Calhou no sapatinho de Bruno Aleixo um novo filme, com mais animação: "Quisemos mostrar um lado dele mais frágil, que raramente se vê"
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Dois anos depois, a personagem ganha um novo filme. Um conto de Natal de dickensiano à portuguesa, com muito mais animação e uma revelação inesperada. Conversámos com o co-autor Pedro Santo.
Por estes dias não há que enganar: “Sozinho em Casa”, “Música no Coração” ou “Assalto ao Arranha-Céus” figuram entre as escolhas habituais no campeonato dos filmes natalícios. Mas este ano, a dupla João Moreira e Pedro Santo mais uma trupe de animadores, ilustradores e editores, de braço dado com a produtora O Som e a Fúria, decidiram que estava na altura de tentar dar início a mais uma tradição: um filme de Natal do Bruno Aleixo, que se estreia esta quinta-feira em Portugal.
À maneira de Charles Dickens, dos seus contos e do seu malvado Ebenezer Scrooge, Bruno Aleixo também não vai muito à bola com o Natal. Foi por isso a oportunidade certa para os autores tentarem explicar porque é que esta personagem criada em 2007, que teve o seu primeiro filme há dois anos e que continua na rádio — e continua a ganhar fãs no Brasil — não gosta assim tanto desta época. Desta vez, Aleixo tem um aparente acidente de carro com o seu amigo Bussaco e fica em coma. Mas não é físico, suspeitam os médicos e os amigos, é psicológico. Sem recurso a fantasmas, os autores preferiram fazer uma viagem onírica pelos vários natais que Aleixo teve ao longo de uma já longa vida. Sim, sim, este cruzamento entre ewok e canídeo rezingão está quase a bater na idade da reforma (o que não quer dizer que esteja longe de arrumar as botas, porque ainda falta uma estátua). Portanto, já passou por muito.
Ora por natais em casa dos sogros — sim, sim, Aleixo teve uma mulher, a Cristina — ora em casa da vovó no Brasil. Ou mesmo em casa dos seus pais, num novo regresso à infância desta personagem, quando descobriu que um primo fumava e, por isso, decidiu extorquir-lhe o dinheiro porque não quer nada receber livros e roupa. Um filme feito em pandemia, tudo à distância, em conjunto também com a Cola Animation que, ao contrário do primeiro, vive e sobrevive através de vários tipos de animação. E se João Moreira e Pedro Santo tinham sido sido realizadores da primeira longa metragem — como são, de resto, de todos os seus projetos — com atores de carne e osso, onde se deu primazia à exploração de géneros através do universo Aleixo, desta vez a intenção foi mostrar um lado mais frágil da personagem. Porque Bruno não é nenhum Scrooge.
“Já tínhamos visto um Aleixo pequeno, na escola, mas aqui deu para explorar um universo maior com uma família. Deu para explorar outros traumas, associados ao Natal ou não. Depois, no livro do Dickens, existe uma redenção porque o Scrooge passa a ser uma pessoa boa. O Aleixo, como não é assim tão mau, não precisa assim tanto de uma redenção. Mas ela existe, mesmo que seja pequena. Mais importante para nós era mostrálo em momentos de maior fragilidade, que é algo que raramente se vê”, conta Pedro Santo em conversa com o Observador. Terá sido “infetado” pelo espírito do Natal? Vamos descobrir.
[o trailer de “O Natal do Bruno Aleixo”:]
Há dois anos conversámos sobre o facto de Bruno Aleixo não ter chegado ao mainstream. E agora, já estão nesse patamar?

Será mainstream na temática e no arquétipo que é a história do Dickens, do conto de Natal e dos fantasmas. Já foi tão usado que é mainstream, mas o Aleixo em si, e não é que odeie ter público global, não vai nesse sentido. Nunca foi, mesmo tendo dois filmes em salas de cinema grandes. O mainstream ainda não pegou o Aleixo.
Com a primeira longa metragem, sentiram o impacto de levar esta personagem para a grande tela, agora já com dois anos de distância? Alguma coisa mudou?
Muda sempre, agora fazer essa introspeção é que é mais difícil. Não sei se a consigo fazer. Mais público teremos ganho, muito mais não sei. A impressão que tenho é que quando se experimentam novas manifestações do Bruno Aleixo, isso mexe sempre com a narrativa geral do universo que está criado. Em quê concretamente, isso não sei se consigo dizer. Há questões técnicas: apesar da nossa animação continuar a ser muito básica, campo contra campo, imagens quase paradas, foram melhoradas para estar no grande ecrã. E narrativamente também, porque entram diretamente para o cânone do nosso universo. Por exemplo [ALERTA SPOILER], neste filme descobre-se finalmente que esta personagem foi casada. É um passo importante, porque sempre abafou o tema, é um gajo omisso a esse nível como muitos outros homens e pessoas em geral. Há uma série de coisas que vão aparecendo.
