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O que hoje sabemos, com as pesquisas sobre a educação dos profissionais de saúde, é que, para que ocorram mudanças reais, além do ordenamento das políticas de formação, faz-se necessária uma mudança nos próprios modos de “pensar-sentir-querer” de quem opera as práticas de ensino na saúde, pois tecnologias do imaginário trabalham cotidianamente pela captura dos processos de mudança, fazendo-nos crer na defesa de seu contrário. Enquanto práticas cuidadoras seguem apontadas como polêmicas, complicadas, difíceis e arriscadas, surpreende-nos a defesa inesgotável ou renovada dos modelos liberais de exercício das profissões da saúde, da hierarquia de poderes sobre a compreensão e a decisão quanto aos fatores de promoção e de proteção da saúde e, ainda, das relações contratuais privadas sobre os modelos de atenção à saúde. As práticas cuidadoras a toda hora encontram argumentos de postergação, suspensão ou abandono. As práticas cuidadoras em saúde podem ser resumidas como o exercício dos saberes profissionais no encontro com o usuário das ações e serviços de saúde. Esse é um lugar de aposta, não de convicções ou certezas, mas de oposição às posturas reativas à mudança. Uma tomada do pensar-sentir-querer será sempre uma aposta, requer um trabalho de educação no seu sentido mais forte: não será um trabalho de informação e nem de acomodação, será uma convocação ao aprender, um aprender de si e um aprender das novidades de si, assim como dos entornos e da criação. Se há um nó crítico às mudanças, a educação permanente, quando componente do trabalho e da educação na saúde, coloca as práticas individuais e coletivas cotidianas sob interrogação, questionando nossa capacidade de cuidado e de aceitação do novo. A difusão da dimensão cuidadora, a comunicação do conhecimento e a invenção de mundos emergem como superfícies de contágio: ativação do desejo de aprender e mobilização de encontros (instâncias onde ocorrem a interação e a produção de sentidos). Pode-se destacar a dimensão cuidadora como o contraponto ao racionalismo e cientificismo (racionalismo lógico) da assistência à saúde. O cuidado viria para invadir e atormentar a atenção à saúde para que não se desocupe das aprendizagens com o outro, com a alteridade, com a afirmação da vida de sentidos. O humano é incerto, criativo, sensível às ousadias, sujeito às desestabilizações que alteram verdades; o cuidado precisa dessa correspondência. Brincando com a bela imagem de Fernando Pessoa, se o tratamento tem de ser preciso, o cuidado nunca será preciso. No viver humano não há precisão, não lhe pode ser oferecida apenas a precisão da técnica (da navegação, falava Pessoa, referindo-se a correção em buscar a precisão para cruzar os oceanos, mas alertando que para com o viver não seria o mesmo, caindo indesejável tal busca). A atenção integral exige, para além da precisão, um “gordo” acolhimento. Neste número da Interface o Cuidado ganha projeção, não como uma teorização, mas como uma tematização. Gostaria de destacar o quanto uma dimensão cuidadora da saúde representa de luta pela vida e o quanto temos nos afastado dessa condição, escolhendo vias e caminhos cheios de certeza burocrática, formalista, disciplinar e normativa. É por isso que a comunicação do conhecimento ganha um contorno especial quando entendida como superfície de contágio na difusão da dimensão cuidadora e na invenção de mundos. A comunicação do conhecimento em Interface tem essa oferta, esse é o convite de sua editoria, de seu projeto gráfico e de sua rede, nesses 11 anos da Comunicação, Saúde e Educação. O esforço de internacionalizar essa revista, hoje, não é o da sua projeção nas redes de captura da invenção, captura do cuidado ou captura dos compromissos com interesses públicos, mas o de encontrar enlaces para a invenção, o cuidado e os interesses públicos, em especial com parceiros da América Latina e da península ibérica. Desafio posto à Revista é o de contribuir para a melhor expressão da inovação e do avanço da interdisciplinaridade na saúde: nem ciências naturais, nem ciências sociais, mas ciências do viver intensamente. A comunicação do conhecimento, a difusão da dimensão cuidadora da saúde e a invenção de mundos, nessa Revista, podem colocar-se como superfícies de contágio (interface)! Essa condição, um convite à sua leitura e escolha para a conversação. Ricardo Burg Ceccim Editor Associado

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

v.12, n.24, p.5, jan./mar. 2008

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apresentação

A difusão da dimensão cuidadora da saúde, a invenção de mundos e a comunicação do conhecimento como superfícies de contágio


presentation

The dissemination of the dimension of care in health, the invention of worlds and the communication of knowledge as surfaces of contagion

Research on education of health professionals has taught us that for real changes to occur, beyond the formulation of educational policies, a transformation in the modes of “thinking-feeling-desirin” of those who operate the practices of teaching health care is necessary. Technologies of the imaginary are constantly at work, capturing processes of transformation and making us believe in the defense of their opposition. While caring practices continue to be singled out as polemic, complicated, difficult, risky, we are surprised by the inexhaustible or renewed defense of the liberal models of exercising the health professions; of the hierarchies of power as opposed to mutual comprehension and negotiation in decisionmaking processes as means of health promotion and protection; and of private contractual relations rather than other models of health care. Arguments are always presented to postpone, suspend or abandon caring practices. Caring practices in health may be defined, in short, as exercising different kinds of professional knowledge in the encounter with the individual who makes use of health actions and services. This attitude demands taking the chance, not acting on convictions or certainties, and confronting reactive postures towards change. An attitude of thinking-feeling-desiring will always imply taking a bet, requiring educational work in its strongest sense: not informing nor accommodating, but summoning others to learn about themselves, the novelties in themselves as well as in the surroundings and to create. If there is a critical obstacle to change, continuing education, when it is a component of health work and education, places daily individual and collective practices under scrutiny, questioning our capacity to care and to accept what is new. The dissemination of the caring dimension, the communication of knowledge and the invention of new worlds emerge as surfaces of contagion: activating the desire to learn and mobilizing encounters (instances in which interaction and the production of meaning occur). The caring dimension may stand out as the counterpoint to rationalism and scientificism (logical rationalism) of health assistance. Care would come to invade and torment health attention so that it doesn’t ignore what it learns from the other, from diversity, with the assertion of the senses of life. Humanity is uncertain, creative, sensitive to boldness, and subject to destabilizations that alter truths; care needs correspondence. Inspired by Fernando Pessoa’s beautiful image, if treatment must be precise, care will never be precise. There is no precision in human existence. The precision of technique cannot be the only thing offered to humans (Pessoa was referring to navigation and its necessary search for precision in crossing the seas, but alerting that the same thing does not hold for human life, wherein this search becomes undesirable). Integral health care requires, beyond precision, a heartwarming reception. In this issue of Interface, Care gains projection, not as a theoretical approach, but as a theme. I would like to stress how much a caring dimension of health represents the struggle for life and how we have grown distant from this condition, choosing routes and paths full of bureaucratic, disciplinary, formalist and normative certainties. This is the reason why communicating knowledge gains special contours when it is understood as a surface of contagion in the dissemination of the caring dimension and the invention of worlds. Communicating knowledge within Interface holds this offer, this is the invitation its editors, its graphic project and its network have been making throughout its 11 years of existence. The effort to internationalize this journal, today, is not in order to project it onto the nets that capture invention, capture care or capture commitment with the public interests, but to find interlacements with which to foment inventions, care and public interests, in particular with partners from Latin America and the Iberian Peninsula. The challenge this Journal faces is to contribute towards the expression of innovation and the advancement of interdisciplinarity within health: neither natural sciences nor social sciences, but sciences dedicated to living intensely. Communicating knowledge, disseminating the caring dimension of health and inventing worlds, in this Journal, may be expressed as surfaces of contagion (interfaces)! This condition is an invitation to engage in reading and in dialogue. Ricardo Burg Ceccim Editor Associado

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.24, p.6, jan./mar. 2008


dossiê

Cuidar de pacientes em fase terminal: a experiência de alunos de medicina

Maria Lúcia Araújo Sadala1 Mayle Paulino da Silva2

SADALA, M.L.A.; SILVA, M.P. Care for terminal patients: the experience of medical students. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.7-21, jan./mar. 2008.

The aim of this study was to understand the meanings that medical students place on experiences of caring for terminal patients. Data were collected using individual interviews with 24 medical students at a university in the State of São Paulo. Convergent ideas within the statements from the participants were grouped into three categories: encountering the world of terminal illness/death; relationships with the patient and patient’s family; and reflections on caring for terminal patients. In the students’ statements, they expressed anxiety about caring for such patients, and difficulty in dealing with their own feelings. They considered themselves unprepared for relating to these patients, but learned through hands-on experience. The results from the study indicate the need to introduce material within medical training that is aimed at developing interpersonal skills and a capacity to reflect on ethical questions and medical deontology involving the terminality of life.

Key words: Medical students. Death. Terminal patients.

O objetivo deste estudo foi compreender os significados que alunos de medicina atribuem à experiência de cuidar de pacientes em fase terminal. Os dados foram coletados mediante entrevistas individuais com vinte e quatro estudantes de medicina de uma universidade paulista. As convergências dos depoimentos dos participantes foram agrupadas em três categorias: a) deparando-se com o mundo da doença terminal/morte; b) relação com o paciente e sua família; c) reflexão sobre o cuidar do paciente terminal. Nos depoimentos, os estudantes expressam ansiedade ao cuidar deste tipo de paciente, assim como as dificuldades em lidar com os próprios sentimentos. Consideram-se pouco preparados para relacionar-se com esses pacientes, mas aprenderam com a experiência vivida. Os resultados do estudo apontam para a necessidade de se introduzirem, na formação médica, conteúdos visando desenvolver competências interpessoais e capacidade de reflexão sobre questões de ética e deontologia médica, envolvendo a terminalidade da vida.

Palavras-chave: Estudantes de medicina. Morte. Paciente terminal.

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Enfermeira. Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). Departamento de Enfermagem/FMB Distrito de Rubião Júnior, s/nº Botucatu SP 18.618-000 sadal@uol.com.br 2 Médica. Unidade de Saúde da Família, Prefeitura de Monte Mor, SP. 1

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CUIDAR DE PACIENTES EM FASE TERMINAL...

Introdução A saúde humana obteve evidentes benefícios com o avanço tecnológico, permitindo fatos notáveis, como o aumento do tempo médio de vida, a prevenção e erradicação de uma série de males e a reversibilidade de expectativas na evolução de um grande número de doenças. O aumento da eficácia e segurança das novas modalidades terapêuticas motivou, também, questionamentos quanto aos aspectos econômicos, éticos e legais resultantes do emprego exagerado de tais medidas ou da inadequação na sua aplicação (Rezende, 2000; Zaidafhaft, 1990). Neste contexto, emergiram novas atitudes e abordagens diante da morte e do doente que se encontra em fase terminal da doença (Martin, 1998). Essas novas atitudes e abordagens remetem à reflexão sobre os vários paradigmas da prática médica. Na atualidade, podem-se identificar, pelo menos, três paradigmas na medicina: a) o técnicocientífico, fundamentado nos grandes avanços das ciências e tecnologias biomédicas, que levam a pensar que todas as doenças são curáveis, desde que tenham o tratamento adequado. A morte deixa de ser vista como desfecho natural da vida, torna-se um inimigo a ser combatido com recursos cada vez mais avançados; b) o comercial-empresarial, vinculado às tecnologias de ponta e aos tratamentos mais modernos, utilizando recursos sofisticados e onerosos. Neste caso, a capacidade do doente, em fase terminal da doença, para pagar as contas, seria proporcional aos recursos investidos no tratamento; c) o da benignidade humanitária e solidária, que privilegia o ser humano como o valor fundamental no cuidado à saúde, embora reconhecendo os benefícios da evolução científica e tecnológica. Nesta concepção, o cuidado ao paciente em fase terminal privilegia os princípios éticos, promovendo a morte humana e digna, no momento natural em que acorrerá. Nos três paradigmas, ocorrem divergências quanto à utilização de recursos, à necessidade de se prolongar ou abreviar a vida e aos procedimentos no cuidado ao paciente em fase terminal. Os critérios centrais da ética e da bioética: beneficência, justiça e autonomia, quando aplicados a esta temática, adquirem interpretações particulares e provocam debates. Neste sentido, Martin (1998) analisa as várias possibilidades para o cuidado do paciente em fase terminal: a) a opção pela eutanásia, visando abreviar a morte, para aliviar o sofrimento; porém, contrapondo-se aos princípios éticos que defendem a preservação da vida; b) a opção pela distanásia, visando prolongar a vida a qualquer custo, utilizando todos os recursos tecnológicos e farmacológicos disponíveis, a despeito do sofrimento imposto ao paciente. Esta prática insere-se nos paradigmas técnico-científico e comercialempresarial, que privilegiam a medicina curativa; c) a opção pela ortotanásia, enfocando a morte como parte da vida e propondo a utilização de conhecimentos científicos e tecnológicos, aliados aos conhecimentos éticos e à sensibilidade humana. Desta forma, busca proporcionar dignidade e conforto até os momentos finais, que ocorreriam naturalmente, no momento certo. Há interpretações diversas sobre a eutanásia: Pessini & Berchifontaine (1991) distinguem entre a eutanásia ativa (ação de pôr fim à vida) e a eutanásia passiva (a omissão ou não aplicação de procedimentos para prolongar a vida). Segre (1991) posiciona-se favoravelmente à eutanásia, nas situações em que significaria a autonomia de decisão do paciente ao desejar cessar o sofrimento. Almeida (1991) considera que a decisão médica pela eutanásia seria, sempre, circunstancial e casuística, dependendo da situação particular do paciente. Kovács (1991) sugere formas de cuidados paliativos similares à ortotanásia: que se priorizem as necessidades especiais do paciente, para viver os últimos momentos plenamente e com dignidade, evitando a manutenção da vida a todo custo. O Conselho Federal de Medicina, Ministério Público, médicos e representantes da sociedade vêm discutindo, desde 2004, uma resolução considerada ética: seria permitido ao médico limitar ou suspender o tratamento médico e procedimentos que prolonguem a vida do doente em fase terminal, de enfermidade grave e incurável, se ele ou o seu representante legal manifestar essa vontade. Há muita discussão a respeito, já que isto significaria adotar a eutanásia, prática proibida no Brasil. Neste debate não se percebem possibilidades de consenso (Cremesp, 2006). Martin (1998) analisa que, mesmo no Código de Deontologia Médica (artigos 2º e 6º), a tensão, entre beneficiar o paciente e a absolutização de preservar a vida humana no sentido biológico, criaria o grande dilema na opção por tratamentos entre aliviar a dor, mas abreviar a vida; ou prolongar a vida a todo e

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qualquer custo, mas trazendo grande sofrimento para o paciente. Ou seja, o dilema entre a eutanásia, a distanásia e a ortotanásia. Siqueira-Batista & Schram (2004) ampliam o debate sobre a bioética do fim da vida, geralmente tratada como uma questão relativa ao indivíduo, para uma perspectiva social desta problemática, passando a ser vista como um problema de Saúde Coletiva - dado que o prolongamento da vida das pessoas e o prolongamento do processo de morrer implicam a discussão do uso adequado dos investimentos públicos, garantindo para todos, ao final da vida, o acesso à morte digna e assistida. Trazendo estas questões para a formação médica, no contexto do cuidado ao paciente em fase terminal – que é o tema do presente estudo –, consideramos que os três paradigmas da assistência, citados por Martin (1998), encontram correspondência na escolha dos paradigmas pedagógicos nas escolas médicas. Assim, o sistema de saúde brasileiro, no qual predominam as práticas curativas (na lógica dos paradigmas técnico-científico e comercial-empresarial), condicionaria, com todas as deformações, a elaboração dos currículos das escolas médicas e a formação profissional.

O estudo A situação da morte iminente de um paciente, num processo relativamente lento, produz angústia e sensação de fracasso, tanto ao médico, quanto ao estudante de medicina que o acompanha. Ao longo da graduação, o estudante enfrenta situações envolvendo a morte e o morrer do paciente e, freqüentemente, encontra-se despreparado (Kovács, 1991). A disciplina de anatomia, no primeiro ano médico, encarrega-se de proporcionar os conhecimentos básicos sobre o corpo humano e induz a valorização do estudo científico; colocando, em segundo plano, uma concepção filosófica mais abrangente sobre o ser humano. Os futuros médicos entram em contato com a morte despersonalizada, sem identidade e sem história. São ossos, músculos e nervos que são cortados tecnicamente e com objetividade. O estudante deve, pela ciência, reprimir qualquer sensação de repulsa ou desespero, sendo esta experiência, de alguma forma, importante para o sucesso ou não do futuro médico. No decorrer do curso, o estudante se deparará com necropsias: sofre impacto intenso, pois a morte fica mais próxima da pessoa viva. A partir dos primeiros estágios, aumenta a sua angústia ao confrontar-se com o paciente em estado crítico (Finlay & Fawzy, 2001; Kovacs, 1991; Zaidafhaft, 1990). Neste contexto, o relacionamento do futuro médico com o paciente é considerado uma das maiores dificuldades a ser enfrentada (Rezende, 2000; Zaidafhaft, 1990): a graduação e as especializações em Medicina não conseguiriam preparar os profissionais para tais habilidades de comunicação (Wenrich, 2001). O presente estudo, originou-se da inquietação de uma aluna de graduação que vivenciou dificuldades ao deparar-se com a morte e o morrer dos pacientes, desde os primeiros anos da escola médica. O método fenomenológico foi escolhido como o mais adequado para se conduzir a pesquisa. Trata-se de uma modalidade de pesquisa qualitativa que busca compreender a experiência vivida, com base na perspectiva das pessoas que a vivenciam.

Objetivo O objetivo do estudo foi investigar a experiência subjetiva de estudantes de medicina sobre os significados de cuidar do paciente em fase terminal.

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Método O método fenomenológico começa com uma descrição, uma situação vivida no cotidiano. A descrição da experiência vivida pelo aluno de medicina é a expressão do que ele percebe, no senso comum, que não passou pela reflexão. Quando o pesquisador lhe pergunta “O que significa para você cuidar dos pacientes em fase terminal?”, ele descreve o que lhe vem à mente no momento, isto é, o que foi significativo e marcante na realidade vivida. Este dado parte de uma posição anterior à do pensamento reflexivo, chamado de pré-reflexivo, que consiste na “volta às coisas mesmas”, as coisas como percebidas na existência. O pesquisador obtém, portanto, depoimentos sobre aquilo que está diante dos seus olhos, tal como aparece. Pode-se dizer que os depoimentos mostram o fenômeno, mas ao mesmo tempo o ocultam, pois mostram a aparência do fenômeno, mas ocultam verdades essenciais, que apenas serão desveladas mediante a análise e a interpretação fenomenológicas. Neste momento, é importante a atitude fenomenológica adotada pelo pesquisador, que lhe permite abertura para viver a experiência de uma forma gestáltica, ou seja, na sua totalidade, tentando isolar todo e qualquer julgamento que interfira na sua abertura para compreender a descrição. Ele procura deixar de lado todo e qualquer pensamento predicativo, concepções, julgamentos que possa ter sobre o fenômeno estudado. Ao fazer este movimento, o pesquisador está colocando o fenômeno em epoché. A meta do pesquisador, trabalhando com a descrição do fenômeno, é buscar a sua essência, a parte mais invariável da experiência, tal como situada num contexto; a essência consistindo, portanto, na natureza própria daquilo que se interroga. Merleau Ponty ilustra este movimento de aproximação ao fenômeno, tentando descobrir o que ele é, ao descrever uma casa: Percebemos uma casa vizinha à medida que passamos por ela. Quando nos aproximamos, vemos primeiramente um lado, depois, à medida que caminhamos, vemos a frente da casa e, a seguir, o outro lado. Se contornássemos a casa, veríamos os fundos, e, se pudéssemos entrar, veríamos o interior, de vários ângulos, de acordo com a nossa localização. Como vemos a casa de forma diferente em cada ângulo, sabendo que se trata da mesma casa, concluímos que a casa existe como algo em si, independente de qualquer perspectiva. Por outro lado, a visão desta, de qualquer ponto onde estejamos, permite saber que é uma casa. Ver a casa é, portanto, vê-la de algum lugar, em algum momento, ou seja, vê-la de uma forma perspectival, num determinado local, num determinado tempo, referidos como um horizonte. Ver a casa, portanto, implica poder vê-la de várias perspectivas, que são várias possibilidades. (Merleau Ponty, 1945, p.81)

Esses conceitos relativos à estrutura espaço-temporal da percepção dizem respeito à metodologia fenomenológica fundamentada em Merleau Ponty. Quando o pesquisador solicita a descrição dos vários participantes sobre o fenômeno estudado, compreende-se que cada um a faz segundo sua perspectiva de perceber o fenômeno; e as percepções em tempo e locais diversos, por pessoas diferentes, doam-se ao pesquisador como visões perspectivais3 do fenômeno. Estas se cruzam na inter-subjetividade e apresentam-lhe significados comuns, que permitem compreender a estrutura do fenômeno. No momento seguinte, quando o pesquisador faz a interpretação fenomenológica dos dados, a

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3 Termo filosófico utilizado por Merleau Ponty, significando, no contexto da Fenomenologia Existencial : “que adquirem características definidas pelas variações de local e tempo - o horizonte - a partir dos(as) quais são percebidas” (nota dos autores).


visão da estrutura do fenômeno é compreendida dentro da perspectiva do pesquisador, que é uma outra perspectiva, outro campo, outro horizonte – agora o do conhecimento científico. Estes dados interpretados permitem atingir um campo específico de generalidades, que se pode afirmar pertencer à estrutura geral do fenômeno – a essência do fenômeno. O fenômeno apresenta, portanto, um caráter perspectival. Como algo que se mostra, e ora se oculta, ele se mostra a quem o percebe de acordo com a percepção humana, que é perspectival. Pode-se dizer que o fenômeno nunca se apresenta na sua dimensão total, isso seria uma abstração; a convergência de várias perspectivas, no entanto, leva a perceber a estrutura do fenômeno. Para esta abordagem, todo o universo da ciência se construiu com base na percepção do mundo vivido e, ao se pensar a ciência com rigor, é necessário rever primeiramente as experiências do mundo vivido, do qual a ciência é a expressão segunda. Neste movimento, para se descobrir a essência do fenômeno, a redução fenomenológica é o recurso fundamental para garantir a descrição fiel do fenômeno, partindo dos dados obtidos - as descrições dos participantes. A redução põe em evidência a intencionalidade da consciência voltada para o mundo, ao colocar entre parênteses a realidade como a concebe o senso comum, e purificar o fenômeno de tudo o que comporta de “inessencial” e acidental, para fazer aparecer o que é essencial. Husserl (1965) concebeu uma técnica que dá ao pensamento a certeza de reter só o essencial do fenômeno em estudo. Este processo chama-se variação eidética, e consiste em imaginar todas as variações possíveis do objeto em estudo, a fim de se identificarem os componentes do objeto que não variam, os invariantes, que definem a essência do objeto. Atingindo, assim, a essência do fenômeno estudado.

Procedimentos A coleta dos dados foi desenvolvida mediante entrevistas gravadas, no período de outubro/2003 a outubro/2004. Os participantes foram 24 alunos do quinto e sexto ano do curso médico de uma faculdade pública paulista, entre 21 e 27 anos, sendo 11 do sexo masculino e 13 do sexo feminino, que haviam vivenciado entre dois e três episódios de cuidar de pacientes em fase terminal. Os alunos foram previamente convidados a participar e não houve recusas; pelo contrário, mostraram-se interessados no tema. Foram entrevistados individualmente, em sala reservada para este fim, respondendo à seguinte questão: “O que significa para você cuidar dos pacientes em fase terminal?” Expressaram-se, estimulados pela pergunta, espontânea e livremente, sem interrupções por parte da pesquisadora que os entrevistou. As entrevistas tiveram duração média de 45 minutos, sendo que a fita gravada foi inutilizada após a transcrição dos depoimentos. A análise e interpretação dos dados seguiram os passos propostos por Sadala & Adorno (2002): a) as descrições dos estudantes foram analisadas e interpretadas, num primeiro momento, individualmente (análise ideográfica). Após leituras repetidas e atentas da descrição, identificaram-se as unidades de significado, ou seja, os trechos do discurso que respondiam à pergunta dos pesquisadores, analisando-as no enfoque do fenômeno interrogado. Ao final da análise ideográfica, os pesquisadores articularam a sua própria compreensão a respeito do depoimento; b) após análise individual de todas as descrições, buscaram-se as suas convergências (análise nomotética), que mostraram a confluência das visões perspectivais de todos os participantes, desvelando os invariantes do fenômeno estudado, a sua essência. Neste caminhar da análise ideográfica para a análise nomotética, ao tematizar e agrupar as convergências, alcançaram-se as verdades gerais sobre o fenômeno estudado, na perspectiva daqueles que o vivenciaram (Figura 1). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética na Pesquisa da Instituição onde se desenvolveu. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

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UNIDADES DE SIGNIFICADO 1.1 1.4 2.2 2.4 2.5 3.2 3.4 4.1 4.3 5.1 5.3 5.8 5.9 6.1 6.3 7.7 7.8 7.9 8.4 8.5 8.7 9.1 9.2 9.3 9.5 10.2 10.3 10.4 12.1 12.2 12.3 13.2 13.4 13.5 14.2 15.1 15.2 15.4 16.2 16.4 16.5 17.3 17.6 18.4 19.2 19.4 19.5 20.1 20.4 20.6 20.8 21.2 21.4 21.5 22.5 23.4 23.5 24.3 24.6

CONVERGÊNCIAS

Experiência difícil

CATEGORIAS ABERTAS

DEPARANDO-SE COM O MUNDO DA DOENÇA TERMINAL/MORTE

Despreparo

Sentimentos

Comunicação

Reflexões sobre a morte e o morrer

RELAÇÃO COM O PACIENTE E FAMÍLIA

Cuidado com o paciente

Significados para a formação profissional

Aproximação e envolvimento

REFLEXÃO SOBRE O PACIENTE TERMINAL E FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Ansiedade inicial

Figura 1. Análise nomotética: convergências dos depoimentos de 24 alunos de Medicina que responderam à questão “O que significa cuidar de pacientes em fase terminal?”

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Construção dos resultados As convergências das unidades de significado dos discursos desvelaram a estrutura do fenômeno interrogado, sendo agrupadas em três temas essenciais: a) deparando-se com o mundo da doença terminal/morte; b) relação com o paciente e sua família; c) a reflexão sobre o paciente terminal e a formação profissional. As convergências para os três temas essenciais foram orientadas pela visão de mundo de May (2004), descrevendo os três aspectos simultâneos de mundo, que caracterizam a existência de cada um: o mundo ao redor; relações com as pessoas; e a relação consigo mesmo. Estes aspectos interagem entre si, influindo uns sobre os outros, como partes de um todo indivisível a experiência de ser-no-mundo. Portanto, esses temas que descrevem o fenômeno estudado somente podem ser compreendidos no conjunto, como um todo. No decorrer da análise serão citadas falas dos participantes, com o propósito de ilustrar e clarificar a interpretação dos dados.

Deparando-se com o mundo da doença terminal/morte Para este tema, convergiram as falas dos estudantes sobre o impacto causado pelos primeiros contatos com uma pessoa que está morrendo, de quem deveriam cuidar e sobre a sua visão do cuidado médico. Constituem este tema os seguintes subtemas: a) experiência difícil - descrevendo como reagem ao saber que o paciente encontra-se em fase terminal da doença; e as repercussões no seu cotidiano; b) despreparo - descrevendo a insegurança dos alunos e suas opiniões sobre o seu preparo para este cuidado; c) cuidados ao paciente - descrevendo o que poderiam fazer pelo paciente e o que se espera do médico nesta situação. Ao falarem sobre suas experiências, os alunos reavivaram sentimentos de ansiedade, suas expectativas e dificuldades, enfim, as lembranças mais marcantes de uma experiência peculiar. Descreveram sofrimento intenso, parecia-lhes uma situação extremamente complexa, nova, para a qual não encontravam soluções adequadas de como agir e comportar-se. Um estudante afirmou: “Eu me envolvi muito sempre, sofri bastante. Num dos casos, eu cheguei a ter episódios de somatização: eu tive febre, dor de cabeça.” (9.2) Os alunos manifestaram sentimentos de estranheza diante das normas de não-reanimação, em situações em que o procedimento provocaria mais sofrimento, sem perspectivas de sobrevida. Um aluno relatou: “A orientação ‘se parar parou’, quer dizer, você não vai fazer nada... No começo, isso me assustava um pouco.” (15.2) A ansiedade e angústia provocadas pela situação interferem no seu cotidiano: vários relatam que tristeza e sintomas depressivos perturbaram suas atividades normais e o sono, no período em que se relacionaram com esse tipo de paciente. Mesmo quando a morte significou um alívio para o paciente, persistia o sentimento de perda, como descreve um participante: “Se foi um alívio para a pessoa, para mim não foi, me senti péssimo. Eu sentia um aperto que eu nem sei explicar em palavras para você.” (24.3). Descreveram sentimentos de impotência e culpa, por não terem feito nada do que se espera do médico, de forma enfática - alguns choraram: Experimentei a sensação de tristeza e, ao mesmo tempo, de impotência, por não fazer nada de efetivo, a não ser cuidados paliativos. (2.2) As pessoas confiam no médico e esperam dele atitudes que ajudem seu parente. Quando não se pode fazer nada, sente-se uma sensação de impotência muito grande, pois acreditamos que, para a maioria das doenças, existe uma causa e uma solução... Pelo menos para a maioria. (23.4)

Vivenciando conflitos e dificuldades, os alunos perceberam-se pouco preparados para lidar com a morte iminente do paciente. Dois participantes sintetizam o pensamento predominante entre os colegas:

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CUIDAR DE PACIENTES EM FASE TERMINAL...

Na graduação a gente tem psicologia médica, aprende teoricamente a lidar com a morte e com paciente terminal, mas as psicólogas não estão no hospital, não são responsáveis pelo paciente. (3.4) Os professores dizem que temos que ler muitos livros sobre o assunto para conhecer a alma humana. Acabo não me arriscando muito com estes pacientes, pois não li muitos livros sobre isso. (7.7)

É consenso entre todos que se deve dar continuidade aos cuidados ao paciente, a despeito de não se esperar mais pela cura: o cuidado deve, então, ser direcionado ao paciente como pessoa, oferecendo-lhe conforto e preservando sua dignidade.

Relação com o paciente e a família Este tema apresenta as convergências das falas dos alunos que descrevem seu relacionamento com o paciente e seus familiares; a percepção da dor do paciente e dos próprios sentimentos nesta relação. Incluem-se, na categoria, os subtemas: a) ansiedade inicial - descrevendo o primeiro impacto ao conhecer o paciente; b) comunicação com o paciente - sobre as dificuldades de interagir nesta situação; c) sentimentos envolvidos - a influência de sentimentos conflituosos na relação com o paciente; d) aproximação e envolvimento - descrevendo as mudanças desses sentimentos com a convivência. A relação com o paciente e sua família torna-se penosa no contexto da doença terminal. Os participantes descrevem situações nas quais tiveram dificuldades de comunicação, sobretudo, ao revelar o diagnóstico. Um aluno relata: O pior momento foi quando um paciente com neoplasia de pulmão me perguntou o que ele tinha, se ia ficar bem. Eu já sabia o que ele tinha, mas não quis contar; ou melhor, não saberia como contar. Ainda bem que esta parte fica para os residentes ... Mas sei que um dia isto vai se tornar uma rotina para mim. (13.5)

As dificuldades de comunicação com o paciente são percebidas como despreparo e decorrentes da sua posição de alunos. Eles expressam o medo de falar o que não devem, prejudicando o paciente. Assimilam o preconceito de que não se deve falar-lhe sobre a doença e sua condição. Estabelecemse, assim, barreiras que bloqueiam uma comunicação adequada, que ajudaria o paciente e seus familiares a perceberam a situação real que vivenciam. Diz um aluno: O medo de encarar a morte de um paciente torna minha relação com ele um pouco artificial. Minhas mensagens de esperança me parecem mentirosas. E a comunicação quanto às expectativas, prognósticos e tratamentos se torna muito difícil, podendo, assim, comprometer um possível tratamento paliativo que pudesse tornar a morte um momento um pouco mais sem dor. (8.5)

Contudo, mesmo ansiosos e inseguros, a aproximação ao paciente implica criar vínculos e envolver-se emocionalmente. Um aluno relata: “A gente acaba tendo mais simpatia por alguns, sei lá, de repente nos lembra alguém próximo.” (20.4) Outro participante descreve os sentimentos conflituosos e ambíguos, que acabam por influir nas escolhas profissionais: Sei lá, não quero trabalhar com gente morrendo, eu seria constantemente triste, e se alguém for morrer na minha mão, não quero ter muita amizade com esta pessoa ou com sua família... Acho que fui cruel falando assim, incrível, entrei querendo fazer medicina e acabo pensando mais em mim que nos outros, acho que ainda vou aprender muito... (5.8)

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Ao se envolverem na relação com o paciente, alguns alunos escolhem distanciar-se: É muito ruim olhar para pacientes que vão morrer, prefiro nem começar a conversar para não me apegar. (5.1) Muitas vezes, frente a pacientes terminais, prefiro me afastar um pouco, deixar mais o residente conversar, tomar condutas... ( 24.4)

O envolvimento dos estudantes é maior com os pacientes jovens, ou com aqueles que lhes lembram um familiar. Nessa situação, seria difícil alcançar equilíbrio entre o envolvimento excessivo e o distanciamento, pois as emoções interferem na relação com o paciente. Para um participante, o envolvimento afetaria a competência profissional: “Com o tempo, é preciso desvincular, pois senão você não consegue tratar o paciente.” (20.6) Estes dados revelam que os alunos priorizariam os próprios sentimentos na relação com o paciente, desfocando a atenção do seu papel profissional: Na hora me deu até vontade de chorar, pois era um velhinho tão simpático, com os olhos cheios de vida, que seguramente estava com os dias contados. (13.4) Apesar de saber que é assim mesmo, que deve aceitar a morte, a gente não quer se sentir assim. (23.5)

Alunos que vivenciaram esta situação várias vezes declaram ter baixado seu nível de angústia e ansiedade diante do paciente. Porém, as dificuldades e o sofrimento persistiram, sendo percebidos mais como insegurança de aluno, do que como dificuldade de comunicação.

A reflexão sobre o paciente terminal e a formação profissional Este tema inclui as convergências dos depoimentos dos participantes que trazem a reflexão sobre a experiência vivida ao cuidar do paciente em fase terminal da doença, sendo agrupadas em dois subtemas: a) reflexão sobre a morte e o morrer – descrevendo a análise das próprias crenças e valores sobre a morte; b) significados da experiência para a formação profissional – descrevendo o aprendizado e o desenvolvimento profissional frente à condição terminal do paciente . A idéia da morte e do morrer do paciente desvela-se em perspectivas particulares, cada um a interpreta de modo singular. Para alguns, essa experiência ensina a ver a morte como parte da vida. Um participante afirma: Eu encaro a morte como sendo uma coisa natural, e nenhum homem tem poder sobre a morte, quem tem é Deus. O que mais tem no médico é uma atitude de decidir se aquele paciente vai viver ou morrer, mas quem vai determinar isso é Deus. (9.1)

Para outros, a morte não tem sentido: É muito triste quando a pessoa não tem nada e morre. Dá um vazio. Quando é ‘se parar parou’, tudo bem. (1.1) Não é natural a morte, ninguém morre porque devia morrer. Sempre tem uma doença, um trauma, enfim, uma história, que às vezes é revoltante. (19.5)

Ou pode significar o alívio da dor: É estranho estar esperando a morte. Em algumas condições é tão sofrido para o paciente, que

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melhor lhe seria a morte. Talvez por isso a condição do paciente terminal seja pior que a da morte. (19.2)

A experiência faz refletir sobre a própria morte: Cada vez que vejo tais pacientes, penso em minha vida, nas minhas decisões, no futuro, quando estiver próximo à morte, em arrependimentos. Também penso na morte dos meus parentes próximos, se eu estaria preparado para agüentar isto. Na minha mente a certeza mais real e próxima é de que morreremos e a necessidade de repensar como será enfrentá-la. (7.9)

Alguns avaliam que a sofrida experiência pode ser positiva, trazendo crescimento pessoal. Ao se conscientizarem das dificuldades, contam com os seus próprios recursos para lidar com o sofrimento: Eu acho que isso é um problema meu, porque muitas vezes eu me envolvo muito. Em todos eles, foi muito importante para eu aprender a lidar com a morte, para a minha vida. (9.5) Vivenciar a morte de um paciente ou seus momentos finais é um momento em que eu preciso colocar toda a minha espiritualidade em prática. É preciso sair do mundo técnico e lembrar do que eu penso acreditar. Acho que a vida é uma caminhada em torno de uma missão e eu penso que a morte seria apenas uma parada para um descanso. (12.3)

A reflexão sobre o sentido da morte, na compreensão da existência, está relacionada, nos depoimentos dos participantes, ao aprendizado para o ser-médico. Evolui-se como pessoa e como profissional. Aprendem-se os limites da ciência e formas diferentes de cuidar: Hoje aprendi que a morte não acontece por sua culpa, deve haver uma força superior... E não é você que vai mudar, é conseqüência natural da doença, faz parte da evolução daquele quadro. (18.4) A gente tenta curar a pessoa para que possa continuar trabalhando... Mas, às vezes, a única coisa que a pessoa deseja é continuar viva... Cada um é cada um... Foi difícil entender que é possível ajudar pacientes que vão morrer. (21.4)

Ao longo da graduação, evolui-se no modo de vivenciar a morte do paciente: Eu sempre quis ajudar as pessoas, mas nunca pensei que poderia ajudar alguém que não vai ficar bom. Hoje eu sei que o que importa não é o resultado, mas sim a ajuda... (21.2) No começo eu relutava um pouco... Mas depois você não sente muito, você sente pena, quer ajudar, vai atrás ver se a pessoa tá recebendo o melhor tratamento que a pessoa pode receber. (15.4)

Um estudante analisa: “À medida que passa o tempo você começa a ter mais profissionalismo, a não misturar tanto o sentimento.” (17.6). Nesta perspectiva, o que seria “ter mais profissionalismo”? Apenas o cuidado técnico? Outros aprenderam que é possível ajudar o paciente terminal a viver, da melhor forma possível, seus últimos momentos e que isso não é inútil, pois se conscientizaram de que a função do médico significa mais do que apenas curar e manter a vida.

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Discussão Nos depoimentos, os alunos reavivaram sentimentos, expectativas e dificuldades ao cuidar do paciente em fase terminal. Concluem que enfrentar a morte é difícil e se percebe o alcance disto apenas quando se vivencia a situação. Pensar sobre a morte traz à tona lembranças de perdas antigas, a dor do luto, além do sentimento de finitude e o medo do futuro incerto (Zaidafhaft, 1990). A morte pode ser vista como a imposição do abandono de tudo o que se ama e gosta. Morrer também significa o sofrimento que pode envolver o processo de morrer. Rezende (2000) questiona a educação que se tem no ocidente, tanto a familiar quanto a escolar: não se inclui a educação para a morte, como se a morte não fosse assunto para gente viva, constata Zaidafhaft (1990). Todos os participantes descrevem essas dificuldades, atribuindo-as tanto à incapacidade de aceitar a morte de outro, por aludir à própria morte, quanto pela falta de experiências anteriores com a morte. Para eles, sempre é uma experiência dolorosa. No entanto, apresentam perspectivas diversas sobre o morrer do paciente: a morte é um processo natural, para alguns; para outros, um processo de sofrimento. Os alunos questionam e buscam entender os acontecimentos da vida, em vez de aceitá-los simplesmente. Há alunos capazes de transcender ao sofrimento da morte, demonstrando a compreensão da sua facticidade: a morte como contingência humana. Outros compreendem que a morte pode ser um alívio para a dor. Neste contexto, a conduta de Não Reanimação (NR) é trazida por alguns alunos como um complicador nesta situação, por si já difícil. Trata-se de uma prática que pode ser dificultada pela incerteza prognóstica, por equívocos sobre a autonomia do paciente e por implicações legais. No Brasil, a conduta de NR é tomada mediante ordens verbais e informais de “deixar o paciente morrer”, no caso de sofrer parada cardiorrespiratória. Esta decisão, que muitas vezes é adequada por atender aos princípios da beneficência e não-maleficência, peca por ser unilateral e infringir o princípio da autonomia (Rezende, 2000; Martin, 1998). Infringe, também, o código de ética médica. Este conflito tem sido alvo de debates; no momento, as associações médicas discutem o dilema entre: beneficência ao paciente, abreviando seu sofrimento, e o dever de preservar a vida, utilizando todos os recursos disponíveis (Cremesp, 2006). Os participantes do estudo afirmam não estar preparados para enfrentar esta situação e reconhecem a necessidade de disciplinas específicas e orientação direta dos professores, no que se refere a esta prática. Devido ao despreparo, percebem-se excessivamente envolvidos com o paciente, pois para eles não é claro o limite de onde parar. Há relatos de intenso sofrimento e depressão. Alguns adotam posturas de defesa, visando fugir do sofrimento, o que reconhecem ser uma tentativa superficial para sanar o problema. Na visão de Finlay e Fawzy (2001), essas atitudes seriam prejudiciais a ambos, estudante e paciente. Estes autores escreveram sobre a dificuldade de estudantes de medicina em lidar com a morte, desde a disciplina de anatomia: os alunos seriam induzidos, em toda sua formação, à indiferença diante da morte. Despreparados ao defrontar-se com a morte real, de pessoas, assumiriam a culpa pelo que não sabem. Daí os sentimentos de desvalia e impotência, muitas vezes responsáveis por idéias de abandono de curso, depressão e suicídio. Analisando esses aspectos profissionais, Meleiro (1998) alerta para os fatores de risco que levam estudantes de medicina e médicos a cometerem mais suicídio que a população em geral. Há a convicção, entre os participantes do estudo, de que seja papel do médico aliviar e confortar o paciente em fase terminal e esperam habilitar-se para este papel. Seus depoimentos desvelam, de modo não crítico, a percepção que têm sobre o duplo papel do médico: cuidar tecnicamente e relacionar-se com a pessoa que precisa de ajuda. Vários alunos concluem que é preciso conhecer-se para relacionar-se com o paciente. Quando um aluno afirma: “Estou ciente de que dar uma assistência médica a tais pacientes envolve muito mais do que conhecimento biológico. Requer algo de você, que envolve o cerne de seu próprio ser.” (7.8), ele fala do conhecimento de si próprio, de seus limites e dificuldades na prática profissional, de seus medos. E de como conscientizar-se disso pode ser utilizado na relação de cuidar desse paciente. Porém faltaria aos estudantes, conforme seus relatos, instrumentos para desenvolver essa relação.

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Encontramos similaridades entre os resultados do presente estudo e os encontrados por Wenrich (2001) e Finley & Fawzy (2001). Estes autores analisaram que são muitas as dificuldades de comunicação entre médicos e pacientes em fase terminal. Tais dificuldades seriam motivadas pela falta de habilidade do médico ao comunicar-se; o medo da própria morte; e a concentração nos objetivos da cura, temendo falar ao paciente sobre as limitações médicas, por parecer abandono do paciente à própria sorte. Os alunos de medicina não seriam ensinados a comunicar-se efetivamente, apenas seriam treinados para fazer determinadas perguntas. O aprendizado sobre a comunicação envolveria focar o relacionamento nos objetivos da relação terapêutica: ver o paciente como pessoa, ver-se como pessoa nesta relação profissional, lidando com os próprios sentimentos de forma a adequar os limites do envolvimento emocional com o paciente. Estas habilidades, quando desenvolvidas na formação médica, garantiriam ao profissional suporte emocional para a adoção de medidas visando a não-maleficência e evitando todas aquelas que possam ferir tal objetivo, ou seja, tratamento fútil ou causador de sofrimento (Young, 1993). Ao atribuírem significados à experiência vivida, os participantes desvelam perspectivas várias sobre o morrer do paciente: a morte seria um processo natural, para alguns alunos; para outros, seria o sofrimento e a solidão. Todos questionam e buscam entender os acontecimentos da vida, em vez de aceitá-los simplesmente. Há alunos que se sentem capazes de transcender a visão do sofrimento, demonstrando a compreensão da facticidade: a morte como contingência humana. Outros concluem que a morte pode ser um fim para a dor. Todos refletem sobre o dilema entre o viver ou morrer, quando o viver significa desesperança e dor, o apenas subsistir.. Este dilema, colocado pelos estudantes, remete à concepção de distanásia (morte lenta, com muito sofrimento), que pode ser interpretada como tratamento fútil, pois o paciente é submetido a grande sofrimento ou tortura, devido à insegurança ou onipotência do profissional. Em contraposição, a eutanásia (morte serena sem sofrimento) busca abreviar, sem sofrimento, a vida de um doente reconhecidamente incurável (Glover & Holbrook, 1993). De acordo com FaberLangendoen & Bartels (1992) e Glover & Holbrook (1993), definido o paciente como não salvável, os esforços deveriam ser dirigidos para priorizar o seu conforto, diminuir o sofrimento, e evitar o prolongamento da vida “a qualquer custo”. Esta postura diferencia-se da promoção do óbito, que seria uma compreensão equivocada da eutanásia, ou eutanásia ativa, segundo Pessini & Barchifontaine (1991). Os debates entre a eutanásia e a distanásia não se restringiriam simplesmente aos conflitos entre a beneficência e o dever do profissional. Remetem às competências do médico, quanto ao discernimento ético e quanto à compreensão dos elementos socioeconômicos e culturais, no contexto do morrer na assistência à saúde. Envolvem, portanto competências profissionais muito além das competências técnico-científicas: habilidades interpessoais e formação ética fortemente comprometida com o papel social do profissional.

Implicações para a prática Os participantes do estudo descrevem um modo de vivenciar o fenômeno estudado, ainda não descrito anteriormente na literatura: que esta experiência foi positiva e negativa, oscilando entre estas duas polaridades. Os dois temas, a) deparando-se com o mundo da doença terminal/morte e c) a reflexão sobre o paciente terminal e a formação profissional, mostram esta oposição. No primeiro, os participantes descrevem uma experiência difícil, complexa, que lhes traz intenso sofrimento e insegurança, impossibilitando-os de agir adequadamente; no segundo, refletem sobre os significados encontrados nesta experiência, que estimulam seu crescimento pessoal e o aprendizado para a vida, vislumbrando novas perspectivas para a função do médico que se tornarão. Trata-se de uma trajetória sofrida, seus sentimentos relacionados à aproximação com o paciente – descritos no outro tema: b) relação com o paciente e a família – dificultam o seu aprendizado. Porém, contraditoriamente, também contribuem para que avancem no conhecimento de si mesmos ao se relacionarem com o paciente e com sua família. Nesta trajetória emergem questões essenciais para a

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prática médica, as quais remetem às concepções apresentadas na introdução deste estudo e que merecem ser discutidas, agora no enfoque dos dados encontrados. Em vários depoimentos, os alunos tangenciam as questões da eutanásia e distanásia, estranhando procedimentos como a não reanimação; em contraposição, há falas dos alunos sobre o dever médico de cuidar e salvar a vida. Outro tema que remete à prática médica, mais particularmente aos objetivos desta prática e à formação profissional, diz respeito ao paradigma da formação médica. Vários estudantes referem-se a isto quando questionam um ensino que relega ao plano secundário o aprendizado de comportamentos e habilidades interpessoais do aluno ao cuidar do paciente. Estas duas questões trazidas pelos participantes - a opção pela NR e o modelo de ensino médico, que não aborda aspectos humanísticos no cuidar - são diversas, porém convergentes. Fazer a opção entre eutanásia e distanásia significa já ter feito a opção por um dos paradigmas da medicina atual. Entre os paradigmas predominantes descritos por Martin (os paradigmas técnico-científico e comercial-empresarial), a opção da prática médica se faz pela medicina curativa, que definiria o conteúdo curricular das escolas privilegiando a formação técnico-científica, em detrimento da formação humana. O paradigma da benignidade humanitária e solidária, em contraposição, se definiria pela formação técnico-científica associada à formação humanística. Nesta opção, ocorreria a introdução de conteúdos filosóficos e antropológicos nos currículos médicos, assim como disciplinas de comunicação e relacionamento interpessoal. A introdução desses conteúdos significaria oferecer aos alunos de medicina a oportunidade para a reflexão e compreensão sobre as questões que emergiram do presente estudo: como comunicar-se e relacionar-se com o paciente que está morrendo; como superar os próprios sentimentos de dor e angústia diante da idéia da morte; como aceitar que os cuidados paliativos sejam, também, objetivos “nobres” da prática médica. Porém, adotar esses conteúdos também significaria uma guinada radical na lógica da medicina curativa predominante na assistência à saúde, que sabemos determinada pelo contexto político e econômico. As questões relativas aos modos de morrer: a eutanásia, que privilegiaria os desejos e o bem-estar do paciente; e a distanásia, que obedeceria ao dever médico de preservar a vida, são questões polêmicas, inclusive dentro dos três paradigmas da medicina. Nos paradigmas voltados para a medicina curativa, predominaria a opção pela distanásia, que leva a prolongar a vida a qualquer custo, utilizando exaustivamente os recursos farmacológicos e tecnológicos, a não ser que o paciente não consiga pagar os seus custos (como ocorreria com as populações economicamente desprivilegiadas, segundo Martin, 1998). Porém, esta escolha não se dá apenas em função de uma filosofia moldada no paradigma da assistência: remete também às questões éticas e legais (Siqueira-Batista & Schramm, 2004). Isto significa que a decisão do médico é, sobretudo, uma opção individual, resultante de um posicionamento particular do profissional, diante da situação particular do paciente - o que exige dele uma sólida formação filosófica e ética, além das competências interpessoais, propiciando uma comunicação efetiva entre o profissional e o paciente, com sua família. Percebemos, em algumas escolas, movimentos no sentido de trazer para a prática as questões éticas aqui discutidas: iniciativas similares às propostas pela concepção da ortotanásia, como a assistência paliativa aos pacientes, a humanização dos hospitais. Porém, inseridos, de forma fragmentada, em determinadas disciplinas, como a Oncologia, a Terapia Antálgica, e nunca na formação básica e geral do futuro médico. Os movimentos de humanização da assistência também limitam-se a ampliar o horário de visitação aos doentes, agendar horário de consultas para diminuir a espera, etc. São iniciativas importantes, porém limitadas. Não temos conhecimento de iniciativas voltadas para desenvolver habilidades e competências, como sensibilidade humana, comunicação e relacionamentos interpessoais, e maior espaço teórico e prático para a ética do cuidado. Seria necessário que os alunos se conscientizassem da natureza do ato médico, que traz embutida a relação humana entre paciente e profissional; incluem-se, nesta relação, os sentimentos, a dificuldade de comunicação, a relação pessoal com a morte e o morrer, pois serão determinantes na hora de cuidar. Pensamos que transformar a realidade deste processo de formação do futuro médico passa por mudanças significativas no cenário socioeconômico e cultural do país; assim como no sistema de saúde, como um todo.

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Este estudo, não sendo estatístico, não pretende generalizar; mas descrever e compreender a experiência vivida por grupo de alunos de medicina, contextualizada no local e tempo em que se desenvolveu. Novos estudos sobre o tema, em outras regiões do país, poderiam acrescentar novos horizontes para melhor compreensão da prática de cuidar do paciente em fase terminal da doença, no contexto da formação médica brasileira.

Referências ALMEIDA, M. Argumentos e contra-argumentos. In: PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P.B. (Orgs.). Problemas atuais da Bioética. São Paulo: Edições Loyola, 1991. p.353-4. CREMESP. Conselho Regional de Medicina do Estado de São Paulo. A difícil decisão de encerrar a vida. Jornal do CREMESP, n.227, julho 2006. Disponível em: <http:// www.cremesp.org.br/crmonline/jornalcrm/novo_jornal/corpo.php?MateriaId=698>. Acesso em: 24 set. 2007. FABER-LANGENDOEN, K.; BARTELS, D. Process of forgoing life-sustaining treatment in a university hospital: an empirical study. Crit. Care Med., v.20, p.571-7, 1992. FINLAY, S.E.; FAWZY, M. Becoming a doctor. Br. Med. J., v.27, n.2, p.90-2, 2001. GLOVER, J.; HOLBROOK, P.R. Ethical considerations. In: HOLBROOK, P.R. Textbook of pediatric critical care. Philadelphia: W. B. Saunders, 1993. p.1124-30. HUSSERL, E. A filosofia como ciência do rigor. Coimbra: Atlântica, 1965. KOVÁCS M.J. Pensando a morte e a formação de profissionais de saúde. In: CASSORLA, R.M.S. (Ed.). Da morte: estudos brasileiros. Campinas: Papirus, 1991. p.79-103. MARTIN, L.M. Eutanásia e distanásia. In: COSTA, S.I.F.; OSELKA, G.; GARRAFA, V. (Orgs.). Iniciação à Bioética. Brasília: Conselho Federal de Medicina, 1998. p.171-92. MAY, R. Contributions of existential psychotherapy. In: MAY, R.; ANGEL, E.; ELLENBERGER, H.F. (Eds.). Existence. New York: Rowman & Littlefield Publishers, 2004. p.37-91. MELEIRO, A.M.A.S. Suicídio entre médicos e estudantes de medicina. Rev. Assoc. Méd. Bras., v.44, n.2, p.135-40, 1998. MERLEAU PONTY, M. Phénoménologie de la perception. Paris: Gallimard, 1945. PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C.P.B. Problemas atuais da Bioética. São Paulo: Edições Loyola, 1991.

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SADALA, M.L.A.; SILVA, M.P. Asistencia a los pacientes en fase terminal: la experiencia de los alumnos de medicina. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.7-21, jan./mar. 2008. El objetivo de este estudio ha sido comprender los significados que los alumnos de medicina atribuyen a la experiencia de cuidar de pacientes en fase terminal. Los datos se obtuvieran por medio de entrevistas individuales con 24 estudiantes de medicina de una universidad del estado de São Paulo, Brasil. Las convergencias de las declaraciones de los estudiantes se agruparon en tres categorías: a) afrontando el mundo de la enfermedad terminal; b) relación con el paciente y su familia; c) reflexión sobre el cuidado del paciente terminal. En sus manifestaciones los estudiantes expresan ansiedad al cuidar de este tipo de paciente así como las dificultades ante sus propios sentimientos. Se consideran poco preparados para relacionarse con este tipo de pacientes pero han aprendido con la experiencia vivida. Los resultados del estudio apuntan hacia la necesidad de que se introduzcan en la formación médica contenidos para desarrollar competencias interpersonales y capacidad de reflexión sobre cuestiones de ética y deontología médica, incorporando la terminación de la vida.

Palabras clave: Estudiantes de medicina. Muerte. Paciente terminal.

Recebido em 13/03/06. Aprovado em 18/09/07.

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O cuidado no trabalho em saúde: implicações para a formação de enfermeiros

Roseni Rosângela de Sena1 Kênia Lara Silva2 Alda Martins Gonçalves3 Elysângela Dittz Duarte4 Suelene Coelho5

SENA, R.R. et al. Healthcare at work: implications for nurse training. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.23-34, jan./mar. 2008.

With the aim of identifying the needs for changes in nurse training when taking care to be the domain at the specific center of nursing practice, a qualitative study was developed using interview data from focal groups involving lecturers and students from nursing schools in the state of Minas Gerais, Brazil. In these nursing schools, the concept of care that translates how to act incorporates an integral view of human beings and takes shape through relationships of intersubjectivity. However, the prevailing pedagogical and assistance-providing practice reiterates the biomedical model and weakens the notion of care expressed by participants. This indicates that the challenge for training is to be occupied with teaching that conserves the care practices of the specific professional center and their intersections within the healthcare field, in a movement that gives value to learning guided by reality, within which students experience and reflect on the care process.

Key words: Healthcare. Nursing care. Health education.

Com o objetivo de identificar necessidades de mudança na formação dos enfermeiros ao assumirem o cuidado como domínio do núcleo específico de sua prática, desenvolveu-se um estudo qualitativo utilizando-se dados de entrevistas em grupos focais com docentes e estudantes de escolas de enfermagem do estado de Minas Gerais, Brasil. Nessas escolas de enfermagem existe a concepção de cuidado traduzido como agir que incorpora uma visão integral do ser humano e que se concretiza em relações de intersubjetividade. Entretanto, prevalece uma prática pedagógica e assistencial que reitera o modelo biomédico e enfraquece a noção de cuidado expressa pelos participantes. Aponta-se, como desafio para a formação, a ocupação com um ensino que resgata as práticas cuidadoras do núcleo profissional específico e das intersecções no campo da saúde, num movimento que valoriza a aprendizagem pautada na realidade e no qual o estudante vivencia e reflete sobre o processo de cuidar.

Palavras-chave: Cuidado de Saúde. Cuidado de Enfermagem. Educação em Saúde.

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Enfermeira. Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais/UFMG. Rua Curitiba, 2232/301 Lourdes Belo Horizonte MG 30.170-122 rosenisena@uol.com.br 2 Enfermeira. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. 3 Enfermeira. Escola de Enfermagem, UFMG. 4 Enfermeira. Hospital Sofia Feldman, Belo Horizonte. 5 Enfermeira. Escola de Enfermagem, UFMG. 1

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O CUIDADO NO TRABALHO EM SAÚDE...

Introdução No presente artigo, apresentamos os resultados da pesquisa “Abordagem do cuidado em currículos de Escolas de Enfermagem do estado de Minas Gerais”6, realizada por pesquisadoras do Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre o Ensino e a Prática de Enfermagem (NUPEPE), da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O artigo tem como objetivo identificar as necessidades de mudança na formação dos enfermeiros ao assumirem o cuidado como domínio do núcleo específico de sua prática nas intersecções que esta realiza no trabalho em saúde. Para o desenho teórico-metodológico do estudo, foram consideradas como orientação as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) do Curso de Graduação em Enfermagem, que estabelecem as competências e habilidades a serem desenvolvidas no processo de formação dos enfermeiros. Essas competências e habilidades tomam o cuidado como objeto do agir profissional na promoção da saúde, prevenção de adoecimentos e no tratamento e reabilitação das enfermidades (Brasil, 2001). O estudo estabelece como premissa que as escolas de enfermagem tenham como propósito a execução de uma formação que considere as políticas públicas de saúde, e formulem e executem um projeto ético, político e pedagógico, aliado às lutas pelo Sistema Único de Saúde em um campo em que o objeto da prática profissional específica - o cuidado em enfermagem – se expressa como estratégia para qualificar o cuidado em saúde e aprofundar as lutas pela integralidade da atenção à saúde em nosso país. Reconhecemos que o cuidado assume várias conotações que não se traduzem apenas como atividade realizada no sentido de tratar uma ferida, aliviar um desconforto e auxiliar na cura de uma doença. Entendemos que o sentido do cuidado humano é mais amplo e se revela como uma forma de expressão, de relacionamento com o outro e com o mundo, ou seja, como uma forma de viver plenamente (Waldow, 2001). Desta forma, o cuidado não se resume em um ato, mas numa atitude que “abrange mais que um momento de atenção, de zelo e de desvelo. Representa uma atitude de ocupação, preocupação, de responsabilização e de envolvimento afetivo com o outro”, como profere Boff (2004, p.33). As concepções sobre o cuidar estão presentes no debate sobre a qualidade da atenção à saúde, campo no qual a Enfermagem se articula para o desenvolvimento de sua prática social, tendo o cuidado como seu objeto nuclear específico. É preciso reconhecer que há uma diversidade de conceitos que perpassam o cuidar em saúde e em enfermagem, o que, muitas vezes, dificulta a construção de seu significado para os trabalhadores e usuários. Entretanto, há que se considerar que o cuidado é constituído por princípios fundamentais, como: direito, autenticidade, defesa da vida, acolhimento e alteridade (Ayres, 2004, 2001). Assim, mesmo que seja difícil a delimitação da concepção de cuidado que orienta as ações na atenção à saúde e na enfermagem, a explicitação dos seus elementos constitutivos torna-se fundamental para a prática das profissões que o assumem como diretriz ou se constituem por seu engedramento. Com essas premissas, espera-se que as escolas operem um ensino que prepare um profissional altamente qualificado para o trabalho, isto é, com competências e habilidades para prestar cuidados de saúde em consonância com os princípios do SUS, imprimindo a lógica da integralidade e da humanização no cuidado no seu fazer.

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6 Projeto de pesquisa financiado pelo Conselho Nacional de Pesquisa sob processo 470752/2003-3.


Esta questão é central no enfrentamento das demandas atuais no campo do ensino e da assistência à saúde, tradicionalmente marcadas pela organização de práticas reducionistas, voltadas a problemas fisiopatológicos e a remissão de sintomas, que não contribuem para o entendimento do cuidado como construção de projetos de vida, de saúde e de enfrentamento de doenças. Implica um processo de ensino-aprendizagem marcado pelo partilhar de experiências e reflexões, buscando articulação de saberes, poderes e técnicas, contextualizados política e socialmente para uma prática assistencial orientada pela integralidade e pelo desenvolvimento da autonomia do outro. Estão em expansão os estudos e discussões sobre o “cuidado humano”, sendo esta a melhor tradução epistemológica da expressão enfermagem, característica essencial do conhecimento e da prática de enfermagem e definidora do seu corpo científico e profissional. Na área da educação em enfermagem, trabalhos recentes abordam o ensino do cuidar como prática cuidadora, a aplicação de modelos educativos e abordagens pedagógicas que priorizam o cuidado, e as experiências curriculares inovadoras que buscam centralidade no cuidado (Waldow, 2006). Neste entendimento, reafirmamos a potencialidade de uma formação com coerência entre o projeto institucional e as políticas de saúde, articulando os espaços de gestão, formação e assistência para ampliar o território do cuidado em enfermagem e consolidar as práticas integrais e humanizadas.

Percurso metodológico A pesquisa sustentou-se na abordagem qualitativa que, conforme Minayo (2004), considera a possibilidade de incorporar as questões do significado e da intencionalidade como inerentes aos atos, às relações e às estruturas sociais, tomadas tanto no seu advento quanto na sua transformação, como construções humanas significativas. O referencial teórico-metodológico da pesquisa ancorou-se no método dialético para investigar a prática social da enfermagem no contexto das práticas de saúde. Adotamos a indicação de Gonçalves (2002) de que o método dialético constitui uma referência teórico-metodológica que permite analisar o objeto de estudo, tomando, como ponto de partida, a visão de mundo dos participantes da pesquisa, expressa nas suas formas de pensar a realidade social. Esse método se baseia na crença no movimento permanente que existe na natureza e na sociedade, bem como a crença de que essa sociedade, historicamente construída, pode ser transformada pela superação das contradições por meio da práxis criativa. O cenário do estudo foi constituído por escolas de enfermagem do estado de Minas Gerais, Brasil. Após aprovação do projeto nas instâncias da Escola de Enfermagem e do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas Gerais, foi realizado o mapeamento das escolas no estado e identificaram-se 29 escolas de enfermagem autorizadas pelo Ministério da Educação (MEC). Atualmente, existem 104 cursos de enfermagem, incluindo-se os autorizados pelo MEC, os em processo de reconhecimento e os autorizados pelo Conselho Estadual de Educação. Este dado demonstra a expansão vertiginosa do número de cursos de enfermagem no país (Brasil, 2007). Para a inclusão das escolas como cenário, foram definidos como critérios que a instituição tivesse formado uma turma até 2003, início do projeto, e que, no conjunto das escolas-cenário, as diferentes regiões geopolíticas do estado fossem representadas. No caso de ter havido mais de uma escola com essas características, foram incluídas uma escola pública e uma privada, com preferência para aquelas com mais tempo de funcionamento, buscando-se garantir a presença da diversidade de aspectos organizacionais, administrativos e políticos de cada escola. Assim, 12 escolas atendiam aos critérios de inclusão e foram consultadas quanto ao interesse em participar da pesquisa. Tendo ocorrido a negativa de duas escolas, dez foram trabalhadas como cenário. A coleta de dados se deu por meio de entrevistas coletivas na forma de grupos focais. Foram realizados dez grupos focais, um em cada cenário, com a participação de 58 estudantes e 58 docentes. No início da entrevista em grupo focal, foram apresentados os propósitos da pesquisa, os objetivos, os procedimentos de coleta de dados e assegurada a garantia do sigilo e do uso dos dados

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exclusivamente para a produção técnico-científica. Após os esclarecimentos, cada participante assinou o termo de consentimento livre e esclarecido. A discussão do grupo focal foi disparada com base na questão norteadora “descreva a abordagem do cuidado no ensino de enfermagem nesta escola”. A condução da discussão foi sustentada num roteiro com perguntas auxiliares, que permitiram explorar vários aspectos do tema estudado valendo-se das manifestações dos participantes. Os grupos focais tiveram duração de, aproximadamente, duas horas, em cada cenário, e foram organizados segundo os momentos do trabalho grupal apresentado por Dall’agnol & Trench (1999). Os grupos foram conduzidos por um moderador e um observador, atuando o primeiro como um guia da discussão, moderando a participação de todos em torno do objetivo da pesquisa. Para garantir a fidedignidade na reprodução dos dados, as falas dos participantes nos grupos focais foram gravadas e, posteriormente, transcritas e submetidas à análise de discurso, segundo orientação de Minayo (2004). As falas dos participantes em cada grupo foram codificadas, usando-se as letras GF e a numeração de um a dez, correspondente à seqüência em que foram realizados os grupos, permitindo-se, assim, relacionar o conteúdo da fala dos participantes ao cenário da pesquisa sem identificar a Escola. Os dados foram organizados em planilhas, constituindo o “corpus” da pesquisa em um banco de dados composto pelo conjunto dos dados dos cenários pesquisados. Essas planilhas apresentaram um panorama das informações obtidas nos dez cenários, possibilitando a análise por paridade entre os mesmos. Após a leitura exaustiva e a identificação das idéias centrais, emergiram as categorias e subcategorias. As categorias foram organizadas buscando-se identificar uma lógica para o ordenamento dos temas centrais que as compõem. Na análise, buscou-se articular a realidade revelada pelos participantes do grupo focal com o aporte do conhecimento e vivência das autoras na construção das DCN de enfermagem (Silva & Sena, 2006, 2003; Sena et al., 2002).

Concepções de cuidado que emergem da formação do enfermeiro Ao descreverem a abordagem do cuidado na formação do enfermeiro, os participantes do estudo revelaram os conceitos de cuidar e de práticas cuidadoras que perpassam o processo ensinoaprendizagem e traduzem as concepções sobre o objeto da prática de enfermagem em seus diversos cenários de atuação. Expressaram, também, as concepções de enfermagem e de trabalho em saúde, tematizando a essência da profissão e as contradições expressas no pensar, fazer e ser dos profissionais de enfermagem. A análise dos discursos construídos nos grupos focais revelou que existem diferentes concepções sobre o cuidado. É importante ressaltar o fato de as possibilidades dos discursos apontarem uma liberdade de interpretação que parece fundamental para uma prática política e eticamente coerente com as necessidades e demandas de saúde da população e dos princípios do SUS. Os discursos dos participantes do estudo evidenciaram uma concepção de cuidado na qual o cuidador e o Ser cuidado se relacionam e constroem um projeto terapêutico humanizado. Os participantes expressaram suas concepções de cuidar afirmando que “cuidar é ouvir, estar do lado” (GF3), “é respeitar a vontade do outro” (GF4), “é acolher, estar junto” (GF6). A análise dos discursos permitiu afirmar que a compreensão do cuidado, como elemento para fortalecer a autonomia crítica dos sujeitos envolvidos no processo de cuidar, deve ser construída com base na flexibilidade, intersubjetividade, reconhecimento dos valores do ser humano e reconhecimento do outro como um ser diferente. Esta análise conduz a uma concepção de cuidado, descrita por Waldow (2001), como fundamentada em sua essência epistemológica: presença, consideração, interesse, zelo, preocupação e afeição. Para enriquecer essa compreensão, buscamos o referencial de Ayres (2004, 2001) que, ao discutir a reconstrução das práticas em saúde, destaca aspectos relevantes para a análise do cuidado nesse âmbito. O autor apresenta os elementos movimento, interação, identidade, alteridade, plasticidade,

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desejo, projeto, temporalidade, não-causalidade e responsabilidade como inerentes e indispensáveis às múltiplas relações em que se constrói o cuidado. Os participantes expressaram que o cuidado em enfermagem se concretiza na possibilidade da “atenção holística”: “cuidar em todos os sentidos, ver a pessoa como um todo” (GF2), ou seja, uma compreensão do ser cuidado em todas as suas dimensões, possibilidades e interações. Com base nos discursos, foi possível reconhecer, também, que os participantes identificam que o cuidado em enfermagem deve considerar “a co-responsabilização” (GF4), “deve estimular a autonomia” (GF2) e “o respeito ao sujeito em decidir sobre sua vida” (GF2). Identificamos que o ser cuidado e o cuidador são considerados pelos entrevistados na perspectiva de suas singularidades, nos seus modos de ser, sentir e expressar, confirmando a aplicação dos princípios de humanização e integralidade no cuidado. A prática cuidadora, revelada pelos sujeitos da pesquisa, está presente no toque, na fala, nas observações, na escuta, no acolhimento, no estabelecimento de vínculos e na capacidade de atuar em contextos de imprevisibilidade. Assim, as diferentes concepções sobre o cuidado, expressas pelos participantes do estudo, revelaram a intencionalidade de assumir a perspectiva do cuidado centrado no usuário. Essa consideração aponta para a necessidade de reconstrução das práticas pedagógicas e de saúde, capazes de incidir na configuração de um modelo de atenção centrado nos usuários. Visualiza-se a importância de se resgatar a natureza do cuidado como sustentado nas relações interpessoais mediatizadas por tecnologias leves, entendidas como aquelas que envolvem as relações entre os sujeitos, implicando vínculos, acolhimento e responsabilização (Merhy, 2002a). Importante destacar que o cuidado centrado no usuário, na percepção de Merhy (2002a), não contém sentido intimista, mas de contraposição ao cuidado centrado em procedimentos, nas rotinas institucionais, nas corporações profissionais ou em toda sorte de interesse privado (centrado no uso de produtos, equipamentos, serviços, instalações). O interesse do cuidado é relativo ao usuário, inclusive ao que nele pede passagem (vivência ético-estético-política). Entretanto, os participantes revelaram que ainda prevalece na atenção à saúde uma prática centrada no ato dos profissionais e nas tecnologias com ênfase na atenção individual e curativa. Conforme Afanador (1998), constatamos que é preciso assumir um movimento de construção do cuidado que valorize: a autenticidade dos interlocutores, o respeito à originalidade alheia e própria, o desejo de compartilhar, a preocupação de fazer-se compreender, bem como uma atitude de escuta e atenção permanentes. Esse reconhecimento reforça a importância do uso e valorização das tecnologias leves como definidoras do cuidado em enfermagem. Tais tecnologias devem se fazer presentes em todas as interações entre trabalhadores de enfermagem e demais trabalhadores da saúde, além de presidirem o cuidado às pessoas, tanto individual como coletivamente, no cuidado de famílias ou grupos populacionais. A enfermagem, por sua natureza cuidadora, tem tradição no uso das tecnologias leves e precisa qualificá-las com o propósito de valorizar seu conhecimento, suas práticas e seu sentir como cuidadora. Assim, a formação dos profissionais de enfermagem precisa construir saberes sobre os fazeres relacionados às tecnologias leves: momentos de conversação, escutas e interpretação de sentidos, assim como momentos de cumplicidade, nos quais há produção de responsabilização para com os problemas a serem enfrentados, e momentos de confiabilidade e esperança, nos quais são geradas relações de vínculo e aceitação, como afirma Merhy (2002b). A análise dos discursos dos participantes revela que ainda não se alcançou esse grau de acumulação na práxis do ensino e do cuidado em enfermagem. Os entrevistados expressaram a intencionalidade de resgatar e ressignificar as tecnologias leves no cuidado de enfermagem como um imperativo ético-político pela defesa da vida com qualidade e centralidade do cuidado a indivíduos, grupos e coletivos, num exercício de cidadania para o qual exigem-se mudanças na formação dos enfermeiros. Sobressai-se a necessidade de superar, nas práticas de saúde, o enfoque biológico, centrado na patologia e nos aspectos curativo e individual, características que se contrapõem às concepções de cuidado projetadas como imagem-objetivo pelos participantes do estudo.

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Da análise dos dados foi possível extrair que o cuidado curativista ainda tem predominado nas práticas de enfermagem. Com base nessa constatação, percebeu-se o distanciamento que há entre as concepções de cuidado formuladas pelos entrevistados, o que eles expressam e o que se concretiza na prática cotidiana. Os participantes dos grupos focais expressaram que “o discurso do holístico é belo, mas a formação visa o patológico” (GF8), “há conflitos entre o discurso da escola e a situação real dos serviços” (GF8), “o cuidado volta-se ao biológico, patológico” (GF3). Consuegra (1998), referindo-se à prática do cuidado, enfatiza ainda que o verdadeiro cuidador quer liberdade, diálogo e criatividade, fundamentos importantes para se discutir a prática docente na formação dos profissionais de enfermagem. Educar implica contextualizar o educando quanto às estruturas sociais e que, na enfermagem, a filosofia da formação e a do cuidado devem sustentar-se em um mesmo paradigma (Consuegra, 1998). A análise dos discursos permite evidenciar que o cuidado em enfermagem ocorre de forma fragmentada, impossibilitado de articular-se com as práticas de cuidado integral, as quais apresentam potencial para superar a visão orientada pela doença; e, também, a necessidade de se utilizarem as ferramentas indispensáveis à construção das múltiplas relações em que se constrói o cuidado. Nesse modo predominante, o saber e o fazer de enfermagem se curvam aos modelos hegemônicos de saber e de prática em saúde, sustentados no biológico, no curativo e na assistência individual focada na doença. Os participantes dos grupos focais expressaram que “o cuidado está muito arraigado ao biológico e isso vem ao longo do curso sendo muito pautado. Então, faz-se uma abordagem mesmo que superficial a uma patologia e, a partir daí, se insere o ensino do cuidado.”(GF3). Pode-se identificar nos discursos o reconhecimento da necessidade de mudança no enfoque da formação do enfermeiro, mas poucos elementos apresentados na análise dos dados sinalizaram um movimento de mudança. Percebeu-se uma reiteração das concepções hegemônicas orientadas pelo paradigma positivista, amplamente praticadas na saúde. Waldow (1998) analisa a construção do conhecimento na enfermagem, explicando a sustentação do mesmo no pensamento racional predominante da “Era Cientifica”. A autora afirma que esse paradigma tem influenciado a enfermagem desde seu surgimento até a atualidade. Ao fazer críticas a essa influência, a autora propõe novas idéias centradas no cuidado humano como filosofia de vida e diretriz para a enfermagem. A análise dos discursos permite inferir que o processo de mudança na formação do enfermeiro e a construção de outras possibilidades de cuidado na superação do modelo biomédico encontram desafios nas indefinições sobre os instrumentos próprios da profissão para a práxis do cuidado. Essa constatação é fundamental quando se pensa a necessidade de acumulação e movimentação de forças no sentido da construção de uma nova realidade tecnoassistencial da saúde, na qual a enfermagem se insira de maneira mais autoral. Os participantes dos grupos focais indicaram a necessidade de se construírem metodologias de sistematização do cuidado de enfermagem e a definição de um corpo próprio de conhecimentos para a profissão, ambos sustentados em conceitos que possibilitem explicar a prática cuidadora. Ao realizarem essas indicações, os entrevistados nos permitem inferir que o projeto ético-político da enfermagem deve produzir conhecimentos e uma prática social que supere a reprodução de práticas hegemônicas e dominantes no campo da saúde. É importante reconhecer que, ao apontarmos os desafios expressos nos discursos dos participantes dos grupos focais, buscamos contribuir para a construção de uma práxis criadora. Indica-se que esse aspecto deve ser retomado pelos docentes e estudantes entrevistados para que, em um diálogo com os enfermeiros de serviço e usuários, possam ser construídas novas possibilidades do cuidado, tendo como ênfase a prática cuidadora centrada no cuidado. Evidenciaram-se, nos discursos, novas práticas que reconhecem a importância das relações de subjetividade no cuidado, tanto para os profissionais quanto para os usuários. Foi expressa, ainda, pelos entrevistados, a urgência de se assumir o cuidado humano como uma atitude, conforme propõe Boff (2004).

