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6 JORNAL DE BELTRÃO

Geral

Domingo, 16.2.2014

Burocracia torna difícil reaver carros roubados e levados ao exterior "A gente se sente impotente em um país onde não existe lei, estamos totalmente desamparados, inclusive pela justiça brasileira." O desabafo é de uma das vítimas que teve o carro levado para a Argentina. Por Niomar Pereira Todos os dias, veículos roubados no Brasil cruzam as fronteiras dos países vizinhos e jamais são recuperados pelos proprietários. Um prejuízo imensurável para a nação e que está longe de merecer a atenção das autoridades políticas do Mercosul. A região Sudoeste do Paraná, por fazer divisa com a Argentina, sofre muito com esse tipo de crime internacional. Em menos de uma hora os ladrões conseguem atravessar a fronteira. Só no ano passado, em Francisco Beltrão, foram registrados 129 furtos de veículos, sendo 78 motos (60%). A polícia recuperou no mesmo período 81, ou seja, 38% dos beltronenses lesados não viram seu patrimônio retornar. A Argentina e o Paraguai são as rotas preferidas dos marginais, porque é fácil atravessar a fronteira, a fiscalização é ineficaz e, em algumas situações, os governos locais fazem vistas grossas, permitindo que carros roubados aqui circulem livremente do lado de lá. Quando, ocasionalmente, o veículo é recuperado pelas polícias vizinhas, começa um novo calvário para os brasileiros. Corrupção, extorsão e burocracia tornam a recuperação do bem praticamente impossível. Um policial civil — ele trabalha na região de fronteira e não quer se identificar — conta que há relatos da cobrança de propina para reintegrar veículos localizados pelas autoridades argentinas. "Quando o carro é encontrado, a polícia brasileira é comunicada, contudo, há informações de que o cidadão que tenta buscar o automóvel ou moto acaba sendo cobrado em R$ 500." Muitos preferem pagar para não enfrentar a burocracia de tentar repatriar pelos meios legais (leia box). Prejuízo e impunidade A professora Denise Lenzi teve seu automóvel Gol roubado em abril de 2012 em frente ao Núcleo Regional de Educação (NRE), local onde trabalha, e o caso ganhou bastante repercussão nas redes sociais. Apesar de flagrado pelas câmeras de segurança da Avenida Júlio Assis Cavalheiro, o bandido em poucos dias voltou para as ruas para responder pelo crime em liberdade. Ele confessou que levou o carro para a Argentina e vendeu por R$ 500. Desde então, Denise jamais teve notícias do seu automóvel, avaliado na época em R$ 24 mil. "Meu irmão chegou a ir à Argentina conversar com a polícia, não adiantou porque nosso carro nunca mais foi visto", lamenta. Como estava sem seguro, a beltronense teve que arcar sozinha com o prejuízo. "Fazia uma semana que o seguro tinha vencido, eu e meu marido tínhamos decidido não renovar, porque estávamos construindo a casa e o carro estava negociado pelas aberturas (portas e janelas)." Pior do que perder o patrimônio, de acordo com ela, é

O carro (Corsa) dos beltronenses Dickson Vieira e Silmar Gallina (ao lado) foi localizado e apreendido na cidade de Eldorado, Argentina, mas eles não conseguem repatriar o veículo.

