V.19 n.54, jul./set. 2015

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Interface - Comunicação, Saúde, Educação é uma publicação interdisciplinar, trimestral, editada pela Unesp (Laboratório de Educação e Comunicação em Saúde, Departamento de Saúde Pública, Faculdade de Medicina de Botucatu e Instituto de Biociências de Botucatu), dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas. Dá-se ênfase à pesquisa qualitativa. Interface - Comunicação, Saúde, Educação is an interdisciplinary, quarterly publication of Unesp - São Paulo State University (Laboratory of Education and Communication in Health, Department of Public Health, Botucatu Medical School and Botucatu Biosciences Institute), focused on Education and Communication in the healthcare practices, Health Professional Education (Higher Education and Inservice Education) and the interface of Public Health with Philosophy and Human and Social Sciences. Qualitative research is emphasized. Interface - Comunicação, Saúde, Educação es una publicación interdisciplinar, trimestral, de Unesp – Universidad Estadual Paulista (Laboratorio de Educación y Comunicación en Salud, Departamento de Salud Pública de la Facultad de Ciencias Medicas, e Instituto de Biociencias, campus de Botucatu), destinada a la Educación y la Comunicación en las practicas de salud, la formación de los profesionales de salud (universitaria y continuada) y a la Salud Colectiva en su articulación con la Filosofía y las Ciencias Humanas y Sociales. Enfatiza la investigación cualitativa.

EDITORES/EDITORS/EDITORES Antonio Pithon Cyrino, Unesp Lilia Blima Schraiber, USP EDITORA SENIOR/SENIOR EDITOR/EDITORA SENIOR Miriam Celí Pimentel Porto Foresti, Unesp EDITORAS ASSISTENTES/ ASSISTENT EDITORS/ EDITORAS ASISTENTES Denise Martin Covielo, Unifesp Vera Lúcia Garcia, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORA EXECUTIVA/EXECUTIVE EDITOR/EDITORA EJECUTIVA Mônica Leopardi Bosco de Azevedo, Interface - Comunicação, Saúde, Educação EDITORES DE AREA/ÁREA EDITORS/EDITORES DE ÁREA Ana Flávia Pires Lucas D’Oliveira, USP Charles Dalcanale Tesser, UFSC Claudio Bertolli Filho, Unesp Eliana Goldfarb Cyrino, Unesp Elma Lourdes Campos Pavone Zoboli, USP Janine Miranda Cardoso, FioCruz Maria Antônia Ramos Azevedo, Unesp Maria Dionísia do Amaral Dias, Unesp Neusi Aparecida Navas Berbel, UEL Roseli Esquerdo Lopes, Ufscar Silvio Yasui, Unesp Sylvia Helena Souza da Silva Batista, Unifesp Victoria Maria Brant Ribeiro, UFRJ

PROJETO GRÁFICO/GRAPHIC DESIGN/PROYECTO GRÁFICO Projeto gráfico-textual/Graphic textual project/Proyecto gráfico-textual Adriana Ribeiro, Interface - Comunicação, Saúde, Educação Identidade visual/Visual identity/Identidad visual Érica Cezarini Cardoso, Desígnio Ecodesign Editoração Eletrônica/Journal design and layout/Editoración electrónica Adriana Ribeiro PRODUÇÃO EDITORIAL/EDITORIAL PRODUCTION/ PRODUCCIÓN EDITORIAL Assistente administrativo/Administrative assistent/Asistente administrativo Juliana Freitas Oliveira Normalização/Normalization/Normalización Enilze de Souza Nogueira Volpato Luciene Pizzani Rosemary Cristina da Silva Revisão de textos/Text revision/Revisión de textos Angela Castello Branco (Português/Portuguese/Potugués) David Elliff (Inglês/English/Inglés) María Carbajal (Espanhol/Spanish/Español) Web design IDETEC Manutenção do website/Website support/ Manutención del sitio Nieli de Lima

Editora de Resenhas/ Reviews Editor /Editora de Reseñas Francini Lube Guizardi, Fiocruz Editora de Criação/Creation Editor/Editora de Creación Elisabeth Maria Freire de Araújo Lima, USP Equipe de Criação/Creation staff/Equipo de Creación Eduardo Augusto Alves Almeida, USP Eliane Dias de Castro, USP Gisele Dozono Asanuma, USP Paula Carpinetti Aversa, USP Renata Monteiro Buelau, USP

Capa/Cover/Portada: Fragmento de montagem elaborada por Paula Aversa e Daniel Ribeiro, 2015


CONSELHO EDITORIAL CIENTÍFICO/SCIENTIFIC EDITORIAL BOARD/CONSEJO EDITORIAL CIENTÍFICO Adriana Kelly Santos, UFV Afonso Miguel Cavaco, Universidade de Lisboa, Portugal Alcindo Ferla, UFRGS Alain Ehrenberg, Université Paris Descartes, France Alejandra López Gómez, Universitad de la Republica Uruguaia, Uruguai Ana Lúcia Coelho Heckert, UFES Ana Teresa de Abreu Ramos-Cerqueira, Unesp André Martins Vilar de Carvalho, UFRJ Andrea Caprara, UECE António Nóvoa, Universidade de Lisboa, Portugal Carlos Eduardo Aguilera Campos, UFRJ Carmen Fontes de Souza Teixeira, UFBa Carolina Martinez-Salgado, Universidad Autónoma Metropolitana, México César Ernesto Abadia-Barrero, Universidad Nacional de Colombia, Colômbia Charles Briggs, UCSD, USA Cleoni Maria Barbosa Fernandes, PUCRS Cristina Maria Garcia de Lima Parada, Unesp Dagmar Elisabeth Estermann Meyer, UFRGS Diego Gracia, Universidad Complutense de Madrid, Espanha Eduardo L. Menéndez, CIESAS, México Elisabeth Meloni Vieira, USP Eunice Nakamura, Unifesp Flavia Helena Miranda de Araújo Freire, UnP Francisco Javier Uribe Rivera, Fiocruz George Dantas de Azevedo, UFRN Geórgia Sibele Nogueira da Silva, UFRN Graça Carapinheiro, ISCTE, Portugal Guilherme Souza Cavalcanti, UFPr Gustavo Nunes de Oliveira, UnB Hugo Mercer, Universidad de Buenos Aires, Argentina Ildeberto Muniz de Almeida, Unesp Inesita Soares de Araújo, Fiocruz Isabel Fernandes, Universidade de Lisboa, Portugal Ivana Cristina de Holanda Cunha Barreto, UFCE Jairnilson da Silva Paim, UFBa Jesús Arroyave, Universidade del Norte, Colômbia John Le Carreño, Universidade Adventista, Chile José Carlos Libâneo, UCG José Ivo dos Santos Pedrosa, UFPI José Miguel Rasia, UFPr José Ricardo de Carvalho Mesquita Ayres, USP José Roque Junges, Unisinos Karla Patrícia Cardoso Amorim, UFRN Laura Macruz Feuerwerker, USP Leandro Barbosa de Pinho, UFRGS Leonor Graciela Natansohn, UFBa Lígia Amparo da Silva Santos, UFBa Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Unifesp Lydia Feito Grande, Universidad Complutense de Madrid,

p

es

m Fa

Espanha Luciana Kind do Nascimento, PUCMG Luis Behares, Universidad de la Republica Uruguaia, Uruguai Luiz Fernando Dias Duarte, UFRJ Magda Dimenstein, UFRN Marcelo Dalla Vecchia, UF São João Del Rei Marcelo Eduardo Pfeiffer Castellanos, UFBa Márcia Thereza Couto Falcão, USP Marcos Antonio Pellegrini, Universidade Federal de Roraima Marcus Vinicius Machado de Almeida, UFRJ Margareth Aparecida Santini de Almeida, Unesp Margarida Maria da Silva Vieira, Universidade Católica Portuguesa, Portugal Maria Cecília de Souza Minayo, ENSP/Fiocruz Maria Cristina Davini, OPAS, Argentina Maria del Consuelo Chapela Mendoza, Universidad Autónoma Metropolitana, México Maria Elizabeth Barros de Barros, UFES Maria Inês Baptistella Nemes, USP Maria Isabel da Cunha, Unisinos Maria Ligia Rangel Santos, UFBa Maricela Perera Pérez, Universidad de la Habana, Cuba Marilene de Castilho Sá, ENSP, Fiocruz Maximiliano Loiola Ponte de Souza, Fiocruz Miguel Montagner, UnB Mónica Lourdes Franch Gutiérrez, UFPb Mónica Petracci, UBA, Argentina Nildo Alves Batista, Unifesp Paulo Henrique Martins, UFPE Paulo Roberto Gibaldi Vaz, UFRJ Regina Duarte Benevides de Barros, UFF Reni Aparecida Barsaglini, UFMT Ricardo Burg Ceccim, UFRGS Ricardo Rodrigues Teixeira, USP Richard Guy Parker, Columbia University, USA Robert M. Anderson, University of Michigan, USA Roberta Bivar Carneiro Campos, UFPE Roberto Castro Pérez, Universidad Nacional Autónoma de México, México Roberto Passos Nogueira, IPEA Roger Ruiz-Moral, Universidad Francisco de Vitoria, Espanha Rosamaria Giatti Carneiro, UnB Rosana Teresa Onocko Campos, Unicamp Roseni Pinheiro, UERJ Russel Parry Scott, UFPE Sandra Noemí Cucurullo de Caponi, UFSC Sérgio Resende Carvalho, Unicamp Simone Mainieri Paulon, UFRGS Soraya Fleischer, UnB Stela Nazareth Meneghel, UFRGS Túlio Batista Franco, UFF


e arte

Políticas Públicas

Clinica Ampliada

cuidado

medicamentos

processo saúde-doença

de apoio

drogas

Mais Médicos

morte

Comunidade Terapêutica

loucura

Saúde psicodrama competências cognitivas

educação médica tecnologia

educação

comunicação de riscos

promoção da saúde

redes

HIV apoio matricial

Vigilância da Saúde

Educação superior

saúde mental

formação em saúde

Educação em Saúde saúde do idoso

Integração docente assistencial

identidade

SUS COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2015; 19(54)

Vulnerabilidade

Saúde da Família

o Primária

subjetividade

governamentalidade

Arthur Bispo do Rosário, Cama Romeu e Julieta, construção/montagem escultórica

comunicação

Violência

Atenç ã

saúde e trabalho


ISSN 1807-5762

subj

promoção da saúde

Políticas Públicas

cuid ado

medicamentos

processo saúde-doença

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Vigilância da Saúde

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SUS COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

2015; 19(54)

Vulnerabilidade

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Violência

governamentalidade

Arthur Bispo do Rosário, Cama Romeu e Julieta, construção/montagem escultórica

comunicação

Atenç ã

saúde e trabalho


Interface - comunicação, saúde, educação/ Unesp, 2015; 19(54) Botucatu, SP: Unesp Trimestral ISSN 1807-5762 1. Comunicação e Educação 2. Educação em Saúde 3. Comunicação e Saúde 4. Ciências da Educação 5. Ciências Sociais e Saúde 6. Filosofia e Saúde I Unesp Filiada à A

B

E

C

Associação Brasileira de Editores Científicos


comunicação

saúde

2015; 19(54)

421

editorial artigos

431 Estrategias de articulación entre Atención Primaria y Vigilancia en Salud y la interfaz entre los sujetos Rosana Aparecida Garcia; Solange L’Abbate; Jorge Arakaki

443 Contextual determinants of decentralization of epidemiological surveillance for the family health team

Andreza Trevenzoli Rodrigues; Kênia Lara Silva; Roseni Rosangela de Sena

467 Sorodiscordância e prevenção do HIV: percepções de pessoas em relacionamentos estáveis e não estáveis

Amanda Pinheiro Said; Eliane Maria Fleury Seidl

Rafaela Liberali; Suely Grosseman

573 Portfólios crítico-reflexivos: uma proposta pedagógica centrada nas competências cognitivas e metacognitivas

Rosângela Minardi Mitre Cotta; Glauce Dias da Costa; Erica Toledo de Mendonça

589 A formação do profissional nutricionista na percepção do docente

Maria Mercês de Araújo Luz; Amanda Batista da Rocha Romero; Ana Karolinne da Silva Brito; Lívia Patrícia Rodrigues Batista; Lídya Tolstenko Nogueira; Marize Melo dos Santos; Maria do Carmo de Carvalho e Martins

espaço aberto 603 Sem começo e sem fim ... com as práticas corporais e a Clínica Ampliada Valéria Monteiro Mendes; Yara Maria de Carvalho

615 A vida em suspensão: ‘Fale com ela’ e os sentidos da morte Rosamaria Carneiro

479 O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre Yanna Cristina Moraes Lira Nascimento; Mercia Zeviani Brêda; Maria Cicera dos Santos de Albuquerque

debates 623 Mais Médicos: um programa brasileiro em uma perspectiva internacional

Felipe Proenço de Oliveira; Tazio Vanni; Hêider Aurélio Pinto; Jerzey Timoteo Ribeiro dos Santos; Alexandre Medeiros de Figueiredo; Sidclei Queiroga de Araújo; Mateus Falcão Martins Matos; Eliana Goldfarb Cyrino

491 Desafios do apoio matricial como prática educacional: a saúde mental na atenção básica

Fernanda Rebouças Maia Costa; Valéria Vernaschi Lima; Roseli Ferreira da Silva; Luciana Nogueira Fioroni

635 637 641 643

503 O uso de tecnologias de comunicação de riscos de desastres como prática preventiva em saúde

Mário Henrique da Mata Martins; Mary Jane Paris Spink

515 As Comunidades Terapêuticas religiosas na recuperação de dependentes de drogas: o caso de Manguinhos, RJ, Brasil

Fernanda Mendes Lages Ribeiro; Maria Cecília de Souza Minayo

527 Conduta do tratamento medicamentoso por cuidadores de idosos

Débora Santos Lula Barros; Dayde Lane Mendonça Silva; Silvana Nair Leite

537 Percepções de enfermeiros docentes e assistenciais sobre a parceria ensino-serviço em unidades básicas de saúde Selma Regina de Andrade; Astrid Eggert Boehs; Carlos Gabriel Eggert Boehs

549 Conhecimento e fonte de informações de pessoas surdas sobre saúde e doença

Yanik Carla Araújo de Oliveira; Suely Deysny de Matos Celino; Inácia Sátiro Xavier de França; Lorita Marlena Freitag Pagliuca; Gabriela Maria Cavalcanti Costa

ISSN 1807-5762

561 Use of Psychodrama in medicine in Brazil: a review of the literature

Silvone Santa Barbara da Silva Santos; Cristina Maria Meira de Melo; Clemence Dallaire; Michel Perreault; Edna Maria Araujo; Evanilda Souza de Santana Carvalho; Luciano Marques dos Santos

455 Programas de promoção da saúde na saúde suplementar em Belo Horizonte, MG, Brasil: concepções e práticas

educação

Mario Roberto Rovere Mário Scheffer Gastão Wagner de Sousa Campos Réplica

entrevista 647 Governamentalidade, ‘Sociedade Liberal Avançada’ e Saúde: diálogos com Nikolas Rose (Parte 1) Sérgio Resende Carvalho

659

livros

671

teses criação

675 Estratos

Paula Carpinetti Aversa


comunicação

saúde

2015; 19(54)

426

editorial articles

431 Strategies for linkage between primary care and health surveillance and the interface among subjects Rosana Aparecida Garcia; Solange L’Abbate; Jorge Arakaki

443 Contextual determinants of decentralization of epidemiological surveillance for the family health team

Andreza Trevenzoli Rodrigues; Kênia Lara Silva; Roseni Rosangela de Sena

467 Serodiscordance and prevention of HIV: perceptions of individuals in stable and non-stable relationships

Rafaela Liberali; Suely Grosseman

573 Critical and reflective portfolios: a pedagogical approach centered on cognitive and metacognitive skills

Rosângela Minardi Mitre Cotta; Glauce Dias da Costa; Erica Toledo de Mendonça

589 Professional nutritionists education from the perception of the teacher

Maria Mercês de Araújo Luz; Amanda Batista da Rocha Romero; Ana Karolinne da Silva Brito; Lívia Patrícia Rodrigues Batista; Lídya Tolstenko Nogueira; Marize Melo dos Santos; Maria do Carmo de Carvalho e Martins

open space 603 No beginning and no end ... with body practices and Expanded Clinics Valéria Monteiro Mendes; Yara Maria de Carvalho

615 Life on hold: ‘Talk to her’ and the meanings of death Rosamaria Carneiro

Amanda Pinheiro Said; Eliane Maria Fleury Seidl

479 Mental illness: perceptions regarding sufferers’ identities

Yanna Cristina Moraes Lira Nascimento; Mercia Zeviani Brêda; Maria Cicera dos Santos de Albuquerque

debates 623 “Mais Médicos”: a Brazilian program in an international perspective

Felipe Proenço de Oliveira; Tazio Vanni; Hêider Aurélio Pinto; Jerzey Timoteo Ribeiro dos Santos; Alexandre Medeiros de Figueiredo; Sidclei Queiroga de Araújo; Mateus Falcão Martins Matos; Eliana Goldfarb Cyrino

491 Challenges of matrix support as educational practice: mental health in primary healthcare

Fernanda Rebouças Maia Costa; Valéria Vernaschi Lima; Roseli Ferreira da Silva; Luciana Nogueira Fioroni

635 637 641 643

503 Use of disaster risk communication technologies as a preventive healthcare practice

Fernanda Mendes Lages Ribeiro; Maria Cecília de Souza Minayo

527 Management of drug therapy by elderly people’s caregivers

Débora Santos Lula Barros; Dayde Lane Mendonça Silva; Silvana Nair Leite

537 Perceptions of academic and practitioner nurses regarding the teaching-care partnership in primary healthcare units Selma Regina de Andrade; Astrid Eggert Boehs; Carlos Gabriel Eggert Boehs

549 Deaf people’s knowledge and information sources regarding health and disease Yanik Carla Araújo de Oliveira; Suely Deysny de Matos Celino; Inácia Sátiro Xavier de França; Lorita Marlena Freitag Pagliuca; Gabriela Maria Cavalcanti Costa

Mario Roberto Rovere Mário Scheffer Gastão Wagner de Sousa Campos Reply

interview

Mário Henrique da Mata Martins; Mary Jane Paris Spink

515 Religious therapeutic communities in recovering drug users: the case of Manguinhos, state of Rio de Janeiro, Brazil

ISSN 1807-5762

561 Use of Psychodrama in medicine in Brazil: a review of the literature

Silvone Santa Barbara da Silva Santos; Cristina Maria Meira de Melo; Clemence Dallaire; Michel Perreault; Edna Maria Araujo; Evanilda Souza de Santana Carvalho; Luciano Marques dos Santos

455 Health promotion programs within supplementary healthcare in Belo Horizonte, MG, Brazil: concepts and practices

educação

647 Governamentality, ‘Liberal Advanced Societies’ and Health: dialogues with Nikolas Rose (Part 1) Sérgio Resende Carvalho

659 671

books theses creation

675 Strata

Paula Carpinetti Aversa


DOI: 10.1590/1807-57622015.0426

Comecemos pela falta! E, logo, um alerta: não temos a ilusão de que preencheremos um lugar do vazio com o que pretendemos aqui discutir, e que tudo assumirá uma ordem inquebrantável e duradoura após a descoberta deste recheio. Aspiramos, apenas, indicar possibilidades que ainda, talvez, não tenham sido experimentadas. Só um desejo, mas com uma convicção aguda de que não há objeto pleno, mas que a falta favorece a condição de possibilidade do desejo. Para Lacan, a falta é central para o trabalho na psicanálise1, na sua tarefa de desvelar objetos de desejos. E, com isso, nos permitimos empreender uma ousadia e um trabalho conceitual necessários à associação da falta com um conceito de objeto inédito. Muita pretensão, pois objeto inédito não existe, apenas se anuncia como uma esperança. Ultimamente, o tema dos trotes e violências no meio acadêmico voltou com força a partir da quebra do silêncio de alguns estudantes da Medicina da USP, que trouxeram, a público, as mazelas da Faculdade. A sociedade gritou e até realizou uma CPI na Assembléia Legislativa de São Paulo (ALESP), para investigar as denúncias de violações de direitos humanos ocorridas em instituições de Ensino Superior do Estado de São Paulo, em trotes, festas e no cotidiano acadêmico. Os conselhos de classe bradaram sobre a quebra dos códigos de ética das profissões imputadas por estas violações; diretores de faculdades pouco se moveram para evitar que tais atos não acontecessem mais em seus territórios (ou que, pelo menos, não vazassem); a academia anunciou algumas iniciativas de formação de grupos de pesquisa; e a mídia impressa e digital foi inundada com reportagens e depoimentos de surpresas, protestos e descrenças de que aquilo acontecia mesmo, sobretudo em carreiras que têm a missão de cuidar de pessoas. Apesar de todo este movimento, levantamos a hipótese de que estas violações vão diminuir de intensidade em um primeiro momento, mas que recrudescerão ao longo do tempo, na medida em que vão se apagando as manchetes e reacendendo a força das tradições. Para Paulo Freire, somente a adoção de ações práticas é ativismo; valer-se apenas de teoria para interferir em problemas que precisam ser enfrentados, seria verbalismo. E, lembrando Freire, talvez não tenha sido produzida, ainda, uma práxis, o potente dispositivo que combine prática e teoria com eficácia criativa para modificar a realidade. Há que se buscar a raiz do problema e feri-la. Temos de nos desafiar a refletir sobre quais categorias de análise temos posto em pauta, e se elas radicalizam suficientemente a questão dos trotes e das violências no ambiente universitário. Tomemos, como um ponto de partida, o debate publicado por este periódico em agosto de 1999, com uma série de artigos tratando do trote universitário(a). Um fascículo cheio de significado, pois, seis meses antes desta publicação, havia morrido Edison Tsung Chi Hsueh, aluno de medicina de 22 anos, no trote da Faculdade de Medicina da USP (FMUSP). São dez textos de: três médicos-professores universitários, dois estudantes de medicina, uma pedagoga, uma psicóloga, uma antropóloga, e dois filósofos que debatem o texto de referência de uma professora e de um acadêmico da FMUSP2. Este tomou como analisador a morte do estudante citado, qualificando-a como “um lamentável acidente”. No nosso entender esta é uma conclusão apressada e que não contribui em nada para radicalizar a análise do ocorrido, muito pelo contrário, nos afasta do objeto em si, lançando o nosso olhar para o acaso. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

editorial

Para enfrentar os trotes e violências nas universidades: o que falta?

(a) Ver: Interface (Botucatu). 1999; 3(5):111-62.

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O imperativo da abordagem interdisciplinar ao tema aparece como a primeira mensagem desta coletânea. Do debate transparece, sobretudo entre os autores “médicos”3-5, o antagonismo da percepção do que é o trote, guindados pelo “necessário” respeito às tradições e as hierarquias, há aqueles que “não odeiam” o trote, em contraposição aos que o “abominam”, e há, inclusive, os “bixos espertos”. Erradicar versus controlar, inclusive pelo uso de um termo adaptado de consentimento livre e esclarecido, é outra marca deste antagonismo. Alguns autores atribuem o descontrole e a violência a determinantes sociais, políticos e culturais externos6,7. Poucos debatedores voltaram seu olhar para dentro da instituição de ensino: (1) quando há menção a “vetores sugestivos” nos mecanismos dos trotes e das violências como indicativos da formação de “confrarias iniciáticas”, com seus próprios “códigos tribais”8; ou quando se analisa (2) a precariedade da formação acadêmica no sentido de lidar com o sofrimento humano, e como resultado da “dor de lidar com a dor alheia” quando nos “nos desumanizamos para suportar o extremo do humano”9. A partir do que fora constatado na CPI sobre violações aos direitos humanos nas universidades paulistas(b), comprovou-se uma face oculta10 das universidades, cujas raízes demonstram-se profundas nos cursos de Medicina. Com recolhimento de denúncias das principais escolas médicas de São Paulo, notou-se a recorrência de um paradigma: uma cultura onde a violência e a tortura ganham espaço como forma de demonstração de “afeto” e “amor institucional” em competições esportivas, e como instrumento de formação de fraternidades para promover vantagens profissionais. Esta realidade, segundo as denúncias na CPI, dialoga com outra ainda mais perturbadora, que é o machismo perverso destas instituições, cujos números não apenas denunciam a menor representatividade feminina entre as lideranças da universidade e uma desigualdade de gênero profissional, mas um número assustador de casos de violência sexual no cotidiano acadêmico. Além disso, mediante a banalidade com que a violência se dá na cultura estudantil, todas as vítimas insistiam no mesmo aspecto em seus depoimentos: de que eram culpabilizadas por sua própria violência. A repressão e o medo, portanto, eram impostos à vitima, não aos agressores(c). Mesmo após a CPI, episódios continuaram a preencher a mídia, com casos de apologia ao estupro, ao racismo e ao trote em festas universitárias. Isso denunciava a resistência cultural mesmo diante da pressão política da ALESP, e jurídica, do Ministério Público, cuja defesa dos perpetradores, nas redes sociais, era de que tais comportamentos seriam inócuos e só assustavam porque foram colocados “fora de contexto”, como se determinadas situações relativizassem, para eles, o significado das ações. O fator comum mais evidente entre todos os casos de violência é terem permanecido em segredo por todos esses anos. Nesse sentido, entende-se por que a principal defesa sempre foi de que cada episódio seria um “caso isolado”, e de que as denúncias, quando críticas, seriam “generalizantes”: para que a parte não denuncie o todo e, com isso, preserve-se a imagem pública das universidades e dos profissionais formados nessas instituições. Os depoimentos na CPI, em contrapartida, unanimemente chamavam suas iniciativas de “rompimento do ciclo de silêncio”, ressaltando, sempre, o risco e as ameaças que os depoentes sofriam institucionalmente por estarem expondo a realidade mais interna da universidade. Essa exposição, sempre seguida de volumoso conjunto probatório, mostrou que os casos não tinham nada de isolados e que as reações às denúncias nas universidades eram, inclusive, padronizadas. Após a exposição, os depoentes eram rigorosamente ostracizados, 422

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Ver: Relatório Final da CPI de violações de direitos humanos das universidades paulistas, disponível em http:// www.al.sp.gov.br/ repositorio/arquivoWeb/ com/com3092.pdf [acesso 2015 Maio 19].

(b)

(c) Ver: http:// educacao.uol.com.br/ noticias/2014/08/19/ aluna-da-usp-fuiconvencida-de-quenao-devia-denunciar-oestupro-que-sofri.htm e http://g1.globo.com/sp/ ribeirao-preto-franca/ noticia/2015/02/vitimade-estupro-na-usp-dizsofrer-preconceito-aposdenunciar-caso.html [acesso 2015 Maio 19].


ameaçados profissionalmente, questionados e culpabilizados por seu próprio sofrimento. A palavra consentimento ecoava como uma forma comum e brutal de silenciamento tanto nas vítimas de trote quanto de violência sexual. Decerto que os verdadeiros atores dessa realidade não são a totalidade dos estudantes, mas, sim, a maioria de suas lideranças e um grupo importante de professores que produzem seu cerco de influência. A relação entre violência e vantagens profissionais já fora muito estudada com relação ao trote11, mas nunca com a especificidade no curso de medicina e com a cultura de estupro. A arqueologia das fraternidades, sua identificação e os mecanismos que tornam vantajosa a existência dessa cultura de violência ainda permanecem ocultos. O estudo do currículo oculto nas escolas médicas tem despertado o interesse dos pesquisadores. Oriol12 chamou a influência do currículo oculto como “processo de aculturação profissional”, e Castro13 destacou nove premissas desta influência. Há estudos que mostram o papel do currículo oculto na formação de médicos com baixa empatia14 e tolerantes aos comportamentos antiéticos15. Aqui talvez se possa apontar que o currículo oculto coloca o médico fora dos ideais da medicina e o coloca como um sujeito atravessado pelos aspectos da subjetividade social. O que, entretanto, ainda é uma grande interrogação para combater as opressões no ambiente universitário, seria saber como reduzir os mecanismos de silenciamento. Quais os instrumentos de ameaça dentro das universidades? Qual o caminho padrão de opressão que uma vítima segue após expor seu caso e buscar justiça? Qual o papel do desamparo institucional na formação dos grupos corporativos? Finalmente, conhecer o currículo oculto das escolas médicas com profundidade, e a relação desse currículo com o perfil de nossos profissionais, é importante para se produzirem propostas políticas de transformação universitária. Qual a relação entre as corporações profissionais e as fraternidades universitárias? Qual o papel do currículo oculto das universidades para a produção das corporações? Qual a relação entre violência nas universidades, seu isolamento perante a sociedade e seu evidente elitismo? O tempo em que este assunto é considerado de segunda categoria e em que estas constatações são tratadas como mera “generalização” deve acabar. A opinião de quem problematiza deve ser finalmente valorizada. A universidade é local que, por excelência, deveria preservar sua pluralidade e a possibilidade de questionamentos e de denúncias sobre sua própria realidade. Verifica-se, entretanto, que as universidades, atualmente, possuem sim, em sua hegemonia, a qualidade corporativa de combater os questionamentos e valorizar o comportamento padronizado. Isso é uma classificação, não uma generalização. A partir dessa identificação, como a fisiologia oculta e estruturante funciona tornase o passo necessário e urgente de elucidação para que a universidade deixe de ser um “deveria” e passe, realmente, a ser local de transformação, liberdade, ética e compromisso social. Nosso “objeto inédito”, que queremos anunciar como esperança de que possamos “ferir a raiz”, seria o de colocar, na agenda de pesquisa desta temática, um olhar hermenêutico para dentro das instituições de ensino; que provoque “tensões, estranhamentos e resistências”16; a partir do estímulo à produção de narrativas17 de docentes e discentes que desafiem o reino do medo imposto por “confrarias” de poder disfarçadas sobre o manto da tradição; que quebrem o ciclo do silêncio revelando interfaces entre trotes/violências com o corporativismo profissional e suas lógicas de hierarquias e produção de redes de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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poder; alimentadas que são ao longo do curso e no mercado de trabalho por um currículo oculto como um “código tribal”. Começamos e terminamos com a falta. O que ainda falta? Algo na falta insiste em faltar, na medida em que este algo que falta é que sustenta o próprio processo de continuar perguntando “o que ainda falta?”. A história se repete porque supomos poder construir o contorno para a falta, preenchê-la a partir de uma ideia ou objeto que se encaixe e obture este furo estrutural. Mas,...continua faltando. No caso da violência, o que falta é a sublimação, que seria uma forma de satisfação por intermédio de meios mais “nobres ou civilizados”, orientados pela lei paterna que impõe a linguagem como mediação principal do que se precipita do real. O que há na falta? Um objeto que não existe é o que há na falta. O paradoxo indica que, o que a falta alimenta é a perspectiva da satisfação plena e, por consequência, seu próprio fim. Marco Akerman Departamento de Prática em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. Felipe Scalisa Discente, curso de Medicina, Faculdade de Medicina, USP. São Paulo, SP, Brasil. Jacques Akerman Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC). Belo Horizonte, MG, Brasil.

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Referências 1. Darriba V. A falta conceituada por Lacan: da coisa ao objeto a. Ágora. 2005; 8(1):63-76. 2. Warth MPTN, Lisboa, LF. Tradição, trote e violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):111-8. 3. Segre M. Trote violento contra calouros universitários. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):121-2. 4. Caldas Junior AL. A privatização da violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):123-6. 5. Giarola LC. Trote na universidade. Interface (Botucatu). 1999; 3( 5):127-8. 6. Martins STF. Sobre trote e violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):129-30. 7. Rangel LH. Da infância ao amadurecimento: uma reflexão sobre rituais de iniciação. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):147-52. 8. Carvalho JCP. Anotações sobre aspectos temáticos e contextuais da violência: vetores sugestivos. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):137-46. 9. Ribeiro RJ. O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):153-60. 10. Scalisa F. A face oculta da medicina. Folha de São Paulo. 13 Nov 2014. Sessão Opinião. 11. Almeida A, Queda O. Universidade, preconceito e trote. São Paulo: Hucitec; 2006. 12. Oriol A. Bolonia y la aculturación profesional. Educ Med. 2011; 14:71-2. 13. Castro FA. Processo de Bolonia (V): el currículo oculto. Educ Med. 2012; 15 (1):13-22. 14. Neumann N, Edelhäuser F, Tauschel D, Fischer MR, Wirtz M, Woopen C, et al. Empathy decline and its reasons: a systematic review of studies with medical students and residents. Acad Med. 2011; 86(8):996-1009. 15. Vidal EIO, Silva VS, Santos MF, Jacinto AF, Villas Boas PJF, Fikushima FB. Why medical schools are tolerant of unethical behavior. Ann Fam Med. 2015; 13(2):176-80. 16. Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de Saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62. 17. Akerman M, Conchão S, Boaretto R, organizadores. Bulindo com a Universidade: um estudo sobre o trote na Medicina. Porto Alegre: Rede Unida; 2013. Disponível em: file:///C:/Users/SUZANA/Downloads/Bulindo%20com%20a%20Universidade%20(6). pdf

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0426

editorial

To face up to hazing and violence in universities: what more is needed? We begin with shortcomings, and we must state outright that we are under no illusion that we can fill this hole with what we intend to discuss here, or that everything will settle into long-lasting unbreakable order after this filling has been set forth. We merely aspire to indicate possibilities that perhaps have not been tried out yet. This is just a desire, but with a strong conviction that there is no full objective, but that the shortcoming favors the condition of making desires possible. According to Lacan, shortcomings are central to psychoanalysis1, in its task of unveiling desires. Thus, this allows us to be bold and undertake the conceptual studies that are necessary in order to correlate the shortcoming with a concept that is a novel objective. This is very ambitious, because novel objectives do not exist, but rather, are announced as hopes. Recently, the topic of hazing and violence within the academic setting reemerged strongly, after some medical students at the University of São Paulo (USP) broke their silence to make the medical school’s malaise public. There was an outcry from society and a parliamentary commission of inquiry (CPI) was even set up in the state of São Paulo’s legislative assembly to investigate these complaints of human rights violations that had occurred in this state’s higher education institutions, through hazing, parties and day-to-day academic life. The professional councils cried out about the breakage of the codes of ethics of the professions implicated in this violence. Heads of academic departments had made little movement towards avoiding that such acts might occur again within their territories (or at least towards avoiding leaks). Academia announced some initiatives towards formation of research groups, and the printed and digital media was inundated with reports and testimonies expressing surprise, protests and disbelief that the events had really taken place, especially in relation to careers in which the mission is to care for people. Despite all this movement, we raise the hypothesis that although this violence is going to diminish in intensity initially, it will flare up again over time, as the headlines fade away and the force of tradition lights up again. According to Paulo Freire, activism only occurs through adopting practical actions. If interventions in problems that need to be faced consist only of theory, this would be verbalism. Moreover, Freire reminds us that possibly no praxis, i.e. no powerful device combining practice and theory with creative efficacy to modify the reality, has yet been produced. The root of the problem has to be sought out and crushed. We have to take up the challenge of reflecting about which analysis categories have been put into play, and whether these have dealt with the issue of hazing and violence within the university environment in a sufficiently radical manner. As our starting point, we will take the debate published by this periodical in August 1999, in which there was a series of articles dealing with hazing in universities(a). This was an edition full of meaning, because six months before its publication, the medical student Edison Tsung Chi Hsueh, aged 22 years, had died during hazing at the medical school of USP (FMUSP). In total, there are ten texts, written by three physicians who were university professors, two medical students, one educationalist, one psychologist, one anthropologist and two philosophers who debated the reference text of a teacher and an academic at FMUSP2. This last text made an analysis on the death of this student and qualified it as “a lamentable accident”. In our view, this was a hurried 426

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(a) See: Interface (Botucatu). 1999; 3(5):111-62.


See: Final Report of the CPI on violations of human rights at universities in the state of São Paulo. [accessed 2015 Maio 19]. Available from: http://www. al.sp.gov.br/repositorio/ arquivoWeb/com/ com3092.pdf (b)

(c) See: http:// educacao.uol.com.br/ noticias/2014/08/19/ aluna-da-usp-fuiconvencida-de-quenao-devia-denunciar-oestupro-que-sofri.htm e http://g1.globo.com/sp/ ribeirao-preto-franca/ noticia/2015/02/vitimade-estupro-na-usp-dizsofrer-preconceito-aposdenunciar-caso.html and http://g1.globo.com/sp/ ribeirao-preto-franca/ noticia/2015/02/vitimade-estupro-na-usp-dizsofrer-preconceito-aposdenunciar-caso.html [accessed 2015 May 19].

conclusion that does not contribute towards making a more radical analysis of what occurred. On the contrary, it draws us away from this objective and directs our gaze towards chance. The imperative of taking an interdisciplinary approach towards this subject emerges as the first message from this collection of articles. Particularly among the authors who were physicians3-5, it transpires from the debate that there is antagonism regarding the perception of what hazing is, raised by the “necessary” respect for traditions and hierarchies. There are those who “do not hate” hazing, set against those who “abominate” it, alongside the “sly critters”. Eradication versus control, including through using a statement adapted from free and informed consent, also marks out this antagonism. Some authors have attributed this lack of control and violence to external social, political and cultural determinants6,7. Only a few of those debating this issue have turned their gaze towards the interior of the teaching institution: (1) when there was mention of “suggestive vectors” in the mechanisms for hazing and violence, as indicative of the formation of “initiation fraternities” with their own “tribal codes”8; or (2) when the precariousness of academic training is analyzed, with regard to dealing with human suffering and as a result from “the pain of dealing with extraneous pain when “we are dehumanized in order to tolerate the extreme of the human condition”9. From what was found by the CPI regarding violations of human rights in universities in the state of São Paulo(b), it was proven that the universities had a hidden face10, which had deep roots in the medical courses. Through the complaints gathered together from the main medical schools of São Paulo, it was noted that there was a recurrent paradigm: a culture in which violence and torture gained space as a way of demonstrating “affection” and “love” for the institution in sports competitions and as an instrument for forming fraternities for promoting professional advantages. This reality, according to the complaints to the CPI, forms a dialogue with another, even more disturbing reality: the perverse machismo of these institutions. The numbers involved not only speak out regarding the lower female representation among university leaderships and professional gender inequality, but also relate to a frighteningly large number of cases of sexual violence within day-to-day academic life. Furthermore, in the light of the commonplace manner in which violence occurs within student culture, all the victims emphasized this aspect in their testimonies, i.e. that they were held to be at fault for the violence perpetrated against them. Thus, repression and fear were imposed on the victim, and not on the aggressors(c). Even after the CPI, episodes continued to fill the media, with cases of excuses for rape, racism and hazing at university parties. This demonstrates the cultural resistance even when faced with the political pressure from the state legislative assembly and the legal pressure from the state attorney’s office, in which the perpetrators’ defense on social networks was that such behavior was harmless and only frightened people because it was placed “out of context”, as if certain situations relativized the meaning of their actions, in the perpetrators’ view. The most evident common factor among all the cases of violence is that they had remained secret for all these years. In this regard, it can be understood why the main defense was always that each episode was an “isolated case” and that the complaints, when critical, were “generalizations”. In this manner, the part would not denounce the whole and thus the public image of the universities and of the professionals trained at these institutions would be preserved. On the other hand, the witnesses at the CPI unanimously described their initiatives as “breaking the cycle of silence”. Their testimonies always emphasized

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the risk and the threats that they might suffer institutionally through exposing the innermost realities of the university. These expositions, always accompanied by a voluminous set of proof, showed that these cases were in no way isolated cases, and that the reactions to the complaints within the universities were even standardized. After the exposition, these witnesses were rigorously ostracized, threatened professionally, questioned and held to blame for their own suffering. The word consent echoed through this as a common and brutal means of silencing the victims of both hazing and sexual violence. It is certain that the true players in this reality do not comprise the entire student body but, rather, the majority of their leaders and an important group of professors who produce their circle of influence. The relationship between violence and professional advantage has already been much studied in relation to hazing11, but never specifically in relation to medical courses and to rape culture. The archeology of the fraternities, their identification and the mechanisms that make it advantageous for this culture of violence to exist still remain hidden. Interest in studying the hidden curriculum of medical schools has been aroused among researchers. Oriol12 called the influence of the hidden culture a “process of professional acculturation” and Castro13 highlighted nine premises of this influence. These have been studies showing the role of the hidden curriculum on physicians’ training, such that they have low empathy14 and are tolerant towards anti-ethical behavior15. In this regard, it can perhaps be noted that the hidden curriculum places physicians outside of the ideals of medicine and positions them as subjects traversed by aspects of social subjectivity. Nonetheless, knowing how to reduce the mechanisms that lead to silencing remains a major question with regard to combating oppression within the university environment. What are the instruments that give rise to threats within universities? What is the standard path towards oppression that victims follow, after exposing their case and seeking justice? What role does institutional abandonment have in the formation of corporate groups? Finally, in-depth knowledge of the hidden curriculum of medical schools and of the relationship between this curriculum and the profile of our professionals is important in relation to producing political proposals for university transformation. What is the relationship between professional corporations and university fraternities? What is the role of universities’ hidden curriculum in relation to the production of the corporations? What is the relationship between violence in universities, their isolation from society and their evident elitism? The era in which this subject is considered to be secondary and in which these observations are treated as mere “generalizations” needs to end. The opinion of those who pose the problem finally needs to be properly valued. Universities are places that eminently need to preserve their plurality and the possibility of questioning and complaining in relation to their own realities. However, it can be seen that today, within universities’ hegemony, they do indeed possess the corporate qualities of being combative towards questioning and placing value on standardized behavior. This is classification, rather than generalization. Starting from identifying this, and in view of how the hidden and structuring physiology functions, elucidation becomes urgently necessary so that universities cease to be places of “you must” and really become places of transformation, freedom, ethics and social commitment. Our “novel objective”, which we want to announce with the hope that we might be able to “crush the roots”, would consist of putting a hermeneutic perspective onto the research agenda relating to this topic, so as to look 428

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inside teaching institutions. We would wish to provoke “tensions, surprise and resistance”16, through stimulating production of narratives17 by teachers and students that challenge the reign of fear that is imposed by “fraternities” of power disguised under the cloak of tradition. We would wish to break the cycle of silence and thus reveal interfaces between hazing/violence and professional corporatism and its logic of hierarchies and production of power networks, which are fed over the duration of the course and in the job market by a hidden curriculum acting as a “tribal code”. We began and will end with shortcomings. What is still needed? Something that is missing is bound to be absent, in that this thing that is missing is what sustains the very process of continuing to ask “what is still needed?”. The story is repeated because we suppose that we are able to construct the outlines of what is missing and fill the gap starting from an idea or objective that will fit into and fill this structural hole. Nonetheless, something continues to be absent. In the case of violence, what is missing is sublimation, which would be a way of obtaining satisfaction through means that are more “noble or civilized”, guided by paternal law that imposes language as the main mediation of what is precipitated from reality. What is missing? A objective that does not exist is what is missing. The paradox indicates that what shortcomings feed is the perspective of full satisfaction and consequently their own end. Marco Akerman Departamento de Prática em Saúde Pública, Faculdade de Saúde Pública, Universidade de São Paulo (USP). São Paulo, SP, Brasil. Felipe Scalisa Discente, curso de Medicina, Faculdade de Medicina, USP. São Paulo, SP, Brasil. Jacques Akerman Fundação Mineira de Educação e Cultura (FUMEC). Belo Horizonte, MG, Brasil.

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References 1. Darriba V. A falta conceituada por Lacan: da coisa ao objeto a. Ágora. 2005; 8(1):63-76. 2. Warth MPTN, Lisboa, LF. Tradição, trote e violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):111-8. 3. Segre M. Trote violento contra calouros universitários. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):121-2. 4. Caldas Junior AL. A privatização da violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):123-6. 5. Giarola LC. Trote na universidade. Interface (Botucatu). 1999; 3( 5):127-8. 6. Martins STF. Sobre trote e violência. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):129-30. 7. Rangel LH. Da infância ao amadurecimento: uma reflexão sobre rituais de iniciação. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):147-52. 8. Carvalho JCP. Anotações sobre aspectos temáticos e contextuais da violência: vetores sugestivos. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):137-46. 9. Ribeiro RJ. O trote como sintoma: a dor de lidar com a dor alheia. Interface (Botucatu). 1999; 3(5):153-60. 10. Scalisa F. A face oculta da medicina. Folha de São Paulo. 13 Nov 2014. Sessão Opinião. 11. Almeida A, Queda O. Universidade, preconceito e trote. São Paulo: Hucitec; 2006. 12. Oriol A. Bolonia y la aculturación profesional. Educ Med. 2011; 14:71-2. 13. Castro FA. Processo de Bolonia (V): el currículo oculto. Educ Med. 2012; 15 (1):13-22. 14. Neumann N, Edelhäuser F, Tauschel D, Fischer MR, Wirtz M, Woopen C, et al. Empathy decline and its reasons: a systematic review of studies with medical students and residents. Acad Med. 2011; 86(8):996-1009. 15. Vidal EIO, Silva VS, Santos MF, Jacinto AF, Villas Boas PJF, Fukushima FB. Why medical schools are tolerant of unethical behavior. Ann Fam Med. 2015;13(2):176-80. 16. Ayres JRCM. Uma concepção hermenêutica de Saúde. Physis. 2007; 17(1):43-62. 17. Akerman M, Conchão S, Boaretto R, organizadores. Bulindo com a Universidade: um estudo sobre o trote na Medicina. Porto Alegre: Rede Unida; 2013. Disponível em: file:///C:/Users/SUZANA/Downloads/Bulindo%20com%20a%20Universidade%20(6).pdf

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0185

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Estrategias de articulación entre Atención Primaria y Vigilancia en Salud y la interfaz entre los sujetos Rosana Aparecida Garcia(a) Solange L’Abbate(b) Jorge Arakaki(c)

Garcia RA, L’Abbate S, Arakaki J. Strategies for linkage between primary care and health surveillance and the interface among subjects. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):431-42.

This paper is a qualitative study that aimed to describe the linkages between health surveillance and primary healthcare and the devices used to put these processes into effect. Data gathering was conducted through participant observation of the surveillance system, at the national level and in the municipality of Moreno, province of Buenos Aires. The data were recorded in a field diary. The results were analyzed from the perspective of institutional analysis, based on concepts developed by Lourau such as analyzer, institution and involvement. The results showed that the feelings and subjective views that circulated among the subjects involved in the process facilitated creation of devices for linking between areas and jurisdictions. The importance of this study is that the external view helped to reflect on the work processes.

Keywords: Public health. Primary health care. Health care.

Este artículo es un estudio cualitativo cuyo objetivo fue describir las articulaciones entre la Vigilancia en Salud y la Atención Primaria de la Salud (APS) y los dispositivos utilizados para que tales procesos se realicen. La colecta de datos se realizó por medio de la observación participante del sistema de Vigilancia en el ámbito nacional y del municipio de Moreno (provincia de Buenos Aires). Los datos se registraron en un diario de campo y los resultados se analizaron a partir de algunos conceptos desarrollados por Lourau, en el Análisis Institucional, como analizador, institución e implicación. Los resultados mostraron que la circulación de afectos y de subjetividades entre los sujetos involucrados en el proceso facilita la creación de dispositivos de articulación entre áreas y jurisdicciones. La importancia de este estudio consiste en una mirada externa que contribuya a reflejar los procesos de trabajo.

Palabras clave: Salud colectiva. Atención Primaria en Salud. Atención en salud.

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(a,b) Departamento de Saúde Coletiva, FCM, Unicamp. R. Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária “Zeferino Vaz”. Campinas, SP, Brasil. 13083-887. rosanaapgarcia@ gmail.com; slabbate@ lexxa.com.br (c) Instituto de Salud Colectiva, Universidad Nacional de Lanús. Buenos Aires. Argentina. arakaki_jorge@ yahoo.com.ar

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Introducción Este artículo presenta los resultados del trabajo desarrollado en el municipio de Moreno de la Provincia de Buenos Aires, Argentina, a partir de un intercambio entre el Departamento de Salud Colectiva (DSC) de la Universidad Estatal de Campinas – San Pablo/Brazil y la Universidad Nacional de Lanús (UNLa) de Buenos Aires a través del Programa de Centros Asociados de Posgrado Brasil/ Argentina (CAPG-BA). El objetivo de la investigación fue analizar y comprender cómo se realizan las acciones de Vigilancia en Salud en el municipio de Moreno, cómo se articulan con los efectores de la Atención Primaria de la Salud, y qué dispositivos se han implementado para que estos procesos se hagan efectivos. Los resultados fueron analizados en la perspectiva teórica del Análisis Institucional a partir de los conceptos analizador, de la tríada instituido/instituyente/institucionalización e implicación, desarrollados por Lourau1-3. El Análisis Institucional es un campo de conocimiento, formado a partir del psicoanálisis, las ciencias sociales y la filosofía. Según L’Abbate4 (2003), apareció en Brasil en los años 1970 a partir de algunos departamentos y grupos de investigación en las universidades brasileñas y de otras organizaciones. Los resultados y discusiones que presentamos implican un trabajo de campo con análisis de los datos obtenidos a través de las observaciones participantes del escenario y de los procesos de la investigación registrados en un diario de campo realizado por una de las autoras. El procesamiento y análisis de los datos se realizó, inicialmente con la reconstrucción del escenario cotidiano del Ministerio de Salud y de la Administración Nacional de Medicamentos, Alimentos y Tecnologías Médicas (ANMAT), que contribuyeron a la mejor comprensión del sistema de salud, desde la mirada de un investigador extranjero. También se realizó una breve revisión de la literatura del sistema de salud de la Argentina que ha sido objeto de innumerables trabajos científicos, razón por la cual aquí solo se hará una somera descripción con los datos más imprescindibles para comprender mejor los resultados de esta investigación, sin profundizar demasiado.

El Sistema de Salud de Argentina y Vigilancia en Salud La Argentina es una República Federal compuesta por una Capital Federal, la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y 23 provincias, cada una con sus propias constituciones y con autonomía para las acciones de política sanitaria. El sector salud está estructurado en tres sub-sistemas: el público, el de seguridad social y el privado. El subsistema público presenta una estructura jurisdiccional administrativa dividida en los ámbitos: municipal, provincial y nacional. Cada jurisdicción coordina sus políticas de salud a través de los respectivos Ministerios y Secretarías. El Ministerio de Salud de la Nación, desde 1990, se encarga de la normalización, regulación, planificación y evaluación de las acciones de salud que se llevan a cabo en el territorio nacional. La Provincia de Buenos Aires se divide en 12 regiones sanitarias, las cuales tienen como misión gestionar, supervisar, monitorear y evaluar, en forma descentralizada, las políticas, planes y programas de salud dispuestos por el Nivel Central del Ministerio o planificados conjuntamente con los Municipios, hospitales provinciales y nacionales de su área geográfica. La complejidad del sistema le imprime al área de la salud, por un lado autonomía pero por otro, una reconocida fragmentación entre los diferentes niveles jurisdiccionales, y según Belmartino5, algunos programas se articulan y otras veces se superponen, con doble regulación y fiscalización. El Consejo Federal de Salud (COFESA), creado en 1981 con el objeto de contribuir a la integración inter-jurisdiccional y a implementar las políticas sanitarias propuestas por la Nación y las provincias, no ha logrado, a pesar de lo que dice el discurso oficial, cumplir con su propósito, en diálogos informales con actores de diferentes niveles jurisdiccionales, se ha observado que existe la percepción de que este Consejo funcionaría solo como una ‘ronda de amigos’. Belmartino5 afirma, en el mismo sentido, 432

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que este organismo no ha alcanzado a cumplir con las expectativas del rol de coordinación asignado, tornándose confusas sus funciones reales. El tema elegido plantea, entre otros, la relevancia de los cambios ocurridos en el contexto histórico, social y económico mundial de las últimas décadas. En este contexto, en que, por un lado se reconoce la necesidad de la protección de la salud de las personas y por otro, se abandonan las políticas de protección establecidas por los Estados benefactores, proceso cuyas características han sido objeto de discusión en diferentes países de la región y del mundo6-8. Los Estados municipales, provinciales y nacionales no pueden ser ajenos a la producción y transmisión de datos, información y conocimiento de salud, ni a la articulación y el monitoreo de los resultados de las políticas9,10. Con este trabajo esperamos contribuir con elementos prácticos e interpretaciones teórico conceptuales al análisis de la forma en que se integran los servicios de la red de monitoreo.

Metodología Por las características de este estudio, optamos por una conjugación de la experiencia del trabajo empírico con el análisis teórico-conceptual, lo que permite la articulación entre la teoría y la práctica. La observación participante fue utilizada como recurso metodológico para la producción de un diario de campo y la revisión bibliográfica nos permitió armar la discusión entre lo empírico y lo teórico. Los conceptos del Análisis Institucional fueron utilizados para el análisis de los materiales provenientes del campo. Es necesario aclarar que este trabajo reúne los datos provenientes de tres meses de trabajo de campo, con frecuencia semanal. Trabajar con temas relacionados a las instituciones requiere un abordaje específico, que permita describir, analizar y comprender los procesos que facilitan o dificultan la articulación entre los sujetos que forman parte de ella. Por lo tanto, concordamos con la idea de Baremblitt11 de dibujar una “[…] carta de navegación […]”, que reúna no solo el mapa de la historia objetiva, sino también la subjetiva, y la política, entre otras; que sólo es buena para un viaje, ya que está subordinada a las singularidades del campo y los procesos, lo que hace único a quien la realiza (p. 59). Y, conforme a la postura de García12, también nos proponemos romper con los procedimientos establecidos para la producción de conocimiento tradicional, recurriendo a una “[…] audacia temible […]” y sin el temor de ser aprendices de cartógrafos (p. 107). Es así que el camino teórico y metodológico se fueron produciendo a lo largo del trabajo de campo, donde entró y se cruzó con y en la investigación, modificando tanto las estrategias iniciales de la recolección de datos como la postura de la investigadora. La idea que rescatamos de la cartografía, no tiene que ver con una técnica o un abordaje metodológico en sí, sino con la descripción de los procesos de trabajo y del actuar cotidiano de cada sujeto, con el intercambio afectivo y de las subjetividades existentes. Factores para los que el registro tradicional, se encuentra limitado. En términos, sobre todo, de expresar lo experimentado en esos encuentros. Este estudio fue realizado en el municipio de Moreno, a 37 km de la Capital Federal, que forma parte de la región sanitaria VII, y que tiene una población de 462.242 habitantes y está dividido en seis zonas sanitarias, según Censo 2010. En cuanto a los autores del trabajo, es importante tener en cuenta que pertenecen a diferentes lugares de inserción: uno docente de la Universidad Nacional de Lanús, una docente de la Universidad Estatal de Campinas, Brasil, y una doctoranda, de la misma Universidad, que realizó la recolección de los datos en el trabajo de campo. Esta circunstancia no debe interpretarse como indicativa de una posición neutral en relación al objeto de investigación, ya que todos los autores estuvieron implicados en las diferentes etapas del proceso. El debate teórico se enmarca en algunos presupuestos del análisis institucional que, según refiere L’Abbate13, comenzó a partir de los años 40 y 50 en algunos movimientos que se produjeron en la sociedad francesa. Muchos autores han estudiado el concepto de implicación, y creemos que COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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es muy importante señalar que la implicación como “[…] no es una cuestión de voluntad, de decisión consciente. Ella incluye un análisis de los sistemas de los lugares, el señalamiento del lugar que ocupa, que pretende ocupar, y del que se le ha designado con los riesgos que comprende”13 (p. 231). Lourau14 afirma que la implicación “[…] es un nudo de relaciones […]” (p. 190) y Paulon15 refiere la necesidad de incluir en el proceso de investigación, la subjetividad del investigador como una categoría analítica. En este sentido, también presupone la no neutralidad del investigador y, por otra parte, compartimos la afirmación de Lourau de que el análisis no es más para analizar al otro que a sí mismo, todo el tiempo. Esta posición supone otro concepto de la institución, como el reformulado por Lourau a partir de Castoriadis, que reconoce tres momentos de descomposición: instituido/ instituyente/ institucionalización. Lo instituido refiere a las cosas establecidas, las normas, los conocimientos y la práctica (universalidad), lo instituyente que negaría el tiempo anterior (particularidad) y la institucionalización que sería el momento de síntesis entre los dos primeros. El objetivo de analizar lo no dicho y las alianzas institucionales, nos llevó a utilizar el conceptoherramienta analizador. Lourau1 sostiene, basado en el concepto elaborado por Félix Guattari, que el analizador es “[…] lo que revela la estructura de la institución, se burla de ella, y la fuerza a hablar […]” (p. 284). La implicación es, en este contexto, el objeto del análisis de las relaciones que tenemos con la institución y, sobre todo, de pertenencia con nuestra institución. Según Lourau2, cada institución tiene una “[…] cara oculta […]“ que los analizadores ayudan a revelar permitiendo analizar lo que no es dicho en las instituciones (p. 68). La investigadora de campo tuvo contacto con las personas que trabajaban en el campo de la Vigilancia Epidemiológica y otras las áreas que estaban directamente relacionadas con la Vigilancia o en funciones articuladoras del sistema (Cuadro 1).

