Coletânea de Contos

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Caio Thomaz

Coletânea de Contos

Coleção

NOVOS TALENTOS DA LITERATURA BRASILEIRA

São Paulo 2012


Sumário

Devoção................................................................................. 11 Pária........................................................................................ 21 As Bonecas da Senzala..................................................... 29 O Julgamento do Anjo...................................................... 47 Suspensa em Ares Finos..................................................... 65 O Velho e a Ave................................................................... 73 A Habitante Mais Velha de Dale.................................. 95 Acima dos Cervos.............................................................111 Madame Conselheira......................................................127 A Casa Quebrada..............................................................143


Devoção

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Era de suspeitar que os hábitos daquele doutor fossem mais que apenas desvio comportamental. O excêntrico homem que de lá para cá perambulava com pedaços de manequins, ora braço, ora perna, ora falsas madeixas, foi interrogado e, posteriormente, detido pela polícia no pós-Natal de 1947. A causa penitenciária era duvidosa, mas uma paciente busca em sua casa, no fim da rua que divisava a cidade, culminou no achado de ossos debaixo do firme solo do jardim repleto de ervas fitoterápicas e comuns. A prisão partiu de inúmeras denúncias anônimas, que se referiam ao homem como o ‘doutor de postura estranha’, a chegar em casa tarde da noite, sempre carregando ao colo peças de bonecos de plástico. E o detalhe maior, sendo algo atípico na pacata vizinhança, como uma espécie de código informal, era que, ao sair do ofício, o homem não se dava ao trabalho de tirar seu jaleco. Era simplesmente inconveniente. Mentes infantis e ferazes empregavam apelidos ao doutor, como Doutor Morte; outros, mais elaborados, lhe davam Assassino do Jaleco. Os pais ouviam os contos das crianças com certo prazer, lembrando de suas próprias épocas de medos mútuos, porém, ao cobri-las na hora do sono, lembravam das elaborações e temiam a veracidade dos causos. Chegaram ao ponto de não suportarem olhar para o médico sem odiá-lo e pôr-lhe fantasias criminosas. ‘Vem lá o macabro doutor e sua coleção de brinquedos estúpidos’. Adolescentes eram mais ousados. Rapazotes com fins de

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conquistar fêmeas as dirigiam para perto da casa, devidamente alcunhada por eles de Museu Morto, e contavam sempre a mesma estória de horror para, ao final, assustá-las e quem sabe, ganhar um abraço medroso. Difamavam a casa e seu proprietário para ganhos vergonhosos de afetividade. A insegurança destes era motivo de breves risos do observador atento. A vinte metros dali, a espreitar sonhador por entre cortinas, o misterioso doutor devaneava ao assistir aos casais e suas visitas tardias. Quase um olhar de nostalgia. Quase réplicas sua e da amada Caroline. Lembrava-se tão nitidamente quanto olhar para a lua cheia num vasto céu sem nuvens. Ele e ela, um beirando os vinte anos, o outro já passado, sem compromissos e pressões extra-amorosas, apenas a viajar por cada canto da cidadezinha, a explorar todos os bosques nas noites, a sentar perto da fonte da Praça Central e discutir assuntos débeis. Qualquer fosse o assunto, o som da voz dela o transformava num discurso presidencial, declarações de independência e, sim, sempre, citações poéticas, das grandes e boas, de gente importante. Suas falas eram plenos saraus de uma única apresentadora. Permitindo o desvio do intelecto para o físico, dizer que os dentes dela refletiam sua imagem seria declarada hipérbole, mas naturalmente brilhavam à luz solar. Novamente, o médico perdia-se em visitas ao seu feliz passado, ou, duas décadas adiante, seu trágico passado. Chamado para depor no distrito policial, o doutor apareceu com uma feição de simples descaso. “Prendam-me, tanto faz”. Essa ideia parecia incitar todos os agentes ali presentes, prontos a fuzilarem-no com perguntas e mais perguntas invasivas, quando não indutivas,