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A especificidade do cuidado no trabalho em saúde e as implicações na formação dos enfermeiros Na análise dos discursos, fica revelado que, na realização do cuidado, a enfermagem opera em um campo comum aos trabalhadores de saúde. Seu conhecimento alimenta e expressa uma especificidade determinada e determinante da direcionalidade técnica própria do seu trabalho, que se articula ao trabalho dos demais profissionais de saúde. A especificidade da profissão fundamenta-se no cuidado como domínio específico do núcleo profissional, e apresenta-se, nos discursos dos entrevistados, como elemento que alimenta as tensões constitutivas da práxis cuidadora nas diferentes interseções que a profissão exerce no campo da saúde. Foram revelados, pelos participantes do estudo, elementos constitutivos do processo de trabalho de enfermagem, focando o sujeito no ato vivo de cuidar. Os entrevistados destacaram que o enfermeiro, como cuidador, respalda-se no conhecimento e nas práticas de enfermagem, visando, no ato de cuidar, desenvolver a autonomia do Ser cuidado. O trabalho de enfermagem é marcado pela complexidade e pelas possibilidades do trabalho vivo em ato (Merhy, 2002a) e contém diversidades de relações entre os participantes de uma equipe de saúde. São relações marcadas por aspectos culturais, socioeconômicos, éticos e subjetivos que definem essas e novas relações e a construção de projetos que se diferenciam a cada momento. Para sua atuação, um profissional mobiliza seus saberes e modos de agir, inicialmente definidos pelo problema a ser enfrentado e utilizando-se dos saberes específicos do seu campo profissional de ação, configurando um núcleo específico de conhecimentos. Não obstante, mesmo com o saber territorializado, há o núcleo das atividades de cuidado que recobrem o conjunto dos núcleos específicos de cada profissão, inclusive da enfermagem, e é comum a todos os trabalhadores. Este é o campo onde ocorrem os processos relacionais que, por natureza, são cuidadores, uma vez que ativados pelo desejo de assistir em saúde (Merhy, 2002b). Os entrevistados identificaram, na especificidade das profissões, aquilo que poderia potencializar as competências do núcleo específico de cada profissional e as competências comuns. Entre os enunciados identificados, alguns retomaram os conflitos entre as profissões, reafirmando a existência de relações de poder a serem alteradas. A compreensão de que o cuidado se constrói pela interseção dos núcleos específicos das diferentes profissões, ao revelarem que “todas as profissões têm um cuidar” (GF1), é afirmada pelos participantes do estudo, ao mesmo tempo em que explicitam que “cuidar em enfermagem é mais bem recebido que o cuidar da medicina” (GF1), e que as outras profissões não têm uma visão do cuidar como enfermagem: “enxergar o todo, e não a doença” (GF1). Essa contraposição revela os conflitos que permeiam as relações entre os profissionais de enfermagem e destes com os profissionais da saúde, e que expressam um conjunto de tensões constitutivas no agir em saúde. Suscitaram, também, expressões que revelam a enfermagem como “uma profissão submissa e delegada” (GF4); a “subordinação do enfermeiro” (GF4); “a divisão social do trabalho permeada pelas definições de competências, e não de cuidado” (GF1); e a hierarquização do cuidado. Por outro lado, outros enunciados indicam a intencionalidade de compreensão do trabalho em equipe: “precisa aprender a trabalhar em equipe” (GF5), “o trabalho em equipe faz crescer” (GF4). Esse desafio de trabalhar em equipe é apontado pelos entrevistados como fator que contribui para reduzir a fragmentação do cuidado, elevar a qualidade e a resolutividade do trabalho. Ao ser aceita a construção do conhecimento não privativo das profissões, ainda que os exercícios profissionais constituam territórios particulares de produção aprofundada do saber e do fazer, está colocado para todas as profissões o desafio de conjugar fazeres e saberes dos núcleos específicos e dos campos comuns dos trabalhadores da saúde na construção do cuidado. Quando analisamos as expressões das participantes dos grupos focais relativas ao trabalho em equipe, verificamos que a análise está permeada por conflitos, limites e dificuldades. Os participantes afirmam a inexistência do trabalho em equipe, culminando com a parcialização do cuidado. Afirmam, também, que o trabalho em saúde é, marcadamente, individualizado e centrado nos atos por profissional.

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Apesar de se referirem às limitações presentes nos serviços de saúde, relativas ao trabalho em equipe, os participantes reconhecem a potencialidade desse trabalho, tomando-o como um valor que se agrega ao núcleo comum da enfermagem e cria as oportunidades para o estabelecimento de acordos que favorecem o exercício multiprofissional com enfoque na interdisciplinaridade. Assumimos que a especificidade da enfermagem se expressa pelas relações com saberes e fazeres próprios que configuram um campo de conhecimento que contribui para a qualidade do cuidado. Quando analisamos o núcleo de competências específicas do cuidado de enfermagem, deparamo-nos com uma explicação histórica do cuidado humano tornado científico, e encontramos a essencialidade do cuidado e a sua realização de forma hegemônica, por mulheres, como parte da divisão de gênero no trabalho. Também demarca o campo do cuidado em enfermagem a centralidade das relações intersubjetivas que foram sendo ofuscadas pelo predomínio da incorporação de tecnologias duras no assistir em saúde, marcas próprias dos séculos XIX e XX (Silva & Sena, 2004). A práxis da enfermagem profissional está marcada por uma construção social, histórica e cultural, na qual a institucionalização transita entre o “natural” do cuidado e a profissionalização, incorporando o modelo de atenção sustentado na doença. Essa ambigüidade foi expressa pelos entrevistados como presente na formação do enfermeiro. Na análise dos discursos, foram identificadas expressões que apontam o legado histórico das mulheres como cuidadoras e o cuidado como opção de profissionalização dos trabalhadores de enfermagem. As expressões dos entrevistados são ricas em conteúdo e permitem qualificar a enfermagem e o cuidar com base nas contradições reveladas na análise da prática milenar de enfermagem, marcada pela presença das mulheres em uma forma de expressão de defesa da vida. Reconhecemos que pensar, fazer e sentir o cuidado é complexo, extenso e permeado de imprevisibilidades e de conflitos, expressando diferentes projetos em disputa. O cuidado realiza-se em um campo amplo de possibilidades: gerência da equipe de enfermagem, previsão e provisão de recursos instrumentais e institucionais para a qualidade da proteção à saúde, e visão ampla dos vários atores envolvidos no cuidado (outros profissionais, familiares e integrantes dos laços afetivos, membros da cultura de inserção de indivíduos e coletividades etc.). O cuidado, em enfermagem, tem implicação individual, coletiva e institucional. Entendemos que, para ser realizado, essas possibilidades devem orientar-se em coerência com a prática cuidadora que se expressa no dia-a-dia do trabalho em saúde. A análise do cuidado e de suas interfaces multiprofissionais como objeto comum com núcleos específicos de trabalho em saúde, fornece subsídios para a orientação da formação do enfermeiro sem supressão de especificidade e com reconhecimento dos valores profissionais singulares na ciência da enfermagem e nas práticas cuidadoras. Nesse sentido, os participantes do estudo revelaram o direcionamento do ensino para a assunção do cuidado como conceito que perpassa toda a formação. Expressam que há conteúdos transversais que remetem ao cuidado e que são trabalhados ao longo do curso. Afirmam, também, que, para além dos conteúdos abordados nas disciplinas, o cuidado se concretiza na formação por meio das relações estabelecidas entre docentes e estudantes, e no cuidar que o estudante vai construindo ao longo do curso, nos diversos cenários de ensino-aprendizagem. Uma questão importante destacada nos discursos refere-se à concepção sobre o cuidado que o estudante constrói com base em reflexões sobre a prática cotidiana do cuidado orientada pelo docente. Nesse sentido, uma das indicações da análise dos discursos refere-se à importância da inserção precoce dos estudantes em cenários reais, para que o cuidado possa ser assumido no cotidiano dos serviços de saúde. Essa análise reforça a necessidade da aproximação do ensino com as questões cotidianas dos serviços de saúde, permitindo a problematização da prática cuidadora do enfermeiro. Infere-se, da análise dos discursos, que o ensino voltado para o cuidado deve se sustentar num referencial pedagógico que valoriza o papel ativo do estudante na construção do conhecimento e da concepção de cuidado. Essa construção é possibilitada por um ensino pautado na realidade concreta, no qual o estudante vivencia e reflete sobre o processo de cuidar.

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Henriques & Acioli (2004) analisam que a formação profissional precisa dar conta de qualificar o enfermeiro para lidar com a multiplicidade de situações e tecnologias a favor do cuidado. Consideramos que essa análise converge para o cuidado centrado no usuário. Essa compreensão reforça a necessidade de se refletir sobre o cuidado em todas as suas dimensões na formação do enfermeiro, indicando que os desafios para abordagem do cuidado no ensino referem-se às concepções de educação que perpassam a prática do ensino da enfermagem e que repercutem na forma como são organizados e desenvolvidos os conteúdos curriculares durante a formação. A análise dos discursos permite afirmar que a organização do processo ensino-aprendizagem centrado no cuidado deve superar as concepções tradicionais de educação em enfermagem, ancoradas na dicotomia entre teoria e prática, para assumir uma educação que contribua com a aquisição de competências e habilidades para o cuidado integral. Essa construção encontra respaldo em metodologias inovadoras de ensino que permitem a ação/reflexão/ação sobre o processo cuidador. Com isso, aponta-se a necessidade de transformações no processo ensino-aprendizagem, implementando concepções pedagógicas que permitam a aproximação teoria/prática e a problematização da práxis cuidadora do enfermeiro como uma possibilidade para desenvolver o cuidado de forma integrada e contínua, individual ou coletivamente, orientado por um projeto éticoestético-político de defesa da vida. Dessa forma, defendemos que a abordagem do cuidado na formação do enfermeiro deve permitir a aquisição de competências a serviço de um projeto cuidador e integral que faça uma abordagem individual, sem desprezar a dimensão coletiva dos problemas de saúde, e que seja centrada no usuário, do modo como aponta Merhy (2002b). Os participantes reconhecem que existe um processo em transição e indicam sinais de um novo pensar nas escolas: “a escola está em transição de um modelo curativo para a saúde preventiva” (GF5), “repensar constantemente os conceitos para prestar o cuidado” (GF4). Essas considerações são apresentadas como fatores positivos e identificam-se indicativos para que os processos de transformação possam ocorrer. Além disso, os participantes reconhecem que é preciso uma decisão político-institucional para o processo de mudança que garanta mecanismos tais como: “o corpo docente deve estar mais preparado” (GF5), “falta apoio de uma ideologia para sustentar as mudanças” (GF8), “precisa de um sistema de avaliação dos docentes” (GF5), “o ensino do cuidado é gradual” (GF3). Mesmo reconhecendo os avanços, os participantes dos grupos focais refletiram sobre aspectos fundamentais para os processos de mudança que exigem superação: “falta coragem para mudar” (GF4). Na análise dos discursos é possível identificar que existe uma acumulação de novas práticas pedagógicas e assistenciais, nas escolas-cenário do estudo, que sinaliza um processo de mudança na formação do enfermeiro. Evidencia-se que, apesar dos desafios enfrentados pelos sujeitos, para romper com os modelos tradicionais de ensino, existe uma tendência de as escolas adotarem concepções pedagógicas crítico-reflexivas, que têm orientado a adoção de metodologias no processo de formação com centralidade nos estudantes. O movimento de mudança no ensino, com incorporação do cuidado como eixo norteador da formação, aponta, na análise dos dados, como um orientador das mudanças requeridas nos cenários de atuação da enfermagem, com avanços na organização tecnológica do trabalho, na produção do conhecimento e no resgate do papel do enfermeiro no cuidado humano.

Considerações finais A análise dos discursos revela aspectos críticos e potencialidades às escolas de enfermagem, para as necessárias modificações nos seus modelos de ensino, no que se refere ao objeto da prática de enfermagem - o cuidado. Existem avanços nas proposições quanto à articulação do cuidado nos currículos de enfermagem e nas políticas públicas de saúde. Entre os participantes do estudo, sinalizaram-se concepções de cuidado que resgatam a natureza epistemológica do cuidar, sustentado

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em características como vínculo, aceitação, acolhimento, responsabilização, afeto e intersubjetividade; mas foram explicitadas contradições, revelando que as concepções de cuidado idealizadas pelos participantes do estudo não se encontram ancoradas nas práticas pedagógicas e assistenciais. Ficou indicada a necessidade da enfermagem construir um corpo ampliado e próprio de conhecimento, tendo como referência as tecnologias do campo dos saberes em saúde e do núcleo específico da enfermagem. Existe uma intencionalidade de mudança, expressa pelos docentes e estudantes, que vêem a necessidade de uma reflexão crítica do conjunto dos sujeitos responsáveis pelo processo de educar/formar em enfermagem. O cotidiano do trabalho em saúde aparece marcado por conflitos e disputas entre os campos comuns e os núcleos específicos do cuidado em saúde. Pode-se concluir pela necessidade de mobilização da pesquisa, do ensino e da educação permanente em enfermagem, não apenas para a concretização dos estágios acadêmicos, mas também para que se aproxime o aperfeiçoamento do cuidado à realidade setorial, que está em mudança e na qual diversos desenhos tecnoassistenciais disputam por modos de exercer a atenção à saúde. Uma diferença importante do cuidado designado como especificidade da enfermagem é que ele se refere ao conjunto da organização da assistência e, por isso, parece tão impalpável. O objeto da enfermagem é o todo organizador de sistema de cuidados. O cuidado, como prática social da enfermagem, e a enfermagem, como ciência do cuidado, estão presentes nos discursos e desafios para as transformações no sistema de saúde e no ensino da enfermagem. Com os resultados da pesquisa, apreendemos que a adoção de uma concepção crítico-reflexiva facilitará a implementação de um cuidar consoante e congruente com o rompimento do modelo hegemônico centrado na doença, para construir um pensar, um fazer e um ser que se sustentem no cuidado como essência da profissão e da orientação da formação em enfermagem.

Colaboradores Os autores Roseni Rosângela de Sena e Kênia Lara Silva participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto. Alda Martins Gonçalves, Elysângela Dittz Duarte e Suelene Coelho participaram da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto. Referências AFANADOR, N.P. Intersubjetvidad, comunicación y cuidado. In: HERRERA, B.S.; AFANADOR, N.P. (Orgs.). Dimensiones del cuidado. Bogotá: Universidad Nacional da Colombia, 1998. p.34-40. AYRES, J.R.C.M. Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.8, n.14, p.73-92, 2004. ______. Sujeito, intersubjetividade e práticas de saúde. Ciênc. Saúde Coletiva, v.6, n.1, p.63-72, 2001. BOFF, L. Saber cuidar: ética do humano, compaixão pela terra. 10.ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

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SENA, R.R. et al. El cuidado en el trabajo en salud: implicaciones para la formación de enfermeros. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.23-34, jan./mar. 2008. Con el objetivo de identificar las necesidades de cambios en la formación de los enfermeros al asumir el cuidado como dominio del núcleo específico de su práctica, se desrrolló un estudio cualitativo usándose datos de entrevistas en grupos focales con docentes y estudiantes de escuelas de enfermería del estado de Minas Gerais, Brasil. En tales escuelas de enfermería el concepto de cuidado se traduce como actuación que incorpora una visión integral del ser humano y se materializa en relaciones de inter-subjetividad. No obstante prevalece una práctica pedagógica y asistencial que reitera el modelo biomédico y debilita la noción de cuidado expresada por los participantes. Se enfatiza como desafío para la formación la ocupación con una enseñanza que rescata las prácticas cuidadoras del núcleo profesional específico y de las intersecciones en el campo de la salud, en un movimiento que valora el aprendizaje pautado en la realidad en el cual el estudiante reflexiona y vive el proceso de cuidar.

Palabras clave: Cuidado de salud. Cuidado de enfermería. Educación en salud.

Recebido em 11/08/06. Aprovado em 13/09/07.

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O cuidado em saúde no ciclo gravídico-puerperal sob a perspectiva de usuárias de serviços públicos* Cristina Maria Garcia de Lima Parada1 Vera Lúcia Pamplona Tonete2

PARADA, C.M.G.L.; TONETE, V.L.P. Healthcare during the pregnancy-puerperium cycle from the perspective of public service users. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.35-46, jan./mar. 2008. The aim of this study was to understand social representations of puerperal women regarding healthcare during the prenatal, delivery and puerperal periods, within the regional context of public health services in the interior of the State of São Paulo. Taking a qualitative research approach, data were collected in 2004 using semi-structured interviews and were organized using the collective subject discourse method. The prenatal and birth humanization program (PHPN) was the theoretical reference point for discussing the results. The puerperal women’s perspectives regarding healthcare during the pregnancy-puerperium cycle demonstrated the importance of interpersonal relationships, indispensability of technical quality in the care provided and correctness of the perception that the subject of attention is the woman, and that, as such, she should have effective participation in the process. It was concluded that the PHPN guidelines should be incorporated more broadly into healthcare practices aimed towards women and that specific indicators for assessing the care dimensions demonstrated by this study should be adopted.

O objetivo do trabalho foi apreender as representações sociais de puérperas sobre o cuidado em saúde no período pré-natal, no parto e no puerpério, em um contexto regional de serviços públicos de saúde do interior paulista. Seguindo a abordagem de pesquisa qualitativa, os dados foram colhidos por meio de entrevistas semiestruturadas, realizadas em 2004, e organizados segundo o método do Discurso do Sujeito Coletivo, tendo o Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN) como referencial teórico para discussão dos resultados. A perspectiva das puérperas sobre o cuidado em saúde no ciclo gravídico-puerperal evidenciou a importância das relações interpessoais, a essencialidade da qualidade técnica do atendimento e a propriedade da percepção de que o sujeito da atenção é a mulher e, como tal, dela deve participar efetivamente. Conclui-se que as diretrizes do PHPN devem ser incorporadas de forma mais ampla nas práticas de saúde voltadas à mulher, recomendando-se a adoção de indicadores específicos para avaliação das dimensões do cuidado evidenciadas por este estudo.

Key words: Prenatal care. Delivery. Postpartum period. Health assessment. Qualitative research. Humanized delivery.

Palavras-chave: Cuidado pré-natal. Parto. Período pós-parto. Avaliação em saúde. Pesquisa qualitativa. Parto humanizado.

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Estudo financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP). 1 Enfermeira. Departamento de Enfermagem, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMB-Unesp). Distrito de Rubião Júnior, s/nº Botucatu SP 18.618-000 cparada@fmb.unesp.br 2 Enfermeira. Departamento de Enfermagem, FMB/Unesp.

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Introdução O paradigma da promoção à saúde engloba, entre seus elementos constituintes: a integralidade do cuidado e a prevenção de agravos, o compromisso com a qualidade de vida e a adoção da participação comunitária como peça fundamental de planejamento e avaliação dos serviços (Ayres, 2004). Considerando-se essas questões, há de se supor a importância da contribuição que os usuários de serviços de saúde possam dar aos estudos sobre o processo assistencial, especialmente quando se pretende abordar a humanização do cuidado em saúde, como no caso da presente investigação. O termo humanização vem sendo utilizado há mais de quarenta anos com sentidos diversos, incluindo desde uma perspectiva caritativa até a introdução do discurso dos direitos dos cidadãos ao acesso a uma atenção de qualidade. Em recente estudo desenvolvido com gestores de maternidades do Rio de Janeiro, os principais significados atribuídos ao termo diziam respeito: à qualidade da relação interpessoal entre profissionais e usuários; ao reconhecimento dos direitos dos clientes e à democratização das relações de poder entre eles e os profissionais; à desmedicalização da atenção ao parto e nascimento; à promoção de vínculo entre familiares, mãe e recém-nascido, e à valorização dos profissionais de saúde (Deslandes, 2005). Neste estudo, optou-se por adotar essa multiplicidade de significados. Especificamente na área obstétrica, no Brasil, discussão mais ampla sobre autonomia e humanização do cuidado tem-se mostrado relativamente recente e reflete o descontentamento com o modelo de atenção excessivamente intervencionista desenvolvido no país, especialmente relacionado à atenção ao parto (Serruya, Lago, Cecatti, 2004a). Em termos de políticas públicas de saúde, essa questão é claramente tratada, pela primeira vez, no Programa de Humanização do Pré-natal e Nascimento (PHPN), criado pelo Ministério da Saúde no ano 2000. Tal programa apresenta, como um de seus fundamentos, o direito à humanização da assistência obstétrica e neonatal como condição primeira para o acompanhamento adequado a mulheres e recém-nascidos (Brasil, 2000). Tendo em vista a promoção da saúde materno-infantil, a importância da humanização da assistência no ciclo gravídico-puerperal, e por se considerar a perspectiva das mulheres sobre o cuidado recebido neste período, é que se propôs a presente pesquisa. Estabeleceu-se, como objetivo, apreender as representações sociais de puérperas sobre o cuidado em saúde no período pré-natal, no parto e no puerpério, em um contexto regional de serviços públicos de saúde do interior paulista. Com a produção desse conhecimento, espera-se subsidiar gestores responsáveis pela atenção à saúde da mulher, na formulação e implementação de políticas públicas nesta área, bem como contribuir para que os demais sujeitos envolvidos, trabalhadores e usuários, ao compartilharem esse conhecimento, possam participar ativamente desse processo.

Material e método O estudo foi realizado em 2004, na região da antiga Direção Regional de Saúde XI - Botucatu, composta por 31 municípios, sendo que vinte deles aderiram ao PHPN até 2003 e, por isso, foram incluídos na investigação. Tais municípios têm tamanhos variados (menos de cinco mil a mais de 110 mil habitantes) e, na região, a área de serviços é a que mais emprega no mercado formal (Fundação Seade, 2006). Com relação ao atendimento na área de obstetrícia, os vinte municípios estudados possuem unidades de atenção básica para atendimento pré-natal e 11 possuem maternidade para atendimento ao parto de baixo risco, porém, com número variável de leitos: três nos hospitais com menor média mensal de partos e 29 naquele com maior média. Na região, existe apenas um serviço para atendimento terciário em obstetrícia. A abordagem de pesquisa utilizada foi a qualitativa, definida como aquela que se preocupa com um nível de realidade que não pode ser quantificado, trabalhando com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes que, por sua vez, correspondem a um espaço mais

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profundo das relações, dos processos e fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis (Minayo, 1994). O referencial teórico utilizado para discussão dos resultados foi o PHPN (Brasil, 2000). Para escolha dos sujeitos desta investigação, dois critérios básicos foram utilizados: que os mesmos exprimissem as diversidades de procedência e experiência. Considerando a procedência, foram incluídas mulheres residentes em municípios de diferentes tamanhos, com maternidades de diferentes portes e graus de complexidade e com diferentes formas de organização da atenção básica; com relação à experiência, foram consideradas variações de história obstétrica, tipo de parto e vivência ou não de situações como: participação em grupo de gestante, intercorrências no ciclo gravídico-puerperal e presença de familiar acompanhante no momento do parto. Foram realizadas 34 entrevistas semi-estruturadas a puérperas, baseadas em questões norteadoras, em visitas domiciliares após o parto, em dois encontros com cada sujeito. No primeiro, solicitava-se a participação de algum familiar que pudesse contribuir, de fato, para que a puérpera respondesse à entrevista e, no segundo, complementava-se a entrevista apenas com a puérpera. Esta estratégia permitiu retomar, no segundo encontro, questões que mereciam aprofundamento ou esclarecimento. Destaca-se que a realização das entrevistas fora do serviço de saúde destinou-se a dar mais liberdade às mulheres quando da abordagem do cuidado recebido. As questões norteadoras citadas relacionam-se às representações elaboradas pelas puérperas sobre o cuidado em saúde obtido nos serviços de assistência pré-natal e o atendimento recebido para o parto, a saber: como foi o seu atendimento pré-nata? Do que você gostou e do que não gostou durante o seu atendimento pré-natal? Como você foi cuidada durante sua internação para o parto? Do que você gostou e do que não gostou durante o parto? Como foi o seu atendimento e o do seu bebê após o parto? A organização dos dados colhidos foi realizada conforme proposta de Lefèvre e Lefèvre (2003), e consistiu na determinação da idéia central - afirmação(ões) que permite(m) traduzir o essencial do conteúdo discursivo explicitado pelos sujeitos em seus depoimentos; identificação das expressõeschave - transcrições literais de parte dos depoimentos, que permitem o resgate do que é essencial no conteúdo discursivo e construção do discurso do sujeito coletivo (DSC) - reconstrução, com pedaços de discursos individuais, de tantos discursos-síntese quantos forem necessários, para expressar um dado pensar ou representação social sobre um fenômeno. Destaca-se que a aplicação da técnica do DSC a um grande número de pesquisas empíricas tem demonstrado sua eficácia para o processamento e a expressão de opiniões coletivas (Lefèvre & Lefèvre, 2006). O projeto desta investigação foi analisado e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de Medicina de Botucatu da Universidade Estadual Paulista e atendeu a todas as normas previstas para pesquisas realizadas com seres humanos.

Resultados e discussão As entrevistas foram numeradas de 1 a 34 e, quando determinadas expressões-chave contribuíram com a elaboração de algum DSC, na sua seqüência, o número da entrevista da qual cada expressão foi transcrita está assinalado. Ao término de cada DSC, também apresenta-se a idéia central relacionada a ele. Os resultados estão apresentados ordenadamente, segundo as representações sociais apreendidas sobre o cuidado em saúde na atenção pré-natal, ao parto e ao puerpério.

Atenção pré-natal A análise das representações elaboradas pelas puérperas quanto ao cuidado em saúde na atenção pré-natal está apresentada a seguir, com base em dois temas: relações interpessoais: fragilidades e fortalezas e qualidade técnica como fator de humanização.

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Tema 1- Relações interpessoais: fragilidades e fortalezas As representações positivas sobre o cuidado em saúde durante o período pré-natal emergiram dos discursos das puérperas, relacionando-o à interação profissionais-usuários, caracterizada pela escuta, atenção e cordialidade, conforme pode ser observado no Discurso 1: DSC 1 - Eu gostei de tudo do atendimento, foi ótimo, não tenho do que reclamar, sempre me trataram super bem. Eu conversava com todo mundo, tinha amizade com todas as enfermeiras, a médica era muito atenciosa, educada, simpática... gostei do jeito que ela falava com a gente. Até as coisas de casa eu perguntava pra ela. (IC 1- Amizade-proximidadevínculo. Entrevistas n. 1-8, 10, 11, 13-23, 25-30, 32-34)

O cuidado satisfatório é, portanto, representado como aquele desenvolvido com simpatia e educação. Como a literatura correlata evidencia, constatou-se a importância das relações interpessoais e do acolhimento nos serviços de saúde, entendido como um cuidado aberto à escuta (Deslandes, 2005). Essas relações devem viabilizar uma rede de conversações que é essencial ao cuidado, na medida em que contribui com o estabelecimento de negociações entre as necessidades dos usuários e os meios de satisfazê-las (Teixeira, 2001). Em contraponto, algumas mulheres, ao abordarem o cuidado pré-natal, representaram-no de maneira negativa, apontando, sobretudo, a falta de diálogo com o médico: DSC 2 - Não gostei do meu pré-natal, o médico era muito bruto, não conversava e eu me sentia um pouco insegura. Nossa, ele me fez chorar de nervosa, não conversava, não falava: quando for o dia do seu parto, vai acontecer assim, você tem que ter calma. Ele só me chamava de boizão, porque eu engordei muito. (IC 2 – Não me dei bem com o médico e não gostei do meu pré-natal. Entrevistas n. 9, 12, 24, 31)

Em um contexto em que a atenção ao ciclo gravídico-puerperal está centrada no processo de trabalho médico, como ocorre nos municípios da região estudada, a interação efetiva e humanizada das gestantes com esses profissionais assume extrema importância para o sucesso da atenção e os depoimentos acima denunciam o grande distanciamento dessa meta. De fato, o preparo da mulher para o parto deve ser iniciado precocemente, ainda no pré-natal. Isso requer um esforço viável, no sentido de sensibilizar e motivar os profissionais de saúde da rede básica para trabalharem com as gestantes, preparando-as psíquica e fisicamente (Brasil, 2003). Segundo o Discurso 2, porém, as mulheres manifestaram terem sentido falta deste preparo; e, ainda sobre esse discurso, o mínimo que se espera de um serviço de saúde é que trate a gestante com respeito. Para o Ministério da Saúde, a humanização requer, entre outras coisas, que se chame a mulher pelo nome, evitando-se, inclusive, termos como “mãezinha” ou “dona” (Brasil, 2003). Desta forma, parece inconcebível que um profissional, qualquer que seja sua formação, possa chamar uma gestante de “boizão”. Pelo exposto, pode-se inferir que as representações sobre o cuidado em saúde na Atenção Prénatal, em parte, ancoram-se na perspectiva de um atendimento humanizado, que se dá mediante uma boa relação entre os profissionais e os clientes, proporcionando segurança às mulheres e considerando-as sujeitos do cuidado. Tema 2 - Qualidade técnica como fator de humanização Sob outra perspectiva, representações positivas sobre o cuidado em saúde no período pré-natal, também foram apreendidas, com base em vários depoimentos, especialmente, como decorrentes da qualidade técnica dispensada, relacionada à disponibilidade de exames, presteza no atendimento e desenvolvimento de ações básicas, conforme exemplifica o discurso a seguir: DSC 3 - Eu fiz o pré-natal certinho, não perdi nenhuma consulta, fiz todos os exames. No dia da gestante, ele (o médico) chega ali, atende no horário e, com muita atenção, indica como

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fazer as coisas pra gente se sentir bem na gravidez, examina tudinho... e todas as vezes que eu precisei, fui atendida, com tudo do melhor. (IC 3 - Fui atendida com tudo do melhor. Entrevistas n. 1, 5, 7, 8, 11, 12, 14-23, 25-30, 32,34)

Já os Discursos 4 a 6 deixam transparecer as representações negativas sobre o cuidado em saúde na Atenção Pré-natal, quando não há o atendimento com a devida qualidade técnica: DSC 4 - Eu não gostei muito, o doutor não marcava as coisas na minha carteirinha, o tamanho da minha barriga, tinha um monte de coisa sem marcar. (IC 4 – O doutor não marcava as coisas na minha carteirinha. Entrevistas n. 9, 24, 31, 33) DSC 5 - Eu senti falta de um ultra-som, eu achei que deveria ter sido feito e não foi. O aparelho do Estado estava quebrado e o do município tinha pra depois que eu ganhasse. (IC 5 – Tenho reclamação sobre o ultra-som. Entrevistas n. 1, 11, 18, 21, 25, 26) DSC 6 - Não gostei dos exames, os primeiros que eu fiz eles perderam, depois eu repeti e falaram que estava alterado, me encaminharam pra Botucatu, mas em Rubião (serviço terciário), fiz exame de novo e eu não estava com a doença. (IC 6 – Não gostei dos exames. Entrevistas n. 2, 4,10, 11)

A concepção que orientou a criação do PHPN pressupõe que a humanização da assistência prénatal requer o cumprimento de um conjunto de procedimentos básicos, a fim de prevenir agravos na gestação e garantir o direito fundamental de toda mulher à experiência da maternidade de maneira segura (Serruya, Lago, Cecatti, 2004a); entre tais procedimentos, inclui-se a realização de exames laboratoriais no início e final da gravidez. Porém, nesse programa não são abordadas explicitamente questões como: procedimentos clínicos mínimos, instrumentos de registro, nem exames complementares como o ultra-som - itens que emergiram dos discursos das puérperas, indicando que, de alguma forma, são valorizados por elas e, por vezes, não estão acessíveis.

Atenção ao parto A seguir, apresenta-se a análise das representações elaboradas pelas puérperas quanto ao cuidado em saúde no momento do parto, subdividida em quatro temas: o acolhimento à parturiente, apoiando as mulheres durante o parto, a mulher como protagonista no processo de atenção ao parto e a qualidade técnica do cuidado. Tema 1 – O acolhimento à parturiente Com o Discurso 7, pode-se perceber a importância da sintonia entre os profissionais e as parturientes que representaram positivamente o cuidado em saúde durante o parto com base no acolhimento experienciado: DSC 7- Todo mundo falava mal, diziam que os médicos eram estúpidos, deixavam você sozinha, mas eu não tenho do que reclamar, me trataram super bem. Logo que cheguei, fui atendida, a médica foi boazinha, educada, teve paciência, falava pra eu não ficar nervosa, senão fazia mal pro neném... dou nota 10, desde as faxineiras até as enfermeiras. (IC 7 – Me trataram super bem. Entrevistas n. 1, 6, 8, 12, 18, 20, 27, 29)

Nesse discurso, destaca-se o acolhimento com que as parturientes foram recebidas, traduzido por termos como: educação, bondade, paciência e presteza. Observa-se que tais representações se ancoram na idéia de que um atendimento tranqüilo viabiliza um parto também tranqüilo. Pelo Discurso 8, pode-se constatar, em contrapartida, que a falta de acolhimento pode gerar sérias distorções:

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DSC 8 - Meus filhos não nascem normal, já tive duas cesáreas. A minha menina caçula morreu na minha barriga e não nascia. Então, quando eu comecei a sentir mal, falei com o doutor e ele me disse: vem quarta-feira, se der, eu faço sua cesárea. Eu pensei: mas vou esperar o neném morrer? Aí, eu fui em outro médico e ele falou que já era pra eu ter ganhado. Então eu paguei 800 pro médico e 400 pro hospital e ele fez a cesárea rapidinho. (IC 8 – Eu paguei e a cesárea foi feita rapidinho. Entrevistas n. 11, 17)

Considerando que os sujeitos dessa investigação são mulheres atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), o Discurso 8 revela um problema ético importante. A situação descrita explicita uma representação do direito ao cuidado em saúde, mesmo no serviço público, como relacionado a pagamento, ancorando-se na idéia de que apenas quando você paga pelo atendimento ele é realizado a contento, o que também é mencionado no Discurso 9: DSC 9 - Eu não gosto quando a gente chega ao hospital e não é bem atendido, como quem tem (dinheiro). Você está esperando ali, chega um rico que está pagando, eles vão atendendo aquele primeiro e a gente fica esperando. (IC 9 – Quem tem dinheiro, tem precedência. Entrevistas n. 5, 7)

Os Discursos 10 e 11 indicam que algumas parturientes deste estudo perambularam por vários serviços até serem atendidas, fato este de extrema gravidade, já que é no período próximo ao parto que ocorre a maioria das mortes maternas (Brasil, 2003). Esses discursos deixam transparecer que o cuidado em saúde efetivo é representado pela garantia de atendimento. DSC 10 - No oitavo mês o médico falou que ia ser cesárea mesmo, e eu tinha certeza, os outros eu tinha ficado esperando até a última hora e não nasceram normal. Cheguei lá e a enfermeira falou que estava encaixado, pronto pra cortar, mas o médico mandou eu esperar, pra fazer cesárea no outro dia. Mas no outro dia ele não fez, mandou eu vir embora de novo. Aí eu fui procurar o doutor “X” (médico do pré-natal), conversei com ele e ele falou pra eu catar o plantão de outro. (IC 10- Na hora me mandaram embora e eu tive que procurar outro atendimento. Entrevistas n. 7, 13, 14) DSC 11 - O médico foi muito estúpido, um grosso. Estava saindo líquido e ele falou que não estava na hora, que era pra eu ir embora e voltar sexta-feira. Tornei a passar com ele e ele foi mais mal educado ainda. Falou: qualquer dorzinha normal você vem correndo? (IC 11- O médico falou que com qualquer dorzinha eu procurava atendimento. Entrevistas n. 16, 31).

A fim de minimizar o problema da busca de atendimento no momento de dar à luz, o PHPN preconiza a vinculação dos serviços de Atenção Pré-natal e ao Parto (Brasil, 2000a), o que parece não estar surtindo efeito nas maternidades estudadas. Muitas vezes, a dificuldade surge pela ausência de acolhimento e vínculo entre o profissional e a gestante sendo, apenas a vinculação formal dos serviços, insuficiente. Tema 2 – Apoiando as mulheres durante o parto O respeito à mulher durante o atendimento é pressuposto fundamental para a humanização do parto. Nesse sentido, informá-las sobre os diferentes procedimentos a que serão submetidas, esclarecer suas dúvidas e aliviar sua ansiedade são atitudes relativamente simples que requerem, entre outras coisas, boa vontade do profissional (Brasil, 2003). Essas questões estão presentes no Discurso 12, no qual as mulheres identificam, basicamente, o cuidado em saúde como as explicações que receberam durante o parto: DSC 12 - Depois eu internei e fiquei com a enfermeira, que começou a me explicar que não era um bicho-de-sete-cabeças, que não adiantava ficar nervosa, não ia ajudar em nada. Aí

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foi tranqüilo, um pouco dolorido, mas eu achei legal. (IC 12 – Com as explicações tive um parto tranqüilo. Entrevistas n. 1, 4, 6, 12, 18, 20, 34)

Com o Discurso 13, observa-se também que o cuidado em saúde efetivo é representado pelo apoio recebido no momento do parto: DSC 13 - A enfermeira segurou minha mão, descontraiu, me ajudou muito ali, com a pouca experiência que ela tinha. Ficou o tempo todo lá junto e foi muito bom, deu pra acalmar bastante. É gente que cuida da gente com carinho. (IC 13 – Tive apoio o tempo todo. Entrevistas n. 1, 9, 10, 12, 18, 21-23, 28, 32, 34)

Apreende-se, do Discurso 13, o importante papel do profissional apoiando a parturiente, e um sentimento positivo dela em relação ao trabalho de parto. A vivência que a mulher tem da parturição pode ser prazerosa, positiva ou traumática, dependendo de condições intrínsecas a ela e à gestação - como sua maturidade e experiências pessoais ou familiares anteriores – e até àquelas diretamente relacionadas ao sistema de saúde, como a assistência recebida no pré-natal e durante o parto (Brasil, 2003). Estudos sobre o apoio por uma única pessoa durante o parto, seja ela uma doula, parteira ou enfermeira, mostraram que o apoio físico e empático contínuo durante o trabalho de parto resulta em benefícios, como a diminuição na sua duração, no uso de medicações e analgesia, de partos operatórios e depressão neonatal (OMS, 1996). Segundo o PHPN, as unidades de saúde devem receber com dignidade a mulher, seus familiares e o recém-nascido, o que requer atitude ética e solidária por parte dos profissionais, organização da instituição de modo a criar um ambiente acolhedor e adotar condutas hospitalares que rompam com o tradicional isolamento imposto à mulher (Serruya et al., 2004b). A presença de um acompanhante, indicado pela parturiente, durante o trabalho de parto também tem sido preconizada como medida em favor da humanização da atenção, sendo atualmente um direito legalmente constituído (Brasil, 2003). Estudo desenvolvido em uma maternidade que institucionalizou várias rotinas constantes do ideário da humanização, evidenciou resistência apenas inicial dos profissionais à presença do acompanhante, sendo essa posteriormente estimulada pela equipe, por representar uma fonte de apoio, facilitando o trabalho de parto (Tornquist, 2003). Representação favorável do cuidado em saúde emergiu dos depoimentos quando o referido direito foi respeitado: DSC 14 - Minha tia ficou o tempo todo do meu lado, o médico deixou... eu não queria ficar sozinha e foi muito bom. (IC 14- Não fiquei sozinha e foi muito bom. Entrevistas n. 1, 9, 12, 20, 28)

Os métodos de preparação para o parto objetivam, em geral, evitar a tríade medo-tensão-dor, pois se considera que o conhecimento destrói o temor e evita a tensão, controlando a dor (Brasil, 2003). A ausência de apoio, atendimento ou orientação pode resultar em medo – de morrer ou de perder o bebê – e, em muito sofrimento, conforme se percebe no Discurso 15: DSC 15 - Comecei a sentir dores de madrugada. Quando amanheceu, fui pro hospital, a médica falou que não estava na hora e me mandou pra casa. Aí eu falei: mas já passou dos nove meses, mas ela não falou nada, então eu fiquei com medo. No dia seguinte, meu marido pediu a ambulância e me levou, porque eu estava travada e com dor. O doutor que me atendeu falou que não ia me operar... aí eu estava sangrando e bastante nervosa, com medo de perder a criança. A pressão subiu e eu achei que ia morrer. (IC 15 – A médica não explicou, fiquei com medo... Entrevistas n. 13, 24)

No discurso, a representação que se apreende é de um cuidado insatisfatório, já que a falta de orientação sobre o que estava ocorrendo fez com que a mulher passasse a ver o parto como um

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momento de perigo, tanto para ela quanto para o bebê. A busca por solução dos problemas apresentados foi em vão, ou seja, não se respeitaram aspectos relacionados à humanização. O mesmo pode ser conferido no Discurso 16, onde também se observa referência à dor, que embora inerente ao processo fisiológico do parto, poderia ser minimizada pela presença do acompanhante, de suporte emocional, da utilização de técnicas de alívio e do apoio da equipe. DSC 16 - Fiquei dois dias internada, sentindo dores e o nenê não nascia... A enfermeira era uma carrasca, me chamava de madame. Os enfermeiros e os médicos daqui não dão atenção, não acreditam que a gente tem dor. Sinceramente, eu pensei que eu ia morrer e ninguém vinha me explicar nada. (IC 16- A hora que eu precisei, não me deram atenção. Entrevistas n. 2, 3, 5, 13, 17, 24, 26, 30)

Em algumas situações, ficam claras as diferenças de conduta entre os membros da equipe, como mostra o Discurso 17: DSC 17 - Eu ia e voltava, sentia dor e não dilatava e eles segurando pra não fazer cesárea... A doutora que me atendeu não era muito boa, era estúpida, fez eu me sentir um porco, um porco limpo, desse jeito eu me senti. Mas sempre tem alguém com mais carinho. Aí a enfermeira segurou minha mão e ficou ali, esperando eu me acalmar. (IC 17 – Sempre tem alguém com mais carinho. Entrevistas n. 11, 14, 16, 24, 30)

Nesse discurso, emerge a representação positiva sobre o cuidado no parto, como algo relacionado ao carinho, paciência e solidariedade. Destaca-se que humanizar é envolver-se com as pessoas para melhor entender seus medos, alegrias, ansiedades e expectativas, e , de algum modo, poder ajudar, solidarizar-se (Rattner & Trench, 2005). Tema 3 – A mulher como protagonista do trabalho de parto O preparo da gestante para o parto abrange a incorporação de um conjunto de cuidados, medidas e atividades que têm como objetivo oferecer à mulher a possibilidade de vivenciar essa experiência como protagonista do processo (Brasil, 2003). As mulheres devem ser vistas como sujeitos que vêm de culturas diferentes e têm emoções e desejos que não são universais (Tornquist, 2003). Pelo Discurso 18, pode-se verificar que a mulher, por vezes, é ouvida: DSC 18 - O doutor queria me mandar embora, falou que não estava na hora. Eu falava que não ia, que estava com muita dor. Aí uma doutora me perguntou: você acha melhor ficar ou ir? Eu disse: quero ficar. Aí eu fiquei e ela nasceu. Se tivesse ido embora tinha nascido em casa. (IC 18 – Eles me ouviram, fiquei internada e nasceu. Entrevistas n. 25, 26, 31)

Em muitos serviços, porém, a mulher continua sendo tratada como mera coadjuvante, conforme se observa nos Discursos 19 e 20: DSC 19 - [...] a moça falou que não tinha estourado a bolsa e já tinha, aí o médico falou que estava seis dedos dilatado e me mandou pro pré-parto. Eu não estava agüentando de dor, fiquei uns dois minutos no quarto e na hora que foi pra neném nascer, chamei a enfermeira e ela não me ajudou, foi até bruta. Aí chamaram o médico, ele viu que estava nascendo e mandou respirar e deitar correndo, quase caiu no chão. (IC 19 – Chamei a enfermeira e ela não me ajudou. Entrevistas n. 2, 3, 5, 15, 19) DSC 20 - No ultra-som eles julgaram que eu estava com três semanas a mais da minha conta e no dia 15 o médico mandou internar. Fiquei com medo, porque eu achava que não estava na hora. Mas aí ele fez a cesárea, só que o pulmão estava prematuro. Eu tinha falado que

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estava de menos. Quase perdi ela, eles tiraram antes do tempo e ela quase morreu. (IC 20 – Eu falei que não estava na hora. Entrevistas n. 11, 13)

Os profissionais de saúde desempenham importante papel na atenção ao parto, pois têm a oportunidade de colocar seu conhecimento a serviço do bem-estar da mulher e do bebê, reconhecendo e intervindo nos momentos críticos. Entretanto, devem entender que a mulher, como sujeito do processo, tem o direito de participar das decisões sobre o nascimento, desde que não coloque em risco a evolução do trabalho de parto, sua segurança e a do recém-nascido (Brasil, 2003). Ressalta-se, porém, que as próprias mulheres têm dificuldades em assumir um papel participativo no trabalho de parto. Dessa forma, para humanizar o atendimento ao nascimento é necessário conscientizá-las, discutindo quais as suas necessidades ou demandas, pois somente assim poderão reivindicar um cuidado melhor (Rattner & Trench, 2005). Tema 4 - Qualidade técnica do cuidado Conforme discutido anteriormente, a humanização da atenção à saúde das pessoas, além de abranger uma série de diferentes aspectos referentes às idéias, aos valores e às práticas envolvendo as relações entre profissionais de saúde, pacientes e familiares e/ou acompanhantes, também engloba os procedimentos técnicos adotados, as rotinas dos serviços e o relacionamento dos membros da equipe entre si (Rattner & Trench, 2005). Do Discurso 21, apresentado a seguir, emergem representações negativas do cuidado, relacionadas à forma como o parto foi conduzido do ponto de vista técnico: DSC 21 - Na sala de exame, eu perdendo água, demorou pro médico me atender. Eu precisei gritar, porque eles deixaram pra última hora. Me disseram que ele era pequenininho e ia nascer, mas ele vinha e voltava. Aí fizeram aquela força na minha barriga, eu caí da mesa, o anestesista me grudou pela camisola e minha irmã gritou: vocês vão matar minha irmã! Ele (o bebê) quebrou a clavícula e nasceu com a boquinha torta. (IC 21- Por causa do parto meu bebê teve problemas. Entrevistas n. 2, 4, 13, 19, 24-26, 30, 31, 33)

O ponto mais importante e mais complexo da avaliação da qualidade de serviços de saúde reside na avaliação do processo de assistência, que compreende a competência tanto do desempenho técnico quanto a competência da qualidade das relações interpessoais (Rattner & Trench, 2005). Embora ambas sejam igualmente importantes e devam ser igualmente valorizadas, as representações elaboradas pelas puérperas sobre o cuidado em saúde durante o parto estiveram permeadas pelo desequilíbrio na consideração desses aspectos, expondo as parturientes e seus conceptos a situações desumanas. É condição fundamental para a humanização do cuidado que os serviços de saúde adotem medidas e procedimentos sabidamente benéficos para o acompanhamento do parto e do nascimento, evitando práticas intervencionistas desnecessárias que, embora tradicionalmente realizadas, não beneficiam a mulher nem o recém-nascido e que, com freqüência, acarretam maiores riscos para ambos (Serruya, Lago, Cecatti, 2004b).

Atenção ao puerpério A análise das representações sobre o cuidado em saúde após o parto foi compilada em um único tema: apoio à elaboração da relação mãe-bebê. Tema 1 - Apoio à elaboração da relação mãe-bebê As representações positivas do cuidado em saúde no puerpério relacionaram-se ao auxílio nas primeiras atividades desenvolvidas com o bebê, como exemplificado no DSC 22: DSC 22 - No primeiro dia as enfermeiras vinham perguntar pra mim se eu precisava de ajuda

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pra dar banho nela, pra cuidar. Toda hora estava passando enfermeira e médico no quarto, perguntando se a gente queria alguma coisa. (IC 22 – Toda hora vinha alguém me ajudar. Entrevistas n. 1, 5, 8-10, 12, 15, 17, 19-23, 25, 27, 28, 32-34)

Após o parto, a mulher tem necessidade de atenção física e psíquica e a relação com seu filho ainda não está bem elaborada. Por isso, as atenções não devem ser concentradas apenas na criança; nesse momento, o alvo da atenção tem de ser a puérpera (Brasil, 2003). Além disso, deve-se lembrar que, após o parto, são comuns a exaustão e o relaxamento, sobretudo se houve um longo período sem adequada hidratação e/ou alimentação, somado aos esforços do período expulsivo. Assim, pode haver sonolência, que exige repouso (Brasil, 2003). Porém, nem sempre se respeita essa necessidade de descanso, como se pode perceber nos dois discursos a seguir: DSC 23 - Me deixaram lá com o nenê, eu estava anestesiada, longe da campainha e estava duro virar pra dar de mamá, porque eu não podia levantar a cabeça e não tinha como chamar... eu estava desesperada, querendo até ir embora. (IC 23 – Eu não tinha condições de cuidar, mas fui obrigada. Entrevistas n. 2-4, 13, 16, 18, 24, 26, 30, 31) DSC 24 - Tem umas enfermeiras que são uns cavalos. Eu nem podia andar, por causa da cesariana e da laqueadura, aí ela chegou e falou: vamos tomar banho. Eu levantei e na hora que eu cheguei no banheiro ela me empurrou. Eu sou meio medrosa, mas teve uma hora que até meu marido ficou com medo, falou com a mãe dele e ela ligou lá à noite. (IC 24 - Eu fiquei com medo da enfermeira. Entrevistas n. 7, 13, 14)

A ausência de atividades educativas, conforme ilustrado no Discurso 25, leva à discussão de sua importância no puerpério, já que alguns dos sujeitos valorizam esse aspecto como cuidado em saúde a ser recebido neste período: DSC 25 - Não recebi orientação nenhuma. Fiquei cuidando dele sozinha, fiz dormir, tudo eu. Até que ele chorou a noite inteira e daí ligaram pra minha mãe levar uma chuca e o leite “NAM”. Ela levou, o nenê mamou e ficou quieto a noite inteira. (IC 25 – Eu não recebi orientação nenhuma. Entrevistas n. 2-4, 13, 16, 18, 24, 26, 30, 31)

O puerpério imediato deve ser valorizado pelo início do processo de vínculo mãe-bebê, devendo ser considerado como o momento de “acabamento” da experiência do parto e como o tempo de ressonância, que pede a abertura de espaço para a escuta, quando pais, avós, familiares e, especialmente, a mãe, estão dilatados, abertos (Rattner & Trench, 2005) e, assim, prontos para trocarem experiências. Pelas representações aqui apreendidas, pode-se inferir que a vulnerabilidade das puérperas e dos recém-nascidos aos agravos pareceu estar mais evidenciada com a não obtenção do apoio requerido.

Considerações finais A perspectiva das usuárias dos serviços públicos sobre o cuidado em saúde no ciclo gravídicopuerperal, privilegiada neste estudo, permite considerar que o momento do parto pode ser caracterizado como de considerável medicalização, muito preso às rotinas e resistente à humanização. Também, em relação a essa perspectiva, pode-se considerar que, nos períodos pré-natal e puerperal, o cuidado não é isento de problemas, sendo as mulheres geralmente tratadas como coadjuvantes, em um processo assistencial por vezes marcado pela ausência de vínculo com os profissionais. Com base nessas considerações e em coerência com os princípios do PHPN, postula-se que a mulher deva ser reconhecida como principal partícipe do processo anteriormente referido, tendo suas escolhas respeitadas no estabelecimento de práticas que, baseadas em evidências, permitam a sua

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segurança e bem-estar, assim como do recém-nascido. Porém, cabe ressaltar que o PHPN, ao adotar indicadores para avaliação da qualidade da atenção que privilegiam o número de consultas prénatais, a imunização e os exames básicos realizados, não está avançando na inclusão de aspectos que valorizem, de fato, outras dimensões do cuidado, como as relacionadas às questões de gênero. Por fim, considera-se que o olhar da humanização sobre as representações sociais apreendidas evidencia a importância de se transformarem as práticas regionais voltadas à atenção ao ciclo gravídico-puerperal, sobretudo no que diz respeito às relações interpessoais, incluindo o acolhimento e apoio efetivos e extensivos a todas as mulheres, não apenas durante o pré-natal, o trabalho de parto e o parto, mas também para o estabelecimento do vínculo mãe-bebê após o nascimento. Ao mesmo tempo, o referido olhar confirma a essencialidade da qualidade técnica do atendimento e a propriedade da percepção de que é a mulher o sujeito da atenção e, como tal, dela deve participar efetivamente.

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PARADA, C.M.G.L.; TONETE, V.L.P. El cuidado en salud en el ciclo gravídico puerperal bajo la perspectiva de usuarias de servicios públicos. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.35-46, jan./mar. 2008. Este estudio tuvo por objetivo aprehender las representaciones sociales de puérperas sobre el cuidado en salud en el período prenatal, en el parto y en el puerperio, en un contexto regional de servicios públicos de salud del interior de São Paulo. Según el enfoque de investigación cualitativa, los datos fueron cosechados por medio de entrevistas semi-estructuradas realizadas en 2004 y organizados según el método del Discurso del Sujeto Colectivo. El programa de Humanización del Prenatal y Nacimiento (PHPN) se utilizó como referencial teórico para discusión de los resultados. La perspectiva de las puérperas sobre el cuidado en salud en el ciclo gravídico-puerperal evidenció la importancia de las relaciones interpersonales; la esencialidad de la calidad técnica de la atención y la propiedad de la percepción de que es la mujer el sujeto de la atención y, como tal, debe participar efectivamente en ella. Se concluye que las directrices del PHPN deben incorporarse de forma más amplia en las prácticas de salud dirigidas a la mujer y además se recomienda la adopción de indicadores específicos para evaluación de las dimensiones del cuidado evidenciadas en este estudio.

Palabras clave: Cuidado prenatal. Parto. Período pos-parto. Evaluación en salud. Investigación cualitativa. Parto humanizado.

Recebido em 19/04/07. Aprovado em 30/08/07.

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artigos

Velhice, instituição e subjetividade

Gabriela Felten da Maia1 Susane Londero2 Alexandre de Oliveira Henz3

MAIA, G.F.; LONDERO, S.; HENZ, A.O. Old age, institution and subjectivity. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.49-59, jan./mar. 2008.

This essay refers to the route achieved and to some theoretical-practical tools produced for a clinic with old people. The sharing of some concepts that permeate the boundaries between old age and suffering become a very important tool for this clinic, demanding other interventions facing the other ones traditionally achieved, mainly in situation of institutionalization. The proposition of a clinic with old people started from an interest related to this stage of life, more specifically, in relation to the presence of a moral discourse and ways of hegemonic subjectivation that qualify it as a rotten band of life.

Key words: Old age. Production of subjectivity. Experimentations. Institutionalization. Health of institutionalized elderly.

Este ensaio refere-se a um percurso de trabalho e a algumas ferramentas teórico-práticas produzidas para uma clínica com velhos. O compartilhamento de alguns conceitos que permeiam os limites entre velhice e sofrimento torna-se um articulador de fundamental importância para essa clínica, exigindo outras intervenções frente às tradicionalmente realizadas, especialmente em situação de institucionalização. A proposta de uma clínica com velhos parte do interesse em relação a essa etapa da vida, mais especificamente, em relação à presença de um discurso moralizante e de modos de subjetivação hegemônicos que a qualificam como a banda podre da vida.

Palavras-chave: Velhice. Produção de subjetividade. Experimentações. Institucionalização. Saúde do idoso institucionalizado.

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1 Psicóloga. Departamento de Psicologia, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria Rua Tuiuti, 1826, complemento 03 Santa Maria RS 97.015-662 gabryelamaia@gmail.com 2 Psicóloga. Departamento de Psicologia, Centro de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Federal de Santa Maria. 3 Psicólogo e Filósofo. Departamento de Ciências da Saúde, campus Baixada Santista, Universidade Federal de São Paulo.

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VELHICE, INSTITUIÇÃO E SUBJETIVIDADE

Envelhecer não é permanecer jovem, é extrair de sua idade as particularidades, as velocidades e lentidões, os fluxos que constituem a juventude desta idade. (Deleuze & Guattari, 1997, p.70)

Este ensaio propõe notas preliminares com base em uma atividade de pesquisa e extensão em um asilo municipal e algumas breves conclusões que ainda permanecem in progress. O escrito se configura com o auxílio de articulações conceituais que, em alguns momentos, serão supersônicas, tendo em vista somente sua articulação com experiências no asilo. Para tanto, propusemos algumas experimentações utilizando como disparador a metodologia da observação participante. Em certos momentos, foi realizada a modalidade de ATs (Acompanhamentos Terapêuticos), implicados com uma escuta que denominamos descentrada. Optamos por estas estratégias por considerá-las um meio de avizinharmo-nos dos idosos, bem como uma contrapartida para a instituição e as pessoas envolvidas. É interessante salientar que tal perspectiva não se instaurou no início das atividades no local, mas foi sendo delineada em cada encontro efetuado com os internos. Iniciamos as atividades do projeto com o objetivo específico de escutar o que os internos tinham a dizer a respeito de suas experimentações anteriores e no local. Aliamos a essa escuta, que procurava não manter um centro único, a observação participante, por meio da qual buscamos rastrear também a dinâmica institucional e os movimentos efetuados no asilo. Utilizando essa metodologia, mergulhamos nas atividades do dia-a-dia dos internos que tentamos ouvir. A observação participante permitiu que nos implicássemos com os idosos para, efetivamente, encontrá-los. Trata-se de uma perspectiva que possibilitou-nos, de um modo complexo, “ficar ali”, como co-articuladores que se envolvem, que não apenas falam “sobre” os internos e a instituição. Com esse disparador, envolvemo-nos nos acontecimentos. Inicialmente, a idéia era realizar grupos com os internos do asilo. No primeiro contato com a coordenadora do local, a demanda apontava para que se efetuassem grupos de convivência, uma vez que os velhos eram considerados muito isolados uns dos outros e desocupados. A coordenadora advertiu que seria “difícil e demorado pra começar os grupos, eles não vão querer, pois pra tudo dizem ‘não’, tem que forçar no início”. No decurso do tempo, com escutas e conversações, o projeto foi se modificando, assim como nossas aprendizagens em relação a uma realidade4 no asilo. Ao longo da trajetória do trabalho, buscamos formas de intervenção com os idosos que pudessem permeabilizar os limites institucionais e romper com as práticas naturalizadas e hegemônicas. Essas práticas se apresentavam com falas que reduziam uma pletora de questões a alguma causa de ordem intimista psicológica, que inclusive enfrenta seu declínio no contemporâneo (Bezerra Jr., 2002), ou com explicações puramente fisicalistas, que têm sido mais freqüentes. É comum a presença do modelo biomédico dominante na definição do envelhecimento, considerando-o exclusivamente em termos de declínio da idade adulta, como um estado patológico, uma doença a ser tratada. Conforme indica Ortega (2003), os sinais da idade tornam-se marcas de aversão e patologia. Como resultado, as questões que implicavam as relações de poder na instituição eram neutralizadas, e os idosos, marginalizados. Ao mesmo tempo, percebemos que fora do asilo a velhice é, em grande medida, entendida como um estilo de

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4 É importante destacar que não buscamos a realidade, algo que nos dissesse a verdade, mas sempre trabalhávamos com uma realidade que é desde sempre instaurada, produzindo seus efeitos de verdade, que passamos a articular a um pensamento com a velhice institucionalizada.


vida, que conecta valores mercadológicos e da juventude com as técnicas de cuidado corporal para mascarar a passagem do tempo. Sob o império da farmacopéia antioxidante, os idosos da atualidade são apresentados como saudáveis, joviais, engajados, produtivos, autoconfiantes e sexualmente ativos. Uma felicidade compulsória parece ser o invólucro de tudo isso. As questões acima pontuadas demonstram que o trato da velhice, na sociedade contemporânea, opera-se de forma reducionista e não articulado com outros campos de conhecimento, que não reconhece a heterogeneidade constitutiva que envolve o envelhecimento hoje. Numa tentativa de romper com essa forma de gestão do envelhecimento, o trabalho no local propôs-se a entender que modos de subjetivação emergiam na instituição, que modo de viver, singular, se desenhava entre os velhos. Deixamo-nos levar pelos acontecimentos. Os movimentos efetuados no asilo estabelecem uma outra ordem, que nos faz pensar se os dias no asilo são sempre iguais. As nossas atividades no local são efetuadas uma vez por semana. Em alguns momentos do trabalho, optamos por ir também em dias diferentes, para acompanhar as atividades realizadas nesses dias. Há um conjunto de atividades no asilo que, apesar de se repetirem, nunca são iguais, mas sim, sempre diferentes. Quase nunca se repetem os internos que participam, os funcionários, os horários etc. Há movimentações imponderáveis de internos, visitas e atividades que esgarçam sutilmente a trama da instituição. Um modo de funcionamento que convida a um estranho nomadismo. Mesmo indo sem preparar nada, surpreendemo-nos com algum acontecimento ou alguma conversa. O asilo é que nos direciona, não precisamos levar atividades, perguntas ou roteiros prévios, mas, fomos aprendendo, aos poucos, que precisamos estar à espreita e disponíveis. As atividades ocorreram onde eles se encontravam: no pátio, sentados nos bancos, nos corredores, na enfermaria, no refeitório etc. A utilização dos espaços abertos do asilo era a possibilidade de efetivar uma proposta de trabalho com os idosos. Isto permitiu o exercício de uma clínica nômade, errante, e de uma escuta que não se destina à retificação das subjetividades, mas a um acolhimento das experimentações e encontros que não objetivam a ortopedia. A clínica nômade é aqui entendida, conforme Rolnik (2000), como uma prática analítica que pode ser exercida nos mais variados espaços, porque o que varia são as teorias e técnicas a serem traçadas em função de cada situação com a qual se está envolvido. Implica um compromisso com os movimentos que a vida faz na tentativa de encontrar vias de afirmação criadora, o que é incompatível com uma adesão que não problematize. Uma clínica nômade se preocupa em apreender as singularidades que se colocam em cada habitat no qual intervêm, o que torna essa prática uma experimentação. O desafio deste trabalho foi, justamente, favorecer uma clínica problematizante, preocupada com a produção e invenção de novas maneiras de sentir, pensar e intervir. O curioso é que, no trato com a velhice, precisamos dar um tempo que nós mesmos não temos. O tempo no asilo é outro, passa mais devagar, ou nem passa. Trata-se da proposição de se pensar uma outra lógica do tempo. Múltiplas temporalidades. Os relógios das paredes marcam horas “erradas” e diferentes umas das outras. A lógica de fazer o máximo no mínimo de tempo, maximizar a produtividade, deslocar-se na maior velocidade possível e economizar tempo não existe entre os internos. Em geral, nós estamos submetidos a uma aceleração total, temos muita pressa, não temos tempo nem paciência para sustentar esse outro tempo, pois somos amantes do programável, do controlável, dos projetos, do futuro premeditado, da hipervalorização do trabalho e do acabamento. Sentados com o pessoal que fica na enfermaria tomando sol à tarde, em uma das visitas, chamou nossa atenção que um dos velhos de cadeira de rodas, bem comprometido, sabia exatamente que dia era, a hora, a data de seu aniversário, os dias dos jogos de futebol. Já uma senhora (aparentemente nada comprometida física e cognitivamente) falou: “Hoje é domingo né, amanhã é segunda, dia de trabalho”. E era terça. São diferentes modos de lidar com o tempo dentro do mesmo espaço. A primeira coisa que chama a atenção de um visitante no asilo é essa desaceleração, esse ritmo específico, esse regime temporal diferenciado. São guetos lentificados, seja pelos passos lentos dos internos ou trajetos de um lado a outro, cuja lógica, às vezes, não entendemos, como, por exemplo: um dos internos, que anda de um lado a outro, sentando por alguns minutos, parando em um banco para, em seguida, levantar e novamente voltar a andar de um lado a outro no pátio; seja por falas

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seguidas de longos silêncios. Às vezes, isso se deve aos efeitos das perdas físicas, às vezes, à lentidão burocrática das instituições, pois, de certa forma, os asilos podem ser uma versão do tempo controlado em câmara lenta, funcionando por congelamento. Existem dois refeitórios no asilo, um em cada ala, muito diferentes entre si temporalmente. As duas alas aparecem como dois mundos. O ritual do lanche na enfermaria possui outra duração. A diferença está nos pequenos gestos, desde a chegada, a acomodação, a forma como é servida a refeição e a partida. Conforme um dos internos, a comida, na enfermaria, é servida muito lentamente, diferentemente do outro refeitório, onde, segundo este interno: “quando a sineta toca a comida tá na mesa, come e vai embora, não tem embromação como ali”. Isso o irrita, a mulher que serve o faz devagar, um prato de cada vez, sem seguir uma ordem. Uma marca de singularidade nos mínimos gestos e encontros. Isso nos lembra os incômodos, ordenações e combinatórias dos velhos nas obras do escritor irlandês Samuel Beckett. O asilo, em certa medida, também constitui uma espécie de freio em face da velocidade crescente das sociedades de controle. Poderia ser em razão do congelamento e interrupção da mobilização total do tempo nas instituições, mas também porque, num primeiro momento, ele abrigou muitos daqueles que não se submeteram ao ritmo e às exigências da produção. A política hegemônica do tempo busca a aceleração máxima, absoluta, ao passo que a velhice não só encarna uma desaceleração (ou uma velocidade de outra ordem), mas também solicita uma desaceleração. A mecânica deste regime de temporalidade hegemônico destina-se à aceleração máxima. Por isso, o poder incidiria não mais sobre o fator espacial, nas oposições aberto/fechado, muro/não-muro, reclusão/inserção, mas sobre o tempo. Segundo Pelbart (1993), esta seria uma luta importante com as novas tecnologias de poder, em que o lema não seria mais “trancar” ou “excluir”, mas “acelerar”. O que acontece é que a sociedade disciplinar está sendo substituída pela sociedade de controle. Por isso, os meios de confinamento dão lugar a formas ultra-rápidas de controle ao ar livre, que substituem as antigas disciplinas, que operavam na duração de um sistema fechado. Diz Deleuze (1992a, p.220) sobre as Sociedades de Controle: “Não se deve perguntar qual é o regime mais duro, ou o mais tolerável, pois é em cada um deles que se enfrentam as liberações e as sujeições”. O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e descontínua. O ideal contemporâneo seria absolutizar a velocidade, a ponto de neutralizar o acontecimento, abolindo a própria duração. Para essa tecnologia, a velhice poderia indicar um obstáculo, pois encarna uma desaceleração. Não acreditávamos que deveríamos ajudar a remover esse obstáculo, inserindo-o simplesmente no ritmo generalizado. Vivenciamos no asilo uma certa deserção a determinado regime de temporalidade, como um exílio da velocidade crescente e, mesmo, em relação ao congelamento que a instituição provoca. Por isso, é preciso dar à velhice (sem substancializá-la) espaços de reivindicação de um outro tempo, lugares onde um outro regime de temporalidade permita o encontro com a vida e a construção de novas formas de estar no mundo. O que assistimos, em alguns momentos, é a formação de espaços que privilegiam o tempo a ser habitado, e não apenas passado, controlado. Parece-nos se tratar da própria velocidade da velhice e o outro regime temporal que os velhos vivem, suscitam e solicitam. “É preciso preservar a possibilidade de uma temporalidade diferenciada, onde a lentificação não seja impotência, onde a diferença de ritmos não seja disritmia, onde os movimentos não ganhem sentido apenas pelo seu desfecho” (Pelbart, 1993, p.41). Pudemos perceber que essa paisagem contrasta com a dos velhos que participam de grupos para terceira idade fora do asilo, que se empolgam, têm muita vontade, participam de atividades as mais diversas, procuram o seu espaço, que pedem para ser motivados. Podemos supor que muito do que se faz em um grupo de terceira idade pode seguir um modelo comprado pronto, uma espécie de roteiro social da felicidade na velhice. Entendemos que os grupos de terceira idade que encontramos fora do asilo podem ser uma possibilidade de encontros interessantes e alegrias, como, também, presa das fáceis felicidades do marketing. E justamente nesta última situação, poderiam não estar liberados, pois lhes é pedido que participem, filiem-se, inscrevam-se em alguma coisa.

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Já nos asilos, o que se apresenta, muitas vezes, são nichos de desregulagem antropológica, sem a fácil dicotomia entre felicidade e infelicidade. Velhos que poderiam estar fora de alguns circuitos, lógicas e instituições, tais como, de pai, de avô, de terceira idade, de melhor idade ou de engajados em projetos sociais etc... Abrindo para outras possibilidades de habitar o mundo. É importante ressaltar que não queremos, com isso, dizer que os grupos de terceira idade são ruins ou piores para a velhice que o asilo, mas, sim, problematizar as diferenças que parecem existir em ambas as situações. Por isso, consideramos importante “avaliar a capacidade dos excluídos de construírem territórios subjetivos a partir da própria desterritorialização a que são submetidos, ou dos territórios de miséria” (Pelbart, 2001, p.8). Isto porque nesta situação específica de institucionalização encontram-se nichos interessantes de solidão povoada. Uma solidão que não significa simplesmente estar sozinho numa ocasião, solitário com seus problemas cotidianos, mas estar aberto aos mais diferentes encontros. Seria uma solidão múltipla, criativa. Por vezes, necessária para uma interrupção, para dar um tempo e poder permitir a passagem de outros fluxos de vida. Nesse sentido, os velhos não estão deficitários em relação a um mundo ou “mais isolados da sociedade”, mas, talvez, em alguns momentos, estejam com outra movimentação, outra atividade, outra saúde. Em uma das conversas, um interno, N., refere que já trabalhou dia e noite e, hoje, não faz nada, considerando-se como um lixo. Fala da falta que sente de poder trabalhar, mas, ao mesmo tempo, fala que não quer mais trabalhar e que, hoje, faz questão de “não mover nem um galho de árvore”, porque já trabalhou muito em sua vida, porque está aposentado. N. não sabe dizer o que gostaria de fazer, já que não quer mais trabalhar. Apesar da aparente contradição de suas falas, quando convidado a participar de atividades, responde negativamente, pois diz que prefere ficar esperando a hora de comer e ir dormir. Com base nesta fala, poderíamos enquadrá-lo facilmente em um quadro diagnóstico como o de depressão, mas também é possível positivá-la, afirmando que ele não se submete mais às exigências da produção, experimenta outro regime temporal. Contudo, não negamos a possibilidade de um estado depressivo ou, até mesmo, melancólico. Os idosos, às vezes, falam que sentem vontade de sair e falta do que fazer. Entretanto, quando convidados a fazerem algo, preferem ficar em seus lugares “sem fazer nada”. “O que acontece” no asilo “é o que não acontece. Proliferações imensas que não estão preocupadas com a realização de um possível” (Henz, 2005, p.22). A primeira impressão que se tem é de que os velhos passam os dias sem fazerem nada, apenas esperando a hora do lanche. Disse-nos a coordenadora: “muitos passam o dia todo sentados, olhando para o portão, pergunto quantas pessoas passaram e nem sabem dizer”. Para ela, “ficar sem fazer nada” é um hábito que deve ser modificado. Isso incomoda os coordenadores do local e causa estranhamento. Porém, com o tempo de atividade e observações realizadas, pudemos perceber que este “fazer nada” permitia aos internos fazer alguma atividade dentro de outra lógica. Quando a coordenadora pergunta o que eles querem fazer, respondem: “nada, tô velho”. Esse “nada, tô velho” trazido da fala dos internos pode ser uma negação, um dar as costas, uma desistência, mas também é a possibilidade de renunciar a qualquer organização em torno de certos objetivos ou projetos. Não é mais necessário fazer alguma coisa, produzir; os velhos asilados podem, em alguns casos, estar em um estado de liberação da sociedade. Muitas propostas nossas foram rejeitadas ou malcompreendidas pelos internos (grupos, oficinas, programa de rádio, clube dos saberes), o que nos faz pensar na relação entre desaceleração, liberação e esgotamento. O esgotamento não mais como passividade ou cansaço, mas uma atividade intensiva para nada. É um conceito, um afeto, um estado da alma que comporta uma certa abertura, uma força liberadora, seja em relação aos clichês, seja aos automatismos, ou, ainda, aos falsos movimentos ou encadeamentos do mundo. Pode-se associar a passagem do cansaço para o esgotamento com a passagem do nada de vontade para a vontade do nada, do niilismo passivo para o niilismo ativo. Na experiência do asilo, vivemos essa tensão paradoxal entre uma atitude de passividade e de atividade, de dissolução e de abertura, um pouco como em Nietzsche, para quem o mais assustador e patológico pode trazer embutido o mais promissor e fecundo.

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Esse estado de intensidade, além de liberar do pragmatismo, do sensório-motor, da utilidade, da finalidade, libera da clausura do eu. O esgotamento, segundo Deleuze (1992b), sequer vai de encontro à armação social, foge às escolhas binárias, às dicotomias (ou é isso ou aquilo, uso tênis para sair ou pantufas para ficar, me engajo em algum grupo ou estou depressivo). Em alguns momentos, essa é situação de vários internos, ainda que tudo isso esteja longe de qualquer idealização. Um território que, por vezes, é habitado e instituído pelos internos, mas não é fixo. Nosso trabalho incide justamente sobre esses territórios esporadicamente engendrados e freqüentados. Logo, não é nossa intenção precisar as características da “situação observada”. Não buscamos fórmulas acabadas, verdades últimas que digam sobre a velhice institucionalizada ou sobre a velhice da situação analisada. O que caracteriza o nosso trabalho é essa movência que nos arrasta junto aos territórios subjetivos criados no interior de uma instituição. Sentávamos nos bancos, junto com os que estavam no pátio “sem fazer nada”. Apenas sentávamos, sem nos dirigirmos a ninguém, sem perguntarmos nada. Alguns nos olhavam muito, outros não. O intuito era estar com eles, acompanhar o que acontecia, estar ali só sentadas olhando. Buscávamos acompanhar o modo como cada um deslocava-se pelo espaço. Saindo da lógica da caridade e salvação, para estar aberto ao que se experimenta, expor-se a todos os contatos. Circular em espaços abertos, ouvir, observar, poder sustentar, nesse encontro, uma maior abertura às afecções (poder afetar e ser afetado). Houve falas esporádicas, sorrisos, comentários, movimentações. Passavam pessoas, chegavam carros, batia o vento. Um velho diz “não tem assunto, né”. Um fala com o que está ao seu lado, fala com muita dificuldade, não dá para entender, o que está ao seu lado só concorda ou repete a última palavra. N. faz comentários debochados de longe, sai e depois volta. O que está ao nosso lado aponta para um que está passando e fala algo a respeito da mulher deste. Alguém carregando uma pilha de toalhas quer passar por N., este se coloca no caminho dizendo: “tá com pressa? Eu não tô”, e ri. Toca a sineta para o lanche. Tal como eles, nos levantamos e vamos até o refeitório. Lá todos se dirigem ao balcão e pegam uma tigela com mingau e banana picada. Sentam-se em uma mesa que possui adesivos que identificam o lugar de cada interno. É notável o fato de que a maior parte da literatura estudada, assim como os discursos acompanhados no asilo, apresenta um idoso fragilizado e debilitado. São comuns formas de perceber, pensar, sentir e agir sobre essas pessoas como se fossem necessariamente associadas a uma série de doenças, incapacidades múltiplas, dependência e perda da autonomia, e que, portanto, devem ser “cuidadas”, “assistidas”. Essa perspectiva em muito se liga à herança iluminista e racionalista, produzida no século XIX e ainda hoje presente, que pretende apresentar a luz aos que não a têm, aos que se encontram na falta e na carência. Deleuze (1989), afirma que o que é horrível na velhice é a dor e a tristeza, e que essas coisas não são propriamente “a” velhice, mas uma velhice possível, pois, “a” velhice de fato não existe. Para o autor, o que torna a velhice triste é a pobreza e a falta de um mínimo de saúde. A maioria dos discursos aborda a velhice com base em sua falta em relação a um modelo de juventude, e não a velhice em relação a ela mesma. Todavia, eles não falam a verdade acerca da velhice, falam sobre um modo de perceber, ver, agir e pensar a velhice hoje. Neste sentido, a velhice não existe como tal. Entretanto, na lógica da carência, a velhice é pensada enquanto enfraquecimento dos corpos. Um corpo impotente que necessita de cuidados, tornando-a dependente daquilo que lhe falta. Esse modelo reflete um modo de vida desejável e que serve a todos, conferindo uma incompletude àquele que tenta ser conforme este modelo, uma impotência que não é posta sob suspeita, sendo entendida como natural. ‘A’ velhice se configuraria em codificações preestabelecidas em relação à norma, não a singularidades. Uma vez inscrito nessa lógica, o indivíduo idoso deve buscar o que não tem, um modelo que está posto fora dos sujeitos, identificar-se e tentar “ser”5 como suas características. A identidade (dada de antemão) da velhice vem a ser a promessa de uma completude daquilo que falta. Todos esses traços das velhices, sobretudo “das velhices institucionalizadas”, são singularidades (não se trata de traços pessoais). A clínica que propomos se constitui com essas marcas, traços e singularizações que proliferam nos encontros.