Cuadro 1. Los entrevistados y la formación profesional y cargo Formación

Cargo

Médico

Dirección de Prevención y Control de Enfermedades Transmisibles

Médico

Dirección de Epidemiologia y Evaluación Sanitaria

Médico

Coordinación General de Atención Primaria en Salud.

Médico

Dirección de Salud Mental.

Geógrafo

Referencia de la Sala de Situación de Salud

Enfermera

Enfermera Administrativa de la Vigilancia Epidemiológica

Enfermera

Coordinación del Vacunatorio de Moreno

Enfermera

Enfermera de Epidemiología

La investigadora fue acompañada al lugar donde funcionan la Sub-Secretaría de Salud de Moreno, Dirección de Epidemiología y Evaluación Sanitaria, la Dirección de Prevención y Control de Enfermedades Transmisibles, la Dirección General de Programas, la Coordinación General de Atención Primaria y la Dirección de Salud Mental, y comenzó la observación participante. Fueran registrados en un diario de campo de la investigadora, sus experiencias personales y sus reflexiones acerca los momentos de extrañeza, la falta de conocimiento previo del contexto cultural y político, los afectos movilizados y el extremo dinamismo del trabajo. Pezzato16 quien utiliza esta estrategia metodológica en su tesis de doctorado refiere que “[…] el diario es una excelente herramienta para el análisis de la vida institucional […]” y, por lo tanto, de las implicaciones de los sujetos (p. 91-2) y refuerza la perspectiva de Hess que sostiene que esta técnica consiste en la descripción de actos organizados en torno de la vida de una institución. Para finalizar el proceso de recolección de datos, se programó una restitución, concepto desarrollado por Lourau14 como una actividad intrínseca de la investigación y […] concepto social-analítico […] 434

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implica que se debe, y puede, hablar de algunas cosas que, en general, se dejan a la sombra [...] estas cosas serían silenciadas comúnmente (p. 51). La reunión de restitución se realizó con la participación de todos los actores involucrados y de otros interesados, y se utilizó la técnica de oficina. Como una posibilidad de análisis de las implicaciones de los sujetos, después de la presentación de los resultados se realizó un debate acerca de los temas: conocimiento del territorio de los centros de salud, la salud como un derecho, la articulación en el trabajo en el municipio de Moreno, los conflictos en la mirada integradora jurisdiccional y la información de la salud y su utilización para la acción. Según Lourau17, es un dispositivo que permite que la investigación avance más allá de los límites de su redacción final, que trasciende su transformación en una mercancía cultural útil sólo para el investigador o para la academia, facilitando el proceso de análisis de la implicación de los participantes y es un momento de disputas de poder, lógicas corporativas, gobernabilidad sobre los problemas críticos poco revelados “[…] la devolutiva socio analítica como un concepto, se supone que debe ser, y puede, hablar de algunas cosas que, en general, se dejan en la sombra. Estas son las cosas habitualmente silenciadas […]”17 (p. 51). Este momento de restitución fue reconocido por los participantes como un momento de (re) visitar su trabajo diario y valorado por los trabajadores y gestores, como importante dispositivo de gestión. La rutina del trabajo diario y el acostumbramiento que produce, los escasos espacios de reflexión acerca de la circulación de subjetividades relacionadas al quehacer cotidiano, fueron presentados como un analizador en el momento de la restitución. Este acostumbrarse a lo cotidiano no permite que la institución se revele mostrando su cara oculta. Por supuesto que las estrategias de producción no permitían restringir un método “a priori” sino que requerían un movimiento “ad hoc” para este propósito, lo que indica construcción de un puente entre los frentes de trabajo y estar sensible a los analizadores encontrados durante la investigación y no sentirse amenazado por el nuevo mundo que se presentaba. Con la identificación de los analizadores, nos proponemos construir una cartografía que nos ayude a analizar los movimientos del trabajo vivo en su dinámica, y que contribuya a superar el desafío de construir una mirada colectiva sobre la realidad, a partir de las percepciones de su poder instituyente. Como dicen Merhy y Franco18 “[…] provocar que usted mire los mapas como herramientas para estudiar y buscar ‘oír’ el ruido que hacen, incluyendo las molestias que causan […]” (p. 2).

Resultados y discusiones ¿Qué es Vigilancia en Salud? ¿Es posible una articulación con la red de Atención Primaria de Salud? Muchos programas de la promoción y la protección de la salud y la prevención de enfermedades, son desarrollados en los niveles jurisdiccionales, lo que despertó el interés de los investigadores en discutir cuáles son las posibles articulaciones dirigidos a la temática de vigilancia en salud, desde una mirada municipal. Acá no habría condiciones para un debate más ampliado en la perspectiva descrita pero hay un desafío de discutir sobre la posible articulación con la red de Atención Primaria de Salud. Históricamente el concepto de vigilancia estuvo relacionado con las enfermedades transmisibles y el saneamiento de los puertos y ciudades. Actualmente existe consenso sobre la necesidad de ampliar el campo a otros problemas sanitarios. En algunos países, Brasil entre ellos, se trabaja con un concepto de Vigilancia en Salud, que plantea el desafío de la articulación, interna y externa, entre la Vigilancia Sanitaria, la Epidemiológica, la de la Salud del Trabajador y la del Medio Ambiente. Según Costa19, a pesar de que hay evidencias de que desde la década de 1960 tenía acciones de control de puertos, aeropuertos y fronteras, solo a partir de los años 1970 la ‘vigilancia’ se institucionalizaría con la creación de la Secretaría Nacional de Vigilancia Sanitaria y de la Secretaria de Vigilancia Epidemiológica dentro del Ministerio de la Salud de Brasil. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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En la Argentina, la Vigilancia se refiere a una actitud de alerta responsable sobre el estado de salud, y se constituye como una de las principales herramientas que trabaja con la interpretación, recopilación, análisis, y difusión de datos y utiliza la epidemiología para establecer la ocurrencia, distribución y factores condicionantes del proceso salud-enfermedad. La ampliación del campo a vigilar, del individuo en particular a las poblaciones en general, fue instalando el término Vigilancia de la Salud que implica la inclusión de vigilancia de las enfermedades no transmisibles, de la vigilancia ambiental, de la calidad de los servicios relacionados con la salud (educación, agua, saneamiento, alimentos) y otros problemas sanitarios. La vigilancia institucionalizada tiene un antecedente en la Ley 15.465 de “Notificaciones Médicas Obligatorias” promulgada en 1960, a partir del concepto de vigilancia epidemiológica, orientada a obtener información oportuna de los diferentes niveles jurisdiccionales, proporcionando la información necesaria para tomar decisiones. La elaboración de la información es realizada por el Sistema Nacional de Vigilancia Epidemiológica (SINAVE), que recibe las notificaciones de los servicios públicos y privados de las diferentes jurisdicciones. El esquema siguiente (Figura 1) representa el flujo instituido de la información en Vigilancia Epidemiológica.

ESTABLECIMIENTOS ASISTENCIALES

Comunicación inmediata

Boletines, Circulares, Alertas, Documentos provinciales

Comunicación semanal

VIGILANCIA EPIDEMIOLOGICA NACIONAL

Comunicación inmediata

Comunicación semanal

Otra periodicidad

Laboratorio de referencia provincial

Laboratorio de referencia nacional

VIGILANCIA EPIDEMIOLÓGICA NACIONAL Boletines, Circulares, Alertas, Documentos nacionales

Comunicación inmediata Organismos administrativos y científicos nacionales e internacionales

Figura 1. Flujo de la Información Fuente: Manual de normas y procedimientos de Vigilancia y Control de Enfermedades de Notificación Obligatoria de la Nación20 (p. 12).

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El Sistema Nacional de Vigilancia en Salud (SNVS), creado en 2001, es una herramienta tecnológica de comunicación con una red de unidades ubicadas en distintos niveles jurisdiccionales y con un sitio oficial para hacer las notificaciones, con una concepción modular, lo que facilita la articulación entre las distintas estrategias de vigilancia. La importancia de mencionar estos sistemas se debe a que nos brinda la posibilidad de analizar cómo se relacionan los sujetos que los alimentan y cómo estos flujos se producen en los procesos de trabajo del municipio. ¿Qué informaciones son producidas y qué significan para la gestión? ¿Cómo se organizan los procesos de trabajo jurisdiccionales para que los datos se conviertan en información útil para la acción y cuáles son los avances, desafíos y dificultades en estos procesos? Un primer analizador que identificamos al observar el flujo de la información de Vigilancia Epidemiológica entre los diferentes niveles jurisdiccionales (Figura 1), es que no figura la intervención de los municipios y los datos pasarían, según el esquema del Ministerio, desde los establecimientos asistenciales a las provincias de forma directa. Interpretamos que la omisión de la jurisdicción municipal, constituye un analizador que obliga a repensar las relaciones entre los sujetos involucrados en ellas. En el sistema de salud de Moreno, la investigadora observó que los trabajadores y gestores, pertenecientes a diversas disciplinas profesionales, aplicaban sus saberes tecnológicos específicos más allá de sus núcleos de formación, desafiando las dificultades del trabajo en equipo, y no había la preocupación por limitarse a las funciones de los organigramas tradicionales. Fue observado que había la articulación entre los profesionales, con comunicación horizontal, y asumiendo el compromiso del cuidado en salud. Los profesionales reconocen que el trabajo en equipo es un desafío, toda vez que el médico mantiene gran parte del poder instituido y el control de los procesos de trabajo en la salud. Según los trabajadores y gestores municipales, las corporaciones profesionales, las competencias y el ejercicio profesional deberían ser repensadas, ya que no permiten que el enfermero realice muchas actividades por no estar legalmente dentro de sus atribuciones. Para las enfermeras, la capacidad de realizar una observación minuciosa y precisa es cada vez más necesaria para su práctica. Ella forma parte de su propio patrimonio científico y técnico y no representa sólo la función de describir los hechos fielmente para contribuir a la decisión del médico. Campos21 denomina núcleo a la demarcación de la identidad de un área de saber profesional y campo a un área de límites imprecisos hacia donde las disciplinas y profesiones se extienden. De esta forma, creemos que el campo está representado por la intersección entre las áreas, donde se crean nuevos procesos y formas de circular saberes facilitando el enfrentamiento de los problemas. De la misma forma con el compartir los saberes y la iniciativa personal para una integración, hay cuestiones sobreentendidas, no expresadas, que necesitaban ser provocadas durante la restitución, para poder analizar los conflictos existentes y los dispositivos para superarlos.

Conocimiento del territorio de los centros de salud: la salud como un derecho Como parte del trabajo de campo, la investigadora fue invitada a participar de una acción de supervisión de vacunación, lo que permitió conocer cuatro centros de salud y sus zonas sanitarias. Llamó la atención, encontrar en todos los centros unas placas que reproducían las palabras: “La salud es tu derecho. Defendámoslo entre todos” (grafo de la placa). No todos los países reconocen constitucionalmente este derecho y lo aseguran. En la acción observada en territorio, podríamos asociar este derecho con algunas situaciones, con una racionalidad que parecía asegurar uno de los derechos de la población a través de una adecuada gestión de los recursos. Un ejemplo fue la distribución de vacunas, controlado por la Supervisión encargada de velar por la correcta utilización de los recursos públicos, con recuento de stock y la distribución en base a la cobertura del mes anterior. Pero también llamó nuestra atención que una persona de la población se acercara a la supervisora de la vacunación para protestar por la falta de una vacuna responsabilizando la representante del Estado y obteniendo la orientación necesaria para dirigirse al área correspondiente, para solicitar más COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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información y protestar si la situación no se resolviera a satisfacción. Nuestro entendimiento es que, en esta área en particular, de acuerdo al comportamiento observado, el llamado a defender el derecho a la salud estaba asegurado. Siguiendo el curso del trabajo de campo, la investigadora fue informada por los profesionales de enfermería y por el conductor del vehículo sobre las condiciones socio económicas de las regiones sanitarias con tal conocimiento que mostraba con claridad cómo la construcción de un espíritu colectivo transciende las fronteras de las categorías profesionales. Esta información no fue encontrada por la investigadora en los textos de su revisión bibliográfica.

Articulación en el trabajo en el municipio de Moreno Para facilitar el diálogo y la comunicación entre las Direcciones y los Centros de Salud, el municipio de Moreno aplicó la estrategia de establecer zonas sanitarias referenciadas por sus Centros de Salud, con sus respectivos directores, un coordinador general y una referencia de característica multidisciplinar y transversal con otras áreas , como por ejemplo la Dirección de Epidemiología y Evaluación Sanitaria, facilitando las acciones lo más tempranamente posible y una evaluación del proceso de salud en cada servicio. A pesar de que está asumido que el núcleo de cada profesional es compartido en forma transversal, y que las diferentes implicaciones de los sujetos no se mostraron como dificultadoras de estos procesos, sin embargo, llamó nuestra atención que los afectos y subjetividades, según los sujetos no eran explorados ni analizados. El acostumbramiento al proceso de trabajo diario, decían, muchas veces no permite un momento de reflexión sobre la red de afectos producida. El trabajo transversal de las áreas - Epidemiología, Atención Primaria de la Salud y Vigilancia fue evidenciado a través de las situaciones de observación del cotidiano laboral. Muchas veces la investigadora observó ejemplos de alguna necesidad urgente, y las respuestas no se definían desde un núcleo disciplinar o un sector específico, sino desde un campo de conocimiento compartido por todos los profesionales intervinientes. Las herramientas para esta integración forman parte de lo que Merhy, Feuerwerker y Ceccim22 llaman “[…] maletín tecnológico […]” conformado por las tecnologías blandas, el espacio de relaciones entre sujetos; las tecnologías blanda-duras, los saberes estructurados y las tecnologías duras, los instrumentos y equipamientos (p. 151). La disposición de los trabajadores para una colaboración transversal, demuestra que hay una circulación de estas tecnologías en la perspectiva de un ‘bucle’, el trabajo se potencia y los sujetos se empoderan. Algunas acciones demostraban la integración y la articulación en la Vigilancia Epidemiológica y otras áreas y sectores, como es el caso de la búsqueda activa de vacunación retrasada, que podría ser nada más que un instrumento normativo, instituido por un sector institucional aislado para el cual las normas y reglas pueden y deben ser aplicadas. Sin embargo, pudo observarse una acción compartida de los sectores correspondientes - Dirección de Epidemiología y Evaluación Sanitaria, Dirección de Prevención y Control de Enfermedades Transmisibles, Dirección General de Programas y la Coordinación General de Atención Primaria. El Programa Nacional de Inmunización ha instituido algunos instrumentos y planillas para el área y hay una rutina de vigilancia de eventos supuestamente atribuidos a la vacunación o inmunización. A su vez, la provincia también tiene instrumentos propios para los efectos que considera convenientes, que pueden o no ser coincidentes con los de la Nación. En el municipio de Moreno hay instrumentos propios para la generación o la utilización de los datos, creados en un movimiento autónomo, instituyente que contribuye a brindar nuevos significados y sentidos para los servicios de salud.

La ‘mirada integradora’ jurisdiccional: un momento de conflicto Las clásicas dicotomías entre planificar y hacer, entre pensar y ejecutar y entre la prevención y promoción y la asistencia nos parece que complementan la explicación del escenario presentado. La

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superación de las fragmentaciones institucionales es un desafío complejo y requiere también superar estas dicotomías. Durante el debate en el momento de restitución pudimos percibir también otro analizador: existe un discurso instituido desde el nivel nacional, que afirma “[…] la Nación y las Provincias formamos un solo equipo […] y que hay una “[…] mirada integradora […]”23 (p. 6-7) y al inquirir sobre él, la impresión fue que aquel discurso flaqueaba y no se sostenía en la realidad. Analizadores como gestos, silencios y sonrisas mostraban contradicciones entre las jurisdicciones nacionales, provinciales y municipales, que no habían sido reveladas. A partir de este discurso instituido nacional, la investigadora fomentó debates, y después de muchas entrelíneas, algunas personas manifestaron el reconocimiento de una desarticulación jurisdiccional, veladas en los espacios de gestión. Reconocieron también que había programas nacionales que se superponen con los proyectos de la provincia y el municipio. Muchas intervenciones nacionales que no articulan con la provincia y el municipio fueron percibidas, lo que lleva a una ardua tarea por delante, la de producir una información útil, que respete las necesidades de los servicios locales de salud. Si bien hay una afirmación oficial de esta integración, hay en contrapartida, procesos de trabajo en nivel provincial y municipal, que no apuntan en esta dirección, y que la práctica cotidiana contradice. La autonomía, con su organización política y administrativa en niveles jurisdiccionales, debería ser repensada y dirigida hacia nuevos estudios empíricos y prácticos, para facilitar el cuestionamiento de los poderes instituidos, y para poder dar respuesta a las inequidades sociales, a partir de los análisis del lugar y de las posiciones ocupadas por cada sujeto en las políticas, en el nivel macro y el micro. Otro momento que llamó la atención en la investigación fue la expresión utilizada por un trabajador, refiriéndose a una sensación de que la mirada nacional podría ser representada como una persona en una “torre de un castillo”, mirando a lo lejos, sin conocer el territorio ni las diversidades regionales. Con esta afirmación podemos ver la necesidad de un análisis de las implicaciones de estas instituciones y sus sujetos, de las cuales Lourau3 decía que eran las responsables de hacer aparecer “[…] de un solo golpe, a la institución invisible […]”. Pero el autor advirtió también acerca de la importancia de ser cuidadoso y de no caer en la trampa de una “[…] persecución revanchista […]”, en “[…] denuncias impotentizantes […]”, o en “[…] alianzas espurias […]” (p. 52).

La información de la salud y su utilización para la acción El concepto y las formas de la vigilancia en salud coherentes con el desarrollo histórico de la salud pública en la lucha contra las enfermedades adoptaron prácticas, verticales y autoritarias, que hoy se encuentran con la aparición de corrientes de reorganización de los procesos de trabajo y de las herramientas utilizadas, lo que lleva a enfrentamientos dentro de la complejidad tanto de los servicios de salud como de la sociedad como un todo. Otro momento observado por la investigadora en el campo fueron las reuniones periódicas entre las diversas áreas, para la construcción de la llamada de ‘sala de situación’. La sala de situación es una de las estrategias difundidas internacionalmente por la Organización Panamericana de Salud (OPAS), con el objetivo de contribuir a planificar, definir políticas de la salud, evaluar las acciones, realizar vigilancia de la salud pública, dirigir la respuesta de los servicios de salud en situaciones de emergencia y divulgar información sobre salud en la comunidad. La sala de situación, dentro de las regiones sanitarias, puede articular en forma dinámica y permanente el diagnóstico de las problemáticas de salud de la población, generando respuestas adecuadas para las necesidades locales. Además, pueden contribuir a un proceso de producción de información permanentemente actualizado, con devolución rápida a los servicios de salud, y transformar los datos en información para la acción, teniendo en cuenta la particularidad de los diferentes territorios24. Este dispositivo instituido no se limita a un espacio virtual de procesamiento de datos para producir gráficos, tablas o mapas: el equipo transformó esta tecnología en trabajo vivo, siendo de acceso a

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un equipo multiprofesional y a favor del interés de cada servicio y zona sanitaria y con la potencia de transcendencia a los núcleos de conocimiento (movimientos instituyentes). Según Merhy, Feuerwerker y Ceccim22, hay una diferencia entre actor-autor: “[…] el actor permanece ‘actuado’ pero que aporta algo a la obra […] ya el autor asume su propia invención, se torna productor de algo […]” (p. 154). Este autor, en este mapa analítico, continúa sus cuestionamientos, ahora relacionados a la información que retorna de forma tardía, perdiendo la oportunidad y el sentido que podría tener para quienes ejecutan las acciones. La dicotomía entre ejecutar y planificar fue señalada, mencionándose como ejemplo el de los datos de la mortalidad general. En el momento de restitución los trabajadores y gestores discutirán que la información llegaba después de un año, aproximadamente, lo que no tiene sentido si se espera una respuesta rápida del sistema. En el espacio del trabajo vivo, el equipo creó una planilla donde todos los casos de óbito son rescatados de forma temprana, permitiendo que las informaciones lleguen con mayor velocidad a los servicios de salud, sin necesidad de esperar los datos de la provincia. Al mismo tiempo en que la información en salud constituye algo que permite planificar y gestionar en el territorio, no podríamos dejar de estar atentos a las ausencias de datos. Durante la reunión para la restitución uno de los sujetos abordó que si no transformamos los datos en algo que tenga valor y utilidad para los servicios de salud, estaremos cometiendo el riesgo de trabajar para alimentar un “cementerio de datos”. Ante la sorpresa de la investigadora, expresada por esta denominación, es importante agregar que el trabajador se mostró conmovido al reflexionar durante el debate propuesto en la restitución sobre el esfuerzo vano que implica generar un dato que no va a tener valor de uso. Durante los debates acerca de los flujos de la Vigilancia (Figura 1), surgió una pregunta: “¿cuál sería el tiempo de retorno eficaz para las provincias y municipios, para que la información fuera oportuna para la acción? y ¿habría respeto para las informaciones que los datos traen? Finalizando las discusiones, no podría dejar de hablar sobre la circulación de afectos entre los trabajadores de la salud del municipio de Moreno. Todos, sin excepción, señalaron el encanto de trabajar con la gente, con la posición que ocupan, el orgullo por lo que producen, el empeño y la responsabilidad por disminuir los riesgos en salud, el placer en el hacer y trabajar cotidiano. El flujo de afectos y subjetividades se resiste a ser registrado, solo se siente. Se siente con el corazón, se vive con la conmoción.

Consideraciones finales La construcción de una “carta de navegación” no es una tarea fácil y nos expone a los temores de no ser “metodológicamente correctos”, a las inseguridades de las desviaciones y a las turbulencias del terreno. Con todas esas prevenciones, nos entregamos a la investigación, dispuestos a andar el campo y a ser cambiados por él. La posibilidad de observar cómo los discursos nacionales instituidos se confrontaban en el espacio municipal en un contexto de cierto temor y reacio a hablar sobre esto, hace pensar cómo utilizar y profundizar a partir de este analizador la discusión sobre cómo construir otros procesos de gestión, con confianza y efectividad. Hay problemas de fragmentación reconocidos por los responsables del gobierno y una defensa discursiva de supuestas articulaciones de los sistemas de información con las prácticas de los servicios. La Nación, la Provincia y los Municipios se presentan como tres niveles separados, muchas veces aislados, que responden de diferentes formas al mismo problema. La división del municipio estudiado en zonas sanitarias y los procesos de trabajo que se desarrollan constituyen, a nuestro criterio, espacios estratégicos con potencialidad para responder con acciones efectivas y oportunas a los imprevistos que nos plantean las diferentes situaciones sanitarias. Aptas también para la discusión de nuevos procesos de trabajo y para abordar nuevos desafíos en las relaciones de poder. Persisten muchos desafíos para nuevas construcciones: las corporaciones profesionales se comportan todavía como defensoras de leyes que muchas veces no permiten que las tecnologías 440

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blandas se apliquen. Los trabajadores y gestores dijeron que en el área de Vigilancia hay una gran demanda y que los enfermeros son un apoyo importante del sistema y que en las relaciones tradicionales, reproducidas en muchas instituciones, el enfermero es solo un ayudante del médico.

Agradecimientos Al Dr Adrian Gayoso, la Dra Cristina Cipolla y al Dr Joaquin Narbeburu que permitieron la inserción de la investigadora en el campo y facilitaron las discusiones. A los enfermeros Roberto Gabriel Pawlowicz y Luciana Franco del Hospital General de Agudos de Buenos Aires. Al Dr. Raúl Forlenza, a la Coordinadora de Epidemiología del Ministerio de Salud de la Ciudad Autónoma de Buenos Aires y a Teresa Velich, responsable del Departamento de Vigilancia Alimentaria del Instituto Nacional de Alimentos (INAL) por el diálogo sobre el sistema de salud de la Argentina. Al Convenio de Cooperación Educativa entre Brasil y Argentina del Programa Binacional de Centros Asociados de Posgrados Brasil/Argentina. Colaboradores Rosana Aparecida Garcia responsabilizou-se por todas as etapas do trabalho. Solange L’ Abbate responsabilizou-se pela revisão teórico-metodológica. Jorge Arakaki responsabilizou-se pela supervisão da coleta de dados e discussão dos resultados em campo. Referências 1. Lourau R. A Análise Institucional. 2a ed. Petrópolis: Vozes; 1995. 2. Lourau R. O instituinte contra o instituído. In: Altoé S, organizadora. René Lourau: analista institucional em tempo integral. São Paulo: Hucitec; 2004. p. 47-65. 3. Lourau R. René Lourau na UERJ. Análise institucional e práticas de pesquisa. Mnemosine. 2007; 3(2):77-92. 4. L’Abbate S. Análise institucional e Saúde Coletiva. Cienc Saude Colet. 2003; 8(1):26574. 5. Belmartino S. Nuevas Reglas de juego para la atención médica en la Argentina ¿Quién será el árbitro? Buenos Aires: Lugar; 1999. 6. Habermas J. Problemas de legitimación en el capitalismo tardío. Buenos Aires: Amorrortu; 1975. 7. Offe C. Contradiction of the Welfare State. Cambridge: IMS Press; 1984. 8. Offe C. Disorganized capitalism. Cambridge: Polity Press; 1985. 9. Alazraqui M, Mota E, Spinelli H. Sistemas de Información en Salud: de sistemas cerrados a la ciudadanía social - un desafío en la reducción de desigualdades en la gestión local. Cad Saude Publica. 2006; 22(12):2693- 702. 10. Spinelli H. El proyecto político y las capacidades de gobierno. Rev Salud Colect. 2012; 8(2):107-30. 11. Baremblitt GF. Compêndio de Análise Institucional e outras correntes: teoria e prática. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos; 1992.

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Garcia RA, L’Abbate S, Arakaki J. Estratégias de articulação entre Atenção Primária e Vigilância em Saúde e a interface entre os sujeitos. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):431-42. Trata-se de estudo qualitativo com objetivos de descrever as articulações entre a Vigilância em Saúde e a Atenção Primária da Saúde (APS) e os dispositivos utilizados para que estes processos se efetivem. A coleta de dados foi realizada por meio da observação participante do sistema de Vigilância em nível nacional e do município de Moreno – província de Buenos Aires. Os dados foram registrados em um diário de campo e os resultados analisados a partir de alguns conceitos elaborados por Lourau, na Análise Institucional, como analisador, instituição e implicação. Os resultados mostraram que a circulação de afetos e de subjetividades entre os sujeitos envolvidos no processo facilita a criação de dispositivos de articulação entre as áreas e jurisdições. A importância deste estudo consiste em um olhar externo que contribui para refletir os processos de trabalho.

Palavras-chave: Saúde Pública. Atenção Primária em Saúde. Atenção em Saúde. Recebido em 20/03/14. Aprovado em 11/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0822

artigos

Contextual determinants of decentralization of epidemiological surveillance for the family health team Silvone Santa Barbara da Silva Santos(a) Cristina Maria Meira de Melo(b) Clemence Dallaire(c) Michel Perreault(d) Edna Maria Araujo(e) Evanilda Souza de Santana Carvalho(f) Luciano Marques dos Santos(g)

Santos SSBS, Melo CMM, Dallaire C, Perreault M, Araujo EM, Carvalho ESS, et al. Determinantes contextuais da descentralização da Vigilância Epidemiológica para Equipe de Saúde da Família. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):443-54. This study examines the contextual determinants of implementing decentralization of epidemiological surveillance for the family health team, in a municipality in the state of Bahia, Brazil. This was an evaluative study using the political model of implementation analysis. Data were obtained through document analysis and semi-structured interviews with managers and healthcare workers. Five themes emerged: planning; training of human resources; organization of the work process; linkage within institutions; and organization of family healthcare units. The results revealed that there are difficulties such as poor infrastructure of healthcare units, creation of flexibility in labor relations and healthcare worker turnover. The study shows that there is a need for stakeholder participation in the process of implementing the policy of decentralization of epidemiological surveillance for the micro-area of intervention that comprises the family health program.

Keywords: Epidemiological surveillance. Decentralization. Contextual determinants. Family health team.

Este estudo analisa os determinantes contextuais da implantação da descentralização da vigilância epidemiológica para a Equipe de Saúde da Família, em um município do estado da Bahia, Brasil. Trata-se de pesquisa avaliativa, adotando-se o modelo político da análise de implantação. Os dados foram obtidos mediante a análise de documentos e entrevistas semiestruturadas aplicadas a gestores e trabalhadores da saúde. Emergiram cinco temas: Planejamento; capacitação de recursos humanos; organização do processo de trabalho; articulação intrainstitucional; organização da Unidade de Saúde da Família. Os resultados revelam dificuldades tais como: precária infraestrutura das unidades de saúde, flexibilização das relações de trabalho, rotatividade dos trabalhadores da saúde. O estudo aponta para a necessidade de participação dos atores no processo de implementação da política de descentralização da vigilância epidemiológica para um micro-espaço de intervenção que é o Programa de Saúde da Família.

Palavras-chave: Vigilância epidemiológica. Descentralização. Determinantes contextuais. Equipe de Saúde da Família.

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Departamento de Saúde, Universidade Estadual de Feira de Santana. Avenida Transnordestina, s/n, Novo Horizonte. Feira de Santana, BA, Brasil. 44036900. silvone.s@uefs. br; ednakam@gmail. com; evasscarvalho@ pq.cnpq.br; lucmarxenfo@ yahoo.com.br (b) Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia. Salvador, BA, Brasil. cmmelo@ufba.br (c) Université Laval: Sciences infirmières. Pavillon FerdinandVandry, Quebec, Canadá. clemence. dallaire@fsi.ulaval.ca (d) Universidade do Québec, Montreal. michel.perreault@ umontreal.ca (a,e,f,g)

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Introduction From the twentieth century to the beginning of this century, social policies in Brazil have undergone profound transformations. The decentralization of health, basic education, social welfare, sanitation and affordable housing was among the priorities on the agenda of Brazilian officials1 as it was the case in general in occidental societies in those years2. However, more than just an administrative process, decentralization is also a political process involving the transfer of power, in this case from federal to regional and municipal entities. According to Guimarães3 despite the legal-normative structure negotiated and agreed upon by the social actors involved, a conflict between the three spheres of government is inherent to the decentralization in the health sector in Brazil, partly due to resource and power imbalances among the levels of government. This unequal division impedes the full implementation of the Unified Health System (UHS). The Brazilian Constitution of 1988 established the Unified Health System with the doctrinaire principles of universality, integrality, and equity in access to health services and established as organizing principles: the decentralization of health services and programs; the regionalization and hierarchy of the health network; and social participation4. The Family Health Strategy is regarded as a structuring strategy of the Unified Health System (UHS), in that it was designed to restructure the healthcare model, originally focused on hospital and medical practice (strategy defined by Brazil’s health ministry aiming at reorienting health practices, with emphasis on primary care). Evidence suggests that the conceptual definition of decentralization implies a political dimension related to the sharing of decision-making power. As we can see, the administrative dimension often seems privileged with an emphasis on transfer of functions and responsibilities between spheres of government. In this sense, the so-called current decentralization in the health care system could be characterized more as a dispersion of activities – what is usually conceptualized as a de-concentration in the international research – than a real transfer of resources accompanied by a corresponding transfer of decision-making power5-7. Baguenard5 mentions that de-concentration is characterized by the development of a hierarchical line of command between central government and local instances. Accordingly, Lemieux6 proposes that de-concentration or administrative decentralization is characterized by a relationship of dependency upon the local and central. Thus, in the Brazilian context, decentralization is an ideological production that is grounded in the legitimacy of power by the central federal government. This is similar to a political game which means, according to Dallaire8, the use of power to establish rules that determine which actors can participate, how they can participate, when they can engage in problem definition and goal setting, and in developing strategies such as persuasion, negotiation and sometimes direct confrontation between the interested groups. This last concept clarifies the connection between political and administrative components of the decentralization process. The decentralization of Epidemiological Surveillance (ES) in Brazil is a priority of the federal government, as shown by the publication of basic operational standards or through financial incentives for the counties to assume an increasingly larger share of the ES. However, this is done without evaluating the capacities of the counties to develop them. Therefore, it appears that the current decentralization of ES is mainly focused on the division of actions and activities largely from a technical-administrative perspective rather than a political one3,5,6 . On the other hand, though riddled with contradictions, the decentralization of the management of ES expands the responsibility of mayors and municipal secretaries of health for sanitation, favors the diffusion of ES actions to the local system, enables the emergence of new demands, and increases the capacity for interventions to reduce the health problems of the population. Although the ministerial edict on epidemiology and disease control n. 1.399, 15/12/1999 regulates the powers among the Union, the states, the counties, and the Federal District, and defines the parameters of budgeting9, it was not enough to ensure that surveillance at a municipal level would become the important link in the monitoring and evaluation of the health status of the population as it had been intended. This is because the Ministerial edict presents a vertical decentralization of ES, 444

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and does not allow its integration into the priorities of many local governments. This takes place in a context where the actions of ES are still focused on disease control informed by a prevailing welfare model focused on curing diseases and the corresponding hegemonic importance attributed to the hospital. Moreover, a shift in this context faces many obstacles10,11. The changes required are situated in the administrative and political spheres, including what regards professional practices, particularly the behavior of workers12. Thus, the ES is operated in an ad hoc and fragmented way, focusing on the individual, prioritizing actions against the signals and symptoms of diseases currently prevalent according to the epidemiological data10,11. For Baguenard5 , decentralization in this case is ambiguous since the central government reduces the autonomy of the local instances by determining their activities. Meanwhile, the central government takes advantage of the apparent sharing of power to reinforce its own legitimacy. This can be observed in Brazil by the fact that although the Law of Health has democratic content and aims towards decentralization, it is not enough to ensure that the sharing of power and democracy remains an ideological legitimization of de-concentration. Yet on the other hand, even filled with its current contradictions, the decentralization of ES has many advantages since it may give more responsibility for health to mayors and municipal secretaries of Health, promote the increase of ES activities of the local system where it is most effective, and allow the emergence of new demands and extend the capability of intervention on local problems. Watts13, comparing the decentralization of various countries (including the United States, Australia, Germany, and Canada), concluded, measuring the level of decentralization, that some countries tend to decentralize a sector – for example, the economy – to the detriment of another sector-like the legislative sector. However, Watts13 asserts that this is an essentially pragmatic form of government, evolving and not static, and it is necessary to adapt to new circumstances and needs, including learning from the example of other federations. That said, it should not only be considered whether it is good or bad to decentralize management, but rather to assess in what context decentralization occurs and what is the position of the actors who control the power base. This article aims to examine concretely the contextual determinants of decentralization of Epidemiological Surveillance for the Brazilian Family Health Team (FHT). This current single case study14 is centered on a county in the state of Bahia, Brazil, but it is a component of a larger evaluative study entitled “Evaluation of the Epidemiological Surveillance decentralization for the Family Health Team”10.

Methodology The implementation analysis has as its central focus the study of matter determinants and their influence in the implementation of services, programs, actions, among others15,16. The analysis of the degree of implementation of ES is based on three pillars: analysis of the influence of contextual determinants, influence of variations of the effectiveness of the ES, and the relationship between the implementation deployment context and the observed effects of ES. To perform the implementation analysis, defining the influence of the context, we opted for the political model of evaluation. This choice is supported by the factors used by the political model to evaluate an intervention: intervention support given to their staff; if these agents are able to effectively operationalize the intervention; if there is consistency between the objectives and the support that is given to the intervention15,16, which implies analyzing a series of decisions or non-decisions that can generate action or inaction of the various actors inserted in the social context. Implementation analysis also takes into consideration the cyclical factors that influence the results obtained after the implementation of an intervention15. Consequently, to evaluate the implementation of the decentralization of ES for the FHT, it is necessary to understand the context in which this process occurs since implementation of decentralization is closely related to the organizational structure of the county. The primary data was obtained through semi-structured interviews with managers and employees of the Municipal Health department. Secondary data consisted of the analysis of the Municipal health plan, epidemiological reports and annual report of the county. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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The participants in the survey were implemented and distributed according to the following groups: Group 1 (n=4): Workers in the Family Health Team (doctor, nurse, nursing assistant and a community health agent); Group 2 (n = 5): Managers of the Municipal Health Department, Chief of ES, Chief of the Division of Primary Care, the program coordinators for the control of leprosy and tuberculosis. The sample was intentional due to the object of study. The first motion analysis was performed based on data extracted from interviews, linking them with the original context. Thus, based on Melo17, findings were processed as follows: A general and exhaustive reading of the material collected in interviews and pre-defined categories; processing findings relating to the units of analysis and the thematic units (central theme); evaluative discourse analysis, which identifies the value judgments of the actors in relation to the implementation of the decentralization of ES for the FHS. At this stage, discourse was classified as positive or negative in relation to the decentralization process. Secondly, after review and analysis of documents, a few variables were highlighted as related to the organizational structure and management: training of human resources priority guidelines established in the health plan, and degree of implementation of the decentralization of ES under the management reports. We developed a matrix, containing the following information: type of document; year; institutional actor; central theme and how the document was written. It was highlighted for analysis, only documents that made reference to decentralization and the central themes of the study. A relationship was established between the material collected in interviews and documents, identifying divergences and convergences listed by the actors involved in this research.

Results Through the responses of the interviewees, it was possible to identify the following thematic units as contextual determinants in the process of implementation of decentralization for the Family Health Team: planning, training the Family Health Team, organizing the work process, intra institutional communication, and finally, the organization of the Family Health unit.

Planning The idea of planning emerges from managers only under a centralized and punctual concept. Health workers do not report any participation in the planning process, which might indicate that the action done does not necessarily correspond to the planned action. It is clearly visible that there is a paradox among the interviewees’ responses when they simultaneously reinforce the planning centralization and defend the ES decentralization. Such a paradox may indicate that the current scenario is not yet favorable to initiating processes of change in the way of thinking and carrying out ES in the county. According to the senior manager, It is understandable we may not achieve equity, once planning is made in ‘superior hierarchic levels’ or ‘in upper position level’, not taking into consideration the specificity of each territory and the needs of each area involved. In fact, the responses of another manager point to the implementation of decentralization without any prior planning. It is as if the actions were passed out to the FHT, aiming at solving punctual and urgent problems and intending to avoid the occurrence of epidemics. Manager B claims that the implementation of ES decentralization to the FHT had been initiated after the arising and great frequency of some diseases: “So this (referring to the actions of ES) was well centered. Then, as the diseases were occurring more frequently at the time of dengue fever, cholera cases, for example […]”. It is interesting to note that in the first health plan, the planning of health surveillance is referred to as “It is incipient, not hierarchical and inconsistent features in their regionalization”. In the second stage, when establishing it as a priority and proposing guidelines for the adoption of planning and the functional organization of the system, the health plan states that:

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In this case, the decision to plan within a strategic vision means the recognition of the need to not only seek more rational management of resources and implementation of health actions, but also the existence of diverse and conflicting political projects and space required for discussion of the formation of social agreements, temporary and effective, enabling the implementation of the policies of the sector.18 (p. 16)

Therefore, the adoption of planning as a strategic perspective is defined as a political policy, although the responses do not reflect such intention. Possibly, it refers to a political guideline from the Municipal Health department which is not inserted in the subjects’ representations from this survey, and consequently, in the health practice routine.

Training health workers Most subjects interviewed converge in their responses when they refer to training processes developed for the Family Health Team, which are considered punctual, prescriptive and concentrated only on knowledge transmission, thereby emphasizing the content on communicable diseases. “Sometimes we participate in some... trainings, that the personal sector there (referring to the Division of Professional ES) does”. (Worker health university level)

Confirming the previous assertion, by analyzing documents (Municipal Health Plan and Management Reports), it was discovered that the training was focused on decentralizing actions of specific diseases, e.g. tuberculosis, dengue, leprosy. The training possibly allows workers to learn about the epidemiology, clinical issues and control measures of the health problems. However, they are not sufficient for the changes in the practice of ES towards the paradigm where the promotion of health involves the prevention of diseases. It is important to mention that the secondary level working class did not cite training at any moment during the interview. This possibly means that they were trained, but do not relate this training to their insertion in the ES.

Organization of the work process in health At the Health Unit where the study was carried out, it was evident that only the Community Health Agents count on effective hiring, the others are contractors from cooperatives. One of the workers interviewed had been working at the Unit for less than two months. “Although I have been working here for a short time, less than two months, I think the Unit is extremely organized; the health agents are very cooperative. So, I have not had any difficulty”. (upper level worker)

This worker’s comments reveal that the health worker does not perceive turnover as a problem for himself or for the service. This response indicates that their concern is having no difficulties in their work process, instead of how such turnover may reflect negatively on the population’s access to the service. The counties now have an open field to effect the hiring of personnel without contests. This greatly facilitates the adoption of a clientlist policy toward hiring staff often not by technical criteria, but by political election criteria. This has negative repercussions on the ES practice at municipal level, as suggested by one of the managers. “Concerning the change at the FHT, it is turnover itself: doctors, nurses who were trained in the programs for tuberculosis, leprosy, exanthematics and others take away the knowledge

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when they leave, while those coming in, theoretically, do not have such knowledge. Therefore, there is always an interruption of this process, of the routine, of everything as it should be, as it should work”.

This comment reflects the harmful consequences for the process of decentralization, when he confirms that it is always beginning. Besides that, it is affirmed there is investment in training professionals who leave the municipal district in most times. The high percentage of nurses as managers of the health services in the referred district deserves attention, since four out of five managers interviewed were nurses, i.e. eighty per cent of the managers interviewed. It is also the nurse who takes over the management of the Family Health Unit, though they are not considered as so by the Municipal Health department. Nursing organization in Brazil, which is influenced by the American model, probably contributes for the nurses’ accumulated knowledge in this field, since the National Department for Public Health, through Rockefeller Foundation, brought American nurses to install and run the first nursing school in Brazil19. On the other hand, according to Gagnon and Dallaire20, North American nurses entered the public health movement in the 19th century, worked with hygiene, sanitary conditions and vaccination, women and children care, educational and informative campaigns, which led to specific contribution of knowledge on public health.

Intra institutional communication One of the managers emphasized the ease of communication between the division of ES with the Strategy of Familiar Health (SFH). “When one starts thinking of one´s [...], own team, the colleague, the nurse who’s there at the health unit, the doctor, we often find that communication facilities ... the FHT, they know the ES (referring to the division of the ES central part of MHS - Municipal Health System), they seek ES when they encounter problems, they are supported in ES. So I see this way as easy as we have this two-way communication, right ... then the surveillance is present and the FHT today already know how to do surveillance”.

In contrast, the health professional reported that a lack of coordination between the division of ES and FHT constitutes a difficulty in performing their actions in the area covered by the Family Health Unit. “[...] Is a great difficulty (communication) to coordinate with the other coordinator, when we think so: coordination of family health for me is a big obstacle, [because of] the person, the coordinator [...]”.

The health professional’s responses reveal that a lack of communication between the division of ES and the FHT constitutes an obstacle when carrying out actions inside the scope of the Family Health Unit. The absence of intra sector communication implies difficulties for implementing the decentralization of ES to the FHT, as it impedes sharing information and decisions which would surely favor the development of more resolving actions. What is identified as dislocation may be attributed, partly, to history due to the way the work process of ES in the municipal district was organized. This work has always been centered in trained teams exclusively for the development of surveillance actions, delegating to the Basic Health Unit workers the activity of compulsory notification of diseases. The Ministry of Health, on the other hand, establishes that as part of the Family Health Team’s duties: to know the reality of families under their responsibility, emphasizing their social, demographic and epidemiological characteristics; to identify prevailing health problems and risky situations to which 448

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the population is exposed; to carry out basic epidemiological surveillance and sanitary actions in its coverage areas, based on their professional qualification18. What concerns ES, it is not only about attributing one more function, but taking over the sanitary responsibility in the coverage area, performing interventions both directly and indirectly through intersectoral communication. It is understood that health problems within the coverage area shall be treated according to complexity and resource availability, assuring assistance integrity and improvement of health indicators.

Family Health Unit Organization For some interviewees, team work in this field is just telling the other the occurrence of a fact, so the other decides what to do. However, team work means to work horizontally, developing integrated actions, uniting knowledge and its subjects, considering singularities of each profession practice, under the perspective of building coherent proposals and answers to the population’s needs. Also, to work in a horizontal way means to build communication networks among the subjects involved, and considering and valuing the resources each subject has whether it be information, attitude, ability or competence, which opposes work logics that are essentially bureaucratic and hierarchic. It is stressed by some of the interviewees that they develop ES actions with ease, reporting that the implantation of decentralization did not change the dynamics at the Unit. The availability of a vehicle to perform actions and the weekly schedule at the Unit, which comprises home visits fulfilled by health professionals, is cited as a facilitator. This fact allows reinforcing the idea that ES represents a secondary activity for the HFT. This representation is incorporated by a large amount of professionals for not understanding the ES as an action inserted in many other health actions. It’s been a good job with the team, we have managed a team that really understands that discuss the problems that take away the doubts, I have no complaints on our team, and our team has managed to do a reasonable job (Community Health Agent). An ES manager commented that the decentralization process of the ES has been occurring very slowly, especially due to the divergence between what is recommended and what is done in practice: “Now, how I see this process today: still too slow. Slow for several reasons that have delayed this process [...], the teams’ own philosophy does not match reality, theory, right? And also, the process itself is something new, right? [...] [Because of] each individual’s point of view, and even the way the process was carried out worsened it a little”.

The comments of two managers deserve attention (Manager B and Manager E) when they talk about carrying out ES by the FHT. Despite the team’s apparent agreement on decentralization, the verbal tense in the responses, always referring to the future, allows us to assume the ES actions are not being performed effectively by the HFT. The managers’ responses reflect a practice that must be done, but not what is, in fact, being done. Besides, one of the managers’ view concerning carrying out ES is reductionist, as it is limited to adopting control and notice measures.

Discussion Regarding the planning adopted is observed that is in the opposite direction of decentralization, since thinking in planning with a view to decentralization is thinking within strategic planning and participatory approach. It is understood that a given planning does not apply uniformly to all areas covered (SFH) and the moment in which workers participate in the planning process, increases their responsibility to execute what was planned. Conceiving planning under a strategic focus implies sharing and distributing power and making sure the social participants engage in the decision making process, which means the municipal district studied advanced in this sense. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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In the interviewees’ responses, it is noticed that power of decision is always delegated to other people or other positions. It is like every participant’s responsibility was limited to doing what the other determines, without reflecting on the consequences and results from their practices. Training was considered as an action to solve the problems of workers’ practices of those involved in health, when in fact, there are other problems that must be addressed, from professional training at graduation to working conditions offered to these professionals. It is important to note that from the actors interviewed, particularly the managers emphasized the need for training. Only a professional with university degree referred to training as a strategy used by the central level to decentralize Epidemiologic Surveillance (ES). However, analyzing the tone and how the speech of the professional was expressed one can infer that these skills were not significant for the people who are doing the action, not contributing to the implementation of the decentralization of the ES. On the other hand, the category of mid-level workers did not mention the training at any time of the interview. This may mean that they participated in educational activities, but do not consider as a convenience to its insertion in ES. or no training focused on this category of workers. In this direction it is important to mention considerations of Peduzzi and Palma21 as the training of mid-level workers processes. For these authors, educational practices are simplified without critical reflection and reaffirm the social inequality of labor. The municipal district studied does not differ from other districts in Bahia in regards to the way secondary level health workers are trained. The nurse, who integrates the FHT, is usually responsible for training these professionals, in a simplified way, as coincides with the perceptions of Peduzzi and Palma21. Not to mention that it is predicted as the nurse’s attributions to “develop plans to train the CHA (Community Health Agent) and nursing assistants, as part of their duties at the health service”18 (p. 34). The fact that neither the community agent nor the nursing assistant mentioned training in their responses probably indicates that the training they received seems to be naturally integrated in the “normal” practice of detecting communicable disease, and not a specific different training to improve the ES. It is therefore necessary that the Municipal Health Department reconsiders the professional training processes in a way that corresponds with these workers’ needs, resulting in effective actions in practice for the health services. According to the testimonies, decentralization of ES for the FHT did not overwhelm the health workers, since this activity is not seen as a priority for the team. Actions are developed according to a pre-established program. However, it positively influenced the training for the punctual development of actions. Yet, it may be assumed that the developed training did not assemble elements to contribute to the changes in the workers’ practice, as ES is considered, by most participants in this survey, as an action of medical police centered in controlling communicable and temporary diseases as if to identify risks and damages to the population’s health. Concerning organization of work process, it was possible to notice that the way workers for the Family Health Team are hired, notably through temporary contracts, favors professional turnover, impacting negatively not only the development of ES practices, but also other health practices. The expansion of the health job market occurred in Brazilian cities through the Family Health Program. After the implantation of FHP, there was an important increase of job offers, especially for nurses, nursing technicians and doctors22. Nevertheless, the rise in job offers was inversely proportional to the worker’s protection regarding employment contracts, as the municipal districts, justifying the Fiscal Responsibility Law and labor relation flexibility, adopted different contracts, such as cooperatives, temporary contracts and service provision, among others. It is worth mentioning that not a single worker interviewed cited his precarious insertion in the health system. This may be related to individual interests of each worker in an attempt to save his job. In addition, we may assume that there is lack of political views from workers who end up contributing to this precarious labor relation. 450

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Noticeably, the responses on work precariousness, and consequently professional turnover, are centered in the group of managers, demonstrating a concern in the rupture of the process of ES decentralization to the FHT. Although the problem of work precariousness had been noticed, especially by the upper managers, no proposal was presented to change this reality. We understand that noticing the problem itself is not sufficient. It is necessary to build possibilities of intervention which assure labor rights stated in the national legislation, avoiding all kinds of work precariousness at UHS. The results of this study further suggest that there is a predominance of nurses not only as managers, but also as professionals responsible for epidemiological surveillance at the Family Health Unit. Based on Melos’19 ideas, this fact may depict sexism at work, in a way female work has been devalued when compared to males. Also, because it refers to a profession of low economic value and ES is not considered a strategic area for the consolidation of UHS. Finally, it may be inferred that the Family Health Team’s work is limited to controlling communicable diseases, through notification, epidemiological investigation and performing preventive vaccination and vaccination campaigns. Notably, actions are carried out according to the demand of a central sphere from the Municipal Health Office, rather than the necessity perceived by the Professional of the Family Health Unit. As a consequence, they do not observe the population’s health condition, let alone their real necessities. As the team does not keep the data produced in the local range, they do not elaborate on information to subsidize the process of making decision.

Final considerations Decentralization of ES consists of a process surrounded by contradictions, because at the same time as it is institutionalized, it takes place in incomplete and precarious conditions or due to lack of structure and support from the power supporting foundations or even lack of public participation. Decentralization brings along a series of responsibilities for the county, without following correspondent financial and management resources for the development of actions. On the other hand, regional differences between state and counties, concerning management and observance of public policies, comprise differentiated ways and levels of decentralization. We may infer that, in this case, decentralization of ES to the FHT did not actually occur, configuring interruption of activities, as the context determiners analyzed in this study point out the absence of sharing in the decision process. That means it was a hierarchic and normative process. We understand some issues are crucial so that the decentralization of ES to the SHF in fact may occur, such as: participation of citizens in the health system through municipal and local councils; professional autonomy for performing actions, assessing the obtained results systematically; use of protocols defined by the Health Department and the Municipal Health Department, but with individualized therapeutic projects; development of permanent educational process for the teams, and above all, the local manager’s political will. This is a process that involves administrative, technical and political dimensions of municipal UHS organization. On the other hand, based on Peduzzi and Palma21 theoretical concepts, the Family Health Team in the case analyzed performs of varied objects and knowledge not articulated among them; lives with and reproduces various fragmentation plans, either on work organization or on knowledge communication. Confirming what those authors cited, it is necessary to overcome the work logics evidenced in this study so that the Family Health Team is not reduced to a multiprofessional team on a work level. Instead, they may also be considered as an interdisciplinary team in a knowledge level, building new appropriate knowledge to the work needs in health, based on the creation of new practices. Thus, thinking of the Family Health team logics, is thinking of a multidisciplinary work, sharing the decision process, action planning, horizontal work organization and effective social participation in the management of local health services. It is understood that the implantation of decentralization of ES to the FHT may represent a way to organize primary health care, as it allows to operate the FHT responsibilities focusing on the individuals COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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or groups needs of a specific coverage area. Therefore, it is the FHT’s role to develop health promoting actions, disease prevention and care assistance to the individual and the families. In this regard, the Family Health Unit may help reorganize the health service provision model. However, it is defended that the Family Health Unit will only constitute an effective change strategy if the work process would take local specificities into account and, consequently, the assisted families, building practices that mean improving the population health indicators, the user’s satisfaction and the health worker’s condition. This study points to future evaluation research about the implementation of the decentralization of ES to Family Health Teams. It is necessary to develop multiple case studies to obtain a better understanding and theory about this theme. In this way is possible to make some generalizations between similar contexts.

Collaborations Silvone Santa Bárbara da S. Santos, Cristina Maria Meira de Melo, Clemence Dallaire e Michel Perreault, participaram igualmente, da elaboração do artigo, de sua discussão e redação e da revisão do texto. Luciano Marques dos Santos, Evanilda Souza de Santana Carvalho, Edna Maria de Araújo participaram da revisão bibliográfica, de discussões e revisão do texto. Acknowledgments The teacher Marcelo Oliveira de Souza for the summary of the review in Portuguese, English and Spanish and the revision of the text in English. To Capes and the Canadian Government, through the Future Leaders Program of America for funding the study in the doctoral period the main author, the Université Laval-Quebec, Canada.

