Revista DR número 01

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dossiê: subjetividades, política e mídia

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editorial DR é uma revista de política e de cultura feita por mulheres. Surgiu da dificuldade de discutir política com homens e do desejo de conversar sem colocar o pau na mesa.

formas de vida que impõe. Por isso mesmo, construir alternativas é também prefigurar outras formas de falar e de se relacionar.

Nossa DR é anti-capitalista.

DR é uma proposta de conversa atenta ao tom, na qual seja possível ter voz sem precisar incorporar a linguagem da verdade. É o desejo de falar num tom que não é necessariamente feminino (de fato não sabemos exatamente o que isso significa), mas que recuse a autoridade e a expertise que são, de fato, hoje (ainda) exercidas majoritariamente por homens.

O capitalismo não é independente das produções subjetivas que engendra, dos usos da linguagem, das

E, já que somos historicamente tachadas como emotivas, loucas e maníacas por DR, vamos

Divas Revolucionárias

Colaboradoras Ana Lucia Enne Professora do Departamento de Estudos Culturais e Mídia (PPCULT - UFF)

Não colocar o pau na mesa é discutir política sem ter que ganhar a discussão ou deter a razão final. Também não somos uma revista acadêmica feita por especialistas. Desejamos falar daquilo que não sabemos e dialogar com um público mais amplo. A política concerne a todos e se diz de muitas maneiras.

Ana Kiffer Barbara Santos Fernanda Bruno Mariana Patrício Oiara Bonilla Tatiana Roque Thamyra Thamara de Araujo 4

Artionka Capiberibe Professora do Departamento de Antropologia (IFCH-Unicamp) Correspondentes Natacha Rena (Indisciplinar_ UFMG) Rosana Pinheiro Machado (Oxford University)

fazer DR mesmo! E afirmar o sentido político dessa prática Como em toda DR, não sabemos exatamente aonde isso vai dar. Mas só se faz DR com quem a gente se importa, e sobre assuntos que nos são cruciais. Nos importamos com o efeito de nossa fala, sabendo que é sempre possível retornar sobre as palavras, reconhecer seus equívocos, prestando atenção ao modo como afetam o seu destinatário. Isso também é fazer política. Fazer DR é, portanto, buscar se colocar em posição de igualdade diante dxs outrx, apostar que a relação é o que importa. Um cuidado, uma devida atenção às conexões

Projeto Gráfico (Indisciplinar-UFMG) André Victor Luiza Magalhães Octávio Mendes Sarah Kubitschek Fotógrafa Colaboradora Leandra Lek Revista DR www.revistadr.com.br i facebook.com/RevistaDRdivas revistadr@gmail.com


seções

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GOSTOSAS DA VEZ

Entrevista com Isabelle Stengers e Vinciane Despret

mapeando DO MEGAPHONE AO IPHONE NAS VIELAS DA FAVELA

Thamyra Thamara de Araujo

ISOLADOS OU CADASTRADOS: OS ÍNDIOS NA ERA DESENVOLVIMENTISTA

Oiara Bonilla e Artionka Capiberibe

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dossiê SUBJETIVIDADES, POLÍTICA E MÍDIA

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OS NOVOS MOVIMENTOS SE CONSTITUEM A PARTIR DE DIAGRAMAS (E NÃO DE PROGRAMAS) Tatiana Roque

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ALGORITMO DA FELICIDADE Fernanda Bruno

“HÁ UM PÁSSARO AZUL EM MEU PEITO” Anna Lucia Enne

DR com... NIETZSCHE

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Mariana Patrício 5


Mariana Patrício Diva, doutora em literatura, Professora do CCE da PUC, Pesquisadora do Temas de Dança, se sentindo meio Diva atualmente e mãe de uma criatura incrível.

Tatiana Roque Diva, professora, escreve artigos, acadêmicos mas gosta mesmo é de pensar e fazer política, canta e toca pandeiro nas horas vagas.

Thamyra Thâmara de Araujo Diva, Anastácia contemporânea, fotógrafa, jornalista, pesquisadora e queima panelas nas horas vagas.

Fernanda Bruno Diva in progress, professora, pesquisa máquinas, corpos e mentes do tempo presente, blogueira eventual e mãe do A.

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Barbara Santos Diva-Negra expressa em imagens, palavras, sons e atuações. Teatro como espelho e como escolha. Arte dedicada à Luta!

Oiara Bonilla Diva, antropóloga, pesquisadora, professora, tradutora, mãe de duas figuras, desenha e anda pelo mundo nas horas vagas.

Ana Kiffer Professora pesquisadora escritora sem livros e trovadora. Mãe de C. Ex-combatente. Sempre ensaísta.

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DR: A revista que n達o coloca o pau na mesa.

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Discutir a relação, falar de política e cultura com uma atenção ao tom, um cuidado com as conexões.

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gostosas da vez: entrevista DR

com Isabelle Stengers e Vinciane Despret entrevista feita por Oiara Bonilla e Tatiana Roque

“Faire des histoires” é uma expressão difícil de ser traduzida para o português. No uso coloquial, quer dizer criar caso, criar problema onde não tem, implicar, encher o saco, pegar no pé. Um pai pode dizer para o filho: pare de “faire des histoires!”, se o filho estiver fazendo birra, gritando, rolando no chão. Um homem diz para a mulher: não invente histórias, não crie caso, pare de reclamar à toa! No livro de Vinciane Despret e Isabelle Stengers, Les faiseuses d’histoires, a expressão remete ao papel das mulheres na universidade e a todas as pequenas diferenças em relação às posições ocupadas pelas mulheres: ao fato de que não chegar ao topo da carreira se deve, em muitos casos, a uma repartição desigual das tarefas familiares, à opção de ter ou não filhos, por exemplo. A inspiração vem de Virginia Woolf, que sempre desconfiou da oferta feita às mulheres para que entrassem na universidade: não devemos, dizia Woolf, engrossar essas fileiras de homens cultos, cheios de honras e responsabilidades. A universidade diz para as mulheres: vocês são bem-vindas, pois este é um espaço democrático, mas desde que não criem problema, não criem caso com essas questões menores (vous êtes les bienvenues à condition de ne pas faire des histoires...). No livro, as autoras transformam esse lugar, designando-se como as “fazedoras de histórias”, “as criadoras de 10

caso, de situações”, o que pode ter um papel afirmativo como constituição de um novo lugar, uma nova relação com o pensamento: o que as mulheres fazem com o pensamento? DR - Bonjour! Essa entrevista é sobre mulheres e política. Aqui no Brasil, desde as manifestações de junho de 2013 até recentemente, no período da Copa do Mundo, experimentamos algumas dificuldades em criar uma continuidade para os movimentos. Nessas manifestações, além dos movimentos organizados, estavam presentes também muitos outros sujeitos, que não pertenciam a nenhuma organização política. Em seguida, nas tentativas de organização que surgiram dali, tornou-se um problema a quantidade de disputas, de brigas. Nesse cenário, experimentamos algumas dificuldades, que acabamos associando à posição das mulheres. Acabou que nós, que nunca fomos feministas, de repente tivemos esta ideia de fazer uma revista só com mulheres. Porque começamos a sentir dificuldade em discutir política com homens. VD - Concretamente, que dificuldades eram essas? DR - Eles parecem dar lição o tempo todo. Se você concorda tudo bem, mas se quer colocar


um ponto que não está na pauta, não prestam atenção. VD - Não há como discutir... DR - E tem todo o lado afetivo, que queríamos colocar em certo momento… Por exemplo, houve uma grande repressão aos protestos durante e depois da Copa, com pessoas presas, e quisemos escrever uma carta para a Dilma [Roussef]. Queríamos adotar um tom mais afetivo. Para a gente, a questão do tom era importante. Escrevemos a carta, circulou muito, achamos que até a Dilma leu, mesmo que não tenha respondido. Mas, durante o processo, foi difícil dar um tom afetivo à tal carta. Escrevemos junto com homens que partilhavam totalmente da nossa posição política, mas não eram sensíveis à questão do tom. VD - Quais eram os argumentos para recusar o tom afetivo? Chegaram a dizer “não, não podemos falar assim”? DR - Não exatamente, mas disseram que não teria efeito político se não fosse mais argumentativa. Se não trouxesse um discurso mais sólido.

DR - E não foi só aí, experimentamos a mesma dificuldade em outros grupos. Então decidimos criar um grupo de mulheres e fazer uma revista chamada DR, que quer dizer “discutir a relação”. Se há um problema no casal, por exemplo, e se quisermos discutir a relação, isso costuma ser mal visto pelos homens. Eles dizem “ah! Lá vêm essas mulheres querendo discutir a relação”, “Que chatas...” IS - Achei o Brasil mais machista que outros países. Na Europa não se ousaria dizer “ah, as mulheres”, talvez entre homens, mas nunca na frente de outras mulheres. VD - O machismo, no nosso caso, passaria por questões acadêmicas. A diferença também seria ressaltada, mas não com um homem dizendo “ah, as mulheres”, pois os poderes se deslocaram. Por outro lado, seria ainda mais forte nas questões acadêmicas, porque um homem diria “academicamente não se pode escrever assim”. Nesse caso, lida-se com uma força ainda maior pois se trata da exclusão produzida pelo bom academicismo.

IS - Como se as manifestações que permitiram que muitos homens teorizassem sobre elas não tivessem sido afetivas...

DR - Então, uma de nossas inspirações para pensar esse problema é o livro de vocês, Les faiseuses d’histoires - que font les femmes à la pensée? . Agora surge a questão sobre os modos de se discutir e de se fazer política, depois de todos os movimentos que ocorreram no Brasil. Fazer política como universitárias, mas fora da academia. Não conseguimos mais fazer nosso trabalho do mesmo modo que antes. Achamos uma excelente ocasião que a primeira entrevista seja com vocês...

VD - Ou talvez haja uma separação. Para a manifestação é o gesto do corpo. Depois se racionaliza.

IS - Vamos em frente! DR - Passemos às perguntas então. Até que ponto, o fato de sentirmo-nos solicitadas pela

VD - Sim, isso pra eles não tem efeito pragmático. O argumento é “falar afetivamente não tem efeito político”. DR - Isso mesmo, é preciso explicar, dar “argumentos”, mobilizar “a história” ou “a teoria”.

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necessidade de prestar atenção ao “modo de dizer” em um discurso político significaria “ocupar um lugar de mulher”? Para nós, não basta que um discurso político seja justo para que mobilize o engajamento de todo mundo, é preciso também um trabalho sobre o tom, sobre os modos de dizer. Mas como conseguir o reconhecimento de que essa é uma questão política em si? Essa dificuldade nos parece ligada a uma longa tradição na qual a discussão política é uma atividade reservada aos homens. VD - Eu começaria assim, mas é realmente uma maneira de começar pelo exterior. A reflexão sobre o modo de interpelar o outro é uma discussão psicológica ou uma discussão política? Começaria por aí. Se a psicologia se apropriou das emoções, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas manifestações e nas revoltas. Os “homens civilizados” se expressam através de uma racionalidade sobre a qual, invariavelmente, todo mundo deveria estar de acordo, pois todo mundo é racionalizado. De um lado, isso é um pensamento masculino, pois a psicologia segue com “os homens veem de marte e as mulheres de vênus”. Quero dizer, mesmo na Europa, supõese que ninguém use argumentos machistas, mas ainda devemos nos submeter aos discursos sobre um estilo. Nas revistas pretensamente emancipadoras femininas, ainda há “as mulheres são mais sensíveis” ou “as mulheres pensam mais em um discurso afetivo”, o que é muito perigoso de dizer, pois se se faz disso uma psicologia, torna-se uma maneira de desvalorizar e de dar razão aos que detém a racionalidade. Então, como tomar um discurso afetivo para fazer dele um discurso? Não um discurso afetivo, um discurso sobre a afetividade, sobre o 12

corpo, sobre os modos de fazer, de maneira que isso se torne um modo político de engajamento? É a primeira coisa que eu diria, enquanto os homens não aceitarem, e mesmo as mulheres, aliás, pensar que a própria maneira de caracterizar os modos de fazer são questões políticas, ou seja, maneiras construídas, nas quais nos construímos pensando pragmaticamente no que é eficaz, no que dá forma a uma outra política, ainda não começamos realmente, pois essa questão será sempre rebatida para o lado da psicologia, “bem, são mulherzinhas, ora!”. IS - Sim, acredito que em uma assembleia esteticamente masculina, e eventualmente tam-