a frustração de ver a falta de justiça no país. "Depois de decretada a prisão, em poucas horas o promotor relaxou o flagrante alegando que ele (ladrão) não estava mais de posse do objeto do furto e então foi solto. Mesmo que a gente procurasse a justiça comum, é provável que ele não tenha nada no nome e dificilmente teria condições de nos ressarcir", frisa. Burocracia ou maldade? Os sócios Dickson Vieira e Silmar Gallina estão passando por uma experiência similar, que se difere pelo fato de que o carro foi encontrado em solo estrangeiro. No entanto, encarar a complicação oficial, o desinteresse e a falta de informações precisas não é tarefa fácil, tanto que os dois já dão como certa a perda do veículo, tabelado em R$ 14.500,00. O automóvel, um Corsa Millennium/ 2002, foi levado na madrugada do dia 5 de junho de 2013, na Rua Maringá, em frente à AABB (Associação Atlética Banco do Brasil). Ao se levantar por volta das 6 horas da manhã, Dickson percebeu que o carro não estava mais na frente de sua residência. De imediato entrou em contato com a polícia, que fez algumas buscas. "No começo achavam que era um menor que tinha pegado para andar e em seguida abandonaria em algum lugar, como acontece com um monte de carro", comenta. No dia seguinte, ele recebeu a ligação de um policial militar beltronense informando que a polícia da Argentina havia apreendido o carro em Eldorado — 140 quilômetros da divisa com Barracão —, em uma blitz, com dois argentinos que estavam tentando atravessar numa balsa para o lado paraguaio. O carro tinha sido comprado por R$ 1.000 e seria revendido no Paraguai por R$ 3.000. Imaginando que seria muito fácil reaver o Corsa, Dickson e Silmar procuraram a

Polícia Civil de Barracão no dia 8. Lá, foram orientados a ir até a Polícia Federal em Dionísio Cerqueira (SC), que, por sua vez, mandou-os à polícia do lado argentino. Um verdadeiro jogo de empurra, cada órgão alegando que o processo fugia de sua alçada. "Na polícia de Bernardo Irigoyen, o comissário maior (comandante) nos recebeu muito bem e disse que a única maneira de reaver este automóvel era indo até Eldorado e contratando um advogado de lá. Ele mesmo indicou um advogado que era seu amigo, supostamente uma pessoa de confiança", conta. Polícia indicou advogado Coincidentemente, no mesmo dia, um policial argentino estava indo para Eldorado e, a pedido do comissário, acompanhou Dickson e Silmar até o endereço do advogado. "O problema é que ele (advogado) falava em espanhol e a gente não entendia nada, o policial acabou servindo de intérprete. Ele pediu uma cópia do BO e uma cópia dos documentos do carro — que estavam no porta-luva do carro quando foi roubado —, todavia tínhamos o recibo de venda e deixamos uma cópia para ele, para dar entrada no processo na justiça para recuperar o veículo. Pediu e pegamos R$ 1.000 adiantados para cobrir as custas processuais. Saímos com a promessa de que em uma semana seríamos chamados para ir buscar o veículo", relata Dickson. Segundo Silmar, esse foi o último contato com o advogado. "Depois disso não nos retornaram e quando ligamos no escritório ninguém atende. Fomos novamente até Bernardo Irigoyen e a desculpa que nos deram é que eles são policiais estaduais e quem apreendeu o carro é como se fosse a Polícia Federal deles. Então, alegam que não podem pegar o carro porque está em outra jurisdição."

Acordo internacional disciplina recuperação de veículos no Mercosul Exigências: muitos documentos, ciência da autoridade judicial e prazo máximo de cinco anos. Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai — países membros do Mercosul — são signatários do Acordo de Assunção sobre restituição de veículos automotores terrestres e embarcações que transpõem ilegalmente as fronteiras entre os estados. O documento tem como objetivo a luta contra todas as formas da delinquência organizada, reduzindo o impacto negativo que os crimes têm em relação às pessoas, "assegurando uma rápida recuperação dos bens que lhe foram subtraídos sem os prejuízos que as demoras burocráticas acarretam". Na prática, no entanto, não é isso que acontece. A legislação — pesquisada pelo Jornal de Beltrão — prevê que todo veículo ilegal, com origem de país vizinho membro do Mercosul, será interditado, desapossado ou sequestrado e posto à disposição da autoridade judicial ou aduaneira local. Nestes casos, o veículo ficará à disposição

da autoridade competente, sob custódia, sem direito a uso, exceto para sua guarda. O Acordo de Assunção diz que toda pessoa física ou jurídica que deseje reclamar a restituição de um veículo da sua propriedade, que foi roubado ou furtado, formulará seu pedido à autoridade judicial do território em que este se encontre, podendo fazê-lo diretamente ou por seu representante legal. Contudo, a reivindicação não poderá ser realizada após cinco anos contados a partir do dia seguinte em que foi efetuada a denúncia junto à autoridade competente do lugar onde se produziu o roubo ou furto. A demanda de restituição deverá ser apresentada com a seguinte documentação: título de propriedade do veículo ou cópia certificada; certificado de fabricação, documentação de saída da fábrica ao mercado, ou documento equivalente que acredite a titularidade do veículo; certificado de importa-

