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Maria AngĂŠlica Constantino

talentos da literatura brasileira _____________ SĂŁo Paulo, 2016

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Copyright © 2016 by Maria Angélica Constantino Copyright © 2016 by Novo Século Editora Ltda.

coordenação editorial Vitor Donofrio

aquisições Cleber Vasconcelos

editorial Giovanna Petrólio João Paulo Putini Nair Ferraz Rebeca Lacerda diagramação Giovanna Petrólio

foto da capa Wilson Vieira

revisão Bárbara Parente Maria Marta Cursino

composição de capa Giovanna Petrólio

Texto de acordo com as normas do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990), em vigor desde 10 de janeiro de 2009. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (cip) Angélica Ilacqua CRB­‑8/7057 Constantino, Maria Angélica Pequena Londres / Maria Angélica Constantino. Barueri, SP: Novo Século Editora, 2016. 1. Literatura brasileira I. Título 16­‑0667

cdd 869.3

Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção brasileira 869.3

novo século editora ltda. Alameda Araguaia, 2190 – Bloco A – 11o andar – Conjunto 1111 cep 06455­‑000 – Alphaville Industrial, Barueri – sp – Brasil Tel.: (11) 3699­‑7107 | Fax: (11) 3699­‑7323 www.novoseculo.com.br | atendimento@novoseculo.com.br

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Ao meu príncipe e amor da minha vida, Edy Hemerson Constantino, que me apoiou mesmo quando o que mais sentia era ciúme do meu tempo tomado pela escrita. Há coisas que fazemos por prazer e há outras que fazemos por amor. Obrigada por me amar assim!

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Prólogo

Juliana ouvira tantas vezes aquela história que já sabia de cor como tudo aconteceu… O aroma da cebola espalhava­‑se pelo ar, enquanto Helena refogava o ar‑ roz e sua mãe fritava a carne. Recolheu o braço assim que um espirro da fri‑ tura a atingiu. Podia ouvir a água caindo do chuveiro: seu pai tomava banho. A porta da entrada bateu, e sua irmã passou feito um furacão pelo corredor – na certa se estressara na reunião do trabalho escolar em equipe. Em poucos minutos, a família estava reunida em volta da mesa. Não houve oração, elogio ao tempero ou qualquer comentário sobre o dia de cada um. Como sempre, o pai reclamou do preço da carne, falou mal do governo, pegou o prato e foi para a sala. Helena escutou a vinheta de abertura do jornal, que seu pai não perdia por nada. Era o alerta para que, na ponta da mesa, sua mãe levasse o garfo com mais velocidade à boca e logo se juntasse a ele no sofá, para esperar pela novela. Como em quase todas as noites, Helena ensaboava a louça e sua irmã en‑ xaguava. Terminou sua parte e saiu trombando na mesa, a caminho do banheiro. Entrou no quarto… Livros, cadernos e vestígios de lápis apontados esparra‑ mados sobre sua cama. Fechou os olhos e respirou fundo. A irmã escolhia o que pôr na mochila para o dia seguinte; ao lado, a colcha da folgada estava intacta. Travou a mandíbula e puxou o ar. Aproximou­‑se da cômoda e dobrou as roupas