“A reflexão sobre o modo de interpelar o outro é uma discussão psicológica ou uma discussão política? Começaria por aí. Se a psicologia se apropriou das emoções, por exemplo, e dos modos de afetar, de sentir, de expressar, ela moldou os modos de ser do povo que se expressam nas manifestações e nas revoltas.” bém majoritariamente masculina, uma mulher sozinha que tente transmitir o afeto será irremediavelmente psicologizada, não vai conseguir. Por outro lado, isso seria possível com um grupo de mulheres que tenha se preparado para fazer uma intervenção, justamente porque é um coletivo, porque elas juntas se tornaram capazes de fazer essa intervenção. Poderíamos dizer “fazer disso toda uma história”, “criar um caso”, “criar uma situação”. Não digo que assim terão sucesso necessariamente, mas não se poderá dizer que é simplesmente um problema psicológico. Pois essa dimensão da produção coletiva de um afeto tem relação com a


dimensão política. Acredito que o feminismo começou quando as mulheres conseguiram produzir grupos consistentes para intervir com um estilo que era o delas e que se tornou, então, irredutível à psicologização. VD- E que passa explicita e claramente por um estilo escolhido e construído. Logo, todos os termos como “autenticidade” e “espontaneidade” são termos venenosos. Se as pessoas imaginam, por exemplo, que vocês têm um discurso espontâneo, vocês estão ferradas! Porque o discurso espontâneo pode permitir remeter à natureza das pessoas ou à psicologia. Eu continuaria então o que a Isabelle disse: a forma como a gente se produz é uma aprendizagem, de modo que aquilo que estamos produzindo não possa, em nenhuma hipótese, passar por algo que emanaria da natureza das mulheres,

da natureza das dominadas. Tem que aparecer realmente como algo combinado, algo construído e elaborado conjuntamente. IS – E é por isso que nos momentos em que o feminismo foi inventivo, a ideia de mulheres bruxas estava tão presente. No sentido em que as bruxas são também aquelas que sabem se reunir para preparar coisas. Sair. São aquelas que sabem que é preciso se proteger da interferência para serem capazes de sair, de produzir uma diferença. DR – Queríamos falar também de algumas pequenas armadilhas que sentimos na discussão. Vocês falam de uma recusa ativa de um gênero de pensamento que desconfia das mulheres, como se elas fossem incapazes de levar a sério os problemas que transformam o pens-

isabelle stengers 13


amento em campo de batalha, uma recusa em deixar que um “falar verdadeiro” barre o caminho de um “falar bem”. Em que medida esse “falar verdadeiro” se infiltra, às vezes de modo muito sutil, nos discursos irônicos, indignados, e perpassam as polêmicas que estão na moda em toda discussão política. Esses modos, disfarçados de “maus modos”, porque revoltados, não levam também a reafirmar posições já constituídas, paralisando justamente a capacidade que o falar pode ter de estabelecer conexões? IS – Que sempre estiveram na moda nos grupos estritamente militantes. Quer dizer que toda intervenção que complique, que abra, é difícil. Qualquer ação para complicar as coisas, a fim de permitir que outras coisas entrem em jogo, que não estão na pauta, será vista como algo que pode enfraquecer a causa. DR – Sentimos que isso acontece muito nos discursos de intelectuais. Não somente militantes, mas intelectuais sofisticados, que fazem hoje um monte de discursos irônicos e indignados, o que é também um modo de criar um grupo fechado no qual ninguém mais pode entrar, sobretudo os que não são suficientemente inteligentes para entender ironia. IS – Sim, mas a ideia de grupo militante, a ideia de militância, tem sempre intelectuais à frente. Quando se tem um coletivo de trabalhadores em greve, é diferente. Grupos militantes têm sempre ideólogos no comando. Logo, não se pode produzir diferença, o intelectual está sempre pronto para tomar o comando e dar a boa direção. VD – Dar o tom.

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IS - Logo, não se surpreendam, quero dizer, desse ponto de vista que falamos, os intelectuais estão sempre no seu lugar, não para abrir, mas para mobilizar e dar a verdade. A verdade sobre o que está acontecendo. E é sempre assim: “nós não somos cegos, somos os que veem a verdade!”, “devemos cassar as ilusões que levam a pensar de outras maneiras!”. Assim, é um tipo de radicalização que atua como se o fato de não ser cego, de enxergar a verdade, fosse a força do movimento, como se a verdade contra a cegueira fosse a arma principal daqueles que se revoltam. É também uma velha teoria da alienação, o intelectual é aquele que luta contra a alienação que faz com que as pessoas aceitem suas amarras, suas correntes. Ele é então aquele que quebra as correntes. E aí, efetivamente, o sentimento, a intuição, o afeto, não entram, é como se não tivessem nada a ver. DR – Não sabemos se vocês observam algo particular com respeito à indignação. Nas redes sociais, por exemplo, há muito discurso indignado, e sua repercussão é muito fácil, discursos com esse tom se reproduzem com uma facilidade incrível. Mas já é diferente nos movimentos, por exemplo, o movimento dos indignados... IS - Há diversos tipos de indignação. No movimento dos indignados, na Europa, há realmente uma indignação afetiva: “Assim não dá!”, “Esse mundo não dá mais!”. E isso permitiu reunir todos aqueles que, por seus pontos de vista, eram mais pluralistas do que indignados, ao menos na Europa. Já a indignação na boca de uma só pessoa se torna rapidamente “designar a verdade por trás da indignação”. É verdade que pode haver uma...como dizer? Algo que não está no coletivo, só no orador, em quem pode acontecer uma escalada da indignação: quanto


mais ele fala, mais ele goza da indignação que o toma! Acho que há uma possibilidade bizarra de construção de uma posição mais e mais indignada. Nos movimentos, por exemplo, no movimento dos indignados foi muito diferente. Era uma tentativa de produção de transversalidade, de todas as razões de se estar descontente. E foi frágil por isso: porque depois da indignação, é preciso criar relações que permaneçam, que se segurem. É preciso mostrar uma consistência, um movimento ou relações que possam durar. Então, os intelectuais dizem: é a verdade que faz durar... (risos). VD – Para completar o que diz Isabelle, o que observo nos discursos indignados, não no sentido da indignação afetiva, é que a verdade é um tipo de discurso que só faz denunciar a mentira. É incrível o número de “mentem para nós!” etc. Como se esperassem que nos digam a verdade. Como se esperassem, por exemplo, que as companhias petrolíferas nos digam a verdade. Claro, e aqui acho que é onde a esquerda não faz seu trabalho, no sentido de Deleuze: denunciar a mentira pode ser uma etapa necessária, mas parar aí é se recusar a pensar. Ao passo que, o que eu gostei naquilo que Isabelle diz em La Sorcellerie Capitaliste, livro escrito com Philippe Pignarre, é que não é exatamente a mentira que devemos visar, pois, à mentira só poderemos responder com uma verdade. Isso é problemático. Se há uma mentira, é porque há uma verdade correspondente. Logo, a gente permanece em um sistema binário que não faz pensar. Por outro lado, no belo movimento de que falava Isabelle, encontra-se o tempo todo questões como “o que é uma captura capitalista?”, “o que é estar em um dilema infernal?”. Encontramos o tempo todo essas frases, “ou

deslocalizar ou diminuir seus salários”, mas não se trata de uma questão de mentira ou verdade. É verdade, ou se deslocalizam (as empresas) ou... Não vamos dizer que são mentirosos. Assim, podemos dizer que não há mentira, mas há uma alternativa que não permite escapar, e a maneira de lutar não é denunciar a mentira por trás da alternativa, e sim não cair na armadilha que a alternativa coloca. Logo, o discurso indignado pode ser perigoso na medida em que se focaliza em uma relação estritamente binária entre verdade e mentira, que remete de novo à racionalidade. A indignação está aí para dar força à iluminação da verdade. DR – Para pensar os desafios políticos de nosso tempo, reconhecemos a pertinência e mesmo a urgência de recorrer a conceitos filosóficos ou teóricos que não são evidentes. Às vezes isso significa sobrecarregar a linguagem, torná-la incompreensível. Alguns conceitos se tornam quase clichê, como rizoma, multidão, ou mesmo antropoceno. E são ideias de que gostamos, conceitos potentes que se tornam, muitas vezes, palavras de ordem vazias, assunto de iniciados. Como conciliar esse excesso da linguagem com a necessidade política de se fazer compreender por todos? Notamos um desinteresse dos intelectuais por se fazer compreender que não é proporcional à importância que fingem atribuir aos “outros”. IS – Mas esse é todo o problema! Quando conheci Félix Guattari, ele trabalhava com psiquiatria alternativa e quando ele falava, não usava slogans. Toda a inteligência que os conceitos que ele inventava lhe tinham dado era colocada em prática na situação. Deleuze dizia que os conceitos devem ser instrumentos, é preciso se apropriar deles, mas é a situação que dá 15


vinciane despret sentido aos conceitos. Não são os conceitos que dão sentido às situações. Nesse momento, a inteligência que se pode criar em uma situação, pertence a todos. E depois podemos dizer “peraí, isso é o que Deleuze chama...”, mas ninguém liga porque se tornou algo que pertence à situação. Quando escrevo textos, tento citar muito pouco. Em La Sorcellerie Capitaliste sabia que, se citasse, se dissesse “como disse Deleuze etc.”, as pessoas pensariam “ah, não li Deleuze, então não vou entender”. Então, às vezes, tentei transmitir os gritos, mas nunca algo como “é preciso saber que Deleuze… etc.”. Há um uso dos conceitos que separa as pessoas, mas se usarmos os conceitos na situação, não precisaremos mais citar o autor. Nunca deveríamos citar. DR – Nem empregar os termos, as palavras que eles usam... IS – Depende das palavras. Porque há palavras que são simples e que aprendemos, graças a certo autor, a utilizar de um modo em que elas se tornam potentes. Então podemos empregá-las, mas não “rizoma”, não palavras que as pessoas não conhecem. Por exemplo, quando Deleuze diz: a diferença entre a direita e a esquerda é que a esquerda precisa que as pessoas pensem e a direita precisa que elas se sub16

metam, que confiem. Isso, todo mundo pode entender (risos). Há palavras que são “para os que leram”. Mesmo em um colóquio como este para o qual viemos não deveríamos empregar todas aquelas palavras, pois isso separa. É como se tivéssemos dado a solução antes mesmo de começar a compreender a situação. Acho, por exemplo, não para criticar, mas se falamos de guerra, todas essas máquinas de guerra de Deleuze e Guattari aparecem. Mas surgem como uma conclusão. A questão seria fabricar a máquina de guerra e só então dizer “peraí, é o que Deleuze e Guattari chamam máquinas de guerra...”. É quem usa o conceito que tem que pagar primeiro. Pagar no sentido de tornar interessante o conceito que permite pensar. Mas a academia fabrica papagaios. DR – Chamar nossa revista de DR é uma maneira de dizer, de algum modo, que nós, as mulheres, estamos “criando caso”, “inventando histórias” (“faire des histoires”, como vocês dizem). “Pare de inventar histórias”, “parem de criar caso”, nos dizem os homens. E eles são avessos à DR, discutir a relação é coisa de mulher... IS – Mas as mulheres vieram de Vênus, elas adoram discutir a relação !!! (risos fortes)


DR – Estamos cansadas de trabalhar na universidade com se nada estivesse acontecendo, como se não tivéssemos nenhum papel, o que é uma tentação forte hoje em dia. Na linha das mulheres que “cultivam a raiva e o humor para resistir”, como vocês dizem no livro, decidimos fundar essa revista, apostando em uma reversão pelo riso. Dissemos, “tem que ser engraçado!”, senão não tem força. Quando dizemos DR, queremos reverter essa posição que nos é atribuída, mas pelo riso. Não sabemos aonde vai nos levar essa experiência, nem se vai nos levar mais longe do que esse “rir juntas”, porque é verdade que quando nos reunimos gargalhamos muito, e ainda nem lançamos o primeiro número! Queríamos terminar então falando do riso e do papel do humor em relação à ironia, que está associada ao falar-verdadeiro masculino. IS – Acho que cultivar o riso sempre foi uma grande força dos movimentos feministas. Mas também de mulheres juntas, independente dos devires políticos, porque o “rir juntas” é um riso rico. Um riso de compartilhamento, onde um monte de coisas, que podem ter sido vividas por umas ou por outras de modos diferentes, se encontram no riso. Quando discutimos com as mulheres que participaram da segunda parte do livro, em Paris, e que alguém, não sei mais quem, disse que sempre se sentiu uma impostora, foi uma explosão de risos, e uma enxurrada de “eu também!”, “eu também!”. Às vezes era diferente, “eu assim”, “eu assado”, mas não era uma crítica, e sim um enriquecimento. Havia uma espécie de “se sentir juntas”, não em nome de uma verdade, mas por causa de uma experiência da qual nos dávamos conta de a que ponto era compartilhada, e que podia

dar consistência a esse grupo. Ou seja, o fato de não se reunir por obrigação, mas sim porque esse “rir juntas” nos alimenta. Isso é extremamente importante. VD – A respeito do riso, estou pensando que faz anos que trabalho em uma universidade e não me sinto no meu lugar, sou impostora e serei descoberta! Vão me pegar! É isso que desperta o riso. É aí que o riso é extremamente saudável, pois não temos mais medo de fazer rir. E se há algo nos meios acadêmicos e/ou masculinos que toca os homens, e ao que eles são extremamente vulneráveis, é que um homem tem medo de provocar o riso sem intenção, sem que seja de propósito. Mas quando digo “vou ser pega!” não estou tentando fazer rir, eu falo desse medo real. E logo, risos enlouquecidos! De repente isso desloca a situação, pois no lugar de ser vítima desse terror de ser uma impostora, eu me torno... A gente se produz como alguém que cria o humor na situação, que é capaz de fazer humor sem querer, sem fazer de propósito. Nos damos conta então que fazer rir é uma alegria, pois é um riso de confiança. Os homens têm medo de fazer rir porque o riso é associado ao ridículo, ao fato de que as pessoas, os que riem, vão se juntar contra aquele de quem se ri. Mas no nosso caso, cria-se uma cumplicidade com aquela de quem se ri e ela pode “rir junto”. Muda tudo. Nos demos conta, as mulheres, que um monte de coisas acontecia nas nossas vidas por motivos sociais etc. E dissemos: “peraí, podemos fazer algumas coisas que os homens jamais teriam a liberdade de fazer”, colocar as coisas rapidamente em uma relação pessoal, por exemplo. IS - Mudar a relação. 17


