importantes e ricos moradores da cidade de Salvador. Del Priore chega a fazer referência a afirmação de um sacerdote que, hospedado, na época, naquelas terras, viu-se deslumbrado: Tem tanto gado que não lhe cabe o número, e só bravo e perdido sustentou as armadas Del-rei. Agasalhou o padre (visitador) em sua armada de guademecins com uma rica cama, deu-nos sempre de comer aves, perus, manjar branco, etc. Ele mesmo desbarretado servia a mesa e nos ajudava à missa em uma sua capela, a mais formosa que há no Brasil, feita de estuque e tintim de obra maravilhosa de molduras, laçarias e cornijas; é de abóboda sextavada com três portas e tem-na mui bem provida de ornamentos (DEL PRIORE, 2000, p.50). Na interpretação de Capistrano de Abreu, evidencia-se que, por mais cuidado que existisse com as boiadas, algumas reses escapavam. Outras ficavam incapazes de continuar a marcha. Esse fato beneficiava alguns moradores que estavam estabelecidos nos caminhos por onde passavam o gado e se tornavam compradores dos animais depreciados, que, em seguida, acabavam adquirindo melhores condições físicas e de saúde. Assim, o crescimento e extensão populacional possibilitava que pequenos

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sitiantes dispusessem de gado em seus currais. Na afirmação de Antonil-Andreoni, no início do século XVIII, entre a Bahia e Pernambuco, já existiam mais de 500 currais, comportando aproximadamente 1.300.000 cabeças de gado. Esse fator permitia a fixação de uma população diferente do Litoral, com uma cultura própria, que vai sendo diferenciada pouco a pouco, em tipos humanos, linguagens e modos de pensar. A ideia da transposição do gado de suas áreas de origem à Colônia é vista como um fator de ligação geográfica entre o Norte e o Sul, nessa área de ocupação portuguesa, identificada como um instrumento unificador, quando se justifica através do movimento dos bandeirantes e suas posteriores fixações em diversas regiões do Brasil (VIANNA,1968) Nessa visão historiográfica os mesmos são argumentados como ‘desbravadores dos sertões’, considerando os seus interesses em busca de ouro ou do aprisionamento de índios. Muitos foram os que chegaram a criação de fazendas nessas regiões, em que situamos a região de Garanhuns, como foi o caso de Domingos Jorge Velho, cujos parentes foram também aquinhoados de porções de terras pelos domínios exercidos contra os negros afugentados dos Palmares. A criação de gado na época é vista como um motivo econômico integrador do Sertão à formação do Brasil, possibilitando o aparecimento de diversos núcleos populacionais que conseguiram sua autonomia com base no crescimen-

to político-econômico alargando o que se consolidou como território brasileiro. Na interpretação de Vianna o povoamento do sertão não é somente uma simples etapa, mas uma das principais a proporcionar em seu desenvolvimento uma homogeneidade político-social e quase étnica, através do caboclo¹¹, e econômica - pela criação de gado. Aqui, se tem o Brasil interpretado numa abordagem positivista, que em si, apenas, não corresponde a uma compreensão mais crítica dos inúmeros problemas que surgiriam nas contradições do sistema colonial. A criação de gado não fica isolada ao Sertão, mas toma lastro por outras áreas do território nacional, especialmente através do rio São Francisco, indo para o Sudeste e Norte de Minas Gerais, chegando a ilha de Marajó no Pará e no extremo Sul do País, formando as primeiras estâncias. A criação de gado demonstrava uma grande facilidade de instalação, com grande importância econômica, sem ter, no entanto, as imensas despesas do Litoral como a casa grande e os imensos canaviais. Somando-se a isto o grande número de escravos e o fato da atividade não demandar mão de obra muito especializada, pois a criação necessitava de poucos cuidados à época. Não obstante, o que diz o citado historiador, não se deixou de gerar uma cultura dos sertões do Brasil, de Pernambuco, preservando as diferenças que continuam a existir no Brasil, com o seu imenso território. Podemos observar que a vida do habitante do Sertão, localizado em

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áreas de clima árido e de escassez das chuvas, teve historicamente o rótulo da seca, tratada em muitas obras da historiografia brasileira. No entanto, o Sertão também tem áreas diferenciadas em relação às águas, aos solos, aos usos da terra e as novas formas de vida. Várias são as regiões do mundo que também tem o fenômeno da seca. No entanto, em várias delas, a vida tem

sido produtiva sem essa marca da fome e ou da morte. Desse modo, também fica difícil interpretar que tudo que ocorria no Litoral era sinônimo de fartura, se consideramos que nessa área e nas suas proximidades os senhores de engenho não foram todos tão ricos, como já foi tratado. Existia também gente menos opulenta, cuja afirmação nos traz Del Priore.