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amarrotadas, recolhidas mais cedo do varal. O cheiro agradável de alecrim to‑ mou o ambiente. A irmã mais nova lhe deu um beijo no rosto, arrancou o pijama de suas mãos e correu para o único banheiro da casa. Helena franziu o cenho e empilhou o restante das roupas na cadeira, chacoalhou sua colcha na janela e a depositou aos pés do colchão. Procurou pela capa vermelha de Olhai os lírios do campo, de Erico Veríssimo, e lá estava, no cantinho da velha penteadeira. Acomodou­‑se na cama, que rangeu, levou a mão às costas, onde sentiu uma fisgada, e endireitou o travesseiro murcho. Acendeu a vela já fixada sobre um pires e a pousou no criado­‑mudo, então tomou o livro nas mãos, encontrou a página em que havia parado e sorriu. Em seguida, sua irmã passou feito uma flecha e recolheu­‑se na cama ao lado. Então, Helena apa‑ gou a luz do quarto e voltou os olhos para as palavras, mas em pouco tempo suas pálpebras começaram a pesar. Tentava a todo custo manter­‑se desperta, concentrando­‑se para enxergar com nitidez, porém as letras se misturavam. Sentiu um toque em seu braço. Virou­‑se e quase caiu da cama. – Credo em cruz, misericórdia, quer me matar do coração? Raquel colocou o indicador na boca: – Shhhh! Não acorde o papai. – Ah, Raquel! Eu estou morrendo de sono. O que está acontecendo? – Checou o radiorrelógio e rosnou. – Espero que seja muito grave porque já passam das três. – Bocejou, encarou mais uma vez a irmã e viu o rosto dela, abatido, em lágrimas. – Raquel, tá tudo bem? – sussurrou. – Não. Eu preciso que você me leve agora ao hospital. Helena sentiu a diferença no tom de voz de Raquel, que segurava firme o crucifixo de madeira no pescoço. – O que você tem? – Eu vou ter um bebê. – Desde quando… – A mão de Raquel esmagou sua boca, abafando as palavras que haviam saído num berro. – Me ajuda? – Lágrimas escorriam pelo rosto dela. Helena fez que sim, enquanto Raquel retirava lentamente a mão de seus lábios, a face avermelhada, a boca trêmula e um olhar no qual brotava de‑ sespero. Curvou­‑se, mordeu a manga da própria blusa e soltou um gemido 8

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dilacerante. Helena levantou­‑se rápido e apoiou­‑a pelo braço. Na primeira trégua, Raquel puxou­‑a num abraço. Helena sentiu uma quentura fora do normal. Levou a mão à testa da irmã. – Onde dói? – Minha barriga, dói tudo… Mas minha cabeça parece que vai explodir. – Vamos, depressa, vou chamar um táxi. Deu quatro passos, virou­‑se; mais quatro passos de volta, esfregou os olhos e a testa. Olhou novamente para o relógio, que ainda marcava sete da manhã. A cabeça pesava. Sentou­‑se, apoiou o rosto na parede, cerrou as pál‑ pebras. Sem suportar a confusão de pensamentos, levantou­‑se outra vez. Seu estômago parecia não ter digerido o jantar, sentia a comida queimar em sua garganta. Amanhecia. O fato de seus pais não saberem onde ela e a irmã estavam não a atormentava mais do que a ausência de notícias de Raquel. Tentou enxergar pela milésima vez algum movimento nos ponteiros, que teimavam em não sair do lugar. Levantou os olhos e avistou alguém uniformi‑ zado caminhando em sua direção. Puxou a máscara do rosto. Era uma senhora. – Você é parente de Raquel Gomes? – Sim, sou irmã dela. – Sou a doutora Andréia. Sua sobrinha passa bem. Foi um parto bastan‑ te difícil, mas conseguimos salvá­‑la. Ela está estável agora, vai precisar de um tempo em observação na UTI neonatal, mas os prognósticos são excelentes. – E minha irmã? Eu posso vê­‑la? Como ela está? – Sinto muito. Ela teve uma eclampsia. A pressão subiu muito, a equipe fez o possível, mas não conseguimos estabilizar. Você precisa avisar a sua família. Tudo girou em sua cabeça e escureceu. O dia 17 de fevereiro de 1991 seria um marco na história daquela família, tanto de fim quanto de início. Eram momentos difíceis, dias de muita dor e sofrimento. Seus pais não podiam se dar ao luxo de ficar em casa chorando a morte da filha. Idosos, nun‑ ca haviam aparentado a idade que tinham, mas agora pareciam ter envelheci‑ do dez anos em poucos dias. Haviam criado duas filhas com bastante sacrifício e, dali em diante, teriam de continuar trabalhando duro para criar a neta. 9