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20. Gagnon F, Dallaire C. Promotion de La santé: la contribution du savoir infirmier. In: Poulet O, Dallaire C, organizadores. Les soins infirmiers: vers de nouvelles perspective. Boucherville: Gaetan Morin; 2002. p. 255-76. 21. Peduzzi M, Palma JJL. A equipe de Saúde. In: Schraiber LB, Nemes MIB, MendesGonçalves RB, organizadores. Saúde do adulto: programas e ações na unidade básica. São Paulo: Hucitec; 2000. p. 234-50. 22. Ferreira LMCR. Pesquisa nacional por amostra de domicílio e pesquisa de assistência médico-sanitária: Formação. Merc Trab Saude. 2002; 2(6):93-8.

Santos SSBS, Melo CMM, Dallaire C, Perreault M, Araujo EM, Carvalho ESS, et al. Determinantes contextuales de la descentralización de la Vigilancia Epidemiológica para el Equipo de Salud de la Familia. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):443-54. Este estudio analiza las determinantes contextuales de la implantación de la descentralización de la vigilancia epidemiológica para el Equipo de Salud de la Familia, en un municipio de Bahia, Brasil. Se realizó un estudio de evaluación, adaptándose el modelo político del análisis de implantación. Los datos se obtuvieron por medio del análisis de documentos y entrevistas semi-estructuradas realizadas con gestores y trabajadores de la salud. Surgieron cinco temas: Planificación, capacitación de recursos humanos, organización del proceso de trabajo, articulación intra-institucional, organización de la Unidad de Salud de la Familia. Los resultados muestran dificultades: precaria infraestructura de las unidades de salud, flexibilización de las relaciones de trabajo, rotación de los trabajadores de la salud. El estudio señala la necesidad de participación de los actores en el proceso de implementación de la política de descentralización de la vigilancia epidemiológica para un micro espacio de intervención que es el programa de Salud de la Familia.

Palabras clave: Vigilancia epidemiológica. Descentralización. Determinantes contextuales. Equipo de salud de la familia.

Recebido em 07/10/13. Aprovado em 15/04/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0181

artigos

Programas de promoção da saúde na saúde suplementar em Belo Horizonte, MG, Brasil: concepções e práticas Andreza Trevenzoli Rodrigues(a) Kênia Lara Silva(b) Roseni Rosangela de Sena(c)

Rodrigues AT, Silva KL, Sena RR. Health promotion programs within supplementary healthcare in Belo Horizonte, MG, Brazil: concepts and practices. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):455-66. This study aimed to analyze health promotion programs developed by healthcare plan operators. This was a multiple case study with a qualitative approach. The data were obtained from interviews with forty participants, comprising managers, professionals and beneficiaries of six healthcare plan operators in Belo Horizonte, Minas Gerais, Brazil. Observations were made among participants in health promotion programs. The analysis showed that a behavioral approach towards health promotion is prevalent. The characteristics of the programs made it possible to differentiate them as traditional, transitional or innovative. The findings suggest that there have been changes in the logic of healthcare production, but with reduced potential to initiate transformation. It was concluded that there is a need to support operators regarding the concepts and models of health promotion so as to induce changes and innovations.

Keywords: Health promotion. Supplemental health. Qualitative research.

O trabalho analisou programas de promoção da saúde desenvolvidos por operadoras de planos de saúde. Trata-se de estudo de casos múltiplos de abordagem qualitativa. Os dados foram obtidos de entrevistas com quarenta participantes, entre gestores, profissionais e beneficiários de seis operadoras de planos de saúde em Belo Horizonte/MG, Brasil. Foram realizadas observações junto aos participantes dos programas de promoção da saúde. A análise explicitou que a abordagem comportamental de promoção da saúde é prevalente. Os programas apresentam características que permitem diferenciálos como: tradicionais, em transição e inovadores. Os achados sinalizam para mudanças na lógica de produção da saúde, mas com reduzido potencial para disparar transformação. Conclui-se pela necessidade de apoio às operadoras sobre as concepções e modelos de promoção da saúde para induzir mudanças e inovações.

Palavras-chave: Promoção da saúde. Saúde suplementar. Pesquisa qualitativa.

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Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, Hospital Municipal Odilon Bherens. Rua Formiga, nº 50, Lagoinha. Belo Horizonte, MG, Brasil. 31210-780. andrezatrevenzoli@ yahoo.com.br (b,c) Departamento de Enfermagem Aplicada, Escola de Enfermagem, Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, MG, Brasil. kenialara17@ gmail.com; rosenisena@ uol.com.br (a)

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Programas de promoção da saúde ...

Introdução A saúde suplementar é composta pelas ações e serviços de saúde prestados pela iniciativa privada como complementar ao Sistema Único de Saúde. No Brasil, a saúde suplementar viabilizou-se nos anos 1970, a partir da crise do modelo médico previdenciário e pelo forte incremento da modalidade convênio-empresa1. O marco regulatório da saúde suplementar ocorreu em 1998, com a publicação da Lei Federal nº 9.656, que regulamentou os planos privados de saúde no Brasil. Posteriormente, em janeiro de 2000, foi publicada a Lei Federal nº 9.961, que criou a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) para desenvolver as estratégias nacionais de regulação pública2,3. Com objetivo de alinhar as ações e serviços prestados pela saúde suplementar às diretrizes das políticas públicas de saúde, a ANS iniciou, em 2005, um processo de indução de mudanças na lógica assistencial. Dentre as estratégias utilizadas pela agência reguladora, destaca-se a qualificação do cuidado por meio de incentivos à incorporação de práticas que ultrapassam a assistência médicohospitalar, que é predominante no setor4. O esforço de influenciar na qualidade da atenção prestada na saúde suplementar pode ser traduzido pelo Programa de Qualificação da Saúde Suplementar. Nesse programa, a avaliação do desempenho das operadoras é realizada por meio do Índice de Desempenho da Saúde Suplementar (IDSS), calculado a partir de indicadores definidos pela ANS, dentre os quais está incluso o cadastramento e monitoramento de programas de promoção da saúde5. Os programas de promoção da saúde constituem uma das estratégias da ANS para influenciar mudanças na organização e prestação de serviços ofertados por operadoras de planos de saúde4. Contudo, apesar de se reconhecer a incorporação de novas práticas nas operadoras, é pertinente fazer questionamentos acerca das dinâmicas e concepções que sustentam essas práticas. Apesar das definições da ANS, pressupõe-se que as limitações da saúde suplementar estejam relacionadas à concepção da promoção da saúde com repercussão nos programas desenvolvidos neste campo. O ideário da promoção da saúde remete a concepções teórico-conceituais, políticas e ideológicas, que podem ser tomadas como possibilidades para a reforma do setor saúde6. Seu conjunto conceitual introduz algumas categorias norteadoras, dentre as quais se destacam: o empoderamento, a autonomia e a responsabilização múltipla. Essas categorias são tomadas como condições sine qua non para a promoção da saúde, pois representam a capacidade dos indivíduos de fazerem escolhas e criarem formas de lidar com as questões relacionadas ao cotidiano de vida, que sejam mais criativos, solidários e produtores de movimentos7. Considera-se que o aumento das propostas de promoção da saúde no setor suplementar pode representar um importante impacto positivo na saúde dos beneficiários de planos de saúde. Entretanto, embora haja interesses em expandir e regulamentar práticas de cuidados em saúde rompendo o paradigma biomédico-hospitalocêntrico, os programas desenvolvidos pelo setor suplementar ainda são pouco conhecidos e analisados8. Além disso, tendo em vista que a saúde suplementar no Brasil caracteriza-se como um setor sustentado e permeado por uma lógica econômica, e composto por atores com interesses antagônicos, pressupõe-se que os programas de promoção da saúde e prevenção de doenças possam estar sustentados em uma concepção disciplinadora de vigilância e controle, com vistas, essencialmente, à redução de custos. Importante ressaltar que a promoção da saúde pode produzir resultados positivos na saúde suplementar por meio da incorporação de ações programáticas direcionadas aos portadores de comprometimentos crônicos e degenerativos, além da implantação de práticas transformadoras com intervenção sobre os determinantes sociais, em detrimento da atenção majoritária à demanda espontânea que tem marcado a operação tanto no subsistema público quanto no privado. Para subsidiar uma discussão acerca do potencial da promoção da saúde para promover mudanças, foi realizado um estudo com objetivo de analisar programas de promoção da saúde desenvolvidos por operadoras de planos privados de saúde.

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artigos

Metodologia Trata-se de um estudo qualitativo e exploratório, ancorado no referencial teórico-metodológico da hermenêutica-dialética. No que tange à interação entre hermenêutica e dialética, ambas referem-se à práxis estruturada pela tradição, linguagem, poder e trabalho. Contudo, enquanto a hermenêutica enfatiza a unidade de sentido e o consenso; a dialética se orienta para a busca dos núcleos obscuros e contraditórios para sustentar uma crítica9,10. Foi realizado um estudo de casos múltiplos com um percurso metodológico estruturado em três etapas: exploratória, de trabalho de campo, e de compreensão dos dados. Na etapa exploratória, procedeu-se à identificação e reconhecimento das operadoras que desenvolvem programas de promoção da saúde e prevenção de doenças em Belo Horizonte e/ou região metropolitana, por meio de busca na base de dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar. Nesse levantamento, foram identificadas 79 operadoras, dentre as quais foram selecionadas as 39 que atendiam a uma faixa de beneficiários acima de cinco mil vidas. No universo das 39 operadoras, procurou-se identificar aquelas que ofereciam programas de promoção da saúde e prevenção de doenças. Essa identificação mostrou-se bastante desafiante, uma vez que as informações sobre os programas de promoção e prevenção nas operadoras não são explícitas e nem todos os programas desenvolvidos são registrados na ANS. Dentre as 23 operadoras que confirmaram, por contato telefônico, o desenvolvimento de programas de promoção da saúde e prevenção de doenças, seis aceitaram o convite para participar da pesquisa e foram incluídas na segunda etapa do estudo. O trabalho de campo foi realizado em duas fases: na primeira, foram realizadas entrevistas com representantes da gestão das operadoras e/ou coordenadores dos programas de promoção da saúde e prevenção de doenças; a segunda constituiu-se de observações participantes das atividades dos programas investigados e entrevistas com profissionais e beneficiários, com objetivo de aprofundar o conhecimento do fenômeno em estudo. Assim, o corpus empírico do estudo foi constituído de: quatro entrevistas com gestores das operadoras, cinco entrevistas com coordenadores dos programas de promoção da saúde, uma entrevista com gestor de uma prestadora terceirizada, 14 entrevistas com profissionais, e 16 entrevistas com usuários, que somaram 1.013 minutos de gravação em áudio. Compuseram, também, o corpus 33 páginas de registro em diário de campo referente às observações das práticas estudadas. A interpretação do conjunto dos seis casos estudados foi realizada a partir da estratégia de síntese de casos cruzados, proposta por Yin11. Seguindo as orientações do autor, as categorias temáticas resultantes da leitura transversal dos 06 casos estudados foram discutidas a partir da articulação entre os dados e a produção científica relacionada, configurando o movimento, ao mesmo tempo, compreensivo e crítico, sustentado pelo referencial da hermenêutica-dialética. Neste processo, os dados empíricos foram comparados e confrontados com outros estudos. Para garantir o anonimato das instituições e atores do estudo, foram omitidas as razões sociais e nomes. Assim, a caracterização das operadoras foi organizada em sequência numérica aleatória (1 a 6) e foram atribuídos códigos aos atores entrevistados, conforme o seguinte exemplo: Gestor OP1 e Fisioterapeuta OP1 correspondem às entrevistas com gestor e fisioterapeuta da operadora 1. Todas as etapas deste estudo respeitaram os preceitos éticos da pesquisa envolvendo seres humanos, tendo sido o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Minas.

Resultados A partir da análise dos programas das seis operadoras de planos de saúde, foi possível identificar a diversidade de temas e formas de trabalho que compõe o campo da promoção da saúde na saúde suplementar.

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Programas de promoção da saúde ...

A incorporação de profissionais de saúde não médicos e a realização de atividades grupais são marcantes nos programas. Além disso, o estudo revelou que há um intenso investimento em programas direcionados à atividade física, pessoas da terceira idade e portadores de obesidade. Essas informações foram sintetizadas e apresentadas no Quadro 1. Processos educativos em saúde perpassam todos os programas analisados, contudo existem diferenças nas formas de abordagem e nas temáticas trabalhadas. Neste âmbito, programas como de Obesidade (operadora 4), Nutrição, Gestação e Puerpério (operadora 5), caracterizam-se por manterem o enfoque na gênese e prevenção de doenças, além de centrarem-se nos profissionais de saúde e transmissão vertical de informações. A palestra transcorreu com a fala unilateral da nutricionista. Com o passar do tempo as gestantes começaram a apresentar sinais de cansaço evidenciado por inquietude, posturas inadequadas nas cadeiras e olhares desatentos. (Notas de observação do programa gestação e puerpério da OP 5) Na saúde, a pessoa estuda a doença, o tratamento, a evolução da doença, mas esquece que as pessoas são únicas, têm sua história de vida e seus hábitos. [...] Se a gente tivesse uma hora para identificar o perfil daquele grupo, trabalhar para aquele grupo, ao invés de ser uma coisa quadradinha igual a gente faz... (Médico OP 5)

Além disso, foram identificados programas que, apesar de manterem o enfoque em temáticas tradicionais, como prevenção e controle de doenças, inovam ao incorporarem metodologias e tecnologias de trabalho dialógicas e reflexivas, tais como os programas: Adolescentes (operadora 1), Tratamento da obesidade (operadora 2) e Educação em saúde do trabalhador (operadora 3). Acho que é o momento de ensiná-los a ter autocuidado, acho que tudo começa na adolescência, na reflexão. [...] Nós utilizamos dinâmicas de grupo porque é mais interativo, às vezes os jovens preferem utilizar da criatividade. (Psicóloga 1 OP 1) Foram criados temas que direcionam nosso trabalho como reeducação alimentar, ansiedade, autoestima... Esses temas foram definidos a partir da demanda dos grupos e são trabalhados através de discussões em roda e dinâmicas. (Psicóloga OP 2) Para finalizar os encontros grupais a psicóloga realizava dinâmicas ou leitura de reflexões motivacionais para incentivar atitudes de superação dos desafios. (Notas de observação do programa tratamento da obesidade da OP 2) Para iniciar as atividades, após um momento de descontração, o psicólogo introduziu os temas das oficinas através de associações com situações da vida cotidiana ou leitura de textos reflexivos. As atividades que compõem as oficinas consistem em: exposição dos temas, tais como memória espacial e técnicas de memorização; utilização de imagens e exercícios projetados em data show para viabilizar atividades grupais com participação verbal; exercícios individuais e escritos que são compartilhados com o grupo após a construção; mensagens de reflexão motivacional ao final das atividades. (Notas de observação do programa Oficina da memória da OP 1)

Também foram identificados programas que não se limitam, necessariamente, às temáticas relacionadas às doenças e aos doentes, mas têm, como premissa, favorecer o vínculo e socialização dos beneficiários. Nessa perspectiva podem-se tomar como exemplos os programas Oficina da memória e Dança para maiores de sessenta anos (operadora 1), Yoga (operadora 6).

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Programa

Beneficiários

Observações

Psicóloga e Hebiatra

Jovens de 11 a 17 anos

Discussões interativas sobre comportamentos e hábitos

Atividades 01 Condicionamento Combater físico aeróbicas e sedentarismo, promover socialização anaeróbicas

Fisioterapeuta

Predomínio de idosos

Afetividade e vínculo entre beneficiários e profissional

01 Consciência postural

Melhorar flexibilidade Atividades aeróbicas e e força anaeróbicas

Fisioterapeuta

Predomínio de idosos

Afetividade e vínculo entre beneficiários e profissional

01 Oficina da memória

Exercitar a memória para prevenir déficit

Exposição dialogada, exercícios escritos e verbais

Psicóloga

Predomínio de idosos

Incentivo ao autocuidado, cooperação e socialização

01 Dança melhor idade

Concentração, memória e flexibilidade

Coreografia em grupo

Fisioterapeuta

Predomínio de idosos

Atividade prazerosa que promove socialização e vínculo

02 Tratamento Obesidade

Mudanças comportamentais no pré e pós op. de cirurgia bariátrica

Exposição dialogada, apoio psicológico, dinâmicas

Psicóloga, nutricionista e profissionais convidados

Obesos com indicação cirúrgica

Discussões coletivas com compartilhamento de experiências e métodos de autoajuda

02 Reeducação Alimentar

Mudança hábitos

idem

idem

Sobrepeso, sem indicação cirúrgica

Discussões coletivas com compartilhamento de experiências e métodos de autoajuda

03 Educação em saúde do trabalhador

Dinâmica de Prevenção de acidentes de trabalho grupo

Fisioterapeuta e estagiários

Trabalhadores de um Call Center

Método alternativo e criativo para promover uma discussão pontual

04 Controle da obesidade

Prevenir cirurgia e doenças, mudar hábitos

- Atividade física - reuniões grupais com psicóloga e nutricionista

Fisioterapeuta, educador físico, psicóloga, nutricionista

Pessoas em sobrepeso e/ ou doenças relacionadas

Focalização em mudança de hábitos de vida, através de atividades, consultas e discussões grupais

05 Gestação e puerpério

Educar sobre a gestação e cuidados com recém-nascido

Palestras

Obstetra, pediatra, dentista e nutricionista

Gestantes e seus companheiros

Transmissão de informações de profissionais para beneficiários

05 Nutrição

Promover emagrecimento através de mudança de hábitos

Palestras

Nutricionista e Pessoas em sobrepeso psicólogo

Transmissão de informações de profissionais para beneficiários. Foco em mudança de hábitos

06 Yoga

Bem-estar físico, mental e espiritual

Aulas

Predomínio de Profissional com formação idosos para professor de Yoga

Grupo interativo, participativo, contínuo e integrado

06 Atividade Física

Hábito saudável

Exercícios físicos aeróbicos e anaeróbicos

Educador físico Predomínio de idosos

Grupo interativo, participativo, contínuo e integrado

OP

01 Adolescentes

Objetivo Prevenir riscos biológicos e psicossociais

Metodologia Rodas de discussão, dinâmicas

Profissionais

artigos

Quadro 1. Síntese dos programas de promoção da saúde analisados nas operadoras estudadas. Belo Horizonte, 2013

Fonte: Dados da pesquisa.

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Elas reconhecem o benefício da dança, mas permanecem por causa da socialização, dessa amizade. Então, eu acho que isso fortalece o grupo. (Fisioterapeuta OP1) O grupo de dança tem impacto em minha vida emocional, é quase uma família. (Beneficiária 5 OP 1) [...] é muito bom o grupo, a professora é excelente e nós fazemos muita amizade. (Beneficiário 2 OP6) Eles têm alegria em vir fazer a aula, são integrados, topam tudo, gostam de novidade. (Professora de Yoga OP 6)

A qualidade de vida, prevenção de déficit de memória e socialização foram reveladas como motivações para participação dos beneficiários nos programas. As concepções de saúde dos beneficiários se relacionam a bons hábitos e condições de vida, além de motivações para emagrecimento e prevenção das complicações e limitações impostas pelo sobrepeso. Além disso, a responsabilidade pelo autocuidado foi atribuída a si, com apoio dos familiares. Olha, eu considero eu responsável pela minha saúde, porque se eu não fizer, né, meu filho por mais que ele goste de mim, por mais que ele cuide de mim, me oriente, ele não vai fazer o que eu preciso. [...] Saúde é viver bem, alimentar bem, dormir bem e proporcionar à mente uma atitude salutar, né? A minha motivação é a precisão de não perder mesmo a memória, de estar atualizado porque eu tive uma experiência muito triste, não sei se eu já te falei, que meu marido teve Alzheimer [...]. (Beneficiário 3 OP 1) Eu tive duas tromboses e sempre deixando, fora que eu tenho uma família toda obesa. Agora a idade vai chegando ai vai aparecendo as dores no joelho a pressão alta e falei eu não quero ficar assim eu quero mudar, então ainda dá tempo de mudar, e foi através daí que eu falei chega. Agora eu vou mudar minha vida. (Beneficiário 2 OP 2) Eu participo de grupo há quatro anos, cheguei aqui por indicação do meu cardiologiasta. Minha pressão estava alta e eu pesava dez quilos a mais. Aqui, a gente faz os exercícios bem monitorados, isso você não vê nas academias. Tem também os grupos com a nutricionista e psicóloga que ajudam muito a gente. É um conjunto né. (Beneficiário 3 OP 4)

Apesar das diferenças entre os programas, na perspectiva dos gestores das operadoras e coordenadores dos programas, é comum o enfoque no controle de riscos e comportamentos, exercido por meio de práticas para padronização de hábitos de vida considerados saudáveis, com vistas à contenção de custos por meio da redução do consumo de serviço de alto custo. A gente fica repetindo todo o tempo para tentar convencer a mãe que precisa mudar os hábitos para essa criança ter vida saudável, com foco, também, na redução de custos. (Coordenadora dos programas da OP 5) Eu acho que seja um referencial para a operadora porque não é toda empresa de saúde que tem o programa de promoção e prevenção. Então, é importante porque você tem um tratamento diferenciado para esses beneficiários. A gente consegue acompanhar eles muito melhor e tem redução de custo. (Coordenador dos programas da OP 2) Então, nós temos várias atividades que o objetivo e embutir na cabeça das pessoas a vida saudável. [...] Envelhecendo menos doente, isso abaixaria a sinistralidade da carteira. [...]

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artigos

Evidente que tem a questão humana, da pessoa ter qualidade de vida de fato, mas é claro que não é só isso, tem todo um contexto de custo ai envolvido. (Gestor OP 6) O paciente do Controle de Crônicos, como não dói, a doença ela é silenciosa, eles são indisciplinados, então eles me geram um alto custo no tratamento deles porque eles não comparecem às minhas consultas, um absenteísmo muito grande. Então trabalhar esse paciente é difícil porque eu perco meu tempo médico que eu poderia abrir para outra pessoa que está precisando. Eu não consigo trazer esse paciente porque ele não se convence da importância. A gente tem também a demanda do tempo da equipe que é desperdiçado. (Coordenador OP 5)

Os discursos a seguir revelam que estratégias relacionadas aos programas de promoção da saúde visam modificar os hábitos de vida das pessoas envolvidas, a partir de conhecimentos científicos que apontam os padrões de normalidade e saúde. A promoção é o acesso à informação, oferecer um leque de informações ali para ele [o beneficiário] ter conhecimento e mudar o hábito de vida e não adoecer. (Gestor OP 2) O principal objetivo dos grupos que a gente tem hoje é conseguir que eles realmente mudem hábitos de vida. [...] É muito mais coerente você trabalhar na promoção evitando que venha a doença do que você trabalhar na doença já instalada que é mais oneroso, mais trabalhoso, tanto economicamente, quanto de tempo de dificuldade. (Psicólogo 1 OP 2) [...] Se você não conhece a população com a qual está trabalhando, você não atua realmente nos fatores de risco. [...] Mudar o hábito de uma pessoa que quer parar de fumar é muito difícil. [...] Trabalhar promoção da saúde é mudança de hábito de vida. (Coordenador OP 3)

O enfoque disciplinador e controlador, marcante nos programas analisados, foi revelado nos discursos que enunciam o objetivo de “ensinar e convencer” as pessoas sobre as maneiras saudáveis de viver a vida e de aderir às normas e padrões: É para ensinar às pessoas a fazerem escolhas inteligentes, escolhas saudáveis. [...] É isso que nós queremos mudar, queremos fazer com que essas pessoas tenham inteligência em escolher os melhores alimentos, as melhores refeições. No primeiro encontro ela pede para eles anotarem suas escolhas alimentares e no segundo encontro discute o que está certo e o que está errado. (Coordenador OP 3) Resumir tudo isso em uma única palavra seria falar em mudança de hábitos, é isso que estamos buscando. Então, o diabético, que é um paciente difícil de ser cuidado, nós queremos convencê-lo da importância de uma alimentação saudável, da atividade física [...] O paciente do controle de crônicos, como não dói, a doença ela é silenciosa, eles são indisciplinados, então eles me geram um alto custo no tratamento deles porque eles não comparecem às minhas consultas, um absenteísmo muito grande. Então trabalhar esse paciente é difícil porque eu perco meu tempo médico [...]. Eu não consigo trazer esse paciente porque ele não se convence da importância. (Coordenador OP 5) Aqui nós tentamos convencer as pessoas que não adianta costurar estômago, tem que mudar pensamento. (Psicólogo 1 OP 5) As pessoas fazem porque elas se sentem obrigadas a fazer porque o mundo fala hoje sobre promoção da saúde. (Coordenador OP 3)

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Discussão O conjunto de dados suscitou discussões acerca das concepções e práticas de promoção da saúde presentes nos programas das operadoras analisadas. Neste sentido, a concepção de saúde orientadora das práticas de promoção da saúde foi identificada na perspectiva que entende a saúde como bemestar físico e mental, condicionada por fatores biológicos e comportamentais centrados no indivíduo. A restrição desse conceito aos determinantes proximais do processo saúde-doença foi revelada por meio dos objetos de intervenção que, em geral, dizem respeito aos hábitos de vida das pessoas, bem como aos indivíduos doentes e àqueles que apresentam risco aumentado para adoecimento. No que se refere às intervenções sobre os hábitos e estilos de vida, o estudo revelou programas focalizados na padronização de condutas, por meio de abordagens recorrentes sobre exercícios físicos e hábitos alimentares. A ênfase nesses aspectos está relacionada ao objetivo de modelar o comportamento das pessoas em nome da saúde e qualidade de vida12. Outros estudos também discutem o limite dessa atuação sobre estilos e hábitos de vida com forte ênfase na responsabilização individual13-15. As concepções de saúde e as intervenções para promovê-la, que emergiram da análise dos dados, parecem retomar o foco proposto pelo Relatório Lalonde, na década de 1970. A ênfase desse Relatório era direcionada às intervenções sobre os estilos de vida dos indivíduos com vistas ao enfrentamento dos altos custos com assistência médica, associados ao modelo de falência do Estado de Bem-estar social16. Com isso, a responsabilização pela adoção de hábitos e comportamentos saudáveis teve um forte caráter individualista repercutindo em ações moralizadoras e culpabilizantes. Destaca-se, também, que os resultados revelam que os programas denominados pelas operadoras como promoção da saúde apresentam características essencialmente preventivistas, visto que têm como foco evitar doenças e complicações por meio da mudança de comportamentos em prol da adoção de hábitos preconcebidos como sendo saudáveis. A confusão conceitual no campo da promoção da saúde e a pluralidade de abordagens que o campo comporta têm sido alvo de discussões17-20. Admitindo-se a pluralidade, podem-se distinguir três abordagens no campo da promoção da saúde: biomédica, comportamental e socioambiental21. A primeira conceitua saúde como ausência de doenças e considera as condições biológicas como principais determinantes do processo saúde-doenças. A segunda acrescenta o bem-estar mental dos indivíduos ao conceito de saúde e reconhece fatores comportamentais como determinantes de saúde. A abordagem socioambiental, também referida como ‘nova promoção da saúde’, amplia a compreensão de saúde ao enfocar seus determinantes sociais, econômicos, culturais, políticos e ambientais, além dos biológicos6. A concepção comportamental, que também é tratada como uma perspectiva conservadora da promoção da saúde13, sustenta-se na racionalidade médica que estabelece padrões de normalidade e cria mecanismos de responsabilização dos indivíduos quanto à preservação de sua própria saúde, sem considerar os fatores socioeconômicos, culturais e ambientais, os quais constituem os determinantes distais do processo saúde-doença. Sob essa ótica, a responsabilidade pelo desenvolvimento de doenças está diretamente relacionada a atitudes de risco com atribuição unicamente aos indivíduos. O caráter individualista dessa concepção pode resultar em culpabilização daqueles que não se submetem ou não alcançam as determinações ditadas por aqueles que prescrevem o modo correto e saudável de viver13. Além disso, o enfoque sobre o risco traduz uma ressignificação da noção de perigo na perspectiva da ‘domesticação do futuro’22. Ao adotá-lo, instauram-se mecanismos de controle dos indivíduos, que se tornam mais adequados às relações de forças e modos de organização da sociedade contemporânea, uma vez que a abordagem dos riscos quase sempre é transvestida por sutilezas persuasivas e permeáveis, capilarizadas, quase invisíveis22. Nessa perspectiva, os programas analisados explicitam formas de poder sobre a vida, instituindo modos por meio dos quais as pessoas devem viver sem considerar seus anseios ou possibilidades. Revelam-se, portanto, como dispositivos biopolíticos que, centrados nos aspectos comportamentais,

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artigos

estabelecem estratégias direcionadas ao controle da vida em suas várias formas de produção, por meio de atos prescritivos idealizados pelas hegemonias23. Contudo, no processo de criação de normas biopolíticas, admite-se a existência de uma rede de micropoderes que operam, muitas vezes, em polos opostos, tendendo ora à manutenção de uma lógica conservadora, ora instaurando outras perspectivas no campo. Assim, o estudo revelou programas que sinalizam mudanças em diferentes planos de profundidade, com características que possibilitam diferenciá-los como tradicionais, em transição e inovadores. A vertente considerada tradicional foi revelada sobremaneira nos programas que utilizam práticas educativas expositivas fundamentadas em ideais preventivistas, que privilegiam a prescrição de condutas definidas por profissionais de saúde, sem que haja um diálogo crítico com os beneficiários para elucidar suas possibilidades e seus desejos. Nessa perspectiva, a autonomia dos sujeitos, princípio fundamental do ideário da promoção da saúde, não foi revelada nesses programas. Verificou-se a utilização do modelo behaviorista de educação, no qual a figura do profissional de saúde é central para decidir o que deve ser ensinado. Consideramos em processo de transição aqueles programas que, apesar de manterem o enfoque em temáticas tradicionais, inovam ao incorporarem tecnologias mais relacionais que valorizam o compartilhamento de sentimentos e necessidades, por meio de processos de educação dialogada e da utilização de instrumentos para incentivar reflexões, tais como as dinâmicas de grupo, filmes e construções manuais. Nessas práticas os profissionais atuam como facilitadores do processo, instigando as discussões e problematizando as temáticas abordadas, mas oferecem abertura para que os próprios participantes direcionem as discussões conforme seus anseios. Esses programas mantêm o foco em orientações individuais e sugerem a existência do enfoque psicológico do empoderamento24 como uma estratégia que tem como objetivo fortalecer a autoestima, além de desenvolver mecanismos de autoajuda e adaptação ao meio. Esse tipo de empoderamento contribui, no máximo, para produzir uma autonomia regulada, na qual o sentimento de poder cria a ilusão da existência efetiva de poder. No âmbito dos programas que podem ser considerados inovadores, destacam-se os grupos de Yoga, dança, atividade física (OP1 e OP6) e oficina da memória. Nestes, mantém-se a centralidade no indivíduo, contudo, avança-se no reconhecimento de que a interação social, a criação de vínculos e o bem-estar psicoemocional são potentes para a promoção da saúde. As atividades em grupo contribuem para fortalecer a vinculação entre os participantes das práticas e destes com os profissionais, ampliando as relações de confiança23, elemento essencial para uma práxis transformadora no trabalho em saúde. Sabe-se que a complexa proposta de promover saúde envolve atuação nos macrodeterminantes, como coalizões para advocacia e ação política, mas, também, a singularidade das experiências subjetivas dos indivíduos, por meio do encontro com seus pares e da relação consigo mesmos. Ambas as dimensões não são excludentes, mas se complementam na compreensão da totalidade de aspectos que atravessam o campo da promoção da saúde6. Este artigo aprofundou-se em aspectos relativos aos microespaços de promoção da saúde no contexto de operadoras de planos de saúde, e revela a necessidade de continuidade de estudos que permitam explorar questões referentes à macroestrutura política e de regulação pública.

Considerações finais O estudo de natureza qualitativa apresenta limites por não permitir generalizações estatísticas, visto que se trata da análise de uma realidade em particular. Contudo, os resultados de estudo de casos múltiplos permitem a criação e expansão de teorias que poderão ser comparadas e confrontadas com resultados de outros estudos, realizados em cenários diferentes. No presente estudo de casos, conclui-se que a crescente incorporação de estratégias de promoção da saúde no setor de saúde suplementar sugere o interesse das operadoras de investir em mudanças

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na oferta de serviços de saúde. Essa análise pode ser sustentada pela incorporação de novas metodologias de trabalho, as quais são desenvolvidas em outros espaços que ultrapassam os limites dos hospitais. Neste âmbito, alguns programas incluem grupos de beneficiários que, até então, eram percebidos somente quando buscavam assistência médico-hospitalar por demanda espontânea. A inclusão de novas categorias profissionais, além do profissional médico, também sugere mudança e pode contribuir para uma assistência orientada pelos princípios da integralidade. Na análise da profundidade das mudanças provocadas pelas práticas de promoção da saúde, foram identificadas nuances entre os programas que permitiram classificá-los como: tradicionais, em transição e inovadores. As inovações apresentadas por alguns programas dizem respeito, essencialmente, à incorporação de metodologias de trabalho que ultrapassam a transmissão vertical de informações e permitem a interação criativa entre os envolvidos, além da valorização dos aspectos relacionais do cuidado em saúde. As inovações reveladas apresentam potencial para impactar o modelo assistencial hegemônico praticado na saúde suplementar, mas precisam ser ampliadas para não se limitarem aos grupos considerados de risco. Apesar das inovações reveladas, não foram identificadas evidências de transformações no campo conceitual e prático da promoção da saúde, visto que prevalece a abordagem comportamentalista. Essa proposição fundamenta-se na predominância de programas direcionados aos estilos de vida, com objetivo de prevenir agravos considerados onerosos, em detrimento da utilização do trabalho em rede, participação dos beneficiários nos processos decisórios, e intervenções relacionadas aos determinantes sociais. O plano de transformação abrange: a essência do processo das práticas, a adoção de novos paradigmas e abordagem dos determinantes sociais. Neste plano, estão as intervenções que resultam em alterações globais dos conteúdos, dos processos e das relações, caracterizando verdadeiras transformações no campo da promoção da saúde. Assim, as mudanças reveladas são incompatíveis com a abordagem mais moderna e transformadora de promoção da saúde, a qual tem como premissas: o empoderamento, compromisso social, concepção holística, intersetorialidade, equidade e sustentabilidade. Acredita-se que a lógica econômica predominante no setor suplementar de saúde é contraditória ao ideário sociopolítico de promoção da saúde. Essa discussão sinaliza para a necessidade de alinhar os subsetores público e privado para que seja possível alcançar uma política de saúde mais coerente com os preceitos do Sistema Único de Saúde.

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Rodrigues AT, Silva KL, Sena RR

artigos

Colaboradores Andreza Trevenzoli Rodrigues e Kênia Lara Silva trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Roseni Rosangela de Sena participou da discussão dos achados e revisão geral do manuscrito. Referências 1. Menicucci TMG. A reforma sanitária brasileira e as relações entre o público e o privado. In: Santos NR, Amarante PDC, organizadores. Gestão pública e relação público-privado na saúde. Rio de Janeiro: CEBES; 2011. p. 180-97. 2. Andrade ELG, Lana FCF, Cherchiglia ML, Freitas RM, Malta DC, Ferreira LM, et al. Análise dos modelos assistenciais praticados pelas operadoras de planos de saúde em Minas Gerais. In: Pereira RC, Silvestre RM, organizadores. Regulação e modelos assistenciais em saúde suplementar: produção científica da Rede de Centros Colaboradores da ANS – 2006/2008. Brasília (DF): OPAS, OMS; 2009. p. 87-118. 3. Ceccim RB, Ferla AA, Bilibio LF, Armani TB, Schaedler LI, Morais M, et al. Imaginários sobre a perspectiva pública e privada do exercício profissional em saúde e a educação da saúde. In: Pereira RC, Silvestre RM, organizadores. Regulação e modelos assistenciais em saúde suplementar: produção científica da Rede de Centros Colaboradores da ANS – 2006/2008. Brasília (DF): OPAS, OMS; 2009. p. 199-233. 4. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Manual técnico para promoção da saúde e prevenção de riscos e doenças na saúde suplementar. 4a ed. Rio de Janeiro: ANS; 2011. 5. Ministério da Saúde. Agência Nacional de Saúde Suplementar. Programa de qualificação da saúde suplementar: qualificação das operadoras [Internet]. Rio de Janeiro: ANS; 2010 [acesso 2012 Abr 20]. Disponível em: http://www.ans.gov.br/images/ stories/A_ ANS/Transparencia_Institucional/Indicadores_de_qualidade/texto_base_aval_des_ idss_20090811.pdf 6. Silva KL, Sena RR. Poder, autonomia e responsabilização: promoção da saúde em espaços sociais da vida cotidiana. São Paulo: Hucitec; 2010. 7. Neto JLF, Kind L, Barros JS, Azevedo NS, Abrantes TM. Apontamentos sobre promoção da saúde e biopoder. Saude Soc. 2009; 18(3):456-66. 8. Cohn A. Questionando conceitos: o público e o privado na saúde no século XXI. In: Santos NR, Amarante PDC, organizadores. Gestão pública e relação público-privado na saúde. Rio de Janeiro: CEBES; 2011. p. 267-74. 9. Minayo MCS, Souza ER, Constantino P, Santos NC. Métodos, técnicas e relações em triangulação. In: Minayo MCS, Assis SG, Souza ER, organizadores. Avaliação por triangulação de métodos: abordagem de programas sociais. 20a ed. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2005. p. 71-103. 10. Habermas J. Dialética e hermenêutica: para a crítica da hermenêutica de Gadamer. Porto Alegre: LPM; 1987. 11. Yin RK. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4a ed. Porto Alegre: Bookman; 2010. 12. Freitas PSS, Schwartz TD, Ribeiro CDM, Maciel ELN, Lima RCD. A percepção dos usuários sobre a oferta de programas de promoção da saúde e prevenção de doenças: o caso de uma operadora de autogestão. Physis. 2011; 21(2):449-69. 13. Ferreira MS, Castiel LD, Cardoso MHCA. Atividade física na perspectiva da nova promoção da saúde: contradições de um programa institucional. Cienc Saude Colet. 2011; 16(1):865-72.

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14. Frich JC, Malterud K, Fugelli P. Experiences of guilt and shame in patients with familial hypercholesterolemia: a qualitative interview study. Patient Educ Couns. 2007; 69(13):108-13. 15. Stokols D. Translating social ecological theory into guidelines for community health promotion. Am J Health Prom. 1996; 10(4):282-98. 16. Buss PM. Promoção da saúde e qualidade de vida. Cienc Saude Colet. 2000; 5(1):16377. 17. Oliveira SR, Gonçalves AM, Horta NC, Sena RR. Promoção da saúde: concepções de equipes de saúde da família dos municípios de Belo Horizonte e Contagem - MG. Rev APS. 2011; 14(3):283-8. 18. Tesser CD, Garcia AV, Argenta CE, Vendruscolo C. Concepções de promoção da saúde que permeiam o ideário de equipes da estratégia saúde da família da grande Florianópolis. Rev Saude Publica Santa Catarina. 2010; 3(1):42-56. 19. Falcón GCS, Erdmann AL, Backes DS. Meanings of care in health promotion. Rev Latino-am Enferm. 2008; 16(3):419-24. 20. Traverso-Yépez MA. Dilemmas on Health promotion in Brazil: considerations on the national policy. Interface (Botucatu). 2007; 11(22):223-38. 21. Westphal MF. Promoção da saúde e prevenção de doenças. In: Campos GWS, Bonfim JRA, Minayo MCS, Akerman M, Drumond Júnior M, Carvalho YM, organizadores. Tratado de saúde coletiva. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2012. p. 635-67. 22. Castiel LD. Risco e hiperprevenção: o epidemiopoder e a promoção da saúde como prática biopolítica com formato religioso. In: Nogueira RP, organizador. Determinação social da saúde e reforma sanitária. Rio de Janeiro: CEBES; 2010. p. 161-79. 23. Ribeiro CDM, Franco TB, Silva Júnior AG, Lima RCD, Andrade CS, organizadores. Saúde suplementar, biopolítica e promoção da saúde. São Paulo: Hucitec; 2011. 24. Carvalho SR, Gastaldo D. Promoção à saúde e empoderamento: uma reflexão a partir das perspectivas crítico-social pós-estruturalista. Cienc Saude Colet. 2008; 13(2):2029-40.

Rodrigues AT, Silva KL, Sena RR Programas de promoción de la salud en la salud suplementaria en Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil: concepciones y prácticas. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):455-66. El objetivo del estudio fue analizar programas de promoción de la salud desarrollados por operadoras de seguros médicos. Se trata de estudio de casos múltiplos de abordaje cualitativo. Los datos se obtuvieron de entrevistas con cuarenta participantes, entre gestores, profesionales y beneficiarios de seis operadoras de seguros de salud en Belo Horizonte/Minas Gerais, Brasil. Se realizaron observaciones con los participantes de los programas de promoción de la salud. El análisis explicitó que el abordaje comportamental de promoción de la salud es prevalente. Los programas presentan características que permiten diferenciarlos en: tradicionales, en transición e innovadores. Los hallazgos indican cambios en la lógica de producción de la salud, pero con potencial reducido para desencadenar la transformación. Se concluyó que existe la necesidad de apoyo a las operadoras sobre las concepciones y modelos de promoción de la salud para inducir cambios e innovaciones.

Palabras clave: Promoción de la salud. Salud complementaria. Encuesta cualitativa. Recebido em 02/03/14. Aprovado em 01/12/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0120

artigos

Sorodiscordância e prevenção do HIV: percepções de pessoas em relacionamentos estáveis e não estáveis

Amanda Pinheiro Said(a) Eliane Maria Fleury Seidl(b)

Said AP, Seidl EMF. Serodiscordance and prevention of HIV: perceptions of individuals in stable and non-stable relationships. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):467-78.

Policies regarding post-sexual exposure prophylaxis (PEP) and the “treatment as prevention” strategy have strengthened preventive measures against HIV transmission. This study aimed to describe the perceptions of people with HIV/AIDS regarding prevention of sexual transmission of HIV in the context of serodiscordance. Two focus groups were conducted, with 13 HIV-positive participants who were in serodiscordant relationships: one group with people in stable partnerships and the other in non-stable relationships. Just over a third of participants were aware of PEP and “treatment as prevention”. There was a consensus that it is easier to use safe-sex practices in non-stable serodiscordant relationships, it is easier to use safe-sex practices. Some advantages of the new policies were mentioned, despite the concern that condom use might be neglected. The importance of healthcare teams’ actions among serodiscordant couples regarding prevention of sexual transmission of HIV was highlighted.

Políticas referentes à profilaxia pósexposição sexual (PEP sexual) e a estratégia “tratamento como prevenção” reforçaram as ações preventivas da transmissão do HIV. Este estudo objetivou descrever percepções de pessoas com HIV/aids sobre a prevenção da transmissão do HIV no contexto da sorodiscordância. Foram conduzidos dois grupos focais com 13 participantes com relacionamentos sorodiscordantes: um com pessoas em parcerias estáveis e outro em parcerias não estáveis. Pouco mais de um terço dos participantes tinham conhecimento sobre a PEP e o “tratamento como prevenção”. Houve consenso de que há mais facilidade na adoção de práticas sexuais seguras nas parcerias sorodiscordantes não estáveis. Vantagens das novas políticas foram relatadas, não obstante o receio de que possa haver negligência quanto ao uso do preservativo. Destaca-se a relevância da atuação de equipes de saúde com casais sorodiscordantes quanto à prevenção da transmissão sexual do HIV.

Keywords: HIV. Aids. Prevention of sexual transmission of HIV. Serodiscordant couples. Post-sexual exposure prophylaxis against HIV

Palavras-chave: HIV. Aids. Prevenção da transmissão sexual do HIV. Casais sorodiscordantes. Profilaxia pós-exposição sexual do HIV.

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(a,b) Instituto de Psicologia, Universidade de Brasília. Campus Universitário Darcy Ribeiro, Instituto Central de Ciências Sul, prédio Minhocão. Brasília, DF, Brasil. 70910-900. amandapsaid@ gmail.com; seidl@ unb.br

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Introdução Muitos avanços são observados desde a identificação dos primeiros casos da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (aids) no início da década de 1980, mas esta ainda permanece como uma epidemia que representa um problema de saúde pública no Brasil1. Com o advento da terapia antirretroviral (TARV) − que atua sobre a multiplicação do HIV ocasionando a redução da carga viral e, consequentemente, o aumento das células T CD4 e a recuperação do sistema imunológico −, a aids, atualmente, é considerada uma doença crônica que, mesmo sem cura, viabiliza que pessoas vivendo com HIV/aids (PVHA) tenham qualidade de vida satisfatória2-5. A partir de 1996, com a distribuição da TARV pelo Sistema Único de Saúde, foi possível ter acesso ao tratamento como possibilidade de se alcançar uma boa qualidade de vida, de modo que outras questões tiveram lugar, como a constituição de casais sorodiscordantes, ou seja, casais heterossexuais ou homossexuais em que apenas um dos parceiros é soropositivo 6,7. Medidas para prevenir a transmissão sexual do HIV sofreram mudanças ao longo do curso da epidemia. O uso regular e consistente do preservativo masculino − e, posteriormente, também do feminino − foi a primeira medida preconizada, com bons níveis de eficácia e custo relativamente baixo, sendo adotada mundialmente como medida de saúde pública. Mais recentemente, evidências científicas consolidaram outras ações que passaram a ser implementadas: o início da TARV por pessoa HIV positiva, independentemente do número de células T CD4, denominada “tratamento como prevenção”. Com o tratamento, é possível obter um nível mínimo de cópias virais no organismo, situação na qual o vírus fica indetectável, diminuindo significativamente as chances de sua transmissão. Há evidências que apontam a redução da transmissão sexual do HIV da ordem de 96% quando o(a) parceiro(a) soropositivo está em TARV com carga viral indetectável8,9. Outra medida preventiva, também respaldada por evidências científicas, adotada pelo Ministério da Saúde do Brasil desde 2010, refere-se à disponibilização de medicamentos antirretrovirais para parceiro(a)s sexuais soronegativos que passaram por situação de risco: relação sexual sem proteção com pessoa soropositiva. A profilaxia pós-exposição sexual (PEP sexual) é indicada em situações nas quais ocorreu rompimento ou não-uso do preservativo durante relação sexual – recomendada também para casos de violência sexual contra homens ou mulheres, mesmo sem conhecimento da sorologia do agressor. A eficácia da PEP é maior nas primeiras horas pós-exposição, sendo recomendado que os antirretrovirais comecem a ser ingeridos até 72 horas após a situação de risco, e que seu uso tenha continuidade por 28 dias. A disponibilização deste procedimento a toda e qualquer pessoa – e não apenas a vítimas de violência sexual – é uma garantia de proteção a eventualidades ocorridas durante relações sexuais com pessoa soropositiva. Mais recentemente, embora ainda não adotada no Brasil, a terapia pré-exposição sexual (PrEP pre-exposure prophylaxis) vem sendo recomendada, e se refere à disponibilização da TARV antes de possível exposição ao HIV em relação sexual desprotegida10. Estudos10,11 evidenciam ainda maior redução do risco de transmissão do HIV quando utilizadas, concomitantemente, mais de uma estratégia preventiva. Dessa forma, o uso consistente e regular do preservativo ainda é uma prática de grande relevância − complementar às medidas preventivas mais recentes − e que faz parte do cotidiano de PVHA, em especial daquelas que constituem casais sorodiscordantes, ou seja, casais heterossexuais ou homossexuais em que apenas um dos parceiros é soropositivo. A literatura apresenta estudos sobre relações sorodiscordantes, entre casais heterossexuais e homossexuais; no entanto, há mais pesquisas sobre relações estáveis, sendo menos frequentes aquelas sobre relações não estáveis. Theodore et al.12 postulam que um(a) parceiro(a) principal seria aquele(a) com o(a) qual se tem maior envolvimento afetivo, ideia vinculada a uma percepção de relacionamento estável, onde o amor, a confiança e a fidelidade alicerçam o comprometimento do casal. Diferentemente, existem pessoas que possuem parceiros sexuais eventuais, em relacionamentos com durações e comprometimentos variados. Theodore et al.12 apontam aspectos presentes na realidade de casais homossexuais sorodiscordantes, também observados em casais heterossexuais. A utilização

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do preservativo é um destes aspectos, que traz uma ideia de segurança e proteção, mas, ao mesmo tempo, coloca empecilhos e barreiras. Pesquisando homens homossexuais soropositivos, os autores concluíram que, em casais sorodiscordantes, a intimidade pode representar algum risco, na medida em que a não-utilização do preservativo pode significar uma prova de amor. Mitchell13 cita estudos que indicam que a não-utilização do preservativo em relacionamentos de homens que fazem sexo com homens (HSH) é atribuída a sentimentos de confiança, satisfação, segurança, comprometimento e desejo de intimidade. Resultados semelhantes, a respeito de parcerias heterossexuais, foram encontrados por La Croix et al.14 . A ocorrência de sentimentos como culpa, ansiedade e medo de infectar o(a) parceiro(a) são trazidos por Reis e Gir15, ao assinalarem que muitos casais sorodiscordantes estáveis têm, como estratégia para evitar estes sentimentos, a redução da atividade sexual, e, mesmo, a abstinência. A maior incidência da utilização do preservativo apenas no início dos relacionamentos ou em relacionamentos eventuais é apontada por Loiola16. Este dado traz preocupações no sentido de que ainda é atribuído à monogamia um significado protetivo entre os casais, que pode levar à banalização de práticas sexuais seguras. No que diz respeito às relações eventuais, Berquó (citado em Maia et al.17) afirma que as diferenças destas em comparação aos relacionamentos estáveis parte das distintas concepções de relações afetivo-sexuais de homens e mulheres. A sexualidade feminina ainda é vista com limitações, restringindo-se ao aspecto reprodutor, enquanto a masculina é percebida como indisciplinada, sem, no entanto, adquirir um sentido negativo devido a esta característica. A presença dessas concepções na sociedade tem implicações, à medida que a utilização do preservativo passa a restringir-se, muitas vezes, à contracepção, em detrimento de sua função protetora no que tange às doenças sexualmente transmissíveis. Assim, na medida em que o relacionamento é percebido como estruturado e confiável pelo(a)s parceiro(a)s, pode ocorrer a negligência na adoção de práticas sexuais seguras18. Ademais, Oltramari e Camargo19 apontam que ainda perpassa, pelas representações sociais de casais soronegativos, uma ideia de que soropositividade e aids estão relacionadas a pessoas que não estão em relacionamento estável, mas, sim, àquelas que possuem comportamentos de risco com parceiros desconhecidos. Concepções como essas, com uma base moralista e mesmo preconceituosa, ainda permeiam o discurso e as atitudes de muitas pessoas. Nessa perspectiva, questões de gênero também são apontadas, por Maksud2 e por Reis e Gir3,4, como obstáculos à prática do sexo seguro. Esses autores apontam, ainda, a banalização e naturalização da infecção pelo HIV mediante o discurso de homens heterossexuais entrevistados, ao negarem a si mesmos a possibilidade de serem infectados por suas parceiras soropositivas. Em estudo com 216 casais, Jones et al.20 buscaram avaliar a aceitação de estratégias de redução de risco entre casais soroconcordantes e sorodiscordantes, participando de intervenções grupais e individuais. Diferentes alternativas para práticas sexuais seguras foram analisadas, dentre elas o uso de preservativos feminino, masculino e de lubrificante à base de água. Observou-se que a aceitação das práticas seguras tinha relação com o conhecimento sobre a sorologia do(a) parceiro(a): saber sobre essa condição foi um fator importante para que os métodos preventivos fossem adotados. O sigilo acerca do diagnóstico para o(a) parceiro(a) sexual, como tentativa de manutenção da díade, revela que ainda existem crenças disfuncionais e preconceitos associados à condição de viver com HIV/aids. A descoberta da soropositividade durante um relacionamento estável pode apresentar conotações diversas, sobretudo relativas à traição, seja ela afetiva e/ou sexual18. Diante desses desafios, faz-se imprescindível conhecer melhor a realidade de PVHA em relacionamentos sorodiscordantes, acerca de práticas sexuais preventivas, tendo em vista o advento da PEP e do “tratamento como prevenção”, estratégias ainda pouco conhecidas se comparadas ao uso do preservativo, medida consolidada e bem difundida como ação preventiva da transmissão sexual do HIV. O presente estudo teve como objetivo descrever percepções de pessoas com HIV/aids sobre a prevenção da transmissão sexual do HIV no contexto da sorodiscordância, bem como identificar facilidades e dificuldades na realização de práticas sexuais seguras em relacionamentos estáveis e não estáveis. O estudo focalizou tanto as novas medidas preventivas − PEP sexual e uso da TARV como prevenção − quanto o uso de preservativo nas relações sexuais.

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Método O estudo é descritivo, de caráter exploratório, com uso de técnicas qualitativas de coleta e análise de dados. Foi realizado em um serviço de atendimento a pacientes soropositivos de um hospital universitário localizado no Distrito Federal.

Participantes Foram convidadas pessoas soropositivas de ambos os sexos, com diferentes orientações sexuais, que estivessem fazendo acompanhamento em serviços de saúde do Distrito Federal para HIV/aids. Como critérios de inclusão, foram considerados: pessoas que sabiam do seu diagnóstico há pelo menos seis meses e que tivessem parceria sorodiscordante, em relacionamento estável ou não. A seleção dos participantes foi por conveniência. Participaram treze pessoas: quatro do sexo feminino e nove do masculino, cinco delas em relacionamento estável e oito em relacionamento não estável. A idade variou de 24 a 52 anos, com média de quarenta anos. Em relação ao nível de escolaridade, quatro participantes possuíam nível Superior (30,7%), três o Ensino Fundamental incompleto (23%), seis deles possuíam o Ensino Fundamental completo ou Ensino Médio incompleto ou o Ensino Médio completo (15,3% em cada nível). Três participantes mencionaram condição de trabalho fixo com direitos trabalhistas, outros três estavam aposentados, dois recebiam o Benefício de Prestação Continuada (BPC), um estava em emprego fixo sem direitos trabalhistas, e outra pessoa trabalhava como autônoma regularmente. Três pessoas classificaram sua situação ocupacional na categoria “outros”. No que tange à orientação sexual, seis referiram orientação heterossexual, sendo quatro mulheres e dois homens; os demais mencionaram orientação homossexual. O tempo médio de conhecimento do diagnóstico foi de dez anos, sendo o menor tempo sete meses, e o maior 19 anos. Apenas uma pessoa não estava fazendo uso da terapia antirretroviral (TARV): 12 participantes faziam uso, em média, há sete anos, sendo o tempo mínimo quatro meses e o máximo 19 anos.