1.4. O queijo de coalho vai à mesa de apreciadores Não obstante, nos sertões do Brasil vamos encontrar leite e carne em abundância. Em épocas de seca, alimentos simples do cotidiano do sertanejo, como a farinha, muitas vezes faltava. Chegava-se a acreditar que a falta de chuvas tornava impróprio o plantio da mandioca, haja vista a ausência de tecnologias, durante a colonização portuguesa, no trato da terra e as dificuldades no campo do trabalho, que se atribuía apenas aos escravizados. Ao contribuir com essa discussão, Gândavo, através da obra “Tratado da Terra e História do Brasil” de 1576, nos acrescenta: O mais gado que há nestas costas são bois e vacas, deste há muita abundância em todas as Capitanias, porque são as ervas muitas, e sempre a terra está coberta de verdura, ainda que em Porto Seguro

não se querem dar nenhumas vacas senão o primeiro ano, no qual engordam tanto que do muito viço dizem que morrem todas. p. 15. Nesse percurso da pesquisa, destacamos o fato de que, desde os primórdios da História, é possível ter uma indicação sobre a situação econômica de uma pessoa ao se observar os alimentos que ela consome. No Brasil, nos tempos da colônia, os alimentos consumidos já denotavam o poder aquisitivo dos seus senhores, bem como em outras regiões do mundo, cujas relações socioeconômicas foram semelhantes. Face ao quadro referenciado, a produção alimentar não era de tão boa qualidade, visto que aos senhores de engenho era costumeiro importar do Reino de Portugal alguns alimentos vistos como iguarias, como expressa Gilberto Freyre.

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É ainda do padre Anchieta a informação: Alguns ricos comem pão de farinha de trigo de Portugal, máxima em Portugal também lhes vem o vinho, azeite, vinagre, azeitona, queijo, conserva e outras cousas de comer. Era uma dieta, a da Bahia dos vice-Reis, com seus fidalgos e burgueses ricos vestidos sempre de seda de Gênova, e algodão da Holanda e da Inglaterra e até de tecidos de ouro importados de Paris e de Lyon: Era uma dieta, a deles, em que na falta de carne verde se abusava de peixe, variando-se apenas e regimen ichtyuophago(sic) com carnes salgadas e queijos do Reino, importados da Europa justamente com artigos de alimentação.

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Haja vista a situação na colônia, era comum perceber a precariedade alimentar existente na população menos favorecida economicamente. Os mais abastados, sempre que era possível, importavam seus alimentos e vestuários dos mais diversos países da Europa, como símbolos de riqueza e ostentação. Quanto aos demais, procuravam se alimentar do que a terra lhes oferecia com qualidade ou não. Presume-se que, para estes, o queijo era um artigo de luxo, assim como a carne ainda o é para alguns. Até porque, com a predominância do gado nos sertões, ficava difícil o acesso a determinados alimentos provenientes do gado, uma vez que esta criação na área litorânea era pequena, devido aos estragos que o gado causava aos plantadores de cana-de-açúcar. Por ser a cana-de-açúcar o principal produto da economia no Brasil da época, fazia-se necessário eliminar qualquer obstáculo que pudesse prejudicar o seu plantio, por isto a necessidade de levar o gado para bem distante do Litoral. Tal situação limitava uma alimentação de qualidade proveniente do gado, o que fica expresso nos relatos do padre Anchieta. A carne que se encontrava era magra, de gado vindo de longe, dos sertões, sem pastos que se fizessem da penosa viagem. Porque as grandes lavouras de açúcar ou tabaco não se deixavam manchar de pastos para bois descidos dos sertões e destinados ao corte. Entende-se, portanto, que eram poucas as vacas leiteiras nos engenhos coloniais, quase não se fabricando neles


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o queijo, nem a manteiga, concluindo, desta forma, que se ingeria a carne de boi, apenas uma vez ou outra. Capistrano de Abreu destaca: “Pela dificuldade de criar reses em lugares impróprios à sua propagação, dificuldades que reduziu este gado ao estritamente necessário ao serviço agrícola”. Com as dificuldades existentes na criação do gado e da vaca leiteira em áreas litorâneas, fez-se necessária a introdução dos mesmos nos espaços longínquos que interiorizavam as regiões desconhecidas, promovendo dessa maneira o desenvolvimento de uma vasta criação de gado, sem prejuízo para os grandes proprietários de cana-de-açúcar. Apesar das dificuldades, houve predominância do gado no interior da Capitania de Pernambuco, inclusive do gado leiteiro. Com a ação dos atravessadores, os queijos e outros derivados do leite passaram a chegar na região do Litoral pernambucano. Nesse período, os queijos, a manteiga e o requeijão deixaram de ser produção de fundo de quintal e consumo domiciliar para abastecer as prateleiras de pequenos comércios. No entanto, a aceitação do queijo era um pouco irrelevante, devido ao odor por ele exalado. Por apresentar um cheiro considerado desagradável, o Queijo de Coalho era pouco consumido nas refeições. Porém, com o aprimoramento de técnicas de produção e higienização, historicamente esse conceito foi entrando em desuso e o Queijo de Coalho, quando de boa qualidade, tem se tornado um alimento quase que indispensável à