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Helena tentava ser forte, mas estava destruída por dentro. Só tinha 18 anos, mas sentia que seu mundo nunca mais seria o mesmo. Era como se ti‑ vessem cortado um pedaço de seu próprio corpo, que ela precisava remendar para seguir em frente; muita coisa para processar de uma vez só. Como a irmã mais nova conseguiu esconder uma gravidez por sete meses? Como não notou nada? Por que não se abriu? Por que não dividiu seus medos, suas angústias? Por que não confiou nela? Por que tinha que partir tão cedo? Eram muitas dúvidas, mas só uma certeza: agora havia uma vida que dependia dela e de seus pais e, principalmente por conta dessas novas obri‑ gações, precisavam reunir todas as suas forças para continuar. Ficou decidido que Helena iria sair do estágio e estudar à noite, para ajudar a cuidar do bebê. Ela chegou ao décimo dia de visita ainda mais cedo do que de costume. Aquele era o dia em que o bebê receberia alta, como avisara o médico no dia anterior. Adentrou o berçário procurando pelo rostinho que, para ela, era o da esperança, o da razão de continuar. Não estava ali. Olhou cada bercinho novamente… E nada. Seu coração bateu no pescoço, sufocando­‑a. Ao se virar, avistou a sobri‑ nha toda pomposa, de vestido, nos braços da enfermeira. Suspirou de alívio e sorriu. – Olha que linda que eu estou, tia Helena! – disse a senhora simpática. – Onde vocês arranjaram esse vestido tão lindo? Tão pequeno! – Sua voz falhou. – O pessoal da enfermagem está apaixonado por esta garotinha e resol‑ veu presenteá­‑la. Foram inevitáveis as lágrimas. – Obrigada por tudo! – Tomou o bebê, molinho, nos braços. Um par de olhinhos brilhantes a encaravam. Helena encostou o rosto suavemente na testa dele. Inspirou fundo aquele cheirinho de neném. – Vamos pra casa, meu anjo. Eu vou cuidar de você.

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Capítulo 1

Vida que segue! Segue em frente, porque simplesmente precisamos continuar vivendo. As dores nos fazem prisioneiros temporários, mas, aos poucos, elas nos ensinam que é preciso seguir e nos fazem ver que ainda há amor. E enquanto há amor, há esperança! Pelo amor morremos, mas é também pelo amor que voltamos à vida. Haverá sempre alguém que te amará o bastante para te fazer en­ xergar que há uma luz no fim do túnel; ou ainda alguém por quem você iria até o fim do túnel por uma luz. Oxalá que haja, pois quem não experimentou tal sentimento não viveu: coabitou.

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Já estivera ali antes, estava certa de que sim. Uma porta bateu atrás, virou­ ‑se e podia jurar ter visto uma sombra movendo­‑se. Mas não havia nada. Acelerou… Ouviu barulho de passos. Um vulto aproximava­‑se em meio à neblina. Olhou para os lados, procurando um abrigo, mas era tarde para se esconder. Um homem estranho lhe sorria. Ele estendeu a mão, e ela não conseguiu re­ cuar. No toque de seus dedos, sentiu um arrepio, e então ele a puxou num abraço, selou sua boca com um beijo e tudo fez sentido. Não conseguia se lembrar daquele rosto, mas era incapaz de se afastar. Como poderia isso? Nem teve tempo de pensar: tudo girou em volta e, de re­ pente, objetos flutuavam, estilhaços vinham em sua direção, portas e janelas eram arrancadas. Avistou um furacão, segurou firme a mão desconhecida e correram juntos para se abrigar. Mal podia enxergar um palmo à frente. Ele a ajudava a se proteger dos objetos. Suas bochechas sentiam o impacto da força que vinha do sentido con­ trário, e seus cabelos voavam sem destino. Estavam próximos a uma pequena ponte, e o sibilar do vento a impedia de ouvir o que ele dizia. Ele apontou logo abaixo, na direção das saídas de esgoto, que possivelmen­ te serviriam de abrigo. Fez sinal para ela descer na frente. Curvando o corpo, ela fez o dobro do esforço para avançar, segurou­‑se num pilar sob a ponte e estendeu a mão para ajudá­‑lo. Quando ele pegou em sua mão, foi levantado no ar pela força do vento. Ela segurou firme, mas seus braços vacilaram. Sentiu sua mão umedecer. Ele parecia 13