VD - Mudar a relação mesmo nas transações comerciais, por exemplo. Uma anedota. Uma de minhas amigas que faz transações comerciais (ela é antiquária) reconhece imediatamente pela internet quando lida com uma mulher porque aparecem frases como “ah, uma caixa de bombons, minha avó tinha uma”. Um homem nunca diria isso dessa forma e, imediatamente, a comunicação toma outro rumo, e depois volta. Essa flexibilidade, a capacidade de ultrapassar fronteiras e não considerá-las como verdadeiras fronteiras. Acho que o riso é isso, essa capacidade. IS - É um dos motivos pelos quais essa ideia de bruxas é importante. É preciso criar espaços: não espaços protegidos, mas espaços onde nos protejamos para poder rir juntas, fabricar a força desse riso. E logo sair, isto é, transformar essa força em algo. Mas foi um escândalo, nos anos 70, as reuniões que eram só para mulheres, e é por isso que se falava em bruxas. Não era para excluir os homens, mas porque quando um homem chega, imediatamente tudo muda (risos). Depois, pode até haver grupos mistos, mas nos quais as mulheres cheguem com a força que acumularam juntas. Então, acho que o riso é realmente um alimento para as mulheres entre elas. E isso é muito sério. VD - Pensando ainda na pergunta que você acaba de colocar: por que uma mulher que participa de um grupo de homens assume posições que não são de destaque, por que ela se conduz como um homem, ou faz tudo pra isso? É porque ela está só. Ao passo que, quando um homem entra em um grupo de mulheres, ele não passa por nada disso, alguns sim, e é com eles que se pode compor, mas geralmente o 18

homem vai dizer “que história é essa?”, etc. Em vez de pensar “estou numa situação particular, o que se espera que eu produza aqui?” DR - E aqui eles sexualizam a situação também, dizendo ”ahhhh” IS - Me lembro de uma reunião feminista, bastante tardia, na qual muito do que tínhamos aprendido já havia sido esquecido. Havia um homem e, de repente, ele tomou a palavra e disse “eu gostaria que me explicassem os fundamentos do feminismo”. Imediatamente as mulheres se dividiram. Algumas queriam explicar para ele. Outras diziam “claro que não, não vamos parar tudo porque este senhor pede algo que ele pode aprender em outro lugar”. E pronto, ninguém mais ria. Bastou a intervenção daquele homem para que todo o humor que podia se desenvolver ali parasse. É a capacidade dos homens de dizer “tenho o direito de me informar”… IS- ... “do meu modo”, “não preciso tentar entrar no evento do jeito que ele é, participar do evento, surfar nele (risos)” . Não, “eu paro as ondas, construo um muro, fico ao pé dele e faço perguntas!”. Há algo aí que é preciso retomar. A mistura de gêneros é algo que se prepara entre mulheres! (risos). DR - Justamente, na revista haverá homens, mas apenas convidados... IS - Isso. Mas é preciso saber que existem povos, já que falamos muito em antropologia nos últimos dias [em Os Mil Nomes de Gaia], onde há o povo das mulheres e o povo dos homens, e os encontros são preparados. VD - Mas “DR” é ótimo como nome de revista. É


VD - Mas “DR” é ótimo como nome de revista. É muito bonito porque se alguém me dissesse “vamos discutir a relação”, eu ficaria horrorizada, subiria pelas paredes se alguém me dissesse isso, seriamente. Já discutir, para mim… se levado muito a sério, é horrível. Mas é muito interessante a forma como vocês invertem essa expressão horrível para torná-la objeto de humor. IS - E as bruxas, pessoas como Starhawk, que eu li muito, as ativistas em geral, aprenderam algo que inclusive os africanos sabem: nunca remeter - quando se discute a relação - à intenção. Sempre tentar dizer “aqui você me feriu”. Isso não quer dizer “você quis me ferir”. Mas se apresentar dizendo “aqui, o que você disse me feriu”. Colocar essa ferida “com”, e não dizer “você quis me ferir” e colocar o outro na defensiva. DR – Por isso que o humor é interessante. Dizemos DR e as pessoas reconhecem “discutir a relação”, pois utilizamos essa abreviação que todo mundo conhece. Mas dizemos também: DR de Divas Revolucionárias... (risos gerais) IS - Em todo caso é muito interessante e lhes desejamos muitas experiências belas. VD- Longa e risonha vida para DR, pronto! IS - Ah, e por favor, nunca com espírito de sacrifício ! Obstinação, coragem, mas que seja sempre uma alegria! (risos) DR - Obrigada!!!

Vinciane Despret é uma Filósofa e psicóloga belga. Ensina na Université Libre de Liège (ULg). Leitora de B. Latour e I. Stengers, entre outros, pesquisa nas áreas da etologia, filosofia da ciência e psicologia humana. É autora, com Isabelle, do belo livro Les Faiseuses d’histoires, ce que les femmes font à la pensée, Les Empêcheurs de Penser en Rond (2011). Isabelle Stengers é uma Filósofa belga. Ensina na Université Libre de Bruxelles (ULB). Inicialmente estudante de química acabou se interessando pela filosofia da ciência, tornando-se uma referência incontornável nessa área. Leitora de Whitehead, Simondon, Guattari, Deleuze e Starhawk, entre outros, pesquisa temas que vão da epistemologia crítica das ciências, à psicanálise e à política. É autora, com Vinciane, do mesmo livro inspirador sobre o papel das mulheres na universidade.

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marguerite duras 21


DO MEGAPHONE AO IPHONE NAS VIELAS DA FAVELA Por Thamyra Thâmara de Araujo

Esses dias caminhando pelo centro do Rio me deparei com um morador de rua nada típico (bom, deixa eu tentar explicar) . Conheci o Elias em 2011, na época participava de uma oficina de multimídia realizada pelo Viva Favela e estava participando de um trabalho de campo na Cinelândia. Ele tinha uma espécie de carrinho de mão todo equipado com som potente de festa, o carrinho,os fios, a eletricidade, a acústica, tudo tinha sido feito por ele com materiais que encontrou nos lixos da cidade. Durante o dia, Elias trabalhava fazendo o papel de gari, catando papelão e latinha pelo centro, e a noite ele era o “DJ” dos bares. Parava nos restaurantes com seu som e tocava uma música, depois passava o chapéu. Anos se passaram e o reencontrei na Carioca, depois do horário de almoço, tirando aquele descanso deitado no seu carrinho de madeira, assistindo ao jornal numa TV de plasma 40 polegadas embutida em seu equipamento de trabalho. Em volta dele tinha um monte de gente parada abismada, se perguntando como que um cara que mora e trabalha na rua podia ter aquela TV. E de certa forma incomodados de ter que estar trabalhando enquanto o cara descansava em pleno horário de trabalho, naquela confusão do Centro. Aquela imagem dele ali, descansando, enquanto todo mundo corria, me fez rir e 22

me deu um pouco de inveja vendo ele aparentemente vivendo tranquilo, trabalhando, mas também curtindo o lazer, indo na contramão do que seria o sensato dentro do sistema e se apossando da estética do andarilho, daquele que só quer flanar pela cidade. Por outro lado, eu não conseguia deixar de pensar: “o cara mora na rua e tem uma TV?”, e a minha moral culpava a sociedade de consumo e de alguma forma achava aquela imagem bastante incoerente. Continuei caminhando pela cidade e pensando no Elias, pensando na conversa que eu tive com ele em 2011. Ele tinha projetado um aparelho de som bacana num carrinho de mão, levava a vida de forma digna, era super inteligente, entendia de mecânica, eletricidade, mas nunca tinha ido à escola. Ele mesmo tinha inventado seu modo de produção e trabalho nas ruas. E agora eu estava ali, anos depois, pensando em como ele deveria gastar o dinheiro dele (me censurei na hora!), e resolvi mudar o foco da pergunta: Até que ponto aquela TV também não tinha sido transformada num equipamento de trabalho? Antes ele tinha apenas um som, agora ele podia ter um karoke (pensei...). Junto com a minha breve “moral” querendo ditar as regras “de como um pobre e morador de rua deveria se portar” eu me lembrei das vezes que ouvi críticas aos leks da favela que tinham o melhor celular do ano, Iphone, com-


putador em casa, mas moravam de aluguel, ou andavam por aí ostentando tênis de 300 conto e roupa de marca. E de como essas críticas me incomodavam em certo sentido. Por que eles não podiam? Nos últimos 12 anos o poder de compra dos pobres aumentou. E aqui eu não estou falando de um número exato ou de uma pesquisa qualificada, mas de coisas que vemos no dia a dia. Lembro quando eu era criança/adolescente, computador em casa era coisa de rico, ter internet, então, nem pensar. Hoje a gente brinca que tem yogurt grego em casa, queijo bola, TV com assinatura, wifi, viaja de avião, um monte de outras coisas que só a classe média fazia. É claro que eu ainda dependo do sistema público de saúde que é uma merda. A escola pública continua sem estrutura, a vala continua na porta de casa, ainda ficamos duas horas dentro do ônibus para chegar no trabalho, você pode correr o risco de ter sua casa removida e, à noite, ainda dá de cara com a polícia e um fuzil regulando a sua vida. No dia a dia e nos serviços básicos o pobre continua sendo o pobre. Porém, eu me pergunto se a inserção do pobre na cidadania por meio do consumo só trouxe mais consumo ou produziu outros formatos de participação e representação dentro da cidade. Segundo uma pesquisa organizada pelo projeto Solos Culturais, vinculado a ONG Observatório de Favelas, em 2012, em cinco favelas do Rio de Janeiro: Rocinha, Cidade de Deus, Complexo do Alemão, Complexo da Penha e Manguinhos - 90% dos moradores entre 15 a 28 anos têm acesso à internet. Entre as redes mais usadas estão: Facebook e Youtube. A internet é usada por esses jovens tanto para baixar filmes e músicas como para veicular seus próprios vídeos, incentivando a transmissão e a produção cultural. O

barateamento dos dispositivos eletrônicos nos últimos tempos fez com que a maioria desses jovens de origem popular acessem a internet de seus próprios celulares ou das lan houses - que foram apontadas em 2007 como responsáveis por 49% dos acessos à internet no país, assumindo importante papel no debate sobre inclusão digital no Brasil. O uso da internet e das novas tecnologias significa não apenas apropriação por parte dessa juventude favelada como também a possibilidade de ressignificar seu território, fortalecendo e dando visibilidade às suas práticas culturais. O fenômeno do passinho é uns desses exemplos do fluxo que começou nos becos da favela e foi parar nas redes socias. Tudo começou quando o jovem, codnome Gambá, da Ilha do Governador, morto tragicamente em janeiro do ano passado, conhecido como o rei do passinho e o jovem Cebolinha, de Cascadura, tido como um dos primeiros grandes dançarinos do gênero, gravaram vídeos com seus passos, postaram no youtube e começaram um duelo entre si que inspirou outros jovens a fazerem o mesmo. Desde 2008 outros vídeos com a dança começaram a proliferar no Youtube. Por meio das redes o Passinho ganhou projeção, disputou estética junto com outras linguagens da dança e mostrou que não era apenas uma modinha coreográfica, mas que estava ali para se afirmar enquanto cultura refletindo diferentes formas de existência e subjetividades. Além de ser um dispositivo com inúmeras possibilidades de empoderamento e visibilidade, as novas mídias tem aberto também espaço para novos formatos de atuação política e militância na favela. Um dia desses, numa conversa com um amigo morador do Complexo do Alemão ouvi o seguinte: “Durante muito tempo o que 23