mesa dos apreciadores de laticínios. Nas discussões movidas por Capistrano de Abreu, ele destaca a ‘época do couro’, quando faz referências a presença deste material em toda a vida do sertanejo. Do alforje à sela de montaria, da bainha à vestimenta, é o couro que vai caracterizar o sertanejo. Sua relevância será a econômica, diz o cearense, vindo mesmo a ser, a exportação do couro e da sola, uma importante fonte para o enriquecimento do interior . Vamos perceber que, a partir da necessidade da relação entre os currais e os mercados consumidores, foram abertas grandes estradas de penetração, embora fossem os passadores caminhos alternativos na caatinga para evitar florestas. Na abertura dessas estradas, buscava-se os rios, que também serviam como ponto de orientação, destacando como verdadeiros centros do couro as cidades de Recife e Salvador para mais tarde disseminar-se por cidades interioranas do agreste de Pernambuco. A influência da criação de gado será relevante a respeito das populações que rodeavam as fazendas, surgindo a farinha de mandioca como alimento básico, misturada à carne seca, no Nordeste. Também no Sul, com o tradicional churrasco, o gado chega a proporcionar uma grande mudança nos costumes alimentares. Na toponímia, demonstra-se o fato de que diversas fazendas, sobrados, currais e demais construções em tempos coloniais eram usadas como pontos de localização, que guiavam os vaqueiros pelos caminhos do Sertão ao Litoral. A contribuição do gado é observada

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na cultura, que seja no vocabulário, típico de regiões distantes dos grandes centros, com bastante autonomia em suas expressões, como também em expressões artísticas como a do bumba meu boi e na musicalidade do aboiador sertanejo. Ao tratarmos dos sertões, encontramos, nas fontes regionais, documentos de Pernambuco com destaque para o fato de que a atividade pecuarista que se desenvolvia, não somente nos vales do Moxotó e do Pajeú como também em todo Médio São Francisco, provocou a abertura de caminhos entre o Sertão produtor e os centros consumi-

dores como Olinda e Salvador, localizados em plena costa. Para abastecerem o mercado consumidor de Olinda e adjacências, os produtores buscavam caminhos que pudessem oferecer condições de tráfego às boiadas além do que permitissem a recuperação do peso perdido nas longas caminhadas e água tão necessária. Partindo desse princípio, entende-se que, em primeira instância, os vales dos rios do Sertão desaguavam no Litoral. Com isso, viabilizaram-se os caminhos do Capibaribe e do Ipojuca. Nas nascentes deste último, limitando-se a Oeste com o vale do Moxotó, iniciou-se a atividade pecuarista, como de resto, em todo Sertão pernambucano. A interpretação de Alencastro observa que no início dos Setecentos, Antonil e Rocha Pitta se admiram do tamanho do território rasgado pelos cascos dos bois. Este último fala da “circunferência dilatadíssima” assim povoada, enquanto Antonil, sabendo que seus leitores estavam habituados aos parcos rebanhos europeus, conclui prudentemente, depois de descrever a dimensão das boiadas baianas, “dizendo-o: temo que não pareça crível”. Como se percebe, o caminho traçado pelo gado causa muito espanto para os estudiosos da época que não estavam habituados com as modificações provocadas pela criação desse animal, uma vez que não tinham conhecimento de tamanha transformação e as implicações que esse trajeto provocaria. O território descoberto e inexplorado permitiu o surgimento e desenvolvimento de novos povoados, feiras,


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vilas e cidades que se estabilizaram no entorno da criação do gado, quando da sua expulsão do Litoral para o interior, devido aos grandes transtornos que os mesmos causavam aos senhores de engenho. Por sua vez no inviolável direito à fuga, os índios cativos dos paulistas se igualavam aos cristãos europeus capturados pelos piratas muçulmanos de Argel. Enquanto isso, os quilombolas eram condenados à perseguição, ao cativeiro e à morte. Tal era o preço da conservação do escravismo luso-brasileiro que, por mais de três séculos, foi mantido no Brasil. Essa contradição entre as duas posturas se constitui de maneira aparente: a escravidão dos negros apresentava-se como a condição necessária para garantir a liberdade dos índios. Inicialmente a colonização utiliza os índios como mão de obra escrava, uma vez que eles não garantiam o contingente necessário para o desbra-

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vamento das novas terras. Entretanto, os índios não estavam habituados à execução do trabalho forçado e ofereceram resistências aos colonizadores que imaginavam ser a solução para o problema a dizimação de todos aqueles que não se submetiam a esse tipo de trabalho. Contudo, a escravidão indígena não cessaria, apesar do argumento ideologizado. Os indígenas, em algumas áreas do território brasileiro, foram responsáveis pelo desenvolvimento de atividades ligadas à economia de ordem mais pragmática. Esses primeiros habitantes, de forma bastante especial, foram os responsáveis pela coleta das drogas do sertão, utilizadas para fins medicinais. Nesta compreensão, Gabriel Soares de Souza comentava que esses indígenas faziam curas muito notáveis como algumas póstemas e doenças como bexigas utilizando pastas à base de sumo de ervas.

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