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Há um interno no asilo que tem uma grande dificuldade para caminhar, se deslocar de um local para o outro. Sua aparência é de um velho fraco, magro, frágil, débil. Para realizar um movimento tão “simples” como dar um passo, lhe é exigida tanta força que fica rapidamente exausto. Seus movimentos são extremamente lentos, mas feitos com muito cuidado e concentração, com muita força. Não a força física de bíceps ou abdominais, mas uma espécie de força vital. Observando-o quase ficamos “hipnotizados”, presos naquele outro ritmo, imersos no seu esforço sem tamanho e em sua lentificação. Uma saúde muito frágil, uma debilidade, uma exaustão, um corpo tirado de um depósito de trastes. Segundo Cícero (1997), o enfraquecimento do corpo e a falta de vigor não são inconvenientes supostos da velhice. Para o autor, a força é vista não como decréscimo, mas como poder achar-se forte para os objetivos que tem. A força num velho pode ser maior que num adulto, se for considerada a idéia de se ter outra perspectiva. Às vezes, nas velhices, se está gozando de uma frágil saúde irresistível, que provém do fato de ter visto e ouvido coisas demasiado grandes para ele, fortes demais, irrespiráveis, cuja passagem o esgota, dando-lhe, contudo, devires que uma gorda saúde dominante tornaria impossíveis. (Deleuze, 1997, p.14)

“O ‘É’ da identidade compreende sempre a implicação disso e de mais nada, e compreende, também, a afetação de uma condição permanente. Os artigos definidos ‘O’, ‘A’, ‘OS’, ‘AS’ compreendem a implicação de um só e único”. Atrelando a subjetividade a um modelo fixo. Sobre isso, ver Burroughs, s.d., p.87-9. 5

Alguns idosos, como aprendemos aos poucos, foram atravessados demais pelo que viram e ouviram no decurso do tempo, desfiguraram-se e desfaleceram-se pelos encontros. É desse percurso de atravessamentos que vêm as coisas grandes demais para eles, mas em relação às quais eles só podem manter-se permeáveis se permanecerem nessa condição de fragilidade, nessa saúde precária. Talvez por isso, particularmente, precisemos deste inacabamento, desta imobilidade, esvaziamento, no limite do corpo morto, para dar passagem a outras forças. “Um corpo que pode ser desertado, esvaziado, roubado da sua alma, para então poder ser atravessado pelos fluxos mais exuberantes da vida. Esse corpo que já é um corpo-sem-órgão” (Pelbart, 2003, p.44). Corpo marcado por modificações da imagem que tocam o narcisismo. Marcado também por traços os mais singulares, e que excedem aos registros do somático, anatômico e biológico. Enfim, esse corpo não se limita apenas a um corpo anatômico, mas a um corpo vivido, dotado de existência, possuidor de afetos. Trata-se de um corpo que não agüenta mais as forças civilizatórias, o adestramento progressivo do animal-homem (por meio da docilização do corpo através de tecnologias disciplinares), que resultou na forma-homem. Seria preciso retomar o corpo naquilo que lhe é próprio, sua dor no encontro com as forças do fora, os fluxos da vida, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo. “Assim o estatuto do corpo aparece como indissociável de uma fragilidade, de uma dor, até mesmo de uma certa ‘passividade’, condições para uma afirmação vital de outra ordem” (Pelbart, 2003, p.47). Corpos imóveis e inertes, frágeis, próximos ao inumano. Corpos parados, sentados, passos arrastados, cada vez mais lentos. Não são mais corpos atléticos, excessivamente musculosos, não têm a força de um touro ou elefante. Por isso, este corpo [...] só pode aparecer diminuído, deformado, no limite da impotência. Tudo se passa como se o corpo não tivesse mais agente para fazê-lo ficar direito, organizado ou ativo. É evidente que todos estes corpos são

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dotados de uma estranha potência, mesmo no esmagamento, uma potência sem dúvida superior àquela da atividade do agente. Uma potência liberada do ato. (Lapoujade, 2002, p.83)

Deste modo, não se pode encerrá-los em uma impotência, uma vez que potência não seja mais definida em função de um ato final e modelar, comum a todos. O que se observa é um aparente desinteresse, contudo, uma obstinação, uma força de resistência, um querer viver são visualizados. Em uma das visitas, olhando o quadro com as datas de aniversário, descobrimos que um dos velhos com quem conversamos, B., tem 88 anos. Corpo velho, tão frágil e fraco, curvado, com passos lentos, cuidadosos, portando ainda sinais de um câncer superado. Fascinadas observando aquele corpo, percebemos que parece resistir a um sofrimento associado a essa debilidade. Ao mesmo tempo, parece afirmar uma força vital de outra ordem, com base na passividade e na fragilidade constitutivas. Nas velhices, pode haver uma fragilidade que é um indício estranho de uma vitalidade superior. Impotência da qual se extrai uma potência. Podem ser corpos cansados em sua ação de realizar o possível, mas ainda não esgotados na busca de sua potência de resistir e deixar-se agir pelas forças do fora. Deleuze (1989) afirma que a velhice pode ser vivenciada como uma liberação da sociedade. Entrase para o “rol dos inativos”. Uma liberação que permite uma deserção, pois se está livre de todos os planos, para simplesmente habitar. Não é mais ser isso ou aquilo, mas ser, e nada mais. Pode ser ainda uma grande saída do “eu”, uma liberação de viver consigo mesmo ou da hipertrofia de um excesso de eu. Desinvestimento ativo no significado, nos utilitarismos, nos excessos de fazer sempre algo. Os velhos são pessoas que podem estar mais desinteressadas, e estão à mercê dessas coisas. Isso é um indício de saúde, de um vetor de saúde afirmativa. Eles saem liberados de um torniquete que nos faz responder sobre alguma coisa. N., quando convidado a participar da oficina para confecção de bandeirinhas para a festa junina do asilo, disse: “Não, isso não é para mim, deixa para os mais novos.” Em outra ocasião, ao ser convidado para outra atividade, falou: “Eu não vou, não gosto. Quando tem muita conversinha eu saio, evito, pra não dar confusão. Um acha bem, outro acha mal, isso dá desentendimento. Prefiro ficar sozinho”. N. fala como quem parece ter aprendido que ficar sozinho, não discutir, é interessante. Ele não se cansava de dizer o que também Deleuze escreveu sobre a velhice, isto é, que nós sofremos de um excesso de comunicação. Estamos, como diz ele, trespassados de palavras inúteis, de uma quantidade enorme de falas e imagens, e que melhor seria arranjar “vacúolos de solidão e de silêncio, para que se tivesse por fim algo a dizer” (Deleuze, 1992a, p.161-2). Trata-se de uma certa “má vontade ativa”, que, às vezes, pode ser fecunda, implicando-se com outras coisas. Seria como uma deserção saudável, ainda que temporária, das pessoas, do debate, da espessura subjetiva. Assim como não querem fazer nada, pois estão velhos, N. também se referiu à questão de estar liberado e não precisar participar de atividades. Em diversas ocasiões, ele comenta que já tem cerca de oitenta anos, está aposentado, “um caco véio”, e por isso não quer mais saber de fazer nada. B. e E., a respeito de participarem de determinada atividade, comentam: “Nós não vamos. Pra que pegar compromisso?” Interessante notar como, então, eles não se sentem à toa sentados a tarde toda na enfermaria. Não querer pegar compromisso pode ter relação com uma liberação, pois não têm mais a filiação a algo e não querem participar. Querem ser deixados em paz. V. fala em vontade de sair, mas quando questionado onde gostaria de ir, diz “não sei, não conheço a cidade”. Parece paradoxal: quer sair, mas não sabe para onde. Entretanto, pode-se pensar num índice de esgotamento, pois há que se estar ativo para sair, mas para nenhum lugar específico. Abdica-se de qualquer preferência, ou é por isso ou por aquilo. Há uma suspensão da utilidade prática da saída. Eles estão parados, o que fazem é muito sutil, parece que não estão fazendo nada. Só estão ali, cravados no presente, no instante – parados. É interessante pensar novamente num certo esgotamento, não como uma condição permanente, mas um índice de esgotamento que vai e vem. Trata-se de uma movência (mobilidade?). Pode ser a saúde de um homem sem particularidades, que “não pode mais possibilitar”, que “abdicou da lógica do isto ou aquilo, da preferência” (Henz, 2005, p.25).

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N. costuma estar sentado, geralmente no mesmo banco, parado “fazendo nada”. Gosta de ficar em silêncio, esperando a hora das refeições e de dormir. Não quer fazer outra coisa senão isso, “esperar”. Convidamo-lo para participar de um grupo, disse que não participaria, pois não conversa com ninguém, não gosta disso, prefere ficar quieto no seu canto. Diz que, no asilo, tem muitos que “não falam nada com nada”, e conversar não é mais para ele, já que ele tem oitenta anos. Vozes caladas, silêncios por vezes esvaziados de mundo interior, passos cada vez mais arrastados, corpos evitando contato, pouca vontade e memória. Como N., alguns internos não querem transcrever suas memórias e histórias. Passam longas horas em silêncio. Pode haver nisso uma positividade. No esgotamento, há um tanto de abulia, estamos um pouco amnésicos. Há nisso uma abertura. Às vezes, a preguiça e o silêncio são sintomas inventivos que geram novas sensibilidades. A lentificação aparece não como inutilidade, e sim como um ativar-se para nada. Há um esperar em silêncio que não é descanso, nem recolhimento consigo mesmo (Henz, 2005). Aparece um não dizer que é um sim, que isola para estar à altura das experimentações. Algumas vezes, não é enclausuramento, mas um fechar-se estratégico e um esquecimento ativo em favor da vida. No asilo, aparecem mentiras, contradições, versões incompatíveis. Podem ser afirmações corajosas, ao invés de lapsos de memória. Pode ser um deboche do outro que ouve. Esquecimentos que, por vezes, podem ser ativos. Não importa se é verdade ou mentira, importa saber que mundo é esse, no asilo, que valoriza a ilusão, “a mentira” em detrimento da verdade moral, racional e científica. Mentir ou perder-se da idade, ignorá-la – pode ser uma forma diferente de lidar com o tempo sem sequer negar o seu valor de verdade hegemônica. M. disse ter quarenta e poucos anos, depois descobrimos que tinha muito mais que isso. N. dizia não saber quantos anos tinha; dias depois, contava-nos que, no dia 21 de agosto, faria oitenta anos. Essas falas apontam para muitas direções. Uma delas é, talvez, um modo de triunfar sobre o sofrimento, apagando seus traços, ou, então, deles se esquecendo. Uma espécie de anteparo que integra à vida essas experiências de desintegração, tornando-a possível, desejável, aliviando a crueldade à qual se está exposto. A dor aqui não os enfraquece, não se torna argumento contra a vida, ao contrário, a intensifica. Aparência e essência coexistem na mesma dimensão. Para Machado (1995), estamos sempre criando a ilusão para poder viver. Citando Nietzsche, o autor diz que se cria ilusão para dar sentido à vida, porque em si mesmo a vida não tem sentido. A ilusão (dissimulação, ocultação) pode estar encobrindo o sofrimento, protegendo do caótico e do informe, que é destruidor. É importante salientar que não se está querendo idealizar a velhice institucionalizada, purificá-la como livre da disciplina e dos controlatos. Sem dúvida, o sofrimento está presente em muitos casos. No asilo, há internos mergulhados na demência. Há passividade, há também estrangulamentos de fluxos de vida. Não se está querendo negar isso. Não escolhemos a velhice, a infância ou qualquer momento como o privilegiado, a melhor hora. Alguns autores e interlocutores utilizados no trabalho podem nos conduzir, sem querermos, a uma espécie de divinização da velhice como contrapartida à sua demonização e patologização. Entretanto, o trabalho tem como foco justamente ler, a contrapelo, o que é hegemônico no contemporâneo, e apontar para uma outra saúde, como abertura e acolhimento da sujidade e do risco. Não se trata de encontrar a velhice em estado puro, reinvocando formas prontas e totalizantes. Trata-se de uma pluralidade, forças em luta que se juntam e se aglomeram. Esgotamento, desaceleração, liberação, sofrimento, solidão etc., os habitam no âmbito das forças e, inclusive, numa mesma subjetividade em agonística, uma intrusão de estados, múltiplas forças em luta, capazes de tomar de assalto, afirmativamente, a velhice na instituição. Após dois anos de trabalho, pode-se dizer que produzir e criar novas formas de intervenção tem sido o desafio. Acreditamos que as intervenções não se fazem separadamente da produção do conhecimento, e que estamos implicados politicamente nesta produção. A pesquisa e a extensão na área de psicologia e saúde, em especial sobre produção de subjetividade e velhice, exige a extrapolação do meramente interdisciplinar, do campo dos conhecimentos e fenômenos já vistos e sabidos, buscando novas maneiras de intervenção, para além da recognição.

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VELHICE, INSTITUIÇÃO E SUBJETIVIDADE

Em meio a inquietações, empecilhos, dúvidas sobre as possibilidades de atuação, este trabalho vem mudando os nossos encontros com a velhice, mais precisamente com a velhice na instituição. Pensamos numa multiplicidade de velhices, e interpelamos os idosos não como meros seres biológicos, agentes sociais ou subjetividades espessas. E sim, na condição de vivos e implicados com suas experiências, na direção distinta de um certo esvaziamento da subjetividade atrelada à rendição e à desistência de lidar com a experiência de si e seus vaivéns.

Colaboradores Os autores Gabriela Felten da Maia e Susane Londero participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, revisão bibliográfica, redação e da revisão do texto. Alexandre de Oliveira Henz participou da revisão bibliográfica e revisão do texto.

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MAIA, G.F.; LONDERO, S.; HENZ, A.O. Vejez, instituición y subjetividad. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.49-59, jan./mar. 2008. Este ensayo se refere al trayecto realizado hasta y a algunas herramientas teóricoprácticas produzidas para uns clinica con viejos. El compartillamiento de algunos conceptos que permean los límites entre vejez y sofrimiento se torna una herramienta de fundamental importancia para esta clínica, necesitando de otras intervenciones frente a las tradicionalmiente realizadas, especialmiente en situación de institucionalización. La propuesta de una clínica con viejos surgió de un interés en relación a esa etapa de la vida, más específicamente, en relación a la presencia de un discurso de moralidad y de guisa de subjetivación hegemónicos que a qualifican como la “banda podrida de la vida”.

Palabras clave: Vejez. Produción de subjetividad. Experimentaciones. Institucionalizaciones. Salud del anciano institucionalizado.

Recebido em 29/03/06. Aprovado em 18/09/07.

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Significados das práticas corporais no tratamento da dependência química Giuliano Gomes de Assis Pimentel1 Edna Regina Netto de Oliveira2 Aparecida Paulina Pastor3

PIMENTEL, G.G.A.; NETO-OLIVEIRA, E.R.; PASTOR, A.P. Significance of corporal practices in treating chemical dependence. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.61-71, jan./mar. 2008. The aim of this study was to analyze the social representations of women with chemical dependence, regarding the contribution of corporal practices towards their process of recovery and reintegration into society. Fourteen women hospitalized in a treatment institution were interviewed and observed in relation to their participation in a corporal practice program, systematized in the form of games and exercises. Their words and practices showed contradictions between feelings, justifications and perspectives with regard to the use of their own bodies. Based on these results, it was sought to understand how the social conditions of their lives mediated the way these women organized themselves to benefit their health.

Key words: Body. Health. Chemical dependence. Corporal practice. Physical Education.

O objetivo deste estudo foi analisar as representações sociais de mulheres dependentes químicas sobre a contribuição das práticas corporais em seu processo de recuperação e inserção na sociedade. Quatorze internas de uma instituição de tratamento foram entrevistadas e, também, observadas em relação à participação em um programa de práticas corporais, sistematizadas na forma de jogos e exercícios. As falas e práticas demonstraram contradições entre sensações, justificativas e perspectivas em relação ao uso de seus corpos. Com base nos resultados, se buscou compreender como as condições sociais de vida medeiam o modo pelo qual essas mulheres se organizam em benefício de sua saúde.

Palavras-chave: Corpo. Saúde. Dependência química. Práticas corporais. Educação Física.

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1 Bacharel em Educação Física. Departamento de Educação Física, Universidade Estadual de Maringá/UEM. Av. Colombo, 5790 Maringá PR 87.020-900. ggapimentel@uem.br 2 Nutricionista e farmacêutica. Departamento de Farmácia e Farmacologia, UEM. 3 Licenciada em Educação Física. (in memorian)

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Introdução O uso de drogas é influenciado por múltiplos aspectos, sendo difícil prever quais pessoas ou comportamentos desencadearão o consumo. Se a complexidade de fatores é inerente a essa problemática, não é surpresa que sejam necessárias diferentes práticas para se efetivar o tratamento, podendo-se citar, entre elas, a educação para o lazer do dependente químico por meio de práticas corporais recreativas (Gimeno et al., 1998). Sem perder tal perspectiva multidisciplinar, este trabalho explorou, com base nas representações sociais, significados presentes na adesão de mulheres, em tratamento de dependência química, a um programa de práticas corporais4, na forma de jogos e ginástica. Desta forma, o presente texto traz reflexões sobre como as participantes percebem-se em relação a esse programa no seu processo de recuperação. Particularmente, analisa-se o modo como seu imaginário ordena essas percepções quando o discurso científico e terapêutico sobre as práticas corporais as justifica, predominantemente, por um viés biológico e funcionalista. No processo de recuperação, é procedimento difundido o consumo de líquidos associado à realização de esforço corporal. Há muito tempo sabe-se que o suor é um veículo para excreção de drogas e seus catabólitos (Kidwell, Blanco, Smith, 1997). Assim, o efeito desejado é o aumento da transpiração e conseqüente excreção desses produtos por meio do suor.

Aspectos metodológicos A pesquisa caracterizou-se como pesquisa-participante, uma vez que os pesquisadores não procederam somente à descrição direta das características do fenômeno, mas também interagiram na realidade investigada, na qualidade de atores. Para tanto, foi necessário o planejamento de atividades em consonância com o grupo pesquisado. Em termos gerais, a intervenção constituiu-se pela realização de práticas corporais como: ginástica localizada, ginástica aeróbica, alongamento, jogos de aventura e atividades de recreação, por um período de sete meses, numa instituição de recuperação para mulheres, sendo realizadas 55 aulas. A intervenção foi desenvolvida duas vezes por semana, com duração de uma hora por encontro. A população deste estudo foi constituída por mulheres com dependência química em recuperação numa instituição filantrópica de Maringá-PR. Oriundas de famílias com renda abaixo de quatro salários-mínimos, todas eram alfabetizadas, tendo as mais jovens interrompido os estudos (Ensino Médio e, no caso de uma, Ensino Superior) em decorrência do consumo de drogas. Quanto às drogas ingeridas pelas mulheres, foram identificadas, em ordem decrescente: álcool, cocaína, maconha, com casos de associação das três5. Outras drogas também citadas, em menor recorrência, foram: tabaco, heroína, ecstasy, quinino e cafeína. Ao todo, participaram 14 mulheres, com idade entre 19 e 51 anos6, todas em fase de recuperação e internas. Elas consentiram em participar do estudo, sendo garantido o anonimato das informantes (aqui numeradas de 1 a 14). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da Universidade Estadual de Maringá - UEM (parecer n.219/2004). Além das observações diretas, foram realizadas entrevistas estruturadas em dois momentos do trabalho. O primeiro momento diagnóstico foi realizado com

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4 Prática corporal é entendida como toda manifestação gestual, como os exercícios, os jogos e as danças, com significado cultural compartilhado em determinado contexto. O termo atividade física é utilizado para designar quando as práticas corporais são pensadas em relação ao esforço ou gasto energético demandados. Aqui o termo recreação referese à condução de atividades lúdicas destinadas, predominantemente, à diversão.

5 A literatura aponta essa característica como mais comum em homens; mulheres tendem a consumir drogas ilícitas em menor freqüência, embora a proporção de usuários não tenha diferença significativa (Oliveira, Paiva & Valente, 2006; Scivoletto et al., 1999). 6 Essa distribuição de faixa etária encontrada na população coincide com a consideração de Helman (2003), para a qual mulheres entre 18 e cinqüenta anos são mais suscetíveis de terem frustradas as tentativas de enfrentar as novas circunstâncias da sua vida.


o objetivo de identificar o grupo amostral, as causas que o levaram à utilização de drogas e os tipos de drogas consumidas. Também foram obtidas informações sobre as atividades físicas, esportivas, artísticas e recreativas anteriormente praticadas no tempo livre, e de que forma a Educação Física poderia contribuir para a saúde do grupo. No segundo momento foram feitas discussões sobre as representações das mulheres investigadas acerca de seus corpos e da ação das práticas corporais realizadas sobre eles. Ao tomar as representações sociais como conhecimento-comum a determinado grupo, assume-se sua constituição com base na interpenetração entre objetividade e subjetividade. Nesse sentido, salienta Minayo (1998), ao se buscar, na área da saúde, compreender os significados, tanto de ações quanto de pensamentos, sentimentos e resistências de grupos populacionais, deve-se considerar tanto o discurso quanto a base técnica. Para Menéndez (1998), a medicina praticamente se preocupa com as representações e hábitos da população quando eles incidem negativamente sobre a saúde. Todavia, cada “grupo social, independente de seu nível de educação formal, gera e utiliza critérios de prevenção frente aos padecimentos que, real ou imaginariamente, afetam sua saúde na vida cotidiana.” E, ainda, todos os grupos são possuidores de um saber frente aos padecimentos, visto que eles “são estruturais a toda cultura, já que são decisivos para a produção e reprodução da mesma” (Menéndez, 1998, p.75). O autor considera fundamental dar-se atenção às representações e ações coletivas na efetivação de programas de saúde, mas adverte que, seja no conhecimento comum ou no acadêmico, os conceitos não são neutros estando ligados, conscientemente ou não, a teorias produzidas dentro de um marco referencial específico. Conforme outros marcos teóricos usam o mesmo conceito, pode haver discrepância, antagonismo ou complementaridade. É preciso, portanto, ir à raiz dos entendimentos, evitando tomar como evidentes os significados do discurso. Minayo (1999) reitera esse cuidado lembrando que as falas não podem ser tomadas como expressão pura da verdade, sob o risco de se acreditar serem os discursos transparentes, sem contaminação de interesses, falhas de memória e ação da ideologia. Tal perigo ocorre quando se percebe o real sem questioná-lo, tomando o familiar como verdadeiro. Na investigação social, a análise do material objetiva aumentar a compreensão de determinado aspecto cultural para além do nível espontâneo da mensagem tomada como evidente. Logo, as representações de qualquer pessoa investigada podem corresponder ao oposto do que está sendo relatado. Por isso, a observação participante foi fundamental para conferir outras falas, gestos e ações gerados espontaneamente (ou não) durante o cotidiano da instituição.

Resultados e discussão Ao discutirem a contribuição específica do programa de práticas corporais orientado por profissional de Educação Física, embora diversas facetas fossem lembradas, as mulheres destacaram a visão do esforço como uma forma de aquecer o organismo, levando-o a expelir substâncias químicas pelo processo de sudorese. Uma parcela significativa da população avaliada (62,5%) consegue lembrar-se, exclusivamente, da ação catabólica, conforme explicitado nestas falas: Sim, pois dizem que é bom transpirar para a desintoxicação. (Entrevistada 01) Ajudando a expelir do organismo a química do corpo e ocupando a mente. (Entrevistada 05) Ajuda na eliminação das toxinas. (Entrevistada 06) Pode contribuir eliminando as toxinas do corpo. (Entrevistada 08)

Entretanto, em relação à bioquímica e à fisiologia, poderá a representação sobre o efeito catabólico do exercício corresponder à realidade? O fato de o uso de álcool e drogas ilícitas poder ser

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diagnosticado em amostras de sangue, urina, cabelo, saliva, tecido adiposo, pele, suor e outros tecidos (Behrensdorf & Steentoft, 2003), deve-se à presença da própria droga nesses locais ou de compostos resultantes de seu catabolismo. Embora seja conhecido, há muito tempo, que as drogas podem ser excretadas pelo suor, não existem relatos de trabalhos que tenham quantificado a ação da atividade física na recuperação de dependentes químicos em função da maior eliminação da droga pela sudorese. Os vários mecanismos pelos quais as drogas podem ser secretadas no suor incluem a difusão passiva da droga do sangue para as glândulas sudoríparas e a migração transdérmica da droga através da pele (Follador et al., 2004; Huestis et al., 1999). A concentração das drogas no suor varia com uma série de fatores, dentre eles a concentração da droga no sangue e a intensidade da transpiração (Huestis et al., 1999). Considerando a difusão passiva da droga da corrente sanguínea para o suor, a prática da atividade física, como parte do processo terapêutico, levaria ao aumento do fluxo sanguíneo e da transpiração, aumentando esta via de excreção da droga e seus catabólitos. Quando questionadas sobre a origem desse saber, as internas revelaram que se trata de um conceito adquirido do discurso biomédico, difundido em revistas ou nas casas de tratamento. Na verdade, parece ser uma informação presente em vários ambientes, como revela a Entrevistada 12: “Aprendi na faculdade; em clínica de recuperação. Li em livros que a atividade física deve ser priorizada como auxiliar no tratamento de dependência química”. Surpreende, porém, observar que o lócus desse aprendizado teórico tem sido mais os ambientes escolares, destacando-se as aulas de Educação Física sobre saúde. O senso comum criado sobre o esporte não ser droga e, portanto, contribuir para a aquisição de saúde e manter a juventude longe dos vícios, vem colocando as aulas de Educação Física à frente das campanhas escolares de prevenção ao uso de substâncias psicoativas. Pelas informações veiculadas, os conteúdos da cultura corporal acabam sendo reduzidos a funções sociais ou fisiológicas. Uma dificuldade na hegemonia assumida por essa disciplina escolar na prevenção ao consumo de drogas é que esta venha a tomar tal problemática exclusivamente com base em seu ponto de vista (e, o que é pior, em só uma de suas abordagens), com tendência a buscar uma causalidade única. Como adverte Menéndez (1998, p. 75), “isolar o risco de beber, de fumar ou de comer determinados alimentos pode ser eficaz para intervir no nível de condutas individuais, mas não só anula o efeito compreensivo do problema, senão que reduz a eficácia da intervenção”. O autor se remete ao exemplo do fumo no Reino Unido, mais difícil de ser abandonado entre pobres que nos extratos superiores. Então, pergunta o autor, não seria a classe econômica/social o condicionante? Entre a classe trabalhadora britânica, hábitos como fumar, ingerir cerveja, ter contatos corporais violentos e conviver socialmente no pub, expressam o modo de existir socialmente, a identificação cultural e a idiossincrasia dessas pessoas, o que motivaria a sobrevivência dessas atitudes consideradas nocivas à saúde (Menéndez, 1998). Corroborando essa inquietação, as participantes da pesquisa, quando questionadas sobre suas atividades de lazer antes da dependência química, informaram, basicamente, atividades físicoesportivas (sobretudo caminhada e esportes de quadra) e leitura. Sua participação em práticas corporais e acesso à informação, embora se possa questionar a qualidade de ambas, parece não têlas blindado ou protegido do consumo e dependência de drogas, particularmente álcool e cocaína, as mais consumidas entre elas. As conversas com as mulheres dependentes químicas sugerem, entre outros aspectos, que elas atribuem ao componente individual a razão principal para o abuso e dependência de substâncias, relacionando-os à personalidade da pessoa. Já que se exercitavam e estavam informadas sobre a temática, essas mulheres só poderiam concluir pela sua “culpabilização”, imputando-se como responsáveis. Por esse exemplo, nota-se como, apesar da multicausalidade das enfermidades, os atingidos pelas doenças tendem a assimilar a responsabilização a uma causa específica. Embora não fossem levadas a refletir sobre a parcela da influência hereditária, socioeconômica e ambiental na dependência, as internas apontaram variadas dimensões (genética, religião, sociedade, comunidade, família, indivíduo) da totalidade quando se remetiam às condições intervenientes à sua

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No Ocidente, é recorrente a existência de versões medicalizadas reproduzindo leituras morais. Helman (2003) exemplifica com as representações coletivas, na medicina, sobre as causas da obesidade. As pesquisas sobre esse tema indicam que o diagnóstico causal sobre “comer muito e exercitar-se pouco” seriam traduções recentes de alguns pecados capitais. Na raiz da questão reitera-se a desaprovação moral da gula e da preguiça, assim como da falta de autocontrole.

recuperação. Nesse caso, a instituição de tratamento lhes encoraja a planejarem a vida durante e após a internação, sob diferentes aspectos (vida familiar e comunitária, trabalho, lazer, espiritualidade). Sobre esse parcelamento do indivíduo e de sua saúde em diversos componentes, sempre em conflito, nunca em equilíbrio, nota-se, como Helman (2003, p. 27), uma automação na imagem do corpo social. Para a autora, tal como a sociedade ocidental se enxerga como indivíduos autônomos, o corpo é tomado como uma junção de partes individuais que podem ser trabalhadas sem ameaçar a sobrevivência do todo. Devido a esse parcelamento do corpo e de suas funções, o estudo acabou por encontrar um olhar diferenciado da Educação Física no grupo de dependentes químicas. Como já referido, a contribuição do movimentar-se é, sobretudo, relacionada à sudorese. A prática corporal fica sendo representada como algo que extrai humores do interior do corpo (dentro da pele) para expelilos pelos poros da epiderme (a barreira que separa o ‘eu corpo’ do mundo exterior). Não se trata da cultura corporal como algo que amplia as sensações possíveis a partir do invólucro epidérmico, mas de restringir a representação sobre o mesmo a relações instrumentais. Em complemento, a visão higienista dessa relação faz do corpo um receptáculo que, por enfraquecimento físico e moral, ingere substâncias maléficas à saúde do indivíduo. Cada qual deve aquecer seu corpo, preferencialmente por meio de movimentos aeróbios vigorosos que, além de serem úteis à transpiração, são simbolicamente eficazes para se incorporar 7 valores ascéticos . Se o fundamental fosse transpirar, a sauna seria uma solução mais objetiva, todavia fica evidente que o movimentar-se cumpre, também, uma função social. Certas práticas corporais conduzem à assimilação de um autocontrole. E um corpo suado pela ‘malhação’, embora esteja longe de ser agradável, expressa – aos olhares de todos – a determinação do dependente químico em desincorporar as drogas de seu organismo e, por assim representado, de seu íntimo. Neste caso, esse é um conceito já assimilado na sociedade e reforçado institucionalmente. Conhecimento que as internas acabam reiterando sem, contudo, mediarem-no com suas próprias sensações e reflexões, visto que nem em suas conversas espontâneas expressam sua opinião particular sobre como sentem os benefícios dessa eliminação da droga e seus catabólitos. Pelo contrário, quando a maioria refere-se aos benefícios da prática corporal com base em suas sensações, a representação predominante diz respeito ao relaxamento (psíquico/somático) decorrente da atividade. Em relação à percepção de seu corpo em função da introdução do programa de práticas corporais na casa de recuperação, as respostas correspondem ao pressuposto de que essa experiência, mais que se constituir numa forma direta e utilitarista de tratamento é, primeiramente, uma forma de a pessoa relacionar-se com o corpo. A efetiva capacidade de melhorar o amor próprio e a auto-estima é o que torna a prática corporal um componente benéfico e, a longo prazo, um fator contribuinte para a qualidade de vida da pessoa, incluindo o dependente químico. Esses resultados parecem corroborar a discussão de Carvalho (2001) sobre a importância de considerar o “sujeito” da ação como o foco de nossa reflexão, ao invés de priorizar a relação atividade física e saúde. A intervenção em Educação Física, por esse pressuposto, se deslocaria da busca da saúde individual para focar no sujeito coletivo. E a saúde? Conforme a autora, ao

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proporcionar contato com os conteúdos da cultura corporal, o profissional da área fomentaria saberes que auxiliariam cada indivíduo a ser mais emancipado e consciente. Assim, este poderia tomar suas próprias decisões e edificar as estratégias mais coerentes com sua maneira de viver melhor em sua coletividade. Para tanto, é necessário acessar esse sujeito coletivo da relação “atividade física e saúde”, adentrando sua forma de pensar. Não obstante, vale advertir que as representações sociais são construções plurais, sujeitas a contradições e à conciliação de pensamentos opostos. Assim sendo, tanto se vê um indício desse viés de prática corporal manifestar-se como busca pelo prazer quanto como uma espécie de remédio eficaz à promoção de algumas dimensões da saúde. Estas respostas dizem respeito à percepção corporal que as internas tiveram com sua adesão ao programa: No começo dói, mas depois relaxa o corpo e fica super bem. (Entrevistada 09) Sim, quando faço atividade física durmo melhor, como melhor, penso melhor e meu corpo agradece. (Entrevistada 12) Sim, eu me sinto mais leve. (Entrevistada 14)

A esse respeito, poderia ser resgatada a capacidade de os jogos e exercícios estimularem momentos de catarse. Em acréscimo, a prática corporal de lazer está associada à liberação de substâncias (endorfinas) que agem sobre o cérebro, proporcionando prazer e relaxamento. De acordo com Sher (2001), os opióides endógenos estão envolvidos na mediação do humor e os exercícios, por aumentarem a liberação destes compostos, contribuem para o equilíbrio do humor nos seres humanos. Frente à representação do corpo como um depositório de substâncias tóxicas que devem ser expelidas, o prazer evocado pelo relaxamento mostra-se um canal menos mecânico para se trabalhar o imaginário das dependentes químicas acerca da importância das práticas corporais em sua recuperação e inserção social. Gimeno et al. (1998) reforçam essa compreensão ao comentarem os efeitos da introdução de jogos cooperativos e práticas de aventura numa instituição espanhola para tratamento de dependentes químicos. Os jogos cooperativos objetivaram restabelecer a sociabilidade em parâmetros de confiança. Já a aventura, além de reforçar a necessidade do outro para sobreviver nas situações de risco, possibilitou que ocorresse uma descarga adrenérgica frente à percepção de um perigo e, posterior à superação do mesmo, a liberação de opiáceos. Embora não seja conclusiva, a relação entre jogos de vertigem e drogas é sugestiva e revela ambigüidades, pois parece tanto contribuir para o ingresso quanto para a ‘suspensão’ do consumo de entorpecentes. Para Caillois (1994), as drogas seriam a corrupção (exagero) da vertigem (ilinx), que é um impulso primário da condição humana. De fato, tanto o uso de drogas quanto a prática de esportes radicais produzem sensações de vertigem (representada como emoção, adrenalina). A adrenalina “vicia”, fazendo com que o sujeito busque, cada vez mais, a repetição da atividade que leva à sua liberação. Ademais, há as endorfinas, que são analgésicos naturais que entram em cena logo após a adrenalina, como uma resposta a esse hormônio, causando uma sensação muito agradável de entorpecimento e bem-estar e cessando as dores. Para Gimeno et al. (1998), os jovens em tratamento estudados por eles buscavam trocar a dependência química por uma vertigem natural e socialmente aceita (circo, caiaque, rapel). A análise de Caillois (1994) enriquece essa compreensão ao demonstrar que o alcoolismo e o consumo de drogas são, em tese, um transbordamento do lúdico reprimido no cotidiano. O autor considera que a vida civilizada em sociedade, como existe hoje, exigiu a marginalização da vertigem, que acabou resistindo em formas degradadas e diluídas. A intensificação das ações em função da produtividade capitalista, exigindo um corpo que atendesse ao ritmo das novas tecnologias, e o gosto pela velocidade, que tomou conta do homem moderno são, conforme Caillois (1994), sobrevivências da vertigem no cotidiano. Tal contaminação estendeu-se para o campo perceptivo e sensorial de modo que o fenômeno das

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drogas foi apenas uma das formas de as pessoas tentarem se adaptar a um ritmo de produção cada vez mais vertiginoso. Quando a atitude psicológica diante da vertigem se extravia de seu equilíbrio, pode-se diagnosticar que boa parte da tensão vital, entre jogo e vida cotidiana, prosperou na busca de uma vida alucinógena, excitante e imagética, que exclui a realidade,pelas drogas e álcool. Logo, o frenesi na forma como a sociedade produz e se reproduz é obstáculo fundamental para se conseguir viver sem consumir drogas. Não é por acaso que as instituições de tratamento precisam localizar-se em áreas naturais ou rurais, impondo um outro ritmo e uma concepção menos linear de tempo, para que consigam obter avanços na recuperação do dependente químico. Embora, quimicamente, o organismo dessas pessoas vá sempre sentir os efeitos da abstinência das drogas, uma iniciativa no período pós-alta, que parece contribuir com o tratamento e enfrentamento do cotidiano, seria poder optar por uma relação menos compulsiva com o tempo social e a devolução da vertigem ao seu verdadeiro lócus, o lúdico (daí os jogos de aventura). Feita essa reflexão, vale retomar o contexto do estudo, questionando sobre como a intervenção da Educação Física pode vir a somar-se com outras iniciativas para uma política de fortalecimento do dependente químico na sociedade. É importante lembrar que as práticas corporais foram admitidas na instituição por se acreditar na sua complementaridade à oração e ao trabalho terapêutico, pois a direção da instituição acredita na recuperação do indivíduo em três níveis: físico, mental e espiritual. Logo, foram pensadas numa perspectiva de atividade física e recreação. Não obstante o limite dessa visão (idealista) de saúde, tal contribuição não se restringiria somente ao tratamento, mas perduraria por toda a vida, quando as mulheres, ao saírem da recuperação, continuariam envolvidas com práticas corporais significativas em seu tempo livre. Sem desejar reforçar uma postura compensatória ou utilitarista, percebe-se que, considerando a realidade estudada, as práticas corporais de lazer proporcionaram sensações de prazer às mulheres que delas participaram. Essas ‘novas’ fontes de satisfação podem contribuir para que se opere a substituição da recompensa percebida ao se consumirem substâncias químicas. O corpo deixa de ser espaço de perdas (de substâncias) para se transformar em um território de produção de sensações agradáveis. Sua vivência não é atrelada a uma função social, mas começaria a apresentar-se mais autodeterminada pelo sujeito da ação. Por isso mesmo, indagamos sobre as perspectivas das internas. As respostas mais freqüentes foram: reconstituir família, estudar, ajudar outros dependentes químicos, buscar sucesso profissional e ter prática corporal regular. Em relação às atividades corporais pretendidas, foram lembradas, em ordem decrescente: ginástica (localizada e hidroginástica), caminhada, lutas, natação, e esportes coletivos. As atividades de aventura foram citadas apenas entre as internas mais jovens. Interessante notar que a representação sobre a sudorese perde força em relação ao futuro. As internas planejam a prática corporal para a fase de inserção na sociedade pensando em objetivos estéticos (emagrecimento) e de saúde integral: Fazer ginástica localizada porque além de manter o corpo beneficia a mente. (Entrevistada 14) Um exercício que ajuda fisicamente e mentalmente. (Entrevistada 08) Encontrar o equilíbrio entre corpo, alma e espírito. [...] Consegui emagrecer dez quilos com abdominais e voleibol. (Entrevistada 02)

Mesmo que soe previsível a predileção feminina pela ginástica localizada, independente de sua condição como dependente química e, como segunda opção, a caminhada, é preciso questionar qual a possibilidade dessas mulheres efetivarem suas intenções após o período de tratamento. Embora a caminhada seja uma atividade possível de ser realizada em praças, ruas e parques públicos, as representações apontam para uma visão predominantemente de consumo quando se pergunta, às mulheres, o local no qual podem praticar a atividade desejada. Estas se imaginam em clubes ou academias. Mesmo sendo estimado um custo para matrícula e mensalidades, é forte a representação da academia como local ideal.

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SIGNIFICADOS DAS PRÁTICAS CORPORAIS ...

Dois aspectos complementares, mas antagônicos, precisam ser desmembrados da constatação sobre a hegemonia da academia entre as representações sociais. Primeiramente, os custos podem representar baixa adesão e aderência a alguma atividade física regular, levando tanto a sentimentos de frustração como reiteração do conformismo cultural e baixa criatividade. Vale acrescentar que o entendimento do problema como de resolução individual pode reforçar a limitada mobilização social em torno de reivindicações por políticas públicas de esporte e lazer voltados à saúde. Aliás, a busca por academia e outros empreendimentos particulares referenda a gradual substituição do poder público pela rede privada, a qual, geralmente, não está acessível aos grupos especiais e mais carentes da sociedade (Carvalho, 2001). Mas, por outro ponto de vista, o desejo de fazer ginástica em academia pode ser interpretado para além da querela em torno da privatização dos equipamentos de lazer físico-desportivo. Metade das entrevistadas, ao manifestarem o desejo por freqüentar academias, estranhamente não possuíam vivência desse ambiente. Seu imaginário, aliás, parece mais conduzido pelas expectativas em relação a redes de sociabilidade e ao prazer estético em meio à exibição de corpos saudáveis. E, considerando a apreensão e insegurança da pessoa após tratamento, estar na academia, ao invés de em lugares públicos e abertos, pode significar a busca por um local seguro e, ao mesmo tempo, com mais vigilância e cobrança por atitudes consideradas saudáveis. Para elas, a presença dos colegas e do instrutor é um estímulo à aderência ao exercício, mesmo a custo de sua autonomia. Um aspecto importante para essa reflexão é que a relação das mulheres com as práticas corporais e com as substâncias psicoativas é duplamente desfavorável: as mulheres têm menos acesso às oportunidades físico-esportivas de lazer (Pitanga & Lessa, 2005) e possuem menos chance de ter uma boa evolução na recuperação quando comparadas aos homens (Kerr-Corrêa et al., 1999). Por fim, quando essas mulheres se referem à busca do equilíbrio, vale recorrer ao questionamento teórico dessa visão idealizada de saúde, pois nem sempre as condições necessárias para esse equilíbrio estão disponíveis. Como salienta Carvalho (2001, p. 14) “tem saúde quem tem condições de optar na vida”. Estariam imbricados não somente o suposto equilíbrio físico-mental-espiritual (até porque é necessário desequilibrar-se para se equilibrar), mas possibilidades relativas às condições de vida tanto em sua totalidade, quanto no acesso ao lazer, trabalho, cuidados à saúde e educação. Porém, essas políticas parecem não produzir efeito na sociedade brasileira, cuja velocidade compulsiva tem servido a um modelo de desenvolvimento desigual. Assim, já em sua gênese, a política de inclusão do dependente químico resultaria em sua exclusão.

Considerações Algumas limitações podem ser citadas para o presente estudo. Como limitante podemos destacar o fato de que as entrevistas foram realizadas no espaço físico da instituição e, mesmo garantindo o anonimato absoluto, isso pode ter interferido nas falas das participantes, que podem ter se sentido vulneráveis e, por isso, omitido ou camuflado sentimentos e emoções. Embora todas as mulheres internas na instituição tenham participado do estudo, outro fato a destacar seria o tamanho da amostra que, por ter sido pequeno, costuma ser considerado um fator limitante, não permitindo generalizações. Todavia, ao buscar um contexto particular, este trabalho ensejou justamente desestabilizar os discursos fundados nas generalizações. Afinal, é válido que cada grupo possua sua própria visão de mundo e de saúde. Helman aponta (2003, p. 94) que, em “sociedades culturalmente mistas, um modelo único e inflexível de saúde não pode ser mais aceitável. Por isso a medicina tem de ser ciência social aplicada além de ser ciência médica aplicada”. Assim, uma visão crítica do ser humano em sociedade não implica a negação de outros campos do saber (Carvalho, 2001), pois tão perigoso quanto o reducionismo biológico é o reducionismo social, sendo importante a consideração - contextualizada - dos diferentes saberes sobre saúde e sociedade (Minayo, 1998).

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No caso deste estudo, evidenciaram-se múltiplas representações coletivas passíveis de significar a cultura corporal sistematizada num grupo de mulheres dependentes químicas. Primeiro, destacou-se a consideração dessas mulheres sobre o exercício como meio de aumentar a sudorese, isto é, o transporte de substâncias indesejáveis para fora do organismo. Nessa representação, há coerência com discursos presentes na Medicina e na Educação Física. Vêem-se indissociáveis: os valores morais, cujo ascetismo apregoa o esforço físico como um sacrifício para se adquirir mais autocontrole; a visão biomédica de ‘equilíbrio e desequilíbrio’, para a qual o funcionamento saudável do corpo depende do equilíbrio harmônico de certos componentes dentro do corpo. A dependência seria decorrência da carência ou excesso de certas substâncias no corpo, havendo necessidade de se expelirem os catabólitos da droga. Nessa transferência do ‘mal’ localizado nos humores para o suor, a pele delimita a territoriedade do corpo, divisa o ‘eu interno’ do mundo exterior, realizando trocas com esse meio, de forma a absorver sensações e experiências mas, também, eliminar substâncias indesejadas à homeostase corporal. Porém, não se trata somente de fazer o corpo expelir. Há a dimensão de individuação que a pele proporciona, permitindo ao sujeito tomar contato sensível com a realidade e dando-lhe elementos para diferenciar o que é externo daquilo que é intrínseco ao corpo. Então, a prática corporal (seja recreativa, de aventura ou expressiva) com o dependente químico trata de fazer a pele receber, acariciar, respirar e relacionar-se. Estas possibilidades são vistas como múltiplas formas dessa peleterritório comunicar-se com a exterioridade, agindo sobre ela, e informar à interioridade sobre sensações como: tensão, dor, prazer, pressão, frio, calor ou vertigem. Outras representações sobre o corpo estiveram presentes e precisariam ser consideradas, entre as quais a dimensão estética, revelando a subjetividade pautada pelo desejo de configurar um corpo belo, o qual pode redundar em um apelo mercadológico. Os gestos e falas das internas ainda evidenciaram resquícios de busca do prazer, relacionados a sentimentos de recompensa, relaxamento e excitação por meio das atividades. Estas, às vezes, desencadearam em momentos subversivos, tornando lícitos comportamentos proibidos na casa de recuperação (como, por exemplo, ouvir música não-religiosa). Finalmente, em menor grau, as práticas corporais, como modo de (educação para o) lazer, foram referidas, pelas internas, como positivas ao processo geral de recuperação, influenciando no controle de condições particulares (como controle do estresse e da ansiedade, sociabilidade, qualidade e quantidade de sono). Para o dependente químico, essas carências são iguais ou mais importantes, pois a abstinência da droga desencadeia diversos sintomas, tornando necessária a ocupação do tempo com atividades. Porém, o mero uso profilático das atividades, sem direcioná-las para o desenvolvimento das internas, desqualifica o papel pedagógico do profissional de Educação Física. Nesse sentido, há de se pensar nesses conteúdos físico-esportivos como uma dupla educação para a vida. Primeiro porque, por meio dessas atividades, conceitos (como o conhecimento sobre os efeitos do exercício na eliminação de toxinas) podem ser descobertos e rediscutidos pela práxis. Segundo, na perspectiva da autonomia, o próprio aprendizado dos exercícios e jogos pode vir a constituir-se como escopo para novas experiências, as quais podem ser incluídas no lazer dessas mulheres, após sua liberação. Em complemento, é necessária uma política pública que organize esses aspectos ao longo do período de inserção do dependente químico na sociedade. Para tanto, urge identificar como cada coletividade cria estratégias para dar continuidade as suas experiências corporais na fase pósinternação, considerando a interação destas com o atendimento às outras condições de vida e seus limites numa sociedade já narcotizante em sua essência. A propósito, formar pessoas para autonomia, de modo que sejam capazes de escolher dentro das possibilidades existentes e, concomitantemente, lutar pela sua ampliação, é condição primeira quando se destaca a dimensão político-pedagógica da intervenção profissional.

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artigos

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Colaboradores Os autores Giuliano Gomes de Assis Pimentel, Edna Regina Netto de Oliveira e Aparecida Paulina Pastor participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação. Giuliano Gomes de Assis Pimentel e Edna Regina Netto de Oliveira também participaram da revisão do texto.

Referências BEHRENSDORFF, I.; STEENTOFT, A. Medical and illegal drugs among Danish car drivers. Accid. Anal. Prevent., v.35, p.851-60, 2003. CAILLOIS, R. Los juegos y los hombres: la máscara y el vértigo. México: Fundo de Cultura Económica, 1994. CARVALHO, Y.M. Atividade física e saúde: onde está e quem é o “sujeito” da relação? Rev. Bras. Ciênc. Esp., v.22, n.2, p.9-22, 2001. FOLLADOR, M.J.D. et al. Detection of cocaine and cocaethylene in sweat by solid-phase microextraction and gas chromatography/mass spectrometry. J. Chromatogr. B, v.811, p.37-40, 2004. GIMENO, J.M.R. et al. La prevención de drogodependencias mediante actividades cooperativas de riesgo y aventura. Apunts, n.59, p.46-54, 1998. HELMAN, C.G. Cultura, saúde e doença. 4.ed. Porto Alegre: Artmed, 2003. HUESTIS, M.A. et al. Sweat testing for cocaine, codeine and metabolites by gas chromatography-mass spectrometry. J. Chromatogr. B, v.733, p.247-64, 1999. KERR-CORRÊA, F. et al. A importância da gravidade da dependência e do gênero para a evoluçäo de dependentes de drogas. Medicina (Ribeirão Preto), v.32, supl.1, p.36-45, 1999. KIDWELL, D.A.; BLANCO, M.A.; SMITH, F.P. Cocaine detection in a university population by hair analisis and skin swab testing. Forensic Sci. Int., v.84, p.75-86, 1997. MENÉNDEZ, E.L. Antropologia médica e epidemiologia. Processo de convergência ou processo de medicalização? In: ALVES, P. C.; RABELO, M. C. (Orgs.). Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Relemé Dumará, 1998. p.71-94. MINAYO, M.C.S. O desafio do conhecimento. 6.ed. São Paulo: Hucitec, 1999. ______. Construção da identidade da antropologia na área da saúde: o caso brasileiro. In: ALVES, P.C.; RABELO, M.C. (Orgs.). Antropologia da saúde: traçando identidade e explorando fronteiras. Rio de Janeiro: Relemé Dumará, 1998. p.29-46. OLIVEIRA, J.F.; PAIVA, M.S.; VALENTE, C.L.M. Representações sociais de profissionais de saúde sobre o consumo de drogas: um olhar numa perspectiva de gênero. Ciênc. Saúde Coletiva, v.11, p.473-81, 2006.

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PITANGA, F. J.G.; LESSA, I. Prevalência e fatores associados ao sedentarismo no lazer em adultos. Cad. Saúde Pública, v.21, n.3, p.870-7, 2005. SCIVOLETTO, S. et al. Relação entre consumo de drogas e comportamento sexual de estudantes de 2o grau de São Paulo. Rev. Bras. Psiquiatr., v.21, n.2, p.87-94, 1999. SHER, L. Role of endogenous opioids in the effects on light on mood and behavior. Med. Hypoth., v.57, n.5, p.609-11, 2001.

PIMENTEL, G.G.A.; NETO-OLIVEIRA, E.R.; PASTOR, A.P. Significados de las prácticas corporales en el tratamiento de la dependencia química. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.61-71, jan./mar. 2008. El objeto de este estudio ha sido analizar las representaciones sociales de mujeres con dependencia química sobre la contribución de las prácticas corporales en su proceso de recuperación e inserción en la sociedad. Se entrevistaron a 14 internas de una institución de tratamiento, observándolas también en relación a la participación en un programa de prácticas corporales sistematizadas en forma de juegos y ejercicios. Las declaraciones y las prácticas demostraron contradicciones entre sensaciones, justificativas y perspectivas en relación al uso de sus cuerpos. Con base en los resultados se buscó comprender como las condiciones sociales de vida condicionan el modo por el cual esas mujeres se organizan en beneficio de su salud.

Palabras clave: Cuerpo. Salud. Dependencia química. Prácticas corporales. Educación Física.

Recebido em 15/03/06. Aprovado em 05/02/08.

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PIMENTEL, G.G.A.; NETO-OLIVEIRA, E.R.; PASTOR, A.P.



artigos

Contando história de paciente*

Lizete Pontes Macário Costa1

MACÁRIO COSTA, L.P. Telling patient’s storie. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.73-86, jan./mar. 2008.

This article deals with the experience of becoming ill and the repercussions of these circumstances on Aids patients’ lives. It presents questions relating to the diagnosis and hospitalization. Its aim was to give voice to patients as a means of understanding their condition and reconnecting the disruptions experienced during and due to the illness. Based on the possibility of listening to the stories of their lives, reports on how they became ill have been recorded. The patients presented either stories about the disease or stories of the disease, and used this resource as an instrument to transform events and constitute their own view of the world of the disease. Within a single person, the witness, story and disease were merged. Retelling their lives in search of explanations and understanding about becoming ill turns their individual experiences into collective ones.

Este artigo aborda a experiência de adoecimento e a repercussão desta circunstância para a vida do paciente com Aids. Apresenta questões relativas ao diagnóstico e à internação hospitalar. Objetiva dar voz ao enfermo como meio de comprender seu estado e de articulação das rupturas vivenciadas na/pela doença. Com base na possibilidade de escuta das histórias de suas vidas, foram registrados relatos acerca do adoecimento: os pacientes apresentavam ora narrativa sobre, ora narrativa como doença, utilizando-se desse recurso como instrumento de transformação dos eventos e constituição de uma visão própria, um mundo da doença - fundem-se, em única pessoa, depoente, narrativa e doença. Recontar suas vidas na busca de explicação e entendimento do adoecer torna coletivas suas experiências individuais.

Key words: Sickness. Narrative. Hospitalization.

Palavras-chave: Adoecimento. Narrativa. Hospitalização.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Elaborado a partir de Macário Costa, 1998. 1 Médica. Universidade Estadual do Rio de Janeiro (HUPE/UERJ). Rua da Glória, 110/301 Glória Rio de Janeiro RJ 20.241-180 lizetemacario@yahoo.com.br *

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CONTANDO HISTÓRIA DE PACIENTE

Introdução A experiência individual do adoecimento representa a forma como a pessoa responde ao acometimento da doença em seu meio social. A compreensão individual está associada ao conjunto de crenças e valores relativos à vivência de enfermidade. Alves (1993) a situa enquanto realidade construída por processos significativos, compartilhados intersubjetivamente. A participação de fatores socioculturais, e, sobretudo, individuais e psicológicos é significativa, mas ainda carente de estudos mais consistentes. É oportuno frisar o desafio lançado ao conhecimento médico por moléstias da modernidade. A busca de compreensão do que se encontra para além do sofrimento físico e mental levou ao estudo do comportamento de uma pessoa durante seu adoecimento e ao interesse por uma escuta mais atenta de sua interpretação. Ampliou-se, então, o foco de atenção sobre indivíduos e grupos, para verificar como buscam resolver suas questões na doença. As políticas de saúde, o acesso a tratamento e medicamentos, os contextos da família e do trabalho passaram a ocupar lugar subjacente aos relatos pessoais, na contemporaneidade. Essas perspectivas determinaram a estruturação do conhecimento teórico e prático de doenças como a Aids (Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). Embora o modelo biomédico tenha se centrado na doença, seu universo de investigação clínica incluiu as pessoas para quem o diagnóstico incerto, do início da epidemia, deixou a marca de morte iminente. A estratégia de acompanhamento revelou tanto aspectos clínicos quanto sociais, assim como individuais e coletivos. Considerando essas ponderações, este artigo apresenta o relato de vivências pessoais perante Aids desde o momento do diagnóstico até o processo de tratamento no ambiente hospitalar. O trabalho focalizou a construção de narrativas de pacientes com Aids, sob o enfoque do referencial teórico-metodológico de Hydén (1997). O trabalho foi realizado para investigar aspectos relacionados ao significado do diagnóstico e da internação hospitalar na vida de pacientes com Aids. O objetivo concerne em dar voz à pessoa internada em instituição pública de saúde e, assim, preencher uma lacuna existente nas pesquisas em torno desse evento: o ponto de vista do paciente. Optou-se por narrar a história de vida de adultos. Os participantes/pacientes tinham conhecimento do diagnóstico da doença, podendo trazer à tona lembranças dos acontecimentos e da realidade, com base na enfermidade. A presença de quadro clínico agudo infeccioso ou neuropsiquiátrico foi critério de exclusão de participação, dado que os desdobramentos seriam imprevisíveis para o andamento das entrevistas. Participaram do estudo três pacientes com Aids. Para aproveitar o tempo de sua permanência no hospital e obter maior contato pessoal com os depoentes, a investigação efetuou-se no curso da internação hospitalar. Os pacientes consentiram livremente em participar da pesquisa, foram esclarecidos e informados sobre as intenções, riscos e benefícios, e também a respeito do sigilo e garantia do anonimato, e da possibilidade de desistência, sem prejuízo para o tratamento. O projeto de pesquisa foi submetido à Comissão de Ética em Pesquisa do referido hospital. Com base nas histórias sobre a vida com Aids, foram construídas narrativas de doença dos pacientes. Os resultados evidenciaram que eles apresentavam ora narrativa sobre doença, ora narrativa como doença, utilizando-se deste recurso como forma de transformar os acontecimentos e criar um mundo da doença. Muitas vezes, reconstruindo suas histórias de vida, na tentativa de explicar e entender a enfermidade, de modo a tornar coletivas as experiências individuais. Os relatos revelaram ainda que a internação hospitalar era utilizada como proteção do mundo externo e que o diagnóstico consistiu em momento de impacto, vivenciado como sensação de morte.

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Peculiaridade de se saber com Aids A pessoa adoecida com Aids expõe um conjunto de reações físicas e psicológicas peculiares, relativas a um adoecimento com característica particular, desde o início da epidemia. Desta forma, permite reflexões quanto aos condicionantes da prática médica e as relações pessoais no hospital, na família e no trabalho. O tema suscita, ainda, consideração sobre a doença e a morte como eventos biográficos. A Aids desencadeou a epidemia do medo e do preconceito, uma vez que sua transmissão ocorre pelo contato sexual e sangue, na vigência de infecção pelo vírus HIV (human immunodeficiency vírus) e das moléstias denominadas oportunistas, cujo desenvolvimento agressivo conduzia à morte. As pesquisas avançaram especialmente quanto a novos medicamentos, que atuaram prolongando, significativamente, a vida dos portadores do HIV, ao dificultar a multiplicação do vírus, conforme afirma o Ministério da Saúde (Brasil, 1997). A medicação adia o início dos sintomas, diminuindo o ritmo da redução das células de proteção do sistema imunológico. A partir de 1996, com a utilização dos anti-retrovirais, houve aumento na sobrevida e melhora na qualidade de vida dos portadores de HIV/Aids (Brasil, 2004). Em tempos de Aids, a relação médico/paciente assumiu caráter específico: os pacientes passaram a chamar a atenção quanto à forma de participação e ao interesse no tratamento, a busca por informações atualizadas do campo médico. Parker (1994) e Guimarães (1994) apresentam uma abordagem acerca da repercussão social da doença, discutindo o acesso às informações em meios de comunicação, na base da luta contra a discriminação e pelo direito à cidadania. As organizações nãogovernamentais (ONGs) desempenharam um papel relevante no que concerne à parceria e mobilização coletiva. Nesse passo a passo, o paciente foi se interessando pela troca de dados, pela mobilização de parcerias, ao buscar esclarecimentos e exigir seus direitos. Na expressão de Herbert Daniel (1991), modelou-se, assim, o paciente que resolveu não morrer calado.

O percurso em direção à narrativa Este estudo tomou como referencial teórico-metodológico, para análise das narrativas de doença, as concepções de Hydén (1997) que focaliza seu uso no âmbito da Antropologia e Sociologia médicas. E, na seqüência das contribuições desse autor, cabe deixar claro o significado do termo doença seguido neste trabalho. Neste aspecto, nos remetemos a Moulin (1991), quando atenta para o fato de existirem três expressões, na língua inglesa, para designar a doença: disease, a doença tal como apreendida pela ciência médica; illness, como é percebida pelo indivíduo, suas representações, os sintomas, a etiologia e a evolução; e sickness, a doença designada pela sociedade, um estado menos grave, o mal-estar. Aqui, seguimos o sentido de illness, pois a experiência subjetiva do doente e o contexto sociocultural a ela ligado conformaram o objetivo deste estudo. A partir de Hydén (1997) destacamos que o paradigma biomédico, por não focalizar a experiência de doença das pessoas, limita a comunicação e o entendimento sobre a vivência em torno do adoecer. Assim, atentar para o modo como se dimensiona a compreensão da Aids e a percepção dos sintomas é buscar o entendimento da narrativa - duas ou mais sentenças reguladas, que traduzem acontecimentos temporais, unidas por temas comuns. Desta forma, a temporalidade do curso da vida ganha novo significado, pois a exposição oral oferece oportunidade para o paciente moldar sua história até tal momento, da maneira que lhe convier. O ato de narrar representa um meio de articulação e transformação de sintomas e rupturas advindos da doença em eventos dotados de sentido, relacionando-os à vida. Os relatos de doença são tradicionalmente apresentados como experiências individuais de enfermidade. Contudo, a Aids posicionou as narrativas face a face com a coletivização do adoecer com Aids e suas implicações sociais. A experiência da doença deixou de ser apenas uma alteração corporal, mas passou a uma vivência de ruptura no mundo das relações, do trabalho e da família.

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artigos

MACÁRIO COSTA, L.P.


CONTANDO HISTÓRIA DE PACIENTE

A construção da narrativa O estudo que originou este artigo enfoca a experiência dos pacientes tanto no aspecto individual quanto naquele que os insere em seu meio social. Com base no propósito de construção de fonte oral, buscou-se o relato de fatos não documentados, referentes a um passado longínquo ou próximo no tempo, tendo em vista a difusão do saber pelo narrar da experiência direta de hábitos, práticas e conhecimentos do grupo ou coletividade (Queiroz, 1987). A construção de fontes orais em pesquisa sobre a Aids ampliou as oportunidades de reflexão sobre aspectos sociais, políticos e psicológicos. Estes não eram contemplados em estudos baseados em metodologias qualitativas, orientadas para questões em torno de práticas sexuais de risco, do nível de conhecimento sobre a doença e da prevenção por meio de questionários padronizados. Terto Júnior (1997) considera a insuficiência desses formulários para o acesso à compreensão do impacto ocasionado pela Aids. Esse autor inclui sua crítica à qualidade do processo de composição e recomposição de identidades e integração da história individual na coletiva. As narrativas foram coletadas em entrevistas, em quatro módulos interdependentes e articulados, com base no método para construção de fontes orais elaborado pela historiadora Maria Helena Cabral de Almeida Cardoso (1989). Estudos de Rebelo (1997) e Souza (1998), na área de saúde, utilizaram a opção metodológica, objetivando dar voz ao paciente em circunstâncias diversas de adoecimento. A proposta de construção de fontes orais em quatro módulos, segundo Cardoso (1989), enfatiza a peculiaridade destas, uma ação conjunta que envolve entrevistadores e depoentes. A validade de tais fontes situa-se para além de captar as vozes de seus produtores - interligá-las às circunstâncias embasadoras dos pontos de vista descortinados. Para aproximar-se da reconstituição da realidade há de se entender a relação passado/presente e sua importância na condução tanto do processo rememorativo quanto da interpretação do agora. Cabe considerar o envolvimento pessoal dos produtores deste tipo de documento, reconhecendo que cada entrevistado é único e que os diversos momentos da entrevista desvendam pouco a pouco esta particularidade. Partindo-se do geral ao particular, as generalizações relativas à comunidade de inserção do depoente devem ser evitadas. A forma de composição da história será interligada à maneira de os sujeitos conceberem o ontem e o hoje. Unir acontecimentos e narrativa, com base em indivíduos historicamente definidos, cuja existência e discurso se entrelaçam com o movimento social, é a maior vantagem oferecida pelo uso da fonte oral. A lembrança dos acontecimentos importa na medida em que possam trazer à tona a plenitude da consciência socioindividual, do jogo entre real e realidade percebida, das contradições e ambigüidades nas quais se debatem esses homens e mulheres, que têm suas concepções de vida e de mundo construídas historicamente por meio das relações estabelecidas entre si e o meio. A finalidade central do método em quatro módulos, com base na pesquisa histórica, é esboçar a construção da identidade ideológica, ética, psíquica, política e social do entrevistado; as relações com a inserção social de classe e porque ela se processou para apresentar-se desta, e não de outra maneira. Em área de saúde, ao se dar voz ao enfermo, busca-se a reconstrução da identidade da pessoa do paciente na circunstância de adoecimento. No primeiro módulo, o contato configurou uma entrevista, com a finalidade de composição de um “retrato” do entrevistado. O segundo, com utilização do gravador, destinou-se à reconstituição da história pessoal do depoente e delimitação de sua identidade sociocultural. No terceiro módulo, a conversa procurou estabelecer a conexão entre o relato do tema proposto (adoecimento com Aids) e o levantamento e análise de fontes primárias e secundárias, articulando-as à leitura crítica do que foi produzido nas etapas anteriores, para elaboração de um roteiro temático. Este poderia dar sentido à composição e ordenação das fontes guardadas pelos depoentes, capazes de correlacionar os fatos. O quarto módulo conduziu ao arremate das informações recebidas, permitindo apreender resistências ou aquiescências, confirmando ou negando as percepções veiculadas anteriormente.

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Para este artigo, foi escolhida a narrativa O Mestre Capoeira, cujo título diz respeito aos “sonhos de ser”, manifestados pelo depoente, pois claramente a Aids, neste caso, foi a produtora da descontinuidade e exigência de reformulação da percepção da própria vida, já presentes em trabalhos de Frank (1995) e Sacks (1997). Entretanto, elos com o vivido previamente precisavam ser restabelecidos e tais “sonhos”, aparentemente, têm a função de conectar a história precedente à doença com aquela que passa a ser vivida após o diagnóstico. Evidentemente, os nomes dos entrevistados e as situações foram substituídas, para resguardar a privacidade. A narrativa O Mestre Capoeira foi ilustrada com títulos retirados das músicas de capoeira, apresentadas espontaneamente, pelo depoente, nas entrevistas. A escrita de O Mestre Capoeira foi inspirada no estilo descritivo de Oliver Sacks (1997), que difere do relato de casos da área médica. Para esse autor, a utilização da arte da narrativa em estudos científicos possibilitou ir além do mero registro classificatório dos distúrbios cerebrais. Assim, demonstrou uma neurologia da identidade, uma dramaturgia da mente, que deu voz a “viajantes” – alargando o campo da investigação da ciência. Aqui, narrador e personagem alternam-se ao contar o drama particular do paciente, em sua vivência de adoecimento.

O Mestre Capoeira “Quando cheguei numa roda” Sobre o que desejaria ser ao crescer [...]? Responde sorrindo: “Saudável [...] é [...] pelo que consegui [...]”. Queria ser mecânico igual ao pai. Depois, com o tempo, observou que sujava as mãos, não gostava de andar sujo, não, queria estar sempre limpinho. Era preferível ser autônomo, ter uma loja, uma firma. Sempre fora trabalhador, trabalhando sozinho. Foi vendedor, camelô, artesão. Tempos depois, virou gari. Capoeira, natural do Rio do Janeiro, tem 38 anos, é um compositor que descobriu seu talento numa roda de amigos. Foi ali, no relacionamento com os companheiros do grupo e cantarolando a partida de sua preta, que a música de pagode se abancou de vez. Todas as sextas-feiras passava direto do trabalho para o pagode e batia firme na percussão. Às vezes, ficava até o outro dia. Então, escreveu a primeira letra. Na música que criou, tocava berimbau na capoeira. Era instrutor, contramestre. Dizia que sua vida era só lazer, jogava bola, praticava esporte. Tudo isso ficou para trás. O diagnóstico da Aids passou a ser a experiência de sua vida, do HIV positivo ou vírus, como preferia dizer: “A palavra Aids é muito forte, e digo mesmo [...] Isso abala qualquer um”. No primeiro encontro na enfermaria, a aparência física de Capoeira denotava que a batida forte da vida tinha a cadência dos acontecimentos do momento. A fala mansa pontuava a conversa, mas ao mesmo tempo, com o olhar, vigiava todo movimento do local: “Antes, eu vivia bem, mas não sabia que tava problemático. Tava saudável, fazia de tudo, perdia noite de sono, bebia. Aí foi acumulando muita coisa no organismo, no corpo”. A trajetória de adoecimento varia de pessoa para pessoa, assim como o aspecto físico do paciente. Este pode desenvolver doenças causadas por vírus, bactérias e fungos. A perda de peso não impressionou Capoeira. Ele estava com queixas respiratórias e foi internado para investigação pulmonar, quando recebeu o diagnóstico: tuberculose. No início, minha primeira internação foi horrível, chata. Não estava preparado [...] inclusive pelo problema que surgiu. Eu vim para o hospital por problema pulmonar [...] Fiquei internado, porque eu estava com a doença. Constataram meu problema através de vários exames. Fiquei muito chateado, não sabendo por que que eu peguei esta doença [...]

Entretanto, não era apenas a tuberculose pulmonar. Os exames clínicos e laboratoriais apontaram para a presença do vírus HIV, cuja comunicação sua médica realizou na primeira consulta ambulatorial, após a alta hospitalar.

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artigos

MACÁRIO COSTA, L.P.


CONTANDO HISTÓRIA DE PACIENTE

Quando ela me falou, eu chorei pra caramba. A doutora falou: “você está com o vírus do HIV”. Eu não! [...]. “Você tem que entender que você tá, tem que entender que tem que se cuidar [...] fazer [...] tratamento prolongado. Você pode ter recuperação. Tem muita gente aí que já tá com 20, 30 anos e tá vivendo [...] Você pode viver, basta você acompanhar a medicação, não faltar à consulta”.

Naquele momento, disse que “fincou pé” e, apenas na outra consulta, ouviu melhor a doutora. Não acreditou nas palavras da médica e foi para casa, transtornado: “Conheci a doutora M. Ela botou na minha cabeça mesmo: ‘Você não entende [...] está com HIV [...] é HIV, você está com Aids’”. O profissional da equipe de saúde, em especial o médico, sofre o impacto do diagnóstico e se sente como se comunicasse uma sentença de morte. Os exames podem repetir-se, na busca de um engano para ambos. Num hospital universitário, com profissionais jovens, constantemente há repetição de exames complementares e revisões, representativas de expectativas sobre a morte do paciente. O trabalho da equipe de saúde, centrado na figura do médico, no caso de pacientes com doença transmissível e fatal, tende a expor a realidade conflituosa da relação médico-paciente. Os médicos, frente ao desconhecimento e impotência relativos ao inesperado da doença, podem reagir psicologicamente da mesma forma que o paciente, o que exigirá amplo aprendizado no lidar e na adaptação ao novo contexto. Mas Capoeira não entendia, não aceitava. Afinal, nada sentia e, por isso, ficou zangado e só chorava. Foi para casa com sentimento de revolta: “Ficava em casa e quando alguém me olhava, eu ficava olhando pra eles [...] não falava nada [...]. Quando alguém dizia: ‘E aí, como foi a viagem?’ Só respondia [...]: Foi legal. Fim de papo!” Estava com uma companheira, também submetida ao exame de testagem do HIV, com resultado negativo, segundo afirmou. Lembrou-se de sua hesitação para lhe revelar o diagnóstico recebido, mas, ao iniciar o esquema de medicação, mesmo em vias de separação da parceira, solicitou uma conversa sobre o assunto: “Eu fui sincero em relação ao uso da camisinha [...]: tenho um problema, é que estou com vírus, não é bem um problema ainda sério, mas estou com o vírus. Então a gente tem que se preservar pra evitar que contamine você. Quanto ao resto, pode se beijar, se abraçar [...]”. Ficou emocionado ao rememorar aquela época. Percebia-se que a situação causara impacto em Capoeira e seu retraimento na busca de organização das idéias e superação da perplexidade. Ficava sozinho num canto da casa. Suas palavras soavam baixas. A atenção dedicada por sua médica tocouo profundamente, ao se recusar a tomar os remédios do esquema para tuberculose, no sentido de repensar o tratamento negligenciado. Outro aspecto relevante foi o efeito gerado pelo diagnóstico da doença, em geral, vivenciado nos primeiros contatos com o hospital. Tem início o processo de investigação clínica, com exames físicos e laboratoriais, potenciais geradores de angústia e medo. É importante considerar as implicações psicológicas do impacto da notícia, enfrentada, geralmente, como um choque severo ou negação. A reação ao diagnóstico, além de irritação e confusão, caracteriza-se ainda por descrença, insensibilidade e negatividade. Todas manifestações agudas com ansiedade e sintomas depressivos, conforme atestam também Macário-Costa (1987) e Meleiro (1997), em suas experiências. No caso do adoecimento tratado neste texto, em concordância com Oliveira Neto (1990), a ansiedade relaciona-se com a sensação de um perigo que é real. Ao tomar conhecimento do diagnóstico, a gravidade do problema estará colocada no fato de ser uma doença que leva à morte. “Na roda eu vou entrar” Mesmo assim, Capoeira faltava às consultas, justificando: “Eu não quis aceitar, não sabia como foi que peguei Aids [...]”. Por isso, perguntava, repetidamente, a origem de seu mal. “Hoje em dia, não pergunto mais”. Queria explicar, a si e às pessoas: “Só pode ter sido de mulher, o meu contato era com mulher”. Nunca acreditou que podia ficar doente, pois tinha confiança em si, não usava preservativo. “Pensava que era um lance que ocorria só fora”. Não tinha com quem conversar sobre um

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problema que, do seu ponto de vista, as outras pessoas não sabiam do que se tratava: “Já analisei tanto. Conversei com Deus: por que aconteceu comigo? Estou com 62 quilos, entendeu? [...] Mas não houve nunca problema com a minha família nem com os colegas do bairro. Não, não houve”. O primeiro impacto ocorre no diagnóstico. A doença constituiu ameaça, comenta Oliveira Neto (1990), por ter sido desconhecida no campo médico, na primeira década da epidemia. O paciente a percebia em seu corpo e tinha medo das conseqüências, porque as associava diretamente com incurabilidade e morte. Capoeira não chegou a conversar com os irmãos sobre o diagnóstico que recebera, apenas dissera da “complicação no pulmão”. Imaginava qual seria a reação deles. Seu irmão procurou nas gavetas, remexeu documentos e constatou a realidade. Os três se abraçaram (ele, o irmão e a irmã), ao verem confirmada uma realidade dramática: “Eu ia segurar essa onda sozinho [...] não ia falar pra ninguém. Não falei para minha mãe, ela morreu sem saber. Minha mãe e meu pai faleceram sem saber de nada. Talvez dissesse, mas só se eu estivesse mesmo muito no fim da linha”. Com o olhar distante, parecia repassar, na memória, os fatos relatados. Em seguida, por alguns instantes, conversou baixinho: “Continua tudo a mesma coisa. Um cara perguntou ‘e esses caroços aí?’. Eu falei: alergia, muito medicamento forte e sol. Pronto, acabou o papo, não falo muito a respeito pra ninguém não, não interessa a ele”. O clima de tensão, vivenciado na situação relatada, transferiu-se para o instante da entrevista, como sinal da existência de um limite necessário para abordagem dos assuntos causadores de tanto sofrimento. Você me pergunta: como foi que pegou? Não sei [...] não lembro. Eu não sou baseado assim [...] não me preocupo com isso, porque já tô sofrendo com o problema, eu não ligo muito, não. Antes não me importava com o que lia a respeito da [...] Agora essa doença é responsabilidade mais séria, entendeu? É a morte, se não se tratar. É diferente de um sarampo e se não tratar, morre. Só conhecia o que via na televisão ou o que se comentava na rua. “Ah! Emagreceu muito”. Eu via a propaganda na televisão. Uma mulher bonita, com peruca, tirava o dente, tirava os olhos. Ah! Sem dentes, feia pra caramba, e aí vinha a informação: Aids mata. Eu pensei, comecei a me ligar, mas nada disso me tocava. Era tranqüilo, como sou tranqüilo agora, mesmo sabendo do meu problema.

A doença só foi percebida por ele quando os sinais físicos se manifestaram no corpo: Eu emagreci muito, fiquei horrível, porque abusava, bebia, fumava, perdia noite de sono. Agora não, tô mantendo sempre esse padrão de peso. Hoje dormi bem, acordei cedo. Tô reagindo muito bem, não tem aquela preocupação mais [...] agora tá entregue na mão de Deus.

Enfim, ele admite saber do não uso do preservativo, entre pessoas de suas relações particulares. Preocupou-se pessoalmente com as mulheres, após seu diagnóstico. Como homem, sabia da exposição à doença no contato com uma mulher, mas não seguia a informação: Se uma mulher me pedisse pra usar preservativo, perguntava se ela estava com problema. Eu não! [...] eu me sentia saudável, bem, sem preocupação nenhuma. De repente, a gente ia dialogar [...] não sei como seriam nossas palavras, mas imagino que seria assim [...]: Tá com problema, você? Eu não tenho preservativo aqui não, veja se aqui tem [...]. Pam, ligava, pegava o fone: tem preservativo? Tem. Então me dá uma caixinha. Pronto!

Para Capoeira, essas preocupações deixaram de lhe interromper o sono, inclusive na enfermaria. À noite, passou a vigorar “o código de silêncio”, o que, para ele, era adequado dentro do hospital. Apenas a administração de medicamento justificaria uma interrupção do descanso. Seria a descrição do ambiente almejado, onde teria a paz de criança dormindo, onde não haveria sofrimento, pois

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estava garantido o sono providencial. A hora do eu, e não da doença. Porém, ali existia um outro espaço, em que gritos de dor invadiam os ouvidos. O som, que a televisão deixava passar, não lograva abafar a angústia e vinha a insônia. Capoeira viu muito paciente cujo corpo foi levado pelo corredor da enfermaria. O tom do relato foi de desligamento, falta de incômodo ao ver um cadáver passando no local. Será que dessa forma estaria afastado da morte? O fato de estar no interior de um hospital o fazia sentir-se seguro e a negação da perturbação, com a passagem do cadáver, era o mesmo que: “Pai, afasta de mim a morte! Porque estou me responsabilizando, estou me cuidando”. A reclamação, ao invés de ser a respeito do transporte do cadáver, incidiu sobre o pessoal do lixo. Queixou-se dos carros de lixo, que trepidavam na via de passagem, ao lado da enfermaria. Estes faziam ruído maior do que a maca de carregar o cadáver. Conforme observou Hanan (1994), os pacientes internados no hospital mostraram que, para eles, a morte, no caso por Aids, tornou-se sinônimo de castigo, castigo merecido. A idéia que possuíam sobre a morte era referida à memória de algum parente próximo, amigo morto ou da observação de alguma situação vivida na própria enfermaria. Assim, todas as mortes seriam idênticas às dos pacientes da convivência de enfermaria. Ali, freqüentemente, os doentes reconheciam a iminência da morte, para, em seguida, se recusarem a falar sobre o assunto, alegando falta de condições internas para a conversa. A respeito dessas situações, ele disse que viu o amigo José quando precisou de médico à noite. Ficou grave. Depois o viu morto. Em seguida, apontou a relevância das decisões rápidas tomadas pela equipe de saúde nesses episódios noturnos. Nesse momento, preferiu evitar formular em palavras seus pensamentos, não queria se prender aos acontecimentos inevitáveis. “Só o pensamento é livre, a qualquer hora”. Capoeira estaria preso pela doença, pela medicação, pela expectativa de melhora e de recuperação. Durante o dia, sentia-se mais livre dos pensamentos, enquanto, à noite, ficava preso à vida anterior, à sua casa. Em qualquer horário, estava preso à recuperação, ao medo da doença, por meio da vigilância ao corpo. Quando a situação ficou insuportável, a fuga para casa foi um recurso: Uma vez, falei para minha irmã: Vou embora junto com você, ao fim da visita!. “É melhor você ficar”, disse ela.

Reconheceu que, antes das internações, ele era tranqüilo, porque se sentia em recuperação física. Na primeira internação, lembrou ter ouvido, através da janela, o som de um baile de pagode ao lado do hospital. Sentiu enorme vontade de participar, imaginou-se lá fora, ouvindo legal. Desta forma, deixou perceber que entendeu quanto a doença foi um divisor em sua vida - o antes e o depois. Capoeira entrou em crise. Queria ir embora, foi até amarrado na cama. Ficou nervoso, abalado e tomou medicamentos para dormir. Não estava agüentando a carga dos acontecimentos. Reclamou da alimentação, aceitava somente frutas. Perdeu peso. O irmão providenciou comida de casa, aos domingos e às quintas-feiras. Sentiu-se cercado pela doença na enfermaria, ao mesmo tempo, separado do mundo, que seria a verdadeira ameaça. Esse mundo, regido pelo sexo entre homens e mulheres, tornou-se ameaçador, pois levava à doença. Para Capoeira, a internação hospitalar representava a segurança do atendimento imediato, em caso de algum sintoma estranho. Considerou que, se fosse atendido de imediato, seguindo toda orientação, a recuperação seria garantida, o que tornava a internação fundamental, de seu ponto de vista. O hospital representava o “seguro contra o desconhecido”. Na internação, a recuperação do paciente é mais rigorosa. Algumas vezes vim malzão prá cá, e depois de 15 dias tava legal, inteiraço, com disposição, corria. Lembro que ficava na varanda, andando feito um doido [...]. Daí a pouco fui aumentando as passadas e aumentando a velocidade do passo [...] eu botava o meu pé ali na grade po, po, po.

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Reafirmou sua convicção sobre a internação, ainda que, no hospital, tenha vivenciado situações dramáticas, como a escuta de gritos de dor: “Ai, ai, ai”, capazes de lhe tirar o sono. Até quando viu passar um corpo na maca e ficou preocupado, com medo de não acordar, com pensamentos negativos; deixou de reconhecer a importância da permanência no hospital quando se sentiu fraco, com febre, com algo estranho no corpo. No entanto, reconhece que havia algo de ruim, ao ficar preso numa sala sem poder sair, e ficar sonhando com o mundo lá fora. Porque, no mundo lá fora, ele podia extravasar os sentimentos, fazer uso de bebida, não tomar remédio na hora certa. Até que tivesse de voltar para o hospital. Se tiver uma reação, qual a atitude que vou tomar? Não sei. Aqui, se tiver uma reação, já tem outros recursos. Leva a medicação pra casa. Faz em casa. Eu não! Quinta-feira passada eu tremi pra caramba, aí me deram um cobertor. Não parou e me deram soro [...] passou. [...] Se tô em casa, posso piorar [...] que nem da outra vez que fiquei em casa, com frio, não queria comer, tava piorando [...] meu irmão veio aqui, falou com a doutora, ela mandou: “Traz ele!”. Quando cheguei aqui fiquei internado.