sabiam sobre a favela era só o que aparecia na TV, nós vivíamos a realidade daqui, eles só sabiam do que passava na telinha. Agora é nossa vez de fazer nois por nois”, desabafou Raull Santiago, cria do Complexo do Alemão e integrante do coletivo Papo Reto. Papo Reto é um coletivo de comunicação independente composto por jovens moradores do Alemão e da Penha e tem como principal foco a comunicação dentro do morro: eventos, protestos, reivindicações. O principal canal de divulgação do coletivo e seus fazeres é a página no Facebook com mais de 2mil curtidas, além de um canal no Youtube e conta no Instagram. Tudo que acontece no território passa pelas lentes do Papo Reto que busca fazer uma cobertura diferente da mídia corporativa, uma espécie de: “do favelado para a própria favela” e “nois por nois”. O grupo começou pós junho 2013 embalado pelos protestos no Complexo do Alemão e indignados com a forma que a grande mídia criminalizava os movimentos sociais, principalmente os de favela, associando manifestante com bandido e manifestação na favela com quadrilha. Resolveram então fazer “NOIS POR NOIS”. Outro integrante do coletivo, Eduardo Coutinho, fala que sua câmera fotográfica é sua arma. Eles fazem cobertura colaborativa, transmissão ao vivo, produção de vídeos retratando a favela com o olhar de quem vive dentro e sabe suas alegrias, dores e conflitos.Todos os integrantes do coletivo possuem celular com android, a maioria tem máquina fotográfica profissional, tablet e conta no Facebook, Instagram e Twitter. Eles estão narrando suas próprias histórias e do seu território, se denominam como ativistas, militantes, comunicadores populares e independentes e se sentem participando e atuando nos processos políticos da cidade. To24

dos são favelados, eles continuam pisando nas valas nas vielas da favela mas, na mesma hora, a indignação vai para o Facebook. Quando ficam horas na fila para serem atendidos na UPA a reclamação se transforma num twitter para o prefeito. O tapa na cara do policial agora tá gravado e postado no Youtube e Instagram. A rotina não mudou muito, mas o formato da luta sim e junto com ela uma gama de novas possibilidades de mudança. A classe C tá comprando Iphone (sim!) mas não deixou de reivindicar seus direitos. O megaphone na rua se transformou num dispositivo bem mais elaborado. As lutas continuam se dando nas vielas, mas é nas redes sociais que o jovem favelado as significa. É no teclado que ele fala o que sente e pensa, é produzindo um vídeo que ele encontra uma forma de denunciar a má conduta do policial. É justamente no fluxo das redes e nas ruas que a favela reinventa sua forma de participar e lutar nos muros da cidade.


carolina de jesus 25


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ISOLADOS OU CADASTRADOS: os índios na era desenvolvimentista Texto por Oiara Bonilla e Artionka Capiberibe

“Dilma pensa que, para ficarmos bem, precisamos ter bens, chuveiro quente, casa de alvenaria. Nossa lógica e nosso modo de vida são outros: qualidade de vida para nós é liberdade, e liberdade é ter nossos territórios livres de ameaças e invasões para produzir sem destruir, como fazemos milenarmente.” - Sonia Bone Guajajara.

Marinalva Manoel, índia kaiowa de 28 anos de idade, foi encontrada no dia 1 de novembro de 2014, morta a facadas na beira da BR 163, no município de Dourados, Mato Grosso do Sul. Ela acabava de voltar de uma viagem à Brasília, com outras lideranças guarani e kaiowá, para denunciar a situação dos índios e de suas terras naquele estado, e exigir a retomada, pelo (novo) governo, dos processos de reconhecimento e demarcação de Terras Indígenas no país. Como em outros casos de morte de lideranças indígenas, este assassinato não foi bem esclarecido. Divulgado somente nos sites de notícias dos aliados da luta indígena, logo caiu em esquecimento. A morte de Marinalva veio se somar às mortes indígenas que crescem a cada dia e que, no entanto, não parecem sensibilizar a opinião pública. O que se vê é uma crescente banalização dessa realidade, assim como acontece em relação as inúmeras mortes violentas que ocorrem nas periferias e comunidades pobres do país.

tro cantos do país acumulam-se ataques como aqueles perpetrados contra a população Tenharim no Amazonas, quando os habitantes da cidade de Humaitá depredaram prédios públicos de serviços aos índios e ameaçaram invadir uma de suas aldeias; como os ataques e ameaças aos Tupinambá no sul da Bahia; como a desocupação pelas forças policiais do canteiro de Belo Monte no Pará ou da aldeia Maracanã no Rio de Janeiro e as desinstrusões truculentas operadas pela Polícia Federal e Força Nacional em terras retomadas por índios no Mato Grosso do Sul; como as invasões de terras por garimpeiros e madeireiros nas terras Yanomami no Amazonas e Roraima, Munduruku no Pará e Kaapor no Maranhão; como a criminalização em série de lideranças indígenas (Tenharim, Tupinambá, e mais recentemente Suruí do Pará) etc. Sem falar das violações de direitos e ameaças das quais também são alvo os aliados dos índios, aqueles que lhes dão visibilidade (ONGs, jornalistas, pesquisadores, agentes da FUNAI e do MPF).

Assiste-se impassivelmente a uma explosão de violência que atinge de forma cada vez mais direta e menos disfarçada os povos indígenas (é importante apontar que quilombolas, ribeirinhos e seringueiros, assim como pequenos agricultores que vivem nas fronteiras agrícolas do país tampouco são poupados) [1], nos qua-

Apesar de sua gravidade, acontecimentos deste gênero não costumam ser divulgados pelos grandes veículos de comunicação, ficando restritos a especialistas, apoiadores e simpatizantes da luta indígena. O desinteresse manifesto da grande mídia, sobretudo das redes de televisão, pelas questões de terra e populações tradiciona-

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Dia da criança em aldeia guarani de Paranhos (MS)

is remete a disputas econômicas. O índio que aparece, muito esporadicamente, é o índio “isolado” (aquele que recusa o contato com a sociedade nacional) ou de “recente contato”, que não tem chances de perturbar a ordem política e econômica do país e que atrai audiência pelo seu exotismo e pela imagem construída de espelho da nação, como se fossem os “verdadeiros” brasileiros, os únicos a quem se deve “preservar”. O aumento da violência direta e indireta contra os índios vem sendo denunciada sistematicamente pelas lideranças indígenas [2] e por seus aliados [3]. Não há como deixar de notar que esta violência tem como causa e consequência a invisibilidade, o isolamento e o silenciamento histórico impostos às populações indígenas. Isso é diretamente apontado pela socióloga e militante aymara Silvia Rivera Cusicanqui “as formas mais brutais de racismo quase sempre são guardadas, há formas sutis que se podem detectar na linguagem, no gesto, nas coisas relacionadas com a invisibilidade”. A ideia de invisibilidade não é nova, traduz a imposição colonial que, ainda hoje, os povos indígenas estão tentando romper. Não é preciso um grande esforço para perceber como ela é alimentada pela mídia e pelo próprio Estado.

Através da escola, dos manuais didáticos que expõem aos alunos uma imagem genérica de índio, enquanto suposto “componente” da democracia racial brasileira, a diversidade indígena é apagada, restando em seu lugar uma imagem pálida e própria ao desaparecimento. Além disso, é principalmente nos discursos e através das próprias políticas públicas que são desenhadas em função do mesmo formato genérico e uniformizador de alteridade que essa invisibilidade se acentua. A invisibilização da luta indígena e a violência consequente consolidam um desconhecimento que produz a indiferença generalizada em relação a essas questões. Isso tudo não é novidade, é apenas uma atualização do modo histórico de se tratar a diferença no Brasil. Os povos indígenas enfrentam, hoje, duas guerras entrelaçadas: a que mata na floresta e a que se trava nos corredores do Planalto. A violência ligada aos conflitos de terra e ao preconceito contra os povos indígenas, cada vez mais descarada [5], caminha junto com os retrocessos legais promovidos no âmbito do legislativo e do judiciário, isso é atestado pela quantidade crescente de processos, tentativas de projetos de lei e de emendas à Constituição que visam subtrair direitos adquiridos [6]. Esses retrocessos também são conduzidos pelo executivo 29


interessado em viabilizar e agilizar os grandes empreendimentos desenvolvimentistas do PAC, apresentados invariavelmente como incontornáveis e prioritários (usinas hidrelétricas e estradas, exploração de petróleo e gás, mineração, construção de novas usinas nucleares etc) [7]. A questão é: por que impactar a todo custo as terras indígenas para viabilizar um projeto nacional quando seria possível evitá-lo ? Essa pergunta vem sendo colocada pelos índios e por pesquisadores de várias áreas desde o caso mais gritante de Belo Monte e voltou a ser posta recentemente pela ex-presidente da FUNAI em relação à hidrelétrica de São Luiz do Tapajós (que vai alagar a terra indígena Munduruku, PA) ao explicar os motivos que a fizeram pedir exoneração do cargo [8]. A única resposta possível é a de que, do ponto de vista do Estado-Nação, isso sequer parece

ser uma questão, é como se os índios não fossem pessoas, povos, sujeitos com direitos e fundamentalmente com direito à diferença. Silenciados e invisibilizados são dessubjetivados e, assim, acabam sendo objetificados, i.e. passam a ser percebidos como “coisas”, meros “obstáculos” para o desenvolvimento. Com isso, lhes é vedado ocupar a posição de sujeitos e abre-se assim a possibilidade desenfreada das violações, desrespeitos e preconceitos de que são alvo. Há aqui uma afinidade com o movimento produzido na mídia, um processo duplo, de dessubjetivização das minorias, por um lado, e de apagamento de suas diferenças e particularidades, por outro. Isso não se dá por acaso, uma vez que a opção política dos últimos governos é a de transformar a questão da diferença e do direito à terra e à autodeterminação em um problema de

Mulher kaiowá recebendo cesta básica

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desigualdade social. Neste âmbito, o problema se resolveria com políticas públicas de assistencialismo e combate à pobreza através da inclusão dos índios em programas sociais (Programa Bolsa Família, Auxílio Maternidade, Programa Luz para Todos, Programa Nacional de Habitação Rural) e sua consequente transformação em potenciais consumidores. Na medida em que a política de demarcação de terras vai sendo abandonada, sobretudo a partir da segunda gestão do governo Lula, sobram aos índios estes programas assistencialistas, com visada universalista, que drenam sua população para as cidades e para a economia de mercado. O resultado disso é um crescimento da dependência socioeconômica dos povos indígenas em relação ao Estado e ao capital e, consequentemente, uma crescente intervenção dos governos nas dinâmicas sociais internas das aldeia. É o caso, por exemplo, das inúmeras questões relativas à infância guarani e kaiowá no Mato Grosso Sul, que hoje acabam sendo tratadas pelos assistentes sociais do governo cujo preparo é nulo para lidar com questões interculturais. A criminalização de lideranças indígenas que mencionamos acima participa do mesmo processo de neutralização da diferença. Criminalizando a luta dos índios e a ação de suas lideranças, o Estado e a grande mídia anulam sua especificidade e seu teor político. Assim, capturada pela lógica do Estado, a luta indígena é transformada em um movimento “criminoso” qualquer, banalizada, silenciada, dessubjetivizada, podendo ser mais facilmente retirada do cenário para abrir espaço ao desenvolvimentismo. Nessa longa história de violências, os anos 80

significaram uma vitória sem precedentes para a luta indígena, que se deu principalmente em prol do reconhecimento e da garantia de sua diferença, materializando-se com a inclusão de um capítulo na Constituição Federal que lhes garante direitos fundamentais. A partir desse momento, o Executivo passou a demarcar as terras indígenas, assegurando aos índios uma melhoria na sua qualidade de vida e relativa segurança enquanto povos autodeterminados. Um dos efeitos da segurança alcançada pela posse da Terra Indígena foi o crescimento da população indígena, fato que, por sua vez, pressionou diretamente interesses econômicos locais ligados à terra e à produção agropecuária, provocando nestes setores uma reação desmedida, que passou a se valer da desigualdade de forças para garantir seus privilégios. São esses interesses contrariados que, a partir dos anos 2000, vão mobilizar sistematicamente a mídia e os poderes do país contra os índios. Um exemplo cabal desse tipo de violência é o leilão, destinado a comprar armamento e contratar seguranças privados, realizado por fazendeiros em Campo Grande (MS), em 2013, contando com o apoio de dezenas de deputados estaduais e federais, do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) e da senadora Kátia Abreu (PMDB-TO), atualmente ministra da agricultura do governo Dilma Rousseff. Para garantir sua sobrevivência enquanto povos, os índios enfrentam hoje uma luta em duas frentes: por um lado, continuam fazendo face ao processo de invisibilização e de silenciamento para poder se afirmar como povos detentores de direitos diferenciados; por outro lado, lutam contra o projeto do Estado que visa transformar a diferença em desigualdade. 31