Instrumento

Foi elaborado um roteiro que norteou a condução de dois grupos focais, com questões que focalizaram: conhecimento acerca da PEP sexual e do tratamento como prevenção; principais dificuldades na vivência sexual de casais sorodiscordantes; facilidades e dificuldades na realização de práticas sexuais seguras em relacionamentos estáveis e não estáveis; serviços de saúde e práticas sexuais seguras. Para a caracterização dos participantes foram obtidos dados sociodemográficos e médico-clínicos antes do início do grupo focal, a partir da resposta a questionário específico autoaplicado que versava sobre: idade, sexo, situação conjugal, escolaridade, orientação sexual e ocupação/profissão, tempo de diagnóstico, uso e tempo de terapia antirretroviral.

Procedimento de coleta de dados

O projeto foi submetido a Comitê de Ética em Pesquisa e, após aprovação, pacientes foram convidados a participar do estudo, sendo que a equipe possuía conhecimento prévio da situação conjugal e da vivência de sorodiscordância, dado o tempo de acompanhamento na instituição e as informações prestadas em contextos diversos de atendimentos da psicologia e/ou do serviço social. Todos os participantes consentiram e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os participantes constituíram dois grupos focais: um com pacientes que mantinham relacionamentos estáveis (RE) e outro com pacientes em relacionamentos não estáveis (RNE). Estar em relacionamento com um parceiro fixo, com presença de componente afetivo-sexual e com duração de no mínimo três meses − tempo considerado em estudos anteriores13 −, foram os critérios utilizados 470

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para caracterizar um relacionamento estável. Para o outro grupo focal, foram convidados aqueles pacientes que não possuíam um parceiro fixo, mas que já tinham passado por, pelo menos, uma experiência afetivo-sexual após a descoberta da soropositividade, com qualquer tempo de duração. Os grupos foram realizados no serviço que desenvolveu a pesquisa, em local adequado para esse tipo de atividade. Os mesmos foram conduzidos pelas autoras do presente estudo. A duração de cada grupo focal foi de, aproximadamente, uma hora e trinta minutos. Os relatos obtidos nos grupos foram gravados em áudio e transcritos posteriormente, com o objetivo de facilitar e garantir a qualidade da análise do conteúdo das falas dos participantes.

Análise de dados

O material gravado foi primeiramente transcrito na íntegra. Procedeu-se, então, a uma leitura flutuante do corpus. As pesquisadoras, de modo independente, analisaram e categorizaram os relatos a partir de seu conteúdo21, visando concordância igual ou superior a 70% para a identificação, nomeação e frequência das categorias.

Resultados

A partir dos roteiros e das transcrições dos conteúdos dos dois grupos focais, foram identificados quatro eixos temáticos: (1) conhecimento sobre as novas medidas preventivas; (2) implicações das novas políticas sobre as práticas preventivas; (3) facilidades e dificuldades na realização de práticas sexuais seguras em relacionamentos estáveis e não estáveis; (4) serviços de saúde e as práticas de sexo seguro. Trechos de falas dos participantes ilustraram os eixos temáticos e as categorias identificadas. A fim de preservar a identidade dos participantes, foram adotados nomes fictícios, mantendo-se os dados acerca das modalidades de relacionamento, a idade e o gênero dos participantes.

Conhecimento sobre as novas medidas preventivas O primeiro eixo temático abordado nos grupos focais foi o conhecimento a respeito das novas políticas de prevenção da infecção sexual pelo HIV e das informações divulgadas pelo Ministério da Saúde (MS): a PEP sexual e tratamento como prevenção (carga viral indetectável e redução de chances de transmissão sexual do HIV). Do total de treze participantes dos dois grupos focais, cinco referiram que conheciam as novas medidas preventivas, quatro informaram que já tinham ouvido falar de alguma destas estratégias, mas não as conheciam bem, e quatro as desconheciam. Dentre os cinco que já conheciam essas medidas, três possuíam relacionamento estável (RE). Os relatos de Luan (47 anos, RNE) e de Rosângela (39 anos, RE), respectivamente, exemplificam o conhecimento sobre o assunto, com destaque para a PEP: “[...] a PEP foi criada pra quando você tem um parceiro sorodiscordante, você sabe que ele é positivo e você é negativo e estoura a camisinha, ou você de repente bebeu demais e transou sem camisinha, aí você vai e pega [...]”. “[...] a questão da PEP é quando há contato, aquela medicação que é após o contato sexual, ela tá sendo ofertada, se você teve o contato sexual e o parceiro não foi preventivo, pode tá tomando a medicação imediatamente. Acho que são até 72 horas”.

As principais fontes de conhecimento mencionadas pelos participantes foram: os próprios serviços de saúde, por meio de explicações de profissionais em contextos de atendimento, de cartazes do Ministério da Saúde sobre a PEP e de atividades coletivas como rodas de conversa. Também referiram informações obtidas em congressos sobre HIV/aids, bem como a difusão do tema na mídia. Em relação a este último aspecto, alguns participantes teceram críticas no sentido de que temiam a forma COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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como estas informações estavam sendo divulgadas, sendo que foi ressaltada a importância de esta divulgação se dar de forma clara e objetiva, de maneira a minimizar a ocorrência de distorções ou malentendidos por parte da sociedade em geral.

Implicações das novas políticas sobre as práticas preventivas

Foram indagadas, aos participantes, as implicações dessas medidas sobre as práticas sexuais preventivas. De forma geral, eles pontuaram aspectos positivos, descrevendo-as como estratégias preventivas importantes, especialmente em casos de estupro ou de abuso sexual. Vários participantes, de ambos os grupos, relataram receio de infectar o(a)s parceiro(a)s, mesmo com a utilização do preservativo. Para alguns deles, a responsabilidade da infecção ocorrer ou não deveria ser compartilhada pelo casal em contextos soroconcordante ou sorodiscordante. Mas observou-se uma percepção dos participantes no sentido de que, muitas vezes, cabe às pessoas soropositivas não apenas solicitar, mas exigir a utilização do preservativo, por exemplo. A responsabilidade e o sentimento de culpa advindos de uma possível falha neste método preventivo também caberiam à pessoa soropositiva, e, neste sentido, a PEP foi vista como uma estratégia vantajosa para a realização de práticas sexuais, como evidenciado na seguinte fala: “Acho que pra quem tem (o HIV) é uma segurança (a PEP), pois você corre o risco de contaminar menos pessoas” (Márcia, 52 anos, RE). O relato de Luan (47 anos, RNE) também exemplifica essa posição: “Pra mim a PEP facilitou demais essa questão do pequeno receio que ainda fica no uso da camisinha, [...] antes me preocupava quando não sabia da PEP, mas depois que a PEP veio, tanto eu quanto o meu parceiro sabem, se estourar, pode se medicar”.

Alguns participantes destacaram, no entanto, eventuais aspectos negativos dessas políticas, tanto a PEP como o “tratamento como prevenção”, especialmente no que diz respeito à possibilidade de banalização de outras práticas preventivas – o não-uso do preservativo – favorecendo a infecção e a reinfecção pelo HIV e outras doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Outra possível consequência adversa dessas medidas seria a diminuição na corresponsabilização do parceiro soronegativo com a prevenção. No grupo estável, quatro dos cinco participantes afirmaram este receio. As falas de Rodrigo (52 anos) e de Mirela (43 anos), ambos do grupo não estável, ilustram estes temores: “Acho que no momento fazer essa divulgação é muito perigosa no Brasil, principalmente na exposição que tá acontecendo entre os jovens”; “O risco aumenta, [...] deixa eles muito tranquilos: ‘dou uma transadinha agora, sem camisinha, sacio a minha vontade e depois eu tenho o coquetel durante um mês e tô livre’”. Alguns participantes manifestaram a opinião de que entre pessoas jovens o risco de banalização é maior, visto que, antes mesmo do advento da PEP e da redução de risco de transmissão quando a CV está indetectável, já havia uma dificuldade, por parte desta população, em utilizar métodos preventivos, tal como verbalizado por Márcia (52 anos, RE): “Tem muitos adolescentes que acham que não tem que se prevenir porque tem tratamento, que a aids não tá matando mais”. Se, por um lado, os benefícios dessas políticas e ações têm sido constatados, por outro, foi apontada a necessidade de que houvesse uma maior conscientização da população acerca desses temas. A mídia foi referida por ambos os grupos como importante fonte de divulgação e difusão de conhecimento, especialmente a televisiva. Disponibilizar informações, notícias e propagandas em rede nacional durante todo o ano, atreladas à distribuição gratuita dos preservativos, seria a parcela de responsabilidade do Estado, enquanto caberia às pessoas se responsabilizarem pela prevenção de forma consistente e ativa. O relato de Rodrigo (52 anos, RNE) ilustra essa posição: “Os programas do MS são veiculados na mídia de uma forma bem expressiva, [...] nós não podemos colocar a culpa que é o governo que não dá informação, [...] usar a camisinha é um dever nosso. O governo distribui, nosso dever é usar”.

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Facilidades e dificuldades na realização de práticas sexuais seguras em relacionamentos estáveis e não estáveis Observou-se que o conhecimento do diagnóstico pelo(a) parceiro(a) soronegativo(a) foi considerado fator facilitador no que se refere às práticas sexuais seguras, embora não tenha havido consenso entre os participantes quanto à necessidade de revelação do diagnóstico nos relacionamentos amorosos-sexuais. No grupo não estável, a maioria dos participantes concordou que, quando o casal passa a viver uma relação estável, deveria haver a revelação, e para Mirela (43 anos, RNE) esta deveria ter, inclusive, caráter obrigatório. Os participantes justificaram esta opinião ressaltando as dificuldades na manutenção de uma rotina de cuidados por parte da pessoa soropositiva, sem que haja conhecimento dessa condição pelo(a) parceiro(a). Este trecho da fala de Rodrigo (52 anos, RNE) exemplifica essa posição: “Muitas vezes você nem faz o tratamento correto porque guarda tantos medicamentos no armário que perde o horário de tomar ou não toma na hora certa. Como esconder de um parceiro estável que tá contigo na cama todo dia, toda noite, que almoça, janta, lancha, passeia, viaja? Não tem como... É muito melhor contar”.

Dois participantes do grupo não estável enfatizaram que existem formas de cuidado e de proteção do(a) companheiro(a) sem necessidade de haver a revelação do diagnóstico. Para ambos, um relacionamento se constitui de muitos outros fatores, além de um diagnóstico, e defenderam que deve ser levado em conta todo um contexto para que haja a revelação. Foi mencionado, também, o direito ao sigilo por parte de pessoas soropositivas – garantia que não precisaria ser violada em prol da proteção do outro. “Acho que isso é uma segregação, eu não sou um vírus. Então é como se eu chegasse numa pessoa, a conhecesse hoje e dissesse: ‘oi, prazer, eu sou ateu’. Qual o contexto que teve pra eu falar isso? Acho que a gente precisa se conhecer mais”. (Kleber, 25 anos, RNE) “Eu discordo de ter que falar pra pessoa, [...] eu não vejo necessidade de falar, [...]. Tem muitas formas de evitar, de preservar e, pra mim, não temos necessidade (de revelar)”. (Guilherme, 24 anos, RNE)

No grupo de pessoas em relacionamentos não estáveis, foi mencionado, como aspecto facilitador para a realização e manutenção de práticas sexuais seguras, o fato de que, ainda sem vínculo ou sentimentos mais fortes, a negociação do preservativo se dava de forma mais fácil e até natural. “Acho que na relação não estável você escolhe seu parceiro, ‘tô a fim de transar’, rolou um clima, o cara ou a moça, [...] ‘ah não quero’, ‘por quê?’, você nem precisa dizer o porquê talvez, [...], se a pessoa insiste (em não usar a camisinha), então vamos só se beijar, beber uma cerveja, depois ir embora. Então você até pode ter uma coisa agradável no final das contas, sem prejudicar ninguém”. (Kleber, 25 anos, RNE)

Para as mulheres, a possibilidade de engravidar em uma relação sexual sem preservativo configurava-se como fator facilitador para o seu uso, sem necessidade de revelação da soropositividade. Em uma relação não estável, esta justificativa pode ser ainda mais forte, pois, à medida que um relacionamento se configura como estável, o uso do preservativo como método contraceptivo pode ser até mesmo indesejado. Esta opinião foi compartilhada por pessoas de ambos os grupos. Os participantes dos grupos consideraram como fator facilitador do uso do preservativo a proteção de si próprios, na medida em que pessoas HIV positivas também estão sujeitas, sem o uso da camisinha, a se reinfectarem pelo HIV e/ou adquirirem outras DSTs. Garantir a autoproteção e manter COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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o autocuidado foi percebido, pelos participantes, como proteção e cuidado do outro também, tal como exemplifica esse trecho. “Primeiro a gente, porque o parceiro pode não ser (HIV), mas ele também pode passar outra coisa que pode prejudicar, por isso temos que pensar primeiro na gente. Se eu tô bem, o parceiro também, porque eu tô me prevenindo, cuidando pra que ele também (esteja bem)”. (Estênio, 42 anos, RE)

Entre as dificuldades mencionadas no grupo de pessoas em relacionamentos não estáveis, merecem destaque: a questão de se fazer ou não a revelação, o uso de bebidas alcoólicas levando à negligência com relação ao uso do preservativo, e a negociação do seu uso em contextos como festas e baladas. Gilberto (43 anos, RNE) afirmou que já houve ocasiões em que se viu sem argumentos para justificar o uso do preservativo − e para não consumar o ato sexual sem proteção e nem revelar sua soropositividade−, optou por interromper o contato imediatamente. No grupo de participantes em estabilidade conjugal, esta modalidade de relacionamento foi destacada ao mesmo tempo como facilidade e dificuldade na manutenção das práticas sexuais seguras. Se, por um lado, seria mais fácil conversar e negociar com um parceiro fixo, de maior intimidade e com conhecimento do diagnóstico, por outro lado, o fator tempo pode contribuir para que o uso do preservativo seja deixado de lado. O contexto da estabilidade seria potencializador, portanto, de sentimentos de confiança e, também, da crença de que o amor e a fidelidade são inabaláveis, podendo contribuir para que ocorra uma descontinuidade nas práticas de sexo seguro. Essa posição pode ser exemplificada pelas seguintes falas: “[...] eu tive um relacionamento por 20 e poucos anos, que fiquei estável mesmo, foi onde me contaminei de tanta estabilidade” (Rodrigo, 52 anos, RNE). “Com o tempo a pessoa não quer mais usar, é uma luta, aí você tem que bater na mesma tecla toda hora, que vai acontecer isso e aquilo, que existem outras doenças, que mesmo que der uma escapada lá, porque tem muitos que tem relacionamento fixo e escapa, [...]. A princípio é mais fácil a pessoa se proteger (em relacionamento estável), mas depois que vai ganhando um pouquinho de confiança na relação não quer (usar preservativo) mais não”. (Márcia, 52 anos, RE)

Esta participante também apontou que idade e o contexto conjugal que o(a) parceiro(a) viveu anteriormente podem ser desafios a serem enfrentados: “Não são só os jovens que não querem se prevenir, os homens acima de 45 anos, eles também não querem usar (preservativo), não foram acostumados. A maioria saiu recentemente de casamento, relacionamento longo e é muito difícil você convencer”. (Márcia, 52 anos, RE)

Um aspecto interessante que surgiu nos relatos dos participantes em relacionamento estável diz respeito à crença de que o contexto da sorodiscordância − em contraste com o da soroconcordância − seria um fator facilitador na manutenção das práticas de sexo seguro. De acordo com os participantes, há uma banalização do uso do preservativo por parte da parceria soroconcordante, pois a infecção pelo HIV, já tendo ocorrido, não mais seria uma preocupação do casal. Além disso, o medo de transmitir o vírus a(o) parceiro(a) soronegativo(a) poderia funcionar como fator motivador para a utilização do preservativo, bem como a adoção de outras práticas preventivas (a PEP sexual em contextos de risco, por exemplo) nas relações sorodiscordantes. Os participantes que conviviam em estabilidade conjugal citaram algumas estratégias para a adoção de práticas sexuais seguras no contexto da sorodiscordância. Foram mencionados, além do preservativo masculino: a camisinha feminina para o sexo com penetração, em relações homo e heterossexuais, bem como para o sexo oral nas mulheres; o uso do lubrificante, garantindo mais conforto e proteção; e, ainda, o uso de alguns objetos e brincadeiras pré-atividade sexual, com intuito de promover mais tranquilidade entre os parceiros. Ao lado dessas práticas, não deixar a rotina se instalar e buscar a manutenção do diálogo entre o casal também foram citados. 474

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Pôde-se perceber, portanto, que foi unânime a opinião de que, nas relações não estáveis, a negociação e utilização de práticas preventivas ocorrem com muito mais facilidade do que nas relações estáveis. Os aspectos que justificaram esta posição de ambos os grupos foram citados anteriormente: o caráter efêmero de relacionamentos não estáveis, sem vínculos e sentimentos como amor, confiança e fidelidade; o fator tempo dos relacionamentos estáveis como dificultador da continuidade das práticas seguras; e a possibilidade de as mulheres usarem o preservativo como método contraceptivo.

Serviços de saúde e as práticas sexuais seguras

Nos dois grupos, os participantes remeteram, a órgãos governamentais e à mídia, a responsabilidade pela divulgação das informações, em especial referentes à PEP sexual e ao tratamento como prevenção. A respeito do papel dos serviços de saúde, foi bastante enfatizada a necessidade de que os profissionais disponibilizassem informações a respeito do HIV e da aids, sobre seu tratamento e cuidados, mas que, também, fossem divulgados conteúdos relacionados aos avanços e às descobertas científicas mais recentes. A PEP sexual e a CV indetectável como fator de redução de risco de transmissão poderiam ser incluídos nestes novos avanços e descobertas. As principais formas sugeridas pelos participantes para que houvesse divulgação das informações seriam: por meio de cartazes afixados nos serviços, no próprio contato com os profissionais nas consultas e atendimentos, bem como por meio da realização de eventos para encontros entre os pacientes, como é o caso de rodas de conversa promovidas pelo serviço onde foi realizada a pesquisa. O estabelecimento de vínculo com o paciente foi outro ponto levantado pelos participantes, uma vez que um tratamento cordial e humanizado disponibilizado pela equipe de saúde faz diferença significativa, desde a recepção até as intervenções multidisciplinares dos profissionais. Um aspecto fundamental citado por um dos participantes do grupo não estável referiu-se à não-existência de preconceito nos serviços, pois, de acordo com os participantes, a soropositividade ainda é percebida como uma condição estigmatizante. Em suma, alguns atributos básicos de uma relação profissionalusuário de qualidade seriam: acolhimento e vínculo, humanização e tratamento sem discriminação.

Discussão Os resultados deste estudo, ainda que exploratório e descritivo, apontam para aspectos positivos acerca das novas estratégias de prevenção da infecção pelo HIV adotadas pelo Ministério da Saúde, mas que, ainda, colocam desafios para sua implementação. Quase dois terços dos participantes possuíam informações insuficientes ou desconheciam a PEP e a associação entre tratamento com TARV, carga viral indetectável e redução de risco de transmissão – resultados que vão ao encontro de estudo22 que pesquisou 828 PVHA e verificou que 48,7% estavam conscientes sobre a PEP sexual, ou seja, cerca da metade não estava devidamente informada ou desconhecia essa estratégia preventiva. Os resultados do presente estudo − ainda que o número de participantes tenha sido pequeno − permitem concluir sobre o desconhecimento dessas medidas preventivas por grande parte de pessoas soropositivas, mostrando a importância de sua divulgação para ampliar, de forma efetiva, o acesso a esses procedimentos diante de sua necessidade. Neste sentido, é pertinente considerar a relevância de intervenções, pelas equipes de saúde, com casais − e não apenas com uma pessoa da díade , pois esta parece mais eficaz14,15 e poderia diminuir a ocorrência de dificuldades, como é o caso de Rosângela (39 anos, RE) que relatou o medo de seu parceiro soronegativo de ter qualquer prática sexual desde a descoberta da soropositividade da esposa. Além de intervir sobre a ansiedade e o medo de infectar e ser infectado, intervenções direcionadas a casais sorodiscordantes podem prover informações e ações educativas sobre as novas estratégias de redução de risco de infecção pelo HIV − como a PEP e o “tratamento como prevenção” − visando reduzir o medo de infecção e ampliar a confiança dos parceiros nos métodos preventivos, favorecendo uma vida sexual ativa e saudável. No que se refere aos papéis dos serviços de saúde, Muessig e Cohen10 destacaram a importância do aconselhamento de casais, da testagem sorológica do COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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parceiro(a) soronegativo(a), e da distribuição gratuita dos preservativos como estratégias eficazes para a diminuição do risco de transmissão do HIV. O direito ao sigilo acerca do diagnóstico foi visto pelos participantes de maneiras distintas: houve a defesa desse direito e a compreensão de que é possível se proteger e proteger o parceiro sem necessidade de revelação do diagnóstico; mas, também, foi defendido, pela maioria das pessoas de ambos os grupos, que, em casos de estabilidade e comprometimento conjugal, haveria necessidade da revelação, como uma exigência embasada em preceitos morais e éticos. No entanto, Maksud 23 aponta que, em muitos casos, a “quebra do sigilo” em casais estáveis restringe-se ao momento estrito da revelação do diagnóstico, não havendo, posteriormente, diálogos sobre questões relativas à soropositividade. Alguns participantes, como Rodrigo (52 anos, RNE), apontaram dificuldades adicionais, como a dificuldade de adesão ao tratamento antirretroviral em contextos de manutenção do segredo sobre o diagnóstico ou em situações onde não há espaço para a comunicação e o diálogo sobre a soropositividade. Em relação às facilidades encontradas na adoção de práticas seguras, o grupo não estável pontuou mais fatores favorecedores dessa prática que o grupo estável: a não-existência de vínculos afetivos consolidados, diminuindo a cobrança por segurança e confiabilidade, ao lado da possibilidade de utilização do preservativo como método anticoncepcional. No grupo em relacionamento estável, a revelação foi citada como fator ambivalente, pois, enquanto favorece o diálogo e a negociação − dado o diagnóstico sabidamente conhecido −, também implica a ocorrência de sentimentos de confiança e fidelidade entre os parceiros, o que fragiliza a adoção de práticas preventivas. No grupo não estável, a questão da revelação também foi citada como possível dificultador. Por um lado, se ocorre a revelação, podem emergir os mitos acerca do HIV/aids, que trazem insegurança às pessoas soropositivas; por outro lado, a não-revelação pode levar o parceiro soropositivo a uma situação na qual o argumento final para justificar a utilização de métodos preventivos seria a própria revelação da soropositividade. A necessidade de revelação, bem como as facilidades e dificuldades encontradas para adoção de práticas sexuais seguras, compuseram o principal quadro de diferenças entre pessoas em contextos de relacionamentos estáveis e não estáveis. Por outro lado, a necessidade de serem transmitidas informações acerca das novas políticas, de forma mais acurada, acessível e permanente, foi mencionada como essencial − e obteve grande consenso entre os participantes −, e que esta seja efetivada pelos serviços de saúde. Os resultados permitem afirmar ainda que,− mesmo diante da ampliação do leque de estratégias preventivas – que podem ter efeitos relevantes na redução da infecção pelo HIV −, o uso consistente e regular da camisinha se mantém como medida de prevenção de alta relevância no controle da epidemia. Assim, garantir, às populações, o amplo acesso a preservativos e ampliar sua aceitação e uso nas relações sexuais ainda constituem políticas centrais no campo da prevenção em HIV/aids.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito.

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18. Oltramari LC, Otto LS. Conjugalidade e aids: um estudo sobre infecção entre casais. Psicol Soc. 2006; 18(3):55-61. 19. Oltramari LC, Camargo BV. Aids, relações conjugais e confiança: um estudo sobre representações sociais. Psicol Estud. 2010; 15(2):275-83. 20. Jones D, Kashy D, Villar-Loubet O, Weiss S. Enhancing acceptability and use of sexual barrier products among HIV concordant and discordant couples. AIDS Behav. 2013; 17(6):2185-93. 21. Bardin L. Análise de conteúdo. 6a ed. Lisboa: Edições 70; 2002. 22. Joshi M, Basra A, McCormick C, Webb H, Paklanathan M. Post-exposure prophylaxis after sexual exposure (PEPSE) awareness in an HIV-positive cohort. Int J STD AIDS. 2014; 25(1):67-9. 23. Maksud I. Silêncios e segredos: aspectos (não falados) da conjugalidade face à sorodiscordância para o HIV/aids. Cad Saude Publica. 2012; 28(6):1196-2004.

Said AP, Seidl EMF. “Suero discordancia” y prevención del VIH: percepciones de personas en relaciones estables y no estables. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):467-78. Políticas referentes a la profilaxis post-exposición sexual (PEP sexual) y la estrategia de “tratamiento como prevención” reforzaron las acciones preventivas de la transmisión del VIH. El objetivo del estudio fue describir percepciones de personas con VIH/sida sobre la prevención de la transmisión del VIH en el contexto de la “suero discordancia”. Se realizaron dos grupos focales con 13 participantes con relaciones “suero discordantes”: uno con personas en relación estable y otro en relación no estable. Poco más de un tercio de los participantes tenía conocimiento sobre la PEP y el “tratamiento como prevención”. Hubo consenso de que hay más facilidad en la adopción de prácticas sexuales seguras en las relaciones “suero discordantes” no estables. Se relataron las ventajas de las nuevas políticas, a pesar del recelo de que pueda haber negligencia en lo que se refiere al uso del preservativo. Se destaca la relevancia de la actuación de equipos de salud con parejas “suero discordantes” a la prevención de la transmisión sexual del VIH.

Palabras clave: VIH. Sida. Prevención de la transmisión sexual del VIH. Parejas “suero discordantes”. Profilaxis post-exposición sexual del VIH. Recebido em 06/03/14. Aprovado em 01/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0194

artigos

O adoecimento mental: percepções sobre a identidade da pessoa que sofre

Yanna Cristina Moraes Lira Nascimento(a) Mercia Zeviani Brêda(b) Maria Cicera dos Santos de Albuquerque(c)

Nascimento YCML, Brêda MZ, Albuquerque MCS. Mental illness: perceptions regarding sufferers’ identities. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):479-90.

The perceptions that women followed up at psychosocial care centers have about themselves, other people and society, in view of their mental illness, were addressed. The influence that this service had on their identities was examined. This was a qualitative, descriptive study using topical life histories. Data were gathered through interviews, direct observation and a field diary. Thematic analysis was interpreted using Goffman’s framework. The results revealed that these women’s perceptions of identity differed from before to after their mental illness. They perceived that their families were distant from them, with difficulty in dealing with the illness; that professionals were welcoming; and that psychosocial centers contributed towards reconstruction and expression of identities, thereby promoting self-knowledge, guidance and emotional support. However, they saw that the service lacked refinement of actions for ensuring rights and investment in new aid strategies with the capacity to defend possible identities that are flexible and adaptable.

Keywords: Personal identity. Mental health services. Mentally ill individuals. Psychological stress.

Trata-se das percepções que mulheres acompanhadas em Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) têm sobre si, sobre o outro e sobre a sociedade diante do adoecimento mental; analisam-se influências que este serviço exerce sobre suas identidades. Estudo qualitativo, descritivo; utilizou-se história de vida tópica. Coleta de dados com entrevista, observação direta, diário de campo. Análise temática interpretada pelo referencial de Goffman. Resultados revelam que as mulheres apresentam percepções diferentes da identidade antes e após o adoecimento mental; que percebem a família distante com dificuldades em lidar com o adoecimento; que observam profissionais acolhedores e um CAPS que contribui para a reconstrução e expressão de identidades e que promove autoconhecimento, orientação e apoio emocional. Entretanto, percebem que o serviço carece de refinamento das ações para garantia de direitos e investimento em novas estratégias de ajuda capazes de defender identidades possíveis, flexíveis e adaptáveis.

Palavras-chave: Identidade própria. Serviços de Saúde Mental. Pessoas mentalmente doentes. Estresse psicológico.

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(a,b,c) Escola de Enfermagem e Farmácia, Universidade Federal de Alagoas. Campus A.C. Simões, Av. Lourival Melo Mota, s/n, Tabuleiro dos Martins. Maceió, AL, Brasil. 57072-900. yanna_cristina@ hotmail.com; merciazb@gmail.com; cicera.albuquerque@ hotmail.com

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Introdução O presente estudo busca compreender como a identidade de mulheres, em processo de adoecimento psíquico e acompanhadas em serviços de saúde mental, é (re)construída e revelada por meio de suas percepções sobre si, sobre o outro e sobre a sociedade. Dá-se o nome de Identidade ao conjunto de traços, imagens e sentimentos que uma pessoa reconhece como fazendo parte de si mesma1. A descoberta de sua identidade depende dela própria e das negociações que faz com os outros, ocorridas em dado momento e determinado contexto2,3. É metamorfose e se constitui historicamente, uma vez que o ser humano se (re)constrói constantemente no decorrer de sua vida, sendo, ao mesmo tempo, ator e autor de sua história, um ser de possibilidades4. Assim, apesar de essa construção da identidade ocorrer, na contemporaneidade, em grandes arenas de insegurança que se entrecruzam – nas quais a vida está atrelada à dinâmica de uma economia capitalista globalizada e interligada a um ambiente de risco institucionalizado e permanente –, viver e sobreviver nessa conjuntura possibilita que seja mutável, flexível e adaptável5,6. Para melhor entendimento, Goffman a conceitua em suas três dimensões: social, pessoal e do eu. A identidade social é aquela definida por pessoas que não conhecem a pessoa em questão, e o que sabem a seu respeito é o que escutaram, ou o que foi permitido socialmente conhecer pela observação do contexto que frequentam, ou dos ancestrais que possuíram, ou por informações de terceiros. A identidade pessoal, por sua vez, é formada com base no que se constrói a respeito das pessoas, por meio das suas histórias de vida. Quanto à identidade do eu, é permitida à própria pessoa construí-la; trata-se de uma identidade mais íntima, assemelha-se à essência do indivíduo, como ele mesmo se identifica7. Nesse sentido, apreender as percepções que as mulheres objeto desta pesquisa têm sobre si, sobre o outro e a sociedade em que vivem, evidencia como suas identidades são (re)construídas e reveladas nos novos dispositivos de saúde denominados Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), em que a atenção em saúde se pauta na valorização das singularidades, inclusão social e superação dos estigmas. Para tanto, estabeleceu-se alcançar os seguintes objetivos: 1 Apreender as percepções que mulheres acompanhadas em Centro de Atenção Psicossocial têm sobre si, sobre o outro e sobre a sociedade diante do adoecimento mental, e 2 Analisar as influências que o acompanhamento oferecido por esse órgão exerce sobre suas identidades. Este estudo favorece a reflexão acerca da influência do adoecimento mental sobre a identidade, anteriormente deteriorada nos manicômios, e solicita a retomada de discussões sobre o propósito dos novos serviços de saúde mental.

Método Pesquisa qualitativa e descritiva considerando a natureza, complexidade e necessidade de aprofundamento do objeto de estudo. Optou-se pelo método da pesquisa social porque possibilita a compreensão da simultaneidade das diferentes culturas e tempos num mesmo contexto de realidade social, que considera o ser humano em sociedade, nas suas relações e produção simbólica8. Para investigar o sentido da experiência humana, utilizou-se, como técnica de pesquisa, a história oral de vida, privilegiando a história de vida tópica que considera determinada etapa, segmento ou setor da vida pessoal do sujeito como protagonista da vida social e da sua subjetivação8. O estudo foi realizado em CAPS tipo II, numa capital da Região Nordeste que atende pessoas com transtornos mentais severos, com a participação de quatro mulheres com idade entre quarenta e 51 anos, que estavam sendo acompanhadas nessa unidade de tratamento psicossocial. Para a seleção dos sujeitos, inicialmente, agendou-se a ida ao serviço, onde foi apresentada a proposta do estudo aos profissionais e usuárias. Em seguida, foram agendadas entrevistas com aquelas que concordaram em participar. Foram incluídas mulheres que, clinicamente, no momento do contato inicial e da entrevista, não apresentavam alterações cognitivas de pensamento, senso-percepção, memória e comunicação. 480

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As informações foram produzidas durante três meses a partir da triangulação da entrevista em profundidade, realizada individualmente, registrada com câmera digital, como, também, da observação direta e das anotações em diário de campo. A entrevista foi aberta e em profundidade, auxiliada por um roteiro invisível, que orientou o rumo das falas. As mulheres expressaram-se livremente e para tal foi proporcionado um ambiente de entrevista favorável as suas diversas emoções. As questões éticas foram consideradas e observadas, sendo o projeto aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Alagoas. Todas as entrevistadas assinaram os Termos de Consentimento Livre e Esclarecido para, então, se iniciarem as entrevistas. O material produzido foi tratado pela análise temática8,9, por meio das informações da observação direta e do diário de campo como complemento da análise. Para a operacionalização da análise, a gravação foi ouvida várias vezes, seguida da edição integral de todas as entrevistas, incluindo hesitações, risos, choros, silêncios e estímulos do entrevistador, deixando, na margem da folha da transcrição, espaço para anotações. Em seguida, realizou-se leitura flutuante com exploração do material, codificando-o a partir da transformação dos dados brutos dos textos recortados, agregados e enumerados em unidades de registro que permitiram a compreensão do conteúdo. As unidades de registros foram organizadas em um quadro, respeitando a sequência das informações guiadas pelos objetivos, facilitando, assim, a operação classificatória das categorias9. Para análise destas categorias, foram utilizados o referencial teórico de Erving Goffman7,10 e autores que abordam a reabilitação psicossocial.

Resultados A realização desta pesquisa, por meio do mergulho na história das mulheres pesquisadas, favoreceu compreender diferentes formas de construção de suas identidades, e modos de ser e de interagir com o mundo a partir do adoecimento psíquico. As histórias de vida a partir dessa experiência revelaram cinco categorias temáticas:

Percepção da minha identidade: antes do adoecimento Ainda em tenra idade, as mulheres entrevistadas já apresentavam sofrimento acentuado; fazia parte de suas vidas o medo intenso decorrente de experiências traumáticas, em que a possibilidade de um futuro adoecimento mental se configurava, sem que fosse reconhecida por seus cuidadores. “[...] Tudo começou quando eu tinha uns 12 anos e vi uma mulher se jogar debaixo de um trem, aquilo foi um impacto, naquela época eu ainda tinha meus pais, mas ninguém se incomodou comigo, não procuraram tratamento e eu fiquei com aquele medo de trem”. (E4)

Vida de violência doméstica e conjugal, humilhações, medo e perdas de pessoas, de emprego, de independência financeira, de valores autonômicos, de dignidade, de privacidade e de respeito – fatores que exigiam adaptações às adversidades. “[...] Meu filho foi preso. Assassinado... Quando ele estava no presídio era aquela humilhação, tristeza e angústia; primeiro dava o nome, depois tudo que você levava era mexido para ver se tinha alguma coisa, depois tinha que tirar a roupa, isso tudo doía”. (E3) “[...] Meu marido bebia muito, amarrava meus filhos, batia muito em mim e neles com corrente de bicicleta, quebrava cabo de vassoura em mim, me acordava com água gelada, botava para correr por baixo de faca e tudo isso suportava porque não tinha para onde ir, não tinha a quem recorrer”. (E4)

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Assim, a experiência de sofrimento mental antecede o diagnóstico psiquiátrico e a procura por serviços, sofrimento este que delineou a construção das identidades das mulheres.

Percepção da minha identidade: após o adoecimento O processo de adoecimento traz sérias implicações para a identidade, tais como: baixa autoestima, perda de habilidades laborativas e de mobilidade, capazes de gerar sentimentos de incapacidade para o trabalho e autocensura que ratificam estigmas. “[...] Não tenho mais paciência de trabalhar, já trabalhei muito, mas hoje não consigo nem pegar ônibus direito, tem dia que estou bem, tem outros que não. Quando eu era nova a firma ainda me empregava, mas agora quem vai me querer com os meus problemas? Querem não”. (E1) “[...] É como se tivesse tudo acabado, eu não tenho mais vontade de trabalhar, não tenho paciência. Eu estava vendendo fruta antes de vir para cá, mas comecei a perder dinheiro, não sabia passar troco (começou a chorar)”. (E4)

Das quatro entrevistadas, uma trabalhava e as outras três dependiam de benefício financeiro do governo. E uma destas três revela: “[...] Não gostei de ser aposentada; esse dinheiro eu ajoelho e agradeço, mas não sei nem gastar, não suei para conseguir. É um dinheiro que vem do governo, mas não é bem vindo, eu gasto, mas gasto travada, porque eu não trabalhei para ganhar”. (E2)

A condição de beneficiária gera conflito com sua concepção de trabalhadora e mérito para recebimento da aposentadoria. Viver o adoecimento mental pode levar a mulher: a valorizar mais as coisas simples e as pessoas queridas, a acessar a sua força, a reconhecer o seu limite e a ressignificar as situações ocorridas em sua vida. “[...] Aprendi a valorizar mais as coisas, as pessoas, a minha mãe... Eu hoje me sinto uma pessoa mais responsável. [...] Eu descobri que não sou tão fraca como pensava, nem tão forte [...]. Eu aprendi que das coisas ruins a gente deve espremer e tirar alguma coisa boa, a vida não é fácil para ninguém”. (E3)

A percepção de si, após o adoecimento, pode levar a construção da sua identidade a dois caminhos: como perda de capacidades ou como ressignificação da vida. Resumindo, as percepções sobre si tanto influenciam como são influenciadas pela percepção que o outro possui sobre sua identidade.

Percepção do outro sobre minha identidade: como o outro me vê após o adoecimento? Para as entrevistadas, as outras pessoas confundem a pessoa em seu sofrimento mental com o estigma da loucura; associam todo seu funcionamento cotidiano ao estado permanente da enfermidade. E o medicamento é sugerido como controlador de comportamentos considerados indesejáveis. “[...] Eu não podia fazer nada que diziam: - É a louca! E isso me irrita. Outra vez disseram: - Já tomou seu remédio hoje? Isso até hoje magoa, mas eu aprendi a lidar”. (E3)

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O estigma permeia as relações quando a identificam por meio da informação socialmente relacionada ao serviço que frequenta. “[...] Outro dia disseram: - Ela vem do CAPS, ela vem dos doidos. E eu disse: - Dos doidos não! Venho dos meus amigos, não são doidos, são pessoas iguais a vocês. - Ah mulher, tu é doida mesmo! [...] Eu tiro por mim mesma, se eu fizer uma brincadeira, justificam logo: essa peste é doida!”. (E3)

A frase “ela vem dos doidos” reflete identidades sociais já construídas e cristalizadas. Entretanto, o fato de nem sempre as pessoas perceberem quem possui o transtorno mental, a menos que estejam em crise ou tragam algumas informações sobre seu tratamento, muitas vezes, as protegem de internalizar, acessar ou sentir o preconceito. Assim, a doença tem a possibilidade de ser socialmente invisível em diversas situações, o que pode ser positivo para a não-disseminação do estigma e da instalação da discriminação. Quando o estigma é sentido... “[...] Até agora minha filha nunca me chama para uma festinha que vai com o marido e as filhas, eu sinto que ela tem vergonha de mim. Ela acha que eu não me comporto bem nos cantos, mas eu me comporto direitinho”. (E1)

Essa experiência revela quanto os familiares estão também permeados pelo preconceito, e como isto pode contribuir para o distanciamento no que se refere ao convívio social em comum, quando o ente apresenta quadro de transtorno psíquico. Por outro lado, a maneira como percebem o outro resultará na mesma maneira como serão percebidas; se disponibilizam afeto implica recebê-lo de volta também. “[...] Se o vejo com respeito, também sou respeitada; se amo, também sou amada”. (E2)

Há o entendimento de que a relação com outra pessoa dependerá da forma como se comportam e expressam sentimentos ao outro.

Percepção da identidade do outro: como os vejo? Tal percepção dependerá das pessoas que estarão sendo submetidas às suas observações: se sofre mentalmente, se não sofre mentalmente, se é da família de quem sofre ou dos profissionais que cuidam. Em relação à identidade das pessoas que sofrem mentalmente e frequentam o CAPS, a percepção é de que esses serviços são importantes fontes de apoio e suporte emocional. Está presente a compreensão de que todo ser humano é passível de adoecer e pessoas com problemas semelhantes podem ser exemplos de superação e motivação, mesmo as mais debilitadas possuem potencialidades a serem acessadas. “[...] Vendo pessoas que tinham os mesmos problemas que eu. Fui melhorando”. (E2) “[...] Sinto-me melhor com pessoas com transtorno, porque me entendem”. (E1) Ao mesmo tempo em que se sentem seguras e compreendidas no serviço que frequentam, uma delas identifica a dependência com o serviço, “[...] Eu os percebo super dependentes daqui [CAPS]. Acho que tem gente que tem medo de sair daqui, porque se sentem mais confortáveis em poder conversar um com o outro. Eles têm

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o acolhimento, a conversa que não têm em casa. Aqui se abrem mais, brincam, mostram o que são. Porque se forem desabafar em casa e chorar, a família vai achar que tá em crise e logo interna. Não pode fazer uma coisa que é crise, se chorar é crise, se rir é crise”. (E3)

Assim, embora não seja a proposta do CAPS, nele se constituem relações de dependência que solicitam análise, ainda que possibilite expressões mais livres de quem o frequenta em busca de cuidados em seu adoecimento. É o caso desta entrevistada que relata sentir-se aceita, acolhida e compreendida pelos profissionais: “[...] Eu acho os profissionais daqui muito carinhosos, pelo menos comigo e com todos é aquela preocupação”. (E4)

Quando se trata da família, os depoimentos das mulheres revelam distanciamento das suas necessidades de atenção. Segundo estas, as famílias não entendem o sofrimento psíquico, não interagem com os profissionais do serviço e não frequentam as reuniões em que as orientam a lidar com um familiar adoecido. “[...] O CAPS se esforça, mas é justamente isso que falta: a família interagir. Quando entrei aqui trouxe meu irmão como responsável, mas ele nunca veio para uma reunião de família. [...] Marido, pai, mãe, filho, irmão tem que comparecer mais. Uma vez eu peguei um ônibus e a pessoa disse: - Deixe-a sentar que ela tem problema mental! Precisa dizer? Alguém perguntou?”. (E3)

Para as entrevistadas, isso ocorre porque as pessoas que não possuem o transtorno mental são preconceituosas, têm medo, preferem não procurar atenção em saúde mental para não enfrentarem o estigma social ou o autoestigma. “[...] Acho-as preconceituosas, têm medo. Estou cercada de pessoas problemáticas que não procuram o tratamento! Então, as vejo com medo de sofrer preconceito, porque acham que se procurarem tratamento as pessoas vão dizer que é ‘louca’”. (E3)

Assim, o que se percebe no outro, seja familiar, amigo ou profissional do CAPS, é a confirmação de uma identidade permeada de estigmas.

A identidade construída no CAPS: quais influências sobre mim? Além das influências citadas, estar no CAPS, para elas, é sentir-se livre para expressar suas identidades, aquele sendo local de autoconhecimento, aprendizado e apoio emocional. “[...] Aqui [no CAPS] eu me sinto forte. Porque se eu não tivesse esse apoio psicológico e físico aqui, eu não saberia controlar as situações que passo lá fora”. (E3)

Contudo, considerando as informações sobre seus diagnósticos, o serviço não tem promovido esclarecimentos desejados, comprometendo o direito de ser claramente informado. “[...] Recebi esta aposentadoria com a história do código F20, mas nunca me disseram se era uma depressão, uma esquizofrenia...”. (E2)

No que diz respeito ao atendimento grupal, as entrevistadas relatam liberdade de participar ou não, contudo, queixam-se de ser exclusivo.

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“[...] Não te obrigam e obrigam ao mesmo tempo a participar, porque se você sai e só tem aquela opção, você não vai ficar sozinha”. (E2)

Uma questão trazida é a dificuldade de manutenção dos vínculos construídos entre usuários, pela mobilidade dos participantes dos grupos, gerando silêncios desfavoráveis ao processo de recuperação. “[...] Hoje eu converso menos, porque não dava para ficar falando de minha vida para pessoas que eu nunca vi. Formavam o grupo e sempre tinham pessoas diferentes. Porque ao sair na rua, um que tinha recebido alta, perguntava: - E aquele problema? Aí pensei acho que estou contando minha vida demais. Então aprendi a falar menos, e não contar tudo que passa em casa”. (E2)

Outra situação é a ausência de salas de descanso, ambiente adequado e climatizado, sem o necessário conforto e privacidade. “[...] Uma coisa que estranhei aqui foi não ter o dormitório... quando se quer dormir, dorme-se no banco”. (E2)

A situação se agrava quando há falta de medicamentos, de lanche, atrasos no horário da refeição e deslocamento dos recursos. “[...] Ontem mesmo passei mal porque estava faltando remédio”. (E1) “[...] Eles dão lanche na medida do possível. Eu vejo o pessoal reclamando que é um lanchinho fraco, que poderia ser melhor. Eu almoçava aqui antes e a comida era boa, mas, eu não gostava do horário, às vezes atrasava muito”. (E2) “[...] O Ministério Público deu um prazo, mas os gestores não fizeram nada. Eu gostaria que fosse uma gestão mais transparente, que dissesse qual a verba que vai para o CAPS, quanto é destinado para a alimentação; porque material de Terapia Ocupacional tem lá na Secretaria, mas nunca chega ao CAPS [...]”. (E3)

Analisa-se que o acompanhamento do CAPS tem influenciado positivamente a construção e reconstrução da identidade das mulheres entrevistadas. Tem possibilitado o convívio, a troca, a livre expressão, o carinho e a atenção, ainda que careça de refinamento das ações, contudo segue na direção da garantia de direitos.

Discussão Apreendeu-se, nesta pesquisa, a construção da identidade da pessoa em seu adoecimento mental a partir da percepção que as mulheres entrevistadas têm sobre si, sobre o outro e sobre a sociedade, antes e após o adoecimento, no campo familiar e no CAPS. A identidade percebida antes do adoecimento foi oriunda de trajetórias de vida marcadas por sofrimentos que antecederam ao tratamento, e a violência doméstica foi fortemente evidenciada nas biografias das participantes. Violência que altera a construção da identidade, em que, muitas vezes, a manutenção de um relacionamento se dá por medo, por dependência financeira ou insegurança diante das ameaças feitas pelo parceiro, levando a vítima a suprimir suas vontades e desejos, ferindo sua identidade, violando seu modo de ser e existir11,12. Nessas situações, inicia-se o processo de “mortificação do eu”, de forma semelhante à que foi descrita por Goffman10. A violência doméstica produz sequelas nocivas ao desenvolvimento do eu. É comum mulheres, nessa situação, usarem, abusivamente, medicamentos, apresentarem pensamentos suicidas, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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depressão, insônia, pesadelos, ansiedade, dificuldade de tomar decisões; além de as crianças expostas apresentarem maior probabilidade de se tornarem vítimas de maus-tratos, quando comparadas a crianças cujas famílias não vivenciam esse fenômeno, o que as torna mais suscetíveis a adoecimentos13. “Sofrer algum tipo de violência, seja em um evento único ou de modo contínuo e duradouro, passa a ser parte da experiência de vida dos sujeitos vitimizados [...] e isto tem implicações que repercutem na construção de identidade”14 (p. 518). Tais achados convergem para o fato de o transtorno mental guardar profunda relação com uma trajetória de vida desumana, em que diferentes perdas, como de pessoas ou valores significativos, têm contribuído na construção da percepção das mulheres sobre si: estigmatizadas conforme compreende Goffman, sentindo-se incapazes para o trabalho7. O estigma para Goffman é um conjunto de atitudes negativas, crenças, pensamentos e comportamentos que influencia a pessoa ou o público em geral ao medo, a rejeição e a discriminação7. Ele se manifesta na linguagem, no desrespeito nas relações interpessoais e nos comportamentos15,16. Ainda sobre a percepção estigmatizada, as participantes revelam perdas de habilidades afetivas, como o baixo nível de tolerância e de motivação, que dificultam o reconhecimento da capacidade produtiva. Notou-se, também, o desconforto de uma das participantes em receber um benefício, disponibilizado pelo governo federal, por possuir um diagnóstico de transtorno mental. Para a participante, receber “dinheiro” sem que houvesse esforço para consegui-lo a faz adquirir a identidade de alguém a quem só restou uma única opção para ter acesso a alguns recursos, a de assumir um novo status: o de doente mental. Por outro lado, algumas delas percebem que reinterpretar situações de elevado estresse favorece o surgimento de novas formas de lidar com o adoecimento, tornando-as mais resilientes. Resiliência que possibilita enfrentar os riscos das exigências cotidianas, capacidade humana de fazer frente às adversidades da vida, transformando-as e criando novas alternativas vitais17,18. A pessoa estigmatizada, na perspectiva de Goffman, pode identificar as privações que sofreu como uma bênção, especialmente devido à crença de que o sofrimento muito pode ensinar10. Em relação a como as pessoas as percebem, o grupo estudado compreendeu que a sociedade tem uma percepção errônea sobre o transtorno mental; que as julgam incapazes de dizer a verdade, perigosas, estranhas ou espertas demais por fazerem valer seus direitos em diversas situações. Acreditam que são desvalorizadas porque “tomam remédio controlado”. O “remédio” passa a ser um signo que transmite informação social, cujo significado varia de um grupo para outro7. A medicação pode ter diferentes conotações de acordo com a situação em que é usada. No caso de pessoas em atendimento psicossocial, que a consomem diariamente, é dado um significado estigmatizado, em contraponto àqueles que fazem uso esporadicamente para alivio de estresse, perdas, entre outros. O estigma, segundo Goffman, oculta uma dupla perspectiva: quando a característica distintiva do estigmatizado já é conhecida, assume a condição de desacreditado; quando não é conhecida, assume a condição do desacreditável7. Nesse aspecto, quando as participantes do estudo não escondem seu status de pessoa que sofre mentalmente, tornam-se desacreditadas. A partir de então, passam a não ter tanta credibilidade, sobretudo quando dão informação, reivindicam algo ou expressam o que sentem. Por possuírem características diferentes das esperadas, são tolhidas de revelar suas outras características7,15. Assim, a palavra “doido” aparece nas falas carregada de descrédito. Em relação à percepção das participantes frente às outras pessoas, referem sentirem-se melhores com as pessoas que possuem transtorno, o que parece estar relacionado à liberdade de poderem expressar e ser o que realmente são, uma consequência da escolha da companhia de quem tem estigmas semelhantes7. Os alinhamentos intragrupais ou a tendência a se estratificarem com os seus pares, parece dar-lhes mais segurança e compreensão. Entretanto, o fato de se sentirem melhores com os pares e permanecerem no dispositivo CAPS como proteção às adversidades da vida, reforça relações de dependência com o serviço. Para reabilitar, a proteção inicial faz-se necessária, mas, em seguida, essas pessoas deveriam ser inseridas na rede

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social e no mercado de trabalho. Um caminho possível é fortalecer a capacidade de lidar consigo mesma, com o outro e suas escolhas, favorecendo um viver em sociedade em que a troca afetiva, relacional, material, habitacional e/ou produtiva esteja presente19,20. Observou-se que o sentir-se segura relaciona-se à construção de vínculos entre usuárias e profissionais, sobretudo quando estes se mostram afetuosos, dispostos a adotar e compartilhar a compreensão de que a pessoa que sofre psiquicamente é humana, o que possibilita a construção da relação de confiança que fornece apoio e conforto7,15. Em relação às famílias, a percepção é de que há despreparo do familiar para ser protagonista da reabilitação social das pessoas em sofrimento mental. Estudos reforçam que a família precisa receber orientações e suporte para melhor elaborar seus sentimentos, reorganizar e reordenar seus papéis diante da realidade do transtorno mental21. O fato de o familiar tornar público que está acompanhado de uma pessoa com transtorno mental, sem intenção de prejudicá-la e com o intuito de proteger, promove e reforça estigmas sociais que colaboram para a construção de uma identidade social virtual de uma pessoa diferente e que pode ser perigosa, sendo responsável por resgatar sentimentos de medo, piedade ou de repugnância da população para com o estigmatizado20. Nem sempre o estigma será evidente, e, em algumas ocasiões, será necessário optar por ocultar informações, para não cair em descrédito7. O estigma afeta, também, pessoas que nunca receberam diagnóstico de doença mental, pois dois terços de indivíduos em sofrimento mental que poderiam se beneficiar dos serviços psiquiátricos não optam por acessá-los, para não adquirirem rótulos que os identifiquem como diferentes, como loucos22. É interessante citar que os que evitam ser rotulados são aqueles conscientes do estereótipo. Estes até concordam com os preconceitos que eles carregam. No entanto, são fortemente inclinados a não aplicar estigmas a si mesmos e tentam evitar a participação em qualquer grupo que poderia darlhes tal rótulo. Quanto às influências do CAPS sobre a identidade, percebeu-se que este serviço oferece condições para que os usuários se manifestem sem estarem expostos ao julgamento. No entanto, certas decisões ou mudanças ainda ocorrem no CAPS sem o envolvimento, esclarecimento, opinião ou concordância dos mesmos. O acompanhamento em dispositivos como os CAPS, por si só, não garante a concepção de uma clínica antimanicomial, semeadora de processos de inclusão social. Para que isto ocorra, é crucial investir na atitude ética e comprometida dos profissionais da saúde frente às suas práticas23. É necessária a compreensão do modelo psicossocial de atenção, que leva em consideração os direitos dos sujeitos, formas de organização das relações dentro e fora do serviço, em que se preservam relações horizontais de poder, relacionamento e compromisso ético com os usuários e a população23. Desse modo e considerando-se o contexto sócio-histórico-psíquico-biológico e cultural em que tais processos ocorrem, haverá uma contribuição com o processo de inclusão social das mulheres entrevistadas destacadas pelos estereótipos como diferentes. Nesse sentido, no contexto em que esta investigação se realizou, torna-se claro que o modelo psicossocial encontra-se em momento de transição, e que há melhorias que o serviço CAPS precisa alcançar. Há insuficiente disponibilização de investimentos nos serviços oferecidos por essa unidade de tratamento psicossocial, visíveis pela falta de medicamentos, ambiente precário que não preza pela privacidade ou conforto, carência de profissionais de referência e realização de atividades que respondam às necessidades singulares e subjetivas dos usuários. Assim, nesse espaço de atenção em saúde, tais identidades sofrem os efeitos dos estigmas, socialmente reforçados pela desinformação, rejeição de familiares, incapacidade produtiva, ambiente desfavorável do serviço, que os achados de Goffman retratam, mas que, ao mesmo tempo, têm favorecido a construção de uma identidade em que as relações de ajuda mútua, de liberdade de expressão, de valorização da diferença e de aprendizados adquiridos na experiência de dor estão sendo garantidas.