"Este segundo filme foi feito durante a pandemia, mas há vários co-realizadores. Todos os natais que aparecem tiveram um realizador diferente e outro animador e ilustrador. Com os nossos guiões, eles é que criaram as dinâmicas que se veem no filme."
Vamos entrar então neste take dois do Bruno Aleixo. Mesmo partindo para uma narrativa mais tradicional, onde exploram aspetos mais íntimos da vida da personagem e as várias razões de não gostar desta época, sentiram que a escrita estava sempre salvaguardada?

O ponto essencial é a personalidade dele ser assim, seja em que universo for. A que foi desenvolvida a partir de 2007 é uma condição sine qua non. Não é mutável, apesar da opinião dele ter mudado. Ainda que tenha 60 e poucos anos e, por isso, a personalidade já não mude tanto. Neste caso, sendo cinema, e bastante diferente do primeiro filme, a imutabilidade está nos bonecos, aquilo tem de ser coerente. De repente, o Aleixo não ia ficar uma pessoa diferente. Lá por termos animação diferente, não o poderíamos fazer mais histriónico. Tinha de ser comedido, apesar de termos permitido que exista mais ação dentro do plano e não tanto em off, por exemplo.
Pergunto isto porque sempre me pareceu que o Pedro e o João Moreira colocavam a escrita em primeiro lugar. Temos o silêncio entre piadas, o desconforto, o constrangimento… Sim, sim. Primeiro, isto é sempre assente em diálogo. As histórias recambolescas são contadas. O ideal é mostrar e não contar, mas vamos contra isso. Depois, há a vantagem de controlar todo o processo, mesmo com empreitadas maiores como um filme, que pode fugir-nos mais do nosso controlo, porque pode haver algo que não possamos haver por questões orçamentais. Mesmo a montagem, os diálogos ou a sua interpretação quando são os nossos bonecos, nós controlamos tudo. É mais fácil do que para alguém que escreva para um realizador ou um editor, ou mesmo para atores que vão representar aquilo pela primeira vez. Mesmo para esses, que vão estrear este processo, nós é que fazemos essa direção de atores. Ainda que seja com o tempo apertado. Mas sim, o que está no guião é o que aparece.
Vocês surgem outra vez como realizadores. O que é que aprenderam desde a primeira experiência? Há aqui uma grande diferença: neste filme temos muito mais animação e menos personagens reais, no sentido físico. No outro tivemos cinema puro e duro, à devida escala. Com rodagem, uma equipa, as luzes, a montagem. Tudo. Já este foi feito em pandemia. Só um à parte: eu e o João somos os realizadores dos nossos próprios projetos. Não porque somos especialmente dotados, ainda, mas porque somos os melhores para os fazer. Retomando: este segundo filme foi feito durante a pandemia, mas há vários co-realizadores. Todos os natais que aparecem tiveram um realizador diferente e outro animador e ilustrador. Com os nossos guiões, eles é que criaram as dinâmicas que se veem no filme. Claro que fizemos um storyboard, mas há uma co-realização. A primeira experiência envolveu um projeto pequeno, isto para a escala do custo habitual um filme. Este foi todo feito em casa. Não sei explicar bem o que teremos aprendido. Talvez sobre o universo do Bruno Aleixo, com outro traço. As nossas técnicas de realização são as que são. Não houve espaço para muito mais.
Porque é que vos fez sentido explorar mais técnicas de animação?
A ideia de termos animadores a sério, bem como ilustradores e editores, já nos tinha surgido de tempos a tempos. Ainda na ressaca do outro filme, os produtores da Som e a Fúria falaram-nos da possibilidade de fazer um segundo. Depois, surgiu a ideia de fazer algo sobre o Natal, e fica mais fácil quando se baliza logo o tema. Até posso dizer que estavam a pensar lançar o filme no Natal de 2020. Hoje, pensando nisso, teria sido completamente absurdo. Em termos de tempo, não daria para o ter feito; depois, em termos práticos, estava tudo fechado, não havia salas de cinema abertas. Penso que terá sido o Luís Urbano a lançar a ideia e nós alinhámos. Aquele arquétipo do Dickens e dos fantasmas para haver uma redenção de um homem que é mau, também nos surgiu logo porque justificava a questão dos sonhos. Em vez dos fantasmas, tínhamos sonhos. Assim justificava-se o tipo diferente de animação. Essa questão onírica, para nós, era boa para esta justificação. O Aleixo no presente, que gostamos de achar que é real, existe na sua forma normal de sempre. O que vemos são sonhos, mas que terão ocorrido na forma normal que o Aleixo tem.