ção, fatura de compra e conhecimento de embarque, despacho de importação ou documento equivalente que acredite a titularidade do veículo; constância da autoridade competente do país de origem na qual se radicou a denúncia do roubo ou furto do veículo. Recebida a demanda de restituição, o juiz competente do país, uma vez cumpridas as diligências correspondentes, decidirá pelo pronto sequestro, interdição ou desapossamento do veículo. Os procedimentos de tramitação deverão concluir-se num prazo máximo de 60 dias úteis. "A prova sobre os direitos que se invoquem se limitará aos documentos e corresponderá exclusivamente a quem demonstrar a posse ou domínio do veículo. Depois da decisão judicial, o veículo deve ser devolvido imediatamente para seu legítimo proprietário", diz o acordo. (NP)

Alguns indícios, durante a jornada dos dois beltronenses, indicavam que a incursão não daria certo. Silmar recorda que, enquanto estavam na polícia argentina, chegou um policial brasileiro, de Dionísio Cerqueira (SC), para quem a história foi relatada. "Contamos o fato e que tínhamos a promessa de que o carro estaria em nossas mãos em uma semana. Ironicamente, ele falou que demoraria muito mais. Ficamos desconfiados, porque as informações não batiam. Não deixaram nem a gente ir ver onde o carro estava." Dickson não acredita em golpe, mas em burocracia e maldade das autoridades vizinhas. "Não recebemos a informação da polícia argentina, recebemos a informação da polícia daqui, então dizer que foi golpe é difícil. Fomos pela terceira vez e conseguimos falar com o comandante, que também não conseguiu mais contato com o advogado amigo dele. Várias ligações e nada. Telefone ninguém atende. Só conseguimos falar com o policial que nos levou até lá naquele dia, que diz que falta um documento pra ir buscar o carro, mas ninguém fala que documento é." Para Silmar, só resta se conformar com a perda. "Uma pessoa nos falou que se pegasse um advogado com bastante interesse, através do consulado, em Buenos Aires, talvez conseguiríamos. Mas com tamanha burocracia acho que seria difícil." Quem também perdeu a esperança foi o jovem Elizandro Welter, vendedor da Flessak em Beltrão. Ele suspeitava que sua moto, roubada há três anos, tinha sido levada para a Argentina, foi até lá, levou uma cópia do BO e pediu para a polícia entrar em contato caso localizasse. "Até hoje a moto (Honda Broz 150cc) não foi localizada. Na época se falava muito de que as motos eram levadas para lá, porém nunca mais fiquei sabendo nada." Legislação dificulta O capitão Rogério Pitz, subcomandante do 21º BPM de Francisco Beltrão, destaca que este tipo de situação não é competência da Polícia Militar. No entanto, afirma que já atuou em um grupo especial de combate ao crime organizado, dentro da corporação, contra o roubo de caminhões e caminhonetes que eram levados para países vizinhos, e recorda que a falta de legislação dificulta muito a recuperação dos veículos levados para o exterior.

Do lado de lá, bandidos vendem carros por R$ 500 Carros, motos e caminhonetes são vendidos por uma verdadeira pechincha que varia de R$ 500 a R$ 1.000. O dinheiro é usado, invariavelmente, para comprar drogas. Dia 27 de janeiro, policiais rodoviários federais (PRF) do posto da Ponte Ayrton Senna, em Guaíra, recuperaram uma caminhonete Chevrolet/D20, que havia sido furtada no dia 25 em Dois Vizinhos. O condutor, menor de 17 anos, residente em Francisco Beltrão, disse que foi contratado para levar o veículo até o Paraguai e receberia a quantia de R$ 500 reais.


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