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dedutivas, autoexplicativas. Porém, o homem não parecia disposto a rebatê-las, como queriam os oficiais da lei que o fizesse. Todo bandido se altera, se irrita e replica. E as súplicas finais eram a ópera dos policiais. Então se fez o interrogatório numa sala tão claustrofóbica e escura, que ver um agente a cinco passos era de elogiar visões saudáveis. Mãos atadas atrás do corpo com lacres, caprichosamente envolvidas na estrutura da cadeira, prendiam o médico sem que este pudesse levantar. Maníacos como aquele eram conhecidos por tentativas de estrangular o interrogador. Um dos agentes aproximou-se da mesa e sentou-se do outro lado. A som nenhum, disse levemente: – A quem pertence a ossada encontrada em seu jardim, doutor? Tinha alguma noção da existência do enterro clandestino? O médico, que aparentava total tranquilidade, não poupou palavras para declarar o seguinte acontecimento: – Há aqui cinco homens.Vejo todos com o mesmo olhar expresso, olhar que digo logo, desprezo. Três se escondem nos cantos da sala, a segurança de suas feições mascaradas na escuridão. Pois digo a você, caro delegado, e a você também, que desconheço o cargo, se tivessem o que tive, não estariam aqui agora, nem mesmo cometeriam o impropério de me perturbar. Vejam, se tirarem o que me prende a esta cadeira, veriam mãos calejadas de tanto martelar, serrar, pintar, empurrar, cortar. Se me permitem jogar-lhes tamanha incompetência às caras, deixaram de averiguar meu enorme porão. Não os culpo, escondo-o bem. Afinal, para onde iriam tantos bonecos e manequins? Escutem bem, diferente de minera-

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dores, que quando acham a menor porção de ouro continuam a escavar, suas mentes se contentam em julgar ao mais leve indício. Não quero dizer que se forem lá agora encontrarão um cemitério de ossos e corpos pútridos, mas sim vão ver o belo desejo de minha falecida esposa. Não espero que entendam, nem planejava explicar-lhes minha obra de amor. A ninguém e nunca. Porém, o egoísmo alheio, descontente com as vidas que levam, sempre entra no caminho daqueles que são felizes sozinhos e que carregam consigo algum objetivo. Nunca fui um homem aberto a declarações, mas se essas me livram de manchar meu projeto com mesquinharias, digo-as sem pestanejar. Fui casado, homens. E percebo que nenhum de vocês o é; ou se são, escondem o anel para desfilarem livres nas ruas e ganharem olhares de muitas mulheres de interesses sociais. Minha esposa era mais velha, quatro anos, e nos conhecemos já na juventude. Eu dezesseis, ela vinte, eu no ginásio, ela na faculdade. O bonde que pegávamos era repleto de homens, homens que, no futuro, se tornariam pragas humanas, como vocês. Então, numa noite, sendo uma das poucas mulheres a pegar o tal bonde, sentou-se do meu lado. Disse-me mais tarde que ali correria menos risco de ser adulada brutalmente, eu sendo um menino jovem, face inocente e postura ingênua. Acostumou-se a sentar ali, e rapidamente viramos amigos de conversas longas e prazerosas. À altura de cinco meses, disseme que se enganou com seu preconceito sobre mim. Eu era um adulto vestido de menino, segundo suas palavras, mais homem que qualquer um ali presente, e que o perigo que tanto temia, acabou por se tornar uma grata descoberta. Ela

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estudava Filosofia, e sempre amei o jeito como via as coisas, as situações e corriqueiras cenas. Uma pedra nunca era apenas uma pedra, era uma herança muito antiga de montanhas longínquas, que as jogavam morro abaixo, fazendo-as vagar pelo mundo, de pé em pé, mão em mão, até ser mergulhada numa lagoa ao arremesso dum humano. E lá descansaria um bom tempo. Era sua morte. Minha esposa costumava divagar sobre os mais variados temas, sempre dando vida às coisas inanimadas, e matando àquelas que não mereciam venerações. Querem um exemplo? Sempre fiquei impressionado em como ela desprezava a maquiagem. Para ela, as ruas eram circos onde vagavam palhaços tristonhos. As pinturas faciais disfarçavam emoções, cobriam as rugas, as tintas retardavam os grisalhos, e os batons descoloriam os beiços. É como tentar segurar o tempo, e, como sabem, senhores, o tempo é substantivo abstrato e veloz. Começamos a namorar dois anos depois, nos casando após mais três. Moramos juntos por vinte e três anos. Quanto tenho agora? Sessenta e um. Caroline teria hoje sessenta e cinco. Em 1928, ela adoeceu. Eu, como doutor, a tratei com a mais dedicada atenção.Tinha febre, dores no corpo todo e uma tremedeira assustadora. Não consegui diagnosticá-la. Assim, mandei-a para outros doutores, mas nenhum a classificou também. As coisas ficaram negras em seguida. Caroline ministrava aulas na universidade, e alguns episódios de surto, ao tentar demonstrar suas profundas crenças, lhe renderam advertências. Foi demitida em 1929, quando esbofeteou uma aluna por esta duvidar friamente de sua teoria sobre os manequins. Dizia que a representação humana por meio de bonecos de