"Na verdade, ele não odeia assim tanto esta época. Claro que o Aleixo fica mais rezingão nesta altura, há mais trânsito, mais confusão. Odeia algumas coisas associadas ao Natal, mas mais do que isso não."
Vemos também, de certa forma, um boneco mais humanizado, mas que não o descaracteriza daquela sua rezinguice habitual. Não acharam que estavam a revelar mais do que queriam sobre o seu passado? Não tivemos esse medo porque temos o cuidado que o universo seja coerente, a nível factual, do Aleixo ter este tio ou primo. O próprio Aleixo não se ia esquecer disso, se houvesse um passo em falso seria mau. Temos muito cuidado com a sua biografia. Depois há questões canónicas, [ALERTA SPOILER] como ele ser casado com a Cristina, ter um cunhado, etc. Se aconteceu mesmo assim, não sabemos. É uma memória mais distante e estava num sonho. Será que aconteceu mesmo assim? Não sei. E claro, ajuda a humanizálo. Ele ser de Coimbra e não ser de um sítio inventado. O Busto ser de Condeixa e não ser
de um sítio inventado. As personagens falarem como se fala naqueles sítios. Ajuda, claro. Justifica-se assim uma certa misoginia ingénua que ele tem. Já tínhamos visto um Aleixo pequeno, na escola, mas aqui deu para explorar um universo maior com uma família. Deu para explorar outros traumas, associados ao Natal ou não. As figuras são estranhas, mas sempre tentámos que o resto não fosse nada estranho, mesmo com coisas muito absurdas. Sem que ficasse cartoonesco, porque para isso já temos as figuras.
Foi difícil não pessoalizar este tema do Natal? Qualquer um de nós tem um tio que bebe um copo a mais, uma prima influencer, um avô desbocado. Ou seja, trazer histórias vossas para incluir no universo natalício do Aleixo. Volto à coerência. Era preciso que a narrativa fosse também coerente com cada época que estávamos a retratar. Agora há muito aquela coisa, talvez desde há alguns anos, de reunir familiares e de haver bate bocas à mesa, com ideias diferentes. Um pequeno Big Brother.
O ativista, o tio fundamentalista… …exatamente. Agora há muito isso, mas não devia acontecer muito nos anos 60, 70 ou 80. Não fazia sentido levar isso para o filme. Os choques de frente que existem tinham de ser de outra estirpe. Isto para dizer que não, não foi complicado. Há pequenos apontamentos biográficos, como a casa, o espaço cénico. Podia ser de uma tia ou de uma avó do Aleixo. Ou coisas mais pequenas, com um Aleixo garoto, onde já não se sabe que prenda é que se dá às crianças, brinquedos ou roupa ou livros. O garoto fica em terra de ninguém, porque não é jovem adolescente, ainda não está preparado para não receber brinquedos. E isso acontece no primeiro Natal, em que ele não percebe porque é que, de repente, passa a receber só livros e dinheiro. Já o primo mais velho valoriza muito. Existe essa identificação, porque é muito parecido para toda a gente. Mesmo partindo do pressuposto geral daquilo que é o Natal.
Lá para o final, assistimos a uma certa redenção. O Bruno Aleixo não queria nada aquele cenário em que fica sozinho. Gosta, então, do Natal?

Na verdade, ele não odeia assim tanto esta época. Foi uma ideia lançada pelo Bussaco, porque acabou de ter um desastre e está danado com ele. Todos os anos, perto do Natal, ele tenta estragar as festividades a toda a gente. Mas isso é o que diz o Bussaco. Claro que o Aleixo fica mais rezingão nesta altura, há mais trânsito, mais confusão. Odeia algumas coisas associadas ao Natal, mas mais do que isso não. Depois, no livro do Dickens existe uma redenção porque o Scrooge passa a ser uma pessoa boa. O Aleixo, como não é assim tão mau, não precisa assim tanto de uma redenção. Mas ela existe, mesmo que seja

pequena. O mais importante para nós era mostrá-lo em momentos de maior fragilidade, que é algo que raramente se vê. Porque tem sempre um ascendente quase total, ganha as teimas todas. Aqui não, vemo-lo com uma maior fragilidade emocional e até física. Aquela desconfiança e rezinguice dele não veio do nada. Mais um spoiler: há um Natal em que ele vê os amigos a fazerem piadas sobre ele, que é o seu grande medo. E depois, no fim, quando acorda e lhes liga, vê-se que está muito mais amigável. Chega a telefonar para o psicólogo. Essa redenção pequenina existe, porque a malvadez do Aleixo não é tão marcada como a do Scrooge original.