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perceber o que era iminente, então olhou de uma forma penetrante em seus olhos. Embora não conseguisse ouvir, ela pôde ler em seus lábios: “Eu te amo, meu anjo”. Ele se soltou. – Ju! Acorda, meu anjo! Se acalma, tá tudo bem. – Helena sentou­‑se na beirada da cama e puxou­‑a num abraço. – Tia, que bom que você tá aqui. – Ela afundou a cabeça no colo de Helena. – Você teve aquele sonho de novo? – a tia perguntou, e Juliana sentiu o afago em seus cabelos. Mal conseguiu fazer que sim com a cabeça. Respirou fundo repetidas vezes. – Tia, mas desta vez foi diferente! – Diferente como? – Desta vez, não sonhei com o vovô e a vovó, nem com a mamãe. Foi com um homem. – Homem? Que homem? – Franziu o cenho e levantou uma sobrance‑ lha. – Pelo menos era bonito? – Riu. – Não faço a menor ideia… Para falar a verdade, nem consigo lembrar o rosto dele. – Ju riu, limpando as lágrimas. Esforçou­‑se para lembrar. O que mais lhe causava estranheza, no entan‑ to, era que queria mesmo que ele existisse. Comprimiu a boca e esfregou o polegar nos lábios. – Foi só um sonho! Olha pra mim – a tia sorriu, com uma feição mansa, e alisou sua face –, no Brasil não tem furacão… Segure a minha mão. – Eu tenho tanto medo de perder você! – Lágrimas brotaram novamente. – Ei, não seja boba! Eu estou aqui, não estou? Você não vai me perder, vai ter que me aturar pro resto da sua vida. – Com todo prazer! – Espremeu os lábios, num sorriso torto. – Ju, não precisa ter medo. Medo de sofrer é pior que sofrer. Não queira vi‑ ver as coisas antes da hora, além disso você é uma menina de fé! Fica assim, não! – Eu sei, tia, você já me falou isso mil vezes, mas é que sempre parece tão real… – Esquece tudo isso, vamos voltar a dormir… Agora vai mais pra lá que vou dormir aqui mesmo. Tenho que acordar cedo amanhã, e “Deus ajuda quem cedo madruga”. – Bença, tia! 14

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– Deus te abençoe! – respondeu, bocejando. Os sonhos recorrentes davam à Juliana a sensação de que passaria a vida toda dizendo adeus às pessoas que amava. Afinal, já nascera fazendo isso. – E então? Para onde vamos neste ano? Liz mordeu o lanche natural e entregou­‑o para Amanda, que estava ao seu lado. Sentada em frente às suas amigas, Ju mordeu uma maçã. Não prestou atenção na pergunta, que Liz precisou repetir: – E então? – E então o quê? – Tentava esquecer a noite que passara. – Caraca! O ano de 2012 já está quase acabando! Para onde vamos neste ano? As provas do bimestre estavam terminando, e elas ainda não tinham decidido para onde seria a viagem de fim de ano – algo que faziam desde os quinze. – Gente, tem que ser um lugar top! – Amanda esfregou as mãos, eufóri‑ ca com as possibilidades. – Já temos 21 anos! – Você fala como se, alguma vez, idade tivesse sido empecilho pra você seguir seus impulsos… – Ju balançou a cabeça, rindo. Amanda mostrou a língua, enquanto Liz rabiscava algo no caderno. – O que você está desenhando aí? – Ju levantou­‑se e sentou ao lado de Liz. – Mickey! Seus desenhos são perfeitos! – Mais ou menos… Toma! – Liz estendeu o papel e sorriu. – Este eu fiz pra você! – Obrigada! – Ju beijou o desenho e o guardou na mochila. – Lembra da primeira vez que viajamos? – Minha nossa, o tempo voa! Recordou a sensação de visitar a Disneylândia, a primeira viagem que fizeram juntas. Ela nunca tinha saído de Londrina. Aquela foi a melhor de todas, foi mágico… a descoberta de um mundo novo. Ju virou­‑se para Amanda: – Nunca vou esquecer sua cara na montanha­‑russa, quando o garoto ruivo vomitou no seu cabelo. – Comprimiu os lábios, segurando o riso, e pôs a mão no ombro de Liz. – Lembra disso? 15