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Conclusão Esta investigação resgatou histórias de vidas carregadas de sofrimento, e revelou que as mulheres pesquisadas tiveram violados os modos de ser e existir antes mesmo da procura de um serviço de saúde. Hoje, após o adoecimento mental, elas percebem-se com baixa tolerância aos problemas, baixa autoestima, elevada autocensura, consideram-se anormais, um incômodo para seus familiares. E, ao mesmo tempo, esse adoecimento tem se revelado em oportunidade para amadurecimento, tornarse responsável, valorizar mais as coisas simples e as pessoas queridas e ressignificar as experiências e dores vividas. Na percepção do grupo estudado, as pessoas, em geral, não identificam quem têm transtorno mental, ao menos que as informações sociais sejam evidentes; mas, quando percebem ou descobrem, atribuem-lhes identidades de “doidas”, “estranhas”, “perigosas”, “pouco produtivas”, “não merecedoras de atenção” e “sabidas” o suficiente para simularem uma doença e conseguirem algum tipo de benefício. E pessoas que não possuem transtorno mental são identificadas como orgulhosas e preconceituosas, ao contrário das pessoas que possuem transtornos e são acompanhadas pelo CAPS, que são identificadas como mais sensíveis, confiáveis, compreensivas, capazes de compartilhar pensamentos e trocar experiências, e ainda fornecem apoio e suporte emocional para os demais que fazem tratamento. Nesse sentido, o CAPS tem possibilitado às pessoas serem o que verdadeiramente são, a expressarem seus sentimentos e ideias sem julgamento moral, reforçando a construção de uma identidade autêntica e valorizada. Inúmeras são as influências positivas do CAPS na construção da identidade das pessoas com transtornos mentais, a qual se inicia pela mudança de concepção que o grupo estudado passou a ter, ao mesmo tempo em que se percebe que toda pessoa pode adoecer, que a crise é passageira e que, quando superada, pode-se retornar a cumprir as responsabilidades de uma vida adulta. Por outro lado, algumas normativas do serviço e formas de abordagem protetora violam a identidade do eu, por induzi-la a adaptar-se às regras ou situações impostas, tais como: a precária estrutura física; a falta de insumos; a rotatividade de profissionais. Por fim, o contexto social em que as participantes desta pesquisa são cuidadas encontra-se em fase de mudança, de reafirmação do paradigma da desinstitucionalização, em que é preciso investir sem reservas nas pessoas e em seus direitos, sejam elas usuárias, familiares ou trabalhadores de saúde. Os reflexos do adoecimento sobre a identidade das mulheres foco deste estudo apontam novos desafios e solicitam estratégias de tolerância, cooperação, escuta sensível, ajuda e consideração das potencialidades, capazes de favorecer identidades possíveis, flexíveis, intencionais e adaptáveis.

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Colaboradores Yanna Cristina Moraes Lira Nascimento e Mercia Zeviani Brêda trabalharam juntas em todas as etapas de produção do manuscrito. Maria Cicera dos Santos de Albuquerque responsabilizou-se pela revisão crítica relevante do conteúdo intelectual e aprovação final da versão a ser publicada. Referências 1. Jacques MG. Psicologia Social Contemporânea: livro-texto. 18a ed. Petrópolis: Vozes; 2012. 2. Magalhães RCBP, Cardoso APLB. A pessoa com deficiência e a crise das identidades na contemporaneidade. Cad Pesqui [Internet]. 2010 [acesso 2011 Jun 20]; 40(139):45-61. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/cp/v40n139/v40n139a03.pdf 3. Taylor C. A política de reconhecimento. In: Gutman A, organizador. Multiculturalismo: examinando a política do reconhecimento. Lisboa: Instituto Piaget; 1998. p. 45-94. 4. Ciampa AC. A estória do Severino e a história da Severina. São Paulo: Brasiliense; 2001. 5. Scott A, Wilson L. Valued identities and deficit identities: wellness recovery action planning and self-management in mental health. Nurs Inq [Internet]. 2011 [acesso 2011 Jun 20]; 18(1):40-9. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/21281394 6. Giddens A. Modernidade e identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; 2002. 7. Goffman E. Estigma: notas sobre manipulação da identidade deteriorada. 4a ed. Rio de Janeiro: LTC; 2008. 8. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 9. Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70; 2009. 10. Goffman E. Manicômios, prisões e conventos. 8a ed. São Paulo: Perspectiva; 2008. 11. Lucena KDT, Silva ATMC, Moraes RM, Silva CC, Bezerra IMP. Análise espacial da violência doméstica contra a mulher entre os anos de 2002 e 2005 em João Pessoa, Paraíba, Brasil. Cad Saude Publica [Internet]. 2012 [acesso 2014 Fev 18]; 28(6):1111-21. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0102-311X2012000600010 12. Narvaz MG, Koller SH. Mulheres vítimas de violência doméstica: compreendendo subjetividades assujeitadas. Psico [Internet]. 2006 [acesso 2012 Out 15]; 37(1):7-13. Disponível em: http://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/ viewFile /1405/1105 13. Wallis L. Switching off the cult. Nurs Stand [Internet]. 2007 [acesso 2011 Jun 20]; 21(49):20-2. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/17844900 14. Azevedo LR. Diálogos sobre a noção de vítima e construção da identidade. Interface (Botucatu) [Internet]. 2013 [acesso 2014 Fev 18]; 17(46):515-22. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832013000300002 15. Martins GCS, Peres MAA, Oliveira AMB, Stipp MAC, Filho AJA. O estigma da doença mental e as residências terapêuticas no município de Volta Redonda, RJ. Texto Contexto – Enferm [Internet]. 2013 [acesso 2014 Fev 18]; 22(2):327-34. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S0104-07072013000200008 16. Gary FA. Stigma: barrier to mental health care among ethnic minorities.Issues Ment Health Nurs [Internet]. 2005 [acesso 2011 Jun 20]; 26(10):979-99. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/16283995 17. Benzoni SAG, Varga CRR. Uma análise de artigos sobre resiliência a partir de uma leitura Kleiniana. Psicol Estud [Internet]. 2011 [acesso 2014 Fev 20]; 16(3):369-78.

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Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722011000300004 18. Sapienza G, Pedromônico MRM. Risco, proteção e resiliência no desenvolvimento da criança e do adolescente. Psicol Est [Internet]. 2005 [acesso 2012 Jun 10]; 10(2):209-16. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/pe/v10n2/v10n2a07.pdf 19. Leão A, Barros S. Inclusão e exclusão social: as representações sociais dos profissionais de saúde mental. Interface (Botucatu) [Internet]. 2011 [acesso 2014 Fev 24]; 15(36):137-52. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832011000100011 20. Saraceno B. Reabilitação psicossocial: uma estratégia para a passagem do milênio. In: Pitta AMF, organizador. Reabilitação psicossocial no Brasil. 2a ed. São Paulo: Hucitec; 2001. p. 13-8. 21. Borba LO, Guimarães NA, Mazza VA, Maftum MA. Assistência em saúde mental sustentada no modelo psicossocial: narrativas de familiares e pessoas com transtorno mental. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2012 [acesso 2013 Jan 5]; 46(6):1406-14. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S008062342012000600018&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt 22. Corrigan PW, Wassel A. Understanding and influencing the stigma of mental illness. J Psychosoc Nurs Ment Health Serv [Internet]. 2008 [acesso 2011 Jun 20]; 46(1):42-8. Disponível em: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/18251351 23. Pitia ACA, Furegato ARF. O Acompanhamento Terapêutico (AT): dispositivo de atenção psicossocial em saúde mental. Interface (Botucatu) [Internet]. 2009 [acesso 2014 Fev 24]; 13(30):67-77. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/S1414-32832009000300007

Nascimento YCML, Brêda MZ, Albuquerque MCS. La enfermedad mental: percepciones sobre la identidad de la persona que sufre. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):479-90. Se trata de las percepciones que mujeres acompañadas en el Centro de Atención Psicosocial (CAPS) tienen sobre sí mismas, sobre los demás y sobre la sociedad ante la enfermedad mental; se analizan influencias que este servicio ejerce sobre sus identidades. Estudio cualitativo, descriptivo; se utilizó historia de vida tópica. Colecta de datos con entrevista, observación directa, diario de campo. Análisis temático interpretado por el referencial de Goffman. Los resultados revelan que las mujeres presentan percepciones diferentes de la identidad antes y después de la enfermedad mental; que perciben a la familia distante con dificultades de enfrentar su enfermedad; que observan profesionales acogedores y un CAPS que contribuye a la reconstrucción y expresión de identidades y que promueve el auto-conocimiento, orientación y apoyo emocional. No obstante, perciben que el servicio carece de perfeccionamiento de las acciones para garantía de derechos, inversión en nuevas estrategias de ayuda capaces de defender identidades posibles, flexibles y adaptables.

Palabras clave: Identidad propia. Servicios de salud mental. Personas mentalmente enfermas. Estrés psicológico. Recebido em 11/03/14. Aprovado em 01/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0816

artigos

Desafios do apoio matricial como prática educacional: a saúde mental na atenção básica

Fernanda Rebouças Maia Costa(a) Valéria Vernaschi Lima(b) Roseli Ferreira da Silva(c) Luciana Nogueira Fioroni(d)

Costa FRM, Lima VV, Silva RF, Fioroni LN. Challenges of matrix support as educational practice: mental health in primary healthcare. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):491-502.

This study investigated the educational dimension of matrix support practices for mental health within primary care. Using an interpretative-explanatory qualitative approach, professionals involved in matrix support for mental health in a municipality in the state of São Paulo, Brazil, were interviewed. The data were compared with matrix support frameworks with two pedagogical trends: directive and constructivist. The analysis on this content was incorporated with the interviews and two themes could be identified: “matrix supporter’s profile”, and “challenges for construction of matrix supporter’s practice.” The subjects’ perceptions regarding supporters’ competence profiles were coherent with matrix support assumptions, whereas their educational practices related mainly to the directive trend. The challenge of implementing constructivist practice was only partially recognized, since this requires a critical and transformative stance regarding the hegemonic educational practices within healthcare.

Trata-se de investigação sobre a dimensão educacional das práticas de apoio matricial (AM) em saúde mental na atenção básica. A partir de uma abordagem qualitativa, do tipo interpretativo-explicativo, foram entrevistados profissionais envolvidos com AM em saúde mental de um município do interior de São Paulo, Brasil. Esses dados foram confrontados com os referenciais de AM em duas tendências pedagógicas: diretiva e construtivista. A análise deste conteúdo foi incorporada às entrevistas e permitiu a identificação de duas temáticas: “perfil do apoiador matricial”; e “desafios para a construção da prática do apoiador matricial”. A percepção sobre o perfil de competência do apoiador mostrou-se coerente com os pressupostos do AM, ao passo que suas práticas educacionais apresentaram-se predominantemente vinculadas à tendência diretiva. O desafio para uma prática construtivista foi parcialmente constatado, uma vez que requer uma posição crítica e transformadora frente às práticas educacionais hegemônicas presentes na saúde.

Keywords: Mental health. Primary healthcare. Educational models. Support for human resources development. Assessment of healthcare needs.

Palavras-chave: Saúde Mental. Atenção Básica. Modelos educacionais. Apoio ao desenvolvimento de recursos humanos. Determinação de necessidades de cuidado de saúde.

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(a) Centro de Ciências Biológicas e da Saúde, Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). Rodovia Washington Luís, km 235, SP-310. São Carlos, SP, Brasil. 13565-905. ppggc@ufscar.br (b,c) Departamento de Medicina, UFSCar. São Carlos, SP, Brasil. valeriavl@ufscar.br; roselifs@ufscar.br (d) Departamento de Psicologia, UFSCar. São Carlos, SP, Brasil. lufioroni@ufscar.br

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As práticas de apoio matricial As propostas de apoio matricial (AM) em saúde mental surgiram da necessidade de a atenção básica (AB) incorporar saberes e práticas das especialidades em saúde mental1. Segundo Campos et al.2, o AM é, ao mesmo tempo, arranjo organizacional e metodologia de trabalho, e considera oferecer retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico às equipes de referência (EqR), responsáveis por uma abordagem generalista no cuidado aos usuários. Cunha et al.3 referem-se ao AM como o desenvolvimento da capacidade de diálogo entre os objetivos de cada recorte disciplinar e a proposta terapêutica de intersecções entre diagnósticos e tratamentos. A partir da construção de espaços de comunicação e de diretrizes clínicas e sanitárias, o AM aproxima e vincula os especialistas às EqR, as quais, de modo compartilhado, tornam-se responsáveis pelo cuidado às necessidades de saúde de uma dada população4. Apostando na troca de saberes entre EqR e profissionais especialistas, o AM fundamenta-se na ideia de que nenhum especialista, isoladamente, poderá assegurar uma abordagem integral à saúde. A necessidade de articular a especificidade de cada categoria profissional na promoção da integralidade é operada concomitantemente à “costura” entre os serviços da rede e equipamentos sociais para a garantia da continuidade da atenção1,5-7. Todavia, as práticas de AM junto às equipes da AB e aos usuários passaram a ganhar espaço somente em recentes publicações, por meio: da proposta de reorganização do processo de trabalho em equipe8,9; da potencialidade de ampliar o olhar dos profissionais e melhorar práticas de cuidado10; e dos desafios a serem enfrentados8,11,12. Experiências internacionais têm endossado a necessidade de se atentar à fragmentação do cuidado em saúde; e, apesar das diferentes terminologias, também têm preconizado a reorganização do trabalho e das relações entre especialistas e generalistas por meio de dispositivos que aproximem as distintas práticas13-16. Em território nacional, a instituição dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) tem favorecido a reorganização dos especialistas junto às EqSF17. Em publicação técnica, o Ministério da Saúde definiu que as equipes de AM possuem dois tipos de responsabilidades: sobre a população e sobre a equipe da AB, oferecendo indicadores para avaliar o resultado dessas ações18. Experiências brasileiras em torno da proposta de AM vêm sendo desenvolvidas por meio da reorganização do trabalho entre especialidades e AB, com vistas à integralidade do cuidado. Contudo, há distintas formas para essa proposta ser colocada em prática pelos profissionais1,19-21. Ao abordarem os espaços de diálogo e concebê-los como oportunidades de aprendizagem e trocas horizontais de conhecimentos, Ballarin et al.22 propõem analisar o AM por meio de quatro dimensões, ressaltando a pedagógica. Seguindo por essa trilha, a dimensão educacional da prática dos apoiadores pode ser considerada como qualquer ação que envolva interação e compartilhamento de saberes, e não apenas as atividades pedagógicas clássicas. De acordo com Libâneo23, a maneira pela qual os educadores realizam seu trabalho, quer selecionando e organizando o conteúdo, quer escolhendo uma abordagem de ensino e avaliação, está diretamente ligada aos pressupostos educacionais. Estes refletem a compreensão sobre como as pessoas interagem e aprendem. Pode-se concluir, portanto, que o conhecimento desses pressupostos poderá subsidiar a maneira pela qual o AM é operado em sua dimensão educacional. O objeto de estudo desta pesquisa foca exatamente a dimensão educacional das práticas de AM em saúde mental na AB, e tenciona aprofundar a compreensão dos elementos que a tornam viável. Com a intenção de contribuir para um melhor emprego desse dispositivo, a interação entre especialistas e profissionais da AB é realçada por meio da troca de saberes e na promoção da integralidade do cuidado.

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Caracterização do cenário Trata-se da rede de serviços de saúde num município do interior do estado de São Paulo, escolhido por seu pioneirismo nos processos da Reforma Psiquiátrica e histórico entrecruzamento entre AB e saúde mental, especialmente fomentado pelo dispositivo do AM24. Durante a pesquisa, verificou-se que a rede local de atenção à saúde se estruturava em cinco distritos, sendo o município um centro de referência regional. Os distritos possuíam centros de atenção psicossocial (CAPs III) e equipes de saúde mental na AB; o município contava ainda com um NASF, responsável por três centros de saúde (CS). CAPS III e equipes de saúde mental na AB atuavam junto aos CS, praticando um modelo de AM na construção de momentos de troca de saberes entre os profissionais dos serviços de atenção envolvidos no cuidado. Os serviços que adotaram esse modelo produziram singulares vias de operacionalização da troca de saberes, da promoção de vínculo e da corresponsabilização.

Percurso metodológico A pesquisa, aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de São Carlos, foi um estudo orientado a um problema específico, cujo desenho metodológico foi definido conforme a abordagem qualitativa e construtivista. Partindo do princípio de que a realidade é apreendida diversamente pelos sujeitos, essa singularidade pode ser mediada pelos valores, emoções e repertórios socioculturais trazidos pelos sujeitos em confronto com a realidade25-27. Com a seleção do problema a ser investigado, a pesquisa proposta foi do tipo interpretativoexplicativo, a fim de construir um quadro compreensivo a respeito de um dado fenômeno, partindo das perspectivas dos sujeitos envolvidos e procurando identificar como estas influem em sua produção28. Foram utilizadas entrevistas semiestruturadas por possibilitarem a emergência de várias narrativas e interpretações27, que foram registradas em áudio e, posteriormente, transcritas para análise. Como participantes, foram selecionados dezoito profissionais de saúde inseridos na rede de saúde mental, em função de gestão e/ou de atenção, vinculadas ao AM. Seis apoiadores regionais de saúde mental e a coordenadora da área foram escolhidos com vistas à caracterização das práticas de AM no município. Os apoiadores regionais são profissionais lotados nos distritos de saúde, em geral psicólogos e terapeutas ocupacionais. Sua função é gerencial e volta-se para a articulação intra e intersetorial, a fim de consolidar o cuidado em saúde mental no município. Considerando os dez profissionais nessa função, solicitou-se que aqueles que aceitassem participar dessa pesquisa contemplassem a diversidade dos cinco distritos de saúde. A partir dos depoimentos, critérios de inclusão foram identificados para a seleção dos serviços que utilizavam o dispositivo do AM. Quatro deles foram elaborados para reconhecer os distritos com práticas mais estruturadas em AM na saúde mental: (i) discussões de caso regulares e em conjunto com os profissionais do centro de saúde (CS); (ii) estabelecimento de intervenções compartilhadas com as equipes dos CS, a partir das discussões realizadas; (iii) identificação de necessidades de aprendizagem das equipes; e (iv) promoção de reflexões sobre a prática. A aplicação desses critérios levou à seleção de dois distritos de saúde. Em função do trabalho ainda incipiente de AM no NASF, à época da pesquisa, essa equipe foi excluída da amostra, permanecendo esta circunscrita aos CAPs e às equipes de saúde mental da AB. Dos serviços supracitados, 11 profissionais, cinco vinculados aos CAPs e seis às equipes de saúde mental da AB, foram indicados com práticas de AM alinhadas aos mesmos critérios de inclusão.

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No caso dos CAPs, cada equipe indicou coletivamente um profissional e, no caso das equipes de saúde mental, os apoiadores regionais entrevistados indicaram os apoiadores matriciais também com práticas próximas aos critérios estipulados. A lista de indicados foi ordenada aleatoriamente para a realização das entrevistas. Enfim, um critério de saturação foi utilizado para estabelecer a suficiência da amostra utilizada, resultando em três profissionais por distrito. A análise de conteúdo, na modalidade temática, foi aplicada à interpretação das entrevistas29. De acordo com essa técnica de análise da comunicação, a presença e frequência das falas e palavras, tanto como sua ausência, são relevantes. Obtidos os depoimentos, as ideias próximas foram agrupadas em núcleos de sentido e estes, em temáticas. Este conjunto serviu de base para a interpretação das ideias apresentadas mediante a aplicação das referências conceituais supracitadas27-29. Para a análise da dimensão educacional da prática do apoiador matricial foi utilizada uma adaptação (Quadro 1) das classificações propostas por diversos autores que estudam a área da educação23,30-32. O AM apresenta afinidade conceitual com relação à pedagogia progressista ou construtivista, uma vez que se fundamenta na análise crítica das realidades e sustenta, implicitamente, o viés ativo e sociopolítico da educação. Esta vertente considera a experiência como base da relação educativa no seio da autogestão pedagógica.

Quadro 1. Macrotendências pedagógicas, segundo papel do conhecimento, do educando e do educador. Tendência

Conhecimento/Objeto

Educando/Sujeito

Educador

Liberal, Tradicional ou Diretiva

Objetivo e abstrato, organizado segundo uma sequência lógica

Passivo, devendo assimilar os conteúdos transmitidos para ser moldado e formado

Ativo, transmissor dos conteúdos, autoridade, modelo a ser imitado numa relação verticalizada

Progressista, Nova ou Construtivista

Inclui a subjetividade, o contexto e as necessidades do educando, extraído da prática com consciência crítica

Ativo, centro da ação, com necessidades e interesses, sujeito da aprendizagem

Orienta, aconselha, direciona, desperta para o saber por meio de uma relação horizontal

Resultados e discussão A análise do conteúdo das entrevistas, por fim, revelou duas temáticas de base: (i) “perfil do apoiador matricial”; e (ii) “desafios para a construção da prática do apoiador matricial”.

(i) Perfil do apoiador matricial O “perfil do apoiador matricial” apresentou três núcleos de sentido que foram estudados em: “atitudes do apoiador matricial”, “conhecimento do apoiador matricial” e “habilidades do apoiador matricial”. Estes resultados giraram em torno das capacidades consideradas necessárias para uma prática competente. Segundo Hager et al.33, as capacidades também podem ser chamadas de atributos ou recursos, e estão categorizadas em: atitudinais ou afetivas; cognitivas ou de conhecimento; psicomotoras ou habilidades. A articulação desses atributos diante de um problema da realidade profissional fundamenta uma determinada prática. A competência, porém, se expressa somente quando essas capacidades são colocadas em ação e, segundo o contexto, geram resultados de excelência34.

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Núcleo de sentido: atitudes do apoiador matricial Disponibilidade e abertura foram especialmente destacadas, no sentido de estar disponível e de como oferecer, ativamente, oportunidades de compartilhamento de experiências no acompanhamento ou seguimento dos casos trabalhados com a AB, como ficou registrado no depoimento: “Eu tenho a impressão de que é muito mais da disponibilidade, da abertura pro encontro, de fazer junto, de estar disponível, de pegar o telefone, produzir uma relação de confiança... uma disponibilidade ativa, não é aquela disponibilidade: ‘pode me ligar’; aquele caso é nosso”. (Ar 4)

Flexibilidade, empatia, acolhimento e comprometimento compõem também o elenco de capacidades atitudinais dessa prática e, ainda, a capacidade de receber críticas e escutar. Por esse viés, os apoiadores argumentaram que esses atributos devem estar ancorados na aceitação do outro como legítimo. Com efeito, e de acordo com Maturana35, ao aceitarmos o outro, podemos controlar os préconceitos e estabelecer uma relação pautada pelo respeito. Para outros entrevistados, o apoiador deveria ser um especialista que coloca seu saber a serviço da ampliação das capacidades da equipe, valorizando a diversidade e estimulando a criação. Campos36 destaca a necessidade de o apoiador demonstrar postura interativa que propicie, aos sujeitos, condições para refletirem criticamente sobre a prática. Nesse sentido, considerada a dimensão educacional do encontro entre sujeitos, Freire37 conjuga a educação à oportunidade de construção de saberes, na qual o educador deve apresentar disponibilidade para o novo e para o outro. O respeito à autonomia e à visão de mundo de cada um é tomado como um imperativo ético capaz de proporcionar uma relação na qual todos participam ativamente. Da noção de diálogo como interação entre distintos pontos de vista do saber, Morin38 considera as especificidades e diferenças de cada elemento, numa relação recursiva e complementar que se institui, por exemplo, entre: educador e educando; especialista e generalista; saúde mental e atenção básica; disciplina e interdisciplinaridade. Relações aparentemente contraditórias podem, assim, ser compreendidas como complementares. Núcleo de sentido: conhecimentos do apoiador matricial O domínio dos conhecimentos referentes ao AM, ao território e à rede de saúde do município, assim como à saúde coletiva e mental, também foram mencionados como capacidades do apoiador: “Acho que um dos objetivos é sair desse lugar da própria clínica, do núcleo, [...] ele tá lá como trabalhador da saúde mental, que vai buscar imprimir uma discussão mais qualificada do que é o cuidado em saúde, e com o viés da saúde mental, mas pensando na saúde integral do sujeito”. (Ar 2)

Para Campos39, a dimensão de núcleo no trabalho profissional é constituída de conhecimentos e atribuições específicas de cada profissão ou especialidade. O autor, baseado no conceito de campo de Pierre Bourdieu, confere, ao trabalho em saúde, uma dimensão de campo de atuação: o campo traduz uma noção situacional e indica o conjunto de conhecimentos e tarefas, fora do núcleo profissional, que complementa a prática. Na prática, representa uma ampliação da identidade específica – conferida pelo núcleo, na direção da interdisciplinaridade e da interprofissionalidade, características intrínsecas à área da saúde. Ao reorganizar a relação entre especialistas e AB, o AM visa enfrentar a fragmentação do trabalho que, em certa medida, reproduz a separação estanque das disciplinas, no âmbito da formação profissional40, entre os serviços de saúde, e no âmbito do cuidado2,41. Colocar os saberes dos especialistas à disposição das equipes de AB por meio da discussão conjunta de casos e manejo de situações concretas oferece claras vantagens para a prática, qualificando o cuidado, fortalecendo vínculos e ampliando a responsabilização e as chances de adesão dos usuários aos tratamentos propostos42.

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O discurso dos apoiadores matriciais e regionais coincidiu nesse sentido, pois, foi defendida a prerrogativa geral de que é preciso um olhar integral para as pessoas sob cuidado, desenvolvendo sua atuação para além da saúde mental. Para parte deles, o conhecimento do especialista agrega valor à discussão de casos e aos projetos de cuidado quando circula horizontalmente, possibilitando que todos, especialistas ou não, possam contribuir para o trabalho em saúde. A necessidade de romper com a ideia do apoiador como alguém que prescreve intervenções demonstrou ser diretamente proporcional à necessidade de se construir planos de cuidado compartilhados: “A partir do momento que eu vou e vejo a intervenção do agente comunitário, nas minhas próximas práticas eu vou colocar isso no meu rol de ferramentas também, eu vou ter esse saber, eu vou legitimar isso e o contrário também, [....] é ir junto e conversar, ver o que deu e o que não deu [certo]”. (Am 6)

Núcleo de sentido: habilidades do apoiador matricial No quesito das habilidades do apoiador, traduzidas pelo domínio de determinados dispositivos, a discussão de caso apareceu como a principal ferramenta. Foi ressaltada a importância de se transferir o conhecimento construído para outras situações, como forma de apoio à autonomia das equipes. “Porque na maioria dos casos, é ‘o caso pelo caso’, que é interessante, resolve boa parte das coisas, mas aumenta pouco o poder de autonomia das equipes”. (Ar 4)

As discussões de casos clínicos no AM também emergem de experiências nacionais e internacionais na literatura científica15,16,19,20. A leitura de uma realidade concreta a ser analisada, e na qual se deseja intervir, permite o estabelecimento de diferentes relações entre fatos e objetos, e propicia maiores possibilidades de transformação ativa da realidade37. No AM, a capacidade de observar e analisar criticamente o objeto/prática permite reconstruir conhecimentos que podem ser aproveitados em diferentes situações41,44. O conceito de transferência da aprendizagem, delineado por Bransford, Brown e Cocking45 (p. 82), considera que “a capacidade de transferência depende do grau em que as pessoas aprendem com compreensão, em vez de meramente memorizar uma série de fatos ou seguir um conjunto fixo de procedimentos”. A EqR poderia, então, gozar de maior autonomia no aproveitamento dos conhecimentos e experiências adquiridos pelo grupo em um dado caso. Outros apoiadores matriciais ponderaram, então, que o caso clínico deveria valorizar o contexto do sujeito e a atuação das equipes. A teoria surge para ser abordada a partir dos casos, e sua utilização, no sentido de melhor solucionar as necessidades do sujeito, e ampliar a compreensão da equipe sobre os fenômenos questão: “eu acho, particularmente, que isso faz muito mais sentido, porque eles viram o caso, sentiram o caso na pele, então eles ficam muito mais interessados do que a gente chegar lá e dizer: eu tenho um caso de álcool e drogas e vamos fazer uma apresentação do que é cada droga”. (Am 5)

A reflexão, após as ações terem sido realizadas, foi relatada como parte da discussão de casos, no sentido de analisar as estratégias utilizadas e construir uma linha de raciocínio. Momentos como estes permitiriam a oportunidade de aprender com os erros e consolidar conquistas. Em todos os três núcleos de sentido do perfil, observou-se coerência entre as capacidades que os apoiadores consideravam necessárias ao AM e os objetivos dessa prática. Embora o conjunto destas capacidades esteja mais próximo das tendências educacionais construtivistas, sua presença no processo de compartilhamento de saberes revelou distintas concepções sobre os papéis de educandos e educadores na prática. Essas distinções foram agrupadas numa segunda temática e representam os desafios para a prática do AM.

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(ii) Desafios para a construção da prática do apoiador matricial Nesta temática, os núcleos de sentido giraram em torno das “fragilidades” e “obstáculos” para o apoiador matricial transformar suas intenções em gestos. Núcleo de sentido: fragilidades na prática do apoiador matricial Das fragilidades, a ausência de discussão sobre a dimensão educacional, na formação de especialistas e profissionais da EqR, foi a mais citada. Segundos estes depoimentos, é daí que se originam as dificuldades na condução das discussões, despertando sentimentos de disputa e confusão por parte dos apoiadores com relação ao seu papel. “Não é tranquilo pra saúde mental, pra grande parte dos trabalhadores, as pessoas não têm isso na sua formação [...] Tem um certo místico, as pessoas temem ir e não saber o que dizer, isso é bastante interessante. Então o CAPs diz “ah, se eu for lá e me falar de criança, eu não vou saber o que falar”. Então é como se ele tivesse que ir lá e ter uma resposta pronta”. (Ar 1)

Ainda sobre a prática, alguns entrevistados consideraram o apoiador como alguém que deve transmitir o conhecimento, selecionar previamente os casos e preparar os conteúdos para discussão, independentemente do contexto específico. Um indício da aproximação entre a prática educacional do apoiador e os pressupostos da pedagogia liberal ou diretiva, à medida que aquele é percebido como um transmissor de conhecimentos abstraídos de contexto, na forma de temas genéricos considerados relevantes. Nessas situações, o educando passa a ser apenas um receptor passivo, devendo apreender os procedimentos para repeti-los30-32. Segundo Libâneo23, a pedagogia liberal, como manifestação própria da sociedade de classes do sistema capitalista, defende a predominância da liberdade e dos interesses individuais na sociedade. Nos últimos cinquenta anos, a educação brasileira tem apresentado tendências claramente liberais, intensificadas, sobretudo, no plano pedagógico, ao sedimentar os papéis dos educadores e profissionais para a construção do saber. Essa abordagem pedagógica e os vários exemplos de práticas relatados pelos entrevistados ilustram o efetivo descompasso na atuação do AM dos objetivos apontados para o perfil do apoiador. Esse hiato configura uma ambiguidade nas práticas que ora estão mais próximas ao perfil desejado, ora dele se afastam. Essa tensão foi retratada por alguns apoiadores que, eventualmente, por falta de uma reflexão crítica sobre suas atividades não puderam perceber que esse modo de organizar o apoio matricial impõe obstáculos para a autonomia e o desenvolvimento das equipes de referência. Núcleo de sentido: obstáculos à prática do apoiador matricial Os entrevistados que identificaram um distanciamento entre intenção e gesto nas práticas de AM atribuíram-no às características da formação e à falta de processos de educação permanente (EP) para profissionais de saúde. A organização do processo de trabalho também foi identificada como um obstáculo, já que o desfalque de profissionais na AB ocupa papel preponderante na construção de uma atuação unidirecional do especialista, especialmente nas situações de urgência. A frequência de situações de urgência é fator que reitera a supervalorização do especialista em detrimento da interação de outros saberes: em situações de crise, há uma tendência de centralizá-lo como predominante. Assim, a equipe de referência é reduzida a mera observadora da atuação do especialista e apenas reproduz o saber do especialista que lida com as situações. “[....] tem caso que você vai ouvir e tem que dar uma resposta na hora, porque eu acho que tem que ser um supervisor pra isso com uma visão extraordinária pra conseguir dar uma resposta, muitas vezes pronta”. (Am 1)

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Paralelamente, alguns entrevistados apontaram que o AM também deveria ser abordado como uma especialização: “porque ser um psicólogo ou um terapeuta ocupacional da AB nessa perspectiva de AM, não dá pra dizer que aprendeu na faculdade, tem coisas muito mais ligadas a isso, qual a estratégia que eu uso agora pra tentar sensibilizar a equipe, diferente de qual é a estratégia que eu uso pra lidar com paciente z ou y”. (Am 5)

Para enfrentar o desafio de melhorar a formação dos profissionais de saúde, as atuais Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os currículos de graduação em saúde preveem a ampliação do conceito de saúde e a formação em contextos reais, incluindo, ademais, as dimensões de gestão e de educação no perfil, para além da atenção à saúde46. A Reforma Sanitária já havia pontuado essa necessidade de mudança na formação com o intuito de orientá-la a um perfil generalista, reflexivo e comprometido com os princípios do Sistema Único de Saúde47. Embora os Ministérios da Saúde e da Educação tenham instituído diversas iniciativas voltadas para a implantação das DCN e articulação ensino-serviço, esse desafio ainda está longe de ser plenamente enfrentado40. Por conseguinte, a EP, instituída como política nacional em 2004, desponta como possibilidade de desenvolvimento de novas capacidades, apoiada sobre a reflexão do cotidiano de trabalho. A concepção de EP trazida pela política está voltada justamente para a “transformação dos processos formativos, das práticas pedagógicas e de saúde e para a organização dos serviços, empreendendo um trabalho articulado entre o sistema de saúde, em suas várias esferas de gestão e as instituições formadoras”48. A partir destes resultados, ficou evidente que os desafios para a construção da prática do AM passam pelo reconhecimento dos sistemas de valores e significados que fundamentam tanto a formação, como a organização do processo de trabalho em saúde, com o propósito de dar uma resposta às fragilidades e obstáculos de uma prática integral do cuidado.

Considerações finais No atual contexto dos serviços de saúde, o AM passou a ser importante ferramenta de inserção de especialistas na AB, pois, esse modelo demanda novas capacidades dos profissionais de saúde, indo além da atuação clínica. Por isso, entende-se que a dimensão educacional deve estar fortemente presente na atuação dos apoiadores matriciais por meio da articulação entre retaguarda assistencial e suporte técnico-pedagógico, já que ambos os eixos são permeados por relações educacionais e envolvem interações entre profissionais com distintos saberes. A análise sobre como circulam os saberes entre especialistas e equipe de referência nos depoimentos permitiu concluir que há um distanciamento entre intenção e atuação nas diferentes formas de operar o AM. Nos exemplos relatados de AM, notou-se uma forte presença de princípios liberais ou tradicionais, ao subsidiar suas ações na transmissão do saber como o modo pelo qual as pessoas adquirem conhecimento. Para alguns profissionais, o reconhecimento da necessidade de atuarem de uma forma dialógica emergiu como tensão e desejo, deixando evidente a falta de ferramentas pedagógicas para atuarem de maneira diversa à prática revelada. Embora com menor frequência, as práticas educacionais construtivistas que foram citadas em alguns depoimentos entendiam a educação como um ato social, solidário e comprometido: uma troca entre pessoas que questionam o mero acúmulo de informações. A atuação dos especialistas, cujas práticas encontravam maior respaldo nas concepções pedagógicas progressistas, orientavase fundamentalmente para a transformação de saberes pela construção de significados e pela possibilidade de transformação do cuidado. Reconhecidas a dimensão educacional nas práticas de AM e as tensões e limitações trazidas pelas vivências tradicionais de educação, identificou-se o valor potencial de experiências que estejam alinhadas com uma educação progressista, de abordagem dialógica tanto na formação, como na 498

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educação em serviço. A tendência construtivista, nas práticas de AM, promove autonomia para as equipes de referência, tornando-as protagonistas dos projetos de cuidado e oferecendo um novo repertório de atuação para os apoiadores. A postura dialógica demostrou ser o principal meio para um caminho mais coerente com uma prática pautada em princípios democráticos, participativos e inclusivos. Gestores e profissionais de saúde envolvidos com práticas de educação em serviço são audiências particularmente relevantes para o compartilhamento dos resultados dessa pesquisa. Com efeito, o enfrentamento da inércia oriunda da tendência pedagógica tradicional requer uma postura crítica e ativa frente às práticas hegemônicas na graduação e pós-graduação em saúde.

Colaboradores Fernanda Rebouças e Valéria Vernaschi Lima participaram de todas as etapas do trabalho. Luciana Nogueira Fioroni responsabilizou-se pela análise dos dados e revisão final do texto. A autora Roseli Ferreira da Silva responsabilizou-se pela construção da metodologia e revisão final do texto. Referências 1. Dimenstein M, Severo AK, Brito M, Pimenta AL, Medeiros V, Bezerra E. O apoio matricial em unidades de Saúde da Família: experimentando inovações em Saúde Mental. Saude Soc. 2009; 18(1):63-74. 2. Campos GWS, Domitti AC. Apoio matricial e equipe de referência: uma metodologia para gestão do trabalho interdisciplinar em saúde. Cad Saude Publica. 2007; 23(2):399-407. 3. Cunha GT, Campos GWS. Apoio matricial e Atenção Primária em Saúde. Saude Soc. 2011; 20(4):961-70. 4. Martins Junior F. Análise do processo de implantação do SUS no Brasil. In: CONASS. Coleção Progestores: convergências e divergências sobre a gestão e a regionalização do SUS. CONASS Documenta. 2004; 6(1):62-81. 5. Nunes G. Devir apoiador: uma cartografia da função apoio [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas, Campinas; 2011. 6. Amorim EM. (Inter)Relações entre saúde da família e CAPS: a perspectiva dos trabalhadores sobre o cuidado a portadores de transtorno mental em Campinas/SP [dissertação]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2008. 7. Domitti ACP. Um possível diálogo com a teoria a partir das práticas de apoio especializado matricial na atenção básica de saúde [tese]. Campinas (SP): Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas; 2006. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Costa FRM, Lima VV, Silva RF, Fioroni LN. Desafíos del apoyo matricial como práctica educativa: la salud mental en la atención básica. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):491-502. Se trata de una investigación sobre la dimensión educativa de las prácticas de apoyo matricial (AM) en salud mental en la atención básica. A partir de un abordaje cualitativo, se entrevistaron profesionales envueltos en AM en salud mental de un municipio del interior de São Paulo, Brasil. Esos datos se confrontaron con los datos referenciales de AM en dos tendencias pedagógicas: directiva y constructivista. El análisis de este contenido se incorporó a las entrevistas y permitió la identificación de dos temáticas: “perfil del apoyador matricial” y “desafíos para la construcción de la práctica del apoyador matricial”. La percepción sobre el perfil de competencia del apoyador se mostró coherente con las presuposiciones del AM, sus prácticas educativas se presentaron predominantemente vinculadas a la tendencia directiva. El desafío para una práctica constructivista se constató parcialmente, puesto que requiere una posición crítica y transformadora ante las prácticas educativas hegemónicas presentes en la salud.

Palabras clave: Salud mental. Atención básica. Modelos educativos. Apoyo al desarrollo de recursos humanos. Determinación de necesidades de cuidado de salud. Recebido em 23/01/14. Aprovado em 29/09/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622013.0520

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O uso de tecnologias de comunicação de riscos de desastres como prática preventiva em saúde Mário Henrique da Mata Martins(a) Mary Jane Paris Spink(b)

Martins MHM, Spink MJP. Use of disaster risk communication technologies as a preventive healthcare practice. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):503-14.

Use of communication technologies for disaster risk management has brought players together with the aim of avoiding the effects of these phenomena on global public health. This paper analyzes discursive explanations about the use of these technologies in São Paulo, Brazil, given by specialists, managers and volunteers. The results show that informal actions reduce the time taken to issue warnings in chaotic situations; risk communication, although polarized, may operate jointly as a multiple network; and flexible technologies may be adapted to adverse situations and transported to different locations, to meet the demands from the government and civil society. However, are these communication practices based on prevention? To answer the question, we propose that disaster prevention based on harm reduction strategies may be an alternative for those engaged in preventive practices.

Keywords: Risk communication. Disasters. Prevention. Technology.

O uso de tecnologias de comunicação para o gerenciamento de riscos de desastres tem agregado atores com o objetivo de evitar os efeitos desses fenômenos na saúde pública global. Este artigo analisa versões discursivas de especialistas, gerentes e voluntários sobre a utilização dessas tecnologias em São Paulo, Brasil. Os resultados mostram que: ações informais reduzem o tempo de emissão de alertas em situações caóticas; a comunicação de risco, embora polarizada, pode operar em conjunto como uma rede múltipla; e tecnologias flexíveis podem ser adaptadas para situações adversas e transportadas para diferentes locais, atendendo demandas governamentais e da sociedade civil. No entanto, essas práticas de comunicação são baseadas na prevenção? Para responder à pergunta, os autores propõem que a prevenção de desastres baseada em estratégias de redução de danos pode ser uma alternativa para aqueles envolvidos em práticas preventivas.

Palavras-chave: Comunicação de riscos. Desastres. Prevenção. Tecnologia.

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(a,b) Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social, Faculdade de Ciências Humanas e da Saúde, Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Rua Monte Alegre, 984, Perdizes. São Paulo, SP, Brasil. 05014-901. martins.mariodamata@ uol.com.br; mjspink@ pucsp.br

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Introdução O aumento de agravos, lesões e óbitos relacionados a desastres ambientais configuram esses fenômenos como problemas de saúde pública global1. A exposição aos riscos, presença de condições de vulnerabilidade e insuficiência na capacidade de resposta para enfrentar esses eventos têm sido os principais fatores considerados pelos sistemas de gerenciamento, e são possibilidades de enfoque das políticas, profissionais e serviços de saúde2. Durante muito tempo, estudos sobre desastres ambientais refletiram a lógica governamental de investimento em estratégias pós-desastres, com ênfase em: medidas de socorro aos afetados, reconstrução de espaços comprometidos e contabilização dos prejuízos financeiros, humanos e sociais3. Apesar de imprescindíveis, essas estratégias tornaram-se insuficientes diante do aumento na frequência desses eventos, de modo que as práticas de prevenção e preparação tornaram-se centrais às políticas de redução de desastres mundiais a fim de evitar os riscos, preparar a população para situações de crise e reduzir os impactos desses eventos4. Os governantes brasileiros têm legitimado, por meio de documentos oficiais, a necessidade de práticas de enfrentamento a desastres desde a constituição de 18245. A primeira legislação específica sobre o assunto é datada de 1995, e institui a Política Nacional de Defesa Civil6. Essa política passa a ganhar destaque nos anos 2000, trazendo à baila a necessidade de ações em diferentes fases, mas sem foco concreto na prevenção. A Política Nacional de Proteção e Defesa Civil, outorgada em 2012, passa a enfocar esse eixo como transversal e incentivar a articulação intersetorial com políticas públicas de saúde, educação, assistência social, uso e ocupação do solo, saneamento básico7. Nesse contexto, as ações de prevenção pautadas na comunicação de riscos, com enfoque na obtenção e difusão adequada de informações sobre eventos potenciais, têm sido fundamentais. Desde a revolução das tecnologias de comunicação, houve a possibilidade de ampliar o acesso à informação, o que influenciou o modo pelo qual o risco passou a ser comunicado8. Embora haja restrições no acesso a determinados tipos de tecnologias comunicacionais e na elaboração de seus produtos9, a difusão de informações sobre riscos exigiu medidas públicas de controle, deslocando a responsabilidade estritamente técnico-científica da análise de riscos para o coletivo10. Nesse sentido, as tecnologias de comunicação de riscos de desastres são mais do que veículos informativos: elas podem promover a produção e circulação de informações e o engajamento de atores em ações preventivas. Entretanto, poucos estudos empíricos têm sido desenvolvidos com foco na comunicação de riscos de desastres, como, por exemplo, aqueles relacionados às inundações, os desastres mais recorrentes no mundo11. Por esse motivo, tomamos os usos das tecnologias de comunicação de riscos como fundamentais para a efetivação das práticas de prevenção de desastres e redução dos impactos desses eventos na saúde da população. O referencial teórico adotado pauta-se no movimento construcionista, o qual assume que a linguagem é ação e que relacionar elementos sociais distintos, por meio do ato discursivo, produz versões de mundo12. Estes pressupostos são compartilhados por estudiosos da vertente de estudos sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade (CTS), que agregam, ao debate construcionista, a desnaturalização da cisão entre natureza e sociedade. De acordo com esses autores, natureza e sociedade não estão divididas a priori, mas coordenadas como um sistema complexo e organizadas em processos coletivos nos quais diferentes participantes, ações e objetos do mundo são agregados. Essas associações dos coletivos pautam diversas práticas, incluindo a comunicação e a tomada de decisões sobre riscos e temas controversos como os desastres13,14. Uma das consequências de se trabalhar com coletivos é que há elementos associados ao sistema de prevenção de desastres que, não apenas, os seres humanos. Os aparatos tecnológicos são produto de um sistema e, portanto, refletem, internalizam e transformam as relações de poder e as suposições culturais15. Portanto, este artigo pressupõe teoricamente que os aparatos tecnológicos de prevenção e as práticas a eles atreladas são produzidos e produzem efeitos em nossos modos de viver como coletivo, sendo necessário conhecer os efeitos que essas tecnologias têm produzido para aprofundar a discussão sobre a prevenção de desastres e, em especial, sobre a comunicação de riscos. Para abordar essa temática, foram realizados estudos de caso sobre a prevenção de desastres na capital paulista, 504

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enfocando práticas e tecnologias de comunicação de riscos nos sistemas de monitoramento e alerta de desastres, para se compreender seus efeitos no atual paradigma da prevenção.

Método Esta é uma pesquisa qualitativa pautada em estudo de caso do tipo descritivo-analítico. A abordagem específica e contextual de temas amplos e complexos a partir da circunscrição de casos que servem como objeto de estudo, a descrição minuciosa dos casos, dos fenômenos a ele atrelados, e sua problematização frente a referenciais analíticos, são características fundamentais do método adotado16. Três estudos de caso foram desenvolvidos, dos quais participaram, respectivamente: cinco membros de uma equipe de operação do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN), o gestor responsável pelas ações preventivas e recuperativas da Coordenação de Proteção e Defesa Civil de São Paulo (COMPDEC), e três radioamadores voluntários em exercício de suas atividades na Rede Nacional de Emergência de Radioamadores (RENER). Os casos foram selecionados por contemplarem versões distintas de atores que lidam com a comunicação de riscos em determinado coletivo: os técnicos, os gestores e os voluntários das ações de comunicação de riscos de desastres. Estes atores lidam, respectivamente, com documentos de alerta de risco, pluviômetros e rádios. Cada uma dessas tecnologias foi discutida com os participantes, bem como os efeitos de sua utilização para a prevenção. A observação participante foi a técnica utilizada para compreender o funcionamento institucional, as práticas de monitoramento e alerta, e as tecnologias utilizadas, registrando essas informações em diários de campo17. Quando os diários de campo não eram suficientes para formulação dos casos, optou-se por complementar as informações com entrevistas que aprofundaram questões identificadas nos diários, para se compreender o posicionamento dos interlocutores, seus argumentos e o modo como eles sustentam suas práticas18. Os diários produzidos a partir do acompanhamento das práticas dos operadores do CEMADEN foram suficientes para elaboração desse caso, sendo a entrevista utilizada com o gestor (COMPDEC) e os radioamadores (RENER). Foi solicitada autorização para registro das informações nos diários de campo, gravação da entrevista e posterior transcrição.

Caso 1: Comunicação de riscos por protocolos e rascunhos de alerta: a relação com o espaço Este estudo de caso discute as estratégias utilizadas por operadores do CEMADEN para informar as autoridades e a população sobre o risco de ocorrência de desastres. Os operadores usam dois tipos de tecnologias de comunicação: o protocolo de emissão de alertas e o rascunho de alerta. Ambos foram desenvolvidos com o objetivo de aprimorar os processos comunicativos, entretanto, de maneiras diferentes. Protocolos ordenam objetos, pessoas, situações e instituições, e estabelecem diretrizes que contribuem para tomadas de decisão em situações de risco de desastre. Um desses instrumentos é o protocolo de emissão de alertas firmado entre o CEMADEN, localizado em Cachoeira Paulista–SP, e o Centro Nacional de Gerenciamento de Riscos de Desastres Naturais (CENAD), localizado em Brasília– DF. Segundo este protocolo: Todo alerta de risco de desastres naturais emitido pelo CEMADEN deverá ser enviado ao CENAD, para se constituir em subsídio fundamental para a tomada de ações preventivas de proteção civil. [...]. O alerta emitido pelo CEMADEN será enviado sistematicamente através de e-mail em formato pdf. No caso de alertas envolvendo classificações de risco alto, será também comunicado ao CENAD verbalmente via telepresença e/ou via telefônica. Em situações precursoras de riscos classificados como nível de risco MUITO ALTO, a comunicação via telepresença entre o CEMADEN e o CENAD será permanente enquanto perdurar essa situação. Pelo menos duas vezes por dia, serão realizadas discussões (briefings) entre as equipes

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técnicas do CEMADEN e do CENAD. Como resultado das discussões, o CEMADEN enviará um documento sumarizando as situações de risco de desastres de natureza hidrológica e geológica. Em situações excepcionais, de risco iminente de desastres naturais de rápido desenvolvimento, a comunicação do alerta via telefone ou telepresença pode acontecer antes de envio do arquivo pdf. contendo o referido alerta.19 (s/p)

No protocolo determina-se que os alertas de risco produzidos pelo CEMADEN, com base nos dados meteorológicos locais de satélites, radares e pluviômetros, deverão ser encaminhados ao CENAD, para subsidiar as tomadas de ações preventivas e preparativas. Ambas as instituições compartilham o alerta como objeto de atenção e intervenção, e a implantação do protocolo busca evitar conflitos de gerenciamento. Para isso, opera-se de uma maneira dupla: distribuindo funções e responsabilidades e integrando ações conjuntas. Com relação à distribuição de funções, o CEMADEN produz e encaminha um alerta para o CENAD, que, por sua vez, o recebe, avalia e emite para estados e municípios. Tal organização produz regiões, metáfora que se refere a versões do mundo no qual os espaços são exclusivos20. Isso gera divisões nítidas nas quais não há sobreposição de campos: as funções pertencentes ao CEMADEN e aquelas pertencentes ao CENAD não são compartilháveis entre ambas as instituições. O que cabe a um, não pode ser exercido pelo outro. Todavia, este protocolo não opera apenas pela divisão de responsabilidades. A comunicação entre CEMADEN e CENAD é estabelecida por meio de instrumentos e equipamentos de comunicação e é pontuada pelos níveis de risco de desastres. Quando há alertas envolvendo alto risco, é necessário um comunicado verbal, via telepresença e/ou via telefônica. Além disso, em situações precursoras de riscos classificados como muito alto, a comunicação por esses meios torna-se permanente19. Nesse momento, emerge um conjunto similar de elementos e relações que permite interfaces independentemente da localização: elementos similares estão próximos e elementos diferentes mais distantes, o que caracteriza uma lógica de operação em redes20. Por estarem geograficamente localizados em espaços diferentes, é necessária outra organização espacial para integrar os centros. Isso é possível porque há telefones, linhas de energia, técnicos que possuem uma linguagem similar e um equipamento de videoconferência em ambas as instituições. A rede pode, dessa maneira, unir elementos que se encontram em regiões distantes. Enquanto os cabos não falharem, os telefones não quebrarem, os técnicos estiverem presentes nas salas de reuniões e souberem manejar tais instrumentos, a comunicação ocorrerá. Entretanto, essa comunicação é restringida pelos mesmos elementos que a sustentam. Ela existe, se os elementos existirem. Caso contrário, em situações imprevisíveis, ela falha. As situações excepcionais de imprevisibilidade são consideradas no protocolo, o que é de suma importância. O problema é que aquilo que se denomina como excepcional pode ocorrer com mais frequência do que imaginado, e o protocolo incorpora esses acontecimentos do modo tradicional: associando o imprevisível à regra. Dizer que uma ação pode ser antecipada não significa tornar flexível o protocolo. Significa dizer que, em outras situações que não estejam enquadradas nas definições de excepcionalidade, essa antecipação não será, sob nenhuma hipótese, possível. O imprevisível é incorporado ao ordenamento e deixa de ser imprevisível. Isso não significa dizer que protocolos sejam inúteis. Eles servem como diretrizes que precisam ser constantemente modificadas. Um protocolo é um guia, um mapa entre regiões. Ele só não produz um espaço para lidar com situações, de fato, imprevisíveis. Nesse caso, outra tecnologia cumpre essa função, conforme trecho de diário de campo: “Durante a estadia no CEMADEN, me contaram sobre uma estratégia muito interessante dos profissionais: fazer rascunhos de alertas. Para explicar essa prática, os operadores comentam a possibilidade de eventos em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Sul da Bahia nas horas que se sucederiam e como eles buscavam reduzir o tempo da emissão do alerta. ‘Nós fazemos os

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rascunhos, por exemplo, agora, porque estamos com medo de que tudo aconteça ao mesmo tempo. Com o rascunho pronto, alteramos rapidamente algumas informações e deixamo-lo no gatilho para a qualquer momento enviá-lo’. ‘Se vocês tivessem de fazer esse alerta escrito na hora, quanto tempo demoraria?’ ‘Bem... no máximo quinze minutos’”.

Os profissionais preocupam-se com o tempo entre o envio e a chegada do alerta na comunidade afetada. Logo, quando identificam uma situação que pode se agravar no futuro de modo que eles não tenham condições de lidar com todas as variáveis ao mesmo tempo, eles antecipam a catástrofe: um dos profissionais escreve um rascunho de alerta para determinado local com ajuda dos demais e o arquiva. Caso as situações comecem a se complicar e os dados sejam produzidos com extrema rapidez, os profissionais recorrem ao rascunho. Caso contrário, o rascunho permanece em stand-by. O rascunho de alerta é resultado do cotidiano de trabalho dos técnicos do CEMADEN. Ele não aparece em um manual de procedimentos. Ele também não é uma estratégia presente de forma generalizada em redes de monitoramento. Ele apareceu nesse contexto como efeito da necessidade de garantir maior rapidez na comunicação de riscos e como estratégia informal e criativa para lidar com a mistura de dados simultâneos característicos dessas situações complexas. Ele é um fluido emergente de situações informais para lidar com situações complexas20. É importante salientar que a distinção entre formas de comunicação de riscos produzidas entre regiões, redes e fluidos é meramente didática. Temos oscilações entre essas formas de organizar práticas em relação ao espaço e mesclas indissolúveis desses elementos. A comunicação de riscos é, portanto, uma prática múltipla no CEMADEN, sendo as formas de organização dos espaços em que essa comunicação deve fluir o elemento principal para efetividade da emissão do alerta: o que cabe ao protocolo e o que cabe às práticas informais.

Caso 2: Os pluviômetros e a comunicação de risco entre população e governo O presente estudo de caso aborda o uso de três tipos de pluviômetros pela gestão do município de São Paulo para preparação das comunidades para uma eventual catástrofe. As informações apresentadas foram obtidas em entrevista com um gestor responsável pelas ações de prevenção e recuperação do município, e o enfoque da análise e discussão é na comunicação de riscos. Um pluviômetro é um instrumento que mede a quantidade de água da chuva que cai em determinado lugar por determinado período. Esses instrumentos começaram a ser fornecidos pelo CEMADEN a partir do projeto Pluviômetros nas Comunidades, de responsabilidade do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que repassará pluviômetros automáticos e semiautomáticos ao município de São Paulo. O seguinte trecho da entrevista com o responsável por gerir esses equipamentos na cidade oferece algumas informações sobre esses instrumentos: “Os [pluviômetros] automáticos vão fazer parte de uma rede de monitoramento do Centro de Gerenciamento de Emergências (CGE) e da Defesa Civil. Uma coisa mais institucional para balizar a operação do plano e sistemas de alertas. Os semiautomáticos são, mais do que você ter o equipamento, pra você mobilizar a população. Então ele tem um aspecto que vai juntar duas coisas: te passar uma informação e, principalmente, mobilizar a comunidade”.