Há uma percepção generalizada de que o Brasil está revivendo uma onda bandeirante. Mas, hoje, o bandeirismo tem uma cara nova, continua considerando os índios como um empecilho ao desenvolvimento, mas o lugar que lhes concede dentro dessa ordem social é o de pobres comuns, jamais o de povos singulares e autodeterminados. Até aqui, estamos na mesma lógica que atravessou séculos, aquela que ao empobrecer e espoliar os índios de suas terras destinou-lhes apenas o estatuto de miseráveis. O Estado de hoje apresenta uma nova polarização às já bem conhecidas “cristão vs. pagão” e “civilizado vs. primitivo”, mais “sutil” que as políticas do passado, para ele parece haver duas únicas posições possíveis: o “índio isolado” e o índio do “Cadastro Único” (cadastro do Ministério do Desenvolvimento Social que “identifica e caracteriza as famílias de baixa renda”) . O destino desta posição é o da “inclusão social” cujo efeito inexorável é o do apagamento de suas diferenças e singularidades em benefício de uma nacionalidade-cidadania atrelada a uma condição social pré-definida. Colocando-se de forma assertiva como sujeitos e posicionando-se frente à indiferença paternalista dos governos e dos brancos, os índios rompem a invisibilidade e o silêncio aos quais estão confinados e exigem que sua posição de sujeito seja claramente enunciada. As retomadas de terras, as ocupações de oficinas em Brasília, de estradas, de canteiros de obras, do próprio Congresso Nacional, são meios para romper essa invisibilidade. Em setembro de 2013, os Guarani-Mbyá de São Paulo bloquearam a Rodovia dos Bandeirantes que atravessa suas terras, para exigir o reconhecimento legal destas e a suspensão de um projeto de revisão de seus limites. Simultaneamente, divulgaram um vídeo-manifesto no Youtube, realizado por jovens da aldeia onde explicam: “Fizemos isso, para vocês brancos, saberem que nós existimos!”. Em novem-

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bro de 2014, os Munduruku, ameaçados pelos projetos hidrelétricos do governo no rio Tapajós (e sistematicamente ignorados ao longo do processo), iniciaram a auto-demarcação de uma de suas terras que aguarda regularização há mais de 13 anos. Retomando e ocupando espaços, se apropriando de novas tecnologias e recursos midiáticos, adotam uma estratégia de des-invisibilização. A luta é por ter sua dignidade reconhecida, para que se possa enfrentar o inimigo, i.e., todo aquele que propõe e age ativamente para a eliminação dos modos de existência que não se enquadrem na ordem econômica, social, política e ambiental da chamada sociedade ocidental. A luta dos povos indígenas (assim como a das comunidades ditas tradicionais – quilombolas, seringueiros, ribeirinhos etc) é por garantir um espaço aberto à existência de modos diversos de ser e de estar no mundo. As demandas da luta indígena devem ser ouvidas não somente porque a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) preconiza em seu preâmbulo que “o reconhecimento da dignidade inerente a todos os membros da família humana e de seus direitos iguais e inalienáveis é o fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”, mas principalmente porque as populações indígenas estão sendo/ou serão afetadas por um modelo de desenvolvimento com o qual não estão de acordo, um modelo que impõe a predação do meio ambiental e que, com a lógica do consumo econômico nele embutido, leva à degradação do meio social. Viver, existir, para as populações indígenas é não separar cabalmente a natureza da cultura, é por isso que a terra é um valor tão importante. Essa noção surge nas várias versões daquilo que se chama de “bem viver” ou “viver bem”, um conceito que se apresenta de modo forte entre os povos


dos Andes (cujo termo vem do aymara, sumak quamaña, e do quechua, sumak kawsay), mas que é comum a diferentes saberes e tradições indígenas e que, no entanto, carrega uma multiplicidade de sentidos. Se não se pode separar a natureza da cultura, o humano tampouco pode reinar absoluto sobre a natureza. O “bem viver” é um ataque direto ao antropocentrismo da ontologia ocidental e ele não pode existir sem garantia da terra. A deslegitimização da luta indígena por meio da invisibilização e da criminalização de suas forças políticas não é novidade nem surpresa para ninguém, o que é novo aqui é a ação do Estado que, preocupado em tratar a pobreza como um problema e um conceito universal, termina por neutralizar a diferença e a diversidade, transformando-as em mera desigualdade social. A invisibilização somada à neutralização da diversidade favorece os esforços daqueles setores econômicos para quem a terra é, como diz Davi Kopenawa, “apenas um lugar do qual se arranca riqueza”.

Créditos das fotografias: Oiara Bonilla ______________________________________

[1] O caso de Nilcilene Miguel de Lima que, em 2012, viu-se obrigada a abandonar sua comunidade no sul de Lábrea (Amazonas) para não ser assassinada por grileiros e madeireiros ilegais da região é exemplar dessas situações, de como, mesmo sob proteção do Estado, a vida de algumas pessoas parece valer menos. Ver matéria jornalística aqui: http://apublica.org/2012/05/escolta-e-retirada-lider-amazonas-tem-deixar-sua-comunidade/ [2] Ver entrevista de Sônia Guajajara, uma das principais lideranças do movimento indígena: http://www.

bbc.co.uk/portuguese/noticias/2014/06/140607_ copa_indios_protestos_entrevista_rb

[3] O CIMI (Conselho Indigenista Missionário) vem denunciando sistematicamente a escalada da violência contra os índios, a nota pública que lançou em novembro de 2014 é bastante esclarecedora sobre os termos desta violência: http://www.cimi.org.br/site/pt-br/?system=news&action=read&id=7848 [4] Cf. entrevista completa em: http://bartolinas.blogspot.com.br/2011/05/entrevista-la-sociologa-silvia-rivera.html [5] Ver os pronunciamentos bélicos e difamatórios dos deputados Luiz Carlos Heinze (PPRS) e Alceu Moreira (PMDB-RS), ambos líderes da Frente Parlamentar da Agricultura: https:// www.youtube.com/watch?v=JAJRk8hH44I [6] Um quadro contendo projetos de lei, decretos e outros instrumentos legais relativos às populações indígenas, publicado em 2013 pela revista Brasil de Fato (http://www.brasildefato.com.br/node/26920), dá ideia do tipo de ataque aos direitos indígenas que vem sendo perpetrado sobretudo no Congresso Nacional. [7] Para um balanço geral dos projetos desenvolvimentista do Estado em terras indígenas e de seus efeitos nas populações impactadas ver: http://www.diplomatique.org.br/artigo. php?id=1308 [8] Ver entrevista completa em: http://apublica. org/2015/01/a-funai-esta-sendo-desvalorizada-e-sua-autonomia-totalmente-desconsiderada-diz-ex-presidente/

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hey jean-paul!

se liga na DR!

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simone de beauvoir 35


OS NOVOS MOVIMENTOS SE CONSTITUEM A PARTIR DE DIAGRAMAS (e não de programas) Por Tatiana Roque

Os protestos urbanos dos últimos anos irromperam, se irradiaram e se multiplicaram de modo diagramático. Não passaram por um programa político — consciência política ou representação — passaram muito mais por uma dimensão micropolítica, afetiva, existencial. Não se trata somente de uma ação espontânea. Houve a acusação de que os movimentos de junho não tinham pautas, o que sequer é verdade. Redução das tarifas, mais direitos e serviços públicos e desmilitarização da polícia são só alguns exemplos. Tudo começou por causa de 20 centavos. E foi uma reivindicação vitoriosa, sem que houvesse um programa por trás, reconhecido como tal pelas organizações tradicionais, os partidos ou sindicatos. Aliás, programas estão em desuso, basta constatar sua total irrelevância nas últimas eleições. Será que, diante disso, seria o caso de clamar por programas mais claros e definidos, como aqueles que delimitavam um campo de lutas há tempos atrás? Não sem atribuirmos uma nova significação política a tais programas. O diagrama é uma tentativa nessa direção e parte da constatação de que o capitalismo atual funciona como regime semiótico. 36

O capitalismo hoje investe pesado na produção de signos e na constituição de um sistema expressivo. O poder das marcas é um exemplo. E as marcas não são somente aquelas que expressam nitidamente o poder do capital, das grandes corporações e tal. Estamos imersos em um processo de produção de signos: nós também produzimos marcas, logos e palavras de ordem. O diagrama é uma maneira de pensar a repartição entre expressão e conteúdo sem passar pela representação, não apenas no nível político, mas no próprio âmbito da linguagem. Quando dizemos algo (por exemplo, “Não vai ter Copa!”) somos imediatamente interpelados a responder o que isso quer dizer. “Isso quer dizer aquilo” é um modo de repartir a expressão e o conteúdo. Um modo que toma o enunciado como mediação, nada além de um meio para alcançarmos o significado: “aquilo” que queremos dizer. Ao adotarmos esse regime expressivo, subscrevemos um mecanismo de representação. Não importa, em um primeiro momento, o que o “Não vai ter Copa” queria dizer. Idem para o “não nos representa”, “indignados”, “somos todos x ou y”, e tantos outros enunciados produzidos nos últimos movimentos ao redor do mundo. São expressões que produzem elos, que ligam pessoas (virtual ou fisicamente), que produzem mobili-


zações e protestos.

Uma dimensão pré-individual.

Esses elos, pontes, conexões, são produtos de ações diagramáticas, que se dão em uma dimensão invisível. Aqui, os estratos corporais e semióticos ainda não foram separados.

A lógica e a linguística escolhem bem seus exemplos para que essa dimensão fique em segundo plano. Se digo “tenho fome”, claro que isso quer dizer algo, parece bem simples de entender. Mas há enunciados que não são tão claros: se alguém diz “você está diferente…”, o que essa pessoa quer dizer? Que estou gorda? Com rugas? Não é possível saber antes de uma conversa (uma DR!). Nem seria preciso tomar uma fala tão subjetiva... Mesmo quando afirmamos que “a água ferve sempre a 100 graus”, estamos diante de um enunciado tornado relevante por uma certa visão de mundo, aquela que instaurou a ciência tal como praticada até hoje.

O diagrama ignora a distinção entre conteúdo e expressão. Falamos (e como!), produzimos uma infinidade de enunciados. A relação entre um enunciado e o que ele quer dizer depende da situação micropolítica em que tal enunciado se expressa. O diagrama diz respeito a graus de intensidade que pilotam a constituição de uma situação real. É impossível saber o que algo significa sem estar dentro da situação. Hoje, estamos atentos quando um homem vem dar lição de moral sobre movimentos feministas, um branco se posiciona contra uma luta dos negros, um hetero avalia as pautas LGBTs etc. O lugar de fala já é visto como algo importante. E há muitas variações, dependendo de casos ainda mais singulares. As feministas mostram os peitos e escrevem “somos todas vadias” sobre o próprio corpo. Entendo plenamente o sentido dessa inversão, que acho potente. Mas há mulheres negras que contestam sua universalidade, pois não reconhecem em sua afirmação como vadias um movimento de emancipação em relação ao lugar que lhes é atribuído. Claro que qualquer enunciado está inserido em um contexto, parte de uma posição social. Isso já sabemos. O que dizemos aqui está em uma dimensão ainda mais micro, mais sutil. Normalmente não prestamos muita atenção a este âmbito de coisas, no qual a subjetividade ainda não está formada, no qual o indivíduo não é uma unidade de conhecimento ou de afeto.

Não há nada que “queira dizer” algo sem que se passe por agenciamentos, por relações de força, que esclarecem ou obscurecem o que é dito, que tornam o enunciado relevante ou sem importância. São essas relações de força que fazem com que a significação funcione, não há nada de arbitrário nesse processo. A diagramática é uma recusa de rebater a enunciação sobre os enunciados, requer uma atenção constante às relações de força que estão em jogo, aos agenciamentos, às ligações que se produzem. O diagrama é um mapa das relações de força que se encarnam em situações concretas. Ordenar, aconselhar, prometer, dar a palavra, elogiar, levar a sério ou na brincadeira, tirar sarro, são ações diagramáticas que fazem com que a máquina expressiva se coloque em marcha. Essas ações conectam, ao mesmo tempo, as expressões e os corpos. Os enunciados (em palavras, imagens ou o que quer que seja) são flechas lançadas ao vento. 37


Digo algo e isso me aproxima (ou me afasta) de alguém. Um acontecimento se produz tanto na dimensão da expressão quanto na dos corpos, ao mesmo tempo. E assim captamos o sentido daquilo que é dito.

o coletivo. Um movimento se constitui a partir da recusa de interiorizar essa divisão, pois todo o incômodo que parecia emergir do individual (familiar, conjugal, psíquico) passa a se ligar a outras questões nada individuais (étnicas, raciais, sexuais, estéticas).