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– Claro! Foi o ponto alto da viagem! Ele usava aparelho nos dentes e estava comendo um hambúrguer na fila, que depois foi parar todinho no cabelo da Amanda. – Liz agachou e debruçou­‑se no banco. – Vou fazer xixi nas calças! – Ria tanto que precisou se encolher. – Gente, pra que lembrar essas coisas? – Amanda levantou­‑se, sentou no colo de Ju e tentou tampar sua boca. Ju soltou­‑se. – Você quis voltar para o hotel, e nós passamos duas horas lavando o seu lindo cabelo louro. Mas foi ótimo, porque fez você perder a vontade de sair à noite. – Esse foi o ponto baixo da viagem! – Liz enxugava os olhos e recupe‑ rava o fôlego. Amanda revirou os olhos e fez um gesto com a mão, como se estivesse serrando o próprio pescoço. Ju não pôde mais segurar; sua barriga chacoa‑ lhava de tanto rir, enquanto tentava se desvencilhar da fúria de Amanda, que avançava sobre ela. Engasgou, respirou fundo e continuou: – Vocês já tinham tudo planejado. – O som saiu abafado em meio aos dedos de Amanda encostando em sua boca. – Íamos enrolar os monitores da excursão e entrar com identidades falsas na Firestone Nightclub. E, pior, vo‑ cês fizeram uma pra mim! Sem eu saber, que fique bem claro – enfatizou Ju. Ainda se perguntava como Amanda conseguira convencer o namora‑ dinho, ninja em informática, a fazer as falsificações. Se seus pais ao menos sonhassem com uma coisa dessas… – Ju, agora a gente não precisa mais disso. Este ano a gente pode tudo e em qualquer lugar do mundo. Uhul! – Sentiu um beijo de Amanda em seu rosto. – Pra onde vamos? – Que tal China? – sugeriu Liz. – China?! – Amanda franziu o nariz e a testa. – Mas a gente já foi ao Japão! – Mas China não é Japão – ressaltou Liz. – E bem que você gostou de ir pro Japão encontrar o Toshi. – Gente, fazia mais de um ano que eu não o via, desde a formatura. E vão falar que não se divertiram? – É… Mas se a gente soubesse que você iria terminar com ele… – disse Liz. 16