O enfermeiro da noite lembrou muito bem. Quando chegou por ali, Capoeira era turrão. “Uma pessoa de relacionamento difícil. Não gostava de aproximações ao seu leito, onde permanecia coberto com o lençol dos pés à cabeça”. De pouca conversa, não falava com outros pacientes, era irritado e agressivo com a enfermagem, inclusive, na hora da medicação. Nos horários noturnos, prestavam-lhe os cuidados rotineiros de forma cautelosa. O suporte da instituição hospitalar representa parte das necessidades e exigências requeridas nesses casos de adoecimento. Afinal, uma doença de particular complexidade científica, social e psicológica, como a Aids, revelou mais que demandas objetivas por exames, medicamentos e procedimentos técnicos/cirúrgicos. O paciente não abre mão da proximidade de pessoas, sobretudo dos familiares, uma constatação de ajuda vital nesse contexto. A família também enfrenta dificuldades de aceitação do diagnóstico, da transmissão e da possibilidade de morte, de acordo com Hanan (1994). Certa vez, Capoeira foi visto no bar em frente ao hospital. Todos souberam imediatamente. Ficou sem a licença do final de semana e liberação para uso de roupa pessoal, manteria só o uniforme hospitalar. Disse que estava de uniforme, tentava comprar cigarros. Afirmou a doutora: “Nada de roupa de casa”. “Fui lá fora sim, posso cair na realidade, fugi mesmo, não tô com intenção de fugir, foi só aquele dia! Não sabia que ia trazer transtornos. Eles são um pouco rigorosos, porque também não pode dar muito mole pro paciente, deixar à vontade”. Reconheceu que ficar internado, longe da família, era ver o “sol nascer quadrado”. Teria de aguardar a ocasião certa de ser mandado para casa. A experiência de ver o sol nascer quadrado referia-se a ficar em um quartinho, onde o sol clareava apenas no quadrado em que se estava, sem vê-lo propriamente, e sem poder sair para o pátio. Dessa forma, disse: “não estou vendo nada bonitinho ao meu redor”. Não estava se vendo, estava vivendo a sua doença. A doença virara ele. Era o bastante perguntar e obter resposta. Quando conseguiu apontar a função da internação, pelo menos para si, seguiu o estímulo para indagar sobre os remédios e obter explicações da médica. Tinha especial curiosidade sobre o uso dos medicamentos. Sabia que não podia deixar de tomar “o medicamento, porque é eterno”, usaria sempre, senão fortificaria o vírus e este se desenvolveria no organismo. Achava que algumas coisas poderiam passar despercebidas, embora soubesse que poderia confiar, “sei que eles sabem o que estão fazendo”. Por isso, não gostava de ser atendido por médico desconhecido, pois este não saberia um fundamento legal do seu problema. Além do mais, sentia-se confuso cada vez que aparecia um profissional diferente. Assim, não conseguiria gravar nem os nomes. O principal fundamento tinha relação com a escolha do médico, realizada por Capoeira. Ele gostava de selecionar quem responderia as suas perguntas, porque, dessa forma, determinaria quem lhe diria a verdade.

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Para o outro, eu não perguntava nada. Ele também não dizia nada, só me dava medicamento. Eu tomava e pronto [...]. Com ela, eu já perguntava como é que estavam meus exames. Tinha mais liberdade e confiança também. A preocupação dela comigo. Não tinha remédio na farmácia [...] ela conseguia pra mim. Ela se preocupa [...] fica satisfeita em ver minha recuperação.

Capoeira dava preferência a quem soubesse sobre sua doença. A base da relação com sua médica residiu no fato de que ela comunicava a idéia de continuidade de vida, ao acreditar em sua recuperação. Assim, percebeu que podia viver cinco, dez anos, o que, para o paciente com Aids, era período longo, pois atingir idades como 38 e 58 anos era vivenciado como futuro para qualquer um. “É uma doutora que acompanha meu problema há muitos anos, e sinto que ela fica satisfeita em me ver recuperado e então eu fico com confiança, não escondo, se eu tiver dúvida, pergunto. Desculpe. Acredito em todos, mas confiança mesmo, sabe que é uma coisa séria. Meu problema é sério”. “Quem me dera ter você” Não falou abertamente com o filho sobre a doença, evitando falar de si. Os dois conversavam sobre as garotinhas de hoje, uso do preservativo. Recomendava cuidado ao sair com a turma de amigos, não deveria “ir na onda de ninguém”. A conversa era franca sobre os cuidados para evitar contaminação pelo vírus. “Mas não falo essa palavra, não gosto de falar Aids. Eu falo vírus, não uso essa palavra [...]. Nem eu estou com Aids! [...] Estou com vírus. Aids é muito sério, muito forte essa palavra [...] destroça qualquer um”. Para ele, era palavra forte, impactante. Alguns diziam: está com Aids; outros afirmavam: está com vírus HIV. Alguém poderia afirmar: Aids tem cura!. Era aceitável. Mas “Aids é muito forte!”. A palavra soava como sentença de morte. Percebia que as pessoas emagreciam até perderem a condição de viver, mas outras tentavam se recuperar, com a ajuda dos parentes. Antes, ele não fazia a menor idéia de como se morria com Aids. As pessoas, que já vi padecer, que vi morrer aqui no hospital, por causa do problema. Estavam no ambulatório [...] magrinhas, fininhas, sem condições de vida [...]. Eu, no lugar daquelas pessoas, procuraria descansar [...]. Pelo que eu presenciei, pelo que eu vi [...] as pessoas malzinhas mesmo, malzinhas [...] partindo [...] outros, tentando se recuperar [...] sendo carregado por parentes [...]. A palavra soa triste [...] muito triste [...] muito triste [...] não gosto nem de falar.

Admitiu não ter preocupação com o contágio. Percebeu que, hoje em dia, havia mais cautelosos, atentos à possibilidade de contágio. Isto não ocorria à época em que conheceu o diagnóstico da doença. Ele mesmo não sabia como adquiriu o vírus. Lamentou a chegada tardia da orientação sobre contágio, a gravidade da doença, a seriedade do problema. As pessoas deveriam participar sistematicamente de projeto educativo. O meio de contaminação que mais lhe chamava atenção era a relação sexual. Sabia “aquela do pico”, mas como nem todo mundo tomava pico na veia, era o intercurso sexual que despertava suas reflexões. E pensava nas pessoas “inocentes”, que podiam ser contaminadas! No caso da transfusão de sangue, Capoeira considerava um acidente por culpa do próprio hospital. Sabia que o sangue de um paciente vai para outro, na cirurgia, e que se o sangue estiver “prejudicado, vai prejudicar o outro”. No dia-a-dia é isso: é sexo. O dia-a-dia, agora se passa, namorando no motel, todo dia, todo dia. Então esse é o contato pior, cheio de possibilidades aí. Não vê esses maridos que largam doença dentro de casa, contaminam a mulher? Taí [...] epidemia é isso aí. O contato sexual, não tem outro [...] o vírus vem pelo contato sexual.

A transmissão pelo sangue e uso de drogas apresentava aspectos de visibilidade e, por isso, era encarada como displicência. “O sexo é do homem e da mulher. Faz parte do ser humano. Agora,

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drogas, exame de sangue, transfusão [...] poucos casos, ainda mais agora com a equipe fiscal da medicina. O doador, quando vai doar um sangue, eles fazem exame antes para só depois colher a bolsa de sangue!” A Aids também possuía lado mais dramático, ainda segundo Capoeira. O lado ruim, o difícil, surgiu ao precisar do medicamento. Não conseguiu comprar por falta de dinheiro. Certa vez, não o recebeu no hospital, e sem poder adquiri-lo, passou oito dias fora do esquema terapêutico. Agora sabia ser preciso avisar à médica, bem antes, para efetuar o pedido pelo hospital: “Então eu uso os comprimidos, mas não posso deixar acabar, só isso”. “E agora na roda meu mestre sou eu” Capoeira considerava boa sua realidade: tendo medicação, já se passaram cinco anos. Cada vez que pegava o berimbau, tocava para se distrair, o que era fundamental. Costumava ficar quase hora e meia tocando berimbau, sozinho no quintal. Fazia letras românticas, músicas de capoeira. Sempre batia a saudade. Viajara muito em decorrência de seus trabalhos artesanais. Participou de grupo de pagode, pessoal de música, gente da noite. Depois da doença, parou. Preferiu parar, porque estava se prejudicando. Parou com tudo. Não participava de mais nada. Quando tinha inspiração, aproveitava para escrever música. Mas não tinha escrito música nenhuma. Capoeira gostava de ir para a academia tocar berimbau.

Considerações finais De fato, o grande desafio do enfrentamento da doença fica para o indivíduo, aquele que, adoecido, enfrenta a ventura de permanecer vivo, tendo, diante de si, as limitações clínicas, sociais e psicológicas. A realidade de quem padece a expectativa de não morrer teve de ser desconsiderada por muito tempo. As primeiras narrativas sobre Aids, com base naqueles que a vivenciavam, datam da segunda metade da década de 1980. Só então o espaço concedido à pesquisa e às descobertas no campo da biomedicina foi invadido pela voz daqueles que começaram a expor, publicamente, o sofrimento físico e psicológico. Afinal, tratava-se de um evento/doença com reflexos socioculturais complexos, que suscitava reações, evocando atitudes, crenças, valores, não só pertinentes às pessoas adoecidas, mas à sociedade como um todo. Portanto, era preciso reunir esforços numa busca de entendimento da realidade coletiva da doença - o que, conseqüentemente, ultrapassava o limite das disciplinas médicas. Paulatinamente, abriu-se a possibilidade de se ouvirem as pessoas, de desviar a atenção dos achados clínicos patológicos para o acompanhamento do sofrimento em dimensão societária, dandose, à vivência do adoecimento, importante papel que acrescentou a possibilidade de se desvendar a concepção e a representação da Aids pela biomedicina. A narrativa sobre doença, de acordo com o princípio metodológico aqui adotado, seguiu a ordem de surgimento dos temas, conforme iam aparecendo nas entrevistas. Não foram privilegiadas datas. Enfatizava-se o apresentado pelo depoente, mesmo os momentos de grande emoção e lágrimas – porque trabalhávamos com a consciência de estarmos atuando no espaço das relações intersubjetivas. A despeito disso, nosso entrevistado se manteve atento aos nossos diálogos, aguardando iniciativas e perguntas, deixando a certeza de que, solicitado a falar e a remexer essa dor interior, não se escusaria a fazê-lo, uma vez que havia concordado em percorrer conosco essa jornada. A experiência da internação hospitalar veio à tona, univocamente, desde os primeiros contatos, por intermédio da preocupação em transmitir quanto o muro do hospital oferecia uma sensação de afastamento do mundo externo e, em conseqüência, proteção contra as tentações do vício e do prazer que, supostamente, haviam acarretado o adoecimento. Expõe-se a crença na importância do tratamento e no hospital como o lugar que tem condições favoráveis de realizá-lo.

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O termo Aids, em nenhum momento, é usado para nomear a doença que o aflige. Há uma forma peculiar de dar-lhe um nome: AZT, HIV, febre... Uma assertiva, portanto, se faz presente: ele não era “aidético”, embora estivesse numa fase bem manifesta da doença. As fugas iniciais da enfermaria logo deram lugar à disciplina e à rotina dos remédios. A força muscular estava comprometida, mas retomar o hábito de tocar e compor era retomar a vida, muito embora uma vida qualificada por um evento que a modificara, que a tornara outra e fazia a anterior ser redimensionada em função dele, do evento da doença. A transmissão da Aids pela relação sexual foi comentada pelo entrevistado como a mais importante forma de contato com o vírus, ao mesmo tempo de difícil prevenção, por meio de campanhas ou consultas médicas, porque sexo, para todos, era vida. As marcas no corpo evidenciavam a doença. O primeiro sinal e o mais contundentemente associado à síndrome era o emagrecimento: nomeava os pacientes com Aids. A fisionomia esfumava-se e a “cara da Aids” ficava delineada. Todos ao redor, ali na enfermaria, eram HIV positivo, informação primeira, dada na ocasião da internação, ao novo paciente. Assim, todos iam se transformando na doença. Em função disso, não tinham fisionomia, eram todos iguais. Compunham uma comunidade - a da doença - daí surgiriam explicações. O médico, uma referência, era a pessoa que falava e conhecia – porém, na realidade, não era com ele que se discutiam as crenças mais íntimas. A necessidade da informação direta e compreensiva da doença e das formas de contágio era admitida, pois à máxima “Aids mata”, apregoada por todos os meios de comunicação, somava-se o viver a realidade de uma decadência física por si só identificadora da morte. Por isso, a negação tornou-se o mecanismo mais imediato de defesa. A combinação de diversos remédios, produção de variados coquetéis; a força positiva da mente; a disciplina no cuidado de si próprio; a cronicidade assumida pela biomedicina; as metáforas do AZT, do HIV positivo, da febre e a palavra final do médico eram elementos revigoradores de defesas para enfrentar a batalha. Sem dúvida, apresentavam-se metáforas bélicas, usualmente utilizadas pelo discurso científico de disciplinas formadoras da medicina ocidental atual, como a Imunologia. No fundo, afirmou que, ao tomar conhecimento do diagnóstico, sentiu-se condenado e, de certa forma, morreu. Todavia, a esperança não se apaga e tem a força do mundo, porque esta foi culturalmente construída. Cada pessoa agarra-se a ela a sua maneira: neste caso, o Mestre Capoeira apegava-se ao tratamento oferecido pelo hospital. Todavia, dois aspectos merecem ser comentados. O primeiro veio ao encontro de nossa hipótese de que, nesse momento, o significado da Aids propriamente dita se estabeleceria. Nele, à realidade da doença, já expressa em sintomas físicos inequívocos, seria adicionada a concretização da perda do controle sobre o próprio corpo, institucionalizado pelo cotidiano do hospital, instaurando o temor do sofrimento que a doença acarreta antes da morte. O segundo, brotado da narrativa, nos dirige ao papel conquistado pelo hospital, no contexto da medicina moderna. Nossa medicina ortodoxa tornou-se impensável sem esses centros de pesquisa e ensino, nos quais um exército de profissionais, controlados pela hierarquização e por códigos de conduta, devota-se ao tratamento das doenças. É bem esse o sentido da internação, emitido por nosso depoente. Era ali que encontraria, dentro daqueles muros, tudo, o indispensável para lhe proporcionar segurança diante do quadro evolutivo de seu adoecimento. A internação assegurava recuperação mais rigorosa e permitia contornar reações não esperadas às medicações e infecções oportunistas. Apesar disso, era o momento do diagnóstico, e não o da primeira internação, o que expressava o ponto de ruptura, pois era ele que os colocava diante da inevitabilidade da morte construída pelo reinante discurso. A internação era uma coadjuvante importante no processo, porque adquiria conotação de esperança. Diante do fato de esta ser uma doença que trazia a idéia imediata da morte, o hospital passou a ser o porto seguro, onde o paciente compareceria para ter a certeza de estar se cuidando e sendo cuidado, percebendo-se sob proteção de uma equipe que sabia tratar a doença e junto à qual desejava e escolhia uma forma de participação no tratamento para o mal que o fazia sofrer.

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Após todas essas considerações, ao fazermos e analisarmos uma narrativa sobre a doença, evidenciamos que nosso depoente, dentro da tipologia proposta neste artigo, construiu tanto a doença como narrativa quanto, em determinados momentos e assim como nós, narrativa sobre a doença. Cabe assinalar, porém, que o predominante no relato é a doença como narrativa. Nesta, depoente, doença e narrativa combinam-se em uma única pessoa e a doença expressa-se e articulase na/e por meio da narrativa, tendo esta um papel central tanto na ocorrência da enfermidade quanto na forma pela qual ela se coloca na vida da pessoa. Entretanto, a narrativa em torno da doença, enquanto aquela que carreia os saberes e idéias sobre ela, normalmente feita por médicos, está presente na fala do nosso paciente, pois, como vimos, ele possuía conhecimento sobre seu quadro clínico e a terapêutica que lhe era proposta e administrada.

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MACÁRIO COSTA, L.P.


CONTANDO HISTÓRIA DE PACIENTE

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MACÁRIO COSTA, L.P. Contando historia de paciente. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.73-86, jan./mar. 2008. Este artículo aborda la experiencia de adolecimiento y la repercusión de esta circunstancia para la vida del paciente con sida. Presenta cuestiones relativas al diagnóstico y al internamiento en el hospital. Su objetivo es el de dar voz al enfermo como medio de comprender su estado y articular las rupturas acaecidas en la/ por la enfermedad. Con base en la posibilidad de oir las historias de sus vidas, se registraron relatos acerca del adolecimiento: los pacientes presentaban narrativas sobre la enfermedad o narrativas como enfermedad; utilizándose de tal recurso como instrumento de transformación de los eventos y constitución de una visión propia, un mundo de la enfermedad, se funden en una única persona el declarante, la narrativa y la enfermedad. Recontar sus vidas en busca de explicación y entendimiento del acto de enfermar torna colectivas sus experiencias individuales.

Palabras clave: Enfermedad. Narrativa. Hospitalización.

Recebido em 25/08/06. Aprovado em 28/01/08.

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artigos

Curandeirismo e o campo da saúde no Brasil

Rodolfo Franco Puttini1

PUTTINI, R.F. Faith healing and the field of healthcare in Brazil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.87-106, jan./mar. 2008.

The general aim of the present paper was to contribute towards the discussion on the field of healthcare. Specifically, the aim was to contribute towards reflections on the hegemonic power of medicine and its relationships with practices of faith healing. Taking into account the field and habitus of Pierre Bourdieu’s theory, faith healing is discussed based on a review of the concept of trance in the intellectual field as an object of scientific habitus formed between medical practice and religious practice. Finally, by means of contemporary themes shared by social sciences and public health, it is shown how faith healing – a negative term within the field of medicine – is transformed into a positive term within the field of public health.

O objetivo geral do presente artigo é colaborar para a discussão sobre o campo da saúde. Especificamente, pretende-se contribuir para a reflexão do poder médico hegemônico e suas relações com as práticas relacionadas às curandeirices. Considerando a teoria do campo e do habitus de Pierre Bourdieu, discute-se sobre o curandeirismo com base em uma revisão do conceito de transe no campo intelectual como objeto do habitus científico formado entre a prática médica e a prática religiosa. Finalmente, por meio de temas contemporâneos compartilhados pelas Ciências Sociais e pela Saúde Coletiva, indica-se como o curandeirismo – aspecto negativo para o campo médico – transforma-se em aspecto positivo no campo da Saúde Coletiva.

Key words: Religion and medicine. Healthcare. Spirituality. Spiritual therapies.

Palavras-chave: Religião e medicina. Saúde. Espiritualidade. Terapias espirituais.

1 Cientista social. Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMB/Unesp). Caixa Postal 549 Botucatu SP 18.618-970 puttini@fmb.unesp.br

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CURANDEIRISMO E O CAMPO DA SAÚDE ...

Curandeirismo: um perigo à saúde pública? Nota-se claramente o progresso social na sentença geral da Organização Mundial de Saúde OMS2, que, desde 1946, volta-se, no contexto mundial, para a atenção à saúde das populações. A continuidade dessa diretriz internacional foi fortalecida na Conferência Internacional sobre Cuidados Primários para a Saúde, de onde se propagou a meta “saúde para todos no ano 2000” (WHO/ UNICEF, 1978, p.1), não sem críticas (Cueto, 2004; Rivero, 2003; Segre & Ferraz, 1997). Novos avanços da prática da saúde pública foram apresentados na Carta de Ottawa (WHO, 1984), que propõe, em continuidade ao movimento sanitário, uma política internacional da promoção da saúde (Buss, 2003). No Brasil, o Sistema Único de Saúde (SUS), implantado no final da década de 1980, decorrente daquela proposição mundial junto ao movimento sanitário brasileiro, influiu na promulgação de diretrizes e princípios para a prática profissional no campo da saúde. No campo intelectual, inquietações epistemológicas recentes pensam o âmbito paradigmático da saúde pelos diversos sentidos do conceito (Coelho & Almeida Filho, 2002; Almeida Filho, 2001), denotando a importância dos caracteres positivos da definição (Czeresnia, 2005), fundamentais para a formulação de uma teoria geral para o campo da saúde (Samaja, 1997). Este artigo pretende contribuir para essa discussão geral sobre o campo da saúde no contexto da Saúde Coletiva, partindo de ponderações sobre o habitus científico formado entre a prática médica e a prática religiosa. Especificamente, tendo por referencial a teoria do campo e do habitus de Pierre Bourdieu, discutirei a hegemonia do poder médico pelas relações com as práticas curandeiras por meio do exame do percurso do conceito de transe no campo intelectual brasileiro. Utilizo a referência teórica de Bourdieu, que assim define habitus: um sistema de disposições duráveis, estruturas estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio gerador e estruturador das práticas e das representações que podem ser objetivamente ‘reguladas’ e ‘regulares’ sem ser produto da obediência a regras, objetivamente adaptadas a seu fim sem supor a intenção consciente dos fins e o domínio expresso das operações necessárias para atingi-los e coletivamente orquestradas, sem ser produto da ação organizadora de um regente. (Bourdieu, 1983a, p.60-1)

O autor associa o sentido de habitus à noção de campo, assim definida: espaços estruturados de posições, cujas propriedades dependem das posições nestes espaços, podendo ser analisadas independentemente das características de seus ocupantes [...]. Há leis gerais dos campos: campos tão diferentes como o campo da política, o campo da filosofia, o campo da religião possuem leis de funcionamento invariantes. (Bourdieu, 1983b, p. 89)

No interior da teoria geral dos campos, Bourdieu explicita que campo é o local de socialização do habitus, cujo poder simbólico impõe significações que demandam legitimidades. Os símbolos afirmam-se, então, na prática como instrumentos de integração social, possibilitando a reprodução de uma ordem estabelecida sem conflitos. Especialmente para o campo científico, o autor orienta de que se trata de um campo social composto por relações de forças,

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2 “[...] saúde é o estado de bem-estar físico, psicológico e social, e não mera ausência de doenças [...]”. (WHO, 1948, p.1)


3 É consensual apresentar as entidades filantropias como empresas benemerentes, prestadoras de serviços na área da saúde e coadjuvantes das políticas públicas de saúde. Para a crítica à filantropia, confrontar: Portela et al., 2004; Mestringer, 2001; Giumbelli, 1995; Landim, 1993; Guedes, Barata, Corrêa, 1988.

A opinião de risco do curandeirismo parece associada à redação dos textos legais: “Parece que o legislador de 1890 se inspirou nas Ordenações para elaborar o artigo 157: ‘Praticar o espiritismo, a magia e seus sortilégios, usar de talismã e cartomancias, para despertar sentimentos de ódio ou amor, inculcar curas de moléstias curáveis ou incuráveis, enfim, para fascinar e subjugar a credulidade pública’ (Peixoto, 1980, p.113). Já no código modificado pelo decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, lêem-se os seguintes artigos penais correlacionados com a prática médica oficial: Art. 284 – Curandeirismo: Exercer o curandeirismo: I prescrevendo, ministrando ou aplicando, habitualmente, qualquer substância; II - usando gestos, palavras ou qualquer outro meio; IIIfazendo diagnósticos: Pena: detenção. 4

lutas e estratégias que não estão estruturadas pela ordem do mundo empírico, mas pela práxis. A atividade científica “engendra-se na relação entre disposições reguladas de um habitus científico que é, em parte, produto da incorporação da necessidade imanente do campo científico e das limitações estruturais exercidas por esse campo em um momento dado do tempo” (Bourdieu, 1996, p.88). As preocupações iniciais do presente trabalho surgiram de indagações específicas a respeito de práticas espirituais professadas no interior de determinadas instituições de saúde, mais precisamente em hospitais psiquiátricos administrados por empresas filantrópicas do espiritismo kardecista3. Constatei um resultado importante da investigação antropológica: o consenso entre os agentes sobre o espaço de cura espiritual, identificado no interior do hospital como atividade terapêutica complementar à prática médica. Notamos, ainda, a postura de médicos e profissionais da saúde adeptos da religião que, posteriormente à construção do espaço terapêutico, mantinham-se convictos em construir as bases da “medicina espírita”, crença maior do espiritismo científico. Novos questionamentos, no entanto, reorientam-se pela seguinte pergunta: em que circunstâncias se podem considerar complementares práticas espirituais de cura e práticas médicas? Na Saúde Coletiva, tornou-se um marco histórico o reconhecimento da homeopatia e da acupuntura, hoje especialidades médicas, mas outrora consideradas práticas terapêuticas ilícitas. Ao ganharem aceitação da comunidade científica, a homeopatia e acupuntura deslocaram-se do limiar jurídico para outra instância do saber-poder, em cujo embate dirige-se atualmente para o progresso científico dos respectivos sistemas médicos (Rosenbaum, 1999; Rebollo, 1993). Entretanto, a discussão sobre complementaridade de práticas terapêuticas não-médicas (Barros, 2000), abordada também sob o ângulo das racionalidades médicas (Luz, 1993) gerou, recentemente, a polêmica epistemológica centrada na constatação de que mais e mais práticas terapêuticas ´complementares´ foram se incorporando à rede pública de serviços durante a década de 90, além das já tradicionais previstas em lei desde o advento do Sistema Único de Saúde (SUS) ao final dos anos 80: homeopatia, acupuntura e fitoterapia. (Luz, 2005a, p.39)

Diante dos fatos, questiono mais aprofundadamente sobre tais paradoxos: em que medida questões espirituais demarcam a cientificidade das racionalidades médicas no campo da saúde? Talvez, uma solução seja distinguir conceitualmente novas terapêuticas das práticas de saúde já consagradas (Luz, 2005b) ou, ainda, pensar a espiritualidade na discussão do cuidado (Ayres, 2005). No entanto, tomo por base que as práticas espirituais põem à vista aspectos negativos e positivos do curandeirismo. Pretendo demonstrar que o curandeirismo nas ciências sociais, termo considerado um perigo à saúde pública no campo jurídico (Peixoto, 1980)4, transita como produto simbólico no campo da saúde. Para tanto, faço um exame da controvérsia decorrente do conceito de transe no campo intelectual, revisão teórico-conceitual que garantirá, no final do texto, refletir sobre as atuais relações entre prática médica e práticas espirituais.

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CURANDEIRISMO E O CAMPO DA SAÚDE ...

Estado de transe e curandeirismo: doença mental e/ou produto da cultura Os interesses históricos pelo pensamento médico no Brasil convergem atualmente para o resgate da história social da medicina. Rodrigues (1862-1906) tem sido solicitado como referência intelectual para diferentes temas das ciências sociais. Por exemplo, buscam-se, na sua biografia: as origens da antropologia brasileira (Correa, 2000), as elucidações na discussão racial (Oda, 2003; Schwarcz, 1993), os esclarecimentos conceituais da “medicalização da sociedade” (Antunes, 1999) ou do movimento eugênico no Brasil (Stepan, 2005), as demonstrações dos entrecruzamentos entre medicina e direito (Schritzmeyer, 2004), o entendimento da estrutura do campo médico (Maio, 1995) e da estrutura do campo religioso (Giumbelli, 1997a), os elementos da história da psiquiatria no Brasil (Costa, 1989; Machado et al., 1978), enfim, elementos reflexivos para explicitar dilemas mais atuais da democracia racial (Maio & Santos, 2005; Antunes, 1999). Para este estudo afirmo que Rodrigues foi o representante mais eminente do pensamento médico que defendeu o estado de transe como moléstia mental. Alcançou notoriedade no âmbito internacional, dada a influência do posto de professor e pesquisador que ocupou na Faculdade de Medicina da Bahia até o último quartel do século XIX, cujas potencialidades lhe foram proporcionadas para desenvolver, no ambiente científico, teorias médicas baseadas nas etiologias das doenças mentais de concepção organicista. Numa época de desenvolvimento dos valores evolucionistas na Europa, sobretudo pela idéia da degenerescência com base centrada no reducionismo biológico aplicado à psiquiatria, com essas preocupações, em 1890, Rodrigues publicou seu segundo livro em Paris, L´animisme fétichiste dês nègres de Bahia, traduzido posteriormente pelo médico e antropólogo brasileiro Arthur Ramos (Rodrigues, 1935). Rodrigues expõe detalhadamente a teoria sobre o estado de transe, associando-a à teoria da degenerescência. Partindo da definição do estado de transe, o autor abordou o negro africano dos terreiros nagôs da Bahia como protótipo da incapacidade mental por não conseguir abstrair o modelo religioso monoteísta do ocidente, um sinal de superioridade religiosa da civilização ocidental. Foi dessa forma que Rodrigues justificou a possibilidade de pensar a teoria do transe por meio da transmissão de caracteres patológicos nas raças humanas. A teoria da evolução social, também defendida pelos parâmetros do modelo médico biológicoevolucionista de Rodrigues, foi reconhecida por parceiros do campo da ciência, doutores da lei (juristas) e médicos (notadamente médicos higienistas da Faculdade de Medicina da Bahia e da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro). O autor, ao identificar a mestiçagem e os cultos mágicoreligiosos com a barbárie, certamente construiu uma contradição lógica para a construção do projeto nacional de civilização (Oda, 2003). Em estudos recentes, Rodrigues é identificado, pela sua trajetória acadêmica, como cientista que marcou o avanço institucional da profissão médica no Brasil (Maio, 1995). Fundador da disciplina medicina legal, que se tornou uma tradição na clínica médica brasileira de época, Rodrigues influenciou na estruturação do campo da saúde. No entanto, explicita Schritzmeyer (2004), antropóloga que estudou as teorias antropológicas desenvolvidas por Rodrigues, os interesses médicos evidenciaram-se na forma corporativa jurídico-político e contribuíram para a constituição das regras de controle social, promulgadas no Código Penal desde 1890, garantindo, assim, para a corporação médica, a “proteção contra quem quer que os ameace enquanto os únicos peritos do corpo e da cura”. Para Schritzmeyer (2004), nesse período, instaura-se uma guerra político-policialjurídica contra os agentes terapêuticos populares e suas respectivas atuações curativas: “Curandeiros, charlatões e exploradores da credulidade pública propiciaram a união de médicos e juristas diante de um só objetivo: o resguardo da saúde e da credulidade públicas” (p.73). De fato, o argumento jurisprudente para o crime de curandeirismo raciocinava-se pela ótica científica da prática médica aplicada à coletividade, legislação pela qual se pretendia proteger a população das falsas crenças e das falácias profissionais, reprimindo os falsários (Peixoto, 1980). As práticas mágicas de cura seriam, então, perseguidas e punidas na forma da lei, também por meio da ordem de repressão policial (Chalhoub et al., 2003). Interessante notar que o espiritismo kardecista, a umbanda, o candomblé e a homeopatia igualmente eram perseguidos e tipificados por terapêuticas mágico-

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Confrontar comentários do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva no texto Crítica antropológica pósmoderna e a construção textual da etnografia religiosa afro-brasileira, disponível em:< http:// www.fflch.usp.br/da/ vagner/posafro2.html>.

O trabalho de Ferretti (2001) oferece um panorama crítico sobre a discussão ideológica do sincretismo em relação à ideologia da pureza nagô produzida por Roger Bastide. Para o autor, os conflitos surgem quando aparece o interesse de Bastide em distinguir os cultos de transe baianos pela pureza e sincretismos, perspectiva adotada desde Rodrigues. Essa polêmica foi abordada por Giumbelli (1997a) em referência à classificação de Roger Bastide das três formas de espiritismo em Le spiritism au Brésil (Bastide, 1967). 6

religiosas, fenômenos mágicos que se expunham ameaçando a ordem social (Giumbelli, 1997b). Coube a Roger Bastide (1898-1974), intelectual atuante na década de 193040, o primeiro diálogo com o campo médico no contexto de estruturação das ciências sociais brasileiras. Com base nas manifestações religiosas do transe no candomblé baiano - que foram tipificadas por Rodrigues como exemplo de maior grau de doença mental -, Bastide descreveu o fenômeno no contexto religioso e como prática cultural. Contrapôs os tipos de transe místico, psicopatológico e psiquiátrico ao transe nagô do candomblé da Bahia, objeto de maior interesse em seus estudos antropológicos sobre os cultos de possessão (Bastide, 1972, 1960). Perante o pensamento médico do século XIX, que considerava formas patológicas o comportamento de pessoas em estado de transe no ritual do candomblé baiano, o sociólogo francês, desenvolveu um discurso contrahegemônico a essa referência de doença mental por excelência. A elaboração desse conjunto específico de conhecimento sociológico contra o ideário médico psiquiátrico nascente teve por motivo primeiro esclarecer sobre a possibilidade de outras interpretações do estado de transe, explicitando seus condicionamentos e suas aplicações fora do contexto das diagnoses e terapêuticas médico-psiquiátricas. Seus referenciais teóricos estavam marcados pelas ciências sociais contemporâneas e suas teorias provinham das recentes sociologias da religião de Emile Durkheim, Marcel Mauss, Bronislaw Malinowsky, Max Weber. Pode-se afirmar, nesse contexto, que Bastide foi o primeiro intelectual a ponderar o conceito de estado de transe fora da teoria médica da escola antropológica de Raimundo Rodrigues. É importante destacar que Bastide optou pela antropologia simbólica francesa, interessada na restituição de mitologias das sociedades tradicionais africanas. Posicionou-se, na ocasião, contra a escola culturalista norteamericana, possibilitando descrever o universo mítico do candomblé baiano enquanto fonte etnográfica primordial para o entendimento cultural do negro africano sobrevivente no Brasil5. Embora presumindo o negro africano integrado à religiosidade brasileira, Bastide (1960) não tinha por objetivo discutir o sincretismo religioso. Este será um conceito-chave para Cândido Camargo, que, nos anos de 1960 o associa às religiões mediúnicas. Importava mais a Bastide traçar uma epistemologia voltada a consolidar os estudos sobre a cultura brasileira, tendo por base de trabalho especificar o lugar do transe religioso no candomblé baiano6. No entanto, Ortiz (1978) não poupou críticas a essa sociologia da religião de Bastide e, também, à de Cândido Camargo mais tarde, cujo interesse na temática do sincretismo religioso voltou-se a provar que a umbanda, e não o candomblé, transformava-se na religião mais genuinamente brasileira. Ao retomar o tema do reconhecimento social da umbanda enquanto prática mágica candidata a religião oficial, nota-se a recuperação da discussão ideológica sobre a terapia umbandista: Oritz apresenta o modelo do transe religioso de Bastide como representação final, inversamente modificado numa ideologia atribuída aos intelectuais umbandistas. embora as novas concepções do transe não sejam ainda do domínio público, é certo, porém, que elas já penetraram a camada de intelectuais umbandistas. Uma curiosa inversão se opera: de forma patológica a possessão passa a ser encarada como meio de vencer a doença mental, como terapia. (Ortiz, 1978, p.30)

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Estado de transe e práticas terapêuticas nas ciências sociais brasileiras Pensando as relações conceituais entre curandeirismo e estado de transe também pelo campo intelectual, a sociologia da religião de Ortiz – para quem a umbanda deveria ser considerada a única religião genuinamente nacional porque, para ele, a mais sincrética – mais se aproxima do contexto ideológico formado pela teoria das religiões mediúnicas de Camargo (1961). Para Camargo, que trabalhou com o conceito de continnum mediúnico, a umbanda ocupava uma posição hierarquicamente inferior às demais religiões mediúnicas brasileiras. No pensamento e projeto intelectual desse autor, o conceito de sincretismo religioso esteve voltado para fundamentar a idéia de continuum, resultando, enfim, na construção das religiões mediúnicas como elemento conceitual importante na constituição do campo religioso no Brasil (Camargo, 1973). Construído na década de 1960, o modelo teórico das religiões mediúnicas implicava o conceito de continuum mediúnico como explicação universalizante com base nas transferências rituais verificadas entre as crenças afro-brasileiras e kardecistas (Camargo, 1961). Embora o modelo teórico tenha sido criticado por vários autores, observa-se que, na literatura das ciências sociais, Camargo, pela primeira vez, marcou as distinções de modo enfático, destacando os aspectos terapêuticos entre as religiões mediúnicas (Camargo, 1961). Proporcionada pela própria teoria, o sociólogo identificou as diferentes práticas terapêuticas como elementos de integração social no referencial sociológico funcionalista. O destaque era para a função terapêutica da religião, que pertence à função complementar de integração do indivíduo na sociedade. Descreveu detalhadamente o sistema espírita reconhecendo seu público consumidor nas pessoas nervosas que, nos espaços da religião, se adaptavam à sociedade urbana, tendo a oportunidade de desenvolvimento da mediunidade religiosa enquanto forma terapêutica. Essa constatação não foi resultado de um debate que relacionasse doença mental e estado de transe, como fez Bastide (1972) quando pensou as relações entre manifestações mediúnicas e as doenças mentais na psiquiatria desde os anos de 19307. Para Camargo, a terapia mediúnica foi interpretada como um elemento sociológico importante para o estudo da crença religiosa, consistente na forma de uma etiologia e terapêutica das doenças e que tinha sua função específica no processo de adesão religiosa do indivíduo na sociedade. Por suas palavras, “a eficácia prática demonstrada pela cura, seu caráter experimental e significado moral, em termos de minoração dos sofrimentos humanos, constitui poderoso elemento de convicção” (Camargo, 1961, p.96). Preocupado em delimitar o campo religioso, o autor, por conseguinte, tomou cuidado em demonstrar a existência de um mercado das terapias mediúnicas com base na autonomia dessas religiões em relação aos serviços médicopsiquiátricos. Ao espiritismo, em particular, associava duas razões centradas na perspectiva da mudança cultural paulista: a) a existência de uma tradição brasileira de terapêutica sacral; b) a existência de uma inoperância da medicina oficial brasileira. Essas duas razões funcionais das religiões mediúnicas em geral bastariam para dar início a outro ramo na pesquisa sociológica do campo religioso no Brasil8, caso as críticas de Ortiz (1978) não alcançassem repercussões intelectuais importantes na comunidade de cientistas sociais brasileiros. Confrontando a possibilidade da terapia de transe (mediúnico) enquanto prática terapêutica não-oficial, por um lado, Ortiz apontava as limitações

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7 Interessante notar que o médico Bezerra de Menezes, convertido ao espiritismo no início do século XX, propagou uma teoria semelhante que resgatava os aspectos positivos do espiritismo, identificando o desenvolvimento da mediunidade no indivíduo doente, momentaneamente possuído pelos espíritos. Essa teoria foi inspirada na experiência que o autor passara com seu próprio filho, durante anos em estado de possessão, curado por meio do desenvolvimento da mediunidade em um centro espírita no Rio de Janeiro. Confontar Bezerra de Menezes (1987) e David Warren (1984).

8 Como se pode verificar na época, por exemplo, em Carlos Brandão, a continuidade da discussão sobre o campo religioso pelas ações católicas, evangélicas e mediúnicas (Brandão, 1980), ou a discussão sobre religião popular (Fernandes, 1984), ou, mais recentemente, sobre a umbanda (Negrão, 1996).


Essa linha de pesquisa, também iniciada na época por Laplantine & Rabeyron (1989), mantém-se atual para a autora (confrontar Araújo, 2000).

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ideológicas do mercado de ofertas terapêuticas desenvolvida por Camargo (1961), contrapondo-se ao processo de formação do Estado brasileiro. Por outro lado, e diversamente, indicava opções de investigação social de estudo sobre o campo religioso no Brasil sob dois outros critérios: propôs estudar as práticas terapêuticas pelos pólos da legitimidade e ilegitimidade social, ausentes, até então, na história das religiões brasileiras. O esforço de Ortiz de se desvincular do funcionalismo de Camargo movia-se em direção à crítica da formação do campo religioso brasileiro. Interessava a Ortiz desenvolver debates aos arredores da autonomia do campo religioso, primeiro configurando a especificidade das medicinas alternativas, que veremos acabada nos trabalhos de Loyola (1984) e Montero (1985). Em seguida, outro veio abria-se para investigar a história da umbanda e do espiritismo, cujos resultados mais expressivos encontram-se nos trabalhos de Maggie (1992) e Giumbelli (1997a). Montero (1985) e Loyola (1984) mobilizaram forças continuadoras de Camargo, muito embora divergissem de seus resultados e metodologias. Partiram do pensamento do autor pela idéia de continuum para repensar o campo das medicinas alternativas. De fato, Camargo manifestou claramente que Montero continuava suas preocupações teóricas na medida em que ela, uma estudiosa das medicinas alternativas, “foi saber se a terapia religiosa constitui sistema de atendimento terapêutico, dotado de lógica interna capaz de explicitar concepções sistemáticas relativas à etiologia das moléstias e às práticas de seu tratamento” (Camargo apud Montero, 1985, p.10). Nesse trabalho, Montero utilizou o pensamento gramsciano para repensar a condição subalterna das medicinas populares. Realçou as representações populares da doença intrínseca às relações entre dominantes e dominados. Sistematizou a demanda de terapêutica popular e indicou rumos para a pesquisa sobre medicinas alternativas. O trabalho de campo foi feito com os freqüentadores dos centros de umbanda, identificando-os como clientes potenciais do atendimento previdenciário. A autora deduziu o sentido dos conflitos entre as duas medicinas, uma medicina mágica e outra oficial, e concluiu sobre a lógica do discurso religioso que, ao dividir em doença material e doença espiritual, demonstrou que trazia embutida a supremacia do espiritual9. Loyola (1984) já havia realizado contemporaneamente uma investigação semelhante e anterior à de Montero, esclarecendo o papel das medicinas populares quando transformadas em alternativas aos serviços oficiais de saúde. Com o material de pesquisa obtido por intermédio de etnografia, inquiriu agentes de cura (religiosos e oficiais) no bairro de Santa Rita, no Rio de Janeiro, e constatou o lugar de encontro de um mercado terapêutico de cura. Várias terapêuticas permaneciam sempre em concorrência com a medicina oficial, embora a autora enfatizasse que a clientela se valia simultaneamente de muitas delas, legitimando-as, assim, diante de suas necessidades de cura. Loyola (1984) comprovou a existência de uma oferta ampla de serviços e agentes de cura, detentores de concepções de doenças e terapêuticas próprias, incluindo católicos, protestantes, umbandistas e adeptos do candomblé no espaço urbano. Identificou a todos como agentes populares de cura, para promover posteriormente sua crítica, ao constatar a concorrência simbólica com a área da prática médica, espaço em que atua de modo hegemônico a medicina oficial. Montero (1985) refletiu as razões de uma medicina popular quando presumiu forças exógenas à religião umbandista, também identificada pelo pensamento mágico (Montero, 1990), enquanto Loyola (1984), com a metodologia praxiológica de Bourdieu, demonstrou a existência das relações entre agentes religiosos e médicos fora dos espaços sagrados, tradicionalmente

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destinados às religiões em geral (igrejas, templos e centros espíritas). Privilegiando as várias práticas terapêuticas concorrentes entre si e com a medicina oficial no campo terapêutico, Loyola (1984) apontou o médico popular como um dentre outros tipos de agentes, todos denominados por especialista da cura do corpo. A característica principal do médico popular era a de mobilizar, para a clientela, os distintos recursos de cura (alopáticos ou não) disponíveis no mercado, e que atuavam, muitos deles, em um sistema de troca de bens simbólicos.

Imagens do curandeirismo e ideologia das religiões mediúnicas Até o momento segui a hipótese de que o conceito de curandeirismo exerceu de modo simbólico influência nas ciências sociais brasileiras, uma vez que estavam adequadas as condições para formação de um pensamento crítico em oposição às práticas terapêuticas não-convencionais provenientes do campo religioso. Assim, uma nova problemática metodológica resultou em uma mudança intelectual nas ciências sociais por um grupo de pesquisadores, especialmente antropólogos que, na década de 1980, usaram os estudos de caso para romper com os pressupostos generalizantes das abordagens sociológicas anteriores. Assim se justificou o trabalho de Velho (1975), que impulsionou criticamente a retomada do tema sincretismo religioso. E, posteriormente, o de Dantas (1982) que, com a mesma justificativa, avançou a crítica à ideologia dos estudos afro-brasileiros, “mostrou que a intelectualidade brasileira que estudou os cultos no candomblé fundou as religiões afro-brasileiras, no sentido de que foi cooptada por um grupo religioso – os nagôs autênticos da Bahia, depositários da africanidade” (Maggie, 1989, p.79). Vale a pena lembrar que Maggie (1986) foi a primeira antropóloga a tomar como unidade de análise um terreiro de umbanda no Rio de Janeiro pressupondo, para estudo antropológico, a descrição de apenas uma instituição religiosa. Sugeriu, enfim, a modificação da noção de comunidade, utilizada na literatura acadêmica sobre as religiões afro-brasileiras desde Rodrigues a Bastide, agora interpretadas por religiões populares ainda com traços primários perdidos no meio urbano. Essa constatação bastou à autora para demonstrar a inconsistência das sociologias desde Bastide até Camargo, dado que as explicações eram mais devidas à ideologia do grupo de intelectuais e não enfatizavam os aspectos conflituosos e subjacentes aos agentes sociais pertencentes aos grupos estudados. Numa perspectiva semelhante a de Maggie, Seiblitz (1979), motivada pelo estudo específico de um centro espírita no Rio de Janeiro, mencionou que dada a grande penetração que a operação fluídica – prática terapêutica levada a efeito em alguns centros espíritas – tem entre diferentes camadas sociais, encontrando acolhida mesmo por parte dos agentes oficiais de saúde, os médicos, que nos pareciam os últimos, por sua formação profissional, a adotar tal solução. (p.17)

Do mesmo modo e antes de Montero (1985), Seiblitz (1979) utilizou-se da metodologia etnográfica pela perspectiva de Gramsci e Bourdieu, orientadores teóricos, para pensar a dimensão ideológica de um ritual (operação fluídica) que envolvia profissionais de saúde adeptos da religião mediúnica. Por outro lado, a circularidade temática sobre o sincretismo religioso levou Cavalcanti (1983) a propor um estudo endógeno do espiritismo de Kardec. Demonstrou a particularidade do sistema ritual espírita estruturado em três pólos categóricos: estudo, caridade e mediunidade. Esse conjunto categórico define o espiritismo enquanto uma religião sobre as demais religiões mediúnicas. Realça a categoria mediunidade sobre as demais, por duas razões: a) ela é central para se entender o ritual, quando é tomada no sentido de comunicação com os espíritos; b) ela é fundamental, quando no sentido da experiência do transe (recepção do espírito), constitui-se a experiência central dos adeptos da religião. Para a autora, no espiritismo, a mediunidade é o ponto alto da cosmologia religiosa. Essa postura lhe permitiu trazer ao debate uma reinterpretação dos conceitos de transe e possessão que,

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desde Bastide, nunca foram articulados com os teóricos da antropologia. Enquanto Velho (1975) e Dantas (1988) colocaram o kardecismo em segundo plano nas análises sobre a possessão, Cavalcanti (1983), diferentemente dos trabalhos de Seiblitz (1979), Neves (1984) e Neves & Seiblitz (1984), trouxe para o debate ideológico as características do espiritismo enquanto sistema religioso entre as demais religiões mediúnicas. Hess (1991) aproximou-se da crítica ideológica ao espiritismo, estudando casos de cientistas brasileiros adeptos da religião sem adentrar nas questões ideológicas no campo intelectual das ciências sociais brasileiras. Todavia, Concone (1983), ao privilegiar os méritos do sincretismo religioso na umbanda, em detrimento das questões ritualísticas, concluiu de outro modo, que se perdia na análise ideológica da produção sociológica sobre o transe, propondo alargar o debate por meio do termo transe de possessão, cuja abrangência do objeto ampliaria o sentido incluindo as religiões tradicionais. O avanço do debate das ideologias das religiões mediúnicas pode-se verificar com Maggie (1992), que ampliou as considerações cosmológicas, utilizando processos judiciais entre 1890 e 1945 no Rio de Janeiro. Estudou os processos acusados de transgredirem os três artigos penais relacionados a práticas mágicas (curandeirismo, prática ilegal de medicina e charlatanismo). Maggie (1992) colaborou substancialmente para resgatar as relações simbólicas estruturadas entre curandeiros, benzedores, benzedeiras, espíritas, médiuns de todas as espécies e, de outro lado, juizes, promotores, advogados e policiais. O que se pode notar é que a autora defendeu hipóteses de que sempre esteve presente, na história das religiões mediúnicas, o discurso de que o Estado perseguiu e reprimiu macumbeiros, espíritas e umbandistas e seus participantes. Porém, tal justificativa acompanha certo consenso ideológico - quer entre estudiosos (por exemplo, entre Rodrigues, Ramos e Bastide), quer entre mães e pais-de-santo – relativamente à idéia de que a crença sempre foi vencedora. Nesse contexto dos estudos acadêmicos, o sincretismo religioso sempre foi utilizado como resultado dessa repressão: escravos escondem divindades africanas sob a máscara de santos católicos. No referencial do campo religioso, o que vemos é uma disputa intelectual entre as categorias magia e religião, que serviram de base para Maggie (1992) debater as diferenças entre práticas lícitas e ilícitas. A autora demonstrou que os mecanismos reguladores criados pelo Estado a partir da República não extirparam as crenças nos feitiços, mas ao contrário, foram fundamentais para a sua constituição. Enfim, uma fórmula resultou de seu estudo de caso: para a definição dos feiticeiros no Rio de Janeiro (que a autora aprofundou detalhadamente da etnografia em uma instituição mediúnica), constatou que a feitiçaria é uma categoria que opera logicamente no estabelecimento de relações e hierarquias entre coisas e pessoas, cujos critérios de bem e mal estruturam um status que discrimina uma relação de poder, demonstrando que as religiões mediúnicas são consideradas cultos oficiais, percebidos como práticas de magia benéfica (rituais de invocação dos espíritos), enquanto as feitiçarias e os feiticeiros, que praticam atos criminosos, rituais de magia negra, são os representantes do mal. Giumbelli (1997a) investiu na crítica ideológica do campo religioso brasileiro pelo estudo histórico do espiritismo. Utilizou-se, também, de processos judiciais para repensar os caminhos de legitimidade da religião, partindo da análise de categorias construídas por atores sociais – espíritas, religiosos, médicos, delegados, juizes, promotores e advogados. Seguiu orientações intelectuais da antropologia, partindo da discussão de Fry (Fry apud Giumbelli, 1997a), ao comentar sobre as investigações de Dantas (1988) a respeito da construção da idéia de pureza nagô nas religiões afrobrasileiras. Segundo Fry (1988), a contribuição de Dantas teve por objetivo relativizar a tese da repressão no candomblé sem substantivar a pureza da religião. Mostrou a configuração das religiões afro-brasileiras por uma série de alianças e conflitos que se entrecruzavam entre senhores, escravos, políticos, psiquiatras, policiais, homens poderosos de negócios, pais e mães-de-santo, padres e antropólogos - e não seguindo as duas grandes interpretações históricas da formação das religiões afro-brasileiras (Fry, 1988). Investigando as imagens no espiritismo, Lewgoy (2000), em trabalho de doutorado, contribuiu para os estudos do campo religioso demonstrando, nessa linha de pensamento, importantes relações

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entre espiritismo kardecista e a cultura letrada. Por meio do transe mediúnico, levou em conta características peculiares das práticas de cultura letrada enquanto culturais, demonstrando que o espiritismo kardecista estabeleceu-se em um sistema de referências eruditas, distinguindo a religião espírita (ciência e religião) das demais religiões mediúnicas. Stoll (1999), delineando-se na mesma linha de pensamento de Lewgoy, posicionou as práticas do espiritismo para fora dos espaços sagrados da religião. Argumentando sobre as dissidências entre espíritas no Brasil, divididos entre evangélicos e científicos, defendeu a tese de diferentes interpretações da cultura letrada mediúnica francesa e brasileira identificando, assim, tensões entre escrita mediúnica católica (Chico Xavier) e escrita da cultura da nova era (Luiz Gasparetto). Gasparetto, na década de 1980, ao questionar a prática da mediunidade como forma de exercício de doação, de renúncia e de caridade, própria do modelo de Chico Xavier, desenvolveu um programa “[...] nos espaços que integram o circuito neo-esotérico: a promoção de cursos, palestras, workshops que tematizam questões relativas ao domínio da espiritualidade, da saúde e problemas que envolvem as relações na vida cotidiana” (Stoll, 2002, p.243-4) . Desse modo, é coerente o seguinte questionamento da autora: o espiritismo aparece como programa religioso ou programa de auto-ajuda? Partindo desse ponto de vista, Stoll (2002) possibilita repensar as demarcações do campo religioso colocando a literatura psicográfica espírita nas fronteiras com o campo literário. O que se pode notar é que as críticas especialmente dirigidas à ideologia espírita (Lewgoy, 2000; Giumbelli, 1997a; Hess, 1989; Cavalcanti, 1983), ao atingir o limiar do campo literário (Stoll, 2002) revelou elementos simbólicos para a análise da autonomia do sistema religioso mediúnico. Assim, Maggie (1992), Velho (1975), Dantas (1982) e Seiblitz (1979) identificaram no conceito religiões mediúnicas o problema central, inerente às ideologias presentes no próprio grupo de pesquisadores: seja para designar a ideologia das religiões afro-brasileiras (Concone, 1983), das próprias religiões mediúnicas (Cavalcanti, 1983) ou das religiões de transe (Rizzi, 1995). Parece plausível perguntar: em que condições podem-se considerar coincidentes os conceitos de auto-ajuda – proveniente do campo religioso (como Stoll denota em relação ao espiritismo) - e de autocuidado – oriundo do campo da saúde? Talvez a resposta da Saúde Coletiva direcione para a compreensão das distinções múltiplas da categoria empowerment, uma aposta para explicar a tendência de manejar recursos de atores informais na comunidade, sujeitos coletivos importantes como “família, comunidades de vizinhos, voluntariado, grupos de auto-ajuda, organizações não-governamentais que, de diferentes formas e com diferentes níveis de envolvimento, desenvolvem funções assistenciais e de cuidado” (Serapioni, 2005, p.244). No entanto, ao procurar, neste tópico, explorar intelectualmente as imagens do curandeirismo no campo religioso atrelado às críticas ideológicas das ciências sociais ao modelo teórico das religiões mediúnicas de Camargo (1961), pretendi mostrar como o curandeirismo importa ao campo simbólico da saúde. Em trabalho anterior (Puttini, 1989), na perspectiva metodológica de Foucault, analisei os discursos médicos em processos judiciais do crime de curandeirismo e constatei, na mesma perspectiva consignada por Giumbelli (2003), a atualidade das relações simbólicas entre o poder médico e a figura simbólica das curandeirices praticadas por curandeiros nos seguintes termos. O curandeirismo é um conceito de natureza controladora que tende a seguir caminhos de controle social pela corporação médica, que carece de distinções sociais para agir profissional e socialmente. Necessita, pois, de uma criação conceitual, complemento de sua imagem, como num espelho, visível somente por intermédio da utilização dos mecanismos de coerção presentes no código penal disponível por detrás da máquina estatal. Assim, coexistem no mundo social duas figuras que se completam: a dos que convivem cotidianamente com uma dupla faceta de médicos que curam doenças (salvam vidas) e a dos “curandeiros”, que não curam doenças, põem em perigo vidas. A fronteira simbólica que aqui interessa resgatar, entre o campo religioso e o campo médico, mais bem orientado pela sociologia de Bourdieu (1998, 1996), reconhece, de um ponto de vista das homologias e autonomia entre os campos, a importância e o alcance do conhecimento praxiológico:

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O conhecimento que podemos chamar de praxiológico tem como objeto não somente o sistema das relações objetivas que o modo de conhecimento objetivista constrói, mas também as relações dialéticas entre essas estruturas e as disposições estruturadas nas quais elas se atualizam e que tendem a reproduzi-las, isto é, o duplo processo de interiorização da exterioridade e de exteriorização da interioridade. (Bourdieu, 1983a, p.47)

Estou sugerindo pensar as disposições estruturadas no campo da saúde, predispostas a atualizar e reproduzir o processo de interiorização das práticas terapêuticas não-médicas e exteriorização da produção intelectual sobre elas, partindo do princípio em que se opera a interação entre o campo médico e religioso. A noção de saúde, portanto, atrela-se à noção de habitus da saúde, cuja estrutura estruturante, nos espaços relativamente autônomos da medicina e da religião, está mediada pelo curandeirismo, produto simbólico estratégico entre os demais bens de salvação.

Considerações finais No presente artigo, procurei as razões discursivas sobre o risco do curandeirismo na sociedade, que representava, no passado, uma ação criminosa de perigo aos serviços médicos de saúde pública (Carvalho, 1999). Hoje, certamente, o curandeirismo não é uma ameaça à prática da saúde pública no Brasil, porém é preciso admitir a influência das relações simbólicas no habitus das pessoas (profissionais, pacientes e cuidadores) atuantes nos serviços de saúde. Propus investigar a gênese do campo médico por um olhar sincrônico em relação ao campo religioso, por intermédio de um balanço bibliográfico sobre o tema estado de transe. Selecionei idéias, conceitos e teorias suscitadas por pessoas em certas posições sociais no campo intelectual brasileiro. Mostrei como o estado de transe - um problema social identificado na medicina do século XIX – transformou-se em discussão sociológica e antropológica sobre as práticas religiosas e terapêuticas nas ciências sociais. Uma primeira conclusão refere-se ao aspecto negativo do curandeirismo dado pelo poder médico atuante no campo intelectual (Bourdieu, 1998). Trata-se de uma referência simbólica importante para a composição do campo da saúde. O equívoco epistemológico de Rodrigues, com base no animismo dos negros da Bahia (etiologia da doença mental na referência religiosa), permanece válido dentro de um contexto invertido onde o curandeiro figura no mundo social como representante das terapêuticas não-médicas em geral. Essa distorção atesta-se pela história da medicina brasileira, cuja retórica sobre o curandeirismo aparece argumentada contra o movimento hegemônico da medicina biomédica (Ibañez & Marsiglia, 2000; Araújo, 1979; Santos Filho, 1977). A imagem do curandeiro permite expor sentido e entendimento ao poder médico em relação às curandeirices que, na atualidade, potencializam contradições lógicas e sintetizam a reprodução simbólica de todos os demais agentes não-médicos. Admitir a inexistência do curandeirismo e do curandeiro na sociedade seria reconhecer a hegemonia médica sobre as demais instâncias de saberes terapêuticos. Desdobra-se, aqui, uma segunda conclusão. O significado negativo do curandeirismo (doença mental) é contraposto, anos depois, a aspectos positivos formulados pela sociologia da religião de Bastide e Camargo. É desse contexto que se pode afirmar que as terapêuticas não-médicas estiveram representadas positivamente no campo intelectual, condições criadas para se pensar a autonomia do campo religioso desvinculado do campo médico. O curandeirismo no campo religioso atua como produto simbólico de salvação na luta pela legítima distinção entre seitas e religiões oficiais (Montero, 2006; Giumbelli, 2000). Do trabalho resulta, ainda, uma terceira conclusão que se volta para a área do conhecimento da Saúde Coletiva e que confirma o processo de autonomia relativa entre o campo médico e o campo religioso. Na práxis da Saúde Coletiva, quando surge a medicina homeopática como especialidade médica (Luz, 2005b; Laucas & Luz, 1998), antes abordada sob o ângulo das práticas terapêuticas não-médicas (Barros & Nunes, 2006; Barros, 2000), desenvolve-se um processo de reconhecimento social, embora em andamento, ou seja, não definido plenamente no campo intelectual, também

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porque os conhecimentos homeopáticos não são ensinados na maioria das escolas médicas brasileiras (Teixeira, 2006). Tal preconceito arraigado à cultura médica prova a influência do sentido negativo do curandeirismo, que vigora no habitus científico da saúde. Na verdade, esse reconhecimento parcial na comunidade científica deve-se ao poder simbólico de associação da prática homeopática aos aspectos cognitivos do ideário da filosofia vitalista (Rosembaum, 2002), não necessariamente daquela combinação do animismo com o vitalismo do século XVIII nos primórdios da medicina científica (Abrantes, 1998; Darnton, 1988); antes, portanto, do surgimento da biomedicina científica (Camargo Jr., 2005). A homeopatia é reconhecida cientificamente quando se concebe o vitalismo não animista (Martins, 2004; Luz, 1988), que se distancia do campo religioso, deslocando-se do limiar jurídico do curandeirismo para efetivamente desenvolver-se como sistema médico na academia científica. A hipótese inicial de que o curandeirismo transita como bem simbólico no campo da saúde ficou confirmada pela constatação das homologias e a autonomia relativa mantidas entre os campos médico e religioso. Historicamente, estão sustentadas as inter-relações do habitus gerado entre as posições sociais assumidas pelos agentes na prática médica e na prática religiosa, para os quais os diversos aspectos e significados do curandeirismo transitam por um campo simbólico de bens de saúde. O tema complementaridade, na Saúde Coletiva, exemplo do poder médico atuante no âmbito da prática social, inclui a problemática da ideologia das práticas terapêuticas não-médicas, que atualiza o debate em torno de um campo de forças da produção científica. Afirmo que o campo da saúde guarda profunda relação com o habitus científico nessas circunstâncias, em que, na práxis das Ciências Sociais, da Medicina e da Saúde Coletiva, também transitam bens de salvação. Assim - retomando a pergunta colocada na introdução formulada em favor dos profissionais de saúde adeptos do espiritismo ante a crença da “medicina espírita” (Warren, 1986) -, as questões espirituais demarcam a cientificidade nas racionalidades médicas do campo da saúde na medida em que terapias espirituais não são caracterizadas por especialidades médicas e, portanto, não são definidas por práticas médicas ou práticas religiosas complementares. Da dimensão categorial do habitus (Pinto, 2000) é que se criam as condições sociais de legitimidade e reconhecimento por meio de uma economia das trocas de bens simbólicos (Bourdieu, 1974). No habitus da saúde, a categoria espiritual - contraposta às concepções materialistas do corpo, e não da alma, embora não pertencente à racionalidade médica - representa um aspecto positivo na definição do conceito de saúde, na medida em que se distinguem, no plano discursivoideológico, os curandeiros atuantes com suas curandeirices na sociedade. O curandeirismo na Saúde Coletiva (Rabelo, 1994; Queiroz, 1991) representa, antes de tudo, um objeto de estudo sobre atuação no mercado simbólico de bens de salvação. Os curandeiros reproduzem e incorporam idéias e sentimentos da prática médica e religiosa (Loyola, 1984), mantendo-se a estrutura estruturada hegemônica da medicina na sociedade, e perfazendo os parâmetros estruturantes, nos termos empregados por Bourdieu, de uma relação dialética estabelecida entre as instituições médicas e religiosas. Nesse contexto de atuação das ciências sociais em saúde, considerando-se, na práxis da Saúde Coletiva, os avanços e conflitos em destaque nas seguintes duas instâncias cognitivas - 1) a crescente tendência da perspectiva holística do processo saúde-doença-cuidado no modelo da complexidade e transdisciplinaridade (Almeida Filho, 2005; Czeresnia, 2003); e 2) na atual proposta de um modelo teórico para o campo da saúde dentro de uma cartografia conceitual da Saúde Coletiva (Almeida Filho, 2000) e o recente uso de diferentes significados de interpretação antropológica do conceito de doença (Almeida Filho & Juca, 2002; Alves & Minayo, 1994) - apresento a seguinte proposta de classificação, ainda que provisória e incipiente, dirigida à produção de conhecimentos, tendo em vista o curanderismo no habitus no campo da saúde brasileira, por intermédio da seguinte distinção crítica entre categorias de análise em relação ao campo social e religioso: a) Religiosidade: referência a instituições e doutrinas religiosas, agentes religiosos atuantes em instituições, portanto, fora dos estabelecimentos de saúde que se utilizam práticas terapêuticas ou de curas voltadas aos adeptos. Pressupõe adesão a crenças e práticas relativas às igrejas, seitas ou instituições religiosas organizadas, mas também designa, no contexto das práticas de saúde, a

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religiosidade dos sujeitos (pacientes, profissionais de saúde e cuidadores), crença que professam no enfrentamento das doenças e da morte. Nesse sentido, a questão da fé religiosa pode estar aqui relacionada à experiência religiosa de pacientes [subjetividade aliada aos sofrimentos psicológicos] (Alves, Rabelo, Souza, 1999; Rabello, 1993). Por isso mesmo, nem sempre tomadas por evidências psicopatológicas (Moreira-Almeida, Lotufo Neto, Koenig, 2006), uma vez dadas as condições de possibilidades de identificar agentes religiosos com práticas do curandeirismo por via da psiquiatria (Dantas, Pavarin, Dalgalarrondo, 1999; Lotufo Neto, 1997). Também relacionado à cultura, o conceito de religiosidade popular representa uma fonte importante no habitus da saúde (Maués, 1994; Minayo, 1994; Brandão, 1988), fonte para os estudos de educação popular no campo da saúde (Valla, 2005; Vasconcelos, 1998). b) Espiritualidade: termo ambíguo que designa: 1) ora referência às crenças dos sujeitos da saúde (agentes e pacientes), que atuam nas instituições de saúde ou fora delas; 2) ora determina a atuação da prática espiritual, que tem por base as crenças espiritualistas. Na primeira acepção, consideram-se as crenças pessoais dos sujeitos, não somente as crenças religiosas, mas também místicas, mágicas, extraordinárias ou idéias pelas quais militam e que representam um conjunto de convicções pertencentes ao habitus da saúde, dado pelas diferentes “cosmovisão de mundo”. Incluem-se estudos de representações sociais (Alves & Rabelo, 1998; Minayo, 1994; Queiroz, 1991). Na segunda acepção, tendo por base a crença na existência do espírito em oposição ao materialismo corporal, consideram-se as terapias espirituais (místicas, religiosas ou práticas espirituais) enquanto performances (Magnani, 1999) também voltadas para o enfrentamento da doença, e que podem resultar em melhoria das enfermidades corporais (Faria & Seidel, 2006). c) Assistência espiritual: termo que designa referência aos serviços prestados na prática de saúde multiprofissional (medicina, enfermagem, psicologia, assistência social, nutrição, fisioterapia). Por exemplo, a forma mais expressiva atualmente se encontra no cuidado a pacientes incuráveis ou portadores de doenças crônicas degenerativas. O trabalho designado na conceituação de cuidados paliativos (Menezes, 2004), direcionados aos limites da medicina curativa, representa o lugar de onde a assistência espiritual orienta-se por demandas críticas da bioética (Siqueira-Batista & Schramm, 2004; Kovacs, 2003) suscitada no campo de atuação da prática médica institucional, na atualidade, um problema de saúde pública.

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CURANDEIRISMO E O CAMPO DA SAÚDE ...

PUTTINI, R.F. Curanderismo y el campo de la salud en Brasil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.87-106, jan./mar. 2008. El objetivo general del presente artículo es el de colaborar para la discusión sobre el campo de la salud. Específicamente pretende contribuir para la reflexión del poder médico hegemónico y sus relaciones con las prácticas relacionadas al curanderismo. Considerando la teoría del campo y del habitus de Pierre Bourdieu, se discute sobre el curanderismo con base en una revisión del concepto de trance en el campo intelectual como objeto del habitus científico formado entre la práctica médica y la práctica religiosa. Finalmente, por medio de temas contemporáneos compartidos por las Ciencias Sociales y por la Salud Colectiva, se indica cómo el curanderismo - aspecto negativo para el campo médico - se transforma en aspecto positivo en el campo de la Salud Colectiva.

Palabras clave: Religión y medicina. Salud. Espiritualidad. Terapias espirituales.

Recebido em 22/02/06. Aprovado em 03/10/07.

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artigos

Novas práticas sociais na constituição do direito à saúde: a experiência de um movimento fitoterápico comunitário Francini Lube Guizardi1 Roseni Pinheiro2

GUIZARDI, F.L.; PINHEIRO, R. New social practices constituting the right to health: the experience of a community phytotherapy movement. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.109-22, jan./mar. 2008. The aim of this study was to analyze how experiences within a popular movement have been affirmed as a field for constituting healthcare rights. The starting point was the question posed by the usual concept of healthcare rights cited in relation to Brazilian healthcare reforms, in seeking to affirm the constituent dimensions of movements within society. The study focused on experiences of phytotherapeutic pharmacies belonging to healthcare chaplaincies in the municipalities of Vitória and Vila Velha, ES, Brazil. The result was that we identified three aspects of the community experience of this movement that contribute towards affirming other practices and meanings within healthcare: phytotherapy usage, care-based relationships and solidarity-based social networks. Through these, we observed that healthcare chaplaincies’ actions establish a counterbalance to the power devices and mechanisms that constitute the field of healthcare, thus opening up new possibilities for constructing citizenship rights.

Key words: Right to health. Phytotherapy. Popular movements within healthcare.

O objetivo deste trabalho foi analisar como a experiência de um movimento popular se afirma como um campo de constituição do direito à saúde. Para tanto, partimos da problematização da concepção de direito à saúde usualmente referida na reforma sanitária brasileira, procurando afirmar as dimensões constituintes dos movimentos societários. Nosso objeto de estudo foi a experiência das farmácias fitoterápicas da Pastoral da Saúde, nos municípios de Vitória e Vila Velha, ES, Brasil. Como resultado, identificamos três aspectos da experiência comunitária desse movimento que concorrem para a afirmação de outras práticas e sentidos de saúde: o recurso à fitoterapia, as relações de cuidado e a rede de vínculos sociais baseados na solidariedade. Por meio deles observamos que o fazer da Pastoral da Saúde estabelece uma contraposição com os dispositivos e mecanismos de poder que configuram o campo da saúde, abrindo novas possibilidades de constituição de direitos de cidadania.

Palavras-chave: Direito à saúde. Fitoterapia. Movimentos populares em saúde.

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1 Psicóloga. Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil, 4365 EPSJV sala 321 Manguinhos Rio de Janeiro RJ 21.040-900 flguizardi@hotmail.com 2 Sanitarista. Instituto de Medicina Social, Universidade Estadual do Rio de Janeiro.

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NOVAS PRÁTICAS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DO DIREITO...

Introdução A abordagem que orienta este estudo3 compreende a participação política como condição e instrumento indispensável à construção do direito à saúde. Falamos em construção porque não o entendemos estritamente como garantia constitucional, formalização jurídica em si mesma definida, mas como práticas de sociabilidade, princípios reguladores “que estruturam uma linguagem pública” (Telles, 1994, p.92). Neste sentido, a conquista constitucional é apenas uma faceta da construção efetiva da saúde como um direito. Construção coletiva, que não pretendemos relativa a modelos ou metas a serem alcançadas, mas como produção imprevisível de realidades sociais. Invenção política, não estritamente por implicar a instância estatal, mas por presumir a deliberação de rumos pertinentes ao fato de sermos politas: coletividade social. Reportamo-nos, com isso, à construção política do direito à saúde, com base na qual se tecem propriamente os “sentidos” do que entendemos e vivemos como “saúde”, do que vivemos e entendemos como “direito”. Caminhos que fazem do SUS espaço-tempo primordial desse processo histórico-social e da participação política, dispositivo estratégico em sua construção. Mais do que garantias jurídicas, os direitos são deste modo apreendidos como práticas coletivas de construção de sociabilidade, referências de reciprocidade (Telles, 1994). Ou seja, são como uma “gramática civil” por meio da qual se reconhece uma arena pública onde as diferenças podem ser afirmadas e a negociação se faz possível em função do reconhecimento da legitimidade das posições e interesses dos diferentes interlocutores implicados. Espaço público onde vínculos sociais tomam corpo valendo-se da materialização de uma referência comum, que não impõe a homogeneidade, mas que, ao legitimar o conflito, instaura a condição de igualdade, imprescindível fundadora do direito à diversidade (em seus múltiplos e abertos planos). Como coloca Telles (1994, p.91), “os direitos são aqui tomados como práticas, discursos e valores que afetam o modo como desigualdades e diferenças se expressam e os conflitos se realizam”. Baseados nessa apreensão do conceito, percebemos que, instrumentalizada pelos direitos, a convivência democrática afirma-se como “uma dimensão ética da vida social” (Telles,1994, p.91), na medida em que institui referências de eqüidade e justiça que não se revelam restritas a sua afirmação legal, constituindo-se com base nas práticas sociais. Constata-se, então, que a noção de direito aqui apresentada não equivale a um conceito generalizado e abstrato, portador de uma essência universal. Não há direito em si, definição hermética, transcendental, de uma substância imaterial. Ao contrário, ele apenas existe na rede simbólico-cultural por meio da qual se materializa, sendo, portanto, resultado de lutas políticas locais, tecidas nas cenas cotidianas dos incontáveis autores de nossas realidades sociais. Assim, se o Sistema Único de Saúde (SUS), e com ele o direito à saúde, se forma tomando por base o aparato jurídico-administrativo que o estrutura, ele apenas se concretiza nos espaços onde a vida se impõe e se faz existência: em postos de atendimentos, hospitais, salas administrativas, conversas, atos, sujeitos, etc. - em tudo que o corporifica, em tudo por intermédio do qual ganha materialidade social. Com isso, o conceito de direito adquire outra espessura, ao ir além de sua formalização jurídica, procurando abranger, sobretudo, a densidade e complexidade dos fluxos e movimentos societários. Tendo por referência essa concepção de direito, este artigo se propõe a

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3 Parte integrante e revisada da dissertação de mestrado da primeira autora, sob a orientação da segunda, intitulada Participação política e os caminhos da construção do direito à saúde: a experiência da Pastoral da Saúde nos municípios de Vitória e Vila Velha , defendida no Instituto de Medicina Social da UERJ em 2003. Pesquisa desenvolvida com apoio da FAPERJ e CNPq.


analisar como a experiência de um movimento popular pode ser analisada como um campo de constituição do direito à saúde. Buscamos explorar esse objetivo por meio da experiência de um movimento popular, a Pastoral da Saúde. Esse movimento foi escolhido por envolver amplos setores populares, especificamente aqueles com precárias condições socioeconômicas que não têm suas demandas de saúde suficientemente atendidas pelo sistema público. Em virtude disso, um dos objetivos do trabalho da Pastoral é buscar alternativas e soluções para esses problemas, por meio do resgate e da afirmação da cultura popular, com a prática de uma outra concepção de saúde que não a biomédica (Camargo Jr., 1997). Destacase, em suas práticas, a organização de farmácias fitoterápicas comunitárias. A despeito da inconteste presença da Igreja Católica no mundo da saúde - que no caso brasileiro precede mesmo a formação jurídica do Estado de Direito - a Pastoral da Saúde, enquanto ação planejada e estruturada é um movimento recente, organizado apenas no fim do século XX. De fato, o trabalho com a Pastoral dos Enfermos, voltado para a assistência (sobretudo espiritual) aos doentes em suas casas e hospitais, é bastante antigo nessa Igreja. No entanto, é apenas a partir da realização do I Seminário Nacional de Saúde, promovido em 1977 pela Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), que começaram a surgir experiências comunitárias vinculadas ao trabalho pastoral. A partir de então, fortaleceu-se na Igreja a discussão sobre questões pertinentes às condições sanitárias da população. Em 1981, com a campanha da Fraternidade promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), cujo lema era “Saúde para todos”, o tema da saúde emerge como prioridade e diferentes grupos vinculados à Igreja organizam-se, procurando desenvolver trabalhos junto à população desprovida de acesso aos serviços públicos. Em 1986, é realizado, pelo setor Pastoral Social da CNBB, com apoio do Grupo de Reflexão de Saúde (GRS) da CRB, o Encontro Nacional de Pastoral da Saúde, conceituando-se, assim, esse novo trabalho pastoral. Em 1994, é realizado em Quito, Equador, o II Encontro, direcionado ao objetivo de “formular, com a colaboração de todos os países, linhas comuns que orientem a ação da Pastoral da Saúde na América Latina e Caribe” (CELAM/DEPAS, 2001, p.83). Consolida-se, então, a preocupação com um projeto comum de Pastoral, e com o desenvolvimento de estrutura e organização próprias. Em 1995, na Assembléia Nacional da Pastoral da Saúde, definiu-se precisamente a Pastoral da Saúde e suas prioridades. Ao longo dessa trajetória, a Pastoral da Saúde passa a ser conceituada como “a ação evangelizadora de todo povo de Deus, comprometido em promover, cuidar, defender e celebrar a vida, tornando presente a missão libertadora e salvífica de Jesus.” (CELAM/DEPAS, 2001, p.43). Com o encontro de 1995, é formulada sua estrutura, dividida em três dimensões fundamentais: solidária, comunitária e político-institucional, com base nas quais as atividades passam a ser organizadas, sendo aquelas pertinentes às duas últimas dimensões o campo preferencial deste estudo. Em razão de limites práticos, tornou-se necessário realizar um recorte no tema proposto, o que decidimos fazer limitando a pesquisa à atuação da Pastoral da Saúde da Arquidiocese de Vitória, em especial sua experiência de implementação de farmácias fitoterápicas nos municípios de Vitória (duas comunidade) e Vila Velha (quatro comunidades), no Estado do Espírito Santo, Brasil. É importante salientar que, em seu fazer cotidiano, a Pastoral da Saúde se constrói com base nas singularidades das realidades locais, nas quais surge o trabalho. Não há propriamente um protocolo ou uma série de procedimentos para a organização dos grupos. Cada um deles tem um tempo próprio, uma história única, traçada na convergência de experiências de vida, desejos, necessidades e realidades comuns. Estando submetidos à autoridade dos padres responsáveis pelas comunidades, cada grupo dispõe de liberdade para concretizar suas atividades, o que lhes confere uma notória autonomia. Por tais características, consideramos importante destacar que os resultados da pesquisa não podem ser generalizados para análise e compreensão de outros grupos deste movimento.