Pois bem, finalmente, começo a falar da relevância política disso tudo... Acredito que uma Há, contudo, uma outra maneira pela qual o reflexão desse tipo é necessária se quisermos capitalismo codifica as formações sociais de pensar os novos tipos de orgamodo a integrá-las em sua nização capazes de reconstruir a própria dinâmica: por meio da luta política (em crise). E principrodução do isolamento e da Parece impossível, palmente se quisermos entendfragmentação. O capitalismo hoje, não questioner os modos como o capitalismo pode até tolerar a dimensão ar por meio de qual se insere (sorrateiramente) nos coletiva e política das questões recorte podemos próprios movimentos que deseque preocupam uma minoria, definir o antagonisjam combatê-lo. contanto que ela não se conecte mo das lutas. a outras minorias, a coordenaParece impossível, hoje, não das transversais, ou seja, a luquestionar por meio de qual tas que parecem estrangeiras a uma determinada minoria. Isso leva alguns recorte podemos definir o antagonismo das lugrupos a enxergarem suas reivindicações como tas. O recorte de classe parece não dar conta parte da esfera interna, como problemas que só (ao menos não por si só) da definição do sujeito concernem àquela comunidade. O capitalismo revolucionário. Por outro lado, há inúmeros lida muito bem com demandas minoritárias que movimentos sociais, movimentos de minorias sejam bem estabelecidas, que possam ser codique parecem potentes, mas muito fragmentaficadas, que tenham um estatuto particular. dos. As divisões chegam a assustar, dentro de uma mesma luta de minoria há fraturas que Claro que não mobilizaremos nenhuma força parecem irreconciliáveis. subjetiva renunciando à singularidade de cada grupo social. Mas também não dá pra comPor isso, insistirei sobre o tema das conexões, bater o cinismo capitalista entrando no gueto, a necessidade de um cuidado das conexões. E falando somente uma língua particular. É sim, claro que aqui não se tratam das conexões com usando muito do gueto, de sua sensibilidade fio ou sem fio que estabelecemos todos os dias e seu dialetos próprios, mas para conectá-los, pela rede. Falo dos laços que ligam movimentos para ligá-los a outras lutas. Talvez só assim conde tipos diferentes, organizados a partir de insigamos inventar um devir autônomo impreteresses e problemas diversos. visível, passando por conexões transversais entre atores diferentes, lutas transnacionais. Uma Uma maneira pela qual o capitalismo codifica as nova internacional. formações sociais é o corte entre o individual e 38


Depois de junho, os momentos de maior potência dos movimentos foram aqueles em que diferentes lutas se encontraram, produzindo mobilizações imprevisíveis (professores e black blocs; garis e movimentos culturais).

Precisamos urgente de novos parâmetros para avaliar, de modo imanente, a efetividade das lutas e das organizações desse ponto de vista. Que modos de existência elas propõem? Que modos elas encarnam? Qual o potencial de conexão dos problemas que colocam e das reivindicações que trazem? O critério dessa avaliação é a aptidão para conectarmo-nos com outras lutas, para ligar nossos problemas aos problemas de outros, ainda que muito distintos do ponto de vista das identidades. Não dispensamos sequer uma boa DR: “não foi bem isso que eu quis dizer” é a fala recorrente em uma boa discussão de relação, na qual os lugares se rearrumam, os elos (porventura machucados) se recompõem. Falar outra língua, não só a nossa. Manter uma variação contínua que não pare de ultrapassar o padrão majoritário. Criar uma figura universal da consciência minoritária, uma nova internacional, de tipo diagramático. Linhas e traços que constituem o que há de minoritário em todo mundo, em oposição aos princípios majoritários de funcionamento do capitalismo. Incrível como deixamos de lado o antagonismo em relação aos mecanismos sutis do capitalismo (como se fosse uma fatalidade intransponível) e, ao mesmo tempo, reforçamos os antagonismos entre as diferentes formas de

luta. Estamos sempre na defensiva... O capitalismo tem uma vontade deliberada de fixar, de barrar os fluxos, de substituir seus princípios de funcionamento às ações diagramáticas que procuram escapar, fugir pelas beiras. Tal seria a função de uma política diagramática: operar por relações transversais entre problemas distintos, a fim de barrar o modo como o capitalismo codifica as relações sociais para integrá-las, para fazê-las funcionar ao seu modo e para os seus interesses. Trabalhar em termos de diagrama é desenvolver uma heterogeneidade de posições. Posições de grupo, posições sociais e mesmo posições em relação a si mesmo. A dimensão diagramática é a dimensão do possível que emerge de uma ruptura política. O que vivemos em junho pode ter sido dessa ordem, o desbloqueio de um possível. Como o possível nunca está dado de antemão, não se exprime pelas forças políticas existentes, é somente um começo, algo que modifica a subjetividade, faznos vislumbrar novos caminhos, ainda que a sociedade e as instituições continuem as mesmas. O próximo passo é saber como esta mudança pode mudar também a sociedade, e aqui o problema do programa e do projeto aparecem novamente, mas inseparável do regime diagramático. Que movimentos e que novas formas de luta seremos capazes de criar? Nenhuma instituição existente pode ajudar a responder. Nenhum governo ou partido. Só um trabalho constante pela constituição de máquinas revolucionárias, políticas, teóricas, libidinais, estéticas...

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hannah arendt 41


ALGORITMO DA FELICIDADE Por Fernanda Bruno

A felicidade, sabemos, é uma armadilha. Prometida, doada, vendida, revelada, conquistada, sob prescrição médica, entregue a domicílio, de volta em três dias, em vida ou após a morte, ela é a isca sempre relançada a fiéis, consumidores, pacientes, enamorados, trabalhadores, intelectuais, espectadores, internautas etc. “Parece-me que eu estaria sempre bem aí onde não estou” (Baudelaire). O Facebook não poderia estar fora dessa. E nos apresenta, sem trair a sua duvidosa reputação, a sua versão da felicidade. Em meados de 2014, veio a público um controverso experimento realizado pela rede social e amplamente contestado por toda parte na web, de sites e colunas especializadas de grandes jornais a blogs e postagens no próprio Facebook e outras redes sociais. O experimento consistiu em manipular, ao longo de uma semana, o feed de notícias de quase 700 mil usuários, sem seu conhecimento, dividindo-os em dois grupos, diferenciados pelo tipo de ‘conteúdo emocional’ visualizado. Um dos grupos recebeu em seu feed um filtro que reduzia os conteúdos emocionalmente positivos e o outro teve redução dos conteúdos emocionalmente negativos. Deste modo, o primeiro visualizou mais conteúdos negativos e o segundo mais conteúdos positivos (tristes e felizes, respectivamente, segundo os parâmetros do experimento). O propósito alegado era saber se o humor ou es-

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tado emocional desses grupos seria ‘contaminado’ pelo conteúdo visualizado no feed. Para tanto, as atualizações de status desses mesmos usuários foram monitoradas. Os resultados do experimento foram publicados na revista científica Proceedings of the National Academy Sciences, sob o título “Evidência experimental de contágio emocional em escala massiva através de redes sociais” . Segundo os autores do artigo, a hipótese do contágio emocional teria sido confirmada pelo experimento. Isto é: os usuários reproduziram, em suas atualizações de status, o estado emocional preponderante em seus feeds: tristes ou felizes, conforme os grupos. Vale dizer que o maior impacto do experimento consistiu no tamanho da amostra, supostamente a maior da história dos experimentos psicológicos, e não tanto nos efeitos mensurados, considerados estatisticamente baixos. Contudo, o que interessa discutir aqui não é a validade científica do experimento, mas sim o que ele nos revela sobre o Facebook e o controle algorítmico que pretende exercer sobre nossos afetos e nossa atenção. A controvérsia em torno do experimento envolveu, em linhas gerais, dois tipos de reação: aquela que denunciava uma falha na observação do código de ética por parte dos cientistas que participaram do experimento e aquela que procurava mostrar a


falta de transparência e escrúpulos do Facebook com os seus usuários. O foco, em ambos os casos, era a manipulação do conteúdo do feed de notícias dos usuários sem o seu devido conhecimento e consentimento. No caso da pesquisa científica com humanos, tal prática é eticamente condenada, uma vez que o consentimento informado seria claramente necessário no caso do experimento. No caso de empresas como o Facebook, o problema ético seria mais vago, uma vez que não há regulação precisa a este respeito e, do ponto de vista jurídico, a prática seria aceitável, uma vez que os termos de uso da rede social, que todos nós aceitamos sem ler ao ingressar nela, prevê o uso de nossos perfis e dados para pesquisa e outros fins . As duas críticas são obviamente pertinentes e podem se desdobrar em muitas questões relevantes sobre as relações complexas entre a ciência, o mercado, o marketing e os investimentos afetivos, cognitivos e subjetivos nas redes sociais e nos atrativos científicos e monetários do Big Data. De algum modo, contudo, parte significativa do debate acerca do experimento traçava uma linha demasiadamente forte entre a prática científica e a prática empresarial, sob o argumento de que, uma vez ingressando no território da ciência, o cuidado e os limites éticos não poderiam ser franqueados. Ora, há pelo menos três problemas neste argumento: a) supõe que, se estamos fazendo negócios, não precisamos levar tão a sério os limites éticos de nossas ações; b) faz parecer que a ciência seria o domínio da segurança e da transparência ética, o que é no mínimo controverso; c) aposta numa separação muito nítida entre esses dois domínios – a prática científica e a prática empresarial – o que é cada vez menos evidente em diversos âmbitos, especialmente no campo das pesquisas sobre dados e comportamentos on-line (sejam elas científicas ou mercadológicas). Ainda que seja importante questionar os prob-

lemas éticos envolvidos nas alianças entre o Facebook, os cientistas, suas universidades, laboratórios e a revista acadêmica que publicou o artigo sobre o experimento, o problema é bem mais amplo do que uma falha ética dos cientistas e das instituições envolvidas. Voltando ao nosso foco de interesse, o experimento e toda a controvérsia que ele gerou é uma ocasião para compreendermos o próprio Laboratório-Facebook. Um aspecto relatado no artigo, ainda que de modo secundário, nos aproxima do que interessa: além de confirmada a hipótese do contágio, notou-se que os usuários expostos a ‘notícias’ com conteúdo emocional são mais ativos e engajados na rede social. O Facebook, ao que parece, deseja saber, através desse e outros experimentos, o que torna seus usuários mais atentos e ativos, o que os faz voltar à rede mais e mais vezes e, preferivelmente, jamais sair dela. As declarações da empresa na ocasião dos calorosos debates em torno do experimento deixam clara esta motivação: “Nós sentimos que era importante investigar a preocupação corrente de que a visualização de amigos postando conteúdos positivos leva pessoas a se sentirem mal ou a sair do Facebook. Ao mesmo tempo, estávamos preocupados com o fato de que a exposição à negatividade dos amigos poderia levar as pessoas a evitar visitar o Facebook. Nós não declaramos claramente as nossas motivações no artigo.“ Pesquisas anteriores, mencionadas no artigo, indicavam que a exposição à felicidade dos outros nas redes sociais on-line produziria estados depressivos nos usuários que, por efeito de comparação, sentiriam-se “sozinhos juntos” (alone together ). A direção do Facebook temia que a

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alegria ou felicidade de tantos gerasse a tristeza ou infelicidade de outros montes de usuários; temia que estes, ao se sentirem tristes, indignados, irritados ou chateados, se desconectassem da rede ou não voltassem com tanta frequência. Também temia, por outro lado, como declarou Adam Kramer, pesquisador do Facebook e co-autor do artigo, que a visualização de conteúdos emocionalmente negativos levasse os usuários a afastarem-se da rede social.

do tivesse sido solicitado. O problema, contudo, não para aí e tem um alcance muito maior do que o experimento tomado isoladamente. De fato, o experimento serve para abrir a caixa-preta do Facebook, ainda que timidamente, e explicitar não um feito extraordinário ou uma situação de exceção, mas o pão nosso de cada dia nesta rede social. Todos sabem, ou deveriam saber, que é procedimento padrão do Facebook filtrar nosso feed de notícias de modo a visualizarmos, em média, enPara a felicidade de todos, os tre 1.500 itens possíveis, apenas Entretanto, é resultados do experimento re300, escolhidos segundo critériexatamente aí que cusaram a tese da pesquisa os absolutamente obscuros. se expõe o maior mencionada e mostraram que Os usuários não foram cobaias problema: no próprio o engajamento e a atividade na por uma semana apenas. O fato de o Facebook rede, bem como o contágio emoFacebook é um laboratório que desejar nos fazer cional, valiam tanto para conteúfunciona ininterruptamente e felizes. dos negativos quanto positivos. os seus experimentos operam Havendo emoção, seja ela posicotidianamente e em cascata, levando em conta cada curtida, cada clique, cada tiva ou negativa, os usuários mantêm-se ativos, compartilhamento, cada palavra que digitamos e atentos, engajados, conectados. Todos podemos mesmo aquelas que apagamos . Não podemos ficar tranquilos. Afinal, sugere o Sr. Kramer, por dizer que é um laboratório a céu aberto porque que um experimento que objetiva, no fim das apenas as cobaias, ou sujeitos (para usarmos a contas, assegurar a felicidade e o bom humor linguagem cientificamente correta da pesquisa dos usuários, gerou tanta reação negativa? Nas experimental aplicada a humanos) estão expossuas palavras: “In hindsight, the research benetos. Os instrumentos, os algoritmos, os critérios, fits of the paper may not have justified all of this as variáveis, os propósitos, as bases de dados anxiety.” estão confinadas na caixa-preta, mas interferem diretamente em toda paisagem informacional, O Sr. Kramer sugere que, uma vez esclarecido afetiva, cognitiva e política de nossas ações e que o experimento visava o nosso bem e a nosconexões dentro e parcialmente fora do Facesa felicidade, o problema estaria resolvido. Enbook. Esta situação, extremamente assimétrica, tretanto, é exatamente aí que se expõe o maior já é um imenso problema, e o fato de estar preproblema: no próprio fato de o Facebook desevista nos termos de uso que aceitamos voluntarjar nos fazer felizes. Este é o ponto a questioniamente não o torna menor. O experimento nos ar. Grande parte das críticas ao experimento, ajuda a perceber que o laboratório está em toda muitas bastante contundentes, não tocam neste parte e ultrapassa os limites da pesquisa científiponto. Parecem supor que não haveria maiores ca e suas regulamentações. Mostra que uma das problema em jogo se o consentimento informa-