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– Isso já faz dois anos. Vocês tiraram o dia pra lembrar só coisas mi‑ nhas? – Jogou a bolsa na cadeira e se levantou. – Só pra refrescar a memória de vocês, ano passado nós fomos pra Austrália, porque você, dona Liz, tinha um amigo virtual de lá. – Pegou a bolsa, pronta para sair. – Ok, ok. Bom, fomos pra Orlando em 2006… – Liz contava nos dedos. – No outro ano fomos pro Chile. Hum… Pra onde fomos depois mesmo? – Beach Park, aqui no Brasil – disse Amanda, voltando a se sentar. – Daí Europa, em 2009. Falando nisso, a gente podia ir pra lá de novo… Temos muito o que explorar. Só fomos a Paris, Roma, Lisboa e Londres… Liz riu. – Do que você está rindo? – quis saber Amanda. – Nossas histórias de Paris dariam um livro, né? – Liz piscou. As duas riram juntas, e a paz estava de volta. – Continuando: em 2010, Japão… Ano passado, Austrália… – Os olhos verdes de Liz quase saltaram para fora. – Gente! Já sei… Vegas! Temos vinte e um anos, vamos pra Las Vegas! – Garotas, não vou neste ano. Estamos quase nos formando, e eu e a minha tia vamos precisar de todas as economias pra montar nosso negócio. E, ainda assim, teremos que financiar a maior parte. Ju amava música, mas não se via vivendo disso. Parecia­‑lhe algo muito distante… Não tinha coragem de considerar essa hipótese nem para si mes‑ ma, quanto mais pronunciar em voz alta. Já confeccionar doces personali‑ zados para festas era algo tangível, embora fosse o sonho da tia Helena, não o dela. Sempre contou com a cumplicidade da tia, que estava com ela para qualquer coisa. Queria, de alguma forma, retribuir os anos de dedicação. Então, pareceu certo lutar por um sonho que não lhe pertencia. Amanda segurou a mão de Ju. – Como assim? Claro que você vai. – Quantas vezes eu vou ter que dizer que você vai, querendo ou não – interveio Liz, com autoridade. De origem alemã, seus avós haviam chegado ao Brasil entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, sendo pioneiros na jovem cidade de Londrina e donos de um importante grupo. Ju não nascera em família rica como as suas amigas Elizabeth Schneidder e Amanda Lopes. Graças a uma bolsa de estudos, desde o primeiro ano do 17

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Ensino Fundamental, estudara com elas na mais tradicional escola católica da cidade: o Colégio Marista. Bolsa que conseguira manter com boas notas e ótimo comportamento, o que lhe garantiu poder estudar na universidade do mesmo grupo, a Pontifícia Universidade Católica (PUC). Amanda não era tão abastada quanto Liz, mas tinha uma vida muito confortável. O pai era cirurgião cardiovascular, e a mãe, ginecologista, tra‑ zia bebês ao mundo, apesar de ela própria só ter tido Amanda, que passou a maior parte do tempo, em sua infância, com babás. Juntas, Amanda e Liz tinham o dom de fazer as ideias mais insanas soarem inofensivas. As duas eram as aliadas perfeitas, capazes de, num olhar, arquitetar as maiores loucuras. Ao lado dessas duas malucas, Ju pas‑ sou os últimos quinze anos de sua vida, livrando­‑as – e também a si mes‑ ma – de enrascadas. Admitia para si que, sem elas, seu mundo não teria a menor graça. – Juuu… Vamos, sim, já pensou nós em Vegas? – disse Amanda, com olhinhos de gato de botas abandonado. Ia ser difícil recusar: ela a chamara de Juuu usando a voz mais doce e fazendo aquela cara que só ela sabia fazer. No entanto, era desconfortável viajar às custas dos outros, ainda que os pais das amigas ficassem mais se‑ guros com sua presença e ela amasse conhecer lugares novos. A cada ano, entretanto, o constrangimento aumentava, e isso agora a impedia de aceitar. Não era mais uma adolescente! A primeira vez que conseguiu permissão para viajar com suas amigas fora há seis anos. Jamais se esqueceria daquele dia. *** Pegou a mochila, caminhou apressada até a porta. Girava a chave quan‑ do sua tia pousou a mão em seu braço. – Você só tem quinze anos, não me sinto segura em te deixar ir. – Não sou mais criança! – Mas está agindo como uma! – Haverá pessoas responsáveis… Por favor! – Suas amigas são de outra classe social, esse não é o seu mundo, acorda! 18