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Caminhos metodológicos... O objetivo central da pesquisa exigiu o estudo de eventos - as práticas da Pastoral da Saúde e seus efeitos políticos - que não poderiam ser diferenciados dos contextos em que se produzem, e sobre os quais tampouco seria possível desenvolver estratégias metodológicas de controle. Tendo em vista tais aspectos, escolhemos, como metodologia, o estudo de caso (Yin, 1989), pois este se direciona à produção de conhecimento sobre um fenômeno valendo-se da intensiva análise de um caso particular, objetivo a que nos propusemos ao selecionar a Pastoral da Saúde e sua experiência com a implementação de farmácias fitoterápicas nos dois municípios. Nosso principal recurso foi a observação participante (Iturra, 1986), que nos permitiu a permanente contextualização das informações obtidas, por meio do envolvimento direto com o grupo social em questão, procurando compreendê-lo com base em seus próprios parâmetros e normas. Durante o período de seis meses, acompanhamos ativamente o cotidiano do movimento nas seis comunidades. Freqüentamos o dia-a-dia dos trabalhos, as reuniões internas dos grupos e aquelas que envolviam a articulação dos diferentes grupos, além da coordenação estadual do movimento. Participamos dos eventos promovidos (congresso estadual, celebrações, planejamento estratégico anual, reuniões com as prefeituras) e acompanhamos os representantes da Pastoral nas reuniões dos conselhos em que estão inseridos. Realizamos 18 entrevistas semi-estruturadas, divididas entre a coordenação arquidiocesana e a dos grupos pesquisados, os representantes e suplentes da Pastoral nos conselhos municipais de Vitória e Vila Velha, seus representantes atual e anterior no conselho estadual, e profissionais que assessoram o movimento, profissionais vinculados à Caritas (pessoa jurídica vinculada à Igreja Católica), outros ao setor público. Por parte do Poder Executivo, foram entrevistados os responsáveis pela gestão das secretarias de Saúde das duas cidades, a coordenação do Programa de Fitoterapia da Prefeitura de Vitória, um profissional ligado ao conselho de saúde desse município, o gestor de uma unidade de saúde e uma assistente social. Procurando investigar os principais aspectos vinculados à procura por assistência na Pastoral, foi aplicado um questionário a 87 usuários4 das seis farmácias pesquisadas, no qual foi perguntado como se haviam informado do trabalho, o motivo de sua procura e o que esperavam (caso fosse sua primeira vez) ou como o avaliavam.

O fazer comunitário e a constituição de outras políticas Ao propor outro olhar sobre a constituição do direito à saúde, procuramos manejar uma apreensão diversa do tema da participação política, que não aquela estruturada pela rotineira separação entre o dito campo “social” e o da política. É a partir dessa postura que nos aproximamos da experiência comunitária da Pastoral, com o objetivo de analisar quando essa presença cotidiana se torna política por engendrar outras práticas de saúde, que não aquelas hoje hegemônicas. Construções que ganham força e corpo, colocando-se como possibilidade de transformação de nossas referências e ações no campo da saúde, ainda que não passem pelos caminhos institucionais de deliberação e intervenção nas políticas públicas.

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4 O número de questionários aplicados foi determinado em amostragem aleatória, definida pela soma do total de usuários atendidos em cada farmácia no período de um dia.


Quanto a isso, cabe destacar que a fitoterapia ocupa lugar central no trabalho desenvolvido nas comunidades, mesmo não tendo expressão nos espaços político-institucionais que a Pastoral ocupa, como os Conselhos de Saúde. Embora seja uma atividade central para os grupos, a fitoterapia não é articulada direta e discursivamente pela Pastoral da Saúde ao objetivo de transformação da assistência nos serviços públicos. Apesar de termos observado esse aspecto, constatamos também que, por meio dela, se expressa o desejo de construção de uma outra referência de saúde, que consideramos política, apesar de não se ter afirmado institucionalmente. Isso porque, além de ter como efeito uma grande capacidade de mobilização, agregação e “contaminação” nos espaços onde tem sido praticada, essa referência de saúde incide diretamente nos dispositivos de poder que configuram a intervenção biomédica no corpo social. Com isso explicitamos que o político – neste estudo – não é delimitado pela esfera estatal, tampouco pela referência partidária. Ao contrário, ainda que perpassando e constituindo esses territórios, o plano político remete, sobretudo, aos dispositivos de poder centrais à constituição de nossas realidades; aos dispositivos que, como indica Foucault (1988), produzem verdades e forjam normalidades, naturalizadas em suas implicações sociohistóricas. Por intermédio desse olhar, o fazer cotidiano do movimento torna-se político, ao incidir como estratégia ou artifício coletivo de problematização, ou mesmo visualização, do exercício de poder característico desses dispositivos no campo da saúde. Campo que tem, nos efeitos biopolíticos do saber e da prática da moderna medicina científica, seus principais pontos de articulação e produção. Ao optar pela organização da dimensão comunitária em torno do saber popular sobre a fitoterapia, a Pastoral da Saúde estabelece uma contraposição - ainda que não enunciada - às práticas hegemônicas do setor. Em função disso, propusemos analisar sua experiência nas comunidades, naquilo em que ela possa indicar ou expressar movimentos de constituição do direito à saúde, para além de sua legalidade jurídica. Constituição política do direito à saúde por meio da vida comum, dos desejos que a movem, dos obstáculos que a circunscrevem. Guiados por esses objetivos, identificamos três aspectos da dimensão comunitária que, a nosso ver, concorrem para a afirmação de outras práticas de saúde. São eles: o recurso à fitoterapia, as relações de cuidado e a rede de vínculos sociais baseados na solidariedade.

A busca pela fitoterapia A fitoterapia é um trabalho relativamente recente, que começou na Arquidiocese de Vitória (que inclui os dois municípios estudados) a partir de meados da década de 1990, surgindo e organizandose em épocas diferentes nas paróquias. As atividades são articuladas em torno das “farmácias comunitárias” que, apesar das especificidades locais, são basicamente parecidas. Nas atividades das farmácias, o aspecto mais notório é a grande difusão de suas práticas e seu crescimento acentuado nas comunidades. Os grupos que se formam se expandem rapidamente e se consolidam, influenciando a formação de outros em localidades próximas. A impressão que se tem ao se aproximar é que elas possuem um movimento de espalhar-se, ao mesmo tempo invisíveis e muito presentes. Quanto a isso, percebemos que o crescimento do trabalho desenvolvido com as plantas medicinais, em grande parte, se deve ao fato de se apresentar e se afirmar como uma alternativa à referência biomédica de saúde. Alternativa em grande medida inexistente nos serviços de saúde, tanto públicos, quanto privados. Na tentativa de esclarecermos os principais aspectos vinculados à procura por assistência na Pastoral, foi aplicado um questionário nos usuários dos grupos estudados. A amostra foi constituída de modo aleatório, consistindo no número de pessoas atendidas em um dia de trabalho de cada uma das farmácias, perfazendo um total de 87 usuários. Na enquete aplicada, além dos dados de caracterização sociológica (sexo, idade e escolaridade) as questões incluíram como haviam sabido do trabalho, o motivo da procura e o que esperavam (caso fosse sua primeira vez) ou como o avaliavam. Ressaltamos o caráter exploratório do instrumento, em relação ao qual importa, sobretudo, a expressividade dos enunciados coletados.

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Os dados relativos à identificação da população indicaram que a Pastoral da Saúde é buscada majoritariamente por pessoas do sexo feminino, que representaram 85,1% da amostra. Essa relação pode ser ainda reforçada pelo fato de que essas mulheres, e também os homens que buscaram a Pastoral, correspondiam, em sua maioria (68,9%), à faixa etária entre trinta e 59 anos, na qual as incumbências relativas à vida familiar são acentuadas. Nesse sentido, observamos que várias pessoas abordadas estavam buscando remédios para seus filhos, cônjuges ou parentes. Além disso, não foram entrevistados sujeitos com idade inferior a vinte anos e apenas 10,4 % da amostra pertenciam à faixa etária entre vinte e 29 anos, sendo que 20,7% possuíam sessenta anos ou mais. A respeito dos níveis de escolaridade, observamos uma maior proporção de pessoas com Ensino Fundamental (incompleto, 29,9%; e concluído 10,3%) seguida por aquelas com Ensino Médio (completo, 35,6% e incompleto, 4,6%). Destacamos, ademais, a acentuada relação de pessoas com Ensino Superior Completo ou em curso (11,5%), enquanto 8,1% dos entrevistados não possuíam instrução formal. Quanto aos argumentos levantados acerca dos motivos que os levaram a procurar a Pastoral, percebemos que, se, por um lado, a procura pela fitoterapia se associa claramente à dificuldade de acesso ao tratamento tradicional especialmente no tocante aos medicamentos alopáticos, muito caros para grande parte da população -, por outro, verificamos que sua busca (mesmo quando há o problema do acesso), em grande medida, é marcada pelo desejo de uma outra assistência, de uma outra prática e concepção de saúde. Nesse sentido, constatamos que, enquanto 18,5% das razões apontadas indicam dificuldade de acesso a serviços, ou, sobretudo, à medicação alopática, 51,9 % dos entrevistados revelaram uma opção afirmativa pela fitoterapia, dos quais apenas uma minoria associou-a à facilidade de acesso (7,1%), ou a um recurso auxiliar à alopatia (5,4%). Dentre os demais argumentos levantados acerca da opção positiva pela fitoterapia, 17,9% referiam-se diretamente à eficácia do tratamento: “eu me sinto muito bem com o tratamento das ervas, prefiro vir aqui do que no médico, porque toda a vida gostei de remédio natural”; ou ainda, “remédio natural não tem melhor”; “a medicina natural tem mais facilidade de tratar” (usuários da Pastoral da Saúde)5. A importância da noção de “remédio natural” associada às práticas da Pastoral emerge quando constatamos que 25% das pessoas que revelaram uma opção afirmativa em sua busca, justificaram prioritariamente sua escolha em função das referidas características naturais, diretamente associadas ao fato de não redundarem em danos à saúde. Nesse sentido, foram feitas afirmações como: “porque é tudo natural, é melhor, não agride o organismo”; “os remédios são naturais, são bons e não fazem mal à saúde”; “gostei dos remédios porque são naturais e não fazem mal para o intestino”; “o remédio natural é bem melhor do que o com química” (usuários da Pastoral da Saúde). Nessas falas encontramos, mesmo que muitas vezes implícita, uma contraposição com as formas convencionais de assistência à saúde. Contraposição essa que chegou a ser claramente explicitada por 29,6% das justificativas dadas para a procura pela Pastoral, elaborada por meio de diferentes elementos de rejeição à assistência usualmente prestada no campo da saúde. Dentre esses argumentos, 65,6% baseavam-se diretamente em sua nãoresolutividade. Eu preferi fazer tratamento natural porque estou enjoada de tomar remédio e não ver resultado.

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5 As falas dos usuários da Pastoral da Saúde referem-se às questões abertas do questionário mencionado, motivo pelo qual não se encontram identificadas separadamente. Ressaltamos a opção metodológica de analisar o conteúdo dos enunciados que expressam.


Eu vim porque estou com muito problema, tomando muito remédio, gastando muito dinheiro e não estou melhorando. A minha filha estava com plaqueta baixa, não melhorava com nada e o médico quis tirar o baço dela. Eu não deixei e procurei tratamento aqui [...] ela estabilizou [...] achei o tratamento ótimo. (Usuários da Pastoral da Saúde)

Além das explicações vinculadas à não-resolutividade da assistência a que se teve acesso anteriormente, os efeitos colaterais desses tratamentos foram citados como sendo o motivo de sua rejeição por 18,8% dos argumentos relacionados nessa categoria, justificando a procura por práticas alternativas de saúde:“porque os remédios são naturais. Os remédios de farmácia você toma para uma coisa, prejudica outra”; “eu espero que o tratamento não faça agressão para o corpo, porque eu estou parando de tomar os remédios tradicionais porque eles afetam o meu corpo”. À parte os argumentos relacionados à resolutividade dos tratamentos tradicionais e aos seus efeitos colaterais, 6,2% das falas sobre sua rejeição apontaram para a forma como é concretizado o atendimento: “eu estava com depressão, um monte de problemas. Antes tinha ido a médicos, mas eles só passaram comprimidos”; “eu sou da associação de funcionários, mas como o atendimento estava péssimo, e eu tenho muita fé com remédios de ervas, eu resolvi procurar a Pastoral”. Como pudemos observar, apenas uma parcela minoritária das explicações dadas (18,5%) recorreu diretamente à falta de acesso aos serviços de saúde para justificar suas demandas à Pastoral e, mesmo assim, 45% delas se fizeram acompanhar dos demais motivos mencionados. A relação entre os dados obtidos e a expressividade dos temas que trouxeram indica que, mais que a falta de acesso aos serviços de saúde, a busca pela Pastoral expressa um desejo afirmativo de outras concepções e práticas de saúde diversas das que hoje são hegemônicas. Nesse sentido, expressa, fundamentalmente, uma escolha, uma tomada de posição. É o que constatamos quando atentamos para o fato de que os motivos acima discutidos, sobre a procura pelo movimento, fizeram com que muitas pessoas permanecessem como agentes de Pastoral depois de um contato inicial como usuárias. Esse aspecto está diretamente vinculado ao seu intenso crescimento nas comunidades, sendo explicado, em grande parte, pela aproximação do saber sobre as plantas, que permite estabelecer outra relação com o corpo, com sua saúde. Imaginamos que as características “naturais” do saber e do fazer da Pastoral tenham se tornado veículo de construção de uma referência alternativa de saúde que explicita, ainda que de forma não articulada, os mecanismos de exercício do poder biomédico. Poder erguido sobre a autoridade da ciência moderna, que proclama como seu o direito exclusivo sobre a saúde e, objetivamente, sobre os corpos, a despeito deles próprios. Um poder-saber que, mesmo sendo historicamente datado, procura apresentar-se como discurso natural, prática apolítica. Ao colocar-se como “um outro”, figura de alteridade à referência de saúde biomédica, as práticas da Pastoral possibilitam o conflito em torno da legitimidade exclusiva desse saber, de sua apresentação como verdade natural. Conflito que se constrói expondo sua artificialidade (“a medicina natural tem mais facilidade de tratar”), denunciando as relações de força e submissão que o sustentam. Analisemos, então, alguns aspectos nos quais as práticas e as concepções de saúde desse movimento social divergem e se contrapõem à biomedicina, configurando novas possibilidades de posicionamento político no campo da saúde.

Fronteiras e exclusões entre o saber técnico-científico da medicina moderna e as práticas “leigas” do saber popular A medicina moderna forjou-se ao longo dos últimos quatro séculos como “um discurso sobre objetividades, discurso que institui a doença e o corpo como temas de enunciados positivos, científicos” (Luz, 1988, p.92). Saber que tem por objeto “a observação, a descrição e classificação COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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mais a busca de ‘causas eficientes’ (explicação em termos de antecedente-conseqüente) das doenças no corpo humano” (p.89). Desse modo, tornando o corpo objeto do conhecimento científico e as entidades mórbidas categoria central de seu saber sobre a saúde, a medicina se organiza como uma ciência das doenças que, excluindo a vida de seu horizonte epistemológico, converte a saúde numa “ausência de patologia”, a cura em “cessação de sintomas” (Luz, 1988). Ao contrário, a Pastoral procura trabalhar com uma referência afirmativa de saúde, não centralizada na categoria de doença. A saúde não é definida por meio da doença, sendo apreendida essencialmente como “a afirmação da vida” (Barchifontaine, 1993, p.45). Estar bem é saúde, alimentar-se é saúde, solidarizar-se é saúde, uma conversa é saúde, cuidar é saúde; enquanto, por outro lado, “doença é coisa de médico”. Nessa associação, as práticas de saúde não dizem respeito à doença ou ao corpo-objeto, pois a orientação dada pelos textos de referência do movimento é não compreendê-las como direcionadas ao tratamento da doença, mas sim da pessoa em desequilíbrio. A busca por saúde (e não pela cura de doenças), que caracteriza o trabalho da Pastoral, implica o compartilhamento de um saber que possibilite às pessoas aprenderem a cuidar-se e a decidir como fazê-lo. Em relação a isso, as práticas contrastam intensamente com o repertório de ações da medicina moderna, que historicamente procurou monopolizar os atos médicos e reforçar sua autoridade, colocando sobre sua jurisdição diversos campos antes remetidos ao arbítrio individual (Boltanski, 1984). Uma racionalidade cuja viabilidade social depende de um exercício de poder marcado pela submissão, em relação ao qual o outro deve ser modesto, confiante, ingênuo e conformado, pois o poder médico, que da mesma maneira que o poder religioso, sempre teme ver uma autoridade concorrente levantar-se contra ele, só pode ser plenamente exercido fazendo de seus sacerdotes os detentores de segredos inacessíveis aos profanos. (Boltanski, 1984, p.47)

Como efeito dessas práticas, a doença e até mesmo o corpo, suas sensações, memórias e desejos são expropriados do “paciente” ao se converterem em objeto da intervenção médica. Os objetivos e parâmetros diversos de ambas as experiências são mais bem delimitados quando atentamos para o fato de que, desfocando-se da terapêutica medicamentosa característica da biomedicina, as ações da Pastoral procuram priorizar as estratégias voltadas para orientação, prevenção e promoção de saúde: “As plantas medicinais, a fitoterapia, ela está dentro da Pastoral da Saúde. Ela surgiu com a dimensão comunitária. A fitoterapia, ela é um resgate popular do nosso povo” (Coordenadora da Pastoral da Saúde). A concretização dos objetivos da Pastoral é encaminhada por meio da opção pelas estratégias simples, pelo saber comum, e não pela sofisticação tecnológica. Nesse posicionamento percebemos a clara intenção de demarcar uma diferenciação frente à prática biomédica, cujo imaginário científico é calcado numa “visão teleológica, orientada pelo progresso tecnológico e pelo desafio do domínio sobre a doença e a morte” (Ferla, 2002, p.334). Em relação ao conjunto dessas comparações, talvez a que produza maiores efeitos sobre o exercício político do saber-poder médico seja a característica central do trabalho concretizado pela Pastoral: ele não pressupõe, nem requer a especialização técnica, a centralização do saber nas mãos de um especialista. Ao contrário da biomedicina, marcada pela dependência extrema para com seu agente nuclear, o médico, cuja capacitação técnica é prerrogativa de sua existência, as atividades da Pastoral se organizam por intermédio da sistematização e coletivização do saber popular sobre as plantas. Foi-se percebendo essa riqueza que as pessoas tinham de conhecimentos sobre as plantas medicinais, e aí a coisa começou a brotar, a brotar, porque, nós percebemos o quê? Que a dona Maria, lá da comunidade, uma pessoa simples lá da comunidade, que ela tinha uma sabedoria sobre as plantas medicinais impressionante. Uma coisa impressionante o que ela tinha e ninguém valorizava, né? Por causa da modernidade de hoje, o que vale hoje o que que é? São os remédios de farmácia.[...] é o exame caro, é o hospital caro, é tudo caro, e não se

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valoriza aquilo que é simples, o que vem do povo. Foi-se descobrindo, dentro da dimensão comunitária, essa questão do cuidado, e da saúde com as plantas medicinais. E a coisa foi crescendo, crescendo, foi-se descobrindo e as pessoas foram aprendendo mais ainda a conhecer as plantas, a usar as plantas, a como usar as plantas, usar com prudência. (coordenadora da Pastoral da Saúde de Vila Velha)

A análise feita sobre os aspectos com base nos quais a Pastoral se contrapõe às práticas de saúde hegemônicas não tem por finalidade assumir sua negação ou postular uma idealização das atividades do movimento. Ao contrário, interessa-nos, de fato, produzir visibilidade para essas experiências, na medida em que essas características podem se tornar artefato político de problematização dos dispositivos de poder que conformam contemporaneamente o mundo da saúde. Nesse sentido, não nos importa uma discussão sobre a comprovação científica de sua eficácia, ou qualquer outro modo de averiguação técnica de seus efeitos. Nossa perspectiva é, em verdade, pensá-las em seus efeitos biopolíticos, uma vez que produzem um fazer e um saber sobre a vida, que incidem nos dispositivos do saber-poder biomédico, permitindo, em nossa análise, a expressão e produção do desejo social de outras formas de saúde, que não aquelas hoje hegemônicas. Fazem-no, especialmente, ao evidenciar a parcialidade sociohistórica desse saber que se legitima por meio de um discurso que o pretende alçar ao lugar de verdade natural. Ao expor sua artificialidade, suas restrições quanto à resolutividade almejada, ao contrapor o discurso biomédico ao saber comum sobre as plantas, entre outros aspectos, as práticas da Pastoral despertam um certo estranhamento frente a um universo - da saúde - condicionado pelo poder excludente do saber hegemônico. Saber cuja predominância foi construída com o combate e eliminação da razão médica, de “categorias, conceitos e teorias divergentes e concorrentes, através de estratégias de produção de discursos e políticas sociais” (Luz, 1988, p.7). Nesse jogo de forças, a medicina moderna não apenas produziu certas relações sociais, como reproduziu outras existentes, por meio do combate, da desautorização e do silenciamento de outras práticas e discursos dissonantes. Desse modo, orquestrou o campo da saúde instituindo um discurso natural sobre uma realidade social: o corpo do homem, seu sofrimento, sua morte, através da doença. Tanto mais social na medida em que o discurso naturalista sobre o corpo doente (corpo individual ou corpo social) é político em seus efeitos, contribuindo para a ordenação social e econômica de indivíduos e classes sociais na história moderna. (Luz, 1988, p.94)

Ao colocar-se como um outro em relação a tais práticas, as atividades da Pastoral adquirem certa ressonância, que pensamos ser estratégica à constituição política do direito à saúde, já que o apresentam não apenas como uma forma de assegurar ou ampliar a assistência hoje existente, mas também como o desejo de uma “saúde-outra”, de um outro saber-fazer sobre a vida e suas formas de adoecimento e sofrimento. Posição afirmativa erguida, inclusive, na construção de uma relação diversa entre os homens (não-pacientes), relação cujos efeitos biopolíticos discutiremos no tópico seguinte.

As relações de cuidado-acolhimento nas ações da Pastoral da Saúde Em sua conceituação foucaultiana, o termo “biopolítica” é apresentado como relativo aos mecanismos de poder investidos no corpo-espécie, nos processos biológicos de conjuntos específicos da vida - como a morte, o nascimento, a produção e a doença (Foucault, 2002). Nesse sentido, enquanto os mecanismos de poder disciplinar incidem sobre o corpo-homem, a biopolítica consiste numa “tecnologia em que os corpos são recolocados no interior dos processos biológicos de conjunto” (Foucault, 2002, p.297). Como acentua Lazzarato (1998), ambas as formas de exercício de poder se referem à multiplicidade dos homens, seja como corpo-indivíduo, seja como população-espécie.

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Em nossa análise, é nessa perspectiva do conceito de biopolítica que as relações de cuidado construídas no trabalho da Pastoral da Saúde ganham densidade política. Isso porque, ao desfocar as práticas de saúde de sua finalidade curativa, voltando-as para a dimensão do acolhimento, essas atividades produzem não apenas uma qualidade diversa de ação de saúde, mas também um espaço aberto para outras relações de subjetivação, em que - diferentemente das práticas hegemônicas da medicina moderna - o outro de sua intervenção não é aquele “objetualizado e passivo, que recebe ações autoritárias e prescritivas, destinadas à sua ‘qualificação’ com vistas ao desenvolvimento da sociedade” (Ferla, 2002, p.60). Como nos coloca o autor, essas práticas da medicina moderna se caracterizam pelo fato de que, nessa relação fundada no posicionamento autoritário frente ao outro-paciente, a ação técnica é deslocada do contexto concreto em que as pessoas vivem, quer enquanto elemento explicativo para a sua saúde - [...] quer enquanto possibilidade de intervenção para a melhoria da saúde das pessoas - a intervenção ‘efetiva’ está na prescrição realizada, que medica o corpo (constituído como um conjunto de órgãos). (Ferla, 2002, p.60)

Relação essa em que não cabe a dimensão existencial do doente, de seu adoecimento e de suas condições materiais de vida. Um vínculo pautado pela recusa em compartilhar e transmitir os princípios médicos que fundamentam tais ordens e prescrições; e que, ao negar a autonomia do outro, procurando reduzi-lo a um usuário racional e conforme, concretiza-se por meio de uma distância autoritária (Boltanski, 1984). Substituindo o ideal da cura pela referência de um cuidado subjetivado, as ações da Pastoral tornam a relação engendrada mais importante do que o procedimento técnico empregado. Os vínculos que com isso se constroem expressam possibilidades de contato exteriores às relações biomédicas de cuidado, produzindo visibilidade e estranhamento sobre os efeitos resultantes da objetificação do outro que a caracteriza. Quanto a isso, diversos foram os depoimentos que ressaltaram a centralidade do acolhimento nas práticas da Pastoral. Tem ajudado muita gente. É muito acolhedor, as pessoas tratam muito bem, dão atenção, e isso cativa. Eu gosto muito do atendimento, do carinho, das pessoas. A pessoa está presente quando você precisa, eu acho isso muito importante. Eu gostei de tudo. Lá era só remédio, aqui só uma conversa já ajudou. Gostei da maneira de falar, do interesse delas em conversar. Eu gostei em geral. (Usuários da Pastoral da Saúde)

Houve, inclusive, algumas falas em que é possível observar certo espanto positivo com a forma não-hierarquizada do contato empreendido. Nesses casos, destacou-se repetidamente a dissociação entre a assistência dada e uma preocupação com retorno financeiro, indicando que, na percepção de muitos entrevistados, os problemas dos serviços de saúde a que tiveram acesso anteriormente estão diretamente vinculados à sua mercantilização. O que é especial aqui é o carinho. Eles não olham se tem dinheiro ou não, nem religião; Eu me senti bem melhor. Gostei principalmente porque elas tratam muito bem, sem discriminação. Todo mundo é igual. Eu acho que as pessoas são carismáticas porque agem mais com o coração do que com interesse material. (Usuários da Pastoral da Saúde)

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Essas características, encontradas em todos os grupos pesquisados e confirmadas pela enquetes realizada, não são ocasionais e configuram, na verdade, o cerne das atividades desenvolvidas pelo movimento. Nesse sentido, observamos que, no Congresso Estadual, a idéia do cuidado foi claramente apresentada como a palavra-chave do trabalho Pastoral, meta que deve se inspirar “na forma como Cristo ensinou a cuidar da vida”. Sendo a vida associada diretamente ao respeito ao outro e a noção de cuidado vinculada a ter cuidados com o outro, ver sua situação; compadecer-se; aproximar-se; incutir força interior e acompanhar. Nos depoimentos, percebe-se como, nas atividades da Pastoral, a relação com o outro, o respeito e a confiança que se constroem são o centro do trabalho dos agentes, instrumento e meta de sua intervenção. Essa forma de organização de ações pressupõe uma grande disponibilidade para o contato humano, para o estabelecimento de uma relação única, pessoal e não-hierarquizada. Uma relação em que saúde também significa desejos, histórias e problemas pessoais, singularidades. Em que o protocolo de procedimentos e exames é substituído pelo contato, pela percepção e compreensão do outro. Há a percepção de que as práticas de saúde hegemônicas nos serviços de assistência, especialmente os públicos, descaracterizam essa relação de “ser humano para ser humano”. Ao dizer que “parece que a parte humana da pessoa não entra na faculdade”, uma agente explicita de modo simples e surpreendente como o saber técnico-científico, fundamento da racionalidade biomédica, demanda a objetivação do outro, ao tornar-se instrumento central das práticas de saúde. Relação institucionalizada entre profissionais e “pacientes”, cujos efeitos políticos permanecem não enunciados e pouco problematizados nos serviços de saúde. Insistimos em salientar que não pretendemos proceder a uma idealização simplista das ações da Pastoral, como numa similitude tardia com o “bom selvagem”. Nosso objetivo, ao invés disso, é utilizá-las como analisador dessas relações ainda pouco transformadas, as quais, indubitavelmente, são determinantes na concretização cotidiana e material do direito à saúde – tanto o conquistado, como os infinitos desejados. A experiência e a postura dos agentes devem ser tomadas como uma evidência, um sinalizador para a necessidade de construção de possibilidades de expressão e acolhimento do sofrimento daqueles que buscam assistência, para a urgência quanto à desnaturalização do hegemônico vínculo profissional-usuário instituído, fundado na hierarquia da relação, no distanciamento autoritário e na objetivação do outro.

A Pastoral da Saúde: tecendo os fios de uma rede de solidariedade As pessoas e as comunidades resistem, de inúmeras maneiras, à extensão indeterminada do processo de objetivação do mundo, a partir do qual tudo pode transformar-se em bem ou produto (Godbout, 1999). É justamente isso o que mais sobressai no trabalho da Pastoral da Saúde: seu caráter de doação, sua resistência e recusa à mercantilização das trocas sociais. Recusa que atravessa desde as falas dos agentes ao depoimento dos usuários, que percebem, nos serviços de saúde (tanto públicos, como privados), a prevalência do critério monetário, a pouca importância do aspecto humano da relação. A busca por esse valor central confere sentido tanto para aqueles que nela trabalham, como para aqueles que a buscam, tornando as ações simples desse movimento um espaço comum diferenciado de produção de saúde. Podemos observar isso nas falas em que é ressaltada a ausência de interesses materiais com o serviço prestado, o fato de ser especial por se constituir como uma forma de doação: “Acho que as pessoas são carismáticas porque agem mais com o coração do que com interesse material”; “tudo o que é feito por amor é melhor”; “Achei ótimo, acho que é feito com muito amor, carinho, com muita vontade de ajudar as pessoas” (Usuários da Pastoral da Saúde). Nos relatos obtidos, é destacado o modo como o trabalho da Pastoral da Saúde se organiza por meio de vínculos sociais articulados numa rede de solidariedade, cujos principais aspectos observados relacionamos a seguir. . O trabalho é realizado basicamente com base em doações: de tempo, de saber, de plantas.

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NOVAS PRÁTICAS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DO DIREITO...

. Constitui-se como uma rede sem centralizações, articulada informalmente e com grande poder de difusão, o que percebemos ao constatar que seus usuários procedem em grande parte de outros bairros (46,0 %) e municípios (18,4 %), tendo tomado conhecimento do trabalho realizado, em sua maioria, por intermédio de terceiros (66,3 %), não pertencentes à comunidade católica da paróquia. Por meio desta, 28,1% são informados sobre a Pastoral, sendo que apenas 5,6 % das pessoas que a buscaram o fizeram em função de sua divulgação na mídia. . As farmácias são verdadeiros pontos comunitários de encontro. As pessoas se vêem freqüentemente, conversam, trocam experiências, ajudam-se mutuamente. Isso nos parece bastante peculiar numa sociedade em que o tempo é crescentemente acelerado e onde as trocas foram reduzidas fortemente ao consumo. . As pessoas envolvidas no trabalho relatam, com muita ênfase, o prazer de estarem reunidas, “a alegria de servir ao próximo”. Sentimentos que elas próprias associam diretamente a uma noção mais ampla de saúde. . O trabalho é decidido coletivamente em seu próprio exercício. Mesmo havendo uma coordenação em cada Pastoral, as questões cotidianas são decididas nos grupos. A coordenação age, sobretudo, como canal de interlocução com as outras pastorais e com a coordenação arquidiocesana. . A forma de organização do trabalho da Pastoral da Saúde tem grande poder de expansão; vêm surgindo novas comunidades, sendo notório o crescimento de quase todas as existentes. É interessante ressaltar que essa característica não se deve a ações centralizadas das coordenações, mas a demandas das próprias comunidades. Nessa medida, imaginamos que a Pastoral da Saúde vem dar forma e expressão a um desejo coletivo de outras referências, tanto comunitárias como de saúde. Outro fator que corrobora nossa hipótese é a constatação de que a Igreja Católica não consegue determinar as ações e o crescimento das pastorais. Há, inclusive, uma grande preocupação institucional a esse respeito, expressa recentemente pela CNBB numa carta redigida pela coordenação e assessoria técnico-científica nacionais da Pastoral da Saúde, que orienta sobre a utilização e grande disseminação das terapias alternativas.

Considerações finais Os principais pontos de análise apresentados indicam-nos como o fazer da Pastoral estabelece uma contraposição com os dispositivos e mecanismos de poder que configuram o campo da saúde. Dispositivos que, como nos mostra a leitura foucaultiana, têm no saber-poder da medicina moderna seu principal eixo de produção e reificação. Ainda que não estejam embasados numa formulação discursiva, ou num projeto coletivo estruturado com base nessas posições, as práticas da Pastoral geram estranhamentos, desnaturalizam a obviedade desse exercício de poder, sua legitimidade exclusiva sobre a saúde, sobre o corpo e, em grande medida, também sobre a vida. Nesse sentido, tornam-se artefato e instrumento político, mesmo - e, diríamos, principalmente - quando não estão inseridas nos caminhos institucionais da participação política. Ao engendrarem um saber e um fazer diverso sobre a vida, as práticas da Pastoral possibilitam a expressão de movimentações constituintes que, com base em sua imanência cotidiana, recolocam o plano do direito, expandindo-o na materialização do desejo social de outras formas de viver e construir saúde. São processos que não se encerram na juridicidade do direito, nem na formalidade das instituições, mas que expandem e constituem o direito à saúde. Assim, são inegavelmente políticos por definição, por mais que se insista em segregar da política o chamado “social” ou, em outros termos, o tempo e a vida.

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GUIZARDI, F.L.; PINHEIRO, R.


NOVAS PRÁTICAS SOCIAIS NA CONSTITUIÇÃO DO DIREITO...

GUIZARDI, F.L.; PINHEIRO, R. Nuevas prácticas sociales en la constitución del derecho a la salud: la experiencia de un movimiento fitoterapéutico comunitario. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.109-22, jan./mar. 2008. El objeto de este trabajo ha sido analizar como la experiencia de un movimiento popular se afirma como un campo de constitución del derecho a la salud. Para tanto, partimos de la problematización de la concepción de derecho a la salud usualmente referida en la reforma sanitaria brasileña, buscando afirmar las dimensiones constituyentes de los movimientos societarios. Nuestro objeto de estudio fue la experiencia de las farmacias fitoterapéuticas de la Pastoral de la Salud, en las ciudades de Vitória e Vila Velha, estado de Espírito Santo, Brasil. Como resultado, identificamos tres aspectos de la experiencia comunitaria de ese movimiento que contribuyen para la afirmación de otras prácticas y sentidos de salud. Son ellos: el recurso a la fitoterapia, las relaciones de cuidado y la red de vínculos sociales basados en la solidariedad. Por medio de ellos observamos que el hacer de la Pastoral de la Salud establece una contraposición con los dispositivos y mecanismos de poder que configuran el campo de la salud, abriendo nuevas posibilidades de constitución de derechos de ciudadanía.

Palabras clave: Derecho a la salud. Fitoterapia. Movimientos populares en salud.

Recebido em 13/10/06. Aprovado em 10/09/07.

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um diálogo possível?

Roberta Signorelli Ciuffo1 Victoria Maria Brant Ribeiro2

CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B. Brazilian Public Health System and medical training: possible dialog? Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.125-40, jan./mar. 2008.

This paper discusses the viability of constructing a dialog between medical training and the Brazilian Public Health System (SUS), while emphasizing the principle of integral care as the line structuring this training. The possibilities for such dialog were investigated by analyzing the words of teachers and students in the medical courses at the State University of Rio de Janeiro (UERJ) and the Federal University of Juiz de Fora (UFJF), from focal groups. The results showed that the teachers in these training institutions were aware of the importance of the social commitment that the profession demands, with the changes resulting from this, although some teachers demonstrated resistance towards taking on new challenges. Among the students, discontent with their training prevailed, although there were indications of breaking with the traditional paradigms of medical training and development of projects with health services and the community.

Este artigo discute a viabilidade da construção de um diálogo entre a formação dos médicos e o Sistema Único de Saúde (SUS), enfatizando o princípio de integralidade como eixo estruturante dessa formação. A possibilidade ou não desse diálogo verificou-se na análise das falas de professores e estudantes dos cursos de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) em grupos focais. Os resultados revelam a consciência dos professores das instituições formadoras sobre a importância do compromisso social que a profissão exige, com as decorrentes mudanças, embora alguns demonstrem resistência para enfrentar os novos desafios. Quanto aos estudantes, o descontentamento com a formação é preponderante, embora existam indícios de ruptura com os tradicionais paradigmas da formação médica e desenvolvimento de projetos com os serviços e a comunidade.

Key words: Medical training. Full care. Curricular innovation. Healthcare skills.

Palavras-chave: Formação dos médicos. Integralidade no cuidado. Inovação curricular. Competência em saúde.

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* Elaborado com base em Ciuffo, 2005. 1 Psicóloga. Programa Municipal de DST/Aids, Secretaria Municipal de Saúde, Saquarema. Rua dos Mariscos, 478, casa 4 Itaúna Saquarema RJ 28.990-000 robertasig@click21.com.br 2 Pedagoga. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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Sistema Único de Saúde e a formação dos médicos:


SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A FORMAÇÃO ...

Introdução Em evidência no cenário das políticas públicas na área de saúde, a formação dos profissionais de saúde (aqui, especificamente, a formação médica) representa terreno árido pelos questionamentos e conflitos que suscita e pelas transformações que requer. Representando espaços privilegiados de produção de conhecimento e discussão, as escolas ainda refletem e reproduzem a lógica fragmentada própria do cientificismo, deixando de potencializar o que há de mais rico no campo da educação: as relações possíveis de serem desenvolvidas entre professor e estudante que, mais tarde, revertem-se nas relações estabelecidas entre os profissionais e seus pacientes, ou entre quem cuida e quem é cuidado. Retrato, embora parcial, do descaso com a área das relações interpessoais, vem sendo expresso, entre outros resultados, nos baixos índices de resolutividade do Sistema Único de Saúde (SUS), na insatisfação dos usuários e de muitos profissionais dos serviços e na utilização de procedimentos de alto custo, muitas vezes, desnecessários. Pode-se supor que, como garantido constitucionalmente, o SUS como ordenador de recursos humanos na área de saúde (Art. n. 200) ainda se restrinje à dimensão teórica. Reconhecê-lo como ordenador da formação exige uma profunda reestruturação nos currículos de Medicina, especificamente, a ser realizada por meio de sucessivas e permanentes inovações curriculares, orientadas pelo princípio da integralidade – noção complexa que articula concepções e práticas de saúde - e pela revisão do processo de trabalho e de gestão em saúde. Para isso, fazem-se necessárias as rupturas do paradigma biomédico, que ainda sustenta as práticas em saúde e grande parte dos currículos de Medicina no Brasil; e da concepção simplista de que “ter saúde é não ter doença”, o que implica retirar o foco das ações assistencialistas e entender que o cuidado3, e não mais a assistência4, deve conjugar ações de prevenção de doenças, promoção da saúde, além da cura e da reabilitação - todas exigindo pluralidade de saberes - e o trabalho em equipe interdisciplinar e multiprofissional, preferencialmente em rede. No entanto, essas ações não se fazem por si só; envolvem uma série de procedimentos e decisões que dependem do poder público, dos gestores dos serviços, da comunidade e, em especial, do aparelho formador. De que maneira, então, os cursos da área de saúde podem se organizar para formar um profissional capaz de trabalhar sob esse novo paradigma? As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos da área de saúde, homologadas em 20015 e resultantes de um processo de discussão entre representantes do governo, professores, estudantes, pró-reitores e diretores de escolas, entre outros, destinam-se a orientar a formação desses profissionais, tendo como base conhecimentos gerais e ênfase no compromisso social. Isso implica repensar o papel da escola que, até então, pouco ou quase nada dialogava com a sociedade. Se tomadas como um patamar para inovação, essas diretrizes representam, sem dúvida, uma tarefa de vulto para as instituições de ensino superior, pelos novos elementos que introduzem, e que apontam formas de organização e gestão dos processos de ensino até então inéditos na educação de nível superior no Brasil. Propõem-se a orientar os cursos de Medicina, entre outros, para inovar seus currículos de forma que estes se articulem com as necessidades da sociedade brasileira; buscam o “diálogo” dos projetos curriculares com o contexto social do qual a universidade faz parte; objetivam orientar a formação

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3 Neste artigo, adotamos a noção de “cuidado” de Lacerda e Valla (2004, p.95,99): “uma atitude interativa que inclui o envolvimento e o relacionamento entre partes, compreendendo acolhimento, escuta do sujeito, respeito pelo seu sofrimento e pelas suas histórias de vida“. Embora a relação entre cuidador e a pessoa que recebe o cuidado seja assimétrica, devem estar presentes a interação, a troca e o respeito pelos diferentes saberes envolvidos. 4 Em contraposição ao “cuidado em saúde”, a “assistência à saúde” pode ser compreendida como o conjunto de intervenções necessárias para se responder a uma queixa, a um sintoma, com base nos dispositivos presentes no sistema de saúde. Não implica, necessariamente, o estabelecimento de vínculos entre o profissional e o usuário do sistema. 5 Em 2001, no Brasil, foram homologadas as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), para diversos cursos de graduação, iniciando com os da saúde, mais especificamente, Medicina, Enfermagem e Nutrição, definidas na primeira Resolução do CNE/MEC, n° 04, de 07/ 11/2001.


6 Estudantes e professores das duas instituições são identificados pelos códigos: EstUERJ, ProfUERJ, EstUFJF, ProfUFJF.

de profissionais que sejam capazes de atuar nos diferentes níveis de atenção à saúde, sendo competentes para trabalhar, sobretudo, na atenção primária e com responsabilidade social. Este é um fato novo que, diferentemente do convencionado, requer alto nível de complexidade técnica. No entanto, há um longo caminho a percorrer, no qual as universidades exercem papel relevante como um dos agentes desse processo. As escolas médicas encontram-se, em sua maioria, reproduzindo uma formação dicotomizada, expressa na organização curricular disciplinar, fragmentada e focada em especialidades, tendo como campo predominante de prática o hospital universitário, enfatizando práticas em saúde procedimento-centradas e desconsiderando as usuário-centradas. Neste artigo, são apresentadas e discutidas as concepções de saúde e educação expressas por professores e estudantes dos cursos de Medicina da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), base sobre a qual acreditamos ser possível analisar a viabilidade do diálogo entre os princípios do SUS e a formação médica. A pesquisa foi desenvolvida nessas universidades - instituições selecionadas em virtude da expressão de seus cursos de Medicina no cenário educacional por serem públicas e bem-avaliadas pelo sistema nacional de avaliação das IES, embora em estágios diferentes no processo de inovação e com um diferencial de acréscimo: uma delas recebeu auxílio do Programa de incentivos às mudanças curriculares para as escolas médicas - PROMED - e a outra, não. A escolha pretendeu, exclusivamente, observar se existem diferenças significativas nas iniciativas de inovação no currículo médico, ressaltando que, independentemente do auxílio do PROMED, todos os cursos da área de saúde tinham um prazo de três anos para instituir mudanças em seu currículo, de acordo com as DCN, a partir da data de sua homologação. Os sujeitos da pesquisa são professores e estudantes de Medicina das instituições citadas6, entrevistados pela técnica do Grupo Focal, que permite a observação da dinâmica interacional entre os participantes, ao mesmo tempo em que “dilui” e descentraliza o papel do pesquisador, na medida em que privilegia as interações, a espontaneidade e a coesão grupal, diferentemente do que acontece em entrevistas individuais. A análise da concepção de professores e estudantes a respeito da educação dos médicos, por meio da transcrição das falas dos grupos focais, exigiu a apropriação de categorias teóricas e conceitos para orientá-la, dada a complexidade do tema. A construção dessas categorias baseou-se no estudo de autores do campo da educação e da saúde, deixando-se aberta a possibilidade de se construírem outras categorias que complementassem a análise qualitativa no decorrer do processo. O estudo das inovações curriculares na formação dos profissionais de Medicina e sua relação com o princípio de integralidade do SUS, em tempos de DCN e PROMED, conferem ao termo competência importância fundamental para se compreenderem as inovações que são produzidas nos cursos de Medicina, por ser essa noção eixo estruturante das DCN. Neste estudo, ela é compreendida como a capacidade de os indivíduos mobilizarem suas potencialidades de forma integral, pertinentes a seu campo profissional, em contextos diversos, para resolverem um determinado problema. Isso supõe o desenvolvimento de um conjunto integrado de atributos que os habilitem a conviver em grupo, sensíveis às diferenças interpessoais, com capacidade para avaliar novas situações, enfrentando-as com criatividade. Acredita-se que a incorporação dessa noção nos currículos dos profissionais de Saúde,

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especialmente os de Medicina, representa uma ferramenta para a prática da integralidade no cuidado à saúde. Quanto à inovação curricular, que consiste em uma categoria em que se confundem e se imbricam também os conceitos de reforma, mudança e transformação, assumimos o significado de melhorias planejadas, duradouras, possíveis de serem medidas, o que leva a crer que a ação de inovar prepara a verdadeira transformação. É um processo que inclui a definição do objeto a se inovar e a construção das estratégias para inovar, sempre em estreita relação com o mundo. Por fim, a categoria integralidade - cuja amplitude de sentido inclui a concepção ampliada de saúde, a compreensão do Sistema de Saúde, a organização dos serviços, o trabalho em equipe interdisciplinar e a prática da intersetorialidade, além de ser um princípio e uma diretriz constitucionalmente definidos7 - completa o quadro teórico de análise.

Sistema Único de Saúde: o que as universidades têm a ver com isso? Embora a concepção flexneriana8 ainda seja hegemônica na formação médica, tendemos, hoje, à busca da integralidade no cuidado, baseada no conceito ampliado de saúde, tendo como conseqüência reformulações curriculares no ensino e iniciativas de mudanças nas políticas públicas desse campo. Tais iniciativas apontam, de certa forma, um abalo na hegemonia dessa concepção, mesmo não tendo sido convertidas, ainda, em inovações significativas nas práticas em saúde. Afinal, integrar o que há tempo se encontra fragmentado não é tarefa das mais simples. Podemos entender essa fragmentação como originada nos avanços tecnológicos e científicos e na mercantilização da Medicina que, reforçada pela organização econômica característica do capitalismo, atende mais aos anseios financeiros da indústria farmacêutica e de equipamentos do que às necessidades de saúde da população. Esses avanços produziram efeitos ambíguos: se, por um lado, possibilitaram a cura, o controle e a erradicação de doenças antes consideradas fatais, um melhor prognóstico para pacientes portadores de patologias incapacitantes, a detecção de doenças por exames cada vez mais elaborados e de alto nível de complexidade, resultando no aumento da expectativa de vida da população, por outro, dificultaram a manutenção do “encontro terapêutico” entre o médico e o sujeito que adoece. A incorporação tecnológica, ao deixar de contemplar as subjetividades, diluiu a responsabilidade pela assistência e dificultou o desenvolvimento de uma relação médico/paciente mais socialmente comprometida. Essa relação foi, gradativamente, substituída por prescrições, procedimentos, pedidos de exames e pareceres especializados. Ressalta-se, aqui, a influência que a economia de mercado exerceu sobre as relações estabelecidas entre sistema de saúde, profissional e usuário. A complexidade dessa influência certamente requer um aprofundamento do tema, o que extrapola os limites deste trabalho. No entanto, cumpre-nos chamar a atenção para o fato de que esse contexto econômico e o desenvolvimento científico e tecnológico se apresentam como fatores determinantes na crise da saúde, conforme observado em algumas declarações, no grupo focal, dos sujeitos sob investigação. A análise dessas determinações e de suas interfaces no campo da saúde merece, por si só, um estudo mais pormenorizado. Segundo Mendes (1999), para superarmos o paradigma flexneriano, 128

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7 No texto constitucional, a integralidade está expressa como “atendimento integral”.

8 As recomendações do relatório de Flexner (1910), que avaliou as escolas médicas americanas por encomenda do governo, influenciam até hoje os currículos de Medicina e têm, entre outras características, a ênfase na formação de especialistas, o que tem significado a exclusão dos fatores sociais, psicológicos, emocionais, entre outros, na compreensão do processo de adoecimento. Neste artigo, também utilizamos a expressão “paradigma flexneriano”, conforme Mendes (1999).


precisamos construir um novo, que permita dar conta da saúde, vista em sua positividade e como um processo que pode melhorar ou deteriorar conforme a ação de uma sociedade sobre os fatores que lhe são determinantes. Há, então, de se propor uma mudança de paradigma, o qual esse autor, fundamentado na teoria da produção social, chamou de “produção social da saúde”. Decorre daí a idéia de que, para além dos aspectos curativos, as práticas em saúde precisam focalizar os aspectos preventivos e de promoção, uma vez que a saúde é condicionada e determinada por fatores, tais como: alimentação, moradia, renda, transporte, saneamento básico, meio ambiente, educação, lazer e acesso aos bens e serviços essenciais - razão pela qual os níveis de saúde da população expressam o nível de organização econômica e social do país. Isso significa uma profunda transformação na forma de compreender a saúde, não mais entendida com base na unicausalidade do início do século XX, isto é, como ausência de doença. Assumida atualmente como um processo, essa concepção está expressa na Lei n° 8.080/90, que dispõe sobre as condições para que não só se efetivem ações integrais em saúde, como também garantam a organização e o funcionamento dos serviços (Brasil, 1990). Entretanto, a mudança nessa prática só será possível se incluirmos, na pauta de discussões, a concepção de saúde dos profissionais que atuam no sistema e a instrumentalização teórico-prática necessária para que esses profissionais possam desenvolver ações sanitárias além, é claro, do tratamento e da cura das enfermidades. Estamos nos referindo a uma visão de saúde coletiva em um país “doente”, sem investimentos e recursos nesta área, em que não há lugar para excessivo volume de procedimentos custosos e de baixo impacto para a saúde, e a presença de alto contingente de especialistas pressiona os custos com os serviços propedêuticos, tornando problemático o seu controle. O modelo biomédico, ao enfatizar a formação dos especialistas de forma dicotômica, na qual se separa o “bio” do “psi”, ou seja, o biológico da subjetividade, dificulta a compreensão integral do ser humano e de seu processo de adoecimento. Esse modelo, muitas vezes, contribui para a elevação dos custos com a saúde, ao formar profissionais que medicalizam queixas de ordem psicológica e/ou social; e para o agravamento da crise do setor, também vinculada à forma como está estruturada a graduação de Medicina e das outras profissões da área da saúde. Atualmente, o princípio da integralidade vem se constituindo como eixo norteador da educação em saúde, o que tem provocado inúmeras reflexões a respeito de como formar um profissional médico competente, chamando para o debate universidades, conselhos de saúde e serviços. Incorporado pelo campo educacional, o princípio implica, primeiramente, uma mudança de paradigma na concepção de saúde e, em seguida, a necessidade de integrar, no nível macro, serviços e universidade, no sentido de reorientar os cursos, buscando a relação dos conhecimentos teóricos e científicos com a realidade; e, no sentido micro, o currículo, as disciplinas, os docentes, o conteúdo com práticas pedagógicas dinâmicas que integrem estudantes e os reconheçam como sujeitos ativos de sua aprendizagem. Dessa forma, entendemos que a noção de competência, eixo estruturante das DCN, constitui uma ferramenta para a integralidade no cuidado e elemento-chave para reorientar o projeto e as práticas pedagógicas que sustentam o currículo. Um profissional competente pode ser considerado aquele que integra conhecimento teórico, posturas, valores, atributos, habilidades e consciência clara sobre os contextos social, político, econômico e cultural; sabe conviver em grupo e com diferenças interpessoais; seja capaz de avaliar novas situações e enfrentá-las com criatividade. Portanto, o princípio de integralidade e a noção de competência configuram-se como eixos complementares no que se refere à educação e à saúde. Com base nas declarações extraídas dos grupos focais, parece evidente, para alguns professores e estudantes, que a universidade possui um importante papel no redirecionamento das práticas vigentes, na medida em que é responsável pelo cuidado à saúde dispensado pelos profissionais que forma. No entanto, o estudo aponta que os métodos pedagógicos, muitas vezes, são incorporados pelos docentes, sem haver uma discussão político-pedagógica (o para quê); ou, em outros casos, há uma extensa discussão a respeito da mudança de paradigma referente ao processo saúde/doença, mas não há clareza de como as práticas pedagógicas podem acompanhar ou responder a esse novo paradigma. A nosso ver, essa é uma questão que deságua diretamente nas discussões sobre estrutura curricular e, mais especificamente, sobre o significado de currículo para docentes e estudantes de Medicina, de modo que se compreenda o direcionamento das reformas curriculares estimuladas, em

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parte, pelas políticas públicas no setor e, em outra, pelo reconhecido baixo impacto das ações em saúde. A concepção de currículo aqui sustentada apresenta-se como toda ação comunicativa realizada em espaços e ambientes de aprendizagem para formar sujeitos autônomos que se reconhecem como tal e têm a competência necessária e suficiente - tanto do ponto de vista da argumentação quanto do ponto de vista das atitudes e da compreensão do seu papel histórico-social -, para estabelecer relações de entendimento com os sujeitos com os quais convivem, relações essas que se destinam a um acordo consensualmente estabelecido. Termo polissêmico, currículo não pode ser compreendido desvinculado do contexto social, político, econômico e cultural. Como um projeto pedagógico, encontra-se intimamente ligado às concepções e ideologias de quem o elabora. A forma como este projeto é posto em prática também indica quais interesses e que sociedade pretende formar o grupo que o concebe. Neste estudo, ao nos referirmos a currículo, vamos além da concepção que o entende como um sistema de ações planejadas para a aquisição de conteúdos, ou como o caminho a ser percorrido pelo aluno para a aquisição de conhecimento tendo, nas disciplinas, a sua fonte e nos métodos didáticopedagógicos, a sua forma. O que está inscrito no currículo não é apenas informação, mas organização do conhecimento que corporifica formas diferentes de agir, sentir, falar e ver o mundo e o eu. Aprender informações no processo de escolarização é, também, aprender uma determinada maneira de agir conhecer, compreender e interpretar a realidade (Popkewitz, 1994). Nesse sentido, o currículo não está pronto nem dado; não está aprisionado em uma grade préconstruída com disciplinas e respectivas cargas horárias. Idealmente, deve ser continuamente construído e reinventado, com base em práticas pedagógicas sustentadas por crenças e valores compartilhados entre diretores, professores e estudantes, de acordo com a cultura em que estão imersos. Parece-nos claro, portanto, que a formação dos profissionais da saúde e o trabalho no âmbito do SUS devam ser indissociáveis e permanentemente próximos, para que os problemas enfrentados na realidade dos serviços revertam-se em objeto de análise nas aulas dos cursos e contribuam para reconstruir o campo teórico da educação em saúde. Aproximando-nos das diretrizes do SUS, não fica difícil perceber que o projeto de transformação da assistência à saúde da população brasileira foi concebido sem levar em consideração os atores que fariam o sistema funcionar. Por analogia: uma máquina com tecnologia de ponta e alta complexidade não funciona se não houver alguém capacitado para operá-la. Isso pode ser transcrito para a atual política de Saúde Pública: criou-se um Sistema Único de Saúde, mas os envolvidos em sua implantação, seu funcionamento e sua manutenção não se encontram comprometidos nem preparados para atuar nesse sistema, uma vez que as instituições formadoras não acompanharam, na prática, as mudanças decorrentes dessa nova orientação. Na teoria, é atribuída ao SUS a competência de ordenar a formação de recursos humanos na área de saúde, com base em um novo modelo que integre a formação teórica com a prática nos serviços. Ceccim & Ferla (2003) trazem os argumentos que nos permitem afirmar a íntima, necessária e urgente relação que a universidade deve estabelecer com o SUS, valendo-se, inclusive, das políticas públicas que vêm sendo implementadas e que garantem esta integração: O debate sobre a formação e o desenvolvimento na área de saúde como ação estratégica para a condução da agenda de renovação e reforma no setor saúde parte, portanto, do entendimento de que uma profunda reforma setorial, como uma profunda renovação das organizações de saúde, não se faz sem uma política de educação no setor. [...] Apesar de não restar dúvida de que um profundo processo de reformas não pode se fazer sem profundas alterações no perfil ético, técnico e institucional do pessoal que irá atuar [...], nenhuma reforma se fará sem alterar a qualidade das relações de cuidado à saúde, sob pena de aperfeiçoar-se a organização técnica do Sistema e não se gerar, nos usuários das ações e serviços ou na população, a sensação de cuidado [...]. (p.216-7)

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Inovação - um caminho para a transformação?

9 Bleger, citado por Silveira e Brant (2005), denominou “ensinagem” os momentos de ação em que ensino e aprendizagem, passos dialéticos e inseparáveis, solidariamente relacionados, se fundem, gerando um processo único em permanente movimento.

Parece haver um certo consenso entre os autores pesquisados sobre a urgência em reformular o currículo dos cursos para a saúde, com vistas a garantir um efetivo cuidado à população que busca atendimento, seja nos postos, clínicas e hospitais, seja no Programa de Saúde da Família (PSF). No entanto, o mesmo, não se pode dizer a respeito do entendimento de inovação curricular: há uma polaridade entre aqueles que acreditam em inovação como mudanças pontuais e superficiais e aqueles que a entendem como parte do processo de transformação. Almeida (1999) considera inovação como um plano de mudanças que inclui, também, reforma e transformação. Refere-se a alterações isoladas de conteúdos, cargas horárias, criação de novas disciplinas e revisão de processos didáticos, sem que haja qualquer tipo de alteração nas relações sociais entre os sujeitos envolvidos e questionamentos sobre a natureza do contrato da escola. A reforma é compreendida como o processo de constituição dos sujeitos, por meio da construção de espaços coletivos de reflexão, democratização do conhecimento, percepção de que os sujeitos têm possibilidade de ação real. Já transformação está ligada a mudanças na correlação de forças entre os diversos sujeitos e grupos dentro das instituições e entre elas, envolvendo: a) a essência do próprio processo de produção do conhecimento; b) a construção de novos paradigmas referentes aos modelos assistenciais, a intersetorialidade, a articulação estudo/trabalho, o controle social, determinando alterações de conteúdos e processos, e das relações técnicas, sociais e políticas entre os agentes. Dessa forma, fica clara a idéia do autor de que inovação corresponde a uma mudança superficial de formas e conteúdos e a transformação, uma mudança estrutural na maneira de conceber a educação, a saúde e os processos de ensinagem9, apontando a necessidade de uma análise crítica dos sujeitos envolvidos sobre a proposta pedagógica institucional. Já Feuerwerker (2002) compreende que o projeto de transformar a formação médica se faz pela construção do conhecimento, pela força acumulada em pequenas inovações, pela reflexão crítica sobre o cotidiano e sobre as experiências dos envolvidos nesse processo. No nosso entendimento, à inovação curricular correspondem as alterações que buscam construir novos processos de formação dos profissionais nas suas relações com a estrutura socioeconômica, envolvendo, nessas relações, outras, referentes aos conteúdos, processos e métodos de ensinagem. Inclui, portanto, alterações significativas no currículo, que podem se tornar o embrião de transformações importantes na relação universidade-escola-comunidade. No campo da educação em saúde, inovar assume também esse sentido. Para tanto, a escola precisa cumprir seu papel para além de atualizar conhecimentos: desenvolver no homem a competência de lidar com o novo e, desse modo, abrir suas lentes para olhar o mundo e ser sujeito das suas transformações. Articuladas essas visões de inovação àquela que assumimos e ao contexto atual, devemos ainda considerar a profunda mudança no modo de produção, o que tem determinado transformações nas relações sociais, econômicas e, sobretudo, políticas. Um profissional, hoje, precisa desenvolver competência para enfrentar essas relações em um mundo do trabalho globalizado, competitivo e desigual do ponto de vista da distribuição de renda, capital, status social e acesso à educação e à saúde. Logo, espera-se da escola que acompanhe pari passu as transformações constantes do mundo, não somente introduzindo

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inovações no currículo, como também, e sobretudo, mobilizando “corações e mentes” para inserção consciente nesses processos. Nesse sentido, a viabilidade de se produzirem inovações nos currículos de Medicina está diretamente ligada à concepção de mundo e de homem sustentada pelos atores do âmbito escolar e sua disponibilidade para o exercício da ação-reflexão-ação. Formar profissionais, tendo como eixo norteador as noções de integralidade e competência e a pretensão de inovar, pressupõe que gestores e docentes reconheçam os limites da ciência biomédica e comecem a trabalhar nas interfaces entre o saber médico e outros saberes que se comunicam com a saúde e que, embora desprezados, não são poucos. Para Feuerwerker (2002), no entanto, as principais tentativas de mudanças curriculares na educação médica brasileira esbarraram, fundamentalmente, em: concepções limitadas do que seria a mudança; inadequações dos cenários de prática aos objetivos pretendidos; baixa capacidade do núcleo coordenador da mudança para romper a lógica formal das disciplinas; falta de capacitação pedagógica do corpo docente e limitações graves de poder. A palavra de um estudante sinaliza um sintoma e, também, um desejo: as escolas continuam desvinculando teoria de prática, não consideram que a prática sedimenta e dá sentido à teoria, e correm o risco de inviabilizar o desenvolvimento de um profissional competente. Segundo afirma, as tentativas de integração parecem infrutíferas: Isto é o que estou vendo aqui: a maioria das aulas teóricas é desinteressante, são pouco didáticas, o professor diz que vai passar vídeo, passa um debate de fulano de tal, em que o fulano fala e fala e não chega a lugar algum, todo mundo fica com sono e ninguém vê nada, termina e não sabemos nem o que se estava debatendo. Outra coisa que vejo: temos umas três disciplinas que estão dando a mesma coisa, e elas não se relacionam. Você estuda uma coisa em uma disciplina e, quando vai estudar a outra, você vê que já estudou aquilo mesmo. E prática nessas disciplinas não se vê. (EstUFJF)

A aprendizagem em serviço é uma proposta de tomar os problemas da realidade como objeto da aprendizagem, da docência e da produção de conhecimentos, que se concretizariam como práticas articuladas, inscritas no mundo do trabalho - na “produção de serviços” e no mundo da vida - ou seja, na produção social da saúde (Feuerwerker, 2002). Percebemos, em muitas falas, o desconhecimento dos professores em relação ao como inovar; uma mistura de angústia e desconforto com impotência. Há o reconhecimento de que o mundo está mudando e de que a universidade precisa refletir essas mudanças em seu projeto pedagógico, a fim de formar um profissional que esteja preparado para enfrentar os desafios impostos pelo mundo da vida, que inclui o mundo do trabalho. Por outro lado, há também o não saber ao certo como produzir essas mudanças. No campo da educação médica, inovação acarreta mudanças das práticas hegemônicas por outras mais ajustadas às estratégias de Atenção Primária, que supõem: promoção da saúde e intersetorialidade, controle social e superação da dicotomia entre educação e trabalho. Implica também a discussão a respeito do que, de fato, a escola concebe como um profissional competente. São necessárias práticas curriculares que problematizem temas, que democratizem as relações entre professores e estudantes, que reforcem o arsenal do mundo da vida (conhecimentos, valores, experiências), desenvolvendo competências que aumentem o potencial crítico dos atores do processo de ensinagem para que compreendam e atuem criativamente nos mundos do trabalho e social. Docente e discente, sujeitos da pesquisa, indicam um entendimento de inovação que supera as mudanças pontuais e alcança a mudança de concepção, de idéia, de “pensamento” da escola. Além disso, compreendem que inovação está intimamente ligada ao projeto pedagógico e ao papel da escola em sua relação com a sociedade: São modificações, mudanças que você possa fazer, tanto na abordagem de como conseguir que esse aluno tenha os conhecimentos, a competência, as atitudes, as posturas, quer dizer, a

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forma como você administra isso em termos de métodos de ensino. Mas também uma mudança comportamental do próprio professor dentro da instituição em relação ao que ele quer e como vai fazer isso, lembrando que o aluno vê o seu professor como o seu modelo. Então, para mim, a inovação vai muito além de simples mudanças pedagógicas ou de simples integração curricular como vocês dizem. (...) Inovação é muito mais do que isso; inovação é uma mudança de concepção educacional da instituição no processo de formação. (ProfUFJF) Acho que, junto com a reforma, tem que estar reformando o pensamento da universidade; isso tem que ser um projeto claro dentro da universidade, que eu não vejo. (EstUERJ)

Competência: uma ferramenta para a integralidade no cuidado à saúde O termo competência vem ocupando espaço na reestruturação de práticas pedagógicas, porém sua compreensão está longe de ser consensual, podendo aí residir tanto sua força quanto sua fragilidade. Força, sim, pois tem suscitado inúmeras discussões, debates e reflexões, o que já indica o potencial intrínseco que o conceito traz no sentido da sua construção coletiva. No entanto, a falta de consenso pode levar à incorporação utilitária de seu significado por parte das instituições educacionais, governamentais e empresariais, e a um conseqüente esvaziamento de seu sentido transformador. Por sua polissemia, a noção de competência é compreendida de diferentes maneiras pelas diversas correntes e tendências que jogam sobre ela inúmeras interpretações. Sem pretender esgotar este estudo, selecionamos duas correntes que buscam explicar o significado do termo e os determinantes políticos e econômicos que se encontram presentes - de maneira, por vezes, velada - na sua compreensão. [...] esta polissemia se origina das diferentes visões teóricas que estão ancoradas em matrizes epistemológicas diversas e que expressam interesses, expectativas e aspirações dos diferentes sujeitos coletivos, que possuem propostas e estratégias sociais diferenciadas e buscam a hegemonia de seu projeto político. (Deluiz, 2001, p.23)

Deluiz (2001) reconhece e caracteriza quatro matrizes teórico-metodológicas referentes ao termo competência: a condutivista, a funcionalista, a construtivista e a crítico-emancipatória. Esta última considera a noção de competência como multidimensional, envolvendo aspectos que vão desde o plano individual aos sociocultural, situacional e processual, não podendo ser concebida como mero desempenho; é uma construção balizada por parâmetros socioculturais e históricos. Em outra dimensão, Markert (2000) afirma que, no termo competência, podemos encontrar um conceito pedagógico universal que reflete o novo patamar dos conceitos de produção, baseado na visão dialética do desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, a qualificação depende não só de condições objetivas, mas também de disposições subjetivas - aspectos comportamentais, posturas, valores - que servem de base para a construção da profissionalidade dos trabalhadores, na luta pelo seu reconhecimento e efetivação de seu poder. O autor direciona a competência técnica (trabalho) e a competência comunicativa para as relações humanas como categorias centrais do conceito integral de competência. Desse modo, ter conhecimento técnico e saber interagir com o grupo de trabalho constituem-se requisitos indispensáveis para um bom desempenho profissional e para garantir autonomia e poder de decisão aos trabalhadores no contexto produtivo, ou seja, na sua experiência concreta de trabalho. Acredita que, com base na aprendizagem orientada pelas/para experiências, se consegue desenvolver competências-chave com o objetivo de superar o processo de dissolução e segmentação sociais, determinado, em muito, pela maneira fragmentada de olhar e pensar o mundo. Essa concepção de aprendizagem, se pensada em termos da formação médica, tem sido uma luta quase inglória daqueles que crêem no processo de ensinagem integrado, de modo a resultar em profissionais capazes de exercerem sua função com fundamento no princípio de integralidade no cuidado, uma vez que iniciativas dessa natureza são pontuais e isoladas, ou, por outro lado, apropriadas pelos docentes de

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forma pouco problematizada ou reflexiva. A fala de um estudante participante do grupo focal tangencia, entre muitos pontos que aborda, esta questão: A inserção precoce, a forma que encontraram é a Medicina Integral 1, 2 e 3. Precisa ter maior integração entre o básico e o clínico, então criaram o Curso de Extensão, não é disciplina, é curso, é MBA Mecanismos Básicos do Adoecimento. Colocam professores para dar aula e tentar explicar o que eles aprendem na fisiopatologia e os sinais e sintomas. Na verdade, nada se transformou, a essência do currículo, infelizmente, continua a mesma. Como você aprende a MBA? Sentada, sala de aula, professor, só que, ao invés do retroprojetor, tem o datashow. (EstUERJ)

Para que se estruture um currículo baseado em competência - o que aponta também para uma aprendizagem orientada para e pela experiência -, importa que os docentes reflitam sobre suas práticas pedagógicas e formas de interlocução com os sujeitos da aprendizagem, estabelecendo uma relação dialógica10 com seu público. A aprendizagem orientada para experiência, seguindo a concepção de Markert, representa, então, uma tentativa de restaurar a capacidade de pensar e compreender integralmente o contexto social, sendo um projeto tanto pedagógico quanto político. Ser competente, conforme se entende neste estudo, não é tão-somente saber sobre algo, mas também ser capaz de atuar sobre este algo, transformá-lo quando necessário, flexibilizá-lo, integrá-lo a outros saberes, outras interlocuções, sempre em busca de um saber e um fazer situados, teoricamente sustentados e socialmente úteis. Buscando uma inter-relação entre o que está sendo discutido até aqui a respeito do conceito de competência e as atuais políticas públicas resultantes da interface educação e saúde, incluídas aí as DCN, atestamos a preocupação dos órgãos públicos, quer da educação, quer da saúde, de integrar os currículos dos cursos da saúde com os princípios do SUS. Cumpre ressaltar que tal preocupação, negligenciada desde a Constituição de 1988, começa a ter destaque não com a finalidade de se cumprir um preceito legal, mas com vistas a produzir ações eficazes e eficientes sobre a saúde da população (Brasil, 1988). O terreno para construir essas mudanças vem sendo preparado com programas do Ministério da Saúde, tais como Capacitação e Formação em Saúde da Família (Pólos de Saúde da Família, Cursos de Especialização em Saúde da Família e Residência em Saúde da Família); Profissionalização dos Trabalhadores da Área da Enfermagem (Profae); Qualificação de Equipes Gestoras de Sistemas e Serviços de Saúde (Aperfeiçoamento de Gestores); Desenvolvimento Gerencial de Unidades Básicas de Saúde (Gerus); Especialização em Gestão de Sistemas e Serviços de Saúde (Especialização de Equipes Gestoras); Interiorização do Trabalho em Saúde (Pits); Mestrados Profissionais; Cursos de Formação de Conselheiros de Saúde e do Ministério Público para o controle social; tais programas resultaram em alguns benefícios, entre os quais podem ser citados: a mobilização de pessoas e instituições no sentido de uma aproximação entre os aparelhos formadores e as ações e serviços do SUS; condições de crítica e reflexão sistemática; incentivos aos movimentos por mudanças no processo de formação; mudanças pontuais nos modelos hegemônicos de formação e cuidado em saúde; iniciativa inédita de parceria entre os Ministérios da Saúde (MS) e de Educação (MEC), com o PROMED e o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em

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Segundo Araújo (2003), relação dialógica pode ser compreendida como o espaço em que se desenvolverá, em cada um dos elementos envolvidos, o sentido do valor do outro e de sua dignidade. A atitude dialógica na relação professor/estudante se configura como um espaço de conhecimento do eu, do outro e do mundo. A prática do diálogo coloca, frente a frente, professor e estudante num encontro diário, ligados por uma igualdade ontológica, descobrindo-se na mutualidade.

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Saúde (Pró-Saúde), apoiando financeiramente as escolas que se propunham a mudar seus currículos, de acordo com as DCN e os princípios do SUS (Brasil, 2002). A política de educação e desenvolvimento para o SUS também aponta caminhos que possibilitam o fortalecimento do diálogo com as instituições formadoras: a implantação dos Pólos de Educação Permanente (Brasil, 2004a), iniciativa que busca maior interlocução entre gestores, serviços, profissionais, usuários, alunos e professores, integrando saúde e educação; o AprenderSUS (Brasil, 2004b), iniciativa cujo objetivo é mobilizar os gestores do SUS, da educação superior e do controle social para pensar e propor compromissos entre os setores da saúde e da educação e construir a atenção integral, dos pontos de vista individual e coletivo. Na verdade, essa iniciativa propôs-se a garantir a adoção da integralidade como eixo das mudanças na formação dos profissionais de saúde, uma mudança significativa do ponto de vista das concepções vigentes. Pensar, então, a formação profissional em saúde com base nos conceitos de competência e integralidade é operar uma profunda transformação na maneira de conceber o sujeito da aprendizagem e o mundo do trabalho. No texto das DCN, por exemplo, das 22 competências e habilidades listadas para o egresso do curso de Medicina, grande parte indica uma ação, um comportamento, um resultado que o profissional deve alcançar, o que, resumidamente, retiramos do texto oficial (Brasil, 2001, p.2-3): [...] comunicar-se adequadamente com seus colegas de trabalho, pacientes e familiares; realizar com proficiência a anamnese [...]; diagnosticar e tratar corretamente as principais doenças do ser humano [...]; utilizar adequadamente recursos semiológicos e terapêuticos [...]; realizar procedimentos clínicos e cirúrgicos indispensáveis para o atendimento ambulatorial e para o atendimento inicial das urgências e emergências em todas as fases do ciclo biológico [...]

Poucas dessas competências referem-se a posturas e valores, como se pode observar naquelas que identificamos, também, no texto das DCN (Brasil, 2001, p.2-3): [...] lidar criticamente com a dinâmica do mercado e com as políticas de saúde; reconhecer suas limitações e encaminhar, adequadamente, pacientes portadores de problemas que fujam do alcance de sua formação geral; atuar em equipe multiprofissional.

Entretanto, deve-se reconhecer a importância deste documento, pois demonstra claramente a intenção de enfatizar o papel social do egresso e aproximar a formação do médico das necessidades da população, das questões políticas, do trabalho interdisciplinar em prevenção e promoção da saúde. Mesmo que de forma ainda pouco extensa, sua formulação sugere um avanço em termos de inovar o currículo dos profissionais da área. Por outro lado, grande parte das práticas pedagógicas, que poderiam capacitar os estudantes para um exercício profissional competente, perpetua a fragmentação teoria-prática e muitos docentes ainda acreditam que algumas visitas a Unidades Básicas de Saúde, por si só, quase sempre sem acompanhamento docente, são suficientes para capacitar o profissional, conforme a fala a seguir: Já fomos ao posto de saúde; eu não tenho a menor estrutura para ficar visitando posto de saúde, mas nós vamos porque faz parte da matéria. Não nos orientaram bem para já irmos lá e acompanharmos as consultas com o paciente. (EstUFJF)

A introdução do termo competência nas diretrizes do currículo médico exige o deslocamento do foco dos processos educativos dos conteúdos disciplinares para os sujeitos que aprendem, gerando a possibilidade de efetiva e contínua aquisição de conhecimento, de forma dialógica, objetivando o reconhecimento recíproco. Nesse sentido, o currículo deve ressaltar as experiências concretas dos sujeitos como situações significativas de aprendizagem. A necessidade de um novo modus operandi no cuidado à saúde inclui urgência em se processarem transformações na formação dos profissionais da área. Nessa linha, entendemos que o currículo

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orientado por competência pode significar uma possibilidade para instrumentalizar os estudantes de Medicina - e também de outras áreas - para o complexo trabalho que o sistema de saúde exige, sobretudo no nível primário de atenção à saúde, já que, segundo Campos (2003, p.577), [...] no nível primário, são utilizadas intervenções com enfoque preventivo, comunitário e coletivo, destinadas a atender aos problemas mais comuns da população. Por envolverem determinação múltipla, necessitam de um conhecimento muito diversificado dos profissionais, pois, nesse nível, trabalha-se segundo a lógica da multicausalidade.

Dessa forma, o profissional que atua nesse nível da assistência precisa dispor das competências técnica e comunicativa, precisa ter capacidade de antever os problemas de saúde para que possa desenvolver ações preventivas; necessita de um olhar ampliado para a sociedade, para seus determinantes políticos, econômicos e sociais, de modo a identificar de que maneira esses determinantes se imbricam na forma de sintomas e queixas dos pacientes. No entanto, foi possível perceber que as escolas médicas estudadas ainda se encontram distantes da elaboração de propostas de currículo orientado por competência, que pressupõe a existência de novas práticas pedagógicas, novos objetivos, novas formas de avaliação e, é claro, a incorporação de um novo paradigma da saúde que não mais a considere como ausência de doença, e sim como um bem-estar psíquico, social e biológico e a associe com qualidade de vida. Observa-se um predomínio de questionamentos, tais como: que médicos queremos formar? Como dar ênfase, efetivamente, à formação generalista, se o conhecimento científico não pára de se especializar? Será que os estudantes querem ser generalistas, já que o profissional mais bem remunerado é o especialista? Essas são perguntas freqüentes nos grupos focais, não só dos estudantes como também dos professores. Por outro lado, devemos reconhecer que o exercício da dúvida é sempre uma forma saudável de questionar e refletir sobre nossa prática; pois que seja o mote para superarmos os questionamentos teóricos, para termos verdadeiramente ousadia para inovar e coragem - e, por que não, vontade política - para transformar.

