‘Um Animal Amarelo’ confronta os fantasmas da herança colonial [PT]

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‘Um Animal Amarelo’ confronta os fantasmas da herança colonial mixvale.com.br/2021/08/25/um-animal-amarelo-confronta-os-fantasmas-da-heranca-colonial FOLHAPRESS

25 de agosto de 2021

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Entramos em “Um Animal Amarelo”, de Felipe Bragança, pelas beiradas de Moçambique. Na praia, sob um céu azul desbotado, vemos navios encalhados e homens e mulheres negros em trânsito. Essa paisagem sugere origem e destino. No Brasil, o cineasta Fernando (Higor Campagnaro) tenta emplacar o roteiro de um filme radicalmente autoral, que bebe da história de seu avô Sebastião (Herson Capri), desgarrado da família em busca de riqueza no garimpo. O ancestral amarrava à cintura um fêmur, símbolo das memórias tenebrosas da escravidão e de sua história familiar. A pretensão de filmar a dor do passado responde ao horror da vida brasileira. Em colapso financeiro, o cineasta decide sair de um Brasil caído no fascismo e entrar na fábula de seu próprio filme, partindo para a extração de pedras preciosas numa aldeia na fronteira de Moçambique com o Zimbábue. “O país ficou muito mais escroto depois que você partiu”, ele saberá em seu regresso à tristeza tropical. “Um Animal Amarelo” reflete, sem dúvida, uma crise de utopia. “Quero ser rico e boçal”, repete o cineasta na África. Há uma incongruência em seu caráter. O artista sonhador adere à ganância de um grupo de traficantes de gemas valiosas, vira um escravo de sua líder e embarca para Portugal atrás de compradores ricaços. Na abertura do filme, uma citação de Darcy Ribeiro nos previne sobre a coexistência de ternura e crueldade na formação do povo brasileiro. O filme se situa, de algum modo, entre esses dois polos. Passamos então a ser guiados por uma narração de antropologia fácil e poesia torrencial, criadora de uma atmosfera de inteligência embriagada de si mesma. Assim, antes de estabelecermos nossa liberdade diante do filme, devemos ouvir: “Logo tu, branco brasileiro, sem origem e sem identidade. Nem europeu, nem africano, nem indígena. Neto e bisneto de estupros e sequestros escondidos”. Uma personagem moçambicana assume essa voz. O que poderia ser um deslocamento promissor, por atribuir centralidade a uma consciência traumatizada pelo colonialismo, se transforma numa interpretação opressiva contra a inteligência das imagens. A perspectiva anticolonial precisa sempre ser explicitada por palavras, e palavras implacáveis. Esse recurso sabota a excelência de cenas de voo imaginativo.

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