O entrevistado apresenta, ainda, os pluviômetros de garrafa PET, que existem na rede junto a pluviômetros automáticos mais antigos. O uso do pluviômetro de garrafa PET na rede de monitoramento e alerta para a comunicação de riscos foi uma forma criativa de lidar com a carência de recursos, mas a adesão, por parte da população, a esse equipamento foi baixa. “Porque do PET tem que olhar, tem que medir, tem que tirar a água, pra não deixar a água por causa da dengue, entendeu?”. Semelhanças e diferenças entre esses equipamentos podem ser observadas no Quadro 1.

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Quadro 1. Semelhanças e diferenças entre pluviômetros automáticos, pluviômetros semiautomáticos e pluviômetros feitos de garrafas PET Tipo Automático

Semiautomático

Garrafas PET

Características

Custo

Não demanda energia elétrica, não requer constante manutenção, e é colocado em lugares altos para captar melhor o sinal de celular e as gotas de chuva. Não requer manutenção constante, é colocado em áreas de risco, é acessível aos moradores, e requer treinamento para leitura e interpretação de dados. Colocado em áreas de risco; demanda manutenção constante e requer treinamento dos moradores para ler e interpretar os dados.

Alto

Alto

Baixo

Fluxo da comunicação

Objetivo

A informação sobre o risco é enviada via telefone celular para agências nacionais responsáveis, e essas agências encaminham a informação para gestores nos órgãos municipais e estaduais.

Orienta o planejamento e operação de sistemas de alerta no nível institucional.

Um morador treinado interpreta os dados no nível local e encaminha a informação, ao nível institucional, para o órgão de Proteção e Defesa Civil responsável

Integra a comunidade na comunicação dos riscos e torna a mobilização local mais rápida caso seja necessário evacuar a área.

Um morador treinado interpreta os dados no nível local e encaminha a informação, ao nível institucional, para o órgão de Proteção e Defesa Civil responsável

Integra a comunidade na comunicação dos riscos e torna a mobilização local mais rápida caso seja necessário evacuar a área.

Fonte: As informações sobre os pluviômetros automático e semiautomático foram adaptadas de http://www.cemaden.gov.br/. As informações sobre os pluviômetros de Garrafas PET foram adaptadas da entrevista com o gestor responsável.

Os três pluviômetros produzem versões diferentes de gestão. O pluviômetro automático, locado no alto de caixas d’água dos Centros de Ensino Unificados (CEUs) da periferia de São Paulo, baliza ações governamentais. As informações sobre níveis pluviométricos obtidos nesses equipamentos são repassadas ao CEMADEN, que as transmite ao CENAD, o qual emite o alerta ao município e entidades responsáveis locais. Os pluviômetros semiautomáticos, por sua vez, são implantados próximos a áreas de risco, e os moradores são capacitados para: realizar a leitura das informações registradas, mobilizar os residentes para retirada em caso de risco, e repassarem essa informação posteriormente aos gestores. O uso do pluviômetro automático exige que a responsabilidade pelo gerenciamento das condições de risco e as medidas de prevenção, preparação e resposta seja delegada aos gestores e técnicos, enquanto o uso do pluviômetro semiautomático e do pluviômetro de garrafa PET condiciona essa responsabilidade quase que exclusivamente aos moradores21. Com relação ao fluxo da comunicação de riscos, a polaridade parece se repetir. Com o uso de pluviômetros automáticos, a comunicação de riscos segue um longo percurso entre instituições até a comunidade, e prioriza o conhecimento e a tomada de decisões por parte das autoridades e técnicos. É um modelo tradicional de comunicação que acaba por excluir a população como agente ativo do processo. São os governantes quem decidem que ações são cabíveis diante das informações recebidas. Por outro lado, o pluviômetro semiautomático e o de garrafas PET pautam-se em um fluxo de comunicação de riscos de curto prazo. Os estudos sobre mobilização comunitária consideram que o repasse da mensagem por pessoas de confiança do local é mais eficiente do que a mensagem passada por desconhecidos, em geral, as autoridades públicas22. Considera-se, ainda, que o envolvimento dos moradores com o processo de planejamento e teste dos planos de emergência lhes possibilita identificar a amplitude e os limites das autoridades públicas para lidar com riscos de desastres, e, por meio disso, evitar a produção de um sentimento de falsa segurança gerado ao delegar responsabilidades única e exclusivamente para os gestores e técnicos23. Essa aparente polaridade não exclui a aplicação de pluviômetros automáticos, semiautomáticos ou de garrafas PET. É necessário salientar que eles estão sendo implantados para operar com uma rede a coproduzir uma comunicação de riscos múltipla. Entretanto, eles precisam ser instalados de modo adequado em locais adequados, e todos os componentes devem operar para que eles funcionem: 508

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as redes de celular, a disponibilidade dos moradores para participar dos cursos de capacitação, a manutenção dos equipamentos. Sem isso, a rede de comunicação de riscos pautada nos pluviômetros pode falhar. Mas o que fazer em situações nas quais instrumentos estão sujeitos a falhas? O próximo estudo propõe que há tecnologias de comunicação de riscos que exigem menos elementos para o seu funcionamento e operação: tecnologias flexíveis.

Caso 3: Os radioamadores voluntários e suas tecnologias flexíveis: a questão da imprevisibilidade Este caso analisa o serviço de radioamadorismo em situações de desastres, e as características que permitem a adaptação de seus meios de comunicação em situações de crise. Radioamadores são pessoas que realizam experiências com ondas eletromagnéticas para comunicações de âmbito mundial sem fins lucrativos24. Em situação de desastres, esse serviço busca complementar ou substituir sistemas de comunicação. Eles coletam, recebem e reportam informações sobre riscos, vítimas, abrigos, alimentação e primeiros-socorros em situações catastróficas que requerem resposta assistencial imediata. Para além dessas ações, os radioamadores estão sendo convidados a fornecerem seus serviços voluntariamente em tempos de estabilidade, de modo a promoverem formas de preparação para eventuais situações de desastres25. No Brasil, sua atuação como voluntários em desastres tem longa trajetória. No desastre da Serra do Mar em São Paulo, no dia 18 de março de 1967, um deles foi responsável por retomar as comunicações com os órgãos governamentais após as redes de comunicação falharem na região de Caraguatatuba-SP: “A cidade ficou sem energia elétrica e sem comunicação, isolada do mundo, sufocada pela lama e água. Somente no dia 19 de março, o radioamador Tomás Camanis Filho, conseguiu a primeira comunicação com a cidade de Santos”26. Em 2001, a RENER, responsável pela inscrição e disposição de radioamadores voluntários para tempos de catástrofe, foi instituída por meio de portaria. Além disso, radioamadores contribuíram para a retomada das comunicações no desastre da região serrana do Rio de Janeiro, em 2011. Recentemente, a nova Política Nacional de Proteção e Defesa Civil reconheceu a importância desses atores e atribuiu, aos municípios, responsabilidade pelo seu treinamento e capacitação para trabalhar em situações de catástrofes, o que caracteriza um avanço importante para a categoria7. Por outro lado, ao mesmo tempo em que atribui ao serviço a legitimidade de uma ação, a nova legislação restringe o radioamador a uma atuação de caráter eminentemente socorrista. Mas radioamadores não estão apenas restritos a ações de resposta. De acordo com as entrevistas realizadas com radioamadores ativos na RENER, eles estão preparados para situações imprevisíveis. Quando um acontecimento real ocorre durante o simulado de preparação para catástrofes (uma parturiente que passa mal é encaminhada de ambulância ao hospital e o marido fica sem notícias), os radioamadores identificam a falha da rede de comunicações oficiais e buscam solucionar o problema: “As pessoas no centro de operações do simulado (COS) não tinham informações sobre a ambulância ou comunicação com o hospital. Ao tomarmos conhecimento dessa falha, estabelecemos duas estações de radio, uma no COS e outra no hospital. O propósito da estação no hospital foi coletar informações sobre quem dava entrada no hospital, qualificando as informações por relevância e retornando a informação para a estação no COS. Isso possibilitou que mantivéssemos o centro de simulação informado e atualizado”.

Essa atuação foi possível porque os radioamadores consideraram as possibilidades de falha dos sistemas e adaptaram suas tecnologias. Nos sistemas de comunicação, é raro que a falha seja incorporada como possibilidade. Ela, geralmente, é algo a ser evitado. Entretanto, essas possibilidades, exemplificadas pelo relato real da parturiente no simulado, são e estão sempre presentes, mesmo levando em consideração a competência de todos os envolvidos. Apesar de todos os esforços, do engajamento de todos os atores e do correto funcionamento de todas as tecnologias, um imprevisto COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ou, mesmo, o desastre pode ocorrer. Para lidar com essa situação, é necessário adaptar práticas e tecnologias disponíveis no momento. “O radioamador, através do seu próprio veículo, do seu carro, ele pode ligar o rádio dele na bateria do carro que ela funciona com os 12 volts. Então, com esse recurso, ele pode falar com muita gente, até com outros estados. [...]. E se a bateria do veículo começar a gastar, ficar fraca, ele tem o recurso de ligar o motor do carro e o alternador joga carga na bateria, ou seja, enquanto ele tiver combustível no tanque, ele consegue falar!”

O caso citado mostra como radioamadores podem ser tecnologias flexíveis que incorporam a possibilidade de falha e continuam a trabalhar em certa medida, mesmo em condições alteradas27. Radioamadores são flexíveis porque utilizam o que está à disposição e podem circular pelo espaço. Podem ir ao local do evento e comunicar, em tempo real, as ocorrências daquela localidade, e promover ações com vistas a reduzir os danos provocados. Isso não significa dizer que eles funcionam sempre, em qualquer situação. Há momentos em que absolutamente tudo falha, inclusive radioamadores. Antes disso, porém, muito pode ser feito para que o funcionamento da rede seja mantido. Os radioamadores ensinam que é necessário aprender a lidar com a imprevisibilidade em práticas preventivas, como a comunicação de riscos de desastres.

O desastre como processo contínuo e a prevenção como redução de danos Apesar da distinção entre os usos das três tecnologias de comunicação de riscos, duas questões as perpassam: a possibilidade de falha dos equipamentos e o objetivo de prevenir. Se toda tecnologia é sujeita a falhas, por mais flexíveis que sejam, é possível uma prevenção que se paute na possibilidade de evitar desastres? Esse é o principal problema com relação à atual forma de prevenção de desastres. “Pois se é necessário prevenir a catástrofe, é preciso crer em sua possibilidade antes que ela ocorra. Se, inversamente, se conseguir preveni-la, sua não realização a mantém no campo do impossível, e os esforços de prevenção mostram-se respectivamente inúteis”28 (p. 22). Desse modo, o pressuposto de que é possível evitar desastres ambientais por meio de estratégias de prevenção é paradoxal: não há como garantir que um desastre seja ou venha a ser evitado, ou, mesmo, confirmar isso por meio dos nossos atuais dispositivos técnicos e científicos. O agente de prevenção fundamentado no princípio da precaução absoluta é tão falho quanto o profeta que anuncia uma catástrofe potencial. Se a catástrofe acontece, o agente de prevenção, assim como um profeta, falhou por não ter agido com vistas a evitá-la. Quando a catástrofe não acontece, permanece no âmbito do impossível, do improvável, o agente de prevenção não pode oferecer provas que legitimem suas ações. Como resolver esse impasse? Como pensar em outra forma de prevenção que não esteja pautada nessa precaução paralisante? Nessa catástrofe que ora se confirma como tragédia ora se ausenta como ironia? Propomos realizar um curto-circuito nesse sistema: é necessário incluir a falha como contingência dos sistemas e assumir que o lugar da catástrofe não está no futuro, mas no presente. Nas atuais condições de vulnerabilidade e incapacidade de resposta a situações de crise em que se encontram as populações de grandes metrópoles, como São Paulo, o desastre não é um evento, mas um contínuo. O crescimento desordenado, a falta de saneamento básico, a precária infraestrutura urbana e de coleta de lixo, a ausência ou baixa qualidade na moradia e serviços para a promoção da qualidade de vida da população refletem sua vulnerabilidade socioambiental e os danos crônicos aos quais está exposta29. Por essa razão, as fases dos desastres não podem ser entendidas como sistemas lineares. Se os efeitos catastróficos dos desastres estão acontecendo em um mesmo momento, no presente, as ações para geri-los devem ser, portanto, concomitantes. O que propomos é pensar nas fases da gestão do desastre menos como um fluxo linear, e mais como um fluido20. Isso implica pensar estratégias preventivas, como a comunicação de riscos, menos como uma forma de evitar desastres, e mais como uma estratégia integrada de redução de danos. 510

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A redução de danos é uma proposta que visa minimizar os danos sociais e à saúde frente determinada situação crônica. Atualmente, tem sido de grande importância política no âmbito da saúde mental, em contraposição à lógica da abstinência e da guerra às drogas30. O princípio da minimização do dano crônico é o que propomos para sair do paradoxo da prevenção de desastres: as mazelas sociais que produzem as situações catastróficas no Brasil são o desastre que buscamos evitar. Na dificuldade de reversão imediata da terrível situação de moradias precárias, por exemplo, a redução de danos se faz cimentando as encostas para que não haja escorregamentos, ou criando diques para retenção da água da chuva que provocaria a inundação. As moradias continuam precárias, bem como sua condição sanitária: danos a serem minimizados ao longo do tempo. Todavia, com as intervenções estruturais, diminui-se a chance de elas virem abaixo ou inundarem, e possibilitaram implantar outras intervenções de longo prazo para melhorias na qualidade de vida dessa população. A redução de danos no processo comunicativo, por sua vez, dá-se por meio da redução do tempo entre obtenção da informação, tomada de decisão e ação. Quanto mais tempo dispendido com a obtenção da informação, menos tempo para agir em prol de salvar vidas. Rascunhos de alerta e pluviômetros semiautomáticos, por exemplo, aumentam o tempo disponível para lidar com as ações de retirada e para a resposta a situações de emergência. Os danos econômicos de uma inundação ou deslizamento podem não variar, mas os minutos obtidos com essas tecnologias podem ser cruciais para a proteção e manutenção da vida das pessoas de determinada comunidade. Reduzir o tempo é reduzir danos: nossa ação possível para lidar de forma preventiva com a cronicidade do desastre cotidiano.

Considerações finais Os desastres ambientais têm aumentado em número e frequência nos últimos anos, acarretando problemas de saúde pública, sendo necessário repensar as práticas de prevenção, em especial, a comunicação de riscos. Neste trabalho, realizamos três estudos de caso que possibilitam compreender as tecnologias e os fluxos da comunicação de riscos para prevenção, preparação e resposta em situações de desastres no município de São Paulo. Analisamos, inicialmente, os rascunhos de alerta, artefatos criativos que não foram criados por uma ordem hierárquica, mas por uma prática local, particular, específica entre profissionais e que cumprem a função de reduzir o tempo de emissão de alertas em situações em que tudo emerge ao mesmo tempo sem ferir os princípios básicos dos protocolos institucionais entre CEMADEN e CENAD. Este estudo nos possibilitou entender que, no contexto destas instituições, a comunicação de riscos pode se dar de forma protocolar ou a partir de organizações informais. Em seguida, discutimos como os pluviômetros da rede de Proteção e Defesa Civil do município de São Paulo produzem modos de comunicação de riscos distintos, dependendo de seus elementos agregados: uma comunicação de riscos governamental ou populacional, polarizando a responsabilização nesse sistema. Este estudo de caso possibilitou compreender que essa rede de comunicação de riscos, apesar de polarizada, opera de forma conjunta, configurando uma situação de comunicação múltipla de riscos. Por fim, discutimos o radioamadorismo, uma prática na qual os equipamentos podem ser adaptados às situações adversas e transportados para diferentes espaços pelos seus operadores, que estão disponíveis para atender às demandas de membros do governo e da sociedade civil em momentos de crise. Este estudo de caso aponta para a necessidade de investir em tecnologias flexíveis de comunicação de riscos e em uma discussão sobre estratégias para lidar com a imponderabilidade. As três tecnologias de comunicação, entretanto, apresentam, como problemas, a possibilidade de falha dos equipamentos e o objetivo de prevenir. Vimos que, no contexto da rede de São Paulo, a prevenção pautada na lógica de evitar desastres pode ser considerada uma utopia, sendo sua operacionalização paradoxal: ou o desastre se confirma e falha a prevenção, ou não acontece e permanece como ficção. Por esse motivo pensar na prevenção de desastres a partir da lógica da redução de danos pode ser uma alternativa aos envolvidos. Os desastres estão imbricados às vulnerabilidades de grandes metrópoles como São Paulo. Uma prevenção pautada na redução de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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danos possibilita, por meio de ações continuadas: diminuir as vulnerabilidades, garantir o acesso a direitos, e promover a saúde entre membros da população. Ao especificar essa lógica para a comunicação de riscos, vemos que, dirimir o tempo entre informação e ação, aumenta as chances de garantia do direito básico: a vida. Para finalizar, as práticas e tecnologias de comunicação discutidas nesse trabalho partem de instâncias de governo ou atores associados a essas instâncias para a comunidade. Outras incursões nessa temática podem abordar as estratégias de comunicação de riscos produzidas pelos próprios moradores de áreas de riscos de desastres ambientais para promover a saúde de forma ampliada.

Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Agradecimentos Os autores agradecem as contribuições dos profissionais e voluntários do Centro Nacional de Monitoramento e Alerta de Desastres Naturais (CEMADEN), da Coordenadoria Municipal de Defesa Civil de São Paulo (COMPDEC) e da Rede Nacional de Emergência de Radioamadores (RENER). Agradecem ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio e financiamento. Referências 1. Noji EK. The public health consequences of disasters. Prehosp Disaster Med. 2000; 15(4):147-57. 2. Kleim M. Preventing disasters: public health vulnerability reduction as a sustainable adaptation to climate change. Prehosp Disaster Med. 2011; 28(1):45-45. 3. Alexander D. The study of natural disasters (1977-97): some reflections on a changing field of knowledge. Disasters. 1997; 21(4):284-304. 4. United Nations. Final report of the scientific and technical committee of the International Decade for Natural Disaster Reduction [Internet]. Genebra: SW; 1999 [acesso 2014 Jan 20]. Disponível em: http://www.un.org/documents/ecosoc/docs/1999/ e1999-80add1.htm 5. Constituição (1824). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília (DF): Senado Federal; 1984. 6. Ministério da Integração Nacional. Política Nacional de Defesa Civil. Diário Oficial da União. 5 Jan 1995. 512

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Martins MHM, Spink MJP. El uso de tecnologías de comunicación de riesgos de desastres como práctica preventiva en salud. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):503-14. El uso de tecnologías de comunicación para la gestión de riesgos de desastres ha agregado actores con el objetivo de evitar los efectos de estos fenómenos en la salud pública global. Este artículo analiza versiones discursivas de especialistas, gerentes y voluntarios sobre la utilización de estas tecnologías en São Paulo, Brasil, los resultados muestran lo siguiente: acciones informales reducen el tiempo de emisión de alertas en situaciones caóticas, la comunicación de riesgo, aunque polarizada, puede operar en conjunto como una red múltiple y las tecnologías flexibles pueden adaptarse a situaciones adversas y transportarse a diferentes locales, atendiendo demandas gubernamentales y de la sociedad civil. No obstante ¿esas prácticas de comunicación se basan en la prevención? Para responder a tal pregunta, los autores proponen que la prevención de desastre basada en estrategias de reducción de daños puede ser una alternativa para los envueltos en prácticas preventivas

Palabras clave: Comunicación de riesgos. Desastres. Prevención. Tecnología. Recebido em 08/07/14. Aprovado em 25/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0571

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As Comunidades Terapêuticas religiosas na recuperação de dependentes de drogas: o caso de Manguinhos, RJ, Brasil Fernanda Mendes Lages Ribeiro(a) Maria Cecília de Souza Minayo(b)

Ribeiro FML, Minayo MCS. Religious therapeutic communities in recovering drug users: the case of Manguinhos, state of Rio de Janeiro, Brazil. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):515-26. This paper analyses the role of religious therapeutic communities in recovering and rehabilitating drug users, taking the Manguinhos complex of slums in Rio de Janeiro, Brazil, as the case. The study used a qualitative approach through interviews, participant observation and institutional materials. The technique of analysis of enunciation was applied in order to interpret the material. There is a strong presence of religious institutions that aim to form therapeutic communities for treating drug dependence. The main forms of recovery and rehabilitation comprise evangelization and religious conversion. Faith-based therapeutic communities conceptualize a treatment model focused on prayer and abstinence, which is a view at odds with public mental health policies. However, the public infrastructure has been unable to make effective responses to the demand. The controversy generated by this issue closes this paper.

Keywords: Therapeutic community. Drugs. Recovery. Religion.

Este artigo analisa o papel de Comunidades Terapêuticas (CT) religiosas na recuperação e reabilitação de usuários de drogas, tomando como caso o complexo de favelas de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. Trata-se de estudo com abordagem qualitativa, por meio de entrevistas, observação participante e materiais institucionais. Para compreensão e interpretação do material, foi utilizada a análise de enunciação. Há ampla presença de instituições religiosas que têm a CT como proposta de cuidado à dependência de drogas. As principais formas de recuperação e de reabilitação são a evangelização e a conversão religiosa. As CT confessionais concebem um modelo de tratamento centrado na oração e na abstinência, modelo este em desacordo com as políticas públicas de saúde mental. No entanto, os equipamentos públicos não têm conseguido dar respostas eficazes à demanda. A controvérsia gerada nesse particular encerra este artigo.

Palavras-chave: Comunidade Terapêutica. Drogas. Recuperação. Religião.

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(a,b) Centro LatinoAmericano de Estudos de Violência e Saúde Jorge Careli, Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Av. Brasil 4036, sala 700. Manguinhos, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21040-361. fernandamlr@ claves.fiocruz.br; cecilia@ claves.fiocruz.br

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As comunidades terapèuticas religiosas ...

Introdução O uso de substâncias psicoativas está presente ao longo da história1 da humanidade como prática religiosa, medicamentosa ou recreativa. Já sua configuração como problema social data do fim do século XIX1-6. No Brasil, o tema da atenção a usuários abusivos de álcool e outras drogas entra como pauta das políticas públicas nos anos 1990, a partir da concepção de cuidado fundamentada nos direitos do usuário7, indo na contramão das práticas de exclusão adotadas pelos hospitais psiquiátricos. No entanto, ainda hoje, ambos os modelos permanecem em disputa, assumindo tendências distintas de acordo com os contextos social, econômico, político e cultural8-10. Desde 2003, a redução de danos é a política oficial do Ministério da Saúde11, propondo diminuir os riscos de natureza biológica, social e econômica do uso de drogas, e pautando-se no respeito ao indivíduo e ao seu direito de escolha. Outra direção, diametralmente oposta, é a abstinência, aplicada pelas Comunidades Terapêuticas (CT)4,11,12. Com o objetivo de recuperar dependentes de drogas, as igrejas atuam evangelizando nas comunidades – em ‘bocas de fumo’ e ‘cracolândias’ – e em CT. Estas, também cunhadas como ‘Centros de Recuperação’, são financiadas ou cofinanciadas por entidades religiosas e pelo Estado, tendo como projeto terapêutico o tratamento religioso. Este tipo de tratamento substitui ou incrementa outras formas de cuidado, como a medicamentosa. Embora as CT ganhem terreno em função da escassez de políticas públicas, ou de sua pouca efetividade10,13-15, sua presença no cenário brasileiro é anterior à formulação da política pública específica para o uso abusivo de álcool e outras drogas, em 200310,14. Somam-se: a ausência de estratégias efetivas que deem conta do problema crescente das drogas; a inexistência de diretrizes e de fiscalização contínua das escassas iniciativas, assim como, uma concepção muito presente no senso comum a favor da internação16,17. A Reforma Psiquiátrica trouxe a gradativa redução de leitos psiquiátricos financiados pelo SUS para tratamento de dependentes. Em substituição, surgiu uma série de serviços, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), e houve a ampliação da Atenção Básica. No entanto, esses equipamentos não têm logrado dar respostas efetivas à população. Diante desta perda de recursos, Vasconcelos18 observa o crescimento de movimentos pró-psiquiatria biomédica, na verdade, movimentos antirreforma. Nesse contexto, o tema das drogas, em especial do crack, passa a dominar a pauta política, institucional, cultural e midiática. Diversos autores vêm apontando os impactos positivos da espiritualidade e da religiosidade na qualidade de vida e na saúde mental dos indivíduos19-32. Alguns ressaltam o papel da espiritualidade na prática clínica e sua associação com indicadores de saúde; seu impacto em hábitos de vida, suporte social e coping e no bem-estar psicológico; na baixa prevalência de depressão, de abuso ou de dependência de substâncias; na diminuição da ideação e de comportamentos suicidas33,34. Dalgalarrondo35 destaca que, nas últimas duas décadas, têm crescido as pesquisas que apontam a religião como protetiva para o abuso de álcool e outras drogas. Outro tema que ganha realce é o enfrentamento religioso – o “uso de estratégias cognitivas ou comportamentais” ligadas à religiosidade para lidar com estressores, nos processos de cura e no tratamento de enfermidades27 (p. 381). Outras pesquisas ainda, em especial envolvendo as religiões pentecostais, problematizam o papel da religião na recuperação e na reabilitação do uso e abuso de drogas, onde tem destaque a atuação das comunidades de fé na busca ativa por indivíduos em crise22,29,31,32.

A proposta das CT Sua organização parte de um modelo de instituição total, como definiu Goffman36. Os indivíduos se mantêm em um ambiente residencial por 24 horas, segregados da sociedade, o que provoca uma ruptura com os papéis anteriormente exercidos37-39. É objetivo reabilitar e recuperar os sujeitos para a vida em sociedade. Tratando o transtorno individual, transformam-se estilos de vida e se educa15,38 para “novos valores, como espiritualidade, responsabilidade, solidariedade, honestidade e amor”9 (p. 172). 516

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Segundo o “Observatório Crack é Possível Vencer”40, existem hoje, no Brasil, 5.496 vagas em 252 CT e, até o final de 2014, a proposta era chegar a dez mil vagas. No entanto, segundo a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas, como afirma Kurlander17, existiriam entre duas mil e quinhentas e três mil CT no país, atendendo a sessenta mil pessoas por ano. Já Silva41 e Damas39, seguindo dados do Ministério da Saúde, afirmam que há duas mil e quinhentas CT que atendem a 80% dos dependentes de drogas. O desencontro de informações sugere que há diversas entidades funcionando sem nenhum tipo de registro, o que traz desafios relacionados à fiscalização do cumprimento de requisitos mínimos de funcionamento. Predominam três modelos de CT: religioso-espiritual, com atuação de religiosos e ex-internos; científico, com médicos, psicólogos e assistentes sociais; e misto, que une as modalidades anteriores13,39,41. Há, ainda, contribuições da metodologia Minessota16,39, de “essência predominantemente espiritual, e baseada na ajuda mútua e nos 12 passos”, cujo tratamento “busca a incutir esperança através da confiança no poder divino superior”; e do método Synanon, “de essência predominantemente analítica”, baseado na “autoconfiança do indivíduo” e na laborterapia39 (p. 53). Algumas diretrizes básicas podem ser reconhecidas em todas as propostas: as CT compõem-se de um sistema estruturado, com limites, regras, horários e responsabilidades claras, e, geralmente, se encontram em locais afastados dos centros urbanos. Baseiam-se na disciplina e em normas estritas, como: afastamento da comunidade, trabalho em grupo, laborterapia, abstinência de drogas e sexo, e aplicação de penalidades aos desvios. Os internos ‘recuperados’ têm função de apoio no tratamento dos demais e grande parte do trabalho é voluntário6,9,13,16,38,39,42,43. Destaca-se o componente religioso e há prevalência de instituições católicas e evangélicas16,38,41,43-45. Ainda é grande o número de comunidades religiosas que [...] [tem] como base principal e única a fé em Deus. “O encontro com Deus é a solução de todos os males do espírito e da carne”, comenta um pastor evangélico, coordenador de uma CT.41 (p. 50)

Segundo Valderrutén37, a ‘teoterapia’ está inscrita em concepções cristãs da vida social e do comportamento, nas quais ser adicto em recuperação significa ser ‘converso’, isto é, buscar a salvação em Jesus. O discurso religioso é central e organiza o cotidiano institucional, marcado por atividades como: orações, reuniões de grupo e catequese; e o espaço, com signos religiosos, como crucifixos e imagens de santos6,15.

Manguinhos Manguinhos é formado por um complexo de 16 favelas, localizado na zona norte da cidade do Rio de Janeiro. Sua população é de cinquenta mil pessoas, e uma das principais deficiências relacionadas à saúde é o abuso de álcool e outras drogas46. Na região, estava localizada uma das maiores “cracolândias” da cidade, espaço de uso do crack e de permanência de pessoas sob seus efeitos, e havia vários pontos de venda de drogas. As obras do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) – programa do Governo Federal –, a partir de junho de 2012, elevaram a linha férrea que corta Manguinhos, provocando a dissolução da cracolândia e a redistribuição dos usuários. Diversas instituições religiosas possuem iniciativas de cunho social e religioso e atendem usuários de drogas. Há um imbricamento entre essas duas formas de intervenção, sendo as ações sociais impregnadas de um profundo moralismo religioso. Dentre as ações governamentais direcionadas a esta problemática, ressalta-se o ‘acolhimento’ de usuários e seu encaminhamento para abrigos especializados. Esta política vem sendo duramente criticada por movimentos sociais ligados à luta por direitos humanos, conselhos profissionais e profissionais da saúde, que aludem ao ressurgimento de práticas higienistas. Como serviço de saúde, há o projeto Território Integrado de Atenção à Saúde - TEIAS, na Atenção Básica, composto por 13 Equipes de Saúde da Família, que atende 100% das famílias da localidade47. A região é atendida por um CAPs – serviço de “referência e tratamento para pessoas que sofrem com transtornos mentais, psicoses, neuroses graves e demais quadros”48 (p. 13). Não há um CAPS COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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ad – específico para usuários de álcool e outras drogas e responsável por ações de redução de danos – referência para Manguinhos. Na cidade do Rio de Janeiro, existem, hoje, seis destas unidades49, insuficientes para atender a uma população de 6.453.682 de habitantes (segundo o IBGE, para 2014). A Policlínica Rodolpho Rocco é referência para atendimento de emergência em saúde mental, e há um Consultório de Rua que realiza “ações de prevenção, cuidados primários e promoção da saúde, articulando o conjunto de equipamentos e de equipes intersetoriais do território e fora dele”50.

Metodologia Este artigo faz parte da tese “Religião, prevenção à violência e recuperação e reabilitação de pessoas: um estudo em Manguinhos”, cuja pesquisa contou com abordagem qualitativa, compreendendo entrevistas, observação participante e coleta de materiais institucionais. Os entrevistados foram: pessoas convertidas à religião, com histórico de dependência de drogas e envolvimento com o tráfico de entorpecentes (três); líderes religiosos (cinco) e coordenadores de serviços sociais prestados por entidades religiosas (quatro entrevistas individuais e dois grupos de três e seis pessoas). Participaram do estudo 14 igrejas e associações religiosas entre católica, evangélicas e espíritas, entre 2010 e 2012. Para tratamento dos dados, utilizou-se a Análise de Enunciação, que considera que a palavra é sentido, mas, também, transformação, incluindo, como parte da compreensão do discurso, aspectos históricos e sociais51. O discurso, como produto de complexas interações que envolvem o lugar de onde se fala e sobre quem se fala, deve problematizar a historicidade e as condições sociais de emergência das enunciações52-55. As entrevistas foram analisadas buscando-se levantar as principais categorias que emergiam nos discursos dos participantes. Foi realizada uma primeira descrição analítica, onde o corpus do material foi pré-interpretado à luz dos referenciais teóricos, categorias e hipóteses adotadas; e uma interpretação inferencial, onde se aprofundou a análise dos conteúdos manifestos e latentes referentes às condições materiais, empíricas, culturais e estruturais. Para os propósitos deste artigo, buscaram-se todas as ocorrências relativas às drogas e suas formas de recuperação, presentes nas entrevistas com ‘convertidos’ e líderes religiosos, nos diários de campo e em materiais institucionais (como folders sobre CT). A observação participante ocorreu durante todo o trabalho de campo e incluiu atividades como: cultos, missas e outras celebrações e momentos de trabalho social e do cotidiano institucional.

Resultados e discussão Algumas considerações comuns a todos os interlocutores Todas as entrevistas e conversas informais durante o trabalho de campo demonstraram grande preocupação com o uso de drogas e, especificamente, com os impactos do crack na vida dos usuários, de suas famílias e no território. A violência foi representada nos discursos como a praticada pelo tráfico de drogas e a promovida por dependentes que furtam e roubam para obter a droga. Foram descritas duas trajetórias bastante claras que associam o uso abusivo de drogas à violência. O uso gera dependência e esta leva ao envolvimento com furtos, roubos e à inserção no tráfico. A atuação no tráfico, por sua vez, pode ter como consequência o desenvolvimento da dependência. Tais trajetórias são representadas como um ‘destino’, que pode, contudo, ser mudado por meio da intervenção religiosa. Todos descreveram como um problema, para a reabilitação de dependentes, as dificuldades de acesso e a falta de qualidade dos serviços públicos de saúde.

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O tratamento religioso-moral em CTs A principal ação de recuperação de pessoas, em Manguinhos, é a evangelização, o que pode ocorrer dentro das comunidades e em CT. Dois pontos centrais guiam os princípios morais do projeto terapêutico das CT: a dependência química como pecado, fraqueza, falta de Deus ou possessão do demônio, como bem destacam autores como Mariz22, Valderrutén37 e Rocha31; e a busca da abstinência, única forma exitosa de tratamento. O sujeito deve romper com sua vida pregressa e abraçar uma nova comunidade, religiosa, marcando sua trajetória em termos de antes e depois da conversão. Mesmo o uso de álcool e de cigarro é condenado, pois não faz parte do projeto de ‘homem convertido’. Alguns ex-dependentes narraram trajetórias pessoais relacionadas às experiências de conversão que reorientaram suas vidas e provocaram uma ligação especial com a fé e, em alguns casos, um retorno a ela. “O homem por si próprio não consegue vencer [a luta pela reabilitação do uso de drogas], eu tentei por várias vezes com as minhas próprias forças vencer essa batalha, mas não conseguia. Eu só consegui através do senhor Jesus”. (R) “A única coisa que me mantém distante das drogas é eu ter a certeza de que eu estou sendo fiscalizado por Deus”. (L)

A recuperação de M se deu em uma CT ‘não oficial’, na casa de um pastor, em local afastado de sua comunidade. Ele ficou “confinado, mas por livre e espontânea vontade” e seu tratamento consistiu no exercício de orações: “Eu ia, dobrava o meu joelho, eu orava, e pedia a Deus, e Deus foi trabalhando na minha vida [...]. E por incrível que pareça, depois de sete anos usando crack , fiquei quinze dias lá dentro daquele centro de recuperação, é coisa excepcional, não tem condições de nenhum usuário de crack ficar livre da dependência com quinze dias”.

Após ter comprovado o êxito do método religioso, M passou a ajudar no encaminhamento de pessoas para “centros de recuperação de origem evangélica”. Já a recuperação de R e L foi por meio da conversão religiosa em igrejas. R também realiza trabalhos em uma CT, acolhendo e encaminhando pessoas. Alguns se tornaram pastores, como é o caso de R e L. O testemunho tem uma dupla função: reforça a condição de liberto e incentiva com o exemplo. M e R voltaram a frequentar cracolândias e bocas de fumo, depois de sua recuperação, para “falar do amor de Deus para as pessoas” (M), e L ministra cultos frequentemente. Todos têm como estratégia de evangelização suas próprias trajetórias. Segundo M, “90% dos centros de recuperação evangélicos não têm apoio público”, e há um fundo mantido por igrejas que financia os tratamentos. Dois líderes evangélicos também contaram a respeito de parcerias com CT. “É uma comunidade terapêutica, entendeu? Que é vinculada por parceria, todos os meses a gente envia uma verba. Hoje a gente já tem uma vaga ocupada lá por uma pessoa, e uma pessoa que já foi encaminhada por aqui hoje já está recuperada, que é membro da igreja”. (igreja evangélica)

Segundo M, o trabalho conta com diversos ‘profissionais evangélicos’, como: psicólogos, advogados, assistentes sociais e médicos, em sua grande maioria, voluntários. O tratamento também pode ser conduzido pelos próprios pastores.

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Alcançar a ‘conversão’ não é algo fácil, o que é referido por ‘convertidos’ e líderes: “de dez pessoas, três ficam” (líder evangélico). R conta sobre a influência do ‘mal’ na vida espiritual: “a gente sabe que isso são espíritos que têm o objetivo de matar, roubar e destruir”. Um líder evangélico menciona o desafio de aderir à “disciplina de acordar naquele horário, de comer [naquele horário] e de reformular os hábitos”, e outro cita que “se não tiver medicamento a gente não consegue manter [a pessoa no tratamento]”. Apesar de estes entrevistados afirmarem que as igrejas evangélicas são muito mais ativas nas ações de recuperação, pôde ser acompanhada, durante o trabalho de campo, uma atividade católica semanal na antiga cracolândia. Um grande grupo, composto por padres, jovens missionários e outros religiosos, levava alimentos, evangelizando e oferecendo ajuda para tratamento por meio de encaminhamento a uma CT católica. Segundo o site oficial, esta CT possui nove casas “com internação totalmente gratuita”. Um folheto informativo distribuído durante a atividade menciona que um dos objetivos das casas é “oferecer oportunidade de tratamento da dependência química, sistema ambulatorial e residencial, com programa terapêutico baseado em princípios cristãos, capazes de possibilitar condições favoráveis à abstinência”.

Controvérsias entre a proposta psicossocial e o tratamento de base religiosa Na visão psicossocial, particularmente dos profissionais de saúde mental, o tratamento oferecido pelas CT religiosas constitui uma forma de violência institucional. Muitas denúncias expõem a existência de maus-tratos e de violações de direitos em tais entidades, como apontou o relatório de inspeção do Conselho Federal de Psicologia6, colocando as CT na contramão das políticas contemporâneas de saúde mental e as aproximando dos antigos manicômios. Elas reintroduzem o isolamento das instituições totais, propondo a internação e permanência involuntárias, centram suas ações na temática religiosa, frequentemente desrespeitando tanto a liberdade de crença quanto o direito de ir e vir dos cidadãos.6 (s/p)

Segundo o documento, 78% possuíam orientação religiosa: 29 eram evangélicas, nove católicas, uma espírita e 14 ‘religiosas’ sem especificação. Havia obrigatoriedade de participação em atividades religiosas, ferindo o direito à escolha de outro credo ou, mesmo, de nenhum. Em muitos locais, inexistiam “funcionários, [mas] apenas religiosos, pastores, obreiros (quase sempre ex-usuários convertidos)” (p. 190); e, quando havia profissionais, sua atuação estava submetida a princípios morais e confessionais. Homossexuais e travestis, por possuírem uma sexualidade considerada desviante, eram discriminados, quando não também submetidos a ações de ‘cura’, ou seja, de mudança de orientação sexual. Profissionais da saúde, entidades defensoras de direitos humanos, familiares e estudiosos tecem diversas críticas ao modelo das CT: ao manterem as pessoas apartadas da comunidade, perdemse os vínculos sociais, educacionais, de emprego e de saúde; a recuperação não provoca uma confrontação do sujeito com as drogas, já que ele está isolado em um ‘ambiente seguro’; muitas entidades funcionam precariamente; há administração de medicamentos sem prescrição médica; internações ocorrem indiscriminadamente, de forma involuntária e envolvendo comorbidade com doenças psiquiátricas; há relatos de fundamentalismo religioso, exploração do trabalho em nome da laborterapia e busca de lucro; existem disparidades entre o prescrito pelas políticas públicas e o praticado nas CT, com ênfase no modelo moral de tratamento e ausência de projetos terapêuticos individuais6,9,15,16,39,56. As CT referidas por ‘convertidos’ e líderes religiosos convergem em diversos pontos com tais questões: seu projeto terapêutico consiste em atividades religiosas e é dominante a presença de profissionais voluntários, também religiosos. O ‘tratamento religioso’ une, em geral, o uso de medicamentos, como foi exemplificado pelos ‘convertidos’ que narraram suas trajetórias de cuidado e de trabalho em centros de recuperação. Alguns, apesar de considerarem a fé como indispensável para 520

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superar a dependência, também valorizaram o cuidado intensivo prolongado por parte de profissionais de saúde, o que não ocorre nos centros. Percebe-se que há, dessa forma, um imbricamento entre tratamentos de ‘base laica’ e de ‘base moral-religiosa’, dando um caráter sui generis às CT. Tanto nos discursos dos entrevistados, como nos contatos informais de campo, os serviços da esfera pública, orientados pela filosofia da redução de danos, ficam invisibilizados. Um ‘convertido’ ex-dependente faz uma crítica severa a esses serviços, desqualificando-os em relação às entidades religiosas: “Os abrigos que o Estado, a Prefeitura oferecem, eu não acredito no trabalho deles. Eles na verdade não têm amor ao próximo, porque pra você lidar com dependente químico, principalmente usuário de crack, você tem que ter amor para o seu próximo”. (M)

Com o surgimento da questão social do crack, vem ocorrendo uma revisão das políticas de álcool e outras drogas, que passam a incluir as CT como equipamentos de saúde. O ‘Plano Crack é Possível Vencer’ encabeça essa discussão pública57. Este Plano também representa uma disputa política de entidades religiosas por espaço público, financiamento e legitimidade de intervenção na ‘questão social’, como apontam Giumbelli58, Birman59 e Montero60. Assim, o setor público dá continuidade ao seu projeto de transferência de recursos para entidades privadas, operando uma terceirização dos serviços. O não-cumprimento do que prevê a política de saúde mental e a exígua quantidade de CAPS ad tornam as CT religiosas uma saída fácil para os gestores públicos, que abrem mão de sua responsabilidade pelo tratamento na orientação da redução de danos. Localizando esta discussão num cenário mais amplo, vários autores remetem à tese de secularização, ou seja, à separação entre as esferas política e religiosa, apontando-a como um projeto inacabado59-62. Segundo Parente63 (p. 72), as religiões “ligando o espiritual ao material, guiam a práxis política, interferem na definição do que seja ético, orientam comportamentos interpessoais e afetam as relações internacionais”. Giumbelli64, trazendo problematizações à ideia de secularização, complexifica historicamente as relações entre Estado e religiões, rememorando desde as religiões estatais ou oficiais até os projetos de secularização, no advento da Modernidade. O autor nos apresenta a discussão sobre os novos movimentos religiosos que, por outro lado, ganham espaço social, significando um maior pluralismo religioso e colocando em xeque a questão da liberdade religiosa. Mouffe65 chama atenção para a presença da religião no espaço público e para sua relação com a política, considerando que não se trata de excluir as igrejas da inserção política, contanto que os grupos religiosos respeitem os limites constitucionais. A igreja católica e algumas evangélicas sempre estiveram presentes em setores como educação e assistência, ou seja, faz parte de sua práxis realizar intervenções sociais de cunho confessional. Elas também são muito atuantes politicamente na vigilância do campo moral, quando algumas mudanças demandadas pela sociedade contrariam seus princípios. Políticos evangélicos militantes nas diversas esferas governamentais se movimentam na tentativa de sancionar leis que beneficiem seus interesses confessionais, como referem Parente63, Velho66 e Montero60. Giumbelli58 (p. 89) também destaca o “impacto da inserção dos evangélicos na sociedade brasileira das últimas décadas”, a força de sua organização e mobilização e sua conquista de espaço, incluindo a “execução de políticas públicas em parcerias com agências governamentais” para o enfrentamento da questão social. De fato, chama atenção a multiplicação de organizações não governamentais de cunho religioso que recebem vultosos repasses de verbas estatais para ações assistenciais. Montero60 (p. 172) considera que, “nesse processo de ampliação das competências das igrejas evangélicas torna-se difícil distinguir se estamos diante de um arranjo religioso, ou de um arranjo empresarial”, indicando o imbricamento entre a esfera pública e a religiosa. Ressalta-se que não é questão desconsiderar o papel da dimensão religiosa, espiritual e do enfrentamento religioso27 no processo de recuperação de doenças ou da dependência química, e como orientação particular de cada sujeito, ou como incremento em seu tratamento. Para os ‘convertidos’, o mais determinante na recuperação é “ter estado no lugar do outro” e “atuar com amor”. Os religiosos COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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e ex-dependentes constroem, de um lado, uma narrativa sobre os ‘viciados’ e sobre o modo correto de viver. Insistentemente repetida, essa narrativa se torna parte da doutrinação religiosa; de outro, criam normas para organizar o cotidiano, que passa a ser regido por atividades de oração e de trabalho, por meio de uma disciplina que conforma e dociliza os sujeitos53, regulamentando suas vidas55. O Estado financia, sem crítica, a ação de igrejas que impõem um credo religioso e um projeto terapêutico de base moral aos sujeitos, abrindo mão de uma política universal que beneficiaria o conjunto da população. Não se trata só de um erro, mas de uma fraqueza do poder público; é como se o Estado se apequenasse, desistisse de seu papel e do conhecimento técnico que seus profissionais detêm, a favor de um credo religioso e de um projeto terapêutico de base moral que colocam em jogo a laicidade constitucional da sociedade brasileira.

Conclusão As instituições religiosas gestoras de CT tomam a decisão quanto à melhor forma de recuperar os dependentes, isto é, cabe a elas estabelecerem seu projeto terapêutico. Ao se basearem em um modelo moral que encara o uso de drogas como um distanciamento de Deus, sua forma de recuperação se dá a partir de uma aproximação com Ele. A capacidade transformadora da fé é o elemento mais importante neste processo. Pode-se extrair que há uma contradição reinante entre os defensores das CT e os profissionais de saúde e de assistência social. Os primeiros expressaram, por meio do trabalho de campo, uma descrença em relação aos serviços públicos, qualificando-os como não confiáveis, e consideraram que os profissionais não se implicam na recuperação de dependentes de drogas. Já os técnicos criticam a forma de tratamento operada pela oração, por atividades religiosas e pelo modelo de abstinência, considerando que está em total desacordo com as políticas de saúde mental já consolidadas, fruto de longa construção técnica e política, como se depreende da literatura, além dos discursos de movimentos sociais e de classe. Mais do que oposição, no entanto, existe uma complementariedade entre tipos de tratamento ‘científico’ e ‘religioso’, uma vez que as CT estão integradas às práticas do estado, que, dessa forma, investe em políticas de cuidado contraditórias e, teoricamente, irreconciliáveis. Registrou-se que profissionais de saúde, cedidos pelo Estado, ou se voluntariando em seu tempo extra, estão inseridos em CT, não representando uma oposição ao projeto de tratamento institucional. Pelo contrário, colaboram com uma terapêutica que está de acordo com suas próprias crenças, o que nos faz problematizar o tipo de atendimento que fornecem nos serviços públicos. Embora a maioria dos líderes religiosos considere o êxito da proposta religiosa, alguns reconheceram que os instrumentos de que dispõem são insuficientes para lidar com um problema tão complexo como o uso abusivo de drogas, qualificando suas ações como muito aquém da necessidade. As CT de cunho religioso recebem apoio da população e investimentos, como se fossem a melhor opção para a recuperação e a reabilitação de dependentes, particularmente, de usuários de crack. Elas, de certa forma, respondem às angústias imediatas de usuários e familiares que não encontram respostas nos equipamentos públicos, em especial, ao retirarem da comunidade e aplicarem um tratamento, muitas vezes compulsório, ao sujeito dependente. Como existem no cenário brasileiro, cabe ao Estado monitorar, fiscalizar e avaliar estas entidades. Mais do que isso, porém, urge investir no fortalecimento e na expansão dos serviços territoriais de saúde mental, em especial os CAPS ad, conforme já preconizado. Ao invés de abraçar um projeto terapêutico genérico, baseado em princípios religiosos-morais, terceirizando a atenção às CT, compete ao Estado fortalecer propostas de tratamento individualizadas, prezando por uma abordagem de cuidado que tenha como princípio o respeito aos sujeitos, ao seu direito de escolha e à sua inclusão no processo de restabelecimento da saúde.

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Colaboradores Fernanda Mendes Lages Ribeiro participou da elaboração, discussão, redação e revisão do texto. Maria Cecilia de Souza Minayo participou da discussão, redação e revisão do artigo. Referências 1. Rodrigues T. Drogas, proibição e abolição das penas. In: Passetti E, organizador. Curso livre de abolicionismo penal. 2a ed. Rio de Janeiro: Revan; 2004. p. 131-52. 2. Fiore M. A medicalização da questão do uso de drogas no Brasil: reflexões acerca de debates institucionais e jurídicos. In: Carneiro H, organizador. Álcool e drogas na História do Brasil. São Paulo: Alameda; 2005. p. 257-90. 3. Araújo MR, Moreira FG. História das drogas. In: Silveira DX, Moreira FG, organizadores. Panorama atual de drogas e dependências. São Paulo: Atheneu; 2006. p. 9-14. 4. Ribeiro FML. Justiça terapêutica tolerância zero: arregaçamento biopolítico do sistema criminal punitivo e criminalização da pobreza [dissertação]. Rio de Janeiro (RJ): Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana, Universidade do Estado do Rio de Janeiro; 2007. 5. Totugui ML, Giovanni M, Cordeiro F, Dias MK, Delgado PGG. Álcool e outras drogas como desafio para a saúde e as políticas intersetoriais – contribuições para a IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. In: Vasconcelos EM, organizador. Desafios políticos da reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 93-113. 6. Conselho Federal de Psicologia. Relatório da 4ª Inspeção Nacional de Direitos Humanos: locais de internação para usuários de drogas. Brasília (DF): Conselho Federal de Psicologia; 2011. 7. Lima RCC. Álcool e outras drogas como desafio para a saúde e as políticas intersetoriais – contribuições para a IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial. In: Vasconcelos EM, organizador. Desafios políticos da reforma psiquiátrica brasileira. São Paulo: Hucitec; 2010. p. 75-92. 8. Rezende MM. Modelos de análise do uso de drogas e de intervenção terapêutica: algumas considerações. Rev Biocienc. 2000; 6(1):49-55. 9. Sabino NM, Cazenave SOS. Comunidades terapêuticas como forma de tratamento para a dependência de substâncias psicoativas. Estud Psicol. 2005; 22(2):167-74. 10. Costa SF. As políticas públicas e as comunidades terapêuticas nos atendimentos à dependência química [Internet] [acesso 2014 Abr 22]. Disponível em: http://www.uel.br/ revistas/ssrevista/pdf/2009/29%20AS%20POL%CDCAS%20P%DABLICAS%20E%20 AS%20COMUNIDADE%20TERAP%CAUTICAS-COM%20REVIS%C3O%20DO%20 AUTOR.pdf 11. Ministério da Saúde. Secretaria Executiva. Coordenação Nacional de DST e Aids. A política do Ministério da Saúde para a atenção integral a usuários de álcool e outras drogas. Brasília (DF): MS; 2003 (Série B, Textos Básicos de Saúde). 12. Portaria nº 1.028, de 1º de julho de 2005. Determina que as ações que visam à redução de danos sociais e à saúde, decorrentes do uso de produtos, substâncias ou drogas que causem dependência, sejam reguladas por esta Portaria. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2005. 13. Serrat M. Comunidades terapêuticas: mecanismo eficiente no tratamento de dependentes químicos [Internet]. 2002 [acesso 2014 Abr 7]. Disponível em: http://www.comciencia.br/especial/drogas/drogas03.htm 14. Machado AR, Miranda PSC. Fragmentos da história de atenção à saúde para usuários de álcool e outras drogas no Brasil: da justiça à saúde pública. Hist Cienc SaudeManguinhos. 2007; 14(3):801-21. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Ribeiro FML, Minayo MCS. Las Comunidades Terapéuticas religiosas en la recuperación de dependientes de drogas: el caso de Manguinhos, Estado de Río de Janeiro, Brasil. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):515-26. Este artículo analiza el papel de las Comunidades Terapéuticas (CT) religiosas en la recuperación y rehabilitación de usuarios de drogas, tomando como caso el complejo de “favelas” de Manguinhos, Rio de Janeiro, Brasil. El estudio contó con un abordaje cualitativo por medio de entrevistas, observación participante y materiales institucionales. Para la comprensión y la interpretación del material se utilizó el análisis de enunciación. Hay amplia presencia de instituciones religiosas que tienen la CT como propuesta de cuidado para la dependencia de drogas. Las principales formas de recuperación y rehabilitación son la evangelización y la conversión religiosa. Las CT confesionales conciben un modelo de tratamiento centrado en la oración y en la abstinencia, modelo que está en desacuerdo con las políticas públicas de salud mental. No obstante, los equipos públicos no han conseguido proporcionar respuestas eficaces a la demanda. La controversia generada por tal particular cierra este artículo.

Palabras clave: Comunidad Terapéutica. Drogas. Recuperación. Religión. Recebido em 30/07/14. Aprovado em 12/03/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0055

artigos

Conduta do tratamento medicamentoso por cuidadores de idosos Débora Santos Lula Barros(a) Dayde Lane Mendonça Silva(b) Silvana Nair Leite(c)

Barros DSL, Mendonça-Silva DL, Leite SN. Management of drug therapy by elderly people’s caregivers. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):527-36.

Aging of the population is increasing the number of caregivers of elderly people in Brazil. Pharmacotherapy involves a complex system of activities and its management is among the tasks performed these caregivers. Moreover, management of drug therapy may be subject to various problems relating to its implementation. In particular, there are difficulties in drug administration, lack of access to drugs, obstacles against conducting clinical observation and challenges in establishing effective communication between elderly people and healthcare professionals. The present study consists of a review that aims to expand the discussions on the abovementioned issues so as to provide theoretical support to programs and services within the field of gerontology.

Keywords: Drugs. Elderly people. Caregivers. Management of drug therapy.

O envelhecimento populacional está ampliando o número de cuidadores de idosos no Brasil. A farmacoterapia compreende um sistema complexo de atividades e a sua condução está presente no rol de tarefas desempenhadas por esses atores. Além disso, a conduta do tratamento pode estar sujeita a diversos problemas na sua execução, com destaque para: dificuldades de administração dos medicamentos, falta de acesso aos medicamentos, obstáculos na realização de observação clínica, assim como os desafios presentes no estabelecimento de uma comunicação efetiva com os idosos e profissionais de saúde. O presente estudo trata de uma revisão cujo objetivo é ampliar as discussões sobre os aspectos supracitados, de modo que este debate dê subsídios teóricos aos programas e serviços na área de gerontologia.

Palavras-chave: Medicamentos. Idoso. Cuidadores. Conduta do tratamento medicamentoso.