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astúcias do Facebook (e inúmeras outras empresas do big data) é explorar essas zonas de incerteza entre o voluntário (aceitamos os termos) e o involuntário (não sabemos os critérios nem os fins dos termos que aceitamos); o comercial (o Facebook é uma empresa, logo, não devemos exigir dela os códigos de conduta que se aplicam à ciência) e o científico (os serviços prestados pela empresa dependem de experimentos científicos para se aprimorar e a ciência depende do Facebook para ter dados ao mesmo tempo robustos e qualitativamente expressivos); a manipulação e o consentimento; a vida ordinária e o laboratório; a máxima exposição (dos usuários) e o segredo (das regras e critérios da empresa) etc. Nota-se facilmente os inúmeros problemas em jogo, mas retomemos o nosso ponto de partida e a uma das principais motivações do experimento que nos trouxe até aqui. A felicidade algorítmica que o Facebook pretende nos oferecer. Este talvez seja o elemento mais ‘escandaloso’ de toda essa história. Importante dizer que o problema não é a de uma suposta falsa felicidade ou das verdadeiras intenções do Facebook, que seriam outras, voltadas para o crescimento exponencial de sua moeda. Estas constatações podem fazer supor que haveria um bom modo de o Facebook nos fazer felizes, o que mais uma vez esconde o problema. Partamos do princípio, colocado logo na abertura deste texto, de que toda oferta de felicidade é um engodo e tentemos entender o modo próprio de o Facebook fazer isso, o que nos ajuda a compreender parte da nossa dinâmica afetiva e cognitiva nas redes sociais online. Vimos que o importante no Laboratório-Facebook é manter seus sujeitos maximamente ativos, engajados, conectados. Todos os experi-

mentos e aprimorações dos serviços, aí incluído o que vemos em nosso feed e o modo como nossas atualizações de status são vistas pelos nossos amigos, procuram modular nossa atenção e nossos afetos de modo a garantir mais dedicação à rede social. É muito fácil perceber, por exemplo, que usuários muito ativos e dedicados são ‘recompensados’ com mais visualizações e, consequentemente, mais compartilhamentos e curtidas, o que por sua vez alimenta a sua atividade. Qualquer um que fizer a experiência de ficar fora da rede um tempo razoável perceberá, no seu retorno, uma queda nas curtidas bem como notará com estranheza o seu feed, que te parecerá pouco familiar. Não se preocupe, não há nada de errado com você, mas o algoritmo da felicidade pune (ou, na melhor das hipóteses, fica fora de forma) aqueles que não o alimentam como ele deseja. O investimento do Facebook em promover estados afetivos – seja ele a felicidade ou cargas emocionais fortes – que aumentem o engajamento dos usuários torna ainda mais evidente algo bastante óbvio e já sabido que é o primado do compartilhamento. O que importa não é a felicidade ou outro estado emocional, mas qualquer motor que implusione o fluxo da produção e circulação de informações sobre nossos modos de vida, nossos humores, desejos, e que formam a mina de que se alimentam essas corporações. Se a felicidade aumenta a atividade, a atenção e o engajamento na rede, então, que se promova a felicidade, pois com ela sobe também o volume, a captura, a mineração e todas as transações comerciais, políticas, cognitivas com os nossos dados. Isso por sua vez alimenta mais e mais pesquisas e testes no laboratório e assim tudo vai bem. Só não vale ser feliz sem compartilhar! E esta não é apenas a perspectiva do Facebook; todos sabe-

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mos que ela vale também para cada um de nós, em maior ou menor medida, e que nossos investimentos afetivos nesta rede social são modulados também por isso, ainda que, claro, não se esgote aí. E pouco importa que as emoções compartilhadas sejam verídicas, falsas, editadas, selecionadas. Não é disso que se trata, mas sim de perceber este modo sutil de controle, exemplar do capitalismo contemporâneo, que se alimenta de nossos afetos, nosso ‘engajamento’ emocional e cognitivo, nossa ‘devoção’. Lembremos que os nexos entre o poder e a gestão ou capitalização dos afetos e da felicidade não são um privilégio do Facebook. Estes nexos têm uma longa história no Ocidente, do poder pastoral às indústrias do consumo, da saúde física e mental, do espetáculo e as mais recentes formas da felicidade tecnologicamente assistida, passando pela grande mídia, a publicidade, as redes sociais etc. Se tomarmos um exemplo mais remoto, o poder pastoral, lembramos que os investimentos na relação entre o exercício do poder e a gestão da felicidade estavam atrelados, como propõe Foucault, a práticas confessionais e a relatos sobre a vida íntima, endereçados ao pastor, que dirigia a consciência e a culpa dos fiéis. Tudo isso passava por um forte, e por vezes penoso, trabalho que o indivíduo deveria fazer sobre si. Agora, os algoritmos do Facebook pretendem gerir a felicidade e as emoções sem que os indivíduos em questão sequer tomem conhecimento disso. O controle algorítmico da felicidade importa pelos seus resultados: mais e mais compartilhamentos, mais e mais dados, mais e mais perfis, mais e mais atividade e conexão em modo non stop. Trata-se, para usar uma expressão do futebol, de uma felicidade de resultados.

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Esse controle algorítmico, especialmente no Facebook, mobiliza as subjetividades de um modo bastante distinto do poder pastoral, ainda que possa encontrar nele uma linhagem histórica. E esta mobilização está ainda por ser entendida, assim como as resistências a esse controle estão por ser inventadas. Se considerarmos a dimensão laboratorial, seria fundamental reduzir, em diversos níveis, a assimetria que apontamos acima. Mais transparência e abertura dos dados, critérios, parâmetros e algoritmos é fundamental para que este laboratório se torne um espaço de maior autonomia para os usuários. E isso não vale apenas, diga-se, para a pesquisa dita ‘de mercado’, mas também para a pesquisa científica, cujos métodos experimentais merecem ser problematizados de modo a ampliar as margens de negociação com seus sujeitos, como bem propõe Vinciene Despret. O princípio de que os sujeitos, para serem bem conhecidos, devem ignorar ou ser inteiramente excluídos da definição dos parâmetros da pesquisa, vale mais para reforçar as redes de poder da ciência e dos laboratórios-empresa online do que para produzir um conhecimento suficientemente complexo acerca de nós mesmos. Tal revisão dos parâmetros laboratoriais é tão mais urgente quando tal conhecimento modula significativamente o nosso campo de ação individual e coletiva. Esta negociação, contudo, talvez seja demasiadamente utópica. Restaria ainda fabular outras táticas. Aprendemos a driblar e contestar nossos pastores, pais, educadores, médicos e toda sorte de pretensos diretores de consciência. Imaginar uma sabotagem coletiva do controle algorítmico da felicidade no Facebook é uma bela tarefa.


beloved by DR

toni morrison 47


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virginia woolf 49


“HÁ UM PÁSSARO AZUL EM MEU PEITO” Texto por Ana Lucia Enne

O “fardo da história”... Taí um peso injusto para as juventudes contemporâneas. Os chamados “jovens” são acusados de serem alienados, apolitizados, consumistas, viciados em tecnologia, individualistas, narcisistas, pouco solidários... A comparação é emblemática: o parâmetro são os “jovens” de 1968 e adjacências temporais. Enfrentando os poderes instituídos. Exigindo democracia e participação na universidade. Desafiando os governos ditatoriais, os modelos sociais e culturais repressores. Evidentemente, sou fã da geração da contracultura. Dos estudantes que tomaram as universidades e exigiram mais horizontalidade. Dos jovens que revolucionaram a música. Que colocaram o corpo em evidência. Mais prazer, mais sexo, mais verbo, mais verso. Que preencheram muros, confeccionaram cartazes, deixaram o cabelo crescer, criaram movimentos múltiplos, enfrentaram séculos de sociedade “adulta”, conservadora, que chegou na metade do século XX baseada no tripé família-escola-estado para enquadrar seus jovens, moldá-los, transformá-los em adultos conformados e responsáveis. Gerações de jovens, dos mais diversos lugares, das mais diversas matrizes culturais, étnicas, raciais, de gênero e de classe, enfrentaram preconceitos, foram se colocando como protagonistas de suas histórias e mudaram o mundo, que não foi mais o mesmo após os

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anos 1960. Mas acho que precisamos complexificar nosso olhar sobre os processos de constituição do que chamamos de “juventude” e “jovens”, para evitarmos simplificações que não nos ajudam a compreender as múltiplas formas de atuação e conformação de sentidos em torno desse tema. Escrevi um artigo mais detalhado sobre isso, caso alguém se interesse (http://revistacmc.espm.br/ index.php/revistacmc/article/view/203). Nele argumento que juventude foi um “espírito do tempo” da modernidade ocidental antes de mesmo de ser encarnado por um sujeito histórico, no caso o “próprio” jovem no sentido biológico, atrelado a determinadas faixas etárias e condições históricas (mais precisamente, a chamada “moratória social”, ou seja, não ter constituído sua própria família, não precisar ainda se sustentar, ter maior flexibilidade em termos de compromissos sociais para poder experimentar, escolher caminhos, montar trajetórias, indicando claramente um recorte de classe, pois estamos falando do jovem de classe média da modernidade ocidental). A partir de meados do século XX, em especial no contexto do pós Segunda Guerra, esse espírito do tempo é incorporado por estes sujeitos concretos, os “jovens”, dentro do recorte que indico acima, estabelecendo, a partir de suas performances, a concepção da juventude como um “estilo de vida”, em que alguns elementos ocupam papel central, por vezes complementares,


em outras contraditórios. Assim, o estilo de vida “jovem” envolveria descompromisso, hedonismo, imaturidade, irreverência, sexualidade, inconformismo, rebeldia, busca por experiências novas, vontade de mudar o mundo, tendência gregária e também busca por individualização, dentre outras características. O chamado “mundo adulto” manteve, frente a essa polissemia, reações também polissêmicas, a partir do momento em que o “jovem”, enquanto ser social, entrou pra valer em cena. A rebeldia juvenil, por exemplo, pode ser tanto percebida como ameaça, devendo ser reprimida; quanto como elemento político fundamental para a mudança, devendo ser valorizada. Já o caráter infantilizado, principalmente relacionado à irreverência e ao consumo, inicialmente foi classificado como algo negativo, a ser superado pelo jovem a medida em que fosse amadurecendo.