Esta redenção é o limite para que a comédia não seja substituída pelo drama. Até para outros projetos à volta desta personagem. Não pensámos muito nisso, sobre a existência de algum limite, se podíamos ou não meter um pé no drama ou haver cenas de tensão dramáticas. Mas há sempre o alívio cómico. E quando me refiro a isso não são gargalhadas, são as situações onde há desconstrução e acaba por haver mais piada. Nem que seja com um bocadinho de desconforto. Claro que o Aleixo não será uma personagem para ter um drama puro e duro. A sua personalidade terá sempre de suplantar o estilo. Se fizermos um filme de terror, a personalidade suplanta o género, tal como aconteceu na primeira longa metragem. Aqui foi igual. O género era o conto de Natal do Dickens, mas o Aleixo leva o ascendente.
"Há dias, o Raphinha Barros partilhou conteúdos nossos, na Porta dos Fundos falaram de nós. O Aleixo continua a ser feito com uma estrutura minúscula, a nós vai continuar a fascinar-nos sempre. Deixa-nos sem chão, nada disto foi pensado para chegar ao Brasil. Nunca adaptámos, o país apenas ficou interessado, aconteceu."
O filme estreou no Brasil, na Mostra de São Paulo. O público brasileiro continua a seguir-vos? Já conseguiram perceber porquê? Nunca encontrámos a razão e continua a fascinar-nos. A escala é pequena, mas o Brasil é gigante. E depois há o simples facto de haver uma escala, são muito adeptos. Lançámos um vinho e ficaram entusiasmados. Já recebemos convites de Natal. Há dias, o Raphinha Barros partilhou conteúdos nossos, na Porta dos Fundos falaram de nós. O Aleixo continua a ser feito com uma estrutura minúscula, a nós vai continuar a fascinar-nos sempre. Deixa-nos sem chão, nada disto foi pensado para chegar ao Brasil. Nunca adaptámos, o país apenas ficou interessado, aconteceu.
Há esperança de que conseguiam bons números em Portugal? As salas de cinema continuam a ressentir-se da pandemia… Não vale a pena pensar muito, não sei bem como anda essa dinâmica. Tenho voltado muito pouco ao cinema, agora já se normalizou ver filmes em casa. Até o Scorsese faz filmes para se ver em casa. Se me perguntassem antes, se se vai ao cinema no dia 24, 25 ou 26, diria que não sei, mas parece que há mercado para isso. Pode correr bem, não tenho grandes expectativas. Depende da primeira semana. Agora temos o “Avatar” contra nós, esperamos que esgote e que as pessoas escolham o Aleixo. Temos de apanhar esse mercado.
Sendo um cinéfilo, o Pedro detesta filmes de Natal?
Não gosto muito, não. Sobretudo as séries, costumam ser bastante fracas. Mesmo os filmes, têm dois arquétipos agora: ou têm o cântico, do Dickens, o Grinch, é a mesma onda ou outro da pessoa que vai à terra e entretanto apaixona-se por alguém. É muito televisivo. Temos também os clássicos, como o “Die Hard” ou o “Sozinho em Casa”. Gosto do primeiro, mas começo a gostar de outros que se estreiam nesta altura e não são de Natal. Confesso que não é uma temática que siga muito. Até o karaté deu filmes melhores.
▲ "Ao contrário do que as pessoas pensam, ele tem família na Bairrada. O leitão é mais no Ano Novo. Não se come à balda. No natal é o bacalhau. Ele não é esquisito. Mas é lactointolerante"
E da época em si?
Gosto, gosto. Quando crescemos, ficamos mais tristes, já não somos garotos. Mas os meus natais sempre foram ótimos. Começam a aparecer os sobrinhos, mas ficam grandes, depois há pessoas que já morreram. É a lei da vida. A magia para o português é estar à mesa, desde que não se entre em conflito.

O Aleixo tem algum prato de que goste?
Ao contrário do que as pessoas pensam, ele tem família na Bairrada. O leitão é mais no Ano Novo. Não se come à balda. No natal é o bacalhau. Ele não é esquisito. Mas é lactointolerante, algo que descobriu entretanto.
Da última vez que falámos, disseram que queriam fazer jogos de tabuleiro, ter uma estátua ou uma Casa Museu. Foram tudo hipóteses lançadas para o ar ou vão concretizar-se?
Um bocadinho para o ar, sim. O jogo de tabuleiro já foi falado entre amigos durante um almoço. O mercado das meias do Mister Simba continua. Lançámos um vinho da Bairrada por acaso. Também já pensámos num jogo de telemóvel, até avançou, mas ficou em banho-maria. A Casa Museu tem de partir da autarquia de Coimbra. Quanto à estátua, gostávamos. Se um dia Coimbra fizer uma estátua, vai ser bonito, mas o Aleixo ainda não fez por merecê-lo.
Aí estava tudo feito.
É. Como o Sylvester Stallone em Filadélfia.
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