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Saiu antes que iniciassem uma discussão. Na mesma noite, receberam uma visita inesperada da mãe de Amanda, acompanhada pela filha e por Liz. O aroma do café invadiu o apartamento, enquanto as visitas aguardavam sentadas no sofá. Sua tia trouxe uma bandeja com as duas únicas xícaras com asas e pediu que as três adolescentes esperassem no quarto. Foi uma longa conversa, quase um parto… As amigas tentaram escutar atrás da porta, mas elas falavam baixinho. – Meninas! – Helena bateu na porta e a abriu em seguida, de mansinho. Juliana tinha quase certeza de que a resposta seria não. Olhou para suas amigas, comprimiu a boca e depois voltou­‑se para a tia. Helena tinha um semblante triste, a responsabilidade precoce trouxera­‑lhe uma aparência envelhecida, e as roupas também não ajudavam muito. Antes do avô de Ju sofrer um acidente vascular cerebral, sua tia ainda tinha alguns amigos e saía de vez em quando. Mas quem consegue suportar uma pancada atrás de outra? Perdera o pai e, logo depois, a mãe se entregou a um câncer sem lutar. Ainda ressoava na cabeça de Ju quando, no enterro do avô, sua vó Dalva tentou segurar o caixão, que saía em cortejo, e gritou, num profundo lamen‑ to: “Me leva com você, Chico!”. Repetiu isso várias vezes e, na última, o seu peito tremia tanto que parecia convulsionar de tanto chorar. Quando a avó partiu, lembrava­‑se de ter perguntado à tia Helena: “Vovô Chico veio buscar a vovó?”, e a sua tia apenas respondeu: “Ele veio!”. Todas aquelas perdas fizeram a tia redobrar os cuidados com a sobri‑ nha: uma gripe boba e já voavam para o hospital – não importava quantas vezes Juliana assegurasse que estava bem. Como ter esperança de poder via‑ jar, se mal podia ir à esquina? – Tia, tudo bem, eu entendo! – disse, resignada. – Ju, se eu pudesse, te colocava dentro de uma caixinha e a carregava comigo pra cima e pra baixo, mas não posso fazer de você uma prisioneira das minhas aflições… Você vai, mas vai me prometer que será responsável. – continuou, enquanto Ju assentia com a cabeça, as lágrimas caindo: – Ja‑ mais vai se afastar do grupo e vai me ligar todos os dias, senão não durmo à noite. Na hora em que você pisar os pés no hotel para dormir, você me liga, estamos entendidas? Ju soltava fogos de artifício por dentro. 19

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*** Sua tia não mudara muito com o passar do tempo. Continuava super‑ protetora, mas agora Ju tinha carta de alforria uma vez ao ano para viajar – e isso era o máximo! Até amadurecer e entender que não dava para ser assim para sempre. – Ju, fica tranquila, meu pai paga! – Liz tirou Ju de suas lembranças. – O meu também, Ju! – completou Amanda. – Amigas… Eu não tenho mais “cara” – pronunciou silabicamente – pra olhar para os pais de vocês, não posso aceitar. Vão vocês… Vocês irão se diver‑ tir muito mais sem mim. – Sua voz saiu mais grave e séria do que pretendia. – Não, Ju! Fala isso, não, a gente sempre se divertiu tanto juntas! Somos sempre as três; se faltar uma, não vai ser a mesma coisa. Quem vai cuidar da gente? Quem vai nos salvar das minhas amandices? – disse Amanda, com tristeza no olhar, segurando mais forte as mãos de Ju. – Gente, vocês não precisam mais de babá… Afinal, 21 anos são 21 anos. – Credo, Ju, que mau humor, você está na TPM? – ralhou Amanda. – Estou, melhor me deixar quieta. Amanda quis argumentar, mas Liz pôs a mão em seu ombro, franziu a testa, fez que não com a cabeça, piscou um olho e, como se a opinião de Ju fosse insignificante, disse: – Relaxem, depois a gente decide isso!

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