O que aconteceu depois, que batizei de um novo “espírito do tempo”, este da pós-modernidade, é complexo. Por um lado, os chamados adultos, em termos de faixa etária, abraçaram pra valer o hedonismo juvenil e todas as suas atribuições: prazer a todo custo, “curtir a vida adoidado”, descompromisso, irreverência, prorrogação da “moratória social” e construção de identidades via consumo e sob a batuta da hegemonia do capital. Como demonstraram diversos autores que se debruçaram sobre o tema, na contemporaneidade globalizada “quase todo mundo quer se manter jovem independentemente da idade”. E ser jovem, neste sentido, é estar atrelado aos valores do hedonismo que há cinquenta anos eram objeto de crítica. E o caráter crítico, contestador, rebelde daquele jovem da geração anos 60/70? Bem, esse lado os “adultos” dispensam, obrigado. Mas cobram. De quem? Dos jovens da geração atual, desse início do século XXI. É o tal “fardo da história” a que me refiro no início desse

artigo. Todo mundo quer aproveitar a vida em uma “eterna juventude”, mas quer que somente os jovens se mostrem críticos, não alienados, compromissados com as mudanças, enfrentando os poderes instituídos, indo pras ruas, fazendo a revolução. Convenhamos, é meio cara de pau. Mas o que acontece hoje, nas análises generalistas às práticas juvenis, é mais grave ainda, a meu ver, do que defender o direito ao próprio gozo juvenil eterno enquanto cobra-se do outro, o mais jovem em termos de idade, que seja menos “jovem” em termos de “espírito do tempo” e carregue o fardo da história, fazendo a luta. Isso já seria o bastante para exigir de nós releituras críticas e inversões dos ângulos dos dedos acusatórios. Como professora universitária há vinte anos, convivendo diariamente com jovens de nosso tempo, dentro do perfil de classe que indico acima, sei o quanto é injusto com eles esse “fardo” unilateral depositado em suas costas, vindo de quem suga da ideia de juventude o que lhe apetece (descompromisso, hedonismo, irreverência, consumo, alienação etc.), mas que ao mesmo tempo acusa seus modelos inspiradores por aquilo que ele mesmo não faz, que é comprometer-se, lutar, buscar mudanças, não se conformar. Isso, este é um de meus argumentos, já seria suficientemente grave e injusto, tanto pelo que argumentei até aqui, mas também porque, embora não constituam hoje um bloco hegemônico, muitos jovens de classe média estão nas ruas, nas universidades e na vida lutando e muito. Mas há algo ainda mais complexo neste processo. Trata-se do apagamento da ação cotidiana de criatividade e resistência de milhares de jovens que não se encaixam no perfil de classe média, não contam com moratória social, que enfrentam situações adversas no dia-a-dia, que têm pouca margem para a alienação e o hedonismo, e que são protagonistas em processos de

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luta de enorme riqueza e complexidade. tA hegemonia faz, então, um enquadramento doloroso, quando acusa a juventude classe média de ser alienada enquanto se locupleta dos mesmos signos de alienação para sua eterna juvenilização e não leva em conta que existem jovens, dentro deste recorte de classe, que não querem esse modelo de vida consumista e celebrador da desigualdade; e um apagamento criminoso, quando não considera, em suas análises sobre a atuação política das juventudes contemporâneas, aquela construída e vivenciada por jovens em situação de desigualdade econômica, que vivem em locais estigmatizados, enfrentando situações cotidianas de opressão nos mais diversos níveis, do mais materializado ao mais simbólico, e que mesmo assim estão na luta, não desistem, enfrentam, elaboram metodologias, táticas, astúcias, dão seu jeito. Se sou fã dos jovens da contracultura dos anos 60, sou ainda mais fã dos jovens que também lutam pela e na cultura neste nosso século XXI. A cada vez que convivo com coletivos, organismos, redes criadas por esses jovens, aprendo muito, em primeiro lugar. Fico boba ao ver como a juventude submetida a situações absurdas de opressão consegue dar nó em pingo d’água e criar, conferir sentido, lutar, exigir seu direito a significar. Como aprendi quando os vi/ouvi partilhando suas experiências, nas suas práticas esses agentes têm que saber lidar com pressões de todos os lados, seja do poder instituído, forças repressoras diretas ou simbólicas do Estado, que se sentem incomodadas (incluindo aí parte da academia, que deveria ser parceira incondicional, a meu ver); seja daqueles que estão agindo fora das margens da legalidade; seja dos moradores, parentes, amigos, que temem por suas 52

Não é fácil. Mas eles estão lá, montando redes de comunicação, propondo novas práticas de significação, exigindo vocalidade e visibilidade, reivindicando protagonismo, denunciando, colocando as versões na disputa, complexificando a realidade, apresentando outros pontos de vista. Lutando, enfim. vidas, segurança, “melhor deixar quieto”, que se preocupam com seu futuro, “por que você não arruma um emprego em vez de ficar aí sonhando?”, que por vezes desacreditam e desdenham de suas ações, formas difusas e por vezes muito duras de repressão e desencorajamento. Além disso, recursos são escassos, parcerias voláteis, necessidades diárias de sobrevivência constantes. São muitas frentes para serem encaradas. Não é fácil. Mas eles estão lá, montando redes de comunicação, propondo novas práticas de significação, exigindo vocalidade e visibilidade, reivindicando protagonismo, denunciando, colocando as versões na disputa, complexificando a realidade, apresentando outros pontos de vista. Lutando, enfim. Poderia dar muitos exemplos de ações de jovens de setores populares que aliam vontade de transformar o mundo, necessidade de agir politicamente e acesso a novas tecnologias de comunicação e informação para criarem poderosas redes de atuação. Preferi não listar nominalmente ninguém para não ser injusta, porque são tantos que não caberia no espaço que tenho neste artigo e sempre correria o risco de deixar de fora


alguns que merecem a mesma admiração e destaque. Prefiro falar de forma genérica de suas práticas de cultura e comunicação, suas formas de organização e enfrentamento, elegendo alguns eixos que os aproximam. Em primeiro lugar, a utilização das ferramentas de comunicação e informação, tanto analógicas, mas principalmente as digitais, para suas ações. Também, a preocupação em discutir os limites, ganhos e problemas da institucionalização, de atuar em redes mais fluidas ou se consolidarem como instituição com CNPJ e outros recursos burocráticos que os empoderem em termos de disputas dos recursos. Também os aproxima a criatividade para lidar com a falta de políticas públicas efetivas para suas iniciativas, sua preocupação em ocupar espaços denegridos ou preteridos, como ruas, praças, áreas estigmatizadas. Sua vontade de partilhar, mudar, fazer acontecer são de uma generosidade que comove. Mas para além desses pontos de intercessão, são múltiplos, complexos, por vezes contraditórios, compondo um mosaico de possibilidades de uma riqueza que deveria nos entusiasmar e contagiar a todos. Porque não há como não aprender com eles. Eu aprendo sempre e sou sempre bem recebida para também partilhar, trocar, ensinar. Fazem cineclubes. Realizam mostras. Intervenções urbanas. Projetos de formação. Sites, blogs, páginas nas redes sociais que movimentam milhares de pessoas. Filmes. Shows. Oficinas. Eventos literários. Parcerias inúmeras. Dançam. Grafitam. Provocam. Promovem debates. Organizam protestos. São vitais e virais. Contagiam. Em 2013, quando pipocaram as manifestações de protestos nas ruas, tive um sonho muito significativo, que partilhei nas redes na época. Nele, eu estava dentro de um carro, em um

engarrafamento gigante, quando de repente o carro levantava voo. Isso já era um alívio, mas o melhor ainda estava por vir. Um pequeno pássaro azul brilhante começava a voar em torno do meu carro alado, fazendo movimentos alegres e dançantes. Eu ficava olhando maravilhada. E em certo momento, eu estendia a mão para fora do carro e esse pequeno pássaro azul pousava nela. E magicamente ia se fragmentando em milhares de pequenos pedaços azuis. E então eu é que saia voando, livre, “jovem” novamente, como nos meus sonhos de trinta anos atrás, em que eu, hoje quase cinquentona, voava muito. Nunca mais havia voado nos sonhos. Presa. Terra. Razão. Desencantamento do mundo. Acordei muito emocionada. Reencantei. Pensei nos meus alunos queridos, críticos, que não desistem, que estavam nas ruas protestando, e em todos esses jovens múltiplos que descrevi acima, com os quais tenho convivido nos últimos anos através de pesquisas, eventos, encontros... Eles eram meu “pássaro azul”. Depois relacionei o pássaro azul ao do twitter, que nas manifestações de contra hegemonia tem desempenhado papel fundamental. E conheci o poema lindíssimo de Bukowski, que reproduzo aqui, para encerrar esse artigo, como uma espécie de tributo a essa juventude complexa e rica, que me liberta sempre, me permite voar novamente. A essa juventude que é mais que potência, é poder mesmo. Que não é fácil de se compreender, porque é múltipla, complexa e contraditória. Que não merece ser cobrada de forma unilateral e simplificadora pelo “fardo da história”. Mas que em sua diversidade, ambiguidade e criatividade, segue transformando o mundo, que não anda fácil pra ninguém. Para eles, para todos nós, “O pássaro azul”, de Charles Bukowski, na tradução de Pedro Gonzaga: 53


“Há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou duro demais com ele, eu digo, fique aí, não deixarei que ninguém o veja. há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas eu despejo uísque sobre ele e inalo fumaça de cigarro e as putas e os atendentes dos bares e das mercearias nunca saberão que ele está lá dentro. há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou duro demais com ele, eu digo, fique aí, quer acabar comigo? (…) há um pássaro azul em meu peito que quer sair mas sou bastante esperto, deixo que ele saia somente em algumas noites quando todos estão dormindo. eu digo: sei que você está aí, então não fique triste. depois, o coloco de volta em seu lugar, mas ele ainda canta um pouquinho lá dentro, não deixo que morra completamente e nós dormimos juntos assim como nosso pacto secreto e isto é bom o suficiente para fazer um homem chorar, mas eu não choro, e você ?” 54


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DR COM NIETZSCHE Por Mariana Patrício “A mulher perfeita pratica a literatura como pratica um pecadilho: a título de experiência, de passagem, olhando em torno de si pra ver se alguém a nota e a fim de que alguém a note” Nietzsche (Crepúsculo dos Ídolos)

Eu li, reli. Li de trás pra frente, diversas vezes,essa sua frase, meu bigode, meu hipócrita, meu irmão. Eu fiquei muito brava. Mesmo. Experimentei toda a minha impotência nessa revolta. Visualizei um grupo de homens, sentados em uma mesa de bar, rindo, e me achando fofinha em minha fúria, enquanto me explicavam amorosamente que não foi nada disso que você quis dizer. Essa mediação que esses caras insistem em fazer, entre mim e você me tiram do sério. Eu me descontrolei em algumas ocasiões em que isso aconteceu, mas cada descontrole só servia pra deslegitimar ainda mais o meu discurso. Eu me lembrei da primeira vez que te li, jovenzinha, trancada no meu quarto, fazendo trabalho da graduação. Eu lembro do meu corpo inteiro vibrando, enquanto eu tinha vontade de dançar pela sala. Sim, sim, sim!!! Os punhos fechados dando soquinhos no ar como no final do Flash dance. Eu lembro de reprimir toda essa euforia e escrever o trabalho mais ácido do mundo. Essa acidez escorrendo pelo texto como forma de demonstrar que eu tinha entendido tudo, tinha superado a metafísica, a dialética, os binarismos, e me lançava no barquinho à deriva, enquanto o sol se punha no ocidente, em busca de um novo modo de 58

pensar, um modo dançante, mas que eu devia demonstrar, sem dançar, pra não terminar piradona igual a você, fazendo o Dionísio em Turim. Oh, como eu quis ser notada. Mais do que isso, eu quis ser devorada, por toda e qualquer pessoa em quem eu vislumbrasse a mesma alegria diante dessa empreitada. O século XXI, eu pensava, haveria de ser seu, haveria de ser você em sua melhor imagem. E eu oferecia, assim, meu corpo em sacrifício, pra realizar essa utopia. Em cinco anos de graduação, contudo, eu notei que só sobraria de mim a carcaça, e a medida em que o barquinho adentrava pela neblina do século eu percebia que essa promessa de liberdade ainda carregava qualquer coisa dos anos que haviam ficado pra trás. E mudei o rumo. Em direção a um certo tipo de ascetismo condescendente. Quase uma freira, sorrindo e desviando de qualquer encontro. O meu ex-marido me chamava de monastérica (porque além de lacaniano enrustido, era capaz de perceber que por debaixo dessa frigidez ainda se encontrava um corpo em ebulição que não ficava indiferente à qualquer coisa que tangencia o que você chama de Vontade de Potencia, e que mais tarde os homens da mesa de bar vão poder te explicar melhor o que entendem por isso).


Da monasteria, passei à fúria impotente. E a uma certa raiva de mim mesma por esses anos todos em que encarnei a mulher perfeita que você descreve nesse seu aforismazinho de quinta. Napoleão foi capaz de escrever melhores. Ao invés de praticar a literatura, fiquei com vontade de praticar o fuzilamento dos machos. Desses mesmos machos com os quais achei que podia compartilhar do erotismo da filosofia, sem me lembrar que desde Platão, não tem muito espaço pra mulher fora de casa ou do templo. Oh, que triste retrato eles formam: os homens do saber. Mas não sei... chego ao final desse texto com a intuição de uma nova estratégia. Não sou muito belicosa... não sei se ia conseguir deixar de lado meu lado maternal na hora de apontar a minha metralhadora. E depois do tiro, quem me tornaria? Eu não sei se vim a esse mundo pra me sentir empoderada. Vou, então, fazer a louca e chegar no Banquete sem ser convidada, depois do Alcebíades. Sentar, beber, comer e fazer longos discursos dando a minha opinião mesmo que ninguém a peça. Vou levar uma galera comigo. Será que vai rolar suruba? Será que suruba é coisa de filosofia socrática? Já tenho sobre o que discorrer nos meus próximos discursos...

Te amo bigode, porra...

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