Considerações finais A reestruturação no campo da saúde não passa apenas por transformações no modelo de ensino médico, uma vez que, sendo compreendida como qualidade de vida, é necessário que pensemos, ao mesmo tempo, em ações multissetoriais relacionadas a aspectos ambientais, habitacionais, nutricionais, geográficos, educacionais, trabalhistas, culturais, de saneamento básico, lazer, entre tantos outros, de modo a garantir a concretização de um projeto que se contraponha ao histórico modelo que excluía a atenção à saúde. A solução passa, indubitavelmente, por uma reformulação mais abrangente nos currículos de outras profissões, mas não é e nem acaba nela. No entanto, as tentativas de inovação que as escolas médicas investigadas vêm realizando parecem um começo bastante significativo, no sentido de buscar transformações, mesmo que a longo prazo, na ordem de valores, postura e conduta dos agentes que lidam diretamente com a questão da educação e saúde. O estudo nos aponta que passamos, inegavelmente, por um momento de revisão de práticas e de valores que norteiam não só o exercício profissional como também a própria existência humana. A crise na área da saúde nada mais expressa do que a crise econômica, política e social que o país atravessa. Nesse contexto, repensar o currículo de Medicina, e também de outras profissões, requer repensar o que queremos para a sociedade: se adaptação e/ou conformismo, a escola continuará “produzindo” indivíduos para se adaptarem; mas, se transformação, necessitamos, antes de tudo, rever nosso ser e estar no mundo, nossa disposição para nos transformarmos e, conseqüentemente, para transformarmos as relações que estabelecemos com o outro. Qualquer transformação, entretanto, é processual, com avanços e recuos, conflitos e resistências. A homologação das DCN e de políticas de incentivo a mudanças na formação médica, por si só, não

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garante uma efetiva transformação nos currículos das faculdades de Medicina e nas relações neles estabelecidas, dada a complexidade que envolve o campo político institucional para uma mudança expressiva no projeto e na prática pedagógica das instituições. Nesse sentido, a universidade não fica imune aos problemas decorrentes das relações de poder, os quais constituem um forte entrave para que se estabeleçam inovações nos currículos, razão pela qual ainda permanecem, em sua maioria, amarrados nas disciplinas e prisioneiros das “grades curriculares”. Percebemos esse ponto, embora de forma sutil, em algumas declarações dos sujeitos investigados, o que nos chama a atenção para a urgência da reflexão sobre o sentido e as reais motivações da prática e do exercício docentes. Por outro lado, o estudo nos mostra o reconhecimento, por parte de professores e estudantes, da realidade social na qual as faculdades estão inevitavelmente imersas, fato este que se identifica em atividades que exigem a promoção do diálogo entre as universidades, os serviços e a comunidade. Constatamos, segundo os sujeitos investigados, que essas atividades vêm sinalizando uma dissonância entre o que lhes mostra a realidade e o currículo vivido na escola médica. Para um conjunto significativo de professores e estudantes, há de se alterar o currículo, de modo a pautá-lo em um novo paradigma da saúde, que seja construído com base nas relações dos estudantes e docentes com a população, com o sistema de saúde, com os programas que estão em implantação para prevenir e promover, de fato, a saúde das comunidades. Como observamos no depoimento dos professores, há mais suspeitas sobre a necessidade de se processarem alterações em conteúdos, métodos de ensinagem, atividades práticas, do que propriamente ousadia, capacidade estratégica para se conduzirem processos e se ganharem condições políticas para realizá-las, mesmo reconhecendo que o grupo selecionado possui o viés do engajamento nas discussões sobre a reforma do ensino médico - o que representa uma amostra homogênea. Há, também, por parte das escolas, tentativas para inovar seus currículos. No entanto, distintos obstáculos se fazem valer: pouca ou nenhuma capacitação pedagógica por parte dos professores; ausência de suporte teórico referente à área das Ciências Sociais; resistência e falta de arrojo para romper os modelos tradicionais de ensino; receio de introduzir precocemente os estudantes sem uma “boa base” nas ciências básicas e, em contrapartida, a idéia de que inseri-los cedo na prática dos serviços, por si só, já constitui uma inovação, desprezando a necessidade do processo permanente de ação-reflexão-ação; dificuldade para integrar conhecimentos com outras áreas do saber, entre outros. Ressalta-se ainda o fato de que os docentes-médicos, em especial, desconhecem a linguagem das ciências da educação, pois foram formados por currículos de base tecnicista, que “des-subjetiva” o homem e o isola do cenário cultural do qual faz parte. Decorre, desses aspectos, a dificuldade de se compreender o significado de competência como estratégia que possibilite aos estudantes mobilizarem seus conhecimentos e suas capacidades diante de situações novas, adversas e imprevisíveis, que fazem parte do cotidiano dos serviços de saúde. Os estudantes estão mais esclarecidos sobre essa questão. De qualquer forma, entre professores e estudantes de ambas as instituições, é unânime que, para se efetuarem inovações significativas no currículo de Medicina, é necessário, primeiramente, que o docente inove sua postura, seu modo de pensar e de conceber a educação e se arrisque a desenvolver novas práticas de ensinagem. Podemos listar outras necessidades para que transformações no currículo de Medicina se efetivem (tendo sempre em mente que a transformação é o resultado de sucessivas e permanentes inovações): 1) refletir criticamente sobre o projeto político que está por trás do perfil do médico a ser formado pela universidade e que concepção de saúde o sustenta; 2) inovar na maneira de conceber o mundo e nas práticas pedagógicas que vão concretizar esta concepção; 3) ajustar a formação às necessidades do país, além de discutir o papel do mercado na determinação do perfil do médico; 4) conhecer os fatores que envolvem o processo de ensinagem (teorias da aprendizagem, técnicas e métodos de ensino dinâmicos que desenvolvam profissionais mais “criativos”), uma responsabilidade dos professores; 5) ter vontade política para transformar, sem estagnar-se no plano da idealização, visto que vontade pressupõe uma ação e o que se idealiza nem sempre é viável; 6) reconhecer o ato de educar como um ato político.

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Em vista disso, ao buscarmos uma resposta para a pergunta que titula este estudo, encontramos, entre as instituições pesquisadas, a busca pela construção de um diálogo com o SUS e a certeza da responsabilidade da universidade na reorganização do sistema de saúde. Identificamos, nos depoimentos, especialmente dos docentes, indícios de mudança na concepção de saúde, críticas à postura resistente dos professores e consciência plena da desintegração curricular. No entanto, ficou a suspeita de que esse diálogo, antes de se dar entre a universidade e os serviços, deve acontecer entre os sujeitos integrantes da universidade: diretores, professores, funcionários e estudantes. Mais informalmente, podemos afirmar que o diálogo entre a formação médica e a prática da integralidade deve “começar em casa”. Como observamos no estudo, a inserção precoce do estudante, a criação de disciplinas que abordem direta ou indiretamente assuntos referentes à prática nos serviços e/ou à saúde pública, a participação de estudantes na produção científica sobre educação médica articulada à prática nos serviços esvaziam-se caso os sujeitos desse processo não estejam dispostos a reformular - com serenidade e senso crítico - suas posturas, valores e práticas. O diálogo passa a ser possível, sim, pois há um envolvimento nacional nesta direção, mas as distorções, dificuldades e atravessamentos podem ser reforçados pelo modelo econômico existente, bem como pelas lutas de poder, fatores reconhecidos, porém não explorados nesta pesquisa. De fato, passamos por um momento de efervescência de movimentos, tanto em nível federal quanto estadual e local que, talvez, nunca tenhamos presenciado em relação à efetiva construção do sistema de saúde, com a participação de diversos setores (universidade, serviços, secretarias) e atores (professores, estudantes, comunidade, profissionais, gestores), objetivando formar redes que sustentem um diálogo permanente entre todas as esferas envolvidas nas ações do SUS. A angústia que ficou presente nas diversas declarações dos docentes, referente ao como inovar, pode levar a pensar que existem fórmulas mágicas, receitas e manuais prontos, o que, certamente (e para infelicidade de muitos), não há. Há, sim, modelos que os estudantes seguem e, muitas vezes, reproduzem - os que não se baseiam exclusivamente no nível de conhecimento acumulado, mas na atitude do docente, na sua postura, nos seus valores. Estes, antes de quaisquer mudanças nos métodos, poderão determinar transformações significativas nos médicos que encontraremos nos consultórios, hospitais, ambulatórios e emergências - desde que desenvolvam competência para lidar com um contexto social, novo e diferente. Para que se desenvolvam ações em saúde no âmbito do SUS, baseadas nos princípios de integralidade, eqüidade e universalidade, é preciso que o sistema conte com um profissional criativo e que saiba comunicar-se com os usuários e com os demais profissionais do serviço. Profissionais competentes saberão que não é possível padronizar queixas e assumir condutas semelhantes para casos que serão sempre singulares. Caso as práticas em saúde perpetuem a fragmentação do saber e do sujeito, sem dúvida, estaremos fadados ao fracasso. Neste sentido, o desenvolvimento da relação entre professor e aluno que privilegie determinados atributos e posturas, já significaria um grande passo rumo às transformações que tanto almejamos para nos aproximarmos da integralidade no cuidado à saúde. Acrescentam-se a isso iniciativas pedagógicas que estimulem a formação de profissionais com base em práticas interdisciplinares, nas quais estudantes de diversas áreas de saúde desenvolvam atividades teóricas e práticas em conjunto, dialogando, desde sempre, com os outros campos do saber. Dessa forma, a prática da interdisciplinaridade e intersetorialidade, fundamentais para o exercício da integralidade, serão facilitadas. Para tanto, as orientações das DCN podem garantir que o estudante integre sua subjetividade com sua criatividade, revele sua capacidade de reunir competências técnica e comunicativa para relacionar-se com o outro. Compreender o homem como um ser cuja formação se deve às relações que estabelece durante sua existência eleva os diferentes espaços de ensinagem a um lugar privilegiado, tornando-se um campo rico, onde diversas relações se desenvolvem. Se essas relações forem facilitadas por uma concepção e uma prática de ensino que reconheçam a pluralidade do sujeito da educação (sem tolher sua capacidade de ser diferente) e se houver integração com os serviços e oportunidade de os estudantes entrarem em contato com problemas reais a serem discutidos teoricamente, sem dúvida, serão dados os primeiros passos para o diálogo possível entre a formação médica e o Sistema Único de Saúde.

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artigos

CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B.


SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE E A FORMAÇÃO ...

LACERDA, A.; VALLA, V.V. As práticas terapêuticas de cuidado integral à saúde como proposta para aliviar o sofrimento. In: PINHEIRO, R.; MATTOS, R.A. (Orgs.). Cuidado: as fronteiras da integralidade. Rio de Janeiro: Hucitec/Abrasco, 2004. p.91-102. MARKERT, W.L. Novas competências no mundo do trabalho e suas contribuições para a formação do trabalhador. Trab. Crít., n.2, p.31-43, 2000. MENDES, E.V. Uma agenda para a saúde. São Paulo: Hucitec, 1999. POPKEWITZ, T.S. História do currículo, regulação social e poder. In: SILVA, T.T. O sujeito da educação: estudos foucaultianos. Petrópolis: Vozes, 1994. p.173-210. SILVEIRA, L.M.; BRANT, V.M. Grupo de adesão ao tratamento: espaço de “ensinagem” para profissionais de saúde e pacientes. Interface – Comunic., Saúde, Educ., v.9, n.16, p.91-104, set.2004/fev.2005.

CIUFFO, R.S.; RIBEIRO, V.M.B. El Sistema Único de Salud y la formación de los médicos: ¿ un diálogo posible? Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.125-40, jan./mar. 2008. Este artículo discute la viabilidad de la construcción de un diálogo entre la formación de los médicos y el Sistema Único de Salud en Brasil, enfatizando el principio integral como eje estructural de esa formación. La posibilidad o no de tal diálogo se verificó en el análisis de las manifestaciones de profesores y estudiantes de los cursos de medicina de la Universidad del estado de Rio de Janeiro y de la Universidad Federal de Juiz de Fora, estado de Minas Gerais, ambas de Brasil, en grupos focales. Los resultados revelan la consciencia de los profesores de las instituciones formadoras sobre la importancia del compromiso social que la profesión exige, con los cambios resultantes; aunque algunos demuestran resistencia para afrontar los nuevos desafíos. Respecto a los estudiantes, es preponderante el descontento con la formación, pese a la existencia de indicios de ruptura con los paradigmas tradicionales de la formación médica y el desarrollo de proyectos con los servicios la comunidad.

Palabras clave: Educación médica. Cuidado integral a la salud. Innovación curricular. Competencia en salud.

Recebido em 16/05/06. Aprovado em 04/10/07.

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artigos

Vivendo a inovação:

as experiências no curso de nutrição

Maísa Beltrame Pedroso1 Maria Isabel da Cunha2

PEDROSO, M.B.; CUNHA, M.I. Living innovation: experiences in the course of nutrition. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.141-52, jan./mar. 2008.

This study results from careful considerations on the pedagogical practices considered meaningful by students of the undergraduate course of Nutrition, as well as, in the protagonism of the female teachers who develop them. We tried to understand whether these experiences mean innovation in the perspective of a paradigmatic rupture, considering innovation as a discontinuous process of breakage with traditional ways of teaching and learning. A qualitative methodology of study and the ethnographic approach principles were used. The activities pointed out by the students as meaningful practice were of different kinds and included those interactions with affective and subjective dimensions, which involve emotion, sensitivity, and esthetic perception, articulating, thus, subjectivity and objectivity, science and culture, technique and politics. Personal and professional trajectories are defining factors of teachers’ performances, revealing their conceptions on their pedagogical procedures. They indicate the conditions in the constitution of the higher education teacher professionality. So, this study aligns to other researches that aim at building the basis of the university pedagogy.

Key words: Universities. Teaching. Innovation. Higher education.

O texto decorre de reflexão sobre práticas pedagógicas consideradas significativas pelos estudantes do Curso de Nutrição, numa instituição de Ensino Superior, Rio Grande do Sul, e no protagonismo das professoras que as desenvolvem. Procurouse investigar se essas experiências significam inovação na perspectiva de uma ruptura paradigmática, compreendendo a inovação como um processo descontínuo, de ruptura com as formas tradicionais do ensinar e aprender. Utilizou-se a metodologia qualitativa de pesquisa e os princípios da abordagem etnográfica. As atividades elencadas pelos alunos como práticas significativas foram de diferentes naturezas, incluindo emoção, sensibilidade e percepção estética, e articulando subjetividade e objetividade, ciência e cultura, técnica e política. As trajetórias pessoais e profissionais são fatores definidores dos modos de atuação das professoras, revelando suas concepções sobre seu fazer pedagógico e indicam condições presentes na constituição da profissionalidade do docente da educação superior. Nessa direção, alinha-se a outros estudos que objetivam construir as bases de uma pedagogia universitária.

Palavras-chave: Universidades. Ensino. Inovação. Educação superior.

Nutricionista. Curso de Nutrição, Ciências da Saúde, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Av. Unisinos Bairro Cristo Rei São Leopoldo RS 93.022-000 maisa@unisinos.br 2 Cientista Social e Pedagoga. Programa de Pós-Graduação em Educação, Ciências Humanas, Universidade do Vale do Rio dos Sinos.

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VIVENDO A INOVAÇÃO: ...

O mundo de minha vida diária não é, de forma alguma, meu mundo privado, mas é, desde o início, um mundo intersubjetivo compartilhado com meus semelhantes, vivenciado e interpretado por outros. (Wagner, 1979, p.159)

Ao longo de sua história, a universidade desempenhou as funções de depositária da cultura, agente social de manutenção da ordem, meio de adaptação às mudanças sociais e, ainda, de elaboração do conhecimento e construção do modelo cultural da sociedade. As atuais políticas nacionais de saúde e educação apontam para a necessidade de mudanças nos processos de formação profissional e têm estimulado e apoiado iniciativas no sentido da ampliação da responsabilidade social dos seus egressos. Rhors, citado por Sarmento (1992), discute as mudanças que a universidade terá de experimentar para continuar a enfrentar as exigências atuais. Para o autor, três são os elementos fundamentais para esse desafio: a idéia de autonomia, que representa liberdade e auto-suficiência da modalidade científica de existência; a busca da verdade, que se efetiva dentro da comunidade de docentes e discentes numa ação recíproca; e a unidade entre a investigação e o ensino, que necessita investimentos intencionais para a sua realização. Esses elementos prevêem uma ruptura epistemológica e ética como emergente. Santos (2002) explicita que a cultura ocidental atravessa um momento de transição da modernidade para a pós-modernidade, criando um ambiente de incerteza e de caos, que repercute nas estruturas e práticas sociais, instituições e ideologias, representações sociais e inteligibilidades, na vida vivida e personalidade. Essa transição ocorre entre o paradigma da ciência moderna do conhecimento-regulação e o paradigma emergente, denominado, pelo autor, de “paradigma do conhecimento prudente para uma vida decente” (p.74). O conhecimento-emancipação e societal, menos visível, coteja o paradigma dominante e constitui-se num novo paradigma que permite reinventar os caminhos do inconformismo contra toda forma de naturalização da opressão. Santos (2002) afirma que o “único caminho para pensar o futuro parece ser a utopia. E por utopia entendo a exploração, através da imaginação, de novas possibilidades humanas e novas formas de vontade” (p.331-2). As transformações vividas pela universidade apresentam uma série de perspectivas que estimulam a compreensão histórica e crítica de suas manifestações nos âmbitos epistemológico e político. Na visão de Rozendo et al. (1999), a educação superior, de maneira geral, prioriza práticas pedagógicas que, muitas vezes, não contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade de sujeitos sociais construtores de sua própria história. Para os autores, a concepção predominante é a de uma educação para o ajustamento, para a adaptação a normas e padrões de comportamento considerados adequados, em que é imposta aos educandos, não raramente, uma condição de passividade e subordinação à autoridade do educador. Portanto, a prática educacional continua enraizada na concepção bancária de educação (Freire, 1979). Entretanto, se a concepção tradicional de ensinar e aprender é corrente na universidade, também aí se localizam espaços para transformação, porque nela existem homens, e porque são concretizadas ações realizadas por homens e a eles destinadas, as quais destinam-se ao desenvolvimento da consciência crítica sobre a realidade. Na opinião de Rozendo et al. (1999, p.16), a universidade, enquanto uma instituição social inserida numa realidade concreta, experimenta a dialética do movimento social. Ao mesmo tempo em que determina, é determinada; ao mesmo tempo em que transforma a realidade, também reproduz esta realidade. Compartilha as contradições da sociedade e produz suas próprias contradições.

Assmann (2004) também contribui afirmando que a concepção de conhecimento abarca todos os processos naturais e sociais próprios do contexto onde são gerados e, a partir daí, esses processos

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3 Conceito oriundo da área musical e que bem define a proposta de Assmann. “É a arte dos DJs de passar de uma música para outra sem que caia o ritmo da pista de dança. Quando perfeita, os alegres dançarinos nem percebem que já mudou de música”. Disponível em: <www.terra.com. br/mp3box/col_ pecanha4.html>. Acesso em: 17 ago. 2005.

indicam formas de aprendizagem. Nessa perspectiva, a experiência de aprendizagem implica, além da instrução informativa, a reinvenção e a construção personalizada do conhecimento. Com essa possibilidade, a dimensão do prazer representa uma condição-chave, que envolve a subjetividade dos sujeitos implicados e proporciona o encantamento. Para o autor, “reencantar a educação significa colocar ênfase numa visão da ação educativa como ensejamento e produção de experiências de aprendizagem” (Assmann, 2004, p.29). Reforça, ainda, que o ambiente pedagógico tem de ser um lugar de fascinação e inventividade, para que o processo de aprender aconteça como mixagem3 de todos os sentidos, potencializando-os e (re)significando os modos como concebemos o mundo. É preciso (re) introduzir na escola o princípio de que toda a morfogênese do conhecimento tem algo a ver com a experiência do prazer, pois, na sua concepção, o conhecimento só emerge em sua dimensão vitalizadora quando é construído com esse pressuposto. Ao estudarmos as práticas educativas, não podemos negar que toda a educação tem caráter político, mas devemos, sim, entender que o ético-político se enraíza em campos do sentido, que emergem sob a forma de experiências de aprendizagem, que por sua vez emergem de processos auto-organizativos da vida real, onde viver e aprender se identificam num único processo. (Assmann, 2004, p.108)

As práticas pedagógicas realizadas no interior da sala de aula universitária são reflexos da sociedade e nela se refletem, espelhando a complexidade da dinâmica social e da interação humana. Conhecer tais práticas e desvelá-las é fundamental para compreendê-las, oferecendo subsídios aos professores universitários, para analisar os momentos de transição paradigmática em que vivem. Rever a formação do professor universitário em face das mudanças de paradigma é repensar a inovação no sentido de compreender as atividades de ensino, pesquisa e aprendizagem em constante movimento, desenvolvendo-se ao longo da história, instigando e propiciando a descoberta e a aprendizagem do aluno por meio da relação dialógica com o professor. Nessa perspectiva, buscou-se identificar e caracterizar as práticas pedagógicas dos docentes de um Curso de Graduação em Nutrição, que apresentavam indícios de aprendizagens emancipatórias, realizando uma reflexão sobre o caráter inovador dessas práticas, entendidas como aquelas que favorecem a ruptura com as formas tradicionais de ensinar e aprender. Os caminhos metodológicos adotados envolveram o diálogo com a literatura e registros realizados com base em entrevistas com os professores identificados por seus alunos como sendo aqueles que protagonizaram experiências de ensinar e aprender que foram significativas em suas trajetórias acadêmicas. Relacionar as aprendizagens significativas com a possibilidade da inovação foi outro intento assumido no contexto do estudo. Para tanto, dialogando com os autores escolhidos, procuramos identificar características nas experiências, tais como: - estar em movimento constante, instigando e propiciando o descobrimento do novo; - trabalhar com as múltiplas tensões presentes nas atividades dos alunos; - favorecer a relação horizontal professor-aluno, permitindo atendimento à singularidade de cada um, evitando a homogeneização; - assegurar a relação ensino-pesquisa, tendo o trabalho como princípio educativo; - constituir-se como atividades coletivas permeadas por intencionalidade; - atribuir à pesquisa destacado espaço de mediação entre o ensinar e o aprender.

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VIVENDO A INOVAÇÃO: ...

Essas características, assumidas como ponto de partida da pesquisa, aproximaram-se das categorias organizadas por Cunha (2004, 1998) em outros estudos e que foram tomadas como referentes para a análise dos dados, com a intenção de contribuir para a consolidação teórica dos pressupostos analíticos dos estudos sobre inovação. São elas: - ruptura com a forma tradicional de ensinar e aprender e/ou com os procedimentos acadêmicos inspirados nos princípios positivistas da ciência moderna; - gestão participativa, por meio da qual os sujeitos do processo inovador são protagonistas da experiência, desde a concepção até a análise dos resultados; - reconfiguração de saberes, com a anulação ou diminuição das clássicas dualidades entre saber científico/saber popular, ciência/cultura, educação/trabalho etc; - reorganização da relação teoria/prática, rompendo com a clássica proposição de que a teoria precede a prática, dicotomizando a visão de totalidade; - perspectiva orgânica no processo de concepção, desenvolvimento e avaliação da experiência desenvolvida; - mediação entre as subjetividades dos envolvidos e o conhecimento, englobando a dimensão das relações e do gosto, do respeito mútuo, dos laços que se estabelecem entre os sujeitos e o que se propõem conhecer; - protagonismo, compreendido como a participação dos alunos nas decisões pedagógicas, valorização da produção pessoal, original e criativa dos estudantes, estimulando processos intelectuais mais complexos e não repetitivos. Essas categorias explicitam a compreensão de que a inovação pressupõe alterações na concepção de conhecimento presidido pela ciência moderna. Portanto, não se referem somente a arranjos metodológicos ou inclusão de aparatos tecnológicos. Incorporam, necessariamente, uma nova epistemologia que se traduz nas práticas de sala de aula.

Conhecendo as experiências que anunciam a inovação Descrevemos, a seguir, cada situação de ensino-aprendizagem que compõe este estudo com base no relato das professoras. Procuramos identificar nelas as categorias teóricas que orientaram a pesquisa. As experiências estão relatadas na mesma seqüência das entrevistas realizadas.

Experiência I A construção progressiva da identidade profissional Trata-se de uma experiência na disciplina de Estágio III, que se caracteriza por ser a última etapa necessária para a conclusão do curso de Nutrição. A professora trabalha com um grupo de, aproximadamente, 15 alunos, que realizam seus estágios em diferentes hospitais. Os alunos desenvolvem suas atividades, interagindo com a rotina do hospital, realizando visitas aos leitos, fazendo avaliação nutricional, acompanhando a evolução dos pacientes e realizando as intervenções necessárias. Todas as atividades são supervisionadas pelos nutricionistas dos locais. Os alunos, quando o local permite, participam de reuniões de discussão com grupos multidisciplinares. A professora realiza a supervisão acadêmica, em encontros semanais, na Universidade. Nesses encontros, os alunos relatam suas experiências, tiram suas dúvidas e discutem os procedimentos nutricionais. Cabe à professora acompanhar os relatos dos casos reais, oportunizando uma avaliação crítica sobre os procedimentos adotados e incentivando a busca de artigos atuais sobre o assunto. Leva em consideração que os locais que recebem os alunos para estágio nem sempre apresentam as condições ideais na prestação de serviços de saúde. O papel da professora é desafiar o aluno a desenvolver seu potencial, mobilizando conhecimentos para o desenvolvimento de situações concretas de aprendizagem. Para a professora, o aluno tem “que tentar fazer a diferença, apresentar propostas diferenciadas, valorizando o atendimento personalizado, pois nenhum paciente é igual ao outro”.

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Na visão da professora, a atividade desafia para o novo e possibilita ao aluno se exercitar no papel de nutricionista. Ao descrever a atividade, relata: “Eu incentivo que o aluno desenvolva seu potencial de nutricionista da área clínica um pouco mais independente daquela rotina que o local tem. Eu desafio o aluno e digo: você tem de tentar fazer a diferença”. Continua sua narrativa dizendo acredito que assim o aluno se testa. Ele nem pensava que poderia ir tão longe. Ele começa a perceber que nem sempre a referência maior é a equipe do local e vai descobrir outras referências, vai descobrir a bibliografia, vai descobrir os novos artigos científicos daquela patologia. E pode somar essas referências com as que a equipe tem. E se descobre como alguém que desconhecia [...] como alguém capaz de saber além do que era solicitado.

O educando é o ator principal no processo de seu desenvolvimento. Por meio desse tipo de ação, adquire e amplia seu repertório interativo, aumentando, assim, sua capacidade de interferir de forma ativa e construtiva em seu contexto. A centralidade da proposta incide na participação ativa, construtiva e solidária, em que o aluno envolve-se na solução de problemas reais na universidade, na comunidade e na sociedade.

Experiência II Trilhando os caminhos da pesquisa Trata-se de uma experiência realizada na disciplina de Seminário II. Essa disciplina aborda temas ligados aos assuntos que permeiam o Eixo II - Nutrição e Desenvolvimento Humano, e objetiva trabalhar, de maneira sistêmica, os conteúdos referentes às disciplinas que pertencem ao eixo comum. Pretende, ainda, que os alunos integrem os conhecimentos, desfazendo a relação fragmentada de conteúdos. Propõe que eles realizem discussões mais ampliadas sobre determinados assuntos, permitindo perspectivas interativas de campos disciplinares, além de revisão e suprimento de eventuais temas. Essa disciplina não tem o conteúdo programático totalmente preestabelecido. Este é escolhido no início de cada semestre com base em uma avaliação realizada pela professora com os seus estudantes, desde que contemple questões da atualidade. O planejamento das atividades é elaborado a cada semestre e tem como referente a ementa oficial, conhecida por todos os alunos. A professora propõe estratégias, valendo-se de discussões com eles. Dessa forma, oportuniza que façam interações e atualizações de seus conhecimentos no campo da Nutrição e áreas afins. A turma, de aproximadamente trinta alunos, é dividida em grupos. Cada grupo fica responsável pela apresentação de um tema, usando os princípios da técnica de Seminário. A dinâmica deve levar em conta a pluralidade dos participantes. Os seminários são acompanhados pelo professor, que atua como um articulador. No início do semestre, a professora trabalha a preparação do seminário, mostrando como se faz uma pesquisa bibliográfica, seus passos, cuidados e pressupostos. Leva os alunos até a biblioteca e ensina como se realiza a busca na Internet. Mostra seus cantos preferidos da biblioteca, incentivando seus alunos a manipularem os periódicos principais, destacando a importância destes no contexto científico. Faz com que cada aluno leia um periódico internacional, estimulando a leitura em outra língua e mostrando como é possível realizar essa atividade. Na apresentação dos seminários, é destacada a atualização do assunto, bem como o referencial bibliográfico que lhe dá sustentação. Vale ressaltar que toda a produção dos demais alunos é discutida na presença daquele que foi o autor. O erro é tratado como fator de diagnóstico, provocando as intervenções do professor e dos colegas. Na apresentação dos trabalhos, a professora sempre complementa os assuntos, destacando como sãos conectados com a prática profissional. “Eu sempre complementei muito com a minha experiência, então, em cada seminário, os alunos pareciam aprender muito. Em todo tema, eu contava um caso, eu contava uma história”. Nessa experiência, a avaliação é realizada por meio de múltiplos procedimentos, incluindo uma prova, onde são cobrados os conhecimentos trabalhados em sala de aula, bem como as discussões

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que eles suscitaram. Também são avaliados os procedimentos processuais e o envolvimento dos estudantes com a proposta. As atividades de pesquisa desenvolvidas pela professora repercutem em seu trabalho na sala de aula. Na percepção da professora, a experiência é significativa para o aluno porque seu nome está ligado ao desenvolvimento de pesquisas. Criei uma cultura de desenvolvimento de pesquisa desde que aqui cheguei, em agosto de 2001. E, em outubro, já estava com os alunos, indo para o Hospital Centenário, selecionando as crianças. A cada curto espaço de tempo, estava promovendo trabalhos, e os alunos comentavam: “Eu estou fazendo um trabalho com a professora Márcia, estou coletando dados. Isso provavelmente foi gerando toda uma cultura em volta do meu nome [...]”.

Esse é um processo interessante porque integra ensino e pesquisa e dá sentido à produção de conhecimento, que é tarefa da universidade. Integra o espaço de graduação com a pesquisa, assumindo essa condição como possibilidade de qualificar o processo de ensinar e aprender.

Experiência III A teoria em prática Trata-se de uma experiência de Estágio II, disciplina do Eixo Nutrição e Desenvolvimento Humano, realizada no Hospital Materno-Infantil. É um hospital da rede pública, onde a professora é referência para o aluno, pois foi lá também que desenvolveu suas atividades profissionais, proporcionando sustentação ao referencial teórico apresentado em sala de aula e inserindo o aluno no campo profissional. Os alunos realizam visitas ao leito das pacientes internadas, que são parturientes, avaliando o prontuário para conhecimento da situação em que se encontram. Acompanham a primeira mamada dos recém-nascidos e incentivam as mães para a prática do aleitamento. Realizam processos demonstrativos de como, por exemplo, a mãe deve colocar o bebê ao seio, ajudando no esgotamento da mama. Acompanham e observam as reações das pacientes e procuram intervir nas práticas culturais do aleitamento, na perspectiva de aperfeiçoá-las. Os alunos que optam por realizar seu estágio nesse local vivenciam a prática de saúde pública, junto ao hospital que é referência no atendimento à gestante. A professora também é responsável pela disciplina Nutrição dos Ciclos da Vida I, e já desenvolveu, com os alunos, os pressupostos que são objetos do estágio, incluindo os aspectos relacionados à gestação e ao primeiro ano de vida da criança. Na visão da professora, essa relação prévia que tem com seus alunos favorece a aprendizagem, o que pode ser percebido com base em seu depoimento. Acho que eu, particularmente, por trabalhar no Ciclo, faço o gancho com o HPV, onde faço a supervisão de estágio. Tem tudo a ver, pois dá para juntar a questão de sala de aula com a questão prática. Acho que os alunos vêem a evolução da aprendizagem, efetivando aquilo que viram em sala de aula. Eles podem ver, na prática, o que se discutiu em sala de aula. Acho que isso dá uma certa satisfação.

Essa experiência proporciona uma postura proativa do aluno, pois favorece o estabelecimento de relações entre o novo, que está sendo vivenciado no estágio, e os conhecimentos já presentes em sua estrutura cognitiva, permitindo o estabelecimento de redes e relações de diferentes matizes de extensão e complexidade. Nessa experiência, os alunos também são protagonistas da construção de seu conhecimento quando são chamados a participar de grupos operativos com as nutrizes e toda a equipe de profissionais, médicos, enfermeiros, psicólogos etc., favorecendo a relação interpessoal e os processos de comunicação do aluno e suas pacientes; do professor e os alunos; dos alunos entre si, e do aluno com os profissionais da área.

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Experiência IV O professor como facilitador da aprendizagem A disciplina em questão está localizada no segundo semestre do curso. A professora, no primeiro dia de aula, faz a caracterização da disciplina, descrevendo os tópicos que serão trabalhados durante o semestre, retomando os conteúdos que foram dados na disciplina que a antecedeu. Essa disciplina estuda as alterações físico-químicas e biológicas dos alimentos. Na primeira aula, a professora procura fazer com que o aluno entenda a importância do conhecimento da composição química dos alimentos, como esta pode sofrer alterações, de que forma isso ocorre no fazer diário, e o uso dessas propriedades na atividade prática do profissional nutricionista, favorecendo uma visão da trajetória acadêmica que o aluno deve percorrer. A professora toma, como referente da sua proposta, a escolha de um alimento que possa sustentar a exposição do conteúdo. “Penso em um alimento e tento esgotar esse alimento, indo desde o início, que é a composição química, até o final, que é a sua utilização”. É feita uma explanação teórica sobre o mesmo e, após, os alunos exercitam o que aprenderam por meio das preparações no laboratório de Nutrição e Dietética. Formam-se grupos de quatro a cinco alunos, e cada grupo assume uma das cozinhas experimentais onde as preparações devem ser executadas. Ao final do período, cada grupo apresenta as preparações feitas para o grande grupo, descrevendo o processo e as alterações propostas. Após a degustação, são realizadas as avaliações de cada preparação. No momento da explanação, a professora vai questionando os conhecimentos e chamando a atenção para as alterações sofridas pelos alimentos e para a sua utilização na prática do profissional nutricionista. Há a intenção de tomar as informações da vida cotidiana como ponto de partida para a reflexão teórica. Explica a professora: Quando eu falo do leite, falo de seus derivados, como, por exemplo, a manteiga. E pergunto: ‘Qual é a característica da manteiga? Como a gente encontra no mercado? O que é uma manteiga clarificada? Por que os Chefs utilizam manteiga clarificada?’ Então, eu vou falando e acho que isso chama bastante a atenção, porque os alunos vêem, na prática, como vão usar esse alimento.

De acordo com a professora, não existe um cronograma fixo a ser seguido. As escolhas dos conteúdos a serem desenvolvidos nas aulas se dão pelo interesse despertado nos alunos em sala de aula, ou mesmo pelas curiosidades estimuladas pela professora para que os alunos aprofundem seu conhecimento sobre o alimento, extrapolando o mínimo exigido pela disciplina. No entanto, é importante destacar que há um roteiro de conteúdos importantes a serem trabalhados, que não é fixo, mas, ao final do semestre, todos são cumpridos.

Refletindo sobre as experiências que anunciam a inovação Os alunos, ao elegerem as experiências significativas, evidenciavam a importância dada ao movimento entre a teoria e a prática como referência do trabalho acadêmico. Essa categoria, que emerge no depoimento dos estudantes, é recuperada pelos professores quando descrevem as suas práticas. As experiências citadas pelos alunos são portadoras de situações de ensino que desenvolvem o eixo teoria-prática em atividades inovadoras, permitindo, às vezes, diferenciar categorias que incluem atividades com significado diferenciado. Verifica-se a importância dos trabalhos desenvolvidos nos campos de estágios, em atividades realizadas em laboratórios e em visitas a bibliotecas. Destaca-se o trabalho em equipe e as reflexões para sistematização dos estudos. Em todas essas instâncias, o que o aluno valoriza tem sido a condição de produzir conhecimento por meio da investigação e de ser protagonista de uma ação que tem a realidade como referencial. O espaço de formação não ocorre somente nos bancos acadêmicos. A formação se dá em múltiplos espaços, assim como são múltiplas as aprendizagens que acontecem em cada um desses espaços. Para os professores entrevistados, a atividade prática que ocorre em territórios não-

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convencionais é o elemento de partida para aquisição de conhecimentos. Possibilitam ao aluno uma atitude mais reflexiva e ativa diante dos novos saberes, permitindo que se estabeleçam relações entre a realidade e a fundamentação teórica, propiciando, dessa forma, uma reconfiguração de saberes. Para esses professores, a concepção de conhecimento deve envolver flexibilidade e movimento, ocorrendo uma significativa valorização das experiências profissionais como forma de permitir uma articulação entre teoria e prática, como podemos observar nos relatos a seguir. No meu ponto de vista, toda atividade vivencial tem uma importância significativa. Acho que a prática e a vivência são fundamentais para desencadear todo um processo de conhecimento humano.

Ou: eu acho que na disciplina [...] tem de se repensar para trazer, junto com a teoria, a atividade prática. Ainda não estou conseguindo fazer. Eu creio que poderia trabalhar melhor o recémnascido, se os alunos pudessem ver não só no slide, mas como é na realidade. E é isso o que eles vêem no Estágio II.

Essa concepção também é partilhada por Lucarelli (2005), para quem a articulação teoria-prática se constitui no eixo central dinamizador das inovações didático-curriculares na aula universitária, sendo uma das possibilidades de transformação do ensino nas universidades. Para a autora, dada la importancia que asumen en la institución las definiciones acerca de la naturaleza del conocimiento tanto en lo relativo a su producción como en lo referente a los procesos y contenidos en la formación de los sujetos; a la vez, esa articulación se hace presente en el contexto universitario a través de la inclusión de la profesión, sus representaciones y sus prácticas, como anticipatorios del campo laboral en el que desarrollará su actividad el egresado. (Lucarelli, 2005, s/p)

Essa questão permite analisar a articulação entre a teoria e a prática na perspectiva de um entrelaçamento de aspectos epistemológicos e didáticos, o qual aponta para novos enfoques acerca dos processos de formação profissional. Lucarelli lembra que esta nova epistemologia supõe que a articulação da teoria e da prática se desenvolva por meio de uma estratégia metodológica em que se propicia a reflexão na ação, proporcionando uma reflexão sobre o que está se fazendo simultaneamente ao momento da ação. Argumenta, ainda, que en el caso de la formación en la práctica profesional, el conocimiento en la acción propio de cada campo adquiere las características que le otorga el contexto estructurado, social e institucional, de esa profesión. Conocimiento profesional y sistema de valores compartido definen un determinado campo profesional y generan las formas del conocimiento en acción, a la vez que la concepción epistemológica acerca de la práctica profesional determina la estrategia general de formación. (Lucarelli, 2005, s/p)

Nesse caso se justifica a valorização da experiência como meio possível de articulação entre teoria-prática na formação profissional, como afirmam os entrevistados: “No Estágio II, os alunos têm a oportunidade de exercitar o que foi trabalhado em sala de aula”. E, ainda, vou mostrando como vai acontecer no decorrer do Curso. Qual é a importância do alimento, quando vai se fazer a preparação? E, depois, que repercussões teremos na dietoterapia? Pergunto sempre: “Na dietoterapia, tem importância esse alimento? Como eu vou usá-lo? Eu vou poder colocá-lo em qualquer dieta?”

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Na visão das professoras, os alunos desenvolvem, nesse exercício, sua autonomia e capacidade de análise, refletindo sobre o processo como um todo e conseguindo avaliar a utilização do conhecimento na prática profissional. Eles são estimulados a buscar novos conhecimentos, quando são interpelados por perguntas que suscitam a curiosidade e a necessidade de avançar no conhecimento. Os conteúdos passam a ser explorados considerando o significado a eles atribuídos e sua consistência e funcionalidade para o enfrentamento de situações reais. A construção de significados ultrapassa uma aprendizagem baseada na memória e apela para uma aprendizagem que tem, como pressuposto, a integração teoria-prática. É possível perceber que as experiências se identificam com o conceito aqui adotado para inovação, na medida em que estimulam os alunos a realizar uma leitura do campo profissional, exigindo uma reconfiguração epistemológica. O conceito de conhecimento é compreendido sob outras bases, afastando-se da tradicional formulação da ciência moderna, prescritiva, generalizadora e compartimentada. Procura-se um conhecimento percebido como processo, sempre em movimento, favorecendo a ruptura com a visão de ensino tradicional. Podemos perceber, também, que as professoras reconhecem que há formas e fontes alternativas de produção de conhecimento. “Então eu digo para eles: ‘Proponham, façam as suas propostas. Se você fosse o nutricionista deste local como é que faria a atenção a esses pacientes?’ E, assim, eu os desafio o tempo todo, no estágio”. As professoras parecem ampliar as dimensões da aprendizagem, destacando as repercussões das experiências prévias sobre a assimilação do conhecimento novo e ressaltando duas condições para a (re) construção de significado: um conteúdo potencialmente significativo e uma atitude favorável para aprender significativamente, o que confirma o pensamento de Lima (2005, p.374), para quem uma aprendizagem significativa requer do aprendiz uma postura proativa que favoreça o estabelecimento de relações entre o novo e os elementos já presentes em sua estrutura cognitiva.

Nas experiências relatadas, percebem-se as condições para a ruptura quando as docentes possibilitam a organização de ambientes de aprendizagem que sejam mediadores dos processos de apropriação, discussão, análise e produção de conhecimento. As atividades, ao possibilitarem que os alunos alcancem um outro nível de apropriação do conhecimento, ao assumirem novos significados e ao propiciarem inter-relações com o cotidiano, em diferentes espaços sociais, evidenciam a configuração de movimentos de reflexão, crítica e proposições de caminhos. No processo de investigação, encontramos também indicadores para o redimensionamento da forma tradicional de se trabalhar o erro, como afirmou uma das interlocutoras. Fico ouvindo até o final, mesmo que os alunos estejam apresentando um trabalho aquém do esperado. Depois, no grande grupo, eu pontuo algumas manifestações, sobre algumas observações. Então, às vezes, eu constato que, há um grupo que não alcançou os objetivos, ou que ficou aquém do esperado. Eu não preciso dizer isso. Eles concluem no grande grupo e se manifestam, dizendo “podemos tentar mais uma vez? Nós vamos tentar agora em outro local!”

Percebe-se que, nessa perspectiva, o erro passou a fazer parte do processo ensino-aprendizagem, porque é trabalhado como parte da construção do conhecimento. Essa condição distensiona o aluno, liberando-o para novas aventuras epistemológicas. Nesse sentido, a relação pedagógica não é percebida como um campo para homogeneização, que oculta diferenças sociais, conflitos e contradições, mas como um campo de identidade e diversidade. Investigar os processos de ensinar e aprender que se realizam no Curso de Nutrição fez-nos compreender que a forma como se transmite o conhecimento pode ter mais significado do que o próprio conhecimento. Em estudos anteriores, inspirados em Bernstein, afirmamos que

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não são os conteúdos ou as informações que carregam as relações sociais que geram a reprodução social ou cultural, mas a forma de transmissão, entendida como a teia de relações de poder e de subjetividade que as permeiam. (Cunha, 2001, p.105)

Foi possível perceber que as atividades consideradas pelos alunos como significativas na sua formação, independente do lugar em que aconteceram e dos objetivos estabelecidos no desenho da estrutura curricular, concretizam-se metodologicamente nas ações de ensino-aprendizagem que ocorrem na sala de aula, afetando, assim, de alguma maneira, a articulação teoria-prática, considerada processo genuíno de ensino-aprendizagem, revelando que os elementos que constituem a prática cotidiana incluem, mesmo que instintivamente, a dimensão do prazer. Todas elas mencionam a satisfação e a gratificação que está presente em suas docências. Essa condição reforça a perspectiva de Rios (2002), para quem a qualidade em educação se dá quando se faz bem nossa missão e quando ela também faz bem a nós. A pesquisa que desenvolvemos reafirma a importância de se compreender e desenvolver conhecimentos sobre as práticas docentes que se instituem na Universidade. Importante, também, é que os professores reflitam sobre elas e que as alternativas de avanços surjam de suas reais possibilidades. Para Zabalza (2004, p.125), “refletir não é retornar constantemente aos assuntos utilizando os mesmos argumentos; é documentar a própria atuação, avaliá-la e implementar os processos de ajustes convenientes”. Desse modo, este estudo também buscou contribuir para a reflexão do que vem sendo realizado, analisando as articulações entre o projeto político-pedagógico do curso de Nutrição e as inovações que ocorrem na sala de aula, considerando que seu valor educativo reside na flexibilidade e contextualização dos atos de ensinar e aprender. Com ele foi possível constatar que vivemos a chamada fase de transição de paradigmas, com todas as tensões e desafios que ela impõe. Percebemos que, como a inovação tem sempre um componente coletivo, é por meio da socialização das experiências significativas para os alunos, as quais resultam de práticas inovadoras dos professores, que poderemos ampliar as condições para a necessária ruptura paradigmática. Os professores que já estão produzindo inovações podem inspirar a renovação pedagógica para que essa se amplie, bem como mostrar que é possível estabelecer novas relações entre professor, aluno e conhecimento. Deste modo, compartilhamos os êxitos e dificuldades dos docentes na busca de uma prática que avance continuamente, incluindo os métodos, objetivos e conteúdos do Curso e modificando a práxis do ensinar e aprender, estimulando o prazer de estudar, de descobrir e de ser plenamente cidadão. Reafirmamos, ainda, a importância da produção de conhecimento sobre a pedagogia universitária, numa intersecção de saberes que incluem a área de educação e o campo científico e profissional de carreiras acadêmicas. Parece que é com o diálogo epistemológico que se poderá fazer avançar o conhecimento e a profissionalização do professor universitário. Esse esforço exige humildade, capacidade de diálogo e requer objetivos comuns.

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PEDROSO, M.B.; CUNHA, M.I. Viviendo la innovación: experiencias en el título de licenciado/a en nutrición. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.141-52, jan./mar. 2008. Este trabajo es el fruto de una reflexión docente sobre las prácticas pedagógicas, consideradas significativas por los estudiantes del título de Licenciado/a en Nutrición, pertenecientes a una Universidad de Río Grande do Sul (Brasil), desde el protagonismo de las Profesoras que lo han llevado a cabo. Pretendemos conocer si tales experiencias se traducen en innovaciones, desde una perspectiva de ruptura paradigmática, entendiendo la innovación como un proceso discontinuo de revolución ante las formas tradicionales de enseñar y aprender. Hemos utilizado una metodología de investigación de corte cualitativo, con los principios de abordaje etnográfico. La naturaleza de las actividades enunciadas por los estudiantes como prácticas significativas son diferentes, e incluyen la emoción, sensibilidad y percepción estética, articulando subjetividad y objetividad, ciencia y cultura, técnica y política. Las trayectorias personales y profesionales, son factores determinantes en el modo de actuación de las profesoras revelando sus concepciones sobre su quehacer pedagógico. Indican condiciones presentes en la constitución de la profesionalidad docente de la enseñanza superior. En esa dirección concuerdan con otros estudios que persiguen construir las bases de una pedagogía universitaria.

Palabras clave: Universidades. Enseñanza. Innovaciones. Educación superior. Recebido em 19/07/06. Aprovado em 28/08/07.

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Discursos de cirurgiões-dentistas do Programa Saúde da Família: crise e mudança de habitus na Saúde Pública Mônica Campos Chaves1 Alcides Silva de Miranda2

CHAVES, M.C.; MIRANDA, A.S. Discourse among dentists within the Family Healthcare Program: crisis and change of habitus within public health. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.153-67, jan./mar. 2008.

This paper analyzes the meaning of discourse among dentists relating to their perceptions of their place and professional activities within Family Healthcare Program services in municipalities in the metropolitan area of Fortaleza, CE. This was a qualitative study based on interviews with key informants, which used a technique derived from the content analysis method and a dialectic approach. The thematic content showed a perception of contradictions between the dentists’ initial motivations and expectations from choices made and their professional identification; their ideation regarding their professional activities; the process of training and graduation; and the real conditions of integration, professional activities and working practices within public primary healthcare services. It denotes a crisis of a certain professional habitus, because of their integration into a new context of salaried work and service provision within the public sphere, differing from their initial expectations and ideation of liberal professional activities.

No artigo são analisados os significados de discursos proferidos por cirurgiõesdentistas, que tratam das percepções sobre a própria inserção e atuação profissionais em serviços do Programa de Saúde da Família de municípios da área metropolitana de Fortaleza/CE. Trata-se de um estudo qualitativo, com base em entrevistas com informantes-chave, utilizando técnica derivada do método de “Análise de Conteúdo” e abordagem dialética. Os conteúdos temáticos evidenciam a percepção de contradições entre as motivações e expectativas iniciais de escolha e identificação profissionais; as ideações sobre a atuação profissional; o processo de formação na graduação; e as condições reais de inserção, atuação profissional e práticas de trabalho em serviços públicos de Atenção Básica à Saúde. Denota-se a crise de um determinado habitus profissional, em razão de sua inserção em um novo contexto de trabalho assalariado e prestação de serviços na esfera pública, diverso da expectativa e ideação iniciais de uma atuação profissional-liberal.

Key words: Social perception. Professional practice. Community dentistry. Education in dentistry. Family healthcare.

Palavras-chave: Percepção social. Prática profissional. Odontologia comunitária. Educação em odontologia. Saúde da Família.

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1 Cirurgiã-dentista. Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza. Rua Prof. Lino Encarnação, 1379 Parquelândia Fortaleza CE 60.450-230 moni_campos@hotmail.com 2 Médico. Universidade Federal do Ceará.

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DISCURSOS DE CIRURGIÕES-DENTISTAS...

Introdução O chamado “Programa Saúde da Família” (PSF) tornou-se a marca institucional e a expressão normativa de uma estratégia programática oriunda do setor governamental de Saúde, que vem sendo progressivamente implementada desde 1994 em todo o Brasil. Uma vez conformadas as suas diretrizes normativas nacionais, o propósito primordial dessa estratégia tem sido ampliar o acesso e estabelecer um determinado modelamento da rede de sistemas e serviços de Atenção Básica à Saúde, a partir do provimento de um modo específico de financiamento (fração variável do Piso da Assistência Básica) e de apoio logístico intergovernamental. Uma das principais diretrizes normativas do PSF refere-se ao trabalho interdisciplinar de equipes multiprofissionais em Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF), responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias que vivem em uma área geográfica delimitada (conceito logístico de adscrição de território). Neste âmbito comunitário e nos serviços locais, as equipes do PSF devem atuar em ações de promoção, proteção e recuperação da saúde individual e coletiva (Brasil, 2005). Em sua complexidade, o PSF está conformado por uma estratégia programática dialeticamente estruturada e estruturante, instituída e instituinte. É estruturada com base em diversos determinantes sociais, notadamente aqueles decorrentes das políticas de governo, que se interpõem em uma pluralidade de instâncias e dinâmicas de poder, típicas dos sistemas institucionalizados de ação. É instituída em razão de normas, prescrições e comportamentos regrados (Weber, 1996) da parte de seus atores institucionais, individuais e coletivos. É instituinte em razão das ações intencionais da parte dos diversos atores institucionais de seu entorno, do exercício e das graduações de poder estabelecidos entre os mesmos, das dinâmicas de margens de autonomia de cada um e das interações e mediações políticas resultantes. É estruturante de uma determinada modelagem para as políticas de “Atenção à Saúde” de nível primário e de âmbito local, distinta das anteriores. Essa modelagem é consubstanciada em inovações e combinações tecnológicas afins, que produzem novas dinâmicas e práticas de trabalho, que constituem novos perfis profissionais e comunidades de práticas em seu entorno. Em suma, essa estratégia programática é derivada de uma política setorial de governo, que está sob constantes tensionamentos dialéticos, permeada de contradições e dependente de mediações políticas que adquirem uma materialidade singular em cada caso e experiência; para além do seu marco referencial jurídico-normativo, de sua logística sistêmica ou de seu contexto funcional. Dentre os agentes institucionais que atuam no entorno do PSF estão os profissionais de nível superior, trabalhadores e prestadores de serviços que, na maioria dos casos, ainda não possuem vínculo empregatício permanente na esfera pública (Brasil, 2005; Girardi & Carvalho, 2004). Desse contingente de nível superior, de início, eram admitidos preferencialmente, no PSF, os profissionais médicos e enfermeiros. Mas, sobretudo a partir de 2001, acentuou-se a admissão de cirurgiõesdentistas, à medida que houve um incremento da programação de recursos e ações para as políticas e estratégias de Saúde Bucal. A partir de então, houve um aumento significativo na inserção de Equipes de Saúde Bucal (ESB) no PSF, compostas por cirurgiões-dentistas e técnicos ou auxiliares de nível médio. De acordo com os dados divulgados em agosto de 2006 pelo Departamento de Atenção Básica (DAB/SAS) do Ministério da Saúde (Brasil, 2006), entre os meses de janeiro de 2001 e dezembro de 2005, o número total de Equipes do PSF registradas no Sistema de Informações de Atenção Básica (SIAB) aumentou de 13.200 para 24.600 (incremento em torno de 80%). O número específico de ESB registradas no SIAB aumentou de 2.248 para 13.269 unidades (incremento de quase 600 %); uma proporção que variou de 17 % para 54 % de ESB em relação ao número total de equipes do PSF. Enquanto, no mesmo período, a estimativa da população brasileira adscrita em áreas sob a responsabilidade de equipes do PSF cresceu de 22,1 % para 34 % (chegando a 52,8 % na região nordestina), a população adscrita por ESB cresceu de 3,7 % para 18,3 %. É importante salientar que o registro da implantação de uma nova equipe de Saúde Bucal no SIAB não significou necessariamente a abertura de um novo posto de trabalho para cirurgiões-dentistas, pois, em muitos

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casos, implicou o aumento de carga horária para profissionais já contratados. De qualquer modo, esses dados divulgados permitem estimar que, no referido período, houve um significativo aumento de postos de trabalho para cirurgiões-dentistas no PSF, além de contratações para outros programas nacionais, estaduais e municipais de Saúde Bucal implantados desde então. Tal incremento quantitativo na inserção de profissionais de odontologia em serviços de Atenção Básica pode ser considerado um fenômeno recente e original. Notadamente por sua nova conformação social, pela existência de um novo nicho de oferta e atração de empregos na esfera pública e pela utilização de uma força de trabalho qualificada, com uma formação social típica (Marx, 1984), em função de um novo contexto organizativo e laboral. Mas trata-se, também, de um fenômeno original, nos termos de um novo cenário institucional e normativo para a atuação profissional e as práticas de trabalho dos cirurgiões-dentistas, que tende a determinar e/ou condicionar mudanças substanciais no seu modus operandi, em seus gradientes de poder (político, técnico, administrativo) e margens de autonomia. O que pode implicar novas significações e significados para esses modos de atuação profissional e práticas de trabalho, da parte de seus protagonistas. Quando um determinado grupo social estabelece uma identificação mútua no modo sistemático de pensar e agir, no estilo e nos interesses, desenvolvendo um senso prático em comum; torna-se possível caracterizá-lo pelo seu perfil de identidades, em termos de regularidades identificáveis e apreensíveis. Tal perfil é o que Bourdieu (1996) define como um habitus, um princípio gerador que identifica as características intrínsecas e relacionais de uma posição, de práticas distintas e distintivas. A noção de habitus é caracterizada como um sistema de disposições duráveis, princípios geradores e estruturantes de práticas e de representações que podem ser objetivamente reguladas. Assim, se cada agente social dispõe de uma estrutura mental, uma vivência com percepções e representações únicas, um estilo de vida singular e opiniões próprias que lhes definem predisposições e unidades de estilo, quando essas características conformam um modo comum de pensar e agir, engendram um habitus. Dialeticamente estruturante e estruturada (em termos de sua formação social), tal categoria deve ser considerada essencialmente em sua dimensão relacional. Um habitus engendrado em um grupo social, como o da categoria profissional de cirurgiõesdentistas, constitui-se de expressões de uma espécie de “senso prático comum”. Há um conjunto de características e atributos determinados objetivamente pela identificação de interesses ou propósitos afins, mas dependente de uma dinâmica interativa de capitais e exercício efetivo de poder e do tensionamento de margens de autonomia no campo profissional (Bourdieu, 1996). Há, ainda, um conjunto de características e atributos constituídos subjetivamente pela identificação e compartilhamento de crenças, valores, linguagens, ritos, interpretações, explicações etc. O que possibilitaria um escopo de investigação muito abrangente, um cabedal de identificações plausíveis, mesmo para um estudo exploratório. Optou-se, então, por ressaltar os temas recorrentes, com base em um perfil de identidades e contradições entre expectativas, o sentido prescritivo das normas (de ensino, programáticas) e as experiências profissionais vividas em ambas as esferas de trabalho e de atuação profissional. Considerando-se os processos de implantação de Equipes de Saúde Bucal no PSF, em seus casos concretos e experiências singulares, como analisar os fenômenos de determinação e/ou (re)condicionamento na atuação profissional dos cirurgiões-dentistas, em suas relações e práticas de trabalho? Mais especificamente, como esses profissionais expressariam as suas expectativas e percepções acerca de sua atuação profissional e práticas de trabalho neste novo contexto do PSF? Embora se trate de um fenômeno mais recente, já são freqüentes, na literatura científica nacional, as pesquisas de natureza qualitativa sobre as percepções e representações de cirurgiões-dentistas acerca de seu processo de trabalho e atuação profissional. Nesse caso, predominam os estudos sobre representações sociais de cirurgiões-dentistas, como, por exemplo, sobre riscos profissionais e biossegurança do trabalho (Rodrigues, Domingues Sobrinho & Silva, 2005, 2004), sobre a atenção odontológica a grupos específicos (Costa, Saliba & Moreira, 2002), mas também existem estudos deste tipo sobre a atuação profissional de cirurgiões-dentistas em serviços públicos de saúde (Mellin & Tanaka, 2003).

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DISCURSOS DE CIRURGIÕES-DENTISTAS...

Em outro tipo de enfoque, Moreira, Nuto e Nations (2004) usaram uma abordagem antropológica para estudar as percepções e crenças em Saúde Bucal dos habitantes de uma comunidade urbana de Fortaleza/CE, buscando, assim, compreender a comunicação clínica entre acadêmicos de odontologia e seus pacientes, com a finalidade de sugerir melhoras para a humanização da prática odontológica. Com base no estudo, esses autores concluem que os modelos explicativos científicos e populares em Saúde Bucal no local estudado são diferentes e, muitas vezes, antagônicos, dificultando a interação entre dentistas e usuários. Em se tratando da análise mais específica das práticas odontológicas em Unidades Básicas de Saúde, Pereira, Pereira e Assis (2003) realizaram um estudo exploratório com a utilização da metodologia de “Análise de Conteúdo” (Bardin, 1977), entrevistando cirurgiões-dentistas do sistema municipal de saúde de Feira de Santana/BA. Esses autores concluem que os cirurgiões-dentistas persistem numa prática profissional pautada no modelo da odontologia tradicional, privilegiando ações individuais, autônomas, curativas e tecnicistas. Estudos dessa natureza podem contribuir para uma maior compreensão sobre a problemática apresentada, assim como para a geração de novas premissas de investigação.

Metodologia Foi realizado um estudo de natureza qualitativa, tomando-se por base a “Análise de Conteúdo” (Bardin, 1977) e a abordagem dialética (Minayo, 2002, 1996), sobre os significados de discursos práticos (Habermas, 1987) emitidos por cirurgiões-dentistas que atuavam profissionalmente em Unidades Básicas de Saúde da Família (UBASF) de quatro municípios-satélites da área metropolitana de Fortaleza, capital do Estado do Ceará, região nordeste do Brasil. A amostra intencional dos municípios, das suas respectivas UBASF e dos cirurgiões-dentistas incluídos como informantes-chave no estudo (Quadro 1) foi estabelecida valendo-se dos seguintes critérios: 1 Municípios de maior proximidade geográfica com a capital do estado, o que, além de ter facilitado a coleta das informações, tornou o estudo economicamente viável. 2 Em cada município selecionado, foram escolhidas as UBASF com equipes de Saúde Bucal e os cirurgiões-dentistas que atuavam profissionalmente há mais tempo, com o corte mínimo de dois anos. A capital Fortaleza foi excluída da amostragem porque, na ocasião do estudo, o município não possuía equipes de Saúde Bucal cadastradas no PSF. Critérios de exaustividade, representatividade, homogeneidade, pertinência e recorrência de conteúdos temáticos definiram o limite de 11 entrevistas.

Quadro 1. Descrição dos municípios, Unidades Básicas de Saúde da Família e quantitativo de informanteschave incluídos na amostra intencional e entrevistados no estudo. Número de UBASF

informantes-chave

Alarico Leite, Colônia Antonio Justo, Elias Boutola, Mucunã,

06

Municípios Maracanaú

JPA e Alto Alegre. Maranguape

Jubaia

01

Caucaia

Nova Metrópole, Joaquim Braga da Rocha e Sítios Novos.

03

Pacatuva

Sede

01

Total de entrevistados

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A sistemática utilizada para processamento e análise das informações coletadas nas entrevistas seguiu a seqüência definida pelo método de “Análise de Conteúdo”, do tipo “Categorial e Temática” (Bardin, 1977): 1 Pré-análise: leitura flutuante das entrevistas transcritas, com classificação manual e ordenação prévia de enunciados intactos (sintagmas analíticos); 2 Constituição e exploração de um corpus de leitura intertextual: edição de enunciados considerados significativos, de acordo com a pertinência, equivalência, exaustividade, representatividade e homogeneidade para com os temas previstos no roteiro ou surgidos espontaneamente no decorrer das entrevistas; 3 Identificação de unidades de significado e de unidades de contexto: unidades textuais de palavras, linhas e parágrafos oriundas dos enunciados escolhidos, sendo identificadas por conteúdos temáticos manifestos segundo reagrupamentos analógicos; 4 Análise e explicação de significados: explicação dos significados evidenciados nos discursos, com base em categorias de análise definidas por referência aos conteúdos temáticos e seus contextos factuais. Convém ressaltar que, se a “Análise de Conteúdo” é apresentada originalmente como uma metodologia com tratamento de análise tipicamente fenomenológico (Bardin, 1977), neste estudo houve também o evidenciamento de alguns significados contraditórios e agregou-se uma abordagem dialética de análise e síntese temática (Minayo, 2002, 1996). O estudo obedeceu às regras estabelecidas pela Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2003), que estabelece normas para os procedimentos éticos em pesquisas envolvendo seres humanos, tendo sido aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual do Ceará. Todos os entrevistados foram informados dos objetivos do estudo, ocasião em que lhes foi assegurado o anonimato e a possibilidade de desistência, e assinaram um termo de consentimento.

Principais resultados Os principais conteúdos temáticos, evidenciados na análise do estudo, referem-se aos discursos práticos sobre a formação profissional na graduação de Odontologia, as ofertas e restrições do mercado de trabalho e as condições para o exercício das atividades profissionais nas esferas pública e privada, temas que revelam significados sobre a migração voluntária ou exílio forçado, desde um perfil profissional liberal ou assalariado, na esfera privada, para um novo perfil de trabalho assalariado, sem vínculo empregatício ou garantias trabalhistas, na esfera pública. São evidenciadas conotações significativas sobre expectativas e constatações advindas das mudanças no processo e nas condições de trabalho, da prática liberal ao assalariamento (seja na esfera pública ou privada); e sobre a decorrente (re)constituição da identidade profissional após a transição para um novo âmbito de atuação profissional, sob a égide de uma política pública de Saúde Bucal e de uma estratégia programática típica da Atenção Básica, o PSF.

Escolha profissional, processo de formação na graduação, mercado e condições de trabalho dos cirurgiões-dentistas na esfera privada A primeira seqüência de conteúdos temáticos evidenciados trata, primordialmente, de consignações inerentes aos discursos sobre um percurso que se inicia com as expectativas e motivações da escolha profissiona,; segue com as experiências e algumas frustrações com o curso de graduação em Odontologia e converge para a constatação de desencanto e insustentabilidade quanto ao exercício das atividades profissionais, nos moldes da prática liberal e autônoma, sob as condições atuais do mercado de trabalho. Nos discursos analisados, houve uma alusão recorrente ao fato de que a escolha profissional deveu-se ao exemplo de pessoas próximas, que já eram cirurgiões-dentistas respeitados e que

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trabalhavam em seus consultórios particulares. Revelou-se uma motivação e expectativa inicial sobre a carreira de cirurgião-dentista, que a considerava como promissora, em termos de estatuto social, de grande autonomia profissional e de ganhos econômicos compensadores. Já no decorrer do processo de formação na graduação de Odontologia, eram percebidos os primeiros indícios do que alguns entrevistados denominaram de “mercado de trabalho saturado”, com referências às situações de excesso de profissionais formados, alta competitividade, subempregos, dificuldades para o trabalho em consultórios particulares etc. Segundo alguns relatos, tais indícios geraram apreensões sobre a inconformidade ou “deficiência” do processo de formação em relação às novas condições e exigências do mercado de trabalho, devido a entendimentos sobre dificuldades estruturais e problemas curriculares presentes no decorrer do curso de graduação. Alguns entrevistados chegaram a relatar situações em que alguns professores negavam-se a ensinar determinados conteúdos disciplinares especializados ou a instruir técnicas específicas, porque não queriam preparar profissionais que, mais tarde, estariam competindo com eles próprios no mercado de trabalho. Quando você se volta mais para as especialidades, eu acho que não deu um suporte legal não. Agora, é devido os professores não terem empenho legal para ensinar, tipo Ortodontia... eles evitavam passar o conhecimento para a gente. Eu acho que até por medo de perder o mercado deles, sei lá... pronto, é isso aí ! (Entrevistado 1)

Existem várias consignações discursivas sobre uma incongruência entre a orientação dos conteúdos ou práticas do curso de graduação e a realidade encontrada no campo de atividades profissionais e no mercado de trabalho, notadamente no caso da esfera pública. Alguns entrevistados entenderam que tais incongruências eram inevitáveis, cabendo aos próprios estudantes de graduação o esforço pessoal para preparar-se devidamente para a competição por nichos especializados de mercado. A percepção de incongruências existentes entre o processo de formação na graduação e as exigências do mercado de trabalho geraram, em alguns, as sensações de desapontamento e de “frustração ante o investimento realizado”. Denotou-se a “falta de oportunidades e perspectivas de trabalho” na esfera privada, juntamente com a convicção de que a profissão do cirurgião-dentista não era mais valorizada socialmente como antes. Você gasta muito dinheiro e você sai, você começa a trabalhar e você vê que o seu trabalho teve uma desvalorização enorme. Você não tem aquela importância que você achava que iria achar, né? Nesse lado, eu realmente me decepcionei um pouco, sabe? (Entrevistado 3).

O atual mercado de trabalho odontológico foi percebido como muito competitivo, sobretudo devido ao número, considerado excessivo, de cirurgiões-dentistas formados e em formação. Outro fenômeno aludido referiu-se a uma insuficiência de renda da maior parte da população, que não poderia pagar por serviços odontológicos privados. Tal dificuldade estaria constrangendo significativamente as iniciativas e perspectivas de uma prática odontológica liberal por desembolso direto. Além de tudo, houve um entendimento de que as exigências de investimento, consumo e dependência de equipamentos e instrumentos tecnológicos para o exercício profissional da Odontologia, na esfera privada, tornaram a prática liberal muito dispendiosa, praticamente insustentável para profissionais em início de carreira. Nesse caso, o tema referido nos discursos era: “tecnificação das práticas odontológicas”. Segundo alguns discursos, ante a impossibilidade do trabalho autônomo exclusivo em consultórios próprios, a alternativa de mercado, na esfera privada, seria o trabalho assalariado em grandes empresas e/ou planos de saúde odontológicos. Tal alternativa implicaria em condição de “sobrecarga e exploração do trabalho”, “acúmulo de empregos”, “insegurança e instabilidade profissionais”, descritos com base na experiência de muitos dos entrevistados.

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Consideradas as constatações sobre as condições do mercado de trabalho, haveria poucas chances de um cirurgião-dentista recém-formado tornar-se exclusivamente o típico profissional liberal, trabalhando em seu próprio consultório. A alternativa do assalariamento na esfera privada acarretaria numa remuneração complementar ao trabalho em consultório próprio, ou inversamente, o consultório seria o complemento ao trabalho assalariado. As referências ao trabalho assalariado denotaram temas recorrentes: “perda de autonomia”, “permanente insegurança”, “exploração”, “insatisfação”, “decepção”, “frustração”, “desencanto”, “pouca perspectiva de crescimento profissional”. Tais alusões temáticas foram, por fim, sintetizadas num tema referido por muitos dos entrevistados: “insustentabilidade” de permanência na condição de assalariados na esfera privada. Para alguns dos entrevistados, a constatação de “insustentabilidade” para a manutenção do trabalho na esfera privada resultou num impasse entendido como uma situação crítica. Crise que, por um lado, poderia implicar na perspectiva de abandono da profissão, opção pouco considerada; e, por outro lado, na perspectiva de buscar alternativas de trabalho assalariado, agora na esfera pública. Nos casos analisados, o PSF configurou-se, na ocasião, como a oportunidade, única e imediata, de “transição” para o trabalho assalariado na esfera pública, em municípios próximos da capital (local de residência da maior parte dos entrevistados). Os termos de alusão às expectativas no momento dessa transição podem significar a disposição de migração voluntária para a esfera pública e, a partir daí, de experimentação de um novo e promissor modo de vida e trabalho profissionais. Podem significar, também, a disposição de ida para um exílio forçado, assumindo-se um emprego, seguro e provisório, enquanto se aguardava o reingresso na esfera privada, em condições mais vantajosas. Eu acho o seguinte: o PSF, ele vai dar certo e é a perspectiva da Odontologia do futuro. Então, quer dizer, é uma profissão que eu acho que... no passado, muitas pessoas escolheram pela questão de status, pela questão financeira que era muito boa... a pessoa que fizesse Odontologia há vinte anos atrás, enricava. Hoje você tem que ir muito mais pelo lado da satisfação pessoal, através do exercício profissional. Acho que vivi a transição. Quando me formei, estava no fim, era o final da primeira corrente... e hoje eu estou na segunda. Agora, eu acho que se a pessoa ver só o lado financeiro ela vai ter uma grande decepção, eu acho que já saiu desse paradigma. (Entrevistado 8) Depois que a gente montou o consultório, foi passando o tempo e eu botei na minha cabeça que não era aquilo que eu queria. Eu queria um trabalho que me desse estabilidade, que tivesse aquele salariozinho todo mês, que eu pudesse contar, que eu pudesse me dividir melhor, trabalhar. Aí fiquei tentando, o meu sonho de consumo era ir para o PSF de XXX (município), todo mundo falava em XXX. Só que depois que eu entrei em XXX, que fiquei com aquele dinheiro todo mês e tudo o mais, o meu sonho de consumo agora é montar um consultório particular (Entrevistado 1).

Os entrevistados afirmaram que a escolha de trabalhar no PSF era quase sempre constrangida pela insustentabilidade de permanência na esfera privada ou pela busca de alguma remuneração regular e segura, o que, para alguns, influenciaria negativamente a atuação profissional do cirurgião-dentista em seu novo âmbito de trabalho. Muitos afirmaram que, geralmente, não havia um conhecimento prévio sobre os princípios e diretrizes do PSF, em razão de despreparo (deficiência na formação de graduação) ou desinteresse dos próprios cirurgiões-dentistas. Para alguns, tal desconhecimento dificultaria afinidade ou identificação prévias para com as normas e condições de trabalho e exercício profissional no PSF.

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Temas sobre o processo e as condições de trabalho no âmbito do “Programa Saúde da Família” Uma vez mencionados os temas sobre as motivações e a transição para um novo âmbito e processo de trabalho na esfera pública, os entrevistados discorreram sobre as suas impressões e percepções acerca da nova experiência profissional no PSF. Os principais temas aludidos reportaram ao reconhecimento de uma contradição substancial entre o ideário ou as diretrizes normativas do PSF e as reais condições de sua implantação, implementação e processo de trabalho. Quando se tratou das percepções sobre o ideário e os propósitos normativos do PSF, observou-se a predominância de referências de conotação mais positiva, identificadas com o ideário do Sistema Único de Saúde (SUS). O PSF foi, então, definido como uma proposta ministerial, como um modelo assistencial generoso, de caráter universal e integral, que tem como foco as famílias e comunidades mais carentes. É a proposta que veio do Ministério, né? Da universalização, intersetorialidade, integralidade, né? E que há a descentralização dos serviços. Então, quer dizer, esta proposta é interessante e que bate na proposta do SUS... Então, a gente entende mais-ou-menos o que está proposto na parte teórica das coisas, na parte prática não... muda um pouco. (Entrevistado 2).

Quando se tratou das tematizações sobre a experiência pessoal e profissional no PSF, foram reveladas sensações ambíguas: de satisfação pelo contato e proximidade com as comunidades locais, com a gratidão revelada; e de insatisfação com as condições de trabalho. Na verdade, tem horas quando a gente faz um trabalho interessante, quando a gente vai para a comunidade, que eles começam a entender isso. Aí você sai um pouco empolgado... puxa, esta é a proposta ! Mas tem hora, assim, que a nossa capacidade de atendimento é de vinte pessoas, aí você encontra quarenta, cincoenta pessoas numa fila e eles reclamam... e realmente não podemos atender... e isso acaba abatendo a gente. Então, quer dizer, têm horas que eu me sinto, às vezes tem hora que eu me cobro... O que atrapalha, para mim... é quando você vê uma disputa daquela, achando que você está disputando espaço, que você está ali para fazer marketing. (Entrevistado 2) Tem hora que eu gosto, tem hora que eu não gosto, tem hora que eu me sinto bem de estar lá e tudo o mais... Você é... Na maioria dos casos, eu tenho um retorno muito bom dos pacientes, já ganhei galinha, já ganhei frutas, né? Essas coisas. Sempre o pessoal está lá e tem esse reconhecimento, agradece, dá uma babadinha, diz que gosta do trabalho. Agora tem hora que é um saco você atender vinte pessoas, saber que todo dia você vai se levantar e vai atender vinte pessoas ou mais. (Entrevistado 1)

Os principais motivos de insatisfação com o exercício profissional no PSF referiram-se às suas condições estruturais e organizativas, consideradas insuficientes ou inadequadas pela maior parte dos entrevistados. Notadamente, a falta ou insuficiência de insumos tecnológicos e a ausência ou dificuldade de manutenção sistemática dos equipamentos odontológicos. No aspecto organizativo da demanda e atendimento dos serviços, preponderou a queixa, já mencionada, da desorganização e do excesso de demanda espontânea. A sobrecarga de demanda espontânea, o trabalho repetitivo e o excesso de atendimentos clínicos, curativos individuais, foram freqüentemente citados como os mais relevantes dos problemas organizativos no PSF, associados, geralmente, ao desgaste pessoal dos cirurgiões-dentistas e ao comprometimento da qualidade de seus serviços. Outro tema recorrente estava referido às dificuldades de integração no trabalho em equipes do PSF. Uma das diretrizes normativas típicas do PSF é aquela que estabelece o processo de trabalho integrado, interdisciplinar, entre equipes multiprofissionais. Nesse aspecto, todos os entrevistados

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referiram que tal processo de trabalho era pouco integrado, restringindo-se, na maior parte das vezes, ao encaminhamento de casos clínicos entre os membros da equipe. Alguns reiteraram que tal dificuldade de integração deveu-se a uma “tradição” de insulamento profissional dos cirurgiõesdentistas e de suas práticas de trabalho em consultório. Para outros, a imagem dos cirurgiõesdentistas seria mais “estigmatizada”, estando ligada às práticas curativas, como extrações e obturações de dente, o que contribuiria para um certo “isolamento” dos cirurgiões-dentistas em relação aos outros profissionais do PSF. Um dos entrevistados ressaltou que a utilização de sistemas de registros específicos e separados dificultaria ainda mais o intercâmbio de informações clínicas e a integração entre as equipes do PSF. Outro aspecto ressaltado foi o desgaste presente nas relações entre os profissionais de nível superior que atuavam no PSF, inclusive entre os próprios cirurgiões-dentistas, em razão de desconfianças e disputas internas. Houve uma interpretação de que as diferenças salariais entre os profissionais de nível superior que trabalham conjuntamente no PSF, notadamente entre os médicos e outros profissionais, realçariam as dificuldades de integração no trabalho em equipe e estimulariam atitudes de competitividade, ao invés de cooperação mútua. Foram recorrentes os relatos de incompreensão, inconformidade e desestímulo em relação à diferença de ganhos salariais entre os cirurgiões-dentistas e os médicos e enfermeiros do PSF. Alguns alegaram que as atividades cotidianas do trabalho odontológico no PSF exigiam um desgaste físico e mental equivalente ou maior do que aqueles do trabalho de médicos e enfermeiros. Houve uma constatação comum de que a baixa remuneração salarial do PSF era um obstáculo para a consolidação do serviço público como um novo nicho de mercado para os cirurgiões-dentistas, o que seria agravado pela forma “precarizada” das contratações por parte dos municípios. A situação, denominada por alguns dos entrevistados de “precarização do trabalho” estava referida à inexistência ou informalidade de vínculos contratuais entre os cirurgiões-dentistas e os serviços públicos. Devido a tal situação, foram destacadas sensações de insegurança, vulnerabilidade, dependência e constrangimento para a autonomia profissional. Em outros termos, a informalidade na garantia de emprego e de regularidade de um rendimento salarial mensal gerava incertezas sobre o futuro e expunha os cirurgiões-dentistas a uma condição de dependência e vulnerabilidade perante os interesses e a vontade dos contratantes. Alguns dos entrevistados relataram o que consideraram como “pressões” ou “interferências políticas” em seu processo de trabalho. Esses temas foram descritos como a interposição de autoridade, da parte de dirigentes governamentais (inclusive de dirigentes dos serviços de saúde), no modo de organização e funcionamento dos serviços odontológicos do PSF; notadamente em razão de interesses eleitorais, político-partidários ou da necessidade de propagação de uma imagem positiva da administração pública ante os usuários dos serviços. Em termos práticos, tais “pressões” ou “interferências políticas” implicariam, sobretudo, a determinação, por parte de dirigentes governamentais, de que não houvesse demanda reprimida nos serviços, de que todas as demandas espontâneas e imediatas deveriam ser atendidas, a fim de evitar desgastes ou críticas da chamada “opinião pública”. Outro modo de “pressão” ou “interferência” política ensejaria na determinação, mais ou menos sutil, de favorecimento ou privilegiamento na inclusão ou agendamento de determinados usuários, em detrimento dos critérios preestabelecidos para a organização da demanda. Para alguns dos entrevistados, as referidas “pressões” ou “interferências políticas”, assim como as suas decorrências, foram interpretadas como “naturais” e inerentes a qualquer processo de trabalho na esfera pública. Nesses casos, alguns alegaram restringir-se ao “trabalho no consultório”, deixando para outrem a definição dos modos do atendimento privilegiado ou diferenciado em função de interesses da “política local”. Para outros entrevistados, a mesma situação gerava desgastes, constrangimentos e sobrecarga de trabalho: Principalmente agora, neste momento (época de eleições municipais), porque eles ficam preocupados com a questão política. A gente tem que fazer a questão política, a gente é convidado a defender o projeto da administração. Esses colegas que não têm vínculo, eles ficam com a preocupação maior... então, pode atrapalhar o serviço. (Entrevistado 2)

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O local de trabalho é um local muito político. Mas sempre, nas minhas atividades, eu procuro ser imparcial, eu procuro sempre ficar o mais longe possível da política, né? (Entrevistado 6). De acordo com alguns entendimentos da parte dos entrevistados, tais condições de trabalho dificultariam o envolvimento dos cirurgiões-dentistas com iniciativas ou projetos de médio ou longo prazos, uma vez que persistiam as sensações de insegurança, instabilidade e falta de autonomia profissional. A recomendação mais comum: realização de concurso público para a contratação de profissionais no PSF. Por fim, foi revelada a sensação de frustração ante às expectativas iniciais, mesmo que comedidas, que versavam sobre as idealizações da norma PSF e as novas possibilidades de trabalho e exercício profissional na esfera pública. O PSF foi, então, consignado como um ideal generoso, mas contraditório, sendo uma alternativa também insegura para os cirurgiões-dentistas. Ressaltou-se a persistência da sobrecarga de trabalho, ausência de suporte tecnológico adequado, baixa remuneração, competitividade e dos constrangimentos da autonomia profissional, temas já referidos sobre o processo de trabalho na esfera privada. É claro que, diante da complexidade dos contextos discursivos e de contradições inerentes aos mesmos, a descrição sucinta de alguns temas evidenciados com base em discursos práticos sobre os processos de trabalho de cirurgiões-dentistas não é suficiente para caracterizar perfis de opiniões. Antes, trata-se tão-somente de alguns de seus indícios, que podem ser analisados na medida da pretensão exploratória anunciada. Em certa medida, as tematizações sobre as experiências de trabalho e prática profissional dos cirurgiões-dentistas evidenciaram ciclos recorrentes (Figura 1), que se iniciaram a partir de expectativas (mesmo que comedidas) e convergiram para a revelação de desencanto e frustração perante as condições reais de trabalho e de prática profissional nas esferas privada e pública.