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plástico, mesmo com suas gélidas expressões, era um paraíso criativo. Dou como exemplo aos senhores oficiais as bonecas que brincam as crianças. Têm nomes, sobrenomes e alcunhas. Têm casas, ofícios e os próprios brinquedos. E tem família. E relações, até conflitos. Ela dizia que, se cada ser criasse esse ambiente em sua casa, num presente onde o pensamento crítico e reflexivo é morto, humanos ensaiariam em casa suas prendas, e o comportamento em sociedade seria desenvolvido. A tal aluna a acusou de ainda brincar com bonecas. Por ridículo que soe aos ouvidos policiais, eu aderi à teoria de minha esposa, mas vejam, não por concordar, mas por clara homenagem. Senhores, na noite em que Caroline se foi, ela trouxe para casa seu primeiro manequim. Foi quando tivemos a primeira discussão. Verão que a controvérsia me dava razão, já que, para meu espanto, o manequim era vivo. Uma prima distante, ela disse, convidada para jantar naquela noite. Caroline não me contou seu projeto, e, ao cair da noite, nossa convidada estava caída na sala de estar, falecida por envenenamento. Senhores, a ossada que encontraram em meu jardim é dessa moça, clamada de prima de minha mulher. Não assassinei Caroline, tão menos tenho em minha casa uma coleção de cadáveres. Disse a ela que havia cometido uma loucura, e tudo estaria perdido se homens como vocês descobrissem. Porém, sou grato em declarar, não abandonei minha esposa. Enterramos a moça no jardim, ao som dos prantos de minha parceira, então fomos dormir. Ao amanhecer, meu colchão abrigava um espaço vazio. Ela havia partido. Não podem apenas imaginar o sofrimento que me tomou. Minha amada Caroline

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me deixou, depois de tê-la perdoado por tudo, depois de tê-la amado acima de tudo. Nem mesmo uma nota de despedida, apenas vento e brisa em minha sala. Deixou todos os pertences e saiu vagando pela noite. Curiosos policiais, se vasculharem a minha casa, haverão de encontrar o sonho de minha esposa no porão. Construí o cosmo que ela tanto almejava, e somam lá noventa e oito bonecos. E não espero que nada disso os convença, afinal, convencê-los é minha última vontade. Já que em se tratando de desejos, meu último foi realizado na noite de ontem, quando levei a peça final. Não me importo como procedam, vou em paz para onde me mandarem, pois tenho em minha consciência que dei à minha amante o melhor presente que um homem apaixonado pode dar. O que os senhores podem entender disso? O doutor dormiu numa cela da delegacia, enquanto os cinco oficiais confabulavam pela madrugada num escritório apertado. No café da manhã, foi decretado que o médico fosse levado para casa, livre, e nenhuma pena seria imposta. Um ato de compaixão para com o velho doutor. Mas disseram que iriam lançar um mandado de prisão em nome de Caroline, acusada de assassinato. Os fatos que suscitaram tal decisão foram que, no dia relatado pelo doutor, uma moça com as mesmas descrições desaparecera. Após uma ligação para a universidade, foi confirmado que a professora de Filosofia fora despedida após agredir uma aluna, a mesma, por sinal, desaparecida. E finalmente, ao visitarem no meio da madrugada a casa dos pais da vítima, foram-lhe dito que, no dia do desaparecimento, a menina iria jantar na

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casa de uma amiga, a qual havia se desentendido há pouco tempo. Poderiam condenar o médico por cumplicidade e omissão de cadáver. Porém, o homem não tinha antecedentes criminais, nem qualquer histórico de violência ou atos indecorosos. A mesma vizinhança que o difamou e o xingou às escondidas, alvejou os policiais de condescendências para com o doutor ao ouvirem a história da trágica perda que este vivenciara. Fato é que, também, ao saberem do cumprimento do desejo da esposa, muitos acharam que tal prova de amor sobrepujava qualquer suspeita. À noite, o doutor jantou só, na enorme mesa, com um reboliço em seu estômago. Os vizinhos que antes o caluniavam, agora sentiam tal pena, que algumas senhoras espiavam pela janela, com olhos lacrimejantes. Rumores corriam como tiros de revólveres. Após a ceia, o doutor caminhou lentamente, com lágrimas nos olhos, até o jardim. Avistou a cova, ainda aberta, e agora vazia. Os ossos haviam sido levados ao necrotério. Andou até a beira do buraco e ajoelhou-se, trêmulo. Apalpou a terra firme e gelada carinhosamente. O doutor agora chorava baixo. Deitou-se de lado na cova, como se olhasse languidamente para alguém. Entre soluços, sussurrou estas palavras: – Minha querida Caroline, levaram teus ossos, mas não levaram tua alma. Por favor, me perdoe por essa minha falta. Sei que nunca me perdoarei. Estás ainda aí, me escutando? Faz frio hoje, mas tua aura será meu cobertor, e peço mais uma vez que minha obra me redima de não ter sido bom doutor.

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