Revista DR número 01

Page 46

mos que ela vale também para cada um de nós, em maior ou menor medida, e que nossos investimentos afetivos nesta rede social são modulados também por isso, ainda que, claro, não se esgote aí. E pouco importa que as emoções compartilhadas sejam verídicas, falsas, editadas, selecionadas. Não é disso que se trata, mas sim de perceber este modo sutil de controle, exemplar do capitalismo contemporâneo, que se alimenta de nossos afetos, nosso ‘engajamento’ emocional e cognitivo, nossa ‘devoção’. Lembremos que os nexos entre o poder e a gestão ou capitalização dos afetos e da felicidade não são um privilégio do Facebook. Estes nexos têm uma longa história no Ocidente, do poder pastoral às indústrias do consumo, da saúde física e mental, do espetáculo e as mais recentes formas da felicidade tecnologicamente assistida, passando pela grande mídia, a publicidade, as redes sociais etc. Se tomarmos um exemplo mais remoto, o poder pastoral, lembramos que os investimentos na relação entre o exercício do poder e a gestão da felicidade estavam atrelados, como propõe Foucault, a práticas confessionais e a relatos sobre a vida íntima, endereçados ao pastor, que dirigia a consciência e a culpa dos fiéis. Tudo isso passava por um forte, e por vezes penoso, trabalho que o indivíduo deveria fazer sobre si. Agora, os algoritmos do Facebook pretendem gerir a felicidade e as emoções sem que os indivíduos em questão sequer tomem conhecimento disso. O controle algorítmico da felicidade importa pelos seus resultados: mais e mais compartilhamentos, mais e mais dados, mais e mais perfis, mais e mais atividade e conexão em modo non stop. Trata-se, para usar uma expressão do futebol, de uma felicidade de resultados.

46

Esse controle algorítmico, especialmente no Facebook, mobiliza as subjetividades de um modo bastante distinto do poder pastoral, ainda que possa encontrar nele uma linhagem histórica. E esta mobilização está ainda por ser entendida, assim como as resistências a esse controle estão por ser inventadas. Se considerarmos a dimensão laboratorial, seria fundamental reduzir, em diversos níveis, a assimetria que apontamos acima. Mais transparência e abertura dos dados, critérios, parâmetros e algoritmos é fundamental para que este laboratório se torne um espaço de maior autonomia para os usuários. E isso não vale apenas, diga-se, para a pesquisa dita ‘de mercado’, mas também para a pesquisa científica, cujos métodos experimentais merecem ser problematizados de modo a ampliar as margens de negociação com seus sujeitos, como bem propõe Vinciene Despret. O princípio de que os sujeitos, para serem bem conhecidos, devem ignorar ou ser inteiramente excluídos da definição dos parâmetros da pesquisa, vale mais para reforçar as redes de poder da ciência e dos laboratórios-empresa online do que para produzir um conhecimento suficientemente complexo acerca de nós mesmos. Tal revisão dos parâmetros laboratoriais é tão mais urgente quando tal conhecimento modula significativamente o nosso campo de ação individual e coletiva. Esta negociação, contudo, talvez seja demasiadamente utópica. Restaria ainda fabular outras táticas. Aprendemos a driblar e contestar nossos pastores, pais, educadores, médicos e toda sorte de pretensos diretores de consciência. Imaginar uma sabotagem coletiva do controle algorítmico da felicidade no Facebook é uma bela tarefa.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.