X

Atividades profissionais e mercado de trabalho na esfera privada

exílio voluntário e temporário X

oportunidade

migração voluntária

Atividades profissionais e mercado de trabalho na esfera pública

Insustentabilidade Ideário do PSF com conotação positiva Desencanto Distanciamento entre ideário e prática no PSF Investimento pessoal frustrado Ambigüidade Pouca perspectiva de crescimento profissional Satisfação em ajudar a comunidade Insatisfação com as condições de trabalho Insatisfação com as condições de trabalho Exploração do trabalho assalariado Suporte técnico inadequado Acumulação de empregos Excesso de demanda espontânea Trabalho desgastante Trabalho desgastante Baixo poder aquisitivo da clientela Baixa remuneração Excessiva “tecnificação” das práticas Ausência de vínculo empregatício Excesso de profissionais e “saturação” Instabilidade no mercado Insegurança Formação deficiente na graduação Trabalho desintegrado nas equipes do PSF Escolha profissional pelo exemplo “Interferências político-partidárias” de prática liberal Frustração

âmbito do Programa Saúde da Família (PSF): equipes de Saúde bucal

X

âmbito de consultórios particulares, clínicas privadas e empresas de saúde bucal

perigo

Identidade e perfil de profissional liberal ou de assalariado

crise e busca de identidade profissional

X

Perfil de assalariado do serviço público sem vínculo empregatício formal

Figura 1. Descrição de conteúdos temáticos com referências aos âmbitos e esferas de atuação, mercado de trabalho e atividades profissionais doscirurgiões-dentistas entrevistados.

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Discussão A interpretação dos diversos conteúdos temáticos consignados nos discursos práticos dos entrevistados carece de um contexto discursivo mais abrangente, a hermenêutica de um sentido mais amplo para as diversas contradições reveladas. Nas tematizações sobre os processos de trabalho em ambas as esferas (privada e pública), são reveladas sensações e percepções de frustração, insatisfação, insegurança, ambigüidade. Inicialmente, a medida subjetiva para o juízo de tais significações são as expectativas de todos e de cada um, seja no momento da escolha profissional e formação de graduação, seja de ingresso ou transição no mercado de trabalho. Expectativas que, quando compartilhadas em um “senso prático comum”, podem ser consideradas como elementos constituintes do habitus profissional desses cirurgiões-dentistas. O habitus dos cirurgiões-dentistas, constituído historicamente a partir de um campo profissional de ideologia e práticas liberais, está em pleno processo de mudança, especialmente no que se refere às mudanças de posições e disposições dos profissionais no processo de trabalho (do profissionalismo liberal para o assalariamento). O que pode implicar crise existencial do referido habitus; seja no significado do termo “crise”, pela junção dos ideogramas mandarins (perigo + oportunidade), seja pelo significado da língua portuguesa de ruptura, divisão, descontinuidade e purificação (Boff, 2002). Crises de descontinuidade decorrentes de transformações e adaptações, mais lentas ou mais rápidas, engendram contradições substanciais entre as razões e os modos de ser das instituições formadoras, das corporações profissionais e do mercado de trabalho, nas esferas pública e privada. As novas determinações e condições de formação social (Marx, 1984), especificamente do mercado de trabalho na esfera privada, estão destituindo o capital simbólico e constrangendo as margens de autonomia do habitus profissional dos cirurgiões-dentistas, centrado no ideário liberal clássico; suplantando-o e constituindo um novo habitus referenciado pelo trabalho assalariado e serial, por novos padrões de competitividade e de intermediação tecnológica. As instituições formadoras não operam com a mesma velocidade do mercado, seus modos de readaptação são mais graduais, embora,, por razões desse mercado, tendam a expandir a oferta de cursos e vagas aumentando, assim, o volume de mão-de-obra disponível para o novo mercado, o novo liberalismo, mas contraditoriamente, ainda sob a égide da ideologia liberal da profissão, do habitus que se extingue. A expectativa frustrada ante um processo de formação que não prepara o cirurgião-dentista para a nova realidade de mercado pode, em certa medida, resultar num embotamento provocado pelo cultivo de uma ideologia tecnocrática nas práticas de ensino e aprendizado na graduação. Em termos gerais, a ideologia tecnocrática tem como função obstruir, interditar a abertura dos discursos práticos e impedir a tematização sobre os fundamentos do poder. Algumas normas institucionais, por exemplo, podem ser objeto de pseudo-legitimação quando cumprem a dupla função de impedir que elas próprias e seus propósitos sejam tematizados discursivamente. Nesse particular, busca-se substituir as normas sociais por regras técnicas. Se os fundamentos do poder não precisam ser tematizados, “não é porque repousam sobre a normatividade legítima, mas porque a lógica das coisas passa a ser preponderante” (Freitag & Rouanet, 1993, p.16). Assim, tornam-se necessários os investimentos, em termos de gestão do trabalho, na abertura de espaços da esfera pública para a tematização sobre as relações de poder e práticas profissionais. Em sua maior parte, os cursos de graduação em Odontologia no país possuem currículos orientados para uma formação mais técnica, com uma prática clínica individualizada, fragmentada, biocêntrica, curativa, com ênfase no uso de tecnologias “de ponta” (Narvai, 2003). Salienta-se, assim, a preponderância de um “racionalismo cartesiano disjuntivo” que, além de dar ênfase aos domínios cognitivos e instrumentais da formação, faz uma separação, por oposição, das esferas público-estatal e privada como pólos repelentes gerando, dessa forma, uma ruptura, tanto na organização objetiva do sistema, quanto nas estruturas mais profundas, em que as práticas sociais são representadas (Moysés, 2004). Alguns autores, como Zanetti (2001), criticam a unidimensionalidade tecnológica preponderante no desenvolvimento do perfil de habilidades nos cursos de graduação em Odontologia, quando

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mesmo as pretensões de enfoque ampliado tratam de um “sujeito coletivo” indeterminado e descontextualizado. Para esses autores, trata-se de uma redução que desconsidera o desenvolvimento de habilidades em outras áreas substanciais, como administração, marketing e, sobretudo, na dimensão das relações interpessoais. Tal redução de foco produz um condicionamento de habitus que tende a valorizar o domínio e o uso de uma racionalidade instrumental na prática clínica; em certa medida, condizente com a reificação produzida na ideologia liberal de mercado. Habilidades e competências individuais em biotecnologia, apropriadas para produzir procedimentos clínicos com valor de consumo, mas, notadamente, com valor de troca no mercado. Livre iniciativa e autonomia para organizar serviços privados, sustentados pelo desembolso direto ou indireto da clientela, com competência e habilidade de competição no mercado de oportunidades. Razão teleológica, cuja ideologia é hegemônica nas sociedades contemporâneas, reduzindo a produção ao ato funcional de produzir bens de consumo para fazer o mercado girar (Campos, 2000). Como afirmado anteriormente, a escassez de oportunidades vantajosas no mercado de trabalho induz ou impõe a escolha de novas oportunidades de trabalho na esfera pública emergente. O PSF torna-se, então, uma espécie de “tábua de salvação”, num mar de frustrações. Pode ser a oportunidade de “emprego”, mas não necessariamente de “realização profissional”. Pode levar a um abrigo provisório ou a um “porto seguro”, a depender de sua capacidade de re-condicionar o senso prático comum. Alguns optam pela migração voluntária para o trabalho na esfera pública, redimensionando as suas expectativas ao reconhecer o PSF como a melhor perspectiva de trabalho assalariado. As percepções evidenciadas sobre as experiências no novo ambiente de trabalho e na implementação da estratégia programática (Saúde Bucal no PSF) denotam outras contradições entre as normas institucionais e a realidade de sua implementação: entre as proposições normativas do programa e as condições objetivas de sua implementação, entre as proposições normativas da boa atuação profissional e as condições práticas de seu exercício; como, também, contradições entre o processo instituinte e a cultura organizacional instituída. As mudanças percebidas no re-condicionamento deste senso prático comum, no habitus profissional, revelam algumas tentativas de adaptação comportamental ao novo contexto organizacional, algo intermediário entre o instituinte e o instituído. Em alguns casos, de alienação, negação de envolvimento mais íntimo com o processo em curso, seja por desinteresse genuíno ou pela vulnerabilidade perante ameaças ou riscos pressentidos, velados ou explícitos (como o desemprego). Senso prático de adaptação e/ou alienação que induz a uma predominância de comportamentos regrados (Weber, 1996). Comportamentos orientados por interesses, como, por exemplo, nos posicionamentos frente aos interesses político-eleitorais locais em jogo; orientados por valores, especialmente pelas disposições nos serviços públicos condicionadas com base nos valores constituídos desde a formação na graduação; comportamentos determinados pela tradição da prática profissional liberal. São muitos os fatores que limitam a capacidade desses profissionais de inovar suas práticas de trabalho em um novo contexto organizacional. O senso prático comum, quando auto-referenciado, estabelece uma tendência de acomodação e alienação, determina a preponderância de comportamentos tradicionais. Uma das características primordiais dos comportamentos tradicionais, pelo menos em processos instituintes dessa natureza, é a dificuldade ou incapacidade de lidar com inovações, o que pode levar ao comprometimento e à desintegração de identidade, ao insulamento ou acomodação. Trabalhadores com baixa auto-estima, acomodados às situações que impossibilitam o exercício efetivo da clínica, passando a trabalhar de forma mecânica, sob a vigilância controladora ou por causa dos estímulos econômicos (Campos, 2002). O insulamento corporativo tende a definir os seus domínios no ambiente do consultório odontológico, nicho de seu poder técnico. Se o domínio de conhecimentos clínicos e as habilidades adquiridas para a realização de procedimentos técnicos podem ter grande valia no espaço protegido dos consultórios, auxiliam pouco na conquista de espaços e prerrogativas de poder (político, técnico)

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ante as equipes preexistentes no PSF. Seu carisma institucionalizado, capital simbólico tão caro na prática liberal, não pode ser convertido em prestígio e nem disponibilizado no jogo de posições e disposições do novo campo multiprofissional, interdisciplinar. Seus ganhos salariais, quando comparados, reforçam a sensação de desprestígio ante os outros profissionais da equipe. Em razão disso, o novo campo de atuação profissional exige o domínio de conhecimentos e de habilidades para lidar com uma dialética de cooperação e competição em ambientes institucionais da esfera pública, na qual se tende a valorizar a interação e o trabalho interdisciplinar, exigindo, dessa forma, além de comportamentos regrados ou ações intencionais normativas e instrumentais, o desenvolvimento e exercício de ações estratégicas e comunicativas (Habermas, 1987).

Conclusão Os cirurgiões-dentistas entrevistados revelam algumas frustrações quanto às suas aspirações profissionais, sobretudo em razão de perceberem incompatibilidades entre as suas motivações e expectativas iniciais de escolha profissional e as condições inadequadas de seu processo de formação na graduação, a saturação do mercado para a prática liberal, a insatisfação com as condições encontradas para a prática de trabalho na esfera pública, no âmbito da Atenção Básica à Saúde, especificamente em serviços do PSF. Em suma, denota-se uma crise decorrente da mudança de habitus profissional dos cirurgiõesdentistas, em função de sua inserção em um novo contexto de trabalho assalariado e da prestação de serviços na esfera pública, diverso da expectativa e ideação iniciais de uma atuação profissional liberal. Nas consignações analisadas não há, ainda, evidências da apropriação de um novo habitus de profissional assalariado, mas de sinais e sintomas contraditórios sobre os desgastes ou a perda da aura do habitus de profissional liberal. Revelam-se, ainda, algumas incompatibilidades entre os propósitos normativos do PSF e as condições objetivas para o exercício da prática profissional em Odontologia. Também são identificadas tendências de adaptação ou alienação diante do novo contexto de formação social sem, contudo, realizar uma tematização explícita sobre os fundamentos e tensionamentos de poder no âmbito institucional. Sugere-se, por fim, a realização de outros estudos de abordagem qualitativa, que possam analisar as representações sociais e opiniões dos cirurgiões-dentistas sobre o processo e práticas de trabalho.

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DISCURSOS DE CIRURGIÕES-DENTISTAS...

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CHAVES, M.C.; MIRANDA, A.S. Discursos de cirujanos-dentistas del Programa Salud de la Familia brasileño: crisis y cambio de habitus en la Salud Publica. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.153-67, jan./mar. 2008. En el artículo se analizan los significados de discursos proferidos por cirujanos-dentistas que tratan de las percepciones sobre la propia inserción y actuación profesionales en los servicios del Programa de Salud de la Familia de municipios del área metropolitana de Fortaleza, estado de Ceará, Brasil. Se trata de un estudio cualitativo basado en entrevistas con informantes-clave, empleando una técnica derivada del método de “Análisis de Contenido” y aproximación dialéctica. Los contenidos temáticos colocan en evidencia la percepción de contradicciones entre las motivaciones y expectativas iniciales de elección e identificación profesionales; las ideaciones sobre la actuación profesional; el proceso de formación en la graduación; y las condiciones reales de inserción, actuación profesional y prácticas de trabajo en servicios públicos de la Atención Básica a la Salud en Brasil. Se percibe la crisis de un determinado habitus profesional, en razón de su inserción en un nuevo contexto de trabajo asalariado y prestación de servicios en la esfera pública diferentes de la expectativa e ideación iniciales de una actuación profesional- liberal.

Palabras clave: Percepción social. Práctica profesional. Odontología comunitaria. Educación en odontología. Salud familiar.

Recebido em 09/01/06. Aprovado em 04/10/07.

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Marisley Vilas Bôas Soares1 Aldaísa Cassanho Forster2 Manoel Antonio dos Santos3

SOARES, M.V.B.; FORSTER, A.C.; SANTOS, M.A. Characterization of support houses for people with HIV/Aids in Ribeirão Preto (São Paulo, Brazil) and their administrative practices. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.169-80, jan./mar. 2008. The study aimed to determine how three support houses for people with HIV/Aids in Ribeirão Preto, SP, are organized and operated by their coordinators, and how care is provided. Semi-structured interviews were held regarding coordination functions. Structural characteristics of the locality were probed and daily institutional life was recorded using a field diary. It was found that, legally, these organizations are governed by assistance-providing and humanitarian entities that sought to conform to operational technical standards and requirements. They received subsidies from local municipal authorities but were especially maintained through donations from civil society. Women predominated among the employees and volunteers and were the coordinators. From their words, they had a multifunctional administrative stance and had difficulty in achieving social inclusion for the residents because of prejudice or the rules for how the houses should function. In conclusion, the houses are what they purport to be administratively, but should be attentive towards the need, as social agents, to encourage social inclusion.

Objetivou-se conhecer a organização, o funcionamento e a prestação da assistência de três Casas de Apoio a portadores de HIV/ Aids em Ribeirão Preto-SP. Foram feitas entrevistas semi-estruturadas com as coordenadoras a respeito de suas funções, aplicou-se um questionário sobre os aspectos estruturais do local e registraram-se observações do cotidiano das instituições. Legalmente, eram organizações regidas por entidades de cunho assistencialistahumanitário e procuravam adequar-se às normas técnicas e exigências para seu funcionamento. Recebiam subvenção da prefeitura local, mas eram sustentadas, sobretudo, por doações da sociedade civil. As coordenações eram desempenhadas por mulheres, predominantes nos quadros de funcionários e voluntários. Em suas falas, observou-se uma postura administrativa multifuncional e dificuldade para realizar a inclusão social dos moradores, devido a preconceito ou regras de funcionamento das casas. Conclui-se que, administrativamente as Casas correspondiam ao que se propunham, mas deveriam atentar para a necessidade, como agentes sociais, de fomentar a inclusão social.

Key words: Recuperation houses. HIV. Acquired immunodeficiency syndrome. Care. Social inclusion.

Palavras-chave: Casas de recuperação. HIV. Síndrome da imunodeficiência adquirida. Cuidado. Inclusão social.

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1 Psicóloga. Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. Rua Coronel Arnoud Antunes Maciel, 268 Jardim América Ribeirão Preto SP 14.020-150 marisley@usp.br 2 Médica. Departamento de Medicina Social, Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo. 3 Psicólogo. Departamento de Psicologia e Educação, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo.

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Caracterização das Casas de Apoio a portadores de HIV/Aids em Ribeirão Preto (São Paulo, Brasil) e suas práticas de administração


CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

Introdução Os serviços de cuidado às pessoas portadoras do vírus HIV são oferecidos, atualmente, junto à rede assistencial do Sistema Único de Saúde (SUS), por meio de programas governamentais (Programa Nacional de Combate à Aids, Centros de Testagem e Aconselhamento - CTA, entre outros) e iniciativas organizadas e mantidas pela sociedade civil, como Organizações Não Governamentais (ONG) e as denominadas Casas de Apoio. Observa-se que o termo Casa de Apoio possui uma utilização diversa, pois pode abranger públicos e objetivos diferenciados. Têm-se, por exemplo, instituições-abrigo para mulheres vítimas de violência (Meneghel et al., 2000), bem como para pessoas em tratamento de saúde e seus acompanhantes – vide experiências, como associações de combate ao câncer, existentes em várias cidades do país, como os GACC (Grupo de Apoio à Criança com Câncer), Casa Hope, entre outras. Todas são, no entanto, voltadas a oferecer um recurso de assistência e cuidado a uma clientela que, particularmente, esteja vivenciando uma situação de maior vulnerabilidade emocional e/ou física. Data de 1985 o surgimento da primeira Casa de Apoio para portadores do HIV, a Casa de Apoio Brenda Lee, a primeira do gênero na América do Sul (Ramos, 2004; Galvão, 2002). Abadia-Barrero (2002) refere que, na década de 1990, houve uma expansão das casas de apoio e outros trabalhos assistenciais às pessoas soropositivas. As Casas de Apoio a portadores de HIV/Aids são organizações da sociedade civil, de caráter privado, com interesse público e sem fins lucrativos, majoritariamente mantidas com recursos que provêm da sociedade. Configuram-se como equipamentos para acolhimento e acesso à assistência multidisciplinar à saúde de portadores sem recursos financeiros e/ou condições familiares para a convivência diária com as demandas que a síndrome acarreta no seu cotidiano (Brasil, 1998). As Casas de Apoio atuam no cuidado à saúde de seus moradores, mediante o acompanhamento em consultas, administração dos remédios, fornecimento de alimentação e condições de moradia adequadas (São Paulo, 2002). A compreensão do contexto de vida do morador, bem como o conhecimento de sua história de vida, suas crenças e representações, são condições necessárias para a organização das ações de saúde a serem oferecidas na assistência a essas pessoas. Segundo Luz (1997), é preciso ir além da atuação sobre a doença, sendo necessário fomentar a convivência saudável entre os indivíduos e a busca por um ambiente agradável para se viver – em uma concepção biopsicossocial da saúde. Essas entidades lidam com questões que ultrapassam o âmbito do binômio saúde-doença, ao serem coadjuvantes de um processo de reintegração de seus moradores à sociedade, que tende a considerar a diversidade de modos de existir como uma ameaça aos seus anseios de disciplina e ordem (São Paulo, 2002). Dessa forma, as Casas de Apoio articulam uma teia complexa de inter-relações entre os diferentes atores sociais, implicados na prestação do cuidado à saúde, que compõem a organização e administração dos serviços, a população assistida e as entidades sociais envolvidas no processo de intervenção. Nesses locais, as coordenações são responsáveis por viabilizar as práticas de assistência por meio de funções administrativas (como obtenção de recursos financeiros e materiais em busca da autosuficiência) (Fischer, 1998), entremeadas por relações interpessoais decorrentes da convivência entre moradores e a equipe de trabalho da instituição. A assistência prestada ao portador do vírus HIV requer a consideração de fatores inerentes às representações sociais dessa doença, para que se possa prestar um atendimento mais efetivo. Com relação à Aids, é possível identificar diferentes manifestações estigmatizantes e desqualificadoras dirigidas ao portador. A informação de soropositividade pode proporcionar ao portador impactos sociais negativos, pois a partir do instante em que se revelou (no sentido de tornar conhecida e de ser desvelada ao outro) essa condição, são acionados os mecanismos que irão lhe conferir sua rotulação (Ferreira & Figueiredo, 2006). Visando aprofundar os conceitos de estigma e discriminação em relação à Aids, Parker e Aggleton (2001) entendem que se tratam, sobretudo, de manifestações da desigualdade e exclusão social (ao se criarem hierarquias entre estigmatizados e não estigmatizados-marginalizados), das relações de

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poder (ao sujeitar o indivíduo à aceitação do próprio estigma, por se considerar socialmente desviante) e de seu controle. Com relação à família, as forças de associação dos membros familiares são postas em ameaça na condição de estigma de um dos seus: a família tanto pode assumir uma postura solidária, quanto ser reticente em relação ao indivíduo marginalizado “em virtude dos sentimentos de desonra que ele acabou despertando” (Paugaman, 1999, p.78), criando-se uma situação que pode sobrepujar a relação de obrigação-retribuição. Enquanto muitas doenças mobilizam a família em torno de seu ente enfermo, a Aids pode conduzir a uma profunda desestabilização e, sobretudo, desagregação familiar (Soares & Figueiredo, 2001). A condição daquele que se torna objeto de discriminação e rejeição no seio familiar permeia a história de muitos indivíduos que adquirem o HIV, notadamente os que se tornam moradores das Casas de Apoio. Ao pensar sobre a população residente de uma Casa de Apoio para portadores do HIV, a falta de condições para a permanência em seu próprio lar – quando este até existe – remonta a situações de falta de recursos materiais e também socioafetivos. No Brasil, a epidemia de Aids assume atualmente um perfil relacionado à pauperização e feminização da população mais atingida. A esse perfil podem-se acrescentar outras tendências encontradas na análise comparativa dos dados epidemiológicos realizada no período compreendido entre 1980-1991 até março de 2002 (Gotlieb, Castilho, Buchalla, 2002), como: 1) desaceleração e interiorização; 2) heterossexualização (a partir de 1993) do contágio, atingindo principalmente as mulheres; 3) feminização e envelhecimento; 4) aumento de sobrevida; e 5) pauperização (Brasil, 2002). Ribeirão Preto (São Paulo, Brasil), município de médio porte com cerca de meio milhão de habitantes, segundo dados apresentados pela Secretaria de Saúde da Prefeitura Municipal, registrou oficialmente o primeiro caso em 1986. O valor atual do coeficiente de prevalência leva o município a ocupar, no ranqueamento da síndrome, a sexta posição no país e a terceira no Estado de São Paulo. O perfil dos casos notificados de 1986 a 2006 na cidade indica a faixa etária de 30-34 anos como a mais atingida, a categoria de exposição heterossexual seguida pelo uso de drogas, havendo pequena diferença dos números de casos registrados entre homens e mulheres no ano de 2006 (Ribeirão Preto, 2007).

Objetivo O estudo objetivou conhecer a organização, funcionamento e prestação da assistência pelas coordenações das três Casas de Apoio a portadores de HIV/Aids em Ribeirão Preto-SP.

Material e métodos Participaram do trabalho as coordenadoras das três Casas de Apoio a pacientes portadores de HIV/Aids, situadas na cidade de Ribeirão Preto-SP (Brasil). O critério de inclusão utilizado para recrutar o sujeito do estudo era de a pessoa ocupar a posição de gerente da organização no ano de 2003, quando os dados foram coletados. Considerou-se como coordenador aquele indivíduo designado para “reunir e sincronizar atividades e pessoas de forma que funcionem harmoniosamente na realização dos objetivos da organização” (Dever, 1988, p.49). As participantes formalizaram sua anuência com a pesquisa mediante assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. O conceito de administração utilizado na pesquisa foi aquele apresentado também por Dever (1988, p.48) como o “processo que supervisiona a produção dos serviços da saúde”. Desse modo, dentre as atribuições esperadas para serem desenvolvidas pelas casas, figurava a oferta de assistência multidisciplinar no nível da comunidade, administrando junto ao pacientemorador o cronograma da assistência à saúde (consultas e atendimentos nos serviços especializados de saúde), os tratamentos, a alimentação e as orientações e condições de higiene recomendadas na moradia (São Paulo, 2002).

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CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

Além disso, a inclusão social dos pacientes-moradores e sua reinserção familiar, para aqueles que a perderam por algum motivo, fazem parte das funções que compõem a missão das Casas Apoio e foram preconizadas pelo Ministério da Saúde em documento para orientação dessas entidades (Brasil, 1998). Os elementos relacionados constituem alguns dos parâmetros em que o trabalho será pautado para estudar as práticas administrativas das Casas de Apoio. Este estudo, de caráter exploratório e descritivo, estruturou-se com base nos seguintes instrumentos para coleta dos dados: 1 questionário constituído por 23 perguntas com base no Guia de Recomendações do Ministério da Saúde do Brasil (1998), que possibilitaram traçar um perfil estrutural das instituições. As questões podem ser classificadas em: estrutura física; estrutura financeira e social; recursos disponíveis e seu manejo; segmento da população que a Casa recebe e sua permanência; quadro de funcionários e normas de biossegurança, tendo sido verificado in loco o cumprimento ou não dos itens questionados. Esse tipo de questionário permitiu descrever a estrutura e funcionamento da Casa de Apoio e o conhecimento ou não do coordenador sobre alguns tópicos abordados. 2 roteiro de entrevista semi-estruturada sobre as atribuições do coordenador. O roteiro de entrevista semi-estruturada buscou dar maiores condições para abordar, com as coordenações, a construção de processos que subsidiam as práticas de assistência e funcionamento da instituição. A entrevista, por excelência, é tida como recurso que possui grande utilidade por ser a porta de acesso para uma qualidade diferenciada de dados “que nenhuma outra estratégia prevê, quando se trata de pesquisa com sujeitos humanos” (Biasoli-Alves, 1989, p.2). Possibilita que atitudes, valores, sentimentos e opiniões venham à tona na relação entrevistador-entrevistado, assim como o reflexo de acontecimentos anteriores no discurso presente; 3 observação, em sua modalidade livre, do cotidiano das instituições, ao longo de três visitas, de uma hora cada (em média), realizadas em diferentes períodos do dia; 4 diário de campo, contendo anotações registradas ao longo de todo o processo de coleta dos dados. Esses dois últimos instrumentos possibilitaram a caracterização do cenário e do local onde se deu a coleta dos dados. A oportunidade de participar do primeiro fórum de entidades denominado “Coopera Ribeirão”, promovido pela Secretaria do Desenvolvimento e Bem-Estar local, contribuiu para conhecer algumas questões que permeiam o trabalho de diferentes organizações não governamentais, e, mais detidamente, daquelas que estão inseridas no atendimento de pessoas portadoras de deficiências (incluindo-se aí as Casas de Apoio para portadores do HIV/Aids). Essa experiência forneceu um preparo importante para o início do trabalho de campo. O referencial metodológico adotado para a análise foi uma adaptação do método hermenêuticodialético, respaldado nas pesquisas qualitativas em saúde. Segundo essa proposta, a consideração dos contextos de enunciação (que na presente pesquisa foram obtidos por meio das observações e diário de campo) permite uma melhor compreensão da fala dos atores sociais. A complementaridade entre os dados obtidos estabelece como uma das finalidades da análise “ampliar o conhecimento sobre o assunto pesquisado, articulando-os ao contexto cultural do qual faz parte” (Gomes, 1994, p.69). Por meio dos itens abordados no questionário estruturado foi possível elaborar a descrição de cada local, bem como dimensionar aspectos relativos ao seu funcionamento. Além dessa fonte, as entrevistas, observações e diário de campo foram analisados por meio dos seguintes passos: ordenação com base em uma leitura exaustiva e flutuante; imersão que consistiu na releitura do material obtido de cada local investigado, com foco nas singularidades desses equipamentos e de suas respectivas coordenações; classificação, concomitante ao passo anterior, e análise, com a definição de eixos e subeixos para a articulação com o objetivo do trabalho, preparando para a interpretação e discussão dos dados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Saúde-Escola da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.

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Resultados e discussão Os resultados aqui apresentados versam sobre a análise dos locais estudados, nos seus aspectos estruturais, de funcionamento e organização. Além disso, apresentam-se algumas colocações das próprias entrevistadas, que contribuem para dimensionar suas práticas administrativas. Também há referência à questão da inclusão social de seus moradores, uma vez que se trata de uma das funções desempenhadas por esses locais de acordo com os documentos oficiais. Integraram esse estudo as três Casas de Apoio para portadores de HIV/Aids de que se tem registro na cidade de Ribeirão Preto, as quais pertenciam a um conjunto formado por um universo de 66 entidades, dentre estas 44 eram organizações assistenciais com outras atuações sociais (Soares, Santos, Forster, 2003). Duas delas atendiam à população adulta, homens e mulheres, e a terceira, exclusivamente crianças. Foram instaladas em imóveis amplos, cujas condições estruturais estavam adequadas às atividades a que se propuseram, em consonância com as normas de biossegurança. Uma delas, a qual estava recentemente instalada em um novo imóvel na época da coleta dos dados, aguardava a visita da Vigilância Sanitária para avaliação das instalações. Embora estivessem regulamentadas junto aos órgãos de fiscalização municipal, o regimento interno (documento que orienta as ações da organização) estava em fase de elaboração. As dificuldades financeiras também foram uma característica compartilhada por essas organizações. Viviam, sobretudo, às custas de doações e possuíam alguns benefícios públicos, pouco representativos frente às despesas que compunham os gastos para manutenção de uma Casa de Apoio para portadores de HIV/Aids. A relação com os serviços públicos foi construída de forma dúbia, pois, no âmbito governamental, o reconhecimento da importância desses serviços não assegurava o aporte de recursos e as condições mínimas necessárias para seu funcionamento (Fischer, 1998). A necessidade de angariar recursos para o financiamento das organizações era um dos pontos de contato com a sociedade e o poder público. O abrigo infantil parecia despertar uma maior sensibilização social do que aquelas casas que acolhiam adultos, o que resultava em um volume maior de contribuições. As camadas média e popular eram mais receptivas aos pedidos de auxílio, enquanto a classe empresarial parecia valorizar a capacidade produtiva dessas pessoas: ele investe na criança que ele sabe que vai viver ... é difícil você tentar uma parceria com alguém ou com uma empresa que ele sabe que a criança vai morrer ... é como se o investimento dele fosse para o túmulo de uma certa forma. (informação oral obtida de uma das entrevistadas)

Outro ponto em comum observado foi a presença feminina à frente de suas coordenações – todas as três eram administradas por mulheres que se iniciaram nas organizações como voluntárias e, por motivos diferentes, engajaram-se na formação desses equipamentos sociais. As organizações de apoio incluídas nessa pesquisa possuem, como missão, o restabelecimento de seus moradores e a realização de ações concretas que promovam condições favorecedoras à qualidade de vida. Como norma de funcionamento, as Casas de Apoio estipulam um período máximo para permanência do morador, que, ao longo de sua passagem, espera-se que esteja em condições de ser reinserido em sua família e, portanto, em sua comunidade de origem. No entanto, em muitos casos, a realidade mostrou-se diferente do “discurso oficial”. Foram identificados casos de moradores permanentes nessas Casas, ao passo que outros possuíam uma rotina de idas e voltas – em que a Casa parecia funcionar como um porto seguro para os momentos de maior dificuldade. Os moradores dessas Casas de Apoio foram qualificados como aqueles que não possuem estrutura (sic, coordenadora 1) tanto física e social, como familiares para que pudessem lidar com as decorrências do convívio com o HIV/Aids. Eram aqueles cuja família não tinha condições de mantêlos em sua casa, por falta de recursos e/ou meios concretos de sobrevivência. Ou, mais freqüentemente, detentores de uma história de vínculos familiares fragilizados, insuficientes para

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CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

garantir a convivência familiar com o portador e a sua doença. A esse perfil aliam-se duas questões: associação da pauperização da doença a uma dificuldade de manter a capacidade produtiva exigida pelo mercado de trabalho, o que pode refletir na dependência do portador em relação à família; a estigmatização social que atinge a todos que convivem com a doença, direta ou indiretamente (Ferreira & Figueiredo, 2006). Nas atividades de rotina desses locais, foi marcante a questão dos cuidados de saúde, uma vez que, praticamente em todos os dias da semana, alguém teria de sair para alguma consulta, realização de exames ou acompanhamento de rotina da saúde. Como ilustração dessa medida, as três Casas possuíam murais onde se encontrava uma agenda de consultas e retornos da semana, que, em uma das casas para adultos, ficava exposta em uma área de convivência comum. Nessa perspectiva, o cuidado de saúde era prestado por outros serviços e se fazia presente mediante o acompanhamento das consultas e controle dos horários, para permitir a organização das saídas de todos os que necessitassem cumprir com essas atividades. Também se efetivava por meio da administração dos medicamentos e pela viabilização de uma alimentação que pudesse suprir as necessidades dos moradores. Por outro lado, a promoção de atividades de integração social e/ou familiar era tímida, fazendo-se por meio de saídas, passeios programados e, em alguns casos, participação em cursos externos. Mesmo quando esses eventos aconteciam, poderiam ser considerados pouco eficientes em garantir a plena integração do morador com a sociedade ou sua família. Eram muito raras as visitas recebidas pelos internos, segundo as coordenadoras, mas, por outro lado, foram relatadas situações em que os moradores saíram para visitar seus familiares. Na casa-abrigo infantil, a escola foi um local privilegiado onde se dava a relação das crianças com o espaço além dos muros da casa, o que aliviava a rotina de visitas ao Hospital das Clínicas (HCFMRP-USP). Além disso, foram citados passeios a locais públicos de convívio, como sorveterias, shopping center, circo, com o intuito de oferecer diversão, colocando as crianças em contato com alternativas de lazer mais próximas aos anseios infantis. Nos fins de semana, freqüentemente ocorriam festas promovidas por grupos de voluntários, o que deu a impressão, em alguns momentos, de ser um recurso utilizado para afastar a tristeza, estimulando-se a alegria à exaustão. Esses modos de realizar o contato dos moradores com o espaço social aponta para o que Araújo (2005) constatou em seu estudo sobre a administração de uma casa de apoio infantil. Trata-se da dificuldade de encontrar o ponto de equilíbrio entre a instituição querer tornar-se a mediadora exclusiva do morador com o espaço externo e ter uma postura consciente das limitações de seu papel, enquanto organização. No Quadro 1 são apresentados alguns dados referentes às organizações focalizadas pelo presente estudo. Ao todo somaram-se 68 vagas, estando 44 ocupadas quando foi feito o levantamento. Uma casa estava com ocupação de 50% das vagas disponíveis, enquanto as outras duas estavam acima de sua meia capacidade. Juntas contabilizaram um total de 33 funcionários e 24 voluntários. Uma casa era mantida por uma entidade de cunho religioso, com a maioria dos funcionários na categoria de voluntário e participando da organização há pouco mais de um ano. Duas casas (uma para crianças e outra para adultos) eram mantidas por uma entidade assistencial, optando pelo vínculo empregatício (contratação) em detrimento do voluntariado, em menor número de funcionários. Nessas organizações, observou-se uma tendência comum ao Terceiro Setor: o avanço crescente da busca de profissionalização mediante a admissão de pessoas com capacitações específicas e a contratação remunerada (Fischer, 1999). As fontes de recursos eram: a comunidade, as pessoas físicas e jurídicas, e uma fundação institucional.

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Quadro 1. Apresentação das Casas de Apoio para portadores de HIV/aids de Ribeirão Preto-SP (2003). CASA 1

CASA 2

CASA 3

Tempo de existência

9 anos

9 anos

8 anos

Natureza do imóvel

Doação

Doação

Alugado

Total de vagas

11

40

17

Total de residentes

8

28

8

Adequadas

Adequadas

Em adaptação

Funcionários(as)

8

18

7

Voluntários(as)

14

Acima de 8 (variável)

2

Condições de biossegurança

Fonte de recursos financeiros (mais representativa)

Doações da comunidade Doações de pessoas físicas e jurídicas pertencente a uma igreja

Fundação de Apoio ao Ensino, Pesquisa e Assistência do HC-FMRPUSP (FAEPA-FMRP-USP)

A coordenação na voz de suas protagonistas As coordenadoras tinham entre trinta e 49 anos de idade, com vínculo institucional de oito anos ou mais. Eram funcionárias contratadas para jornadas de oito horas diárias, profissionais de áreas administrativas distintas da saúde, e apresentavam identificação com os ideais e objetivos da organização. As três coordenadoras haviam sido voluntárias junto às entidades antes de assumirem a coordenação e serem contratadas, função que exigia dedicação integral às atividades. Relatavam que o aprendizado da função ocorreu, acima de tudo, pela (con)vivência: “...faço assim, né, cursos relacionados tipo para Aids... uma preparação... Mas assim, a minha maior experiência é a minha experiência de vida... a prática, né... a convivência no dia-a-dia no trabalho...” (informação oral obtida de uma das entrevistadas). A postura administrativa adotada no exercício da função de zelar pelo bem-estar no convívio entre os moradores permitiu a emergência da dimensão subjetiva em meio ao contexto técnico da gerência e do cuidado (Sá, 2001). Em alguns momentos, esteve implícito um conflito entre o trabalho técnico-administrativo e o “cuidado subjetivo”, considerando a importância das atribuições administrativas na distribuição do tempo dedicado à instituição: quando você vem para um abrigo que na verdade esse abrigo é (sic) a casa dessas crianças... mesmo que você não queira você desenvolve o amor... você desenvolve a paciência... Eu acho que a coordenação, ela tinha que ter mais tempo livre [...] pra poder pensar... pra poder organizar... pra poder de repente conseguir gerar recurso. (informação oral obtida de uma das entrevistadas)

As coordenadoras valorizaram, particularmente, aspectos do contato e do convívio cotidiano como recurso para a reabilitação dos moradores. Assim, a presença feminina não se limitava à função de coordenação e apontava claramente para a condição do papel da mulher como cuidadora (Romanelli, 1999; Sarti, 1996; Costa, 1983). As atribuições cotidianas foram definidas como multifuncionais: captação de recursos, o agendamento das consultas, a escuta acolhedora de moradores e funcionários, a limpeza da casa – se assim fosse necessário:

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CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

[...] é, a gente é bem ambivalente mesmo, né... por causa das dificuldades financeiras... da falta de recursos... a gente faz várias coisas [...] eu faço mais a questão da PRÁTICA da casa né... da rotina da necessidade. Quebra-galho [...] eu acho que função específica... dizer pra você que se tem, que se pode dentro de um abrigo, onde você está lidando com seres humanos [...] você fazer uma rotina de trabalho é: nós vimos que isso cai por terra [...] é sem rotina como uma rotina, a rotina é não ter rotina. (informação oral obtida de uma das entrevistadas)

A expectativa da inclusão Tendo em vista que também se espera das Casas de Apoio a integração social de seus moradores, adquiriu importância elucidar as interfaces praticadas com a sociedade. Permeada pela exclusão do convívio social, a sociedade é, ao mesmo tempo, geradora de espaços comunitários como as Casas, que acolhem os frutos dessa condição de marginalização e segregação. Abadia-Barrero (2002) refere que, ao observar os caminhos desenhados pela epidemia e pela própria qualidade de vida das pessoas portadoras, a assistência deveria ser integrada à comunidade, e não em locais específicos e isolados. A relação com o ambiente externo foi mediada pelo estabelecimento de regras, que limitavam a circulação dos moradores e restringiam sua autonomia. O contato externo era percebido pelas coordenações como possibilidade de retorno a modos de vida indesejáveis relacionados às vicissitudes do ambiente da rua (Costa, 1983): “eu acho que a pessoa se recuperar de saúde pra voltar pra rua, pra voltar pra droga, pra voltar pra prostituição, nosso trabalho é como se tivesse ficado meio frustrado, né?“ (informação oral obtida de uma das entrevistadas). As coordenadoras das casas para adultos mantiveram um discurso semelhante em relação à dificuldade de integração de seus moradores, ora por receio de que pudessem acabar retomando hábitos de vida que trariam prejuízos à saúde, se lhes fosse dada a oportunidade de livre circulação no mundo externo à casa, ora pela própria dificuldade de aceitação, por parte da sociedade, da condição de vida dessas pessoas. Muitas vezes, o morador que tivesse maior liberdade de ir e vir (sair para a rua) era visto como alguém que havia conquistado um voto de confiança da coordenação. A instituição, por sua vez, cumpria o papel de realizar uma transformação existencial na vida dessas pessoas, ao passo que a família e a sociedade figuravam como os locais de origem do abandono e do desamparo (Guirado, 1986). A organização tentava reconstruir o espaço privado na vida dessas pessoas e, conseqüentemente, restaurar os sentidos de afiliação, uma vez que os laços sociais haviam se esgarçado devido à discriminação social produzida pela doença. Percebeu-se que as coordenações tinham uma expectativa de contribuir para a implementação de mudanças de hábitos de vida dos moradores e entendiam que, para que essas transformações fossem eficazes e duradouras, era necessário manter uma vigilância contínua e constante destinada a coibir seus desvios. A inclusão social mostrou-se um ponto crítico nas ações realizadas por essas Casas que, embora buscassem proteger seus moradores, acabavam por promover mecanismos de reinserção pouco efetivos, redimensionando e legitimando alguns processos de exclusão que atingem o doente de Aids de camadas populares. Ainda que pese a estigmatização a que está submetido o

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paciente que convive com HIV/Aids, o contato externo era visto pelas coordenações como ameaçador em relação aos progressos alcançados no recinto das Casas de Apoio. Por outro lado, trata-se de uma questão anterior à chegada do portador à casa, na medida em que remete a um contexto social excludente associado a histórias de vida marcadas por distanciamento familiar e vulnerabilidade social (Parker & Camargo Júnior, 2000).

Conclusões e considerações finais A caracterização das Casas de Apoio do município de Ribeirão Preto condiz com a apresentada por Gonçalves (2006) em um estudo focalizando as casas existentes no estado de São Paulo, em relação à sua estrutura organizacional, captação de recursos e sua mão-de-obra formada majoritariamente por voluntários. As organizações caracterizaram-se por uma relação diferenciada com sua clientela, pautando-se por princípios como: a reabilitação da saúde dos moradores, fortalecimento e reparação de suas condições como indivíduo (dignidade humana, auto-estima) e cidadão detentor de direitos (assistência integral e humanizada). A necessidade de encontrar soluções para questões emergenciais e dificuldades rotineiras de manutenção das Casas de Apoio mostrou a existência de um mecanismo organizacional ágil e eficiente para o funcionamento organizacional. O contato próximo com a rotina dos moradores, fator apontado pelas coordenadoras como importante para o exercício do cuidar, favoreceu a formação de um clima de aproximação com o usuário. Com isso, foram fortalecidos os laços afetivos com a Casa; ao passo que a busca de contato com o que existe para além dos muros desses equipamentos foi sutilmente desestimulada pelas coordenações, limitando o resgate da autonomia. Foi observado que, embora se mantenha em uma posição distanciada, a família ocupa um lugar de importância no processo saúde-doença das pessoas que convivem com o HIV/Aids e requer um preparo para a convivência com o ente enfermo. O contato com a família guarda, em si, um sentido de reparação do pertencimento a um lugar social. Seria importante que, tanto entre as crianças portadoras como entre os portadores adultos, a retomada desse contato fosse envolvida por uma estratégia de instrumentalização do núcleo familiar frente à doença, e de potencialização de recursos de enfrentamento coletivo, incorporando um olhar sensível a outras dificuldades freqüentemente associadas à condição de pauperização. As Casas de Apoio operacionalizaram uma resposta social às conseqüências trazidas pela epidemia de Aids no seu aspecto humanitário e caritativo. Esses locais mostraram-se um importante recurso para o suporte biopsicossocial ao paciente de Aids, como um complemento ao tratamento, sobretudo daqueles indivíduos desprovidos de suporte e apoio familiar. Considera-se que seria importante rever um dos objetivos dessas instituições, que pauta sua estruturação e organização, no que tange a serem locais de permanência provisória e de restabelecimento de saúde – e também da condição psicossocial de seus moradores. Esse repensar implicaria olhar as necessidades e o funcionamento das entidades sob outra perspectiva, operando mudanças sobre a administração dos recursos disponíveis para atender a essas propostas. Dessa forma, assumir que, muitas vezes, essas casas tornam-se os lares definitivos de seus moradores, o que exigiria repensar sua organização e a convivência dentro de tal realidade. Isso implica dar maiores condições de autonomia para enfrentar a vida em sociedade e suas adversidades – tão presentes para o cidadão portador do vírus HIV, auxiliando-o na reestruturação não apenas do seu cotidiano, como dos seus objetivos de vida. O conhecimento das concepções de gerenciamento que orientam as potencialidades e limites de serviços prestadores de assistência organizados pela sociedade civil lança luz sobre os papéis que esses equipamentos vêm desempenhando como promotores do exercício da cidadania.

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CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

Limitações do estudo Por envolver um universo específico e reduzido das organizações civis existentes no município, o trabalho, por vezes, incorre no risco de mitigar determinados aspectos da realidade muito próprios do contexto da Aids como fenômeno social. Outro ponto para ser revisto seria a não inclusão, no estudo, de outros informantes-chave das Casas, que poderiam ampliar a visão sobre seu funcionamento administrativo.

Colaboradores Os autores Marisley Vilas Bôas Soares, Aldaísa Cassanho Forster e Manoel Antonio dos Santos participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Referências ABADIA-BARRERO, C.E. Crianças vivendo com HIV e Casas de Apoio em São Paulo: cultura, experiências e contexto domiciliar. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.6, n.11, p.55-70, 2002. ARAUJO, J. Associação François-Xavier Bagnoud do Brasil: apenas mais um caminho. In: CRUZ, E. F.; ABADIA-BARRERO, C.E. (Orgs.). Criança, adolescente e Aids: abra este diálogo. São Paulo: Fórum das ONG’s-AIDS do Estado de São Paulo, 2005. p.88-94. BIASOLI-ALVES, Z.M.M. Entrevistas: formatos e análises. Ribeirão Preto, 1989. (Mimeogr.). BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Bol. Epidemiol. AIDS, v.15, n.1, p.5-9, 2002. ______. Ministério da Saúde. Coordenação Nacional de DST e Aids. Guia de recomendações: casa de apoio em HIV/Aids. Brasília, 1998. COSTA, J.F. Ordem médica e norma familiar. 2.ed. Rio de Janeiro: Graal, 1983. DEVER, G.E.A. A epidemiologia na administração de serviços de saúde. In: __________. A epidemiologia na administração de serviços de saúde. São Paulo: Pioneira, 1988. p.4770. FERREIRA, R.C.M.; FIGUEIREDO, M.A.C. A reinserção no mercado de trabalho: barreiras e silêncio no enfrentamento da exclusão por pessoas com HIV/Aids. Medicina (Ribeirão Preto), v.39, n.4, p.591-600, 2006. FISCHER, R.M.; FALCONER, A.P. Desafios da parceria governo e terceiro setor. Rev. Adm., v.33, p.12-9, 1998. FISCHER, R.M. Trabalho e terceiro setor. Inform. Fipe, v.1, p.20-2, 1999. GALVÃO, J. 1980-2001: uma cronologia da epidemia de HIV/Aids no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: ABIA, 2002.

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CARACTERIZAÇÃO DAS CASAS DE APOIO A PORTADORES...

SOARES, M.V.B.; FORSTER, A.C.; SANTOS, M.A. Caracterización de las Casas de Apoyo a portadores de HIV/Sida en Ribeirão Preto (São Paulo, Brasil) y sus prácticas de administración. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.169-80, jan./mar. 2008. La finalidad del estudio fue conocer la organización, funcionamiento y prestación de cuidado por las coordinaciones de las tres Casas de Apoyo a portadores de HIV/Sida en Ribeirão Preto-São Paulo. Se realizaron entrevistas semi-estructuradas con las coordinadoras respecto a sus funciones, se aplicó un cuestionario sobre los aspectos estructurales del local y se registraron observaciones del cotidiano de las instituciones (diario de campo). Se obtuvo que, legalmente, eran organizaciones regidas por entidades del tipo asistencialista-humanitario e intentaban adecuarse a las normas técnicas y exigencias para su funcionamiento. Recibían subvención del ayuntamiento local, pero eran sostenidas principalmente por donativos de la sociedad civil. Las coordinaciones eran desempeñadas por mujeres, predominantes en los equipos de funcionarios y voluntarios. En sus discursos, se observó una postura administrativa multifuncional y dificultad en realizar la inclusión social de los habitantes, debido al preconcepto o reglas de funcionamiento de las casas. Se concluye que, administrativamente, las casas cumplían con aquello que se proponían, pero necesitarían atentar para que, como agentes sociales, fomentaran la inclusión social.

Palabras clave: Casas de convalecencia. HIV. Síndrome de Inmunodeficiencia adquirida. Cuidado. Inclusión social.

Recebido em 06/02/07. Aprovado em 07/08/07.

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artigos

A promoção da saúde na educação infantil

Fernanda Denardin Gonçalves1 Ana Maria Fontenele Catrib2 Neiva Francenely Cunha Vieira3 Luiza Jane Eyre de Souza Vieira4

GONÇALVES, F.D. et al. Health promotion in primary school. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.181-92, jan./mar. 2008.

The aim of this study was to describe the health promotion work developed by a primary school, in which health promotion principles were incorporated into its pedagogical practices, by investigating six subjects who experienced the process. The realities were verified by means of semi-structured interviews and observation. The following empirical categories emerged from the discourse: 1. care as a health-promoting element; 2. formation of hygienic habits based on education; 3. health promotion through the pedagogic approach of projects; and 4. establishment of links between health professionals and students. It was concluded that there was a need to carry out systematic training work with educators and health professions, so that the importance of putting integrated health education practices into effect within the various school activity settings is understood.

Key words: Schoolchildren’s health. Primary education. Health promotion.

O objetivo do trabalho foi descrever o trabalho de promoção da saúde desenvolvido por uma escola de educação infantil que incorpora princípios de promoção da saúde em sua prática pedagógica, investigando seis sujeitos que vivenciaram o processo. A aproximação da realidade deu-se por meio de entrevista semi-estruturada e observação, emergindo categorias empíricas dos discursos, revelando: 1. o cuidado como elemento promotor de saúde; 2. formação de hábitos higiênicos com base na educação; 3. promoção da saúde por meio da pedagogia de projetos, e 4. estabelecimento de vínculo entre profissionais de saúde e alunos. Concluiu-se pela necessidade de se realizar um trabalho sistemático de formação com pedagogos e profissionais de saúde, para que compreendam a importância da efetivação de uma prática interligada e presente da educação em saúde nos diversos âmbitos de atuação da escola.

Palavras-chave: Saúde escolar. Educação infantil. Promoção da saúde.

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Pedagoga. Mestre em Educação e Saúde, Universidade de Fortaleza. Av. Diagonal Paraguay, 194 apto. 1307 Santiago Chile 8330036 fdenardi@puc.cl 2 Pedagoga. Curso de Graduação em Pedagogia e Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza. 3 Enfermeira. Faculdade de Farmácia, Odontologia e Enfermagem, Universidade Federal do Ceará. 4 Enfermeira. Curso de Enfermagem e Mestrado em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza. 1

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A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

A promoção da saúde na escola: uma breve retrospectiva histórica No espaço escolar, o saber teórico e prático sobre saúde e doença foi sendo construído de acordo com o cenário ideológico da época e as questões sobre saúde abordadas com base no referencial teórico de cada momento. Segundo a Organização Pan-americana de Saúde - OPS (1995), a promoção da saúde no âmbito escolar parte de uma visão integral e multidisciplinar do ser humano, que considera as pessoas em seu contexto familiar, comunitário, social e ambiental. Assim, as ações de promoção de saúde visam desenvolver conhecimentos, habilidades e destrezas para o autocuidado da saúde e a prevenção das condutas de risco em todas as oportunidades educativas; bem como fomentar uma análise sobre os valores, as condutas, condições sociais e os estilos de vida dos próprios sujeitos envolvidos (Pelicioni & Torres, 1999). Porém, nem sempre essa visão esteve presente nas práticas pedagógicas desenvolvidas nas escolas. Durante algum tempo, a educação em saúde na escola centrou sua ação nas individualidades, tentando mudar comportamentos e atitudes sem, muitas vezes, considerar as inúmeras influências provenientes da realidade em que as crianças estavam inseridas. Era comum acontecerem ações isoladas voltadas ao trabalho para saúde, partindo de uma visão assistencialista de educação e sem discutir a conscientização acerca do tema saúde e suas inter-relações para o equilíbrio dinâmico da vida (Pelicioni & Torres, 1999). Neste contexto, em 1954, a Comissão de Especialistas em Educação em Saúde da Organização Mundial da Saúde - OMS colocou a necessidade de serem realizadas, dentro do espaço escolar, diversas atividades que favorecessem a promoção da saúde, e não somente o trabalho de transmissão de conhecimentos sobre aspectos relacionados à saúde. Nesse sentido, foi apresentada uma abordagem inicial ao conceito de Escola Promotora de Saúde (OMS, 1954). Também na XIV Conferência Mundial em Educação em Saúde elaborou-se um documento no qual se colocava que todos os locais onde a educação fosse desenvolvida seriam espaços ideais para as aplicações das sugestões básicas da Declaração de Alma Ata e da Carta de Ottawa (Brasil, 2001). Portanto, essas discussões já preconizavam a idéia de que a promoção da saúde consiste em proporcionar à população as condições necessárias para melhorar e exercer o controle sobre sua saúde, envolvendo: paz, educação, moradia, alimentação, renda, ecossistema estável, justiça social e eqüidade. Após a 4ª Conferência, em Jacarta, elaborou-se um documento denominado Declaração das Escolas Promotoras de Saúde, o qual preconizava que toda criança tem o direito e deve ter a oportunidade de ser educada em uma Escola Promotora de Saúde (Brasil, 2001). A Declaração de Bogotá propõe, entre outros, a criação de condições adequadas para a construção do conhecimento que, apoiado pela participação da comunidade educativa, poderá favorecer a adoção de estilos de vida saudáveis e condutas de proteção ao meio ambiente (Brasil, 2001). Em meio a esses diversos encontros internacionais sobre o tema, onde se refletiu e se explicitou claramente a sua importância, o processo de valorização da promoção da saúde no âmbito escolar também começou a ser percebido no Brasil. Até 1996, por resolução da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) 5692, o tema saúde era abordado dentro do referencial curricular escolar, utilizando como designação a referência Programas de Saúde, sem ser incorporado como disciplina curricular, e sim como um trabalho a ser desenvolvido de modo pragmático e contínuo (Brasil, 1996a). O objetivo desse trabalho, segundo o parecer CFE nº 2.264/74, era levar “a criança e o adolescente ao desenvolvimento de hábitos saudáveis quanto à higiene pessoal, à alimentação, à prática esportiva, ao trabalho e ao lazer, permitindo-lhes a sua utilização imediata no sentido de preservar a saúde pessoal e a dos outros” (Brasil, 1996a, p. 43). Já com a nova LDBEN 9394 e a construção dos Parâmetros Curriculares Nacionais, a saúde no campo da educação passou a ser considerada como um tema transversal, expondo a necessidade de se assegurar uma ação integrada e intencional entre os campos da educação e saúde, uma vez que ambos se pautam, fundamentalmente, nos princípios de formação da consciência crítica e no protagonismo social (Brasil, 1997a, 1996b).

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Os Parâmetros Curriculares Nacionais, dentro do capítulo relacionado ao tema transversal saúde, sugerem que toda escola deve incorporar os princípios de promoção da saúde indicados pela OMS, com os objetivos de fomentar a saúde e o aprendizado em todos os momentos; integrar profissionais de saúde, educação, pais, alunos e membros da comunidade, no esforço de transformar a escola em um ambiente saudável; implementar práticas que respeitem o bem-estar e a dignidade individuais e implementar políticas que garantam o bem-estar individual e coletivo, oferecendo oportunidades de crescimento e desenvolvimento em um ambiente saudável, com a participação dos setores da saúde e educação, família e comunidade. Assim, o desenvolvimento do trabalho com as Escolas Promotoras de Saúde, que já era um movimento internacional, começa a ter força também no Brasil (Brasil, 1997a). Colaborando com essa idéia, em 1998, o Ministério da Saúde, por meio da Secretaria de Políticas de Saúde, instituiu o Projeto Promoção da Saúde, objetivando elaborar e desenvolver uma política nacional de promoção da saúde. Para o desenvolvimento do seu plano de ação, foram previstas as seguintes linhas de atuação: Promoção da Saúde da Família e da Comunidade, Promoção de Ações contra a violência, Capacitação de Recursos Humanos para a promoção e Escola Promotora de Saúde, Espaços Saudáveis e Comunicação e Mobilização Social (Brasil, 1998). Com essa dupla preocupação ministerial, o tema da promoção da saúde na escola torna-se um eixo de importante trabalho em nível nacional, deixando clara a visão de que a escola é um espaço de ensino-aprendizagem, convivência e crescimento importante, no qual se adquirem valores fundamentais. A escola é o lugar ideal para se desenvolverem programas da Promoção e Educação em Saúde de amplo alcance e repercussão, já que exerce uma grande influência sobre seus alunos nas etapas formativas e mais importantes de suas vidas. Ademais, com a LDBEN 9394, as creches e pré-escolas, que atendem crianças de até seis anos, se vincularam ao sistema educacional, abrindo espaço para uma preocupação mais formal com esse nível de ensino, preocupação esta que pode ser identificada também por meio da criação dos Referenciais Curriculares Nacionais da Educação Infantil (Brasil, 1997b). Este material, mesmo sem explicitar claramente a necessidade do trabalho com a promoção da saúde, expõe a importância do trabalho com a formação integral das crianças. Centra-se nos eixos de Formação Pessoal e Social (incorporando a preocupação com o cuidado infantil dentro do eixo de Identidade e Autonomia) e Conhecimento de Mundo (incorporando o trabalho com conteúdos informativos sobre o tema saúde dentro do eixo de Natureza e Sociedade). Também a UNICEF e a UNESCO, juntamente com a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico e o Ministério de Saúde, publicaram algumas considerações identificando a importância da realização de um trabalho interligado entre os âmbitos da saúde e da educação na primeira infância, como estratégia essencial para a melhoria da qualidade de vida das crianças (UNESCO, 2002; UNICEF, 2001). Este trabalho apóia-se em pressupostos teóricos que se fundamentam em concepções e visões de mundo sustentadas por diversos saberes, cujas bases repousam nos princípios humanísticos e sociais. Dessa forma, a saúde no espaço escolar é concebida como um ambiente de vida da comunidade em que está inserida a escola, cujo referencial para ação deve ser o desenvolvimento do educando, como expressão de saúde, com base em uma prática pedagógica participativa, tendo como abordagem metodológica a educação em saúde transformadora (Catrib et al., 2003). Assim, postulamos o argumento de que as práticas sociais de educação e saúde no contexto escolar devem observar: (i) o reforço do sujeito social para capacitá-lo a cuidar de si e agir em grupo e em defesa da promoção da saúde; (ii) a valorização da subjetividade e intersubjetividade no processo de conhecimento da realidade, privilegiando o diálogo como expressão da comunicação; (iii) o estímulo à participação como algo inerente ao viver coletivo; (iv) a utilização de estratégias que permitam a coexistência da interface de várias áreas do conhecimento; (v) o reconhecimento da dimensão afetiva no processo de transformação e tomada de decisão, e (vi) o incentivo e fomento de parcerias por meio de redes sociais de apoio (Catrib et al., 2003). Esses princípios advogam a adoção de práticas educativas no espaço escolar, criando um clima prazeroso para aprendizagem e vivência de valores humanos. Diante do exposto, a pesquisa teve o objetivo de descrever o trabalho de promoção da saúde

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desenvolvido por uma escola de educação infantil que incorpora princípios de promoção da saúde em sua prática pedagógica, com base na explicitação de elementos considerados, pelos atores envolvidos, como de fundamental importância nesse processo.

Percurso metodológico Com abordagem qualitativa, este estudo descritivo foi realizado em uma escola de Educação Infantil, em Fortaleza, Ceará, no período de 2002 e 2003. A escola pesquisada foi escolhida por buscar a promoção da saúde, uma vez que era composta por uma equipe multidisciplinar, atendendo aproximadamente 140 crianças de dois a seis anos, que pemaneciam em tempo integral (manhã e tarde) no ambiente escolar. Apesar de ser uma escola particular, contava em grande parte com o apoio financeiro do Tribunal de Justiça do Ceará, o que garantia mais recursos para a implantação e real efetivação das práticas necessárias à promoção da saúde. Como técnica de coleta de dados, utilizou-se a entrevista semi-estruturada com profissionais das duas equipes de trabalho da escola: a equipe pedagógica (Coordenadora Pedagógica e Supervisora Pedagógica) e a equipe do Núcleo de Saúde (Nutricionista, Fonoaudióloga, Psicóloga, Médica e Estagiária de Enfermagem). Participaram do estudo seis profissionais e uma estudante de graduação, profissionais do quadro permanente da escola, todas do sexo feminino e demonstrando muita dedicação ao trabalho desenvolvido nas equipes multiprofissionais. Com base na transcrição, leitura e análise das entrevistas, norteando-se pela análise de conteúdo (Bardin, 1977), identificaram-se categorias que emergiram das falas das entrevistadas, representando, assim, os elementos considerados,pelos atores envolvidos como de fundamental importância neste processo: 1) o cuidar como elemento presente no trabalho de promoção da saúde na Educação Infantil; 2) a importância da formação de hábitos de higiene por meio do trabalho educativo; 3) promoção da saúde na escola por meio da Pedagogia de Projetos, e 4) a relação afetiva entre os profissionais de saúde e alunos, como elemento de sustentação para o trabalho com a promoção da saúde na escola.

Apresentação e análise dos dados Em relação à saúde do aluno e à educação em saúde, o papel da escola centra-se na preocupação com a construção da consciência crítica de seus alunos e, conseqüentemente, com a conquista da cidadania. Nesta perspectiva, as práticas educativas no espaço escolar devem integrar estratégias pedagógicas que propiciem discussão, problematização, reflexão das conseqüências das escolhas no plano individual e social e decisão para agir (Catrib et al., 2003). Nessa linha de raciocínio, a escola pesquisada constitui-se um espaço com potencialidades de facilitar a promoção da saúde. Conseqüentemente, está em consonância com os princípios humanísticos e sociais, citados anteriormente, contribuindo para a formação de estilo de vida favorável à saúde, pautado no respeito ao bem-estar físico, social e mental da criança, que envolve, também, seus direitos e deveres. A escola é mantida pelo Poder Público do Estado do Ceará, e voltada ao atendimento dos filhos dos funcionários do Fórum Estadual, localizando-se no entorno deste, o que possibilita aos pais acompanharem as atividades dos filhos, facilitando a adaptação das crianças e a manutenção do vínculo afetivo, bem como o fortalecimento das relações entre família, criança e escola. O horário de funcionamento corresponde ao horário de trabalho estabelecido pela instituição onde os pais trabalham, e os professores e profissionais da escola têm seu vínculo trabalhista formalizado com o Fórum. Conta com estrutura física adequada, salas amplas e arejadas e espaços adequados à clientela. Atende crianças de creche e pré-escola e contrata seus profissionais , por meio de seleção rigorosa, preparando-os para atuarem na construção de ambiente educacional saudável que promova a saúde.

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Diante dos resultados, o cuidado foi considerado, pelas participantes, como elemento presente no trabalho de promoção da saúde na educação infantil. Nesse sentido, Mello (2000) pontua que cuidar também é educar. Acrescenta-se que, no cuidado, se exerce uma prática educativa, e, com base nesse enfoque, é pertinente considerar todas as áreas que envolvem práticas do cuidado infantil para que sejam integradas ao objetivo educativo. Muitas vezes, quando não conseguimos trabalhar cuidado e educação de forma integrada, acabamos reduzindo e negligenciando as áreas de cuidado como secundárias, na estrutura educacional. Em relação a essa perspectiva da prática do cuidar, uma das entrevistadas coloca: “[...] a escola aqui é mais voltada para o cuidar. Nós somos uma creche escola [...]” (Membro 3 da Equipe Pedagógica). Corroborando essa concepção, estudo realizado pela Unesco (2002) pressupõe que “educação e cuidado” são conceitos inseparáveis, e que devem ser necessariamente levados em consideração na educação pré-escolar, devido à sua importância para o desenvolvimento emocional infantil. Ademais, quando essa profissional foi indagada sobre o que é esse cuidar efetivamente, acrescentou que, entre outras coisas, o cuidado é “fazer com que a criança que entra com um ano e três meses, saia com seis, sendo capaz de fazer a sua higiene pessoal e sabendo se vestir”. Outra profissional da equipe também ilustrou a visão de cuidado, que se faz presente na instituição de ensino, como as falas evidenciam: [...] todas as crianças aqui recebem esse cuidado, todas as crianças aqui vão tirar bico, por exemplo. Aqui na creche é feita essa retirada, já que quase todos chegam chupando bico, como uma prevenção de arcada dentária futura. A gente também tira fralda descartável. Eles chegam aqui usando e a gente espera que, em 4 meses, eles já saibam utilizar o banheirinho. Tem a escovação direcionada, eles aprendem a colocar a pasta na escova diariamente. (Membro 2 da Equipe Pedagógica)

Como afirma Guimarães (2000), quando se pensa no trabalho com higiene dentro da Educação Infantil, vem a imagem do cuidado como um momento de construção de hábitos e que se deve favorecer a autonomia da criança, pois quando as crianças se trocam sozinhas, algumas regras já são trabalhadas. Dentro desta concepção, o trabalho de formação de hábitos de higiene, realizado com crianças pequenas, deve ter um caráter totalmente pedagógico e não assistencial. Esse trabalho consegue atingir um âmbito muito mais amplo, que não é unicamente a reprodução de uma necessidade imposta por um adulto, e sim a vivência do trabalho com o corpo e o cuidado e atenção para com ele, mediante o trabalho interligado com regras e limites, fundamental para o desenvolvimento de todo indivíduo. Outros profissionais da escola, quando indagados sobre como acontece o trabalho com a higiene pessoal das crianças dentro da escola, colocaram que: Por exemplo, tem uma música que passa no Castelo Rá-tim-bum sobre higiene. A gente botou, as meninas fizeram a coreografia e as crianças assimilaram muito nessa hora. Depois a gente passou de sala em sala, perguntando se as crianças entenderam e o que elas entenderam daquilo aqui. (Membro 4 do Núcleo de Saúde) [...] essa parte de higiene acontece sim, mas é mais a parte da médica. Ela passa a orientação e toda a escola vê. (Membro 1 da Equipe Pedagógica)

Com base na contraposição de tais depoimentos, chama a atenção o fato de um profissional da equipe pedagógica da escola atribuir esse aspecto do trabalho ao “setor médico”, negando assim, de certa forma, a visão pedagógica do mesmo. Em contrapartida, a equipe de saúde também vem assumindo para si esse papel, atuando com propostas diversas. O próprio Núcleo de Saúde é responsável por desenvolver várias atividades que trabalhem temas relacionados às áreas específicas sobre a aquisição de hábitos saudáveis e sua relação com a aquisição e manutenção da saúde. Durante as entrevistas, foram citados vários deles, bem como as propostas

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que estavam relacionadas a eles, podendo-se destacar os projetos: “A higiene na infância”, “Água como fonte de vida e saúde”, “Alimentação saudável”, “É hora de reciclar”, “Escovação”, “Mastigação”, “Meu dente de leite”, “Prevenção de acidentes na infância” (Parte I, II e III), “Quem ouve bem, aprende melhor”, “Sabia que o lixo tem seu lugar?” e “Vamos acabar com essa fera!”, entre outros. Todos os integrantes da escola se referiram a esses “projetos” passando a idéia de que a escola utiliza a Pedagogia de Projetos como referencial de proposta metodológica. Atualmente, as escolas, sobretudo as que atendem as crianças na faixa etária da Educação Infantil, têm se colocado como seguidoras de tal corrente, acreditando, assim, na concepção de conhecimento globalizado, que é baseado na descoberta espontânea dos alunos e em uma aprendizagem significativa (Hernandez & Ventura, 1998). Como afirma o Membro 5 do Núcleo de Saúde: “Nós procuramos estar sempre desenvolvendo projetos engajados, todos engajados com a proposta pedagógica que temos”. Embora alguns profissionais já tenham clara a visão da importância de tais projetos estarem relacionados à proposta curricular da escola, alguns deles se posicionam dizendo que nem conhecem a mesma. “Em relação a essa questão da escola a gente não está muito a par de como é que a escola trabalha isso é lá com a parte pedagógica”(Membro 5 do Núcleo de Saúde). Também completa essa idéia o Membro 4 do Núcleo de Saúde: [...] na verdade a gente não sabe muito como é a proposta curricular da escola, se é usado o construtivismo. Quando tem treinamento e vêm profissionais de fora, em janeiro, a gente vai também. Então assiste: o que é o construtivismo, então tem toda aquela história e a gente está lá. Mas elas aproveitam muito mais do que a gente. E a gente fica vendo que isso não tem nada a ver comigo, entendeu. Mas na verdade a gente fica com dificuldade porque não sabe muito bem o que é.

Essa metodologia de projetos está presente na realidade da instituição do estudo e tem sido vivenciada por professores e alunos. Pelo que foi possível observar, os profissionais de saúde desenvolvem os trabalhos acerca do que, no entendimento destes, é importante ser assimilado pelas crianças, sem se preocuparem em relacionar a situação vivenciada à estrutura curricular. O trabalho desenvolvido por eles, porém, demonstra ter grande relevância entre as crianças, pois é muito comum vê-las chamando os profissionais de saúde pelo nome e, também, procurando por eles para resolver alguma situação, o que demonstra que está sendo construída uma parceria educativa na promoção da saúde na escola. Na realização das entrevistas, presenciaram-se crianças entrando na sala do Núcleo de Saúde com muita naturalidade para tirar dúvidas, pedir materiais, ou até mesmo só para cumprimentar os profissionais, afirmando que estavam com saudade. Durante um depoimento, foi colocado um trabalho de grande valia para essa relação de confiança entre as crianças e as profissionais de saúde, conforme relata o membro 3 do núcleo de Saúde: As crianças foram ver o núcleo de saúde. Eles foram conhecer todos os profissionais de lá. Gravando, sabe. Então eles foram lá e gravaram: o que é que você faz? Daí eu expliquei tudinho. Oi tia, a gente pode entrar? Pode. No final eles diziam, tchau tia, obrigado. Daí eles iam lá na nutrição. Conheceram todo mundo.

Tal depoimento explicita a importância da relação afetiva entre o profissional de saúde e o aluno, pois quando a escola possibilita a liberdade para que as próprias crianças possam conhecer as pessoas que lá trabalham, possam saber quais são suas atribuições e funções, ela favorece a relação com esses profissionais. Esta estratégia é fundamental para a prática pedagógica, pois não existe aprendizado sem vínculo afetivo. Outro fator de relevância para a construção deste vínculo é o fato de que, nas dependências da escola, os profissionais da área de saúde não usam o “jaleco branco”, culturalmente associado com doença e procedimentos dolorosos.

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A literatura retrata que as crianças produzem em seu imaginário conceitos específicos para cada vivência presenciada. Assim, quando se fala em escola, logo se imagina um espaço com várias salas de aula, compostas por mesas e carteiras, professores e alunos. O mesmo acontece com a criança. Quando se fala em hospital, naturalmente ela imagina: médico e enfermeira de branco, pessoas doentes e, até mesmo, injeção e dor. Essa não é a idéia que a escola pesquisada quer que seus alunos tenham do trabalho de saúde. Nela, nenhum profissional da saúde veste-se de branco e nem reproduz a dinâmica de trabalho de um centro de saúde. Lá se trabalha com educação, com educação em saúde. Então tem também a questão que você pode acabar confundindo a criança. Ali é um lugar de educação, ou um lugar de tratamento? Eu vou ser a tia ou eu vou ser a doutora? Por isso que a gente não gosta de usar essa roupa branca. No começo a gente usava. Ficava o setor todo de branco, mas as crianças não vinham. Agora a gente trocou essa bata por uma laranja. (Membro 4 do núcleo de Saúde)

Retomando a questão da inserção de projetos relacionados à área de saúde na proposta curricular da escola, é de fundamental importância conhecer os temas que são abordados e que estão intimamente ligados a aspectos de educação em saúde. Tais temas foram detectados pelas pesquisadoras pela análise do material descritivo que a escola possui. Percebeu-se que os temas têm uma dupla função: além de serem trabalhados com as crianças, também devem ser trabalhados com os pais, para que esses adquiram informações novas sobre o tema, conheçam o trabalho da escola e reforcem esse tipo de ação pedagógica em casa. Ao se realizar um paralelo entre os materiais escritos apresentados pela escola e as entrevistas realizadas, percebe-se que os temas citados foram unicamente aqueles nos quais houve uma integração maior entre os demais profissionais da escola, pais e alunos. Percebe-se então que os temas que ficaram marcados para os educadores foram os vivenciados por eles e pelas crianças, em parceria com a família. Sabe-se que a criança até os seis anos é ainda um ser muito concreto, que não formou a noção de abstração. Justamente por isso a prática pedagógica das escolas de Educação Infantil deve estar pautada na vivência experimental dos conteúdos a serem trabalhados. Somente o que for vivenciado será apreendido, o que não for, será esquecido. Nesta perspectiva, vale citar, de forma sucinta, o trabalho realizado com os quatro projetos indicados nas entrevistas como os de maior êxito.

Projeto Vamos acabar com essa fera Uma equipe da Edisca fez um teatro sobre piolho. Elas fizeram uma paródia, uma campanha dos caça-piolho, porque a gente não estava conseguindo acabar com a pediculose através dos pais. As crianças entraram de férias com o intuito de chegar aqui sem piolho. (Membro 5 da Equipe Pedagógica)

O desenvolvimento do projeto relacionado à eliminação da pediculose dentro da escola aconteceu de forma bem presente e participativa. Todos os entrevistados, em algum momento, relembraram tal trabalho e o êxito por ele alcançado. Para o desenvolvimento do mesmo, houve a participação ativa das crianças, que viram peças de teatro, aprenderam paródias de músicas relacionadas a esse tema e tornaram-se os próprios caçadores de piolhos, com direito a carteirinha e broche de super-herói. Com toda essa parte lúdica envolvida na metodologia a ser trabalhada, as crianças realmente voltaram de férias sem piolhos, e não por uma insistência dos pais, mas sim porque, como diz o Membro 3 da Equipe Pedagógica, “era a criança que não queria mais ter piolho”. Brincando, a criança entra no mundo do imaginário, onde ela é autora do seu próprio comportamento, aprendendo a dominar regras, trabalhar suas emoções e seus medos (Penteado, Seabra, Pereira, 1996). Um dos pontos fortes para o grande sucesso desse projeto foi a inserção do lúdico dentro do trabalho pedagógico. Com isso, as crianças se envolveram nas propostas e formaram o hábito do cuidado consigo e com o próprio corpo.

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Outro ponto foi a integração dos dois núcleos, fazendo com que tanto os profissionais de saúde quanto os profissionais pedagógicos estivessem envolvidos nesse trabalho, como afirma o Membro 2 da Equipe Pedagógica: Pra mim a maior integração foi nesse projeto. É que tinha pai reclamando, a gente vendo a situação e tinha que fazer alguma coisa. Então na reunião surgiu a idéia e a gente foi fazendo. As aulas eram planejadas a partir do tema, com histórias e tudo mais. E eles adoraram ser os super-heróis caçadores de piolho. Se você perguntar até hoje eles lembram.