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(a) Curso de Farmácia, Universidade Católica de Brasília. Campus I, QS 07, Lote 01, EPCT, Águas Claras. Brasília, DF, Brasil. 71966-700. debora.farmacia9@ gmail.com (b) Curso de Farmácia, Universidade de Brasília. Asa Norte, DF, Brasil. daydelane@gmail.com (c) Curso de Farmácia, Universidade Federal de Santa Catarina. Florianópolis, SC, Brasil. silvana.nair@ hotmail.com

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Introdução O processo de envelhecimento populacional implica uma série de modificações nos aspectos físicos, psíquicos e sociais do ser humano, levando, na maioria das vezes, à necessidade de ser cuidado1. No Brasil, o envelhecimento da população tem suscitado diversos debates, especialmente sobre o aumento das demandas dos serviços de saúde, bem como o desafio de buscar alternativas de cuidado para um crescente número de idosos2. De acordo com os pressupostos de humanização da assistência à saúde em gerontologia, emergiu a necessidade de ascensão das práticas de recuperação, reabilitação e promoção da saúde do idoso dentro do contexto domiciliar, ampliando o número de familiares engajados na prestação dos cuidados de saúde a esses pacientes. O “Guia prático do cuidador”, publicado em 2008 pelo Ministério da Saúde3, estabelece a seguinte definição para o termo cuidador: “alguém que cuida a partir de objetivos estabelecidos por instituições especializadas ou responsáveis diretos, podendo ser da família ou da comunidade para prestar cuidados à outra pessoa de qualquer idade que esteja necessitando” (p. 8). Embora existam diversas classificações dos tipos de cuidadores, tipifica-se, sobretudo, a categorização em “formal” e “informal”. A Organização Mundial da Saúde (OMS)4 classifica o cuidador formal como aquele profissional que possui vínculo empregatício para a prestação do cuidado. Já o cuidador informal é aquele que desempenha o cuidado sem formalização trabalhista. Dentre as funções desempenhadas pelos cuidadores de idosos, inclui-se a conduta do tratamento medicamentoso5. Esta atividade pode ser entendida como uma ampla assistência à terapia medicamentosa, compreendendo: a administração dos medicamentos, as ações e processos para garantia do acesso, a contemplação das recomendações técnicas para o armazenamento adequado, a observação da efetividade do tratamento, a comunicação e busca de esclarecimentos acerca das informações referentes à farmacoterapia com os profissionais de saúde, entre outras funções. No cuidado da população idosa, a polifarmácia, a automedicação, o uso abusivo de outras formas de tratamento (como fitoterápicos, produtos homeopáticos, plantas medicinais, por exemplo) e a falta de adesão ao tratamento, compõem fatores presentes na farmacoterapia que acentuam a sua complexidade6,7. Como resultado, observa-se que a integração de todos esses fatores, adicionados às demais atividades do cuidado, contribui para que a atenção ao idoso, na prática da família cuidadora, se torne ainda mais desafiadora. Mesmo com a ampliação dos investimentos financeiros no segmento da assistência farmacêutica – no Brasil, nos últimos anos8 –, sobretudo como consequência dos direitos provenientes do desenvolvimento de políticas públicas nesse cenário, ainda persistem iniquidades no acesso aos medicamentos. Entender como esse e outros fatores presentes na farmacoterapia dos idosos interferem na sua condução pelos cuidadores é crucial para a estruturação de práticas educativas compatíveis com as necessidades de capacitação e fomento, além de abranger um importante indicador para a estruturação de programas e políticas públicas em prol da promoção do uso racional de medicamentos. Com base na problematização pertinente ao cuidado diário do idoso e na complexidade do manejo da farmacoterapia, este estudo tem o intuito de discutir, a partir de uma reflexão teórica da literatura, as práticas do cuidador no que concerne à conduta do tratamento medicamentoso. Baseada na perspectiva de ampliar os dados para a discussão e no fato de que muitas tarefas são compartilhadas pelo grupo, a revisão abordará todos os estudos que envolvam cuidadores de idosos, independente das classificações formal/informal ou qualquer outro tipo de categorização.

Metodologia Trata-se de uma revisão integrativa da literatura, cujo percurso metodológico foi operacionalizado pelas etapas: identificação e formulação do problema, coleta de dados, avaliação dos estudos, análise e interpretação dos dados coletados, e apresentação dos resultados9,10.

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artigos

A coleta de artigos, objeto de estudo, foi processada na aplicação dos descritores: “cuidador” e “idoso”, com o operador booleano “and”, na biblioteca eletrônica Scientific Electronic Library Online (Scielo), em janeiro de 2013. Foram obtidos e analisados 65 resumos de artigos. Para a seleção final dos artigos, os autores fizeram a análise do resumo segundo os critérios de inclusão preestabelecidos: ter sido publicado entre 2003 e 2013, estar escrito em inglês e/ou português, e apresentar dados de interesse para a pesquisa, ou seja, relacionado ao objetivo do estudo. Após esse processo, foram adquiridas 23 referências. O percurso de recrutamento dos artigos está ilustrado na Figura 1.

65 Artigos relacionados aos descritores e combinação “cuidador” “and” “idoso” no SciELO

03 Não se enquadravam no filtro tipo de idioma

62 Enquadravam no filtro tipo de idioma

Análise do resumo 03 Não se enquadravam no período tempo estabelecido de publicação 23 Obedeciam aos critérios de inclusão do estudo e obtiveram aprovação do resumo

Figura 1. Etapas de recrutamento dos artigos

Conforme os critérios de busca e resultado da análise dos artigos, foram recrutados os seguintes estudos para dar sustentação à redação da revisão integrativa: Martins et al.5, Gaioli et al.11, Klock et al.12, Carneiro e França13, Saliba et al.14, Rodrigues et al.15, Vieira et al.16, Moreira e Caldas17, Amendola et al.18, Gonçalves et al.19, Santos e Pavarini20, Figueiredo et al.21, Ribeiro et al.22, Silveira et al.23, Diogo et al.24, Paniz et al.25, Aziz et al.26, Veras et al.27, Fernandes e Garcia28, Nascimento et al.29, Santana et al.30, Marin et al.31, Monteschi et al.32. Para a organização das discussões sobre a conduta do tratamento medicamentoso presente na literatura nacional, a partir do processo de análise textual qualitativa proposto no estudo de Oliveira33, foram identificados e isolados os seguintes enunciados de conteúdos: “caracterização dos cuidadores de idosos no Brasil”, “acesso aos medicamentos”, “administração de medicamentos” e “observação clínica e comunicação sobre a farmacoterapia”.

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O papel e perfil dos cuidadores de idosos no Brasil Em relação ao perfil dos cuidadores de idosos no Brasil, é possível observar que ainda segue hegemônica a concepção do cuidado como tarefa da mulher, assumindo, assim, o papel social de cuidar de alguém11-14. Na contemporaneidade, a mulher está ganhando espaço social no mercado de trabalho. Sobretudo, é fundamental destacar o seu protagonismo quando se analisa o cuidado como campo de geração de emprego e renda ou, até mesmo, na atenção à saúde informal ao paciente12. A média de idade dos cuidadores de idosos varia de acordo com o local de realização do estudo. Rodrigues et al.15 apontaram que grande parte dos cuidadores familiares também está na terceira idade, e que eles tinham de uma a quatro doenças crônicas, por vezes associadas a alguma incapacidade funcional. Dessa forma, essa situação ilustra que um idoso pode assumir as responsabilidades sobre o cuidado de outro idoso16. Moreira e Caldas17 destacam que, normalmente, o idoso independente é quem presta o cuidado ao idoso em condição de dependência. A literatura ilustra que a escolaridade dos cuidadores é predominantemente baixa16,18,19. Santos e Pavarini20 destacam que o baixo nível de escolaridade interfere, direta ou indiretamente, na prestação de cuidados aos idosos, configurando uma barreira no processo de educação em saúde. Figueiredo et al.21, em seu estudo com cuidadores familiares de idosos, encontraram que 78,8% da amostra possuem o estado civil casado ou em união estável. Ribeiro et al.22 destacam que a variabilidade de estado civil na amostra de cuidadores acompanha a variável idade, sendo que, em locais de realização de pesquisa cuja amostra tem idade mais avançada, observa-se que o padrão do estado civil tende a ser casado ou viúvo. As atividades exercidas por cuidadores tendem a ser assumidas por uma única pessoa, denominada de cuidador principal23. Essa pessoa assume e se responsabiliza pelas tarefas de cuidado, incluindo as atividades de: higiene, alimentação, supervisão domiciliar, acompanhamento nos serviços de saúde, condução da terapia medicamentosa, apoio na prática de exercícios físicos, entre outras, que surgirem em função da dependência e necessidades de saúde do idoso. Com frequência, esses cuidadores se sobrecarregam, pois não possuem ajuda de outro membro da família ou dos serviços de saúde. Logo, centraliza-se, na pessoa do cuidador, o elo entre idoso, família e a equipe de saúde24. Os cuidadores familiares constituem uma rede autônoma de atendimento ao idoso, sem a devida integração com os serviços de saúde. Esses atores, frequentemente, conduzem os idosos aos atendimentos de saúde sem compreender a organização e articulação dos diversos níveis de assistência à saúde, carecendo, também, de informações sobre quais profissionais e serviços devem ser solicitados na busca de apoio e orientações17. A compreensão de como o sistema de saúde se organiza, na lógica de redes de atenção à saúde, colabora para que o cuidado seja qualificado e que o paciente e cuidador tenham as suas demandas e necessidades atendidas no contexto da integralidade de acordo com os serviços e momentos oportunos. Dessa forma, o empoderamento do cuidador deve compreender todos esses eixos, otimizando a dinâmica do cuidado, além de facilitar o fluxo desses usuários no Sistema Único de Saúde (SUS).

Acesso aos medicamentos: um entrave persistente na assistência à saúde do idoso no domicílio O acesso a medicamentos é um indicador da qualidade e resolutividade do sistema de saúde25. No contexto da farmacoterapia do idoso, caracterizada pela alta necessidade de consumo de medicamentos, se comparado a outros estratos populacionais, a garantia do acesso torna-se ainda mais desafiadora para as famílias e sistema de saúde26. Veras et al.27, em um estudo transversal de avaliação de gastos financeiros pelas famílias com idosos com demência, demonstraram que o cuidado domiciliar tem grande repercussão financeira. Dentro da estrutura de gastos, o item que constitui maior custo é a compra de medicamentos para o idoso.

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As famílias de idosos com prejuízo cognitivo, alterações do comportamento e diagnóstico de síndrome demencial podem apresentar maior comprometimento do orçamento familiar conforme se processa a evolução da severidade da doença ou, até mesmo, com o surgimento de comorbidades27. Fernandes e Garcia28 detectaram, no relato dos cuidadores, que, nos recursos materiais de consumo pelo paciente idoso, prevaleciam: o uso de fraldas (73,7%), seguido pela necessidade de uso de medicamentos de maneira sistemática e contínua (50%). Esse mesmo estudo traz que, por carência econômica, 40% dos pacientes faziam interrupções na utilização da terapia, e 3,3% nunca podiam comprar tais substâncias, apesar de necessitar. Esses dados mostram claramente o impacto que a falta de acesso gera no aumento da fragilidade do idoso e o comprometimento da adesão à medicação. Gonçalves et al.19, Moreira e Caldas18 ressaltam que a sobrecarga do cuidador possui etiologia multifatorial, e tem sido associada aos problemas físicos, psicológicos, sociais e financeiros que podem ser vivenciados no cuidado diário do idoso. Assim, a carência financeira da família e a falta de suporte estatal, além de prejudicarem o acesso aos medicamentos e a qualidade da assistência à saúde do idoso, podem acarretar comprometimento da saúde física e mental dos cuidadores. Os medicamentos são tecnologias em saúde indispensáveis para as práticas de recuperação e reabilitação da saúde do idoso em cuidado domiciliar. A utilização de programas na área de assistência farmacêutica, pela família e paciente, é fundamental para o fornecimento oportuno desses produtos. Também é importante destacar a atuação do programa farmácia popular que, de maneira paralela e complementar, contribui na oferta de medicamentos comumente utilizados pelo público idoso, sobretudo aqueles que são indicados para o tratamento das doenças crônicas não transmissíveis. Contudo, o baixo financiamento do setor de saúde no Brasil, que tem impacto direto e acarreta o orçamento estreito previsto para a compra de medicamentos e outros produtos para saúde, acaba sobrecarregando, ainda mais, o cuidado domiciliar. Esse quadro culmina na reorganização do planejamento financeiro da família, sendo a verba destinada, em grande parcela, para a compra desses produtos, em detrimento da aquisição de outros bens e serviços elementares para a promoção da saúde e qualidade de vida, como o acesso a alimentação saudável e às práticas de lazer, por exemplo.

Administração de medicamentos: os desafios da utilização Nascimento et al.29, Martins et al.5 e Vieira et al.16 abordam que as práticas inerentes à medicação fazem parte do rol de atividades frequentemente prestadas pelos cuidadores de idosos. Não obstante, ainda são escassos os estudos que se dedicam à análise e ao impacto da responsabilidade diária da administração de medicamentos no cuidado de um idoso dependente. Os idosos que apresentam alto grau de dependência precisam de cuidadores que se responsabilizem pela administração de diversas doses durante o dia31. Consolidar o esquema de administração com as rotinas inerentes ao cuidado e ao cotidiano da família, tornou-se viável para os cuidadores que aboliram outras responsabilidades para se dedicarem exclusivamente à tarefa do cuidado. Quando os cuidadores trabalham ou possuem outra responsabilidade, é detectada maior quantidade de horários perdidos de administração, e, portanto, menor adesão ao tratamento30. Para os cuidadores que se mantêm ativos no mercado de trabalho, é imprescindível receber ajuda de parentes e empregados domésticos no cuidado do idoso, havendo rodízios do desempenho e supervisão da administração de medicamentos28. Fernandes e Garcia28 discutem que o diminuto ou, até mesmo, inexistente acesso aos medicamentos resulta o agravamento progressivo da saúde e a geração de incapacidade dos utentes. Como consequência, ampliam-se as necessidades desses idosos em termos de demanda de cuidados, acarretando o surgimento ou agravamento de enfermidades. Esse processo ainda possui como desfecho, a intensificação da necessidade e quantidade de medicamentos a serem consumidos pelo idoso, o que gera dificuldades adicionais para os cuidadores implementarem suas ações. A prática da administração de medicamentos constitui um exemplo de atividade instrumental de vida diária que, no cuidado do idoso dependente e/ou com incapacidades, é amplamente executada pelos

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cuidadores13. Sobretudo o paciente polimedicado, com uso de dispositivos complexos para a utilização de medicamentos, que necessita de produtos administrados por vias complexas (como no caso das parenterais), é fundamental o apoio prestado pelos profissionais de saúde por meio das atividades de educação em saúde, de forma a qualificar a assistência à saúde do utente oferecida pelos respectivos cuidadores

Observação clínica e comunicação sobre a farmacoterapia É de competência dos cuidadores o acompanhamento dos seus idosos aos serviços de saúde. Nesse momento, o familiar atua como importante emissor de informações sobre a saúde do idoso e, ao se comunicar com os profissionais de saúde, ele colabora na realização de uma avaliação clínica efetiva16. Por consequência, quando os serviços de saúde pretendem investigar a adequação da medicação do idoso, cabe sobretudo ao cuidador relatar as alterações comportamentais e funcionais do paciente, de modo a subvencionar os julgamentos clínicos da farmacoterapia pelos profissionais de saúde. Carneiro e França13 investigaram os conflitos no relacionamento entre os cuidadores e seus idosos. Foi encontrado que os idosos que não possuíam companheiros(as) apresentaram maior nível de conflito com seus cuidadores do que idosos que viviam com companheiros(as). Foi proposto pelos autores que fossem desenvolvidas estratégias para a redução destes conflitos, como a estimulação da oferta de cursos para a melhoria das habilidades de comunicação interpessoal entre cuidadores e idosos, por exemplo. Santana et al30 destacam que “o sujeito que sofre de síndrome demencial apresenta problemas na comunicação como retardamento no tempo de resposta, problemas de memória, déficits sensoriais e flutuações do pensamento”. Todos esses fatores associados com o quadro patológico da demência, além das limitações decorrentes do processo de envelhecimento natural, prejudicam, ainda mais, a comunicação entre familiares e idosos. Segundo Marin et al.31, as reações adversas a medicamentos são 2,5 vezes mais frequentes nos idosos do que em outras faixas etárias. Quando há prejuízo na capacidade de comunicação entre cuidador e idoso, as captações dessas informações ficam subjugadas. Diante desse cenário, os profissionais de saúde devem capacitar os cuidadores de idosos para a observação das alterações fisiológicas/patológicas do idoso em uso de medicamentos, bem como estabelecer diálogo horizontal e democrático, criando espaços para que os cuidadores possam falar e ser atentamente ouvidos, por meio da escuta qualificada. Essa prontidão na busca ativa e coleta sistemática de informações, a partir das narrativas dos cuidadores, auxiliará os profissionais de saúde na detecção e classificação das reações adversas a medicamentos, constituindo ferramentas indispensáveis nas ações de farmacovigilância. Monteschi et al.32 detectaram, nos depoimentos dos cuidadores de idosos com transtorno afetivo bipolar, preocupação com efeitos adversos e inefetividade terapêutica. Os aspectos relacionados à falta de efetividade e segurança são mencionados como agentes causais de intervenções do esquema terapêutico pelos cuidadores. Os profissionais de saúde tendem a condenar as intervenções dos cuidadores sobre a farmacoterapia, e, por essa razão, muitas vezes, elas não são relatadas nos atendimentos. No entanto, não se pode condenar um cuidador que age dessa forma na busca do bem-estar do idoso. Os profissionais de saúde, ao entrarem na realidade do cuidador, deixando de lado posturas taxativas e discriminatórias, poderão extrair essas informações para a realização de intervenções efetivas e contextualizadas, incluindo a estruturação e oferta de ações educativas em favor do empoderamento desses cuidadores16. A comunicação entre o cuidador e o idoso é muito importante para a avaliação clínica, e a transmissão dessas informações é essencial para os profissionais de saúde. No entanto, essa troca de informações deve inserir as concepções dos idosos, sendo necessária a pactuação das preferências de cuidado que eles desejam receber do seu familiar e dos serviços de saúde.

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Considerações finais De acordo com a análise das produções científicas, foi possível identificar e discutir alguns dos principais fatores dentro do contexto da conduta do tratamento medicamentoso por cuidadores de idosos. Esses dados são importantes para fornecer subsídios em prol de uma assistência à saúde multidimensional, integral e qualificada para o idoso e para a família. Contudo, a produção científica e técnica pouco se atenta ao medicamento como um importante instrumento no cuidado, sendo a escassez de estudos nessa área uma limitação importante para a elaboração de estudos de revisão. Sobre a administração de medicamentos pelos cuidadores de idosos, os estudos revelam que, dentre as principais dificuldades para o uso seguro dos medicamentos, está a necessidade de negociação entre a rotina da família e os horários de utilização dos medicamentos. Para assegurar o acesso ao tratamento medicamentoso aos idosos sob cuidado, é essencial a estruturação e implantação de políticas de saúde que certifiquem o suprimento dessas necessidades. Embora muitos medicamentos sejam ofertados para o tratamento de várias doenças nos idosos por meio dos componentes básico, estratégico e especializado da assistência farmacêutica, assim como pelo programa farmácia popular, a descontinuidade do abastecimento e a prescrição de medicamentos não padronizados culminam na transferência da responsabilidade da compra dos medicamentos para as famílias, resultando em: comprometimento da renda familiar; descumprimento dos esquemas terapêuticos, terapêutica irracional, falta de adesão ao tratamento, comprometimento da saúde dos idosos, e piora da sobrecarga e saúde mental dos cuidadores. Para a avaliação da efetividade e segurança do tratamento proposto, é importante a compilação de dados que se refiram às alterações clínicas do paciente. Os cuidadores devem ser empoderados a efetuar observações clínicas do idoso e relatá-las com liberdade para a equipe de saúde, articulando uma parceria entre a família e esses profissionais. É importante o engajamento dos diversos cuidadores nessa tarefa, para diminuir o viés da aquisição de informações sob um único prisma que poderia tender a decisões clínicas inapropriadas e incompletas, o que fragilizaria o princípio de atendimento integral da pessoa idosa. No Brasil, a maior parte dos estudos que abordam os fatores que interferem no uso racional de medicamentos pela população de terceira idade utiliza como participante os próprios idosos, isoladamente, como se eles fossem os únicos participantes da conduta do tratamento medicamentoso. No entanto, na mesma proporção de surgimento e consolidação do envelhecimento populacional, amplia-se o engajamento das famílias na execução de tarefas voltadas para a medicação, e elas, por sua vez, estão sendo negligenciadas como agentes importantes nesse processo. Diante desse quadro, é imprescindível a realização de estudos que revelem os obstáculos a serem superados por essas famílias no que se refere à conduta do tratamento medicamentoso, para que, a partir desses pressupostos, sejam elencadas as intervenções de educação em saúde e políticas públicas que ofereçam apoio à família cuidadora de idosos.

Colaboradores Débora Santos Lula Barros participou na elaboração do artigo, enquanto Dayde Lane Mendonça e Silvana Nair Leite trabalharam na revisão do texto.

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Barros DSL, Mendonça-Silva DL, Leite SN. Conducta del tratamiento medicamentoso por cuidadores de ancianos. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):527-36. El envejecimiento poblacional está ampliando el número de cuidadores de ancianos en Brasil. La farmacoterapia incluye un sistema complejo de actividades y su realización está presente en las diversas tareas desempeñadas por esos actores. Además, la conducta del tratamiento puede estar sujeta a diversos problemas en su realización, destacándose los siguientes: las dificultades de administración de los medicamentos, la falta de acceso a los medicamentos, los obstáculos en la realización de observación clínica, así como los desafíos presentes en el establecimiento de una comunicación efectiva con los ancianos y profesionales de la salud. El presente estudiose trata de una revisión cuyo objetivo es ampliar las discusiones sobre los aspectos anteriormente citados, de forma que tal debate proporcione subsidios teóricos a los programas y servicios en el área de la gerontología.

Palabras clave: Medicamentos. Anciano. Cuidadores. Conducta del tratamiento medicamentoso. Recebido em 23/02/14. Aprovado em 30/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0277

artigos

Percepções de enfermeiros docentes e assistenciais sobre a parceria ensino-serviço em unidades básicas de saúde Selma Regina de Andrade(a) Astrid Eggert Boehs(b) Carlos Gabriel Eggert Boehs(c)

Andrade SR, Boehs AE, Boehs CGE. Perceptions of academic and practitioner nurses regarding the teaching-care partnership in primary healthcare units. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):537-47. This study aimed to present the perceptions of academic and practitioner nurses regarding the expectations, objectives and difficulties of teaching-care partnerships. This was a case study with a qualitative approach case study, among 16 academic and practitioner nurses who were working together in primary healthcare units. Semi-structured interviews were conducted, followed by use of the content analysis technique and interpretation based on a model for interorganizational relationships. There was a positive perception of the partnership, with regard to the training and continuing education objectives. The practitioner nurses viewed the students’ assessments as a problem and were concerned about users. It was concluded that balanced formalization and mutual understanding between the parties is needed, in order to reduce the inherent differences between education and care, while seeking to put users in a central position.

Keywords: Teaching-care integration. Brazilian National Health System. Nursing. Technical cooperation.

Este estudo objetiva apresentar a percepção dos enfermeiros da docência e da assistência sobre as expectativas, objetivos e dificuldades na parceria ensinoserviço. Estudo de caso de abordagem qualitativa, com 16 enfermeiros docentes e assistenciais, que atuam junto a unidades básicas de saúde. Realizaram-se entrevistas semiestruturadas, analisadas com técnica de conteúdo e interpretadas à luz do modelo de relações interorganizacionais. Houve avaliação positiva da parceria, a respeito dos objetivos da formação e da educação permanente. Os enfermeiros assistenciais veem a avaliação dos alunos como um problema e se preocupam com os usuários. Conclui-se que deve haver formalização equilibrada e entendimento mútuo entre as partes, visando diminuir as diferenças inerentes entre o ensino e o cuidado e buscando a centralidade no usuário.

Palavras-chave: Integração docente assistencial. Sistema Único de Saúde. Enfermagem. Cooperação técnica.

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Programa de Pós-Graduação em Enfermagem, Universidade Federal de Santa Catarina. Campus Reitor João Ferreira Lima, Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88040-900. selma.regina@ufsc. br; astridboehs@ hotmail.com (c) Pós-Graduação em Administração, Universidade Positivo. Curitiba, PR, Brasil. cgboehs@gmail.com (a,b)

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Introdução No esforço de consolidar o Sistema Único de Saúde (SUS), foram desenvolvidas diferentes estratégias e políticas, dentre elas, um conjunto de ações relacionadas à formação de profissionais de saúde. Um marco importante ocorreu em 2001, com a criação das diretrizes e normas nacionais para os currículos dos profissionais de saúde, aprovadas pelo Conselho Nacional de Educação (CNE), que visam à formação de profissionais com perfil generalista, capacidade de promover mudanças, e orientam a formação para a efetivação dos princípios norteadores do sistema. Com este enfoque, destaca-se a integralidade dentre os princípios do SUS, que articula trabalhadores e níveis de assistência para responder universal e resolutivamente às necessidades sociais em saúde. Além disso, absorve o entendimento de fazer saúde como ação coletiva, e não como um trabalho fragmentado1. Assim, o foco é deslocado para a formação dentro das unidades de saúde do SUS, integrando docentes e alunos ao mundo do trabalho com os profissionais da prática, que compartilham seus conhecimentos exercitando o ensino, tornando este um local onde se produz conhecimento e experiência. Em nível federal, o marco para a integração entre ensino e serviço se deu com a criação da Comissão Interministerial de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde, vinculada aos Ministérios da Educação e da Saúde. Este órgão passou a implementar diversos programas, tais como o Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), o Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde (PET-Saúde), entre outros, buscando viabilizar maior integração dos cursos de graduação com as secretarias municipais de saúde. Integração, esta, favorável para a formação dos profissionais dentro das unidades de saúde, em nível primário, secundário e terciário, e orientada pela perspectiva da integralidade. Decorridos mais de cinco anos, a implementação do Pró-Saúde e do PETSaúde vem promovendo um processo de mudanças nos cursos de graduação na área da saúde e nos serviços nela envolvidos em todo o país2. Criadas as condições no plano estratégico, estudos3,4 apontam desafios ainda a serem vencidos, particularmente dentro das unidades de saúde da atenção primária. Os desafios estão relacionados: a diferenças na organização dos currículos dos cursos envolvidos nos cenários de prática, à forma de contratação de alguns docentes, aos rodízios de turmas, à integração dos estudantes com as equipes, à falta de recursos humanos no serviço, à organização do processo de trabalho por produção, ao acolhimento dos alunos por parte dos serviços, e à incipiência da educação permanente em saúde nos serviços. Outro estudo brasileiro, sobre a formação do médico no âmbito da atenção primária4, mesmo apontando uma experiência exitosa, escapa de uma discussão sobre as relações tanto em nível dos agentes envolvidos como da organização das instituições, que ocorrem nestes dois contextos, o do cuidado e do ensino. Por outro lado, para aperfeiçoar o ensino e a prática de enfermagem, foi evidenciado, em revisão de literatura5, que os líderes de ambas as partes devem trabalhar em parceria, pois a criação de modelos desenhados, pela academia, para a prática não tiveram sucesso. Tendo em vista a realidade de um Curso de Graduação em Enfermagem, contemplado com o projeto Pró-Saúde I e, posteriormente, com o PET-Saúde, considera-se a necessidade de conhecer como os enfermeiros, diretamente envolvidos na parceria ensino-serviço nas unidades básicas de saúde, avaliam esta parceria, quais são as expectativas, os problemas que vivenciam nesta interação. Assim, o presente estudo tem por objetivo apresentar a percepção dos enfermeiros da docência e da assistência sobre as expectativas, objetivos e dificuldades na parceria ensino-serviço em unidades de atenção básica, nas quais estão alocados estudantes de graduação em enfermagem.

Referencial teórico Este estudo tem como fundamentação o modelo das Relações Interorganizacionais Cooperativas6. Tal modelo situa as relações em processos cíclicos, com fases de negociação, compromisso e execução, nas quais as decisões são realizadas horizontalmente, com equidade. As relações entre as organizações 538

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são analisadas não em um ponto fixo, mas em sua dinamicidade, dentro de uma temporalidade. Entre suas proposições, encontra-se a congruência de entendimento entre as partes como elemento que aumentaria as probabilidades de se concluir uma negociação. Os contratos psicológicos, ou seja, as relações entre os agentes, também aumentariam as probabilidades de se estabelecerem compromissos formais na cooperação. Ademais, propõe que, se houver um significativo desequilíbrio entre os processos formais e informais, a probabilidade de problemas e dissolução da parceria tenderia a crescer. Estudos aplicaram este modelo na análise de relações entre universidades e organizações do setor tecnológico7 e em relações entre universidades e empresas de comunicação8. As relações interorganizacionais no campo da saúde surgem como uma forma de atender as novas necessidades, que implicam novas ações em saúde. As atividades em parceria relacionam-se, também, com a sobrevivência e/ou aperfeiçoamentos para as mesmas9. Nesta mesma linha, outro modelo fundamentado no anterior10 enfatiza que, nas parcerias, há necessidade de formalização. Isto pode ser feito por meio de contratos, regras e outros procedimentos, estabelecidos em reuniões e encontros de trabalho, que, em sua periodicidade, torna-se um processo dinâmico, em constante construção. Esta formalização cria, também, mecanismos para as relações interpessoais, focalizando a atenção na relação; possibilitando articular, deliberar e refletir sobre a colaboração entre as partes; aumentando a interação por intermédio dos diálogos e conhecimentos mútuos; e permitindo reduzir o impacto de julgamentos errôneos sobre os parceiros. Tais mecanismos influem diretamente na habilidade dos parceiros de compreenderem o sentido colaborativo da relação interorganizacional e de seus objetivos. Esta compreensão tem como consequência a diminuição dos problemas de entendimentos nas relações organizacionais, advindos de diferenças de cultura, experiências e, sobretudo, diferenças estruturais de cada organização. Auxilia a vencer as incertezas e desconfianças nos primeiros estágios da parceria e nos casos de descontinuidade e mudanças das pessoas envolvidas. Porém, os autores advertem que a excessiva formalização também é prejudicial, diminuindo a flexibilidade e a criatividade. Entende-se, portanto, que as relações estabelecidas por meio da implantação do Pró-Saúde, desenvolvidas operacionalmente entre enfermeiros docentes e assistenciais nas unidades básicas de saúde, constituem uma parceria entre organizações, compreendendo, neste caso, uma secretaria municipal de saúde e uma universidade, mediante o curso de graduação em enfermagem.

Percurso metodológico Estudo de natureza qualitativa, do tipo estudo de caso, em profundidade, de cooperação entre um curso de graduação em enfermagem e uma secretaria municipal de saúde. O curso de enfermagem está vinculado a uma universidade federal brasileira da região Sul, fundada na década de 1960. Desde a década de 1980, a referida instituição tem, no seu currículo, disciplinas que realizam estágios e aulas práticas em unidades básicas de saúde. Atualmente, os alunos começam suas atividades nestas unidades desde o primeiro semestre, e, progressivamente, amplia-se sua participação até o final do curso, quando realizam, nestes locais, uma parte do estágio supervisionado. O município foco deste estudo tem, aproximadamente, quatrocentos mil habitantes, e está dividido em cinco distritos sanitários. Os alunos de todos os cursos da área de saúde desta universidade estão distribuídos e desenvolvem atividades práticas em tais distritos. A coleta de dados, realizada no segundo semestre de 2012, foi obtida em 16 entrevistas, sendo oito enfermeiros docentes e oito enfermeiros assistenciais, vinculados a oito unidades básicas de saúde, distribuídas nos cinco diferentes distritos sanitários do município, onde ocorre a parceria ensino-serviço. As entrevistas foram gravadas e transcritas. Constituíram critérios de inclusão: docentes efetivos ou contratados que atuam nas atividades práticas e de estágio, em diferentes disciplinas do curso; enfermeiros que recebem e/ou supervisionam os alunos nas unidades de origem. Foram excluídos docentes e enfermeiros com menos de seis meses na atividade. Dentre as unidades existentes, foram escolhidas aquelas nas quais há presença constante de estudantes de graduação em enfermagem. A coleta de dados foi efetuada pelos autores por meio de um roteiro semiestruturado, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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que incluiu o levantamento das expectativas e dos objetivos, bem como avaliação desta parceria nas mencionadas unidades de saúde. Os dados foram analisados segundo a técnica de análise dirigida de conteúdo11 das entrevistas, constituindo as seguintes unidades:: as expectativas, percepção sobre o alcance dos objetivos e problemas na parceria. Os dados foram interpretados com base no modelo teórico adotado6,10 e estudos relacionados. Foi utilizado o software NVivo 8.0® para suporte à organização e análise dos dados. Este artigo é resultante de estudos realizados sob o eixo da orientação téorica (pesquisa ajustada à realidade local), vinculado ao Programa Nacional de Reorientação da Formação Profissional em Saúde (Pró-Saúde), do Ministério da Saúde, fase I – área de Enfermagem. Atendeu as recomendações da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, com garantia de anonimato e consentimento livre e esclarecido dos entrevistados, sendo aprovado pelo Comitê de Ética.

Resultados e discussão Entre os enfermeiros entrevistados, 100% dos docentes são mulheres e, entre os assistenciais, 25% são homens. As idades das docentes estavam na faixa de 24 a 56 anos, já entre os enfermeiros da assistência, na faixa de 27 a 52 anos. O percentual de 75% das docentes formou-se no período de 1979 a 1985, e 25%, de 2006 a 2010, com uma dedicação à docência variando entre oito e 26 anos. Dentre os enfermeiros assistenciais, 87,5% se formaram no período entre 2000 e 2008, e 12,5%, na década de 1980, com um tempo de trabalho na atenção básica de três a 12 anos. Os resultados e sua interpretação foram organizados em três categorias, a seguir apresentadas: expectativas, objetivos e dificuldades sobre a parceria ensino-serviço nas unidades de atenção básica.

Expectativas sobre a parceria ensino-serviço Tanto os enfermeiros docentes como os assistenciais afirmam que as expectativas do ensino e do serviço são diferentes. No entanto, avaliam que, gradativamente, estas diferenças estão diminuindo, uma vez que há mais diálogo entre as partes, após a implantação do Pró-Saúde. Consideram que, durante as atividades práticas de cuidado às pessoas, as expectativas se diluem e se tornam semelhantes. “No que a gente está vivendo hoje, não. Nossas expectativas de modo geral, dos grupos, da vinda deles são as mesmas [...] mas eu acho que as expectativas andam juntas” (E3). As expectativas dos docentes em relação ao serviço giram em torno de requisitos para a aprendizagem dos alunos, tais como: profissionais acessíveis, que recebam os alunos com atenção e que permitam a interação com a equipe local. Além disso, esperam encontrar condições favoráveis ao ensino, sobretudo com relação à demanda. “Por parte dos professores, a gente também espera encontrar pessoas acessíveis que possam nos ajudar a desenvolver as atividades do estágio, pessoas que recebam os alunos com mais atenção” (D8). O acolhimento pela equipe de saúde e as oportunidades de aprendizado são fundamentais, de acordo com o relato de discentes em uma pesquisa com estudantes de medicina12. O relato revela que, para atrair os futuros profissionais para a atenção primária, é necessário um “encantamento” e uma participação ativa no processo de trabalho. Para isto, o envolvimento da equipe local tem grande relevância. Por outro lado, os enfermeiros assistenciais entendem que, para docentes e alunos, a unidade de saúde é apenas um campo de estágio, e, para a equipe, é um campo de trabalho. Reiteram, também, que muitos integrantes da equipe da unidade de saúde esperam que os estudantes, de certa forma, devam ajudar a suprir a falta de profissionais. “Tem alguns que pensam assim: os alunos poderiam ajudar mais [...]. Existe essa expectativa, mas a gente tem que trabalhar isso. Cada um tem que ver o que é legal, não dá para os alunos suprirem a falta do profissional [...]” (E7). Percepção semelhante é corroborada por outro estudo3, em que, para as instituições de ensino, os serviços de saúde são apenas campos de estágio; e, para os serviços de saúde, os estudantes são considerados mão de obra. Segundo o referido estudo, a mudança desta percepção de ambas as partes constitui um desafio na integração ensino-serviço. 540

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Objetivos da parceria ensino-serviço Os objetivos da parceria, na percepção dos enfermeiros docentes, estão ligados ao que consideram essência de seu trabalho, ou seja, fortalecer o ensino e a aprendizagem dentro da realidade da prática. “Para melhorar a qualidade de ensino, da assistência, e trazer os alunos para a realidade propriamente dita, juntando a prática com a teoria” (D2). De forma semelhante, os enfermeiros entendem que o objetivo da parceria é contribuir com o fortalecimento do processo ensino-aprendizagem do aluno. Para eles, tal fortalecimento reflete, diretamente, na elevação da qualidade do ensino acadêmico e da assistência ofertada pelo serviço de saúde ao usuário do sistema. Os enfermeiros reconhecem que a presença dos alunos faz com que eles, como profissionais, tenham de se manter atualizados e enfrentar desafios novos, o que contribui para a educação permanente. “O objetivo da parceria é para que os alunos venham aqui e aprendam no cotidiano de trabalho o máximo possível para sua prática profissional, ao mesmo tempo em que os profissionais também se aperfeiçoam, e também aprendam nessa prática diária que pode acontecer”. (E1)

Quanto ao alcance dos objetivos da parceria, a totalidade dos docentes mostrou-se otimista, declarando que, nas unidades básicas de saúde em que atuam, eles estão sendo atingidos, referindose ao ensino. Disseram que esta parceria vem melhorando progressivamente, e que há semestres nos quais ela funciona melhor, já, outras vezes, há conflitos. Por outro lado, 70% dos enfermeiros assistenciais referiram positivamente sobre o alcance dos objetivos da parceria. Eles entendem, também, que há boas relações interpessoais da equipe local com os docentes e alunos, além de as pessoas atendidas gostarem da atenção prestada pelos alunos. O tema da oportunidade de aprendizado foi destacado por apenas um dos enfermeiros assistenciais. Contudo, lembram que, nem sempre, há retorno, pelos docentes e alunos, para a equipe, sobre o alcance dos objetivos do ensino no final do semestre. Estes dados mostram que os docentes se atêm mais aos objetivos relacionados com o aprendizado dos alunos e que os enfermeiros consideram o funcionamento da unidade com a presença dos alunos e mencionam a satisfação do usuário. Conforme o referencial adotado10, o entendimento comum a respeito dos objetivos da parceria desempenha um papel central no esforço colaborativo entre as partes e permite que as diferentes visões e expectativas da relação alcancem congruência. Isto reforça o argumento de que os resultados da parceria devem focalizar não apenas o ensino, mas, também, a relação com as pessoas atendidas e a satisfação de todos os envolvidos5. Quanto aos fatores que levam ao sucesso ou ao fracasso da parceria, a receptividade da equipe local e a comunicação foram citados pelos docentes como fundamentais. Em relação à receptividade, os docentes mencionam que o fato de muitos enfermeiros serem egressos do curso de graduação facilita o acolhimento dos alunos e docentes. Enfatizam, também, que é importante que os usuários aceitem a presença dos alunos para o sucesso da parceria. Já os enfermeiros, além de destacarem a necessidade da comunicação entre as partes, apontam, como fator essencial para o sucesso da parceria, a responsabilidade e o compromisso demonstrados pelos docentes e alunos. Evidencia-se, aqui, a relevância dos contratos psicológicos e informais para a parceria6. Apenas dois docentes comentaram acerca da influência dos programas Pró-Saúde e Pet-Saúde nas relações entre docentes, alunos e equipe da unidade básica. Tal influência, segundo eles, deve-se à existência de recursos financeiros para os projetos, o que incentivou o desenvolvimento de diferentes ações, incluindo a criação de um departamento de ensino-serviço, junto à Secretaria Municipal de Saúde. Desse modo, é importante ressaltar que a formalização que ocorreu no nível estratégico para a execução destes projetos – tais como os recursos financeiros e contratos formais, mesmo não sendo mencionados pela maioria dos entrevistados – desempenha papel significativo em nível local. Isto aumenta o equilíbrio entre a formalidade e a informalidade na relação estabelecida6.

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Dificuldades na parceria ensino-serviço Dificuldades e problemas encontrados na parceria resultaram em algumas expressões semelhantes e outras diferentes entre os enfermeiros docentes e os assistenciais. Os docentes efetivos, com larga experiência nas unidades básicas de saúde, afirmaram que, de forma geral, há semestres nos quais surgem mais conflitos e, em outros, menos. Entendem que este é um processo dinâmico, com flutuações de acordo com o contexto envolvido, e que depende tanto do que acontece com a equipe local quanto com os alunos, que, a cada semestre, trazem expectativas e características diferentes. Os docentes mencionaram, também, a grande rotatividade dos profissionais das unidades de saúde, o que dificulta o estabelecimento de vínculos e boas relações. De forma semelhante, os enfermeiros reportaram, como um problema para a parceria, a constante mudança dos docentes, sobretudo os temporários, no acompanhamento das atividades práticas de ensino. No rastro de tais mudanças, há docentes que não têm experiência em assistência primária e, mesmo tendo certa experiência, não conhecem e não se envolvem no processo de trabalho. Referem que isto gera insegurança na equipe das unidades de saúde, razão para não deixar que alunos e docentes assumam atividades junto aos usuários do sistema. Enfermeiros docentes e assistenciais concordaram que uma equipe de saúde reduzida e o grande número de usuários a serem atendidos dificultam o envolvimento da equipe local mais diretamente com os alunos. Os referidos dados sugerem que as descontinuidades ocasionadas por substituições, tanto de docentes como de enfermeiros das unidades básicas, geram problemas na cooperação interorganizacional, visto que, dentro da realidade de ambas as partes, há diferenças de estrutura, cultura e experiências10. Um dos pressupostos do referencial adotado indica que, à medida que a relação se consolida, a confiança entre as partes aumenta; a informalidade e a flexibilidade fazem fluir o entendimento e, por conseguinte, a ação, representada neste estudo pelo ensino teórico-prático e o cuidado ao usuário. Todavia, quando ocorrem substituições dos agentes envolvidos, as incertezas do início da relação retornam, os níveis de informalidade e confiança, que já existiam, são quebrados, e a parceria caminha para a dissolução ou exige um novo ciclo de negociação, estabelecimento de compromisso para possibilitar a execução6. Os docentes e os alunos sofrem com tais rupturas, que afetam o equilíbrio entre a formalidade e a informalidade. Enfatizam que, muitas vezes, transitam em território estranho, por adentrarem em ambiente que não lhes é próprio, e que dependem muito do acolhimento da equipe local. “Você sente na equipe que aquela unidade “foi imposta” [...], então ela não facilita este acesso ao aluno do ponto de vista de ações lá dentro, nem aos alunos nem aos docentes, ela não te diz claramente, mas você percebe de forma velada, que ela dificulta o acesso dos alunos às atividades”. (D3)

Enfermeiros docentes e assistenciais referiram que, na (falta de) comunicação, reside a raiz de conflitos para o sucesso da parceria ensino-serviço. Uma das falhas na comunicação está relacionada com o conhecimento do currículo do curso. Para os docentes, os enfermeiros não compreendem os objetivos das atividades práticas e estágios dos alunos das diferentes disciplinas, desde o primeiro semestre, no qual o aluno realiza apenas uma territorialização, até o último semestre, em que o aluno, em estágio curricular obrigatório, realiza, na prática do exercício profissional, todas as atividades do enfermeiro. “Os enfermeiros e a equipe não conhecem o currículo, nem como funciona o ensino, ou porque a gente não convidou ou porque não houve esse envolvimento” (D5). Esclarecem que as atividades a serem realizadas pelos estudantes são orientadas em reuniões regulares na unidade de saúde a cada início do semestre. Entretanto, com as mudanças dos integrantes da equipe, há descontinuidade e as informações se perdem rapidamente. De outra parte, os enfermeiros que recebem alunos de diferentes disciplinas, desde o primeiro semestre do curso de enfermagem, queixam-se da dificuldade de compreender o nível de complexidade das atividades dos alunos. Então, a equipe, muitas vezes, desconhece se pode ou não 542

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delegar determinada atividade para o aluno, pois ignora o que ele já está capacitado a desenvolver. Além disso, a dificuldade de integração entre as atividades dos diferentes cursos, como medicina, odontologia, nutrição, que atuam na mesma unidade básica, gera sobreposição de atividades e mais trabalho para a equipe. “A enfermagem vem num período e faz a territorialização e a gente solicita os agentes comunitários para acompanharem. Em seguida, vem a nutrição, depois a medicina [...]. Não existe um cronograma que faça com que tais coisas aconteçam ao mesmo tempo, para poder evitar, num mesmo semestre, que se tenha que fazer 4, 5, 6 vezes”. (E7)

A dificuldade da universidade – com seus diferentes cursos na área da saúde – em se organizar internamente e realizar o ensino interdisciplinar é um entrave na relação ensino-serviço, apontada, também, em outro estudo3. Este fato permite refletir sobre em que medida tal cooperação interorganizacional constitui uma relação de equidade no nível das unidades de saúde. Equidade esta baseada em trocas e reciprocidade que possibilitem negociações6. O processo de avaliação de alunos, como um problema na parceria ensino-serviço e motivo de conflitos, foi levantado apenas pelos enfermeiros, especialmente com relação aos alunos nas fases finais do curso, em estágio curricular obrigatório. Nestes casos, durante os estágios, os enfermeiros supervisionam diretamente suas atividades, e o docente orienta e acompanha de forma indireta. De acordo com os enfermeiros, muitas vezes, eles ficam muito solitários na tarefa de ensinar. “[...] porque os professores, principalmente das fases mais adiantadas, eles acompanham muito pouco as atividades práticas aqui na unidade, e isso faz com que os alunos fiquem somente sob a responsabilidade dos profissionais, e os profissionais não são professores! Não têm uma didática, não têm uma metodologia [de ensino]”. (E1)

Este problema aumenta quando o enfermeiro se depara com alunos que não se mostram muito interessados e reagem negativamente às críticas e sugestões. Alegam, ainda, que o instrumento de avaliação não contempla a realidade da prática. “O serviço se sentir responsável pelo aluno, isso gera um conflito grande, que tem que dar nota, isso é complicado para o serviço. Muitas vezes o aluno é imaturo, porque eles querem nota, eles querem passar, não aceitam crítica” (E3). O problema relativo ao processo de avaliação de alunos, apontado somente pelos enfermeiros assistenciais, mostra que as equipes locais de saúde também analisam a instituição formadora. Os dados revelam que os enfermeiros estão praticando uma ação importante do ensino, muitas vezes, sem a instrumentalização adequada e de forma solitária. O referencial teórico adotado6,10 mostra a importância do papel do indivíduo na cooperação interorganizacional, pois, mesmo que existam contratos, o trabalho é feito por pessoas e elas têm papéis institucionais. Ao mesmo tempo, tais papéis são carregados de subjetividade, havendo, assim, também um papel pessoal. A perfeita congruência entre o papel institucional e o pessoal favorece a relação entre a formalidade e a informalidade, aumenta a confiança e ajuda a dirimir conflitos. Ao contrário, quando o indivíduo não cumpre o papel esperado, este se constitui em um importante elemento de dissolução de uma parceria. No nível local da atenção à saúde, onde efetivamente acontecem o cuidado e o ensino, os problemas supracitados no presente estudo ainda são os mesmos já exibidos na literatura13-15. De modo geral, as dificuldades de convivência entre dois mundos, o do cuidado e o do ensino, estão relacionadas às dificuldades de se centrarem em objetivos comuns. É possível afirmar que, de fato, as organizações da saúde focam, prioritariamente, no atendimento aos usuários, e as organizações de ensino têm seu foco em ensinar e atender os estudantes. Contudo, na realização das atividades na unidade de saúde, os dois focos se mesclam. Assim, existem fatores intervenientes na integração ensino-serviço que precisam estar na pauta de discussão, pois representam limites para avanços desejados16, incluindo os aspectos organizacionais das rotinas dos cursos e das instituições de saúde. O referencial teórico deste estudo indica que, para toda relação, há que se estimar uma função de incongruência, na qual as dificuldades possam ser enfrentadas para a solução e sobrevivência COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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da parceria10. Neste âmbito, as relações entre os dois mundos – ensino e serviço – precisam ser criadas e mantidas, pensadas como processo longitudinal e dinâmico, que exige constantes ciclos de negociações, compromissos e execução, para promover equidade e eficiência na parceria6. Tal equidade implica a construção continuada de um ambiente de entendimento entre as partes. Para isto, há a necessidade de formalização, com regras e controles, reuniões regulares, relatórios, estabelecimento de metas e avaliação de resultados dentro das unidades de saúde onde se realiza o ensino. Além disso, no âmbito estratégico, é preciso que haja formalizações para que ocorra participação conjunta das partes, possibilitando que as enfermeiras assistenciais possam participar das discussões de currículo, elaborar em conjunto os critérios de avaliação, entre outros. Da mesma forma, os docentes deveriam ter espaço ampliado de participação e compartilhamento na organização das unidades de saúde. Embora possa comportar um componente restritivo, a formalização10 permite criar mecanismos para oportunizar e impulsionar debates, forçar a deliberações e reflexões e, assim, criar um sentido colaborativo da parceria. Este sentido de colaboração possibilitará diminuir os problemas de entendimento da cooperação entre as instituições. Ademais, poderá oferecer, aos profissionais de saúde, docentes e alunos, em um mesmo espaço, um verdadeiro trabalho integrado, evitando o imperativo de relações de convivência forçada, sem discussão dos problemas e, portanto, sem possibilidade de negociações e compromissos mútuos. Mesmo com a rotatividade dos profissionais (docentes e enfermeiros), a necessidade de interagir, por meio de momentos mais formais, proporciona maior entendimento e diminui as incertezas, desconfianças e julgamentos errôneos entre as partes. Na medida em que toda a equipe da unidade de saúde tiver maior compreensão do currículo do curso, por exemplo, esta poderá oferecer maiores oportunidades de aprendizado aos alunos. Da mesma maneira, se os enfermeiros participarem da elaboração do instrumento de avaliação, eles terão maior motivação para compartilhar seus conhecimentos e mais segurança para desempenhar esta atividade. Por fim, para que os enfermeiros docentes e assistenciais compartilhem expectativas, informações, conhecimentos, de forma horizontalizada, para encontrar o sentido colaborativo da parceria10, é fundamental que o usuário do sistema de saúde seja centro da arena das atividades profissionais14. A centralidade do usuário deve contribuir para manter o equilíbrio entre a formalidade e a informalidade, em um fluxo constante entre negociação, estabelecimento de compromissos e execução6. Tais assertivas corroboram ao encontrado em estudo de revisão5 sobre a parceria ensino-serviço na área da enfermagem, identificando como pré-requisitos para uma parceria efetiva: confiança, visão compartilhada dos objetivos e comunicação aberta. Os resultados positivos apresentados parecem estar na direção do que sugere a literatura, ou seja, uma verdadeira integração do ensino e do serviço de saúde deve compor intencionalidades complementares e convergentes de forma institucionalizada13.

Considerações finais As expectativas, os objetivos e as dificuldades com relação à parceira ensino-serviço sugerem um importante incremento nas relações entre a universidade e a Secretaria Municipal de Saúde, por meio da formalização do Pró-Saúde e do Pet-Saúde, no que se refere ao curso de graduação em enfermagem. Conhecer a percepção dos docentes e enfermeiros a respeito da relação ensino-serviço, dentro das unidades básicas de saúde, mostrou que ambos fazem uma avaliação positiva do alcance dos objetivos pretendidos. Os docentes dão mais ênfase sobre o sucesso para o ensino. Os enfermeiros reconhecem os benefícios para o ensino e para a sua própria educação permanente, mas acrescentam, como requisitos de uma boa parceria, a ausência de problemas na organização da unidade e a satisfação da pessoa atendida na presença do aluno. Apesar dos avanços que ocorreram na interação da universidade, por meio do curso de enfermagem, e da secretaria de saúde do município, com a implementação dos programas Pró-Saúde e PET Saúde, os dados mostram que há, ainda, desafios a serem enfrentados, como, por exemplo, o 544

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processo de avaliação do discente. Por haver diferenças nas expectativas no nível da unidade de saúde, os dados também apontam para a necessidade de se criarem mecanismos de convergência. Para tanto, são necessários espaços que possibilitem, a ambas as partes, o compartilhamento de ideias. As constantes mudanças dos agentes envolvidos (enfermeiros e docentes) geram descontinuidade e contribuem para as incertezas na parceria. Adicionalmente, levam à diminuição de oportunidades de aprendizado para os alunos. Para isto, um pouco de formalização é necessário, para: aumentar o entendimento mútuo entre as partes, propiciar a integração com a realidade da prática das unidades básicas de saúde, e diminuir as diferenças estruturais e culturais, inerentes entre o ensino de enfermagem e o cuidado. Conclui-se, finalmente, que as relações interorganizacionais, compreendidas de maneira cíclica e dinâmica, apresentam importantes características e fases, que contribuem para melhor interpretar a realidade local e propor ajustes na parceria. Recomenda-se a ampliação deste estudo, no sentido de incluir, também, a percepção do estudante e a do usuário sobre a parceria ensino-serviço, oferecendo novos aportes para a interpretação dessa relação.

Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Reibnitz KS, Daussy MFS, Silva CAJ, Reibnitz MT, Kloh D. Rede docente assistencial UFSC/SMS de Florianópolis: reflexos da implementação dos projetos pró-saúde I e II. Rev Bras Educ Med [Internet]. 2012 [acesso 2013 Nov 11]; 36(1):68-75. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0100-55022012000300011&script=sci_arttext 2. Ferreira JR, Cury GC, Campos FE, Haddad AE, Gusso GDF. A construção de parcerias como estratégia para o sucesso do pró-saúde. Cad ABEM [Internet]. 2007 [acesso 2013 Out 20]; 3:53-61. Disponível em: http://www.abem-educmed.org.br/pdf_caderno3/ cadernos/construcao_parcerias.pdf 3. Cavalheiro MTP, Guimarães AL. Formação para o SUS e os desafios da integração ensino serviço. Cad FNEPAS [Internet]. 2011 [acesso 2013 Nov 11]; 1:19-27. Disponível em: http://www.fnepas.org.br/artigos_caderno/v11/artigo2_formacao_para_sus.pdf

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Andrade SR, Boehs AE, Boehs CGE. Percepciones de enfermeros docentes y asistenciales sobre la alianza enseñanza-servicio en unidades básicas de salud. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):537-47. El objetivo de este estudio es presentar la percepción de los enfermeros de la docencia y de la asistencia sobre las expectativas, objetivos y dificultades en la alianza enseñanza-servicio. Estudio de caso de abordaje cualitativo, con 16 enfermeros docentes y asistenciales que actúan en unidades básicas de salud. Se realizaron entrevistas semiestructuradas, analizadas con técnica de contenido e interpretadas a la luz del modelo de relaciones inter-organizacionales. Hubo una evaluación positiva de la alianza en relación a los objetivos de la formación y de la educación permanente. Los enfermeros asistenciales ven la evaluación de los alumnos como un problema y se preocupan por los usuarios. Se concluye que debe haber una formalización equilibrada y un entendimiento mutuo entre las partes con el objetivo de disminuir las diferencias inherentes entre la enseñanza y el cuidado y buscando la centralidad en el usuario.

