Pampulha - sábado, 18.2.2017

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pampulha jornalpampulha.com.br BELO HORIZONTE 18 a 24 de fevereiro de

reportagem

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CARNAVAL>Blocos afro de BH chamam a atenção para apagamento na folia e exaltam heranças ISMAEL DOS ANJOS/DIVULGAÇÃO

Bárbara Era umdia coFrança mooutroqualquer, quando Camilo Gan vestiusuaroupa, pegou seu instrumento e saiu para ensaiar. Músico profissional, ele já estava acostumado a andar para cima e para baixo com o tambor,que,à época,usava para tocar na percussão de um grupo de samba de roda. Esperando o ônibus, voltou a ouvir comentários que, embora até já fossem recorrentes, ele sempre relutou a se acostumar. “Estava de branco, que era a cor que a gente usava para se apresentar, segurando meu tambor, e os passantes ficavam: ‘Lá vai ele fazer magia negra, lá vai fazer macumba’”. E não ficou só ali. “No ônibus, também estava todo mundo me olhando atravessado”. Pouco depois, o termo “magia negra” voltou a aparecer na vida de Camilo. Mas, dessa vez, em sonho, quando a expressão surgiu bordada num estandarte segurado por um homem negro alto e com muita gente ao redor, tocando tambores e dançando. A imagem foi o motepara transformaraquela situação um tanto desagradável do passado em algo festivo. Virou bloco de Carnaval. “Queria afirmar que a cultura negra, com seus batuques, vestes, cabelo,também é linda.Nosso lema é o combate ao feitiço racista”, conta. À parte a passagemonírica, a história da fundação do “Magia Negra”, no entanto, é familiar a vários blocos afro da cidade. Preconceito, intolerância e racismo estão presentes nos relatos de instrumentistas, cantores e bailarinos também de grupos como Afoxé Bandarerê, Angola Janga, Fala Tambor, Samba daMeia-Noite, Dreadlocko, Bloco do Zé Pretinho e outros que resolveram aproveitar o fortalecimento da folia na capital nos últimos cinco anos para transformar a realidade em que estão inseridos. A luta por respeito e reconhecimento já começou a render frutos e, pela primeira vez, a abertura oficial do Carnaval em BH será marcado por um grande encontro

O nome do bloco Angola Janga é inspirado na maneira como os quilombolas chamavam o Quilombo dos Palmares

As magias da cultura negra de Blocos Afro. O “Kandandu”, como foi apelidado, significa “abraço” na língua africana Kimbundu e acontecerá na sexta-feira(24)naPraçadaEstação (leia mais na página 4). Levantando a bandeira da igualdade racial e da luta contra a homofobia, a ideia é chamar a atenção para aqueles queajudam ativamentea fazer o Carnaval, mas são apagados por inúmeras desigualdades. “Noperíodocolonial,nafase em que hoje é celebrado o Carnaval, aconteciam os entrudos, tanto nas residências daelite,quanto narua,aírealizados majoritariamente com JULIA LANARI/DIVULGAÇÃO

O Afoxé Bandarerê é apadrinhado por Oxum e Ogum

osbatuqueseasdanças depessoas negras. Esses ajuntamentos populares foram reprimidos, sobretudo, pelo medo de queabalassem oque eraconsiderado ‘ordem pública’. Não há como falar em Carnaval de rua sem mencionar a resistência do povo negro nesse contexto”, comenta Maylla Pita, produtora cultural e pesquisadora em Cultura e Sociedade pela UFBA. Por isso, segundo ela, Carnaval também é momento para discutir política, identidade e marginalidade. Marcio Tata Kamus'ende, assessor de eventos da Belotur, concorda. “Na hora da di-

versão, o negro, que ajudou a consolidar a festa, está vendendo cerveja, trabalhando como segurança das festas grandes, catando latinha… Protagonismo na festa mesmo,agentenuncateve”,apontaele, quetambém épresidente do Afoxé Bandarerê. UNIÃO Relacionado ao candomblé, o Afoxé Bandarerê surgiu da despretensiosa vontade de fazer algo no feriado de 8 de dezembro de 2013, quando um amigo baiano de Márcio sugeriu que eles criassem um afoxé, bloco litúrgico cultural RAMÓN CÉSAR SILVA/DIVULGAÇAO

O Samba da Meia Noite leva as sambadeiras para a rua

que desfila em datas festivas e religiosas. “Éramos umas 14 pessoas e saímos com o intuito apenas de dar uma volta no quarteirão. No Carnaval do ano seguinte, já somávamos 2.000”, conta ele, lembrando que há uma parcela da população ávida por manifestações ligadas à cultura afro-brasileira e por representatividade, mas que, pela pouca visibilidade, não sabe nem onde encontrá-las. Participando do Kandandu, o Afoxé Bandarerê, cujo nome é uma junção de palavras em Ketu e Angola, significando “Pedaço Bom”, espera

ajudar a desestigmatizar o preconceito com as religiões de matrizes africanas que ainda impera por aqui. “Todo mundo está feliz na rua falando que Carnaval é diversidade, mas quando chega alguém que não se encaixa, com um colar de Candomblé e um atabaque, por exemplo, é chamado de macumbeiro. Esperamos que, em meio à alegria que impera no feriado, as pessoas estejam abertas a conhecer o diferente e ouvir alguma mensagem de respeito”, destaca Márcio, comentando que já existe a proposta de criação de um “Circuito Negro” para o Carnaval de BH, aos moldes do que existe na Bahia, com a reunião de todos os blocos afro. O Kandandu é o pontapé inicial. A Abafro – Associação dosBlocos AfrodeMinas Gerais, também é uma atitude nesse sentido. Criada durante o Carnaval do ano passado, a intenção, segundo a presidente, Nayara Garófalo, co-fundadora do bloco AngolaJanga, aolado de Lucas Nascimento, é lutar para que a reparação das desigualdades raciais seja cumprida inclusive no âmbito da folia. “Em oficinas de blocos de rua, por exemplo, o pessoal ensina a tocar surdo, xiquerê, ensina o ritmo ijexá (muito usado no candomblé), mas ninguém ensina de onde vem. Fala-se em ‘ressurgimento’ do Carnaval de BH, mas o Carnaval de rua, periférico, nunca deixou de existir”, critica Nayara (leia mais na página 4). ALÉM DE MOMO Além dos cortejos, muitos dos blocos afros de BH são também projetos sociais que realizam oficinas, dão aulas e fazem intervenções em todo o resto do ano. O Angola Janga, por exemplo, oferece oficinas de musicalização e tem um trabalho de empoderamento negro na periferia e com crianças nas escolas. O bloco Fala Tambor disponibiliza oficinas de tambor e demais instrumentos e o Magia Negra,ainda, ensina a fazer máscaras e oferece discussões sobre cosmovisão africana e outros temas. NEREU JR./DIVULGAÇÃO

O som do Magia Negra vai de samba até jazz, funk e soul


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