Projeto Alimentação saudável Quando você falar com a nutricionista você vai ver, como é a preocupação aqui. Tem criança que nunca tinha comido fruta, nem verdura, e aí a criança aprende a gostar. Vão bandejões de fruta pras salas. Tem kiwi, tem uva, tem melancia. [...] E a nutricionista fez tudo isso sozinha e conseguiu muita criança comendo fruta, porque a gente apóia, mas ainda é pouco. (Membro 2 da Equipe Pedagógica)

Segundo Halpern (2003), a obesidade infantil é um sério problema de saúde pública que vem aumentando em todas as camadas sociais da população brasileira. Preveni-la significa diminuir, de forma racional e barata, a incidência de doenças crônico-degenerativas, como o diabetes e as doenças cardiovasculares, e um grande palco para a realização deste trabalho é a escola, que pode possibilitar a educação nutricional, juntamente com a família. Assim, a alimentação saudável é hoje um conteúdo educativo e a incorporação desses hábitos pode dar-se na infância. É justamente por isso que pais e educadores vêm, ao longo de anos, concordando com a necessidade de a escola assumir um papel de protagonismo nesse trabalho. Nessa escola, tal preocupação é presente por meio da atuação da nutricionista. Além de preparar o cardápio dos alunos, ela também acompanha o momento de alimentação, reforçando o consumo de frutas e verduras, trabalha a experimentação de novos alimentos em sala de aula e faz um acompanhamento direto com os pais de alguns alunos. Com todo esse trabalho, ela vem identificando mudanças gratificantes: Olha, o trabalho é grande, mas vale a pena [...] tem muita mãe que chega pra mim e diz que está conseguindo mudar muita coisa em casa, agradece meu trabalho e diz que a reunião serviu muito pra ela também ir mudando as coisas em casa [...] porque eu não posso trabalhar sozinha, preciso da família e aí consigo muita coisa. (Membro 1 do Núcleo de Saúde)

Projeto relacionado à fala A gente do núcleo de saúde fez, por exemplo, um projeto de fala. Demos uma luva pra cada criança e a gente falava, fala RA. Daí a gente falava, você está falando certo? Olha no espelho. Aí a criança olhava. Aí a gente tocava pra sentir onde é que a lingüinha bate. Em alguns esse trabalho fica, mas em outros tem que ser um trabalho continuado. Mas o nosso papel é ir incentivando a criança. Eles falam: tia, aprendi a falar RATO, mas na outra palavra já voltou ao normal. Mas ele viu que ele pode aprender. Ele tem consciência que a língua é nesse canto. Da próxima vez vamos trabalhar voz. Então já estamos preparando o boliche, cartaz. Então a gente passa o mês inteiro só falando daquele tema. (Membro 2 do Núcleo de Saúde)

Segundo os Conselhos Regionais de Fonoaudiologia, é de competência do fonoaudiólogo desenvolver trabalho de prevenção no que se refere à área da comunicação oral e escrita, voz e audição e, também, participar da equipe de orientação e planejamento escolar, inserindo aspectos preventivos ligados a assuntos fonoaudiológicos. Na escola investigada, a intervenção fonoaudiológica é uma prática presente

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que aparenta colher bons frutos. O trabalho é pautado na idéia de que os alunos são responsáveis pelo seu aprendizado e, para que ele ocorra, é necessário que o sujeito entenda os processos que o favorecem. Quando um profissional coloca à disposição da criança um material que ela nunca tem acesso, como é o caso da luva médica, ele já cria o interesse necessário para impulsionar o processo de aprendizagem. Quando a criança percebe que ela mesma pode cuidar de si própria para melhorar algo que não está bem, ela busca a transformação da realidade singular dela mesma. Esse projeto foi muito citado nas entrevistas, evidenciando a atuação da fonoaudióloga dentro da escola, mas identificando também que não existe um trabalho de integração para que a proposta tenha uma continuidade na rotina diária das crianças, sendo desenvolvido também pelas professoras. Isso está bem evidenciado, por exemplo, no seguinte comentário: “Esse projeto foi um dos melhores [...] as crianças estavam muito envolvidas e a fono sabe bem como envolvê-las com essas coisas que só ela mesmo pra fazer com as crianças” (Membro 1 do Núcleo Pedagógico).

Projeto Mastigação Existem projetos maiores, como o da mastigação. Porque tinha muita criança mastigando errado. Esse é um trabalho que a fono faz junto com a nutrição. [...] Foi um trabalho com teatro, fantoche, tudo isso a gente fez. Todo mundo foi comer na frente da tia. Então a gente foi passando de criança em criança pra ver se estavam mastigando certo. Tudo isso as professoras fazem. Então, você vê que é um trabalho que deu resultado. O projeto foi um sucesso! (Membro 2 do Núcleo de Saúde)

O Projeto Mastigação surgiu com base na observação das duas profissionais da área de saúde que trabalham diretamente com essa questão: a fonoaudióloga e a nutricionista. Apesar de não ter surgido das crianças, vários profissionais afirmam que o projeto foi um sucesso. E por que isso aconteceu? Que fatores contribuíram? É possível pensar que o fator fundamental para o seu bom desenvolvimento foi a metodologia utilizada. Trabalhos com teatro, contar histórias, faz de conta, tudo isso faz parte do imaginário infantil e é de extremo interesse para as crianças. Como coloca Jones (1996, p.114): [...] a história alimenta a emoção e a imaginação. Permite a auto-identificação, ajuda a criança a aceitar situações desagradáveis e a resolver conflitos. Através do jogo do faz de conta, a criança procura compreender como as coisas se dão de forma cognitiva e afetiva, além de se apropriar das vivências e as internalizar, tornando-as suas.

Ademais, outro ponto foi fundamental nesse trabalho: a participação dos professores, já que, por orientação dos profissionais de saúde, começaram a ficar atentas à mastigação dos alunos, bem como, também, desenvolver atividades pedagógicas sobre o tema, como explicita o Membro 2 do Núcleo Pedagógico: “Essa coisa da mastigação virou moda. Todo mundo trabalhou. Foi impressionante. Não foi só o pessoal da saúde, também a gente estava querendo ajudar. No fim, todo mundo estava de olho na mastigação”. Este, como os demais projetos pedagógicos apresentados, mostra como acontece a atuação dos profissionais de saúde dentro da prática pedagógica. O trabalho principal é baseado em projetos de estudo, onde vários aspectos relacionados à saúde são abordados. Assim, como os próprios profissionais trabalham esses aspectos com os grupos de crianças, também trabalham individualmente com cada um, e ainda orientam os professores para que continuem a realizar tal proposta. Esses projetos são consistentes e pautados em conceitos que reforçam o aprendizado. McGinnis & Degraw (1991) pontuam que o conhecimento, as atitudes, os comportamentos e as habilidades desenvolvidos em efetivos programas de saúde em escolas, voltados para a conscientização de que a adoção de hábitos saudáveis trará melhor qualidade de vida, capacita crianças e jovens para fazerem

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escolhas corretas sobre comportamentos. Reforçam que a adoção desses comportamentos promove a saúde do indivíduo, da família e da comunidade, por meio de um trabalho que deve se iniciar na primeira infância.

Conclusão Conforme relatado, é possível ressaltar a validade da iniciativa dos educadores da escola pesquisada em trabalhar com a promoção da saúde nesse espaço. Ao entrevistar os profissionais, é facilmente identificável a real presença do trabalho de promoção da saúde na escola. Assim, vale apresentar esta iniciativa para que, primeiramente, se possa demonstrar que a realização desse trabalho é possível e, com base nessa realidade, explicitar aspectos que poderiam facilitar a reprodução da experiência. Nesse sentido, a literatura enfatiza que a escola é um ambiente propício para a aplicação de programas de educação em saúde, pois a mesma está inserida em todas as dimensões do aprendizado (Fernandes, Rocha, Souza, 2005). Mas existe um aspecto importante a ser considerado como um ponto de reflexão. Este aspecto está relacionado com a auto-responsabilização da equipe de saúde pelo trabalho desenvolvido. Com base nos relatos apresentados e, sobretudo, quando são descritos aspectos específicos da prática diária (a exemplo dos projetos de trabalho com as crianças), identifica-se que a práxis com o tema saúde, na maioria das vezes, está a cargo unicamente dos profissionais desta área, fazendo com que o trabalho seja realizado de forma pontual e isolada. Assim, faz-se necessária uma maior integração do trabalho desses profissionais com a equipe pedagógica. Davanço, Taddei e Gaglianone (2004) afirmam que os representantes da equipe pedagógica, e, sobretudo, o professor, devem ser incorporados como membros centrais da equipe de saúde escolar, pois além de possuírem uma similaridade comunicativa com seus alunos, têm maior contato com eles e estão envolvidos na realidade social e cultural de cada discente, aspectos estes que facilitam o trabalho. Desta forma, um desafio a se considerar é a necessidade de uma revisão das propostas curriculares dos centros de formação de educadores em saúde, sejam eles profissionais de saúde ou da educação. Tal medida objetiva a incorporação, nos diversos cursos, de um trabalho de conscientização sobre a importância do desenvolvimento compartido de atividades que envolvam os temas transversais, bem como um trabalho de orientação metodológica para o desenvolvimento desta proposta. Nessa linha de pensamento, encontra-se a necessidade de se promoverem espaços que favoreçam a troca de experiências tanto entre os profissionais integrantes da área pedagógica, para que possam dar continuidade e implementar novos trabalhos relacionados com o tema saúde, quanto entre os profissionais do núcleo de saúde, para que assimilem elementos ainda mais pedagógicos e adequados a cada faixa etária. Leonello & L’Abbate (2006) enfatizam a necessidade de se olhar para o educador. Acrescentam que não desconsideram a importância da atuação e integração da equipe de saúde na escola; ao contrário, a escola, como equipamento social, deve interagir e articular estratégias de promoção à saúde com essa equipe. Barba, Martinez e Carrasco (2003) defendem que uma visão intersetorial poderá se constituir em um caminho, quando se objetiva a promoção da saúde e educação de crianças no Brasil. Saúde, educação e desenvolvimento são conceitos que não podem caminhar sozinhos. Finalizando, educação em saúde, na concepção das autoras, vai além de ações pedagógicas para garantia de serviços de saúde. Antes de tudo, é o desenvolvimento de possibilidades geradoras de mudanças pessoais e sociais, promovendo sentido à vida.

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Colaboradores Os autores Fernanda Denardin Gonçalves, Ana Maria Fontenele Catrib, Neiva Francenely Cunha Vieira e Luiza Jane Eyre de Souza Vieira participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo.

Referências BARBA, P.; MARTINEZ, C.; CARRASCO, B. Promoção da saúde e educação infantil: caminhos para o desenvolvimento. 2003. Disponível em: <http://sites.ffclrp.usp.br/ paidea/artigos/26/01>. Acesso em: 20 jul. 2006. BARDIN, L. Análise do conteúdo. Lisboa: Edições 7, 1977. BRASIL. IEC/FIOCRUZ. Promoção da saúde. Declaração de Alma-Ata. Carta de Ottawa. Declaração de Adelaide. Declaração de Sundsvall. Declaração de Santafé de Bogotá. Declaração de Jacarta. Rede de Megapaíses. Declaração do México. Brasília: Ministério da Saúde, 2001. BRASIL. Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria da Educação Fundamental. Referenciais Curriculares Nacionais para a Educação Infantil. Brasília, 1997a. ______. Parâmetros Curriculares Nacionais. Brasília, 1997b. ______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 5692. Brasília, 1996a. ______. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9394. Brasília, 1996b. BRASIL. Ministério da Saúde. Secretaria de Políticas de Saúde. Promoção da saúde: 1998. Disponível em: <http:// www.saude.gov.br/sps>. Acesso em: 20 jul. 2006. CATRIB, A.M.F. et al. Saúde no espaço escolar. In: BARROSO, M.G.T.; VIEIRA, N.F.C.; VARELA, Z.M.V. (Orgs.). Educação em saúde no contexto da promoção humana. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2003. DAVANÇO, G.M.; TADDEI, J.A.A.C.; GAGLIANONE, C.P. Conhecimentos, atitudes e práticas de professores de ciclo básico, expostos e não expostos a curso de educação nutricional. Rev. Nutr., v.17, n.2, p.177-84, 2004. FERNANDES, M.H.; ROCHA, V.M.; SOUZA, D.B. A concepção sobre saúde do escolar entre professores do ensino fundamental (1ª a 4ª séries). 2005. Disponível em: <http://www. scielo.br/scielo.php?pid=S0104-59702005000200004&script=sci_ arttext>. Acesso em: 20 jul. 2006. GUIMARÃES, L. Os fazeres na educação infantil. São Paulo: Carochinha, 2000. HALPERN, Z. Fórum nacional sobre promoção da alimentação saudável e prevenção da obesidade na idade escolar. 2003. Disponível em: <http://www.abeso.org.br/ revista/ revista15/forum.htm>. Acesso em: 20 jul. 2006. HERNANDEZ, F.; VENTURA, M. A organização do currículo por projetos de trabalho. Porto Alegre: Art Med, 1998. JONES, I. La imaginación, punto de partida de las escuelas. Rev. Org. Mundial Salud, v.49, n.4, p.111-39, 1996.

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artigos

GONÇALVES, F.D. et al.


A PROMOÇÃO DA SAÚDE NA EDUCAÇÃO INFANTIL

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GONÇALVES, F.D. et al. La promoción de la salud en la educación infantil. Interface - Comunic., Saúde, Educ., v.12, n.24, p.181-92, jan./mar. 2008. Con el objetivo de describir una práctica pedagógica promotora de la salud en una escuela de educación infantil que incorpora estos principios en su cotidiano, se desarrolló un trabajo cualitativo, con seis sujetos que vivenciaron este proceso. La aproximación a la realidad se hizo por medio de entrevista semi-estructurada y observación, emergiendo categorías empíricas de las declaraciones, revelando: 1. el cuidado como elemento promotor de la salud; 2. formación de hábitos higiénicos a partir de la educación; 3. promoción de la salud a través de la pedagogía de proyectos y 4. establecimiento de vínculos entre profesionales de salud y alumnos. Se concluye en este estudio la necesidad de realizar un trabajo sistemático de formación con pedagogos y profesionales de salud, para que estos puedan comprender la importancia de la realización de una práctica interconectada y presente de la educación en salud en los diversos ámbitos de actuación de la escuela.

Palabras clave: Salud escolar. Educación infantil. Promoción de la salud.

Recebido em 17/11/06. Aprovado em 14/09/07.

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Do científico ao jornalístico: análise comparativa de discursos sobre saúde

Rodrigo Bastos Cunha1

Jornalistas, cientistas, pesquisadores da área de comunicação e analistas do discurso concordam que há uma transformação da linguagem especializada do discurso científico para a linguagem não especializada no processo de divulgação científica para o público leigo. O presente trabalho mostra que este processo é tratado de forma diversa pelos diferentes analistas que escolhem a divulgação científica como seu objeto de estudo. Objetivando contribuir para essa discussão, apresento, com o apoio da linha francesa da Análise do Discurso, uma análise comparativa de dois discursos jornalísticos – “Síntese de proteínas pode levar a novos medicamentos” e “Pesquisa analisa discurso envolvendo medicamentos para supressão da menstruação” (ComCiência, 2003a, 2003b) - , em relação aos respectivos discursos científicos – o resumo da tese de doutorado Caracterização e seqüenciamento de peptídeos e proteínas por espectrometria de massa (Cunha, 2003) e a apresentação da dissertação de mestrado Supressão da menstruação – ginecologistas e laboratórios farmacêuticos reapresentando natureza e cultura (Manica, 2003) –, que serviram de fonte inicial para elaboração das pautas que antecederam as entrevistas com os autores das pesquisas que seriam divulgadas nas notícias. Os textos que formam o corpus desta análise abordam questões que envolvem saúde pública. Bueno, jornalista e pesquisador na área de comunicação, divide a difusão do conhecimento científico em duas categorias: 1) a da disseminação científica, que envolve a difusão para especialistas, seja ela entre pares científicos da mesma área ou voltada para especialistas de outras áreas; e 2) a da divulgação científica, que envolve a difusão para o grande público em geral (Bueno, 1984). O autor assume que a divulgação, que inclui o jornalismo científico, “pressupõe um processo de recodificação, isto é, a transposição de uma linguagem especializada para uma linguagem não especializada, com o objetivo de tornar o conteúdo acessível a uma vasta audiência” (p. 19; grifo meu). Fazendo uma divisão semelhante à de Bueno em relação à difusão da ciência, porém com outra terminologia, Epstein, engenheiro civil e também pesquisador na área de comunicação desde a década de 1980, afirma que a comunidade científica “se relaciona consigo mesma, em cada segmento especializado, e com o resto da sociedade, por meio de dois processos comunicacionais distintos, que são chamados, respectivamente, de primário e secundário” (Epstein, 1998, p.61;

Bacharel em Lingüística. Universidade Estadual de Campinas. Labjor Unicamp Prédio da Reitoria V 3º piso Cidade Universitária Zeferino Vaz Campinas SP 13.083-970 rbcunha@unicamp.br 1

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grifo meu). Segundo esse autor, a comunicação secundária, que não possui uma audiência cativa como a primária, utiliza determinadas funções da linguagem e recursos de retórica para superar a especificidade das linguagens especializadas pouco palatáveis ao público leigo. Authier (1982), que analisa a divulgação científica sob a ótica da linha francesa da Análise de Discurso – a qual passarei a designar adiante apenas por AD –, usa termos correlatos aos empregados na área de comunicação: discurso primeiro (ou discurso-fonte) e discurso segundo. Para essa autora, a divulgação científica apresenta-se como “prática de reformulação de um discursofonte (D1) em um discurso segundo (D2)” (p.35) (grifo meu), por ser destinada a um público receptor diferente do público para o qual se destina o discurso científico. Também filiada à AD, porém com uma visão crítica em relação a ela, Zamboni faz ressalvas à avaliação de Authier e afirma que a divulgação científica é “resultado de um efetivo trabalho de formulação discursiva, no qual se revela uma ação comunicativa que parte de um ‘outro’ discurso [o científico] e se dirige para ‘outro’ destinatário [o público leigo]” (Zamboni, 1997, p.11). Para justificar sua afirmação, considera o discurso da divulgação científica como um gênero específico de discurso, que não pertence ao mesmo campo do gênero do discurso científico. Retomo aqui o autor em que Zamboni se baseia para tratar de gêneros do discurso. Mikhail Bakhtin (1997) os define como tipos relativamente estáveis de enunciados, utilizados em cada uma das diferentes esferas da atividade humana. Segundo ele, o enunciado reflete as condições específicas e as finalidades de cada uma dessas esferas, não só por seu conteúdo (temático) e por seu estilo verbal, ou seja, pela seleção operada nos recursos da língua – recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais –, mas também, e sobretudo, por sua construção composicional. (Bakhtin, 1997, p.279)

Considerando o amplo espectro traçado por Bueno (1984) no âmbito da divulgação científica – envolvendo desde livros didáticos, aulas de ciências e museus de ciência até textos jornalísticos, como artigos e reportagens – e a definição acima, de gêneros do discurso, feita por Bakhtin, julgo mais apropriado dizer que vários gêneros transitam pelo campo da divulgação científica e uma de suas vertentes – o jornalismo científico – segue a construção composicional típica dos discursos jornalísticos. Alice no País do Quantum (Gilmore, 1998), por exemplo, um livro de divulgação da Física Quântica para leigos, tem uma construção composicional semelhante à da obra com a qual dialoga: Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carrol. E vale lembrar que a própria disseminação científica (entre os pares) também pode transitar por diversos gêneros, pois nos séculos XVI e XVII era prática comum a difusão do conhecimento por meio da correspondência entre cientistas, prática discursiva que tinha uma construção composicional típica do gênero epistolar, embora o estilo verbal pudesse ser de um campo discursivo restrito. Portanto, no caso específico do jornalismo especializado em divulgação de ciência, considero, junto com Orlandi (2001, p. 151), que “o discurso de divulgação científica é textualização jornalística do discurso científico”. Na análise a seguir, pretendo mostrar algumas características de notícias de divulgação científica, em grande parte ligadas ao gênero da notícia jornalística como um todo, para sugerir que há, de fato, na notícia de divulgação, um trabalho de formulação discursiva, como propõe Zamboni (1997), porém sem a mesma construção composicional de um artigo de divulgação, por exemplo, seguindo a estrutura típica do gênero da notícia e as restrições de uma determinada linha editorial do veículo de comunicação.

1 O lide no discurso jornalístico: inversão em relação à estrutura do discurso científico O termo “lide”, aportuguesado do inglês “lead” (conduzir), é empregado em jornalismo para resumir a função do primeiro parágrafo, que consiste em sintetizar a notícia e conduzir o interesse do

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leitor para a leitura dos demais parágrafos. Zamboni (1997, p.161) observa que “o discurso jornalístico opera uma reversão da superestrutura do texto científico: as conclusões das pesquisas e as potenciais aplicações de seus resultados no cotidiano das pessoas ganham posição de destaque”. O trecho abaixo, do parágrafo inicial de um dos textos do meu corpus de análise, mostra que o lide de um texto noticioso, em jornalismo científico, pode apresentar as conclusões antes mesmo de mencionar a pesquisa que está sendo divulgada. Folhetos produzidos por laboratórios farmacêuticos sobre novos contraceptivos, que podem suprimir a menstruação, trazem imagens e textos que tratam a menstruação como algo indesejável, inconveniente e, além disso, como a causa de efeitos como cólicas e síndrome da tensão pré-menstrual (TPM) e de doenças como anemia e endometriose. Essas são algumas conclusões a que chegou uma pesquisa de mestrado... (ComCiência, 2003b)

O outro texto do meu corpus de análise destaca as potenciais aplicações da pesquisa não apenas no final do lide, mas já no título da notícia: “Síntese de proteínas pode levar a novos medicamentos”. A estrutura clássica do lide noticioso, que responde às questões principais em torno de um fato (o quê, quem, quando, como, onde, por quê), é precedida, nesse caso, por uma breve apresentação ao leitor da área que será divulgada: Depois dos avanços no seqüenciamento de genomas de plantas e animais, vem crescendo, no campo das biotecnologias, a demanda por estudos ligados ao ‘proteoma’, que pretendem determinar a composição, estrutura e funções de todas as proteínas. A tese de doutorado Caracterização e seqüenciamento de peptídeos e proteínas por espectrometria de massa, por exemplo, defendida, no dia 11 de fevereiro, por Ricardo Bastos Cunha, na Universidade de Brasília (UnB), contribuiu para estudos de cinco laboratórios do país e pode levar à produção de novos medicamentos. (ComCiência, 2003a)

Contudo, a priorização de conclusões e resultados, apontada por Zamboni (1997) e observada nos exemplos acima, não se restringe ao jornalismo científico. Trata-se do que, no jargão jornalístico, é conhecido por “pirâmide invertida”, “técnica de redação jornalística pela qual as informações mais importantes são dadas no início do texto e as demais, em hierarquização decrescente, vêm em seguida” (Folha de São Paulo, 1992, p.100). Uma notícia sobre esporte, como futebol, por exemplo, geralmente, apresenta primeiro o resultado de um jogo para, depois, mencionar se, durante a partida, algum jogador foi expulso, se outro perdeu um pênalti ou se os goleiros fizeram defesas espetaculares. A hierarquização de importância das informações é, sem dúvida, um juízo de valor que, conseqüentemente, envolve certo grau de subjetividade. Mas tanto a possibilidade de produção de novos medicamentos (no caso da notícia sobre ciência), quanto o resultado de um jogo (no caso da notícia sobre esporte), são facilmente identificáveis como aquilo que o Novo Manual da Redação da Folha de S. Paulo chama de informação mais importante a ser noticiada. No próximo item, apresento algumas posições da AD em relação às escolhas, em termos de estilo verbal, que se operam na produção de discursos, para mostrar, com exemplos do jornalismo científico, o trabalho de seleção de recursos lexicais e fraseológicos da língua, realizado na tarefa de divulgação da ciência para o público leigo.

2 Estratégias do discurso jornalístico em relação a termos ou expressões de uso restrito ao discurso científico Quando surgiu na década de 1960, a AD focou, em seus estudos, o discurso político, investigando os aspectos ideológicos ligados à formação discursiva de quem o produziu.Maingueneau (1987) afirma que o discurso científico possui uma natureza muito particular em relação aos discursos que a AD tradicionalmente adotou como seus objetos de estudo. Segundo o autor, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO v.12, n.24, p.195-203, jan./mar. 2008 197

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trata-se de uma produção cujos laços com a topografia de conjunto da sociedade são bem menos diretamente formuláveis do que aqueles para os quais uma reflexão em termos ideológicos se impõe imediatamente; além disso, a tendência desse tipo de discurso é fazer coincidir o público de seus produtores com o de seus consumidores: escreve-se apenas para seus pares que pertencem a comunidades restritas e de funcionamento rigoroso. (Maingueneau, 1987, p. 57)

Para ele, a AD afasta “qualquer preocupação ‘psicologizante’ e ‘voluntarista’, de acordo com a qual o enunciador ... desempenharia o papel de sua escolha em função dos efeitos que pretende produzir sobre seu auditório” (Maingueneau, 1987, p.45). Segundo Maingueneau, esses efeitos, na realidade, são impostos não pelo sujeito que enuncia o discurso, e sim por sua formação discursiva. Ao esboçar uma epistemologia da AD que, com o passar dos anos, deixou de eleger o discurso político como único objeto de investigação, Possenti (1988) diz que a noção de ideologia não deve ser usada para a análise de todo e qualquer discurso, mas apenas nos casos em que ela seja um conceito produtivo para a investigação. O autor também afirma que, além da formação discursiva, não se pode deixar de considerar o trabalho do sujeito enunciador, que envolve ação sobre a língua na escolha dos efeitos de sentido que ele quer produzir e destaca o trabalho de escolha do sujeito ao tratar da noção de estilo. Antes de explicitar sua posição, lembro que, para Bakhtin (1997, p.283), “o estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e a formas típicas de enunciados, isto é, aos gêneros do discurso”. Possenti (1988) critica as teorias lingüísticas que tratam o estilo como desvio da norma (ou da modalidade padrão da língua), e defende que o estilo seja tratado como escolhas lexicais ou sintáticas que cada locutor faz em sua enunciação, deixando a marca da subjetividade no discurso. Segundo ele, “os falantes têm a sua disposição um conhecimento lingüístico diversificado ... e escolhem desse repertório as formas que lhes parecem adequadas para realizar o objetivo que têm em mente” (Possenti, 1988, p.188). Adotando o posicionamento de Possenti, ao analisar o discurso da divulgação científica, Zamboni (1997, p.33) afirma que “o tratamento que se dá à linguagem no processamento da divulgação resulta de um verdadeiro trabalho de escolha das formas, ... ligado, com freqüência, à busca do ideal de tornar compreensível para um público leigo uma linguagem que lhe é primitivamente hermética e inacessível”. A seguir, com base na confrontação entre trechos do discurso científico (DC) que serviu de fonte e trechos do discurso jornalístico (DJ) correspondente, apresento algumas estratégias no processo de divulgação da ciência, que consistem em escolhas não apenas dos recursos lexicais e fraseológicos da língua a serem utilizados, mas também daqueles que são descartados em função do público ao qual a divulgação se dirige. 2.1 Omissão ou supressão DC (1): “conseguiu-se determinar a seqüência completa de um peptídeo neurotóxico (cangitona) da anêmona marinha Bunodosoma cangicum.” DJ (1): “determinou a seqüência completa de um peptídeo da anêmona marinha Bunodosoma cangicum.”

No exemplo (1) é curioso observar não apenas os termos científicos suprimidos (em negrito, no discurso científico), mas aqueles que foram mantidos no discurso jornalístico. O termo “peptídeo” já aparece no lide da notícia, dentro do título da tese que está sendo divulgada, e pertence ao mesmo campo semântico das proteínas (compostos ou substâncias químicas). A palavra “anêmona”, por sua vez, pode não ser conhecida por parte do público, mas é identificável como pertencendo ao campo semântico dos animais. Porém, o que chama mais a atenção é o emprego do próprio nome científico da anêmona marinha. Prática comum em quase toda publicação de divulgação científica, a menção

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do nome científico de uma planta ou animal tem uma função de credibilidade, similar à citação direta da fala de um cientista no discurso jornalístico (ver item 4 deste trabalho). No exemplo (2), o discurso jornalístico suprime a informação sobre um processo descrito no discurso científico e retém apenas o resultado desse processo apontando, em seguida, um possível uso da toxina em tratamento de doença. DC (2): “As toxinas do tipo 1 caracterizam-se por ligarem-se especificamente aos canais de sódio, retardando sua inativação durante a transdução de sinal e, dessa forma, estimulando fortemente a contração do músculo cardíaco em mamíferos.” DJ (2): “caracterizado como uma toxina que estimula fortemente a contração do músculo cardíaco em mamíferos.”

No exemplo (3), além da supressão de termos científicos semelhantes aos do exemplo (1) e de processos descritos cientificamente como no exemplo (2), o discurso jornalístico revela uma escolha de termos, dentre pares de adjetivos – “atividade inflamatória e edematogênica”, “peptídeos hemolíticos e antimicrobianos” –, que não se restrigem ao discurso científico. DC (3): “A espectrometria de massa permitiu também caracterizar um peptídeo (leptodactilina) com potente atividade inflamatória e edematogênica, isolado da pele da rã brasileira Leptodactylus pentadactylus. Este apresentou similaridade de seqüência com peptídeos hemolíticos e antimicrobianos isolados da pele de outras espécies de rãs, bem como com proteínas ligantes de ferormônio isoladas de insetos e com proteínas repressoras transcricionais reguladoras de apoptose em mamíferos.” DJ (3): “Segundo o pesquisador, a espectrometria de massa também permitiu caracterizar um peptídeo da pele da rã brasileira Leptodactylus pentadactylus, que tem potente atividade inflamatória. Este peptídeo apresentou similaridade de seqüência com peptídeos antimicrobianos da pele de outras espécies de rã.”

No exemplo (4), extraído dos textos que tratam de medicamentos para supressão da menstruação, o discurso jornalístico omite o mecanismo de funcionamento do contraceptivo. DC (4): “Um primeiro contraceptivo cujo material analiso é o implante produzido pela Organon, chamado Implanon, um implante subdérmico ... que libera diariamente um hormônio, etonogestrel ... um método revolucionário, eficaz, reversível, que proporciona praticidade e liberdade à usuária.” DJ (4): “Os novos métodos contraceptivos seriam, então, vistos como uma solução revolucionária que proporciona praticidade e liberdade para a mulher.”

2.2 Substituição por expressão equivalente DC (5): “Esse estudo permitiu caracterizar ambos os peptídeos, por homologia de seqüência, como toxinas do tipo 1 de anêmona.” DJ (5): “sendo caracterizado como uma toxina do mesmo tipo que a do peptídeo que teve o seqüenciamento completo, por eles possuírem seqüências similares.” DC (6): “a menstruação pode ser pensada como um produto cultural, e a sua supressão como uma forma de mimetizar o que aconteceria na natureza.”

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DJ (6): “a menstruação é pensada como um produto cultural, e a sua supressão, ... como uma forma de imitar o que aconteceria na natureza.”

Tanto os exemplos (5) e (6), nos quais o discurso jornalístico usa sinônimo ou paráfrase de expressão do discurso científico, quanto o exemplo (7) abaixo, em que a explicação do termo científico é feita por meio de uma oração subordinada, são práticas comuns de escolhas de recursos da língua para tornar a informação sobre ciência compreensível ao público leigo. 2.3 Menção do termo de uso restrito seguida de explicação DC (7): “outro peptídeo (andactilina) com atividade ansiolítica, isolado da mesma anêmona.” DJ (7): “Esta outra toxina possui uma atividade chamada de ansiolítica, que reduz a ansiedade.”

Ainda dentro dessa estratégia da explicação, a notícia sobre medicamentos para supressão da menstruação apresenta um recurso próprio do veículo eletrônico: no lide, há um link na palavra “endometriose”, que remete para um box explicativo sobre o que é essa doença e quais efeitos ela provoca.

3 O que é notícia na prática jornalística Além da escolha de recursos da língua, tratada no item 2, na prática jornalística há a escolha do que é ou não notícia e do que deve ou não ser tratado como relevante dentro de uma notícia. Epstein (1998, p.65) observa que “o conceito de ‘novidade’, importante tanto para a evolução do conhecimento científico como para a construção da ‘notícia’ jornalística ... pode ter conotações diferentes nestas duas culturas profissionais”, e lembra ainda que são diferentes os “tempos operacionais dos cientistas e dos jornalistas, mais longos os primeiros e mais curtos os segundos”. Zamboni (1997, p.35) afirma que a divulgação científica “privilegia, de modo quase unânime, os resultados, relegando a metodologia – item bastante caro ao trabalho científico – a plano inferior, quando não o suprime totalmente”. Cabe ressaltar que o uso ou não desse procedimento de simplificação – a supressão da metodologia – pode servir para diferenciarmos as revistas de divulgação existentes no país. O texto que serviu de fonte para uma das notícias do meu corpus de análise destaca, já no título da dissertação, um conceito (o de re-apresentação) utilizado na pesquisa como chave para a discussão em torno das noções de natureza e cultura (Manica, 2003). A notícia em questão enfoca as imagens e os textos dos folhetos de medicamentos para supressão da menstruação, e introduz a discussão “natureza versus cultura” por intermédio de um intertítulo que antecede o 4º parágrafo, sem mencionar, contudo, o conceito de re-apresentação e seu uso nas ciências sociais. A escolha, nesse caso, recai sobre aquilo que tem ou não apelo para o público leigo. A outra notícia do meu corpus de análise, conforme visto acima, ao tratar de lide, também enfoca algo de apelo para o público (a possibilidade de produção de novos medicamentos). O texto científico de fonte, nesse caso, destaca, logo em seu início, a espectrometria de massa como “uma técnica que pode trazer grandes avanços para a atividade de pesquisa biomolecular” (Cunha, 2003, p.9). Já a notícia aponta esse destaque feito pelo pesquisador apenas no 6º parágrafo, logo abaixo de uma foto do espectrômetro de massa, explicando o seu funcionamento. Levando-se em conta a observação de Epstein (1998) quanto aos diferentes conceitos de “novidade”, pode-se afirmar que o texto científico dirigido aos pares de seu autor tratou como “novidade” o foco do trabalho na técnica da espectrometria de massa, além de apresentar o seqüenciamento de determinados peptídeos e proteínas, o que “contribuiu para estudos de cinco laboratórios do país”, segundo a notícia sobre o tema. Esta última, por sua vez, apresentou, como “novidade”, uma ciência pura (ou básica), cujo conhecimento produzido por meio do seqüenciamento

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de proteínas, pode ser aplicado na produção de novos medicamentos. Tanto essa notícia sobre síntese de proteínas quanto a outra sobre medicamentos para supressão da menstruação contextualizam, no último parágrafo, as respectivas pesquisas divulgadas: a primeira, mencionando o orientador da tese, “um dos primeiros pesquisadores a utilizar o termo ‘proteoma’ no Brasil”, e cada um dos laboratórios brasileiros para os quais a pesquisa colaborou; a segunda, inserindo a discussão sobre as fronteiras entre natureza e cultura, nas questões levantadas pelos avanços da nanociência e das biotecnologias, e colocadas em evidência naquele ano em que se comemoravam os cinqüenta anos da formulação da estrutura do DNA em dupla hélice.

4 O discurso do “outro” que dá credibilidade à notícia Conforme comentado brevemente no item 2 deste trabalho, a fala de um cientista, seja na forma de discurso direto ou indireto, é um dos fatores que conferem credibilidade ao discurso jornalístico de divulgação da ciência. Zamboni (1997) critica o quadro da enunciação proposto por Authier (1982) ao tratar do discurso de divulgação científica, que envolve uma dupla estrutura: “a enunciação do discurso vulgarizador em vias de se reproduzir, manifestada numa ancoragem temporal marcada” e “a enunciação do discurso científico, que aparece grandemente sob a forma do discurso indireto ... em que o nome dos enunciadores, seu estatuto de especialistas e o tempo de enunciação são especificados com abundância e rigor” (p.36). Zamboni (1997, p.80) considera que “o discurso relatado não pode ... ser tomado como traço caracterizador da divulgação científica, mesmo que entre aí como a voz do ‘especialista’”, e lembra que “no discurso de transmissão de informações do gênero jornalístico, o discurso relatado também aparece como componente de grande peso”. Zamboni está certa nesse último ponto, quando trata do texto jornalístico em geral, pois uma notícia sobre política que traz a fala de um personagem do alto escalão do governo confere mais credibilidade do que outra que, por exemplo, revela uma fonte ligada ao círculo de amizade de “fulano”, simulando preservar essa suposta fonte. Talvez, por essa razão, Zamboni deveria ter percebido que, no campo da divulgação científica, o texto jornalístico possui características diferentes do artigo de divulgação assinado por um cientista. Pelo fato de o autor do artigo de divulgação ser a própria autoridade relacionada à enunciação, considerando que, segundo Maingueneau (1987, p.37), “o discurso só é ‘autorizado’ e, conseqüentemente, eficaz se for reconhecido como tal”, ele não precisa inserir em seu texto a fala de um colega cientista para ter credibilidade. Pode fazê-lo ou não. Apenas para ilustrar o peso que a fala especializada tem na notícia jornalística, particularmente em jornalismo científico, contabilizei, nos textos do meu corpus de análise, o número de inserções de falas dos cientistas que aparecem nas formas direta e indireta. Na notícia sobre síntese de proteínas, há cinco inserções de discurso direto do cientista e três de discurso indireto (“segundo o pesquisador”, “o pesquisador destaca” e “ele explica”). Já a notícia sobre medicamentos para supressão da menstruação traz três inserções de discurso direto e nada menos do que dez inserções de discurso indireto, sendo oito da autora da pesquisa que é divulgada na notícia e duas de um médico mencionado na pesquisa (“de acordo com esse médico” e “segundo os argumentos de Coutinho”).

Conclusão A análise mostra que, de fato, como propõe Zamboni, há no processo de divulgação científica um trabalho de formulação discursiva que consiste em escolhas ligadas ao estilo verbal – recursos disponíveis na língua (conforme Bakhtin e Possenti) – ou ligadas à prática jornalística (conforme Epstein e Orlandi). Mas o presente trabalho também mostra que não se pode tratar da mesma forma um artigo de divulgação escrito por um cientista e uma notícia jornalística de divulgação da ciência, já que esta última tem uma construção composicional típica do gênero da notícia jornalística como um todo e se submete a processos de edição próprios de cada veículo de comunicação.

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CUNHA, R.B.


DO CIENTÍFICO AO JORNALÍSTICO...

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espaço aberto

CUNHA, R.B.

Jornalistas, cientistas e analistas do discurso concordam que há uma transformação da linguagem especializada do discurso científico para a linguagem não especializada no processo de divulgação científica para o público leigo. Consideram essa transformação como recodificação, reformulação, formulação de um novo discurso ou, no caso específico do jornalismo científico, textualização jornalística do discurso científico. Com o apoio da linha francesa da Análise do Discurso, o presente trabalho faz uma análise comparativa de dois discursos jornalísticos envolvendo questões de saúde pública, da seção de notícias da revista ComCiência, em relação aos respectivos discursos científicos que serviram de fonte para elaboração das notícias.

Palavras-chave: Saúde. Discurso científico. Jornalismo científico. Comunicação e divulgação científica. From scientific to journalistic: comparative analysis of health-related discourse. Journalists, scientists and discourse analysts agree that there is a transformation from the specialized language of scientific discourse to non-specialized language during the process of disseminating science to the lay public. They consider this transformation to consist of recoding, reformulation, formulation of a new type of discourse or, in the specific case of scientific journalism, journalistic transformation of scientific discourse into text. With support from the French line of discourse analysis, the present study makes a comparative analysis using two examples of journalistic discourse involving public health questions, taken from the news section of the journal ComCiência, in relation to the respective scientific discourse that served as the source for composing the news.

Key words: Health. Scientific discourse. Scientific journalism. Communication and dissemination of science. De lo científico a lo periodístico: análisis comparativo de discursos sobre salud. Periodistas, científicos y analistas del discurso concuerdan en que hay una transformación del lenguaje especializado del discurso científico al lenguaje no especializado en el proceso de divulgación científica para el público lego. Algunos autores consideran esta transformación como recodificación, reformulación, formulación de un nuevo discurso o, en el caso específico del periodismo científico, textualizacíon periodística del discurso científico. Con el apoyo de la línea francesa del Análisis del Discurso, el presente trabajo hace un análisis comparativo de dos discursos periodísticos referentes a cuestiones de salud pública, de la sección de noticias de la revista ComCiência, en relación a los respectivos discursos científicos que fueron la fuente para elaboración de las noticias.

Palabras clave: Salud. Discurso científico. Periodismo científico. Comunicación y divulgación científica. Recebido em 31/08/06. Aprovado em 04/09/07.

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espaçoaberto

Conhecimento e atitudes de pediatras em relação à cárie dentária* Vanessa Dalto1 Barbara Turini2 Luiz Cordoni Junior3

Introdução Atualmente, os profissionais de Odontologia buscam promover saúde bucal por meio da atenção precoce, uma vez que valores e atitudes adquiridos durante os primeiros anos de vida ficam fortemente resistentes a mudanças e se tornam hábitos rotineiros (Faria, Oliveira, Pordeus, 1997). Neste contexto, vários fatores colocam o pediatra em uma posição privilegiada no contato com a criança e seus responsáveis. Em geral, ele é o primeiro profissional da área da saúde a se relacionar com a criança e sua família, possui maior contato com os mesmos durante os primeiros anos de vida de seu paciente, e tem a confiança e receptividade dos pais em suas palavras e orientações (Schalka & Valente, 2002; Barroso, Miasato, Graça, 2001; Nowak et al., 1994 apud Pastor & Rocha, 2001; Freire, Macedo, Silva, 2000). Portanto, tendo em vista o bem-estar do indivíduo, e particularmente a saúde integral da criança, sem a setorizar, torna-se evidente a importância da interdisciplinaridade entre a Pediatria Médica e a Odontológica (Pastor & Rocha, 2001). O objetivo deste estudo consistiu em verificar o conhecimento e atitudes de médicos pediatras atuantes na cidade de Londrina, PR frente a aspectos odontológicos relacionados à promoção de saúde bucal das crianças por eles atendidas.

Metodologia População estudada: o estudo foi realizado com médicos pediatras atuantes na rede pública de saúde e clínicas e hospitais particulares da cidade de Londrina, PR. Uma vez que o site do Conselho Regional de Medicina não disponibiliza uma lista dos médicos pediatras cadastrados atuantes em Londrina-PR, optou-se por obter a relação dos profissionais por meio do site da Associação Médica de Londrina (AML), bem como de listas telefônicas da região. Os nomes de profissionais atuantes em Unidades Básicas de Saúde do município foram conseguidos mediante contato telefônico com as unidades. Da relação assim

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Elaborado a partir de Dalto, 2006. 1 Cirurgiã-dentista. Prefeitura de Cambé. Rua Chile, 173 Centro Cambé, PR 86.181-190 van_dalto@hotmail.com 2 Médica. Universidade Estadual de Londrina. 3 Médico. Universidade Estadual de Londrina. *

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CONHECIMENTO E ATITUDES DE PEDIATRAS...

obtida, foram utilizados os seguintes critérios de exclusão: não-médicos, não-pediatras e pediatras não atuando na prática clínica. Coleta de dados: antecedendo o estudo principal, efetuou-se pré-teste com pediatras de cidade vizinha, objetivando testar a técnica metodológica e a validade do método de coleta de dados. Para a realização da pesquisa, foi enviado, pelo correio, questionário aos profissionais, para levantamento de seu conhecimento sobre a formação e desenvolvimento dos dentes e doença cárie. Anexado ao questionário, foram enviados, ainda, carta de apresentação, orientando quanto ao objetivo da pesquisa, garantia de anonimato e demais aspectos éticos, e Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os questionários foram recolhidos pessoalmente, num primeiro momento, após quinze dias transcorridos da data de envio aos médicos. Uma segunda coleta foi realizada após quinze dias da primeira, a fim de se evitar perdas em excesso e o comprometimento da pesquisa. Análise dos dados: os dados obtidos foram processados e analisados em programa eletrônico Epi Info versão 3.3.2 para Windows. Realizou-se análise quantitativa, com distribuição de freqüência das respostas mencionadas. Questões nas quais houve múltiplas escolhas onde somente caberia uma resposta foram desconsideradas. Os resultados obtidos foram comparados com resultados divulgados em estudos semelhantes. Aspectos éticos: o presente estudo foi submetido e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual de Londrina (parecer 170/05 de 15 de agosto de 2005) e pela Autarquia Municipal de Saúde de Londrina (C.P./029/05/Gecape), para inclusão dos profissionais da rede municipal de saúde.

Resultados Perfil da população: foi obtida uma lista contendo 98 nomes diferentes de profissionais. Destes, foram excluídos 11, de acordo com os critérios descritos anteriormente, resultando em um total final de 87 pediatras. Conseguiu-se um retorno de 52 médicos (59,8%), dos quais 57,7% correspondiam ao sexo feminino. A média de idade entre os 48 pesquisados que responderam a este item foi de 46,0 anos, variando de 28 a 75 anos; 86,5% (n = 45) estavam formados há mais de 10 anos, e 75,0% (n = 39) trabalhavam em, pelo menos, um local pertencente à rede pública de saúde. Quando questionados sobre o fato de terem recebido instruções sobre saúde bucal em crianças, 71,2% (n = 37) responderam afirmativamente. Destes, o momento mais freqüentemente mencionado foi durante a residência médica (56,8%), seguida por 37,8% que citaram a participação em cursos, e 29,7% que mencionaram a graduação. Todos os pediatras participantes do estudo responderam ter como rotina avaliar a cavidade bucal das crianças, sendo que 86,5% (n = 45) realizam o exame em todas as consultas. Quase todos os médicos avaliam amígdalas e palato mole, dentes, língua e higiene bucal. Em menor freqüência, foram mencionados aspectos ortodônticos e alterações em tecido mole. Formação dos dentes: a grande maioria, 94,2% (n = 49) e 90,4% (n = 47), informou conhecer a época de formação dos dentes decíduos e permanentes, respectivamente. Quanto à existência de medicamentos que interferem na formação dos dentes, todos os 48 médicos que responderam à questão concordaram com a existência de tais drogas. A tetraciclina foi a substância mais citada (68,8%; n = 33) por esses profissionais, seguida por 14,6% (n = 7) que mencionaram antibióticos, sem especificação da substância ativa. Flúor foi citado por apenas dois profissionais. Em relação a doenças, 44 pediatras responderam à questão, afirmando a possibilidade de alterações na formação dos dentes em decorrência de processos patológicos. Tais profissionais indicaram, com maior freqüência, infecções ou processos infecciosos (38,6%; n = 17). Alterações genéticas ou embrionárias e carências nutricionais foram mencionadas em menor freqüência. Cárie dentária: sobre a doença, 28,8% (n = 15) dos pediatras não informaram qual sua etiologia. Em 61,5% (n = 32) dos questionários, o fator bacteriano foi citado como tendo envolvimento na etiologia da cárie dentária, sendo que em 38,5% (n = 20), as bactérias foram mencionadas como causa única da doença. Menos da metade dos profissionais (48,1%; n = 25)

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concordaram com a característica de transmissibilidade da cárie dentária, contudo, a maior parte (73,1%; n = 38) afirmava tratar-se de doença infecciosa. Houve dúvidas em relação à cariogenicidade do leite materno, pois a freqüência de respostas negativas foi de 51,9% (n = 27) contra 48,1% (n = 25), afirmando ser o leite materno cariogênico; 96,2% (n = 50) assinalaram que conhecem o termo “cárie de mamadeira”. Para 21,2% (n = 11), os antibióticos podem causar cáries, sendo que, dos pediatras que afirmaram a sua não cariogenicidade, quatro ressaltaram ser o veículo açucarado dos antibióticos, e não seu princípio ativo, o responsável pela instalação de lesões cariosas.

Discussão Embora o percentual de profissionais que receberam instrução sobre saúde bucal em crianças tenha sido alto, não deve ser desconsiderado que 15 médicos nunca tiveram tal informação. Segundo Maltz e Lacerda (2001), a cavidade bucal é excluída, pela Medicina, de sua área de competência, especialmente quando são consideradas as suas doenças de maior prevalência, como a cárie e a doença periodontal. Dessa forma, áreas em que a integração médico-odontológica é indispensável, como a Pediatria, são prejudicadas, resultando em cuidados deficientes em relação à saúde oral (Maltz & Lacerda, 2001; Pastor & Rocha, 2001). Ao contrário de investigações divulgadas em outras publicações, neste estudo a residência médica foi a fonte de informações sobre saúde bucal em crianças mais freqüentemente mencionada pelos pediatras (56,8%). Em estudo realizado por Freire, Macedo e Silva (2000), a graduação aparece em primeiro lugar (38,5%), seguida por cursos de reciclagem não promovidos pelo Sistema Único de Saúde (28,1%) e residência pediátrica (24,0%). Cursos extracurriculares (22,9%) foram a principal fonte de informações sobre odontologia preventiva entre os profissionais pesquisados por Schalka e Rodrigues (1996), seguidos de residência pediátrica (20,8%) e graduação (14,5%). Em levantamento realizado por Campos et al. (2003), apenas 33% dos pediatras estudaram a etiologia da cárie dentária durante o curso de Medicina. Os resultados acima sugerem que muitos pediatras buscam melhorar seu conhecimento sobre o assunto por intermédio da participação em cursos, tornando este meio de transmissão importante para a divulgação de novas informações e reforço de determinadas práticas. Em Londrina - PR, cursos de capacitação e fóruns promovidos pela Secretaria Municipal de Saúde podem ser fontes de informações muito utilizadas pelos profissionais pesquisados, uma vez que grande número deles (75,0%) trabalha em locais ligados ao sistema público de saúde. Com relação à formação dos dentes, Maltz & Lacerda (2001) encontraram valores menores entre os pediatras por elas estudados: 56,47% não souberam informar com que idade a mesma se completa; 35,59% não relataram a tetraciclina como sendo prejudicial durante este período, e apenas dois de 85 médicos indicaram o flúor como substância nociva durante a formação dos dentes. O conhecimento sobre tal questão é valioso para que possa ser evitada a prescrição de medicamentos prejudiciais em função da idade da criança, assim como também suspeitar de alterações sistêmicas em decorrência da presença de modificações nos dentes. Na presente pesquisa, deve ser ressaltada a pequena porcentagem de pediatras que relatou o flúor como sendo prejudicial durante este período, devido ao risco de fluorose dentária em conseqüência do uso abusivo desta substância. Cárie dentária é, provavelmente, a doença da cavidade bucal mais conhecida entre as pessoas. Sua etiologia é multifatorial, envolvendo hospedeiro, microbiota e substrato ou dieta, que precisam interagir por determinado tempo (Newbrun, 1988). É considerada doença infecciosa, de origem bacteriana e com características de transmissibilidade (Guedes-Pinto, 2003; Kriger, 1997; Walter, Ferelle, Issao, 1997). Entretanto, menos da metade dos profissionais que participaram da pesquisa (48,1%) assinalaram que a cárie dentária é transmissível, apesar de grande parte (73,1%) declarar se tratar de doença infecciosa. Em estudo realizado por Figueiredo, Palmini e Rodrigues (1997), somente 27% dos profissionais pesquisados afirmaram a transmissibilidade e 85% que é doença infecciosa. A aquisição de bactérias cariogênicas pelos bebês se faz pelo contato da criança com o ambiente familiar, sendo as mães, possivelmente, as maiores fontes de contaminação (Guedes-Pinto, 2003).

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DALTO, V.; TURINI, B.; CORDONI JUNIOR, L.


CONHECIMENTO E ATITUDES DE PEDIATRAS...

Uso de talheres, soprar a comida para esfriar, beijos nos lábios e uso em comum de escovas são algumas atitudes que possibilitam infecção (Guedes-Pinto, 2003; Kriger, 1997). Sabe-se que, quanto mais precoce for a colonização bacteriana, maior será o risco de desenvolver lesões de cáries (Walter, Ferelle, Issao, 1997). Portanto, os pais devem ser alertados quanto às vias de infecção, para que práticas que possibilitem a transmissão de microrganismos cariogênicos sejam evitadas (Schalka & Valente, 2002). No estudo de Freire, Macedo e Silva (2000), o fator bacteriano foi o mais comumente associado à doença cárie: 46,9% dos pediatras apontaram fatores bacterianos e dietéticos, e 28,1% apenas os fatores bacterianos. Os profissionais do atual estudo também relacionaram fortemente a ação de fatores bacterianos na instalação da doença: 61,5% referiram-se ao papel das bactérias no processo. Contudo, as informações apresentadas pelos pediatras sobre a etiologia da cárie dentária estão incompletas, pois, apesar de se tratar de doença multifatorial, o papel dos outros fatores etiológicos não foi destacado pela maioria dos profissionais. Também em relação à cárie dentária, deve-se ressaltar que pouco mais de 20% dos pediatras acreditam que antibióticos podem causar cáries, enquanto em pesquisa realizada por Paiva, Bezerra e Toledo (1990) apenas 8% dos profissionais informaram que os mesmos aumentam o risco de cárie dentária. Os autores lembram que, em relação à administração de medicamentos para crianças, a cariogenicidade está relacionada ao açúcar presente em seu veículo, fato ressaltado por quatro pediatras da atual pesquisa. A cariogenicidade do leite materno ainda é um ponto que precisa ser esclarecido para os pediatras participantes do presente estudo: apenas 48,1% afirmaram que o leite materno pode causar cáries. Na pesquisa de Campos et al. (2003), somente 16% dos médicos concordaram com a questão da cariogenicidade. Considera-se, atualmente, que, em condições normais de ingesta, o potencial cariogênico do leite materno é de pouco significado clínico (Kriger, 1997). Porém, quando o consumo é realizado em grande freqüência e em situações em que os fatores protetores salivares não estão presentes, como durante o sono, o leite materno é tão ou mais cariogênico que outros alimentos contendo açúcares (Guedes-Pinto, 2003; Kriger, 1997; Walter, Ferelle, Issao, 1997).

Considerações finais Os resultados aqui observados indicam que os médicos pediatras atuantes em Londrina - PR têm bons conhecimentos e apresentam atitudes positivas em relação à saúde bucal de seus pacientes. Deve ser levado em consideração, ainda, que discrepâncias de resultados encontrados neste estudo e em pesquisas semelhantes aqui mencionadas podem também estar relacionadas às diferenças de épocas em que as observações foram realizadas. Ainda é necessário ampliar e reforçar conhecimentos a respeito de prevenção em saúde bucal, sobretudo aspectos relacionados à etiologia da cárie dentária. Uma avaliação mais sistemática da situação é indispensável para se identificarem as reais carências tanto de médicos pediatras quanto de odontopediatras, para que possíveis deficiências no ensino da Pediatria possam ser sanadas e as crianças tenham maiores chances de se desenvolverem em boas condições de saúde geral e bucal. A atualização dos profissionais e a compreensão da importância de um atendimento interdisciplinar e multiprofissional são fundamentais para o tratamento do paciente como um todo.

Colaboradores Os autores Vanessa Dalto e Barbara Turini participaram, igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão, redação e da revisão do texto. Luiz Cordoni Junior participou de discussões e revisão do texto.

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espaço aberto

DALTO, V.; TURINI, B.; CORDONI JUNIOR, L.


CONHECIMENTO E ATITUDES DE PEDIATRAS...

Atualmente a atenção odontológica precoce tem sido enfatizada, pois atitudes e práticas adquiridas nos primeiros anos de vida tornam-se resistentes a mudanças. Devido ao maior contato com seus pacientes, o pediatra é profissional importante na transmissão de orientações relacionadas à saúde bucal. O presente estudo teve como objetivo verificar conhecimentos e atitudes de médicos pediatras atuantes em Londrina – PR, em relação à promoção de saúde bucal de crianças por eles atendidas. Dados foram coletados mediante questionário, abordando aspectos referentes à formação dos dentes e doença cárie. Sobre a cárie dentária, 28,8% dos pediatras não informaram qual sua etiologia, enquanto 48,1% afirmaram a transmissibilidade da doença. Os resultados observados sugerem que os pediatras apresentam atitudes e práticas positivas em relação à saúde bucal, mas que informações sobre cárie dentária precisam ser reforçadas.

Palavras-chave: Pediatria. Odontopediatria. Cárie dentária. Saúde bucal. Knowledge and attitudes of pediatricians in relation to dental caries. Early dental care is emphasized today, since the attitudes and practices acquired during the first years of life become resistant to change. Because of greater contact with their patients, pediatricians are professionals of importance with regard to transmitting guidance relating to oral health. The present study had the aim of investigating the knowledge and attitudes of pediatricians practicing in Londrina, PR, regarding the promotion of oral health among the children that they attend. Data were collected by means of a questionnaire that covered matters relating to tooth formation and caries. Regarding dental caries, 28.8% of the pediatricians could not say what its etiology was, while 48.1% said that the disease was transmissible. The results observed suggested that the pediatricians presented positive attitudes and practices in relation to oral health, but that the information on dental caries needs to be reinforced.

Key words: Pediatrics. Pediatric dentistry. Dental caries. Oral health. Conocimiento y actitudes de pediatras en relación a caries dental. Actualmente ha sido enfatizada la atención odontológica precoz, pues actitudes y prácticas adquiridas en los primeros años de vida se resisten a los cambios. Debido al mayor contacto con sus pacientes el pediatra es profesional importante en la transmisión de orientaciones relacionadas a la salud bucal. El presente estudio tuvo el objetivo de verificar conocimiento y actitudes de médicos pediatras que ejercen en Londrina, estado de Paraná, Brasil, en relación a la promoción de la salud bucal de los niños que atienden. Los datos se recaudaron mediante cuestionario comprendiendo aspectos referentes a la formación de los dientes y de la dolencia de caries. Sobre la caries dental el 28,8% de los pediatras no informaron su etiología, mientras que el 48,1% afirmaron el carácter transmisible de la enfermedad. Los resultados observados sugieren que los pediatras presentan actitudes y prácticas positivas en relación a la salud bucal pero que es necesario reforzar las informaciones sobre caries dentaria.

Palabras clave: Pediatría. Odonto-pediatría. Caries dentaria. Salud bucal.

Recebido em 22/08/06. Aprovado em 11/09/07.

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Gimol Benzaquen Perosa1

Relación clínica: Guía para aprender, enseñar e investigar propõe-se a abordar um tema recorrente dos manuais de Psicologia Médica: a relação médico-paciente. Cumpre tal objetivo com qualidade e tem particularidades que recomendam sua leitura e uso nas práticas de ensino e educação permanente em saúde. Dentre estas, pode-se apontar o fato de ter sido elaborado e orientado para a atenção primária à saúde, por docentes e médicos de família que atuam neste campo. Ainda que voltado especialmente para médicos de família, não se restringe a estes e, certamente, será útil a médicos de qualquer especialidade, bem como a enfermeiros e residentes. Diferentemente de outros compêndios, como guia, sugere inúmeros exercícios em habilidades comunicativas e traz situações que permitem ao leitor refletir sobre sua própria experiência, à luz de novos conhecimentos e habilidades. Estruturado com base em metodologia aplicada em oficinas e cursos de formação, pretende apoiar a aquisição de habilidades comunicativas essenciais à prática médica, ao aprimoramento da relação com pacientes e alunos e a uma práxis reflexiva na rotina do exercício profissional, a qual os autores propõem

em oposição a uma prática automatizada. Coerente com tal assertiva, seus autores entendem cada encontro médico-paciente como único e singular, exigindo do profissional, a todo momento, habilidades na escolha e no desempenho de estratégias que estabeleçam uma boa relação. O organizador, Roger Ruiz-Moral, é docente e médico de uma unidade de saúde da família, em Córdoba, Espanha, onde pôs em prática e aplicou as estratégias propostas, em centenas de cursos de formação médica continuada, seminários e oficinas, por todo o território espanhol. Ruiz-Moral toma como premissas, na construção deste guia: o entendimento de que, na atenção primária, uma boa relação comunicativa é tão importante quanto uma atuação clínica “tecnicamente” correta; que a comunicação e a relação médicopaciente podem ser aprendidas, ou seja, são áreas de capacitação e, portanto, elementos-chave na formação do profissional de saúde. Por fim, reconhece que a forma mais efetiva de adquirir e modificar atitudes é promovendo comportamentos, ao invés de oferecer recomendações bemintencionadas sobre como o médico deve se comportar e o que deve fazer. Estruturado em três partes bem definidas e articuladas, Relación clínica COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Psicóloga. Departamento de Neurologia e Psiquiatria, Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista, Unesp. Distrito de Rubião Junior, s/nº Caixa Postal 540 Botucatu SP 18.618-000 gimol@fmb.unesp.br

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livros

RUIZ-MORAL, R. Relación clínica: guía para aprender, enseñar e investigar. Barcelona: Sociedad Española de Medicina de Familia y Comunitaria, 2004.


apresenta, inicialmente, o marco conceitual que orientou sua elaboração: as evidências científicas que embasam a relevância da relação médico-paciente e seu lugar na Clínica. Com base no conceito de “semiosis ilimitada” de Umberto Eco, Ruiz-Moral define a entrevista clínica como um espaço semiótico, no qual uma imensa variedade de signos são interpretados de múltiplas formas pelos participantes podendo, assim, levar a ações bem diversas por seus interlocutores. A esta noção incorpora o conceito de estrutura rizomática2, na qual a comunicação é acêntrica, seus sujeitos ocupam posições intercambiáveis, definidas apenas pelo seu estado, em um momento dado. Sob esta articulação “semiótico– rizomático” Ruiz-Moral define a relação clínica como: um ato relacional, que se produz em um contexto institucional, histórico, cultural, social, temporal e físico, entre protagonistas com bagagens históricas, culturais, sociais, e físicas diversas que, neste processo e em função de tudo o que ocorreu anteriormente, se comunicam a partir de um tipo particular de signos, construindo e selecionando significados. (p.28) Contrariamente à forma como se estrutura a maioria dos cursos de semiologia, em que o aluno aborda o paciente com um roteiro, a definição acima implica uma prática diversa. Considerando que os objetivos principais da consulta não se apresentam de modo linear ou hierárquico, e que o ato clínico não se limita a um encontro ou ação pontual, a consulta deve ser vista como ponto de partida de novos processos relacionais. O núcleo principal do livro, por sua vez, está organizado em quatro capítulos, nos quais se detalha uma estrutura básica de currículo de habilidades relacionais, que inclui: acolher o paciente, escutar, mostrar

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empatia, finalizar, perguntar, verificar o entendimento, integrar as informações, informar, negociar, motivar e facilitar a adesão. Essas habilidades são subdivididas em comportamentos específicos, acompanhados de exercícios para facilitar sua aquisição. Tome-se, por exemplo, a habilidade de finalizar. RuizMoral faz uma interessante diferenciação entre finalizar uma relação e uma consulta. Para encerrar uma relação, é preciso preparar o paciente com antecedência, justificar os motivos desta ação, enfim, preparar a transferência para outro profissional. Ao lado dessas ações práticas, Ruiz-Moral alerta para a necessidade de o profissional reconhecer as implicações psicológicas que, como em qualquer relação humana, podem ocorrer, tais como: decepção com o profissional, culpabilização, depressão e objeções às alternativas sugeridas. Para ensinar a finalizar uma consulta, os autores fazem uma analogia com o modo como os apresentadores televisivos encerram seus programas, provocando o leitor a contrastar sua atuação como médico, nessa situação, à atuação do apresentador. Assim, lista os seguintes passos para um bom encerramento: orientar sobre a finalização, resumir a sessão, verificar a compreensão dos objetivos, oferecer apoio, despedir-se cordialmente. Cada uma destas etapas é tratada detalhadamente, com exercícios e relatos de sessões, conformando-se num excelente material para o treinamento dessas habilidades. As habilidades básicas (ouvir, perguntar, informar etc.) são, também, tratadas e assumem diferentes nuances em função dos objetivos estabelecidos em cada capítulo. Escutar o paciente, por exemplo, tem determinadas características quando o interesse é manter uma relação terapêutica de confiança ou quando se busca identificar e compreender os problemas de saúde do paciente. Da mesma forma, a habilidade de informar não é a mesma quando se quer partilhar

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A metáfora do rizoma, utilizada por Deleuze e Guatari para descrever cadeias não hierárquicas, contrapõe-se às estruturas arbóreas por não possuir um eixo central definido, conformando-se num sistema acêntrico, sem troncos ou canais preexistentes. 2


outros momentos, não informa, ou dá um desfecho precipitado à consulta, movido pela intenção de cristalizar a relação como assimétrica, demarcando quem tem o poder. E há mesmo situações em que o profissional não pergunta e não particulariza as queixas por contingências institucionais, que determinam o tempo da consulta e o número de atendimentos. As habilidades comunicativas são imprescindíveis para se estabelecer uma boa relação e, nesse sentido, a leitura do livro, os exercícios e, mesmo, a atitude reflexiva que os autores propõem, são de grande auxílio. Possivelmente, se as atividades forem realizadas em grupo, como ocorre em cursos de formação, enriquecerão as discussões, pois aumentam as chances da explicitação de divergências e reflexões críticas. Mas, se pretende-se uma mudança na assistência, com profissionais mais envolvidos com um atendimento humanizado, é preciso ir além das competências técnicas e programar atividades que contemplem a discussão das variáveis institucionais e subjetivas, temas que não fazem parte do escopo dessa publicação. Em resumo, o livro mostra extrema coerência com seu pressuposto básico, isto é, que as habilidades relacionais podem ser adquiridas. Já se foi o tempo em que a relação médicopaciente era considerada uma arte, fruto da vocação pessoal de alguns médicos que conseguiam criar um clima de envolvimento e intimidade, no momento do encontro. RuizMoral, fundamentado em varias evidências científicas, defende que a competência relacional, a criação de vínculos e a comunicação passam pela aquisição de habilidades interativas, que podem ser ensinadas. Nesse sentido, o livro é um guia prático e útil, com exercícios e propostas de grande valia para quem deseja ensinar ou, mesmo, se aprimorar nas habilidades comunicativas necessárias a uma boa consulta, especialmente os profissionais envolvidos na atenção primária.

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livros

decisões com o paciente e sua família, ou, ainda, quando se pretende ajudar o paciente e seus familiares a compreender o processo que vivem e a fazer escolhas. “Relación clínica” contempla, ainda, em sua última parte, a qualificação para ensinar a relação clínica, o desenvolvimento de pesquisas sobre a relação médicopaciente, e a avaliação da comunicação na relação clínica, com fins pedagógicos e de pesquisa. Deste modo, as bases da psicologia da aprendizagem, especialmente do adulto, são abordadas orientando-se por seu objeto: a relação clínica. Os princípios motivacionais de autores clássicos são aí tratados: Carl Rogers (aprendizagem significativa e ensino centrado no aluno), Maslow (o papel das motivações internas e externas) e Knowles (o papel da experiência prévia); bem como as metodologias de aprendizagem centradas no professor ou aluno. Um capítulo é dedicado aos fundamentos do método científico e às especificidades das pesquisas quantitativas e qualitativas, com o objetivo de apoiar o leitor a desenvolver projetos de pesquisa no campo da relação médico-paciente. A avaliação das atividades profissionais, acadêmicas e de pesquisa é tratada com destaque, com reconhecimento da importância da avaliação contínua, envolvendo diferentes sujeitos: estudantes, professores, monitores, pacientes (simulados ou reais) e os próprios métodos de avaliação e seus instrumentos. Um guia para avaliar a relação clínica – CICAA -, elaborado pelo organizador, é detalhadamente apresentado. Trata-se de instrumento baseado em outras ferramentas de avaliação, composto por diversas categorias observáveis, que permitem uma avaliação quantitativa mediante escala tipo Likert. Esta escala contempla, também, espaços para descrições qualitativas, com a finalidade de facilitar ao avaliador a apresentação de feedback descritivo. O livro ainda oferece um bom roteiro de estudo e apoio a alunos e professores, mediante um conjunto de referências bibliográficas e de filmes sobre o tema, devidamente comentados. Para os filmes, agrega sugestões de usos em sala de aula, com recomendações para orientar a discussão com alunos. Por fim, cabe tecer alguns comentários sobre a expressão relação clínica, tomada pelo autor como sinônimo de comunicação ou entrevista clínica. Nossa discordância a respeito faz-se por entendermos que, numa relação médicopaciente adequada, as habilidades comunicativas são necessárias, mas não suficientes. Há outros determinantes de ordem institucional, ou mesmo da inserção social e psicológica dos atores envolvidos, que também contextualizam e influem nos rumos da consulta. De nossa vivência com alunos e médicos transparece que, muitas vezes, o profissional sabe qual é a melhor forma de dirigir a consulta, mas não acolhe o paciente, e tenta se manter neutro com receio do seu próprio envolvimento ou das reações emocionais que possa provocar no paciente. Em



teses

A formação em obstetrícia: competência e cuidado na atenção ao parto Obstetric training: competence and care in birth assistance

Esta tese consiste em uma análise da formação em obstetrícia durante a graduação em Medicina, baseada em pesquisa etnográfica realizada em duas escolas conceituadas, localizadas na cidade de São Paulo. A proposta foi estudar o modo como se articulam a competência técnica e científica e o cuidado ou relação com a paciente no ensino teórico e prático da assistência ao parto. As técnicas utilizadas na coleta de dados incluíram observação participante, entrevistas semiestruturadas e, de modo complementar, a análise de livros-textos e protocolos assistenciais. O trabalho abrangeu uma caracterização das propostas curriculares e um exame da experiência dos alunos quanto ao ensino teórico e prático, incluindo sua supervisão nas diversas atividades assistenciais. A ênfase maior recai sobre o desenvolvimento de conhecimentos científicos na formação. Mesmo no internato, maior relevo é dado à aprendizagem da construção e encenação de narrativas clínicas, privilegiando-se a transmissão oral do conhecimento e a memória em relação ao registro escrito e à consulta ao prontuário das pacientes. Pautado em parte pelas chamadas concepções “clássicas”, que sustentam uma visão patológica da fisiologia do parto, o exercício da prática envolve condutas que têm sido questionadas com base nas evidências científicas ou até abandonadas em outros contextos. As decisões acerca de condutas ou tratamentos adotados não são compartilhadas com as mulheres atendidas que, freqüentemente, não são consultadas ou sequer informadas a respeito. Por vezes, juízos de valor também influenciam o julgamento clínico e a tomada de decisão médica. Há poucos parâmetros para se avaliarem as atitudes dos alunos em sua interação com as pacientes. Nos serviços em que há maior interação entre alunos e pacientes, a supervisão é menor. Existem

acordos informais, entre os assistentes, na divisão de plantões, que se contrapõe aos organogramas formais dos serviços obstétricos vinculados às Faculdades de Medicina pesquisadas. Esses acordos subordinam os objetivos institucionais da boa formação e assistência em obstetrícia aos interesses individuais e coletivos dos profissionais obstetras responsáveis pela supervisão do ensino. Componentes do currículo oculto, esses acordos servem de modelo para outros envolvendo residentes e/ou alunos. Ao longo da formação dos estudantes de Medicina, as interações entre os sujeitos em relação no exercício do ato médico contribuem de diversas maneiras para desqualificar a prática médica da obstetrícia como técnica moral-dependente. Sonia Nussenzweig Hotimsky Tese (Doutorado), 2007 Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo, SP. sonianhotimsky@uol.com.br

Texto completo: http://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/5/ 5137/tde-14112007-082030/

Palavras-chave: Obstetrícia. Educação. Aprendizagem. Parto obstétrico. Key-words: Obstetrics. Education. Learning. Delivery obstetric. Palabras clave : Obstetricia. Educación. Aprendizaje. Parto obstétrico.

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informes

VII Simpósio de Educação Médica de Botucatu: a interdisciplinaridade e a avaliação no curso de Medicina 7th Botucatu Medical Education Symposium: interdisciplinarity and evaluation on Medical course

Em agosto de 2007, aconteceu a sétima edição do Simpósio de Educação Médica de Botucatu, organizado pelo Centro Acadêmico Pirajá da Silva (CAPS), da Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp. Ganhando tradição nesta faculdade a cada ano, o evento contou com cerca de duzentos participantes, entre docentes e estudantes de graduação em Medicina, para discussão da temática da interdisciplinaridade no currículo médico e da avaliação do processo de aprendizagem – tanto na esfera cognitiva quanto normativa. O tema interdisciplinaridade surgiu da constatação da debilidade desse tema no currículo médico: propostas de integração disciplinar no curso têm falhado sistematicamente – tanto na área básica quanto na aplicação clínica durante o Internato. Além disso, não houve trabalhos inscritos na área durante o 5.º Congresso Paulista de Educação Médica, realizado em 2006 na Faculdade de Medicina da Unesp, o que pode apontar para uma fragilidade em outras escolas médicas neste campo da formação. O tema avaliação mereceu ser abordado no simpósio por sua relevância no cenário médico-acadêmico em 2007 – ano de participação da Medicina no Exame Nacional de Cursos, ENADE; terceira edição do exame do Conselho Regional de Medicina de São Paulo, CREMESP; e mudança nos processos seletivos para Residência Médica, com a inclusão de provas práticas. No primeiro dia, a discussão foi centrada na questão da interdisciplinaridade no ensino médico. A professora Sylvia Helena Souza da Silva Batista, do Centro de Desenvolvimento do Ensino Superior em Saúde da Unifesp, apresentou referenciais teóricos que apontam para a necessidade de implementar a interdisciplinaridade como objetivo da formação, bem como instrumento para as

transformações necessárias ao curso médico. Em seguida, as professoras Dora Maria Grassi-Kassisse e Maria Almerinda Vieira Fernandes Ribeiro, da Unicamp, apresentaram as modificações realizadas no curso médico da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, o qual volta-se para um ensino com base em módulos integradores. As apresentações provocaram as discussões da Mesa-Redonda moderada pela professora. Eliana Goldfarb Cyrino e pelo acadêmico Pedro Tadao Hamamoto Filho, ambos da FMB/ Unesp. Os temas foram bastante úteis para os presentes ao Simpósio, até porque a faculdade passa por um momento de discussão e repactuação de seu Projeto Político-Pedagógico. Assim, foi lembrada a importância dos cenários de ensino e prática como despertadores da necessidade de integração disciplinar, na medida em que a assistência à saúde cria a demanda de abordagem multiprofissional para o usuário do sistema. Também foi amplamente debatido o erro a que se incorre nas tentativas de integração disciplinar quando esta é reduzida a uma simples sincronização de conteúdos. Por fim, abordou-se a necessidade de integrar

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conteúdos das ciências ditas básicas com os de aplicação clínica, haja vista a importância de que o estudante compreenda a relevância e aplicabilidade dos temas básicos e os incorpore em sua prática clínica. No segundo dia, foram trabalhados os aspectos da avaliação do médico recém-formado ou em formação. O professor Luiz Ernesto de Almeida Troncon, da USP de Ribeirão Preto, descreveu como tem sido feita a aplicação de provas práticas nos processos seletivos para a Residência Médica. Ele destacou que o ganho principal obtido nessa aplicação não é a maior discriminação de aptos ao ingresso nos programas de Residência Médica mas, sim, a transformação que impõe aos alunos durante o Internato, impulsionando-os para maior interesse em atividades práticas e realização de procedimentos reduzindo, dessa forma, a importância outrora dada ao estudo essencialmente teórico. O professor Troncon foi sucedido pela professora Márcia Regina Ferreira Brito Dias, da Unicamp, consultora do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (ENADE/INEP/MEC). Ela apresentou o contexto em que se deu a modificação do sistema de avaliação de cursos no país, destacando dados do desempenho dos cursos de Medicina, em especial da FMB/Unesp, à luz das análises que o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP/ MEC) tem desenvolvido frente aos resultados obtidos. O professor Joélcio Francisco Abbade, da FMB/Unesp, apresentou, em seguida, o Teste Interinstitucional do Progresso – iniciativa da parceria entre escolas médicas de São Paulo, Paraná e Santa Catarina. O teste é aplicado, conjuntamente, a todos os alunos de graduação dessas escolas e destinado a alunos de primeiro a sexto ano. Dividido em seis áreas (Clínica Médica, Cirurgia, Saúde Pública, Ginecologia e Obstetrícia e Pediatria, além de Ética, incorporada em algumas

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questões), tem grande utilidade em apontar o acúmulo de conteúdos ao longo da graduação, diagnosticando a situação da escola em relação a outras sem, no entanto, fazer um ranking de desempenhos. Na última apresentação do dia, o professor. Reinaldo Ayer de Oliveira, da FMUSP, e conselheiro do Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), mostrou os resultados preliminares da Avaliação dos Egressos Recém-Formados do Estado de São Paulo, proposta empreendida pelo Cremesp que tem gerado polêmica entre as escolas médicas. Embora apresentada como instrumento de resposta à abertura indiscriminada de escolas médicas e servir como mais uma avaliação das escolas, a iniciativa é bastante recriminada pelos estudantes, na figura da DENEM (Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina), vista com parcimônia por algumas faculdades (a Congregação da FMB/Unesp já emitiu documento contrário ao exame) e refutada pela ABEM, Associação Brasileira de Educação Médica, que critica a competência do Conselho em cumprir os objetivos a que se propõe. Ao final, a Mesa-Redonda moderada pela professora Lenice do Rosário de Souza (FMB/Unesp) e pelos acadêmicos Priscila Beatriz de Souza Medeiros (FMB/Unesp) e Ciro Matsui Jr. (FMUSP) debateu as questões apontadas. O VII Simpósio de Educação Médica de Botucatu pôde cumprir seu objetivo de capacitação e sensibilização da comunidade acadêmica para temas clássicos do ensino médico – que se mantêm atuais e pertinentes, haja vista a constante busca das escolas médicas pelo aperfeiçoamento da formação profissional em saúde e pelo cumprimento das Diretrizes Curriculares Nacionais, no sentido de formar médicos atentos às necessidades sociais, capazes de promover assistência, prevenção e promoção à saúde. A presença discente no evento correspondeu às expectativas – foi grande, como nas últimas edições, apesar do caráter técnico de algumas discussões. Surpreendeu-nos uma grande participação docente, inclusive de professores de outras escolas. O simpósio tem apresentado uma característica de ganhos processuais à capacitação discente no âmbito da educação médica. Conquanto seja difícil vislumbrar o impacto imediato no comportamento dos alunos em sala de aula, temos a convicção de que este processo de capacitação tem contribuído para sedimentar opiniões, provocar questionamentos e induzir à reflexão, ao menos, dos membros do Centro Acadêmico – estes, em última instância, pelas discussões, pelo trabalho em equipe e contato formal com professores de outras instituições, fortalecem um acúmulo de vivências e aporte teórico necessários para disseminar posturas que caracterizam a participação estudantil frente aos desafios de avanço da escola médica.

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informes

Para que o processo de discussão em educação médica seja legítimo, é necessário que grande parte da comunidade acadêmica esteja participante e envolvida, tanto docentes quanto funcionários e alunos. Os alunos da Faculdade de Medicina de Botucatu sempre exerceram um papel de liderança nas discussões, na viabilidade da implementação das propostas e no acompanhamento do movimento de mudança. Sendo uma instituição de ensino tradicional, as resistências dentro do ambiente acadêmico sempre foram grandes e, em alguns momentos, coube aos alunos impulsionarem as discussões na área da formação médica. O VII Simpósio de Educação Médica foi, portanto, mais uma etapa do contínuo processo de amadurecimento das discussões de ensino na faculdade, em especial neste momento de reflexão sobre seu Projeto Político-Pedagógico. Pedro Tadao Hamamoto Filho1 Licério Miguel1 Ludmila Almeida Silva1 Ana Cristina Paschoal e Caldas1 Giovana Tuccille Comes1 Vinicius Cunha Venditti1 Thalita Azevedo Fracalossi1 Vanessa dos Santos Silva2

1 Alunos de graduação em Medicina. Faculdade de Medicina de Botucatu, Universidade Estadual Paulista (FMB/ Unesp). pthamamotof@hotmail.com 2 Médica. Departamento de Clínica Médica, FMB/Unesp.

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