Palabras clave: Integración docente asistencial. Sistema Brasileño de Salud. Enfermería. Cooperación técnica.

Recebido em 05/05/14. Aprovado em 28/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0265

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Conhecimento e fonte de informações de pessoas surdas sobre saúde e doença Yanik Carla Araújo de Oliveira(a) Suely Deysny de Matos Celino(b) Inácia Sátiro Xavier de França(c) Lorita Marlena Freitag Pagliuca(d) Gabriela Maria Cavalcanti Costa(e)

Oliveira YCA, Celino SDM, França ISX, Pagliuca LMF, Costa GMC. Deaf people’s knowledge and information sources regarding health and disease. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):549-60. The aim of this study was to comprehend deaf people’s knowledge of health and disease and their information sources. It was a descriptive study with a qualitative approach, conducted in a public referral institution for caring for people with disabilities in the state of Paraíba. Interviews were conducted individually, in sign language, with 11 deaf people who were chosen using the speech content saturation method. The data were analyzed using content analysis. From the discourse, the following categories emerged: healthdisease process and health information sources. The deaf people interviewed in this study presented limited knowledge of the health-disease process. The subjects placed value on doctors as indispensable to the health-disease process. Some deaf people displayed lack of knowledge about health because of poor and inefficient sources that provide primary information without depth of content, and therefore demanded greater opportunities.

Keywords: Deafness. Health-disease process. Access to information. Health education.

Objetivou-se compreender o conhecimento de pessoas surdas em saúde e doença e suas fontes de informações em um estudo descritivo, com abordagem qualitativa, realizado em uma instituição pública de referência, no estado da Paraíba, em atendimento a pessoas com deficiência. Foram realizadas entrevistas individualmente, em língua de sinais, com 11 pessoas surdas escolhidas pelo método de saturação do conteúdo das falas. Os dados foram analisados segundo a análise de conteúdo. Das falas, emergiram as categorias: processo saúde-doença e fontes de informações de saúde. Os surdos entrevistados nesse estudo apresentaram um conhecimento limitado sobre o processo saúde-doença. Os sujeitos valorizam o médico como imprescindível para o processo saúde-doença. Alguns surdos expuseram não conhecer sobre saúde, devido a fontes precárias e pouco eficientes, disponibilizando informações primárias, sem profundidade de conteúdos, e, por isso, reivindicam mais oportunidades.

Palavras-chave: Surdez. Processo saúdedoença. Acesso à Informação. Educação em Saúde.

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Fisioterapeuta. AE04, módulo J, Residencial Sports Club, torre II, apto. 2003, Guará II. Brasília, DF, Brasil. 71070704. yanikaraujo@ yahoo.com.br (b) Faculdade de Ciências Médicas de Campina Grande. Campina Grande, PB, Brasil. deysny@hotmail.com (c,e) Universidade Estadual da Paraíba. Campina Grande, PB, Brasil. inacia.satiro@ gmail.com; gabymcc@ bol.com.br (d) Universidade Federal do Ceará. Fortaleza, CE, Brasil. pagliuca@ufc.br (a)

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conhecimento e fonte de informações ...

Introdução As concepções sobre a saúde e a doença têm sido construídas, ao longo do tempo, a partir do desenvolvimento teórico-conceitual da ciência e, ainda mais, por condicionantes ideológicos que influenciam conceitos mais legítimos em detrimento de outros. Conceitos que perpassaram desde as crenças mágico-religiosas, o empirismo racional, até a ciência moderna, e retrataram as transformações de inferência causal sobre o processo de adoecimento ao longo da história1. Apesar de a Organização Mundial de Saúde, desde 1948, já ter introduzido o conceito de saúde como um completo bem-estar físico, mental e social, a ideia de saúde como ausência de doença, fundamentada no paradigma biomédico, por muito tempo, foi amplamente difundida pela medicina, e, ainda hoje, orienta não só o senso comum, como, também, diversas pesquisas e produção tecnológica em saúde, sobretudo as relacionadas aos avanços na área de diagnóstico2. A Carta de Otawa, elaborada em 1986 na I Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde, associa o conceito de saúde ao de qualidade de vida, influenciado por fatores políticos, econômicos, sociais, culturais, ambientais, comportamentais e biológicos3. Também a Lei nº 8.080/1990, que regulamenta o Sistema Único de Saúde (SUS) em nosso país, incorporou esse conceito, entendendo, ainda, a saúde como direito fundamental do ser humano4. Nesse sentido, prestar assistência à saúde vai muito além das atividades clínicas, suscitando a necessidade de ações no âmbito de todas as condições que abrangem o processo saúde-doença, compreendido como “um processo social caracterizado pelas relações dos homens com a natureza e com outros homens, num determinado espaço geográfico e num determinado tempo histórico”5 (p. 11). A partir desses conceitos, entende-se que, dentre outros fatores, o nível de conhecimento de uma população influencia diretamente no processo saúde-doença de diversas formas: na percepção dos problemas de saúde, na capacidade de entendimento das informações sobre saúde, na adoção de estilos de vida saudáveis; no consumo e utilização dos serviços de saúde, e na adesão aos procedimentos terapêuticos6. Dessa forma, destaca-se a importância das práticas educativas realizadas pelos profissionais de saúde no sentido de sensibilizar a população para a transformação da situação de saúde da sociedade brasileira, a partir de ações que estimulem não só uma nova consciência sanitária, mas a democratização de políticas públicas, contribuindo, então, para aumentar a visibilidade dos sujeitos sobre sua inserção histórica, social e política, e levando suas enunciações e reivindicações7. No caso das pessoas surdas, as informações em saúde tornam-se muitas vezes limitadas pela dificuldade de comunicação dos profissionais com esses usuários. Além disso, uma vez que possuem privações linguísticas, os surdos também apresentam dificuldade de aprendizagem da língua portuguesa escrita, o que pode acarretar limitações cognitivas, sociais, educacionais e culturais8. Nesse sentido, a Lei de Acessibilidade n° 10.098, de 2000, atribuiu, como responsabilidade do poder público, o dever de promover a eliminação de barreiras na comunicação e estabelecer mecanismos e alternativas técnicas que tornem acessíveis os sistemas de comunicação e sinalização às pessoas com deficiência sensoriais e com dificuldade de comunicação9. Dessa forma, este trabalho teve por objetivo compreender o conhecimento de pessoas em saúde e doença e suas fontes de informações.

Caminho metodológico Trata-se de um estudo descritivo-analítico, com abordagem qualitativa, realizado em uma instituição pública de referência, no estado da Paraíba, em atendimento a pessoas com deficiência, localizada em João Pessoa/PB. A instituição foi escolhida por desenvolver trabalho na inserção, articulação e fortalecimento da comunidade surda na Paraíba, tendo sido esclarecido, aos colaboradores, que a eleição do cenário serviu apenas para localizar os sujeitos, e que os questionamentos sobre os serviços de saúde pública não se relacionavam aos serviços prestados pela instituição. 550

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Participaram do estudo 11 pessoas com surdez que aguardavam atendimento nos serviços da instituição, respeitando os critérios de inclusão determinados, ou seja: ter acima de 18 anos de idade; se comunicar em língua de sinais; apresentar condição cognitiva que permita a interação com a pesquisadora bilíngue, e assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), atestando o esclarecimento sobre os objetivos da pesquisa, aceitando voluntariamente sua participação. Foram realizadas entrevistas individuais, considerando a disponibilidade e conveniência do entrevistado. A comunicação das entrevistas ocorreu por meio da língua de sinais, por ser a língua dos participantes, e, devido à fluência da pesquisadora, em Libras, foi estabelecido contato direto com os surdos, mantendo a privacidade das informações. Diante do uso de uma comunicação espaço-visual, as entrevistas foram filmadas em arquivo MP4. Para a condução das entrevistas, foi utilizado um roteiro, com dados socioeconômicos e questões norteadoras: O que você entende por saúde? O que você entende por doença? Como você faz para obter informações sobre saúde? As falas dos entrevistados foram traduzidas para o português e transcritas pela própria pesquisadora. Em seguida, os vídeos e as transcrições foram entregues a um juiz surdo bilíngue para comprovação das traduções. Considerando a dificuldade em identificar um profissional qualificado em tradução Libras-Português com domínio pleno nos dois idiomas, a averiguação das traduções limitou-se, portanto, a um único profissional surdo. Esse processo era realizado ao final de cada dia de entrevistas, durante o período de coleta dos dados. O número de sujeitos baseou-se no critério de saturação do conteúdo das falas. Os dados foram analisados de acordo com a análise de conteúdo temática, proposta por Bardin10, que estabelece um conjunto de técnicas de análise da comunicação verbal com a descrição do conteúdo das mensagens dos entrevistados. Seu método é composto de três fases (pré-análise, exploração do material e tratamento dos resultados, inferência e interpretação), e a categorização dos dados aconteceu agrupando os temas que contemplam o mesmo significado. A pesquisa foi autorizada pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Estadual da Paraíba, e registra-se o cumprimento dos princípios bioéticos postulados na Resolução 466/2012, do Conselho Nacional de Saúde. Dessa forma, para preservar o anonimato dos sujeitos, foi registrado um código no qual cada planta do bioma nativo brasileiro corresponde a um participante.

Resultados e discussões Houve um equilíbrio com relação ao sexo dos entrevistados, sendo sete do sexo masculino e quatro do feminino, com idade média de 30,6 anos. No que se refere ao nível educacional, um possuía Ensino Fundamental incompleto, um possuía Ensino Superior e nove possuíam Ensino Médio completo. Houve um predomínio de sujeitos com quatro ou mais familiares no domicílio (oito), com renda familiar prevalente entre um e dois salários-mínimos (seis), e apenas seis indivíduos afirmaram ter algum familiar, sem considerar o cônjuge, que sabe língua de sinais. Das falas dos entrevistados, foram estabelecidas as seguintes categorias temáticas: processo saúdedoença e informações sobre saúde.

Processo saúde-doença A expressão saúde incorporou diversos sentidos que variaram com a época e com os grupos sociais, e, por muito tempo, foi colocada em oposição ao conceito de doença, até a compreensão de que esses dois termos, apesar de se tratarem de coisas diferentes, são, ao mesmo tempo, indissociáveis; e, sendo assim, a saúde se manifesta como uma constante busca de equilíbrio para superar o processo de adoecimento11. Todas as atitudes na área da saúde, desde o diagnóstico clínico até questões legais referentes aos direitos no âmbito da saúde, pautam-se em um entendimento simples e, ao mesmo tempo, complexo do que é ou do que significa o ‘ser saudável’12. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Apesar disso, para a pessoa com surdez, o acesso às informações relacionadas à saúde pode não ser o mesmo da população em geral, quando os surdos não têm acesso a informações de conversas ouvidas por acaso, ou anúncios de rádio ou televisão. Mesmo que sejam alfabetizados em português, a informação escrita também é limitada13. Esse fato confirma os achados deste estudo, no qual a maioria dos sujeitos, mesmo apresentando grau de escolaridade equivalente ao Ensino Médio completo, relatou não ter conhecimentos sobre o que é saúde e doença. “Ninguém nunca me ensinou nada de saúde”. (Caviúna) “Não sei como aparece. Se me perguntar, não sei nada. Só sinto dor. Não sei como acontece”. (Timbó) “A gente não entende o que acontece”. (Capixingui)

O conhecimento sobre saúde, mesmo que elementar, é imprescindível para que o sujeito possa contribuir de forma positiva no processo saúde-doença. É a partir do empoderamento de informações que as pessoas podem exercer, efetivamente, o seu direito à cidadania, e, consequentemente, à saúde14. Nesse sentido, o Ministério da Saúde, por meio da Portaria 2.761/2013, instituiu a Política Nacional de Educação Popular em Saúde no âmbito do SUS, com o compromisso da construção de um projeto de educação democrático e popular, por uma sociedade justa, solidária, democrática, igualitária, tendo como um dos seus eixos estratégicos a formação, a comunicação e a produção de conhecimento15. Apesar da falta de conhecimento de alguns, podem-se observar ainda sujeitos que demonstraram possuir algum tipo de entendimento a respeito do processo de adoecimento, que se baseou tanto na concepção mágico-religiosa quanto no modelo biomédico. “Deus nos dá a saúde, a gente precisa ter fé para ter saúde, e que cada vez mais vai melhorar. Primeiro Deus dá a saúde, aí a gente luta e tem fé de continuar assim. Eu não sei como acontece, Deus é quem sabe e dá a cura”. (Gurucaia)

O conceito de saúde-doença relacionado ao aspecto religioso ainda exerce forte influência na população, que atribui à doença, muitas vezes, um castigo divino, algo que se introduz no organismo humano por causa do pecado16, e, ao contrário, a saúde como dádiva divina, como expressado pela fala acima. A explicação para a relação da religiosidade e a comunidade surda está na história dessa comunidade no Brasil, onde os grupos religiosos se apresentaram como solidários à condição dos surdos, disseminando a língua de sinais entre os ouvintes que se interessassem, e ampliando seus conhecimentos sobre a cultura surda17. Para evitar o isolamento das pessoas surdas, instituições com fins religiosos, educativos e sociais dispunham de alguns serviços para a comunidade surda, como o de interpretação de língua de sinais18. Algumas pessoas ainda entendem seu processo de adoecimento como uma tendência natural ou instintiva de um sujeito com um problema de saúde, ou de qualquer um que se ponha no seu lugar, e associe esse fato com um mal indesejável que lhe aflige e lhe impede de realizar as principais atividades de sua vida. As informações que os sujeitos têm são sobre o fato físico que afeta a funcionalidade de algum de seus órgãos e acaba lhes gerando um desconforto pessoal ou, mesmo, social12, conforme falas a seguir. “Existem dois tipos: um é aquele evitável, precisa cuidar da saúde, comer certo; ter cuidado para não engordar e coisas assim. Outra coisa é quando aparece de repente, vem de dentro do corpo e se espalha. Então são dois tipos: um evitável e outro que surge de repente”. (Monjoleiro)

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“Tem uma doença simples que é fácil, mas também tem a doença profunda, perigosa que eu não conheço bem, não. A doença simples tem a febre, manchas no corpo, uma dor de barriga. Mas eu não sei como acontece”. (Gurucaia) “Coisas de saúde... resfriado, dor de garganta, dor de barriga, alergia e coisas do tipo”. (Mutambo)

Essa visão reducionista também foi encontrada em estudo com adolescentes de Ensino Fundamental, que atribuíam à doença apenas a disfunções do corpo físico19. Essa forma de entender a saúde reflete o conhecimento generalizado da população baseado no modelo médico-assistencial privatista, voltado para os indivíduos que procuram os serviços de saúde quando estão doentes20, pelo entendimento da saúde como ausência de doença. Ainda nesse sentido, alguns dos entrevistados, segundo as falas a seguir, evidenciaram o atendimento médico não só como importante, mas satisfatório e suficiente para resolver seus problemas de saúde. “Quando tem alguma coisa errada no corpo, daí a gente vai ao médico mostra para ele descobrir o que é e nos dar o remédio para nos curar, nos proteger e resolver o problema. (Jacarandá) Quando você vai ao médico, acaba com a doença e fica com saúde. Só indo ao médico, para curar as doenças, evitar algumas coisas que piorem a saúde, aprender coisas que são perigosas para saúde. Só indo ao médico para saber essas coisas”. (Maricá) “Eu falo sobre a importância de ir ao médico para investigar sobre como está a saúde. Ele faz uma avaliação da nossa saúde... O surdo precisa ir ao médico saber como andam as coisas no próprio corpo, se está tudo bem por dentro. Ele passa remédio para gente melhorar, e com um intérprete para pode explicar tudo direitinho, combina bem. A gente segue com saúde”. (Capixingui) “Uma vez eu fui ao médico sozinho e disse que estava sentindo a minha pressão alta, o médico mediu e confirmou. Ele me disse que eu precisava tomar um remédio embaixo da língua, depois de meia hora eu fui ao banheiro várias vezes e a pressão baixou. Ele mediu de novo e fui para casa”. (Urucum)

Destaca-se que o participante identificado como Urucum, relatou uma experiência de atendimento de emergência, declarando ter ‘resolvido seu problema de saúde’, contudo, observa-se que o mesmo não recebeu nenhuma orientação acerca da sua condição, nem mesmo demonstrou conhecimentos sobre que medicação fez uso. O usuário deveria ter sido orientado sobre a necessidade de aferir a pressão arterial por mais duas vezes, para que o diagnóstico de hipertensão arterial pudesse ser confirmado e seguido o acompanhamento, além de informações sobre seus fatores de risco modificáveis, como: sobrecarga de ingestão de sal, excesso de adiposidade, abuso de álcool, entre outros21. Esse fato traz preocupações sobre as consequências da desinformação sobre saúde ou doença das pessoas surdas e de quanto isso influencia negativamente seus cuidados de saúde. Observa-se, dessa forma, que não foram encontrados sujeitos que discorressem sobre o conceito de saúde de forma ampla, determinada por diversos fatores que a condicionam, como: moradia, educação, renda e acesso aos serviços essenciais, o que está assegurado na legislação brasileira4. Esse achado diverge de outros estudos realizados com usuários de serviços de saúde da atenção primária, nos quais as respostas dos entrevistados, mesmo não possuindo a ideia clara de determinantes sociais, apresentaram visão ampliada do conceito de saúde, congruente com os pressupostos do modelo assistencial proposto pela Reforma Sanitária22,23.

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Informações em saúde A diversidade de tecnologias de comunicação, especialmente a internet, grandemente difundida para a maioria da população, tem facilitado o acesso à informação em saúde, exercendo uma influência enorme sobre a situação de saúde e, em especial, sobre as iniquidades em saúde6, visto que muitas informações, que eram limitadas a um determinado grupo, estão abertas a todas as pessoas. Nesse sentido, a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência entende que essas pessoas também devem desfrutar dos mesmos meios de acesso às informações; e, portanto, a fim de assegurar-lhes esse direito, determinou que devem ser promovidas formas apropriadas de atendimento e apoio a pessoas com deficiência, para aproximá-las de todos os sistemas e tecnologias da informação e comunicação dos quais o restante da população dispõe24. Baseado nesse pensamento, recomenda-se traduzir as informações em saúde para a língua de sinais, e adaptar a apresentação dessa informação para que seja culturalmente apropriada aos indivíduos. Informações de saúde acessíveis e culturalmente apropriadas podem ajudar os usuários da língua de sinais, os surdos, a tomarem decisões sobre comportamentos de saúde associados com riscos de doenças crônicas25. Os relatos dos sujeitos apontam a mãe como a figura familiar mais marcante para o aprendizado sobre saúde. A maioria dos entrevistados que referiram ter algum parente que sabe se comunicar em Libras destacou a mãe como pessoa com quem consegue a melhor comunicação. E isto é confirmado pelas falas a seguir: “Sempre pergunto a minha mãe e ela me explica tudo eu aprendo. Sou muito curiosa. Quando acontece alguma coisa com alguém eu sempre quero saber o que e como aconteceu, pergunto a minha mãe e ela descobre e me fala”. (Maricá) “Minha mãe sempre me explicou coisas de saúde... minha mãe interpreta tudo para mim”. (Mutambo)

Geralmente, são os familiares das pessoas surdas que exercem a função de mediador entre eles e os chamados ouvintes18. Quando as mães se conscientizam das necessidades linguísticas de seus filhos surdos, tendem a usar estratégias para uma comunicação de forma efetiva11. Em se tratando da qualidade das interações entre a pessoa surda e os membros da família, Alves26 coloca que os familiares precisam estimular as potencialidades desses sujeitos, para que, de fato, eles possam construir oportunidades reais de comunicação com o mundo exterior. Apesar do importante papel da família e, em especial da figura da mãe, como provedora de informações de saúde, sabe-se da responsabilidade dos profissionais de saúde em orientar e informar a todos da população sobre os cuidados em saúde, para prevenção e tratamento adequado. No contexto da educação popular em saúde, sobretudo, o usuário deve ser reconhecido pelo profissional como sujeito ativo, dotado de conhecimento sobre o seu processo saúde-doença-cuidado e capaz de desenvolver uma análise crítica sobre suas necessidades27. Ao despertar autonomias individuais e coletivas, a educação em saúde contribui para a ampliação do significado dos direitos de cidadania, favorecendo, ainda, a comunicação em variadas linguagens, transformando as informações em instrumentos para a produção de mudanças28. As pessoas surdas sentem a necessidade de inclusão em diversas atividades desenvolvidas para a população no geral, basicamente em ações educativas que buscam fornecer informações em saúde essenciais, como apresentado na fala: “É muito importante que os surdos participem de palestras, com intérprete, para aprender e entender com clareza”. (Mutambo)

As ações educativas nos serviços de saúde almejam a garantia de uma assistência integral e a produção de saberes coletivos, propiciando, ao usuário, autonomia e capacidade de cuidar de si 554

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próprio e do outro. Nesse sentido, a educação permanente dos profissionais se concretiza como uma ferramenta indispensável para que as práticas educativas estejam cada vez mais adequadas às necessidades da população29. Dessa forma, a legislação brasileira, reconhecendo as especificidades comunicativas da comunidade surda, por meio do Decreto 5.696 de 2005, orienta que os atendimentos em serviços públicos de saúde devam ser prestados por profissionais capacitados para o uso de Libras ou para sua tradução e interpretação30. Também o Ministério da Saúde, por meio da Política Nacional de Saúde da Pessoa com Deficiência, tem buscado garantir acessibilidade aos serviços de saúde a esse grupo populacional; e, dessa forma, faz-se necessário que esses estabelecimentos sejam adaptados em seu aspecto físico e ambiental relacionados à comunicação, bem como a capacitação dos recursos humanos31. Kritzinger32 afirma que surdos e deficientes auditivos têm menor probabilidade de receber informações preventivas de profissionais de saúde ou da mídia, e maior probabilidade de receber informações da comunidade surda, assim como o relato do colaborador Monjoleiro: “A televisão sempre mostra muita informação sobre saúde, mas não tem intérprete. Na televisão eu sei que tem um programa sobre saúde, que mostra e ensina as coisas, mas falta o intérprete no quadrinho para traduzir para língua de sinais. Por isso continuamos ignorantes... Como eu sozinho vou entender que comida evitar, que cuidados tomar com o meu corpo?”. (Monjoleiro)

Scheier33 aponta que pessoas surdas têm acesso limitado a materiais educativos e, por isso, confiam em seus colegas surdos para informações de saúde, o que reforça a desinformação. A Lei nº 10.098/2000, que estabelece normas e critérios para a promoção da acessibilidade das pessoas portadoras de deficiência, determina, como barreiras nas comunicações, “qualquer entrave ou obstáculo que dificulte ou impossibilite a expressão ou o recebimento de mensagens por intermédio dos meios ou sistemas de comunicação, sejam ou não de massa”9 (p. 1). Assim, é necessária a adaptação aos meios de comunicação e de massa, como a interpretação em Libras de programas informativos sobre saúde, apontados por Monjoleiro. Esse processo de adaptação já foi regulamentado pelo Decreto nº 5.296/2004 que, em seu Art. 52, responsabiliza o Poder Público pelo incentivo da “oferta de aparelhos de televisão equipados com recursos tecnológicos que permitam sua utilização de modo a garantir o direito de acesso à informação às pessoas portadoras de deficiência auditiva ou visual”34 (p. 3). Essa legislação garante, à pessoa surda, que a mensagem seja veiculada na televisão, entre outros sistemas, por meio da janela com intérprete de Libras. Ainda é importante ressaltar o papel da escola na informação em saúde. Costa et al.35 consideram esse espaço como fundamental para influenciar a adoção de estilos de vida saudáveis e evitar comportamentos nocivos. Enfatizam, ainda, que a vigilância em saúde de crianças e jovens no ambiente escolar complementa-se com o desenvolvimento de programas direcionados aos problemas de saúde prioritários. Reconhecendo essa realidade, o Ministério da Saúde, articulado ao Ministério da Educação, criou, em 2007, o Programa Saúde na Escola, que tem como objetivo, entre outros, “promover a saúde e a cultura de paz, reforçando a prevenção de agravos à saúde e articular as ações da rede pública de saúde com as ações da rede pública de Educação Básica”36 (p. 12). Apesar de todo o esforço no sentido de tornar acessível as informações em saúde, observa-se a limitação dos sujeitos do estudo no que se refere à compreensão de alguns aspectos relacionados à saúde, adquiridos nos livros ou na faculdade. “Eu vejo nos livros, sobre como evitar, coisas assim, mas não sei nada mais profundo não. A leitura é bem difícil”. (Barbatimão)

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“O que eu conheço sobre saúde, é sobre a AIDS na escola eles explicaram sobre como pega essa doença e eu aprendi. Só... Outros lugares para aprender sobre saúde não tem. Só sei sobre como evitar Aids, drogas, essas coisas. Eu aprendi que é proibido. Eu aprendi aqui na FUNAD, e fora, na universidade”. (Mutambo)

Em estudo realizado com alunos surdos de Ensino Superior, observou-se dificuldade dos entrevistados com a língua portuguesa, no referente à leitura e compreensão dos textos, sendo essa limitação apresentada como barreira para o domínio dos conteúdos e o desenvolvimento do raciocínio37. Essa população precisa de materiais cultural e linguisticamente alinhados para atendê-la de forma satisfatória, ou seja, adaptados para os formatos mais adequados às pessoas surdas que só se comunicam por meio da língua de sinais. Isso repercute na compreensão de doenças, instruções de uso de medicamentos, e acesso à informação em saúde-educação em revistas, jornais e programas de televisão legendados32. Apesar de os entrevistados apresentarem média elevada de grau de instrução, conforme caracterização dos sujeitos, detêm baixo nível de informações, com fontes limitadas. Grande parte deles referiu não ter acesso a fontes de informações disponíveis para aprenderem sobre saúde, expuseram sua fragilidade quanto ao aprendizado sobre saúde, apontando que essa é uma realidade de outras pessoas surdas, agravada pela falta de comunicação no âmbito familiar. “Não sei nada... Meus amigos não sabem nada. Na minha família não tem comunicação... o que eu sei é zero! Não há como a gente aprender”. (Monjoleiro) “Não tem como... Eu não aprendi nada!”. (Bugreiro) “Não sei nada”. (Timbó)

Kritzinger32 considera o fato de que pessoas surdas, muitas vezes, têm as informações por meio da própria comunidade surda, e que, embora isso possa ser um meio eficaz de transferência de informação, é uma fonte informal que nem sempre é precisa e pode levar à desinformação e às lacunas no conhecimento. Por isso, alerta para a importância de se treinar e qualificar pessoas surdas a se tornarem educadores e comunicadores sociais capazes de fornecer informações sobre cuidados de saúde.

Considerações finais Os surdos entrevistados neste estudo apresentaram um conhecimento limitado sobre o processo saúde-doença, atribuindo-o, sobretudo, ao aspecto religioso, ou como conceitos controversos. Este fato traz repercussões diversas para a qualidade de vida dos indivíduos, como: a falta de protagonismo quanto ao autocuidado de saúde, falta de informações pela dificuldade em acessar fontes de informações, e a dependência de ouvintes, familiares, amigos e intérpretes de Libras, devido à barreira da comunicação. Mesmo assim, observou-se que os sujeitos seguem o modelo biomédico centrando a saúde na ausência de doenças, por meio da valorização do médico como sendo imprescindível para o processo saúde-doença, na cura das doenças. Dessa forma, os surdos sentem dificuldade em promover cuidados preventivos de saúde, e buscar serviços nesse sentido ou seguir adequadamente um tratamento de saúde, devido à barreira da comunicação, causada pelo despreparo dos profissionais em reconhecer a cultura surda e suas necessidades comunicativas em língua de sinais. Quando se trata de informações de saúde, encontrou-se um quadro ainda mais inquietante, no qual as fontes de informações para os indivíduos surdos são precárias e pouco eficientes, disponibilizando apenas informações primárias, sem profundidade de conteúdos. Apontaram que a 556

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comunicação em meios de massa, como a televisão, ainda é inalcançável para os surdos, limitando seu acesso a informações que são disponíveis para ouvintes de todas as idades. Mesmo tendo um nível educacional acima do Ensino Médio, os surdos necessitam de adequações em materiais educativos e informativos, considerando as características da cultura surda e da língua de sinais, de modo a promover uma igualdade de oportunidade de aprendizado. Destarte, sugere-se que a educação em saúde, tão difundida por ações de prevenção e promoção da saúde, possa ser adaptada a pessoas que se comunicam em língua de sinais, para que elas possam adquirir o conhecimento necessário a fim de cuidar plenamente de sua própria saúde e tomar suas decisões, nesse sentido, com autonomia. A educação em saúde deve ser pensada e executada, tanto pelas escolas, enquanto educadoras, quanto pelos profissionais de saúde, enquanto cuidadores da saúde. Por isso, a formação profissional e o serviço público devem incorporar, às suas práticas, a sensibilização dos estudantes e profissionais quanto à cultura surda e suas repercussões na vida dos surdos, bem como as estratégias de minimizar os obstáculos provenientes dessa surdez.

Colaboradores Yanik Carla Araújo de Oliveira e Gabriela Maria Cavalcanti Costa participaram da concepção do projeto, análise e interpretação dos dados; redação do artigo e revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; e aprovação final da versão a ser publicada. Suely Deysny de Matos Celino participou da análise e interpretação dos dados; redação do artigo e revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; e aprovação final da versão a ser publicada. Inácia Sátiro Xavier de França e Lorita Marlena Freitag Pagliuca participaram da análise e interpretação dos dados; revisão crítica relevante do conteúdo intelectual; e aprovação final da versão a ser publicada. Referências 1. Oliveira MAC, Egry EY. A historicidade das teorias interpretativas do processo saúdedoença. Rev Esc Enferm USP. 2000; 34(1):9-15. 2. Batistella C. Abordagens contemporâneas do conceito de saúde. In: Fonseca AF, Corbo AD, organizadores. O território e o processo saúde-doença. Rio de Janeiro: EPSJV, Fiocruz; 2007. p. 51-86. 3. Carta de Otawa. Primeira Conferência Internacional sobre Promoção da Saúde [Internet]. 1986 [acesso 2010 Ago 18]. Disponível em: http://www.opas.org.br/ promocao/uploadArq/Ottawa.pdf 4. Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União. 19 Set 1990.

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Oliveira YCA, Celino SDM, França ISX, Pagliuca LMF, Costa GMC. Conocimiento y fuente de informaciones de personas sordas sobre salud y enfermedad. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):549-60. El objetivo fue comprender el conocimiento de personas sordas sobre salud y enfermedad y sus fuentes de informaciones en uno estudio descriptivo, con abordaje cualitativo, realizado en una institución pública de referencia, en el estado de Paraíba, en atención a personas con discapacidad. Se realizaron entrevistas individuales, en lengua de signos, con 11 personas sordas elegidas por el método de saturación del contenido de las conversaciones. Los datos se analizaron según el análisis de contenido. De las conversaciones, surgieron las categorías: proceso salud-enfermedad y fuentes de informaciones de salud. Los sordos entrevistados en este estudio presentaron un conocimiento limitado sobre el proceso salud-enfermedad. Los sujetos valorizan al médico como imprescindible para el proceso salud-enfermedad. Algunos sordos expusieron que no tenían conocimiento sobre salud, debido a fuentes precarias y poco eficientes, poniendo a disposición informaciones primarias, sin profundidad de contenidos y, por eso, reivindican mayores oportunidades.

Palabras clave: Sordez. Proceso salud-enfermedad. Acceso a la información. Educación en salud. Recebido em 16/04/14. Aprovado em 28/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0524

artigos

Use of Psychodrama in medicine in Brazil: a review of the literature

Rafaela Liberali(a) Suely Grosseman(b)

Liberali R, Grosseman S. Uso de Psicodrama em medicina no Brasil: uma revisão de literatura. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):561-71.

Objective: To review the literature on experiences of the use of psychodrama in medical education in Brazil. Methods: Papers published between 2003 and 2013 were identified in the main databases. Results: Seven papers were identified. Role playing and sociodrama were the psychodrama techniques reported. They were used to address aspects of relationships such as emotions and behavior and to improve some communication and clinical skills. Psychodrama provided the students with opportunities for critical reflection, questioning of professional practices and sharing of experiences, and also decreased their anxiety and fear. Role playing was used among students and among teachers undergoing academic development, while sociodrama was only used among students. Conclusions: There are still few papers reporting on experiences from the use of psychodrama in Brazilian medical schools.

Keywords: Psychodrama. Sociodrama. Medical education. Role playing.

Objetivo: Realizar uma revisão da literatura sobre experiências com o uso de psicodrama na educação médica brasileira. Metodologia: Artigos publicados entre 2003 e 2013 foram identificados a partir das principais bases de dados. Resultados: Foram encontrados sete artigos. O role playing e o sociodrama foram as técnicas de psicodrama reportadas e utilizadas para abordar aspectos do relacionamento como emoções e comportamentos e para melhorar algumas habilidades de comunicação e habilidades clínicas. O psicodrama propiciou, aos estudantes, oportunidades para reflexão crítica, questionamento da prática profissional, troca de experiências, e também diminuiu sua ansiedade e seu medo. O role playing foi usado com estudantes e com professores em desenvolvimento docente, enquanto o sociodrama foi usado apenas com alunos. Conclusão: Ainda há poucos artigos divulgando experiências com o uso de psicodrama nas escolas médicas brasileiras.

Palavras-chave: Psicodrama. Sociodrama. Educação médica. Desempenho de papéis.

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(a) Doutoranda, Programa de PósGraduação em Ciências Médicas, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Rua Professora Maria Flora Pausewang, s/n, Trindade. Florianópolis, SC, Brasil. 88036-800. Bolsista Fapesc/Capes. rafaelametodologia@ gmail.com (b) Departamento de Pediatria, UFSC. Florianópolis, SC, Brasil. sgrosseman@gmail.com

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Introduction During medical school, students experience different teaching-learning methods and environments1 to maximize their acquisition of knowledge, skills, and attitudes2. The use of arts (such as role playing, theater, videos, movies, poetry, narrative essays, and music) is a strategy used in contexts aiming at working out meanings and human emotions3-6. Some authors emphasize that this approach of emotions and their sharing among students potentiate compassion and empathy7-9. Psychodrama, developed with groups, has shown promising results in the education of health professionals. It was created by Jacob Levy Moreno to work out conflicts and more severe pathological states, and it can be considered “a therapy of action, where the individual, instead of reporting their conflicts to the therapist, express them through dramatization”10 (p. 485). In psychodrama, group members interact, and knowledge is constructed through action, which includes finding new ways to deal with several difficulties11. Its power of transformation lies in the fact that, by dramatizing, people widen their insight about themselves and their reality12. Romaña, cited by Gomes et al.13, proposed the use of educational psychodrama (a union between theater and education) based on Moreno’s therapeutic psychodrama. It is developed in an atmosphere of play and freedom, to achieve expressiveness when articulated in the dramatic or theatrical background, with originality and creativity14. Psychodrama provides opportunities for reflective practice and meaningful learning15-17 and can be used for teaching various communication skills, including listening skills, asking questions, counseling, care, and communication in sensitive situations18-20. The process of dramatization can also provide an increase in learning of abstract concepts because role playing provides the experience of aspects that cannot be easily expressed in words21. Working arrangements within psychodrama can be used in learning situations to facilitate comprehension of phenomena that involve interpersonal relationships, and include sociodrama, role playing, spontaneous theater, live journal, and drama games22. Sociodrama is characterized as a group work, where the group is involved in a dramatic situation (problematic situations) and individual aspects of the participants are not exposed23,24. According to Nery, Conceição25, the aim of sociodrama is to enable participants to express themselves or to try to resolve conflicts in dramatized scenes or directed interactions. There are neither spectators nor actors but rather subjects who participate as protagonists of the scene26. In this type of psychodrama, contents of the formal education (teaching) can be worked out in the observing the groups and their network of relationships, from a perspective of education by and for action27. In sociodrama, we do not deal with preconceived hypotheses, but with contents that emerge and that the group directs from the warm-up and, thus, dramatization ideas arise26,27. The sociodrama process includes four stages, as proposed by Moreno: 1) warm-up, during which participants get prepared; 2) dramatization: experiencing via dramatic scenes acted out by the group members so as to understand the phenomenology of the conflict and attempt its resolution; 3) sharing (return of the protagonist to the group): analysis of the impact of the event on the participants, with feedback on the participation; and 4) theoretical processing: socionomic reading (analysis of the relationships among the group members, their preferences and avoidances)28,29. “Role playing”, or role-play, game, performance, interpretation or role exchange, is another form of psychodrama, being the most widely used in many areas of knowledge23. It has proven useful for consolidating knowledge and developing certain skills and attitudes, as well as an awareness strategy30-32. In medicine, it has been used for teaching and learning different situations of medical practice, allowing an analysis of the communication process and the factors that hinder or improve the doctor-patient relationship33-35. In this mode, each member of the group plays a specific role and contributes either individually or collectively. Within each group, a full network of roles that dynamically act and relate to each other is obtained36. The strategy is freer. After distributing the students in groups, the characters are presented characterized according to their roles37.

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Joyner and Young38 claim that the key to success of role playing is the warm-up. Studies using role playing describe various forms of warm-up, and it is usually used to present and explain the structure of the strategy and then act out the predetermined dramatization2,19,24,39,40. Since in this process the participant represents “the other”, it allows the development of empathy40. Among its advantages are the practice in a safe and controlled environment, absence of risks to the patient, and opportunity for reflection and feedback41. In their review paper, Kissane et al.42 show that role playing has been used by oncologists for developing their communication skills, because this strategy allows feedback, reflection and re-enactment of the exercise until the improvement of the skill. Aiming to build knowledge on the use of psychodrama in medical education in Brazil, the objective of this study was to review the literature about experiences with the use of psychodrama in medical education in Brazil.

Methodology The methodology used herein was the literature review, which plays a key role in the process of synthesis by identifying and summarizing studies published on topics focused on what is happening in field research43.

Search Strategies We searched general bases usual in systematic reviews in health and related areas, as well as specific bases focused on the subject matter in databases as Scientific Electronic Library Online (Scielo), Biblioteca Virtual em Saúde - the Virtual Health Library – (Bireme, which includes the following bases: Medline, Lilacs, IBECS; BDENF). In order to enhance the study, we also used Google Scholar. The procedures related to searches in databases complied with the following steps: First step - the authors identified controlled descriptors in the DeCS base and uncontrolled descriptors, taking into account keywords most often cited in the reference literature, such as ‘psychodrama’, ‘social drama’, ‘role-playing’, ‘role playing’ and ‘medical education’. The logical operators AND, OR, and AND NOT were used to combine keywords and terms used for screening publications. As a search strategy, we combined the keywords with each other whenever the bases allowed it. For all keywords, we used the same methodology in all available languages, and ranked the studies found by title, author, source, country of origin, year of publication. Second step - the search was refined to make it more specific and focused on the present study. The following inclusion criteria were used: a) papers written in Portuguese, Spanish or English about experiences with psychodrama in Brazil, between January 2003 and July 2013; b) papers that directly addressed the drama theme, communication skills, humanism and medical education; c) full papers, which used drama a strategy for teaching communication skills in Brazilian medical schools. Studies focusing on psychology, patient treatment, and studies of fields other than medicine were excluded, as they did not match the scope of this study. In order to enrich the introduction and the dialogue with the international literature in the discussion, international experiences with psychodrama were also reviewed.

Results and discussion Scielo was the broadest database hosting such studies. Among the seven papers identified, six (85.72%) were from medical schools in the Southeast (São Paulo and Rio de Janeiro) regions and one (14.28%) in the Northeast region. Chart 1 shows that the papers were published between 2005 and 2011 and that role playing was the most frequently used form of psychodrama (71.43%).

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use of psychodrama in medicine ...

Chart 1. Characteristics of the papers on dramatization in medical schools selected for this study. Study

Teaching strategy

Year

Database

Journal

2005

Scielo

Interface - Comunic., Saúde, Educ.

Sociodrama

Ramos-Cerqueira et al.29

2009

Scielo

Revista Brasileira de Educação Médica

Role playing

Aragão et al.39

2009

Scielo

Revista Brasileira de Educação Médica

Role playing

Colares and Andrade2

2009

Scielo

Revista Brasileira de Educação Médica

Sociodrama

Ramos-Cerqueira et al.26

2010

Scielo

Revista Brasileira de Educação Médica

Role playing

Jucá et al.24

2010

Scielo

Interface - Comunic., Saúde, Educ.

Role playing

De Marco et al.19

2011

Scielo

Interface - Comunic., Saúde, Educ.

Role playing

Francischetti et al.40

The two studies we found that used sociodrama were by Ramos-Cerqueira et al.26,29. One of these studies (Ramos-Cerqueira et al.29) reports the use of sociodrama to identify positive and negative aspects of academic life and feelings related to them, as well as to rescue the class identity as a whole, from sharing these experiences and affections among students of the 6th year of Botucatu’s Medical School (São Paulo, Brazil). In the warm-up process, the authors suggested that the students share their thoughts on the process of becoming and “being a doctor” and that they choose a fairy tale of their liking. After that, groups were formed according to the similarity of the tales and, then, part of this tale was staged. The task ended by the participants explaining the feelings evoked in them by the dramatic scenes and preparing a passage, which would form the valedictory address. Based on the statements of the participants, the authors reported as results of their study the facilitation of exchanging experiences among the students, the acceptance of their shared anxieties with regard to the final residency exams and the national students’ performance test by the Brazilian Ministry of Education (MEC), as well as a prevailing attitude of optimism, solidarity and a feeling of invigoration arising from the group’s cohesion and common identity. In the second study, Ramos-Cerqueira et al.26 reported the experience of using sociodrama to discuss expectations, concerns, feelings, difficulties, and challenges during home visits This activity is done with ninety students of the 1st year of Botucatu’s School of Medicine (FMB), to introduce medical education in the community. The use of sociodrama aimed at preparing the student to get in touch with the multiple and complex determinants of the health-disease process in the health care area in an interdisciplinary perspective. During the warm-up process (initial phase of sociodrama), the authors suggested that the students walked around in the classroom, thought about a situation they feared to face during home visits, and then synthetized it into a single word. After that, the words were grouped by category (poverty, violence, rejection, fear, insecurity, etc.). The students were then grouped according to the categories and asked to act out scenes based on these categories, choosing the setting, the characters, the lines, or even a revealing static image of the scene. After presenting the scenes, the students expressed the feelings they experienced. According to the authors, the feelings most usually expressed were impotence and frustration in certain situations of poverty. The tutors gave an appreciative feedback. Also based on the testimonies of the participants, as results the authors reported the rich exchange of experiences, greater self-knowledge, an opportunity for critical reflection, and decreased anxiety and fear. Both studies by Ramos-Cerqueira et al.26,29 pointed out some difficulties found with the use of sociodrama, such as the initial reluctance of the students in participating in the warm-up phase and in the choice of scenes. The authors commented that this reluctance was expressed in long silences, slowness in rising from their chairs, and/or their claiming to be tired. This attitudes were overcome with the teacher’s conduction of the process and the students’ evaluation of the activity was positive. As the literature shows, sociodrama has also been used as a teaching strategy in the training of other health care professionals. Several topics have been addressed, E.g. the matter of gender, with psychology students44; the feelings while working in Family Health Care Program, with workers in a 564

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artigos

Family Health Care Unity (community health workers, administrative assistants, nursing assistants, nurses and nurse trainees, and doctors)45; and the humanization of health care, with the emergency room staff of a hospital46. Among nursing students, sociodrama was used in the teaching-learning process in Occupational Health47, in order to be able to face the daily routine in health services48 and for the integration of theory and practice in the nursing profession49.

Role playing Chart 2 summarizes the five studies, which contain reports on the experience with role playing. The majority of participants were medical students. Only one study reported the experience with teachers of a medical school. The role playing was used for: working out the expectations of the student entering medical school; the life of first year students and their relationship with veteran students, as well with other in the institution, with their family and the society2; teaching communication skills encompassing interviews31, active listening, how to respond to emotions and how to give bad news an handle emotions in diseases such as leukemia, HIV, amputations24; teaching attitudes and communication during the gynecological examination39; and, faculty development to use role playing40. As for the warm-up process, the authors used dialogues among the participants about the experience and exposure to the method used. After that, the roles were determined and the scenes were enacted. Some difficulties pointed out by the authors were the low enthusiasm of the students in participating in the role playing2,40; resistance to recording the scenes and to feedback19; anxiety and inhibition when acting out the scene in front of colleagues24; difficulty in understanding the organization of the proposed activity and role reversal40. In one study, the authors reported that teachers/tutors initiated the scene enactment as a strategy to decrease students’ anxiety and resistance19. One of the authors did not report any difficulties with dramatization in the teaching method by role playing39. The majority reported that due to the leading of the teachers/tutors, the results were positive, as usually evidenced in the testimonies of the participants. Among the results reported were the richness of exchanging experiences, greater self-knowledge, opportunity for critical reflection, and decreased anxiety and fear. The experience reported by the Humanities group of the Medicine program of the University of Ceará (UCE) indicates the use of role playing for teaching communication skills for patient-oriented consultations, which includes among others, the use of open and closed questions and active listening, and the skills for communicating bad news18. The opportunities for role playing-mediated teaching and learning have made it widely used in the world, in many fields of knowledge, subjects and activities50. A few examples that illustrate how broad is the range of goals that can be achieved using role playing deserve mentioning. In India, authors reported the use of role playing for medical students better understand the concepts and characteristics of neurological abnormalities related to different parts of the brain51; in Punjab, authors used role playing to teach cardiopulmonary physiology52; in South Korea, it was used to train cardiopulmonary resuscitation53; in Germany, to teach the insertion of nasogastric tube54; and in England, to teach how to speak in public, how to interview patients, and to discuss ethical issues of the doctors’ work55. The objective of the study by Francischetti et al.40 – to prepare tutors for developing role playing with students – was pointed out as the key to their success. The successful preparation of tutors of diverse groups has been described in the literature. Owen and Reay56 trained users of mental health services (called mental health consumers) as tutors to teach psychiatry students of the 4th year of the medical program at the University of Australia. One of the strategies they learned to use was role playing. The authors found that tutors enjoyed the experience, and, also, they were well accepted by the students, who, at the end of the program, showed increased appreciation of the tutors, had a clearer perspective on consumer opinions, and had the opportunity to see mentally-ill people in a recovery process. Bylund et al.50 successfully trained medical doctors of several specialties in a cancer COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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treatment center through a workshop so that they could facilitate the teaching of communication skills using role playing for peers and residents. Weyrich et al.57 trained medical students to work as tutors with their peers in the same year of training and concluded that undergraduate education had technical peers with the same clinical knowledge and that this tutoring was feasible and widely accepted among learners, provided that tutors received sufficient training and supervision. The present review shows that psychodrama facilitated the teaching and learning and, even though tutors find resistance by some participants, it can be overcome with enough training. Still, since we have found reports on experiences in only seven papers, we suggest that more publications be done in this area.

Chart 2. Studies using role-playing in schools of medicine Study

Aragão et al.39

Colares and Andrade2

De Marco et al.19

Jucá et al.24

Francischetti et al.40

Objective

To evaluate student perceptions when undergoing a simulated gynecological exam and potential behavioral changes.

To encourage the students to talk about their role as students and their admission in medical school

To rehearse ways of acting during the medical interview that favor the development of communication skills

To review the abilities of communication and listening during the doctor-patient relationship, when addressing issues related to diseases (leukemia, HIV/AIDS, amputations, fetal loss)

To allow the tutor to experience the role of student in the tutoring activity and, thus, not only increasing their awareness but also expanding their perceptions of the teaching process, their strengths and weaknesses

Participants

60 students (of the Gynecology and Obstetrics unit of the internship program)

10 students of the 2nd and 4th year

20 students and teacher of Medical Psychology 2nd year

40 students of the 3rd semester of the discipline of Social and Health Sciences

32 teachers from the 1st–4th semester of the medical and nursing schools

Institution

Centro Universitário Universidade de São de Volta Redonda, Paulo – University of Rio de Janeiro – São Paulo University Centre of Volta Redonda, Rio de Janeiro

Unifesp, São Paulo – Federal University of São Paulo, São Paulo

Universidade Estadual do Ceará (UECE) – State University of Ceará

Faculdade de Medicina de Marília (FAMEMA) – Medicine College of Marília

Initial Phase Warm-up

Brief exposure about drama and the protagonists roles

Choices of roles and think of scenes and characters based on their everyday routine

Open dialogue about the importance of communication in medical task

Exposition about roleplaying, the activity and the roles of actors and observers

Tutoring sessions whose problem case refers to the structure of Problem-Based Learning

Dramatization of - Entrance in medical school, - First year students life, - Relationship with veteran students, school, family and community

Staging - Organization of a waiting room - Cases of early consultation - Recording the scenes

Staging in groups of three - Role reversal (physician, patient, observer)

Several tutors acted as students, while others played the tutor’s role.

Main Phase Enactment of a Role-Playing gynecological examination - Teacher: - guided participants regarding potential pathologies - Corrected the technique during the exam, simulating an actual exam on an outpatient

it continues

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Chart 2. continuation Study Final Phase (sharing)

Aragão et al.39 Group discussion on: - Experience of each student - The statements of the students were recorded, transcribed and reviewed

Colares and Andrade2

De Marco et al.19

Jucá et al.24

Francischetti et al.40

Reflection: - Each student commented on how he felt when put in the role of the other

Brief Summary - Most important issues, - Feedback based on analysis of the recorded scenes

Sharing with the large group - Experience, emotions and difficulties with the method

At the end of the activities, they answered - Issues for analysis of their discourses in relation to the activity performed

Advantages - The dynamics was fully incorporated and played by the participants - Showing that solutions for topics addressed can be found inside each student who goes through a situation of role reversal with their patients

- share the difficulties of medical training - Integration of students from different years - Favors positive ties - Greater critical reflection on the development of the professional role

-teachers begin staging bogeymen to minimize student resistance - Role-playing and filming facilitated training in communication techniques and interviews

- participants developed active listening, trying to understand how the patients feel and interpret their disease - They showed difficulty in giving bad news, at the same time, they value the doctor-patient construction

- A facilitator of the learning process, as the tutor was put in the student’s role, favoring new perspectives and perceptions, and raising their awareness to the tutoring process

Limitations

- small size sample due to low volunteers adhesion

- stress and resistance of students in relation to recordings and feedback

- anxiety among participants - Inhibition because of the use of body expression

- Low adherence - Difficulty in understanding the activity - Difficulty in role reversing

Not reported in the article

Conclusion The psychodrama strategies used in Brazilian medical schools that reported their experiences in the literature were sociodrama and role playing. They were used to approach aspects of relationship such as emotions and behaviors and to improve some communication and clinical skills. The psychodrama provided the students opportunities for critical reflection, questioning professional practice and sharing of experiences, and also decreased their anxiety and fear. Therefore, it contributed to cognitive, attitudinal and procedural aspects of medical education. The publishing of more articles describing the experiences in the Brazilian medical schools would allow spreading and sharing this knowledge and would encourage their utilization in other schools.

Collaboration The authors worked together in all stages of the manuscript production.

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Funding sources The authors did not receive external sources of financing to conduct this study. Rafaela Liberali has a doctoral scholarship from the following Brazilian development agencies: Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Estado de Santa Catarina (FAPESC, the Foundation for the Support and Innovation of Research of the State of Santa Catarina; and Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES, the Federal Agency for the Support and Advancement of Graduate Education). References 1. Samarakoon L, Fernando T, Rodrigo C, Rajapakse S. Learning styles and approaches to learning among medical undergraduates and postgraduates. BMC Med Educ. 2013; 13(42):1-8. 2. Colares MFA, Andrade AS. Atividades grupais reflexivas com estudantes de Medicina. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(1):101-14. 3. Evans D. Imagination and medical education. Med Humanities. 2011; 21(1):30-4. 4. Blasco PG, Gallian DMC, Roncoletta AFT, Moreto G. Cinema para o estudante de medicina: um recurso afetivo/efetivo na educação humanística. Rev Bras Educ Med. 2005; 29(2):119-28. 5. Ruiz-Moreno L, Romaña MA, Batista SH, Martins MA. Jornal vivo: relato de uma experiência de ensino-aprendizagem na área da Saúde. Interface (Botucatu). 2005; 9(16):195-204. 6. Jacobsen T, Baerheim A, Lepp MR, Schei E. Analysis of role-play in medical communication training using a theatrical device the fourth wall. BMC Medical Educ. 2006; 6(51):1-8. 7. Reilly JM, Ring J, Duke L. Visual thinking strategies: a new role for art in medical education. Fam Med. 2005; 37(4):250-2. 8. Sousa-Muñoz RL, Silva IBA, Maroja JLS. Experiência do estudante de semiologia médica em aulas práticas com o paciente à beira do leito. Rev Bras Educ Med. 2009; 33(2):276-81. 9. Yang KT, Yang JH. A study of the effect of a visual arts-based program on the scores of Jefferson scale for physician empathy. BMC Med Educ. 2013; 13(142):1-8. 10. L’Abbate S. Health education: a new approach. Cad Saude Publica. 1994; 10(4):481-90. 11. Canel RC, Pelicioni MCF. Psicodrama pedagógico: uma técnica participativa para estratégias de promoção de saúde. Mundo Saude. 2007; 31(3):426-33. 12. Massaro G. Cinema, subjetividade e psicodrama. Rev Bras Psicodrama. 2012; 20(2):31-7. 13. Gomes AMA, Albuquerque CM, Moura ERF, Vieira LJES. Aplicação do psicodrama pedagógico na compreensão do Sistema Único de Saúde: relato de experiência. Psicol Am Lat [Internet]. 2006 [acesso ano mês dia]:(6). Disponível em: http://pepsic.bvsalud.org 14. Diniz NMF, Freire NM, Lopes RLM, Almeida MS, Gesteira SMA, Oliveira JF. Psicodrama como estratégia pedagógica: vivências no ensino de graduação na área de saúde da mulher. Rev Latino-am Enfermagem. 2000; 8(4):88-94. 15. Pinheiro AS, Moreira MIBG, Freitas MA. Ensino médico e promoção da saúde em creche comunitária. Rev Assoc Med Bras. 2001; 47(4):320-4. 16. Díaz MÁF, Pascual JLG, Martín IL, Martínez MEM. Evaluación participativa en habilidades para comunicar en 3º de grado de enfermería en el curso 2009/10, la escenificación como método docente y de evaluación. Rev Doc Univ. 2010; 8(2):73-93.

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Palabras clave: Psicodrama. Sociodrama. Educación médica. Desempeño de papeles.

Recebido em 11/07/14. Aprovado em 01/11/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0399

artigos

Portfólios crítico-reflexivos: uma proposta pedagógica centrada nas competências cognitivas e metacognitivas

Rosângela Minardi Mitre Cotta(a) Glauce Dias da Costa(b) Erica Toledo de Mendonça(c)

Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Critical and reflective portfolios: a pedagogical approach centered on cognitive and metacognitive skills. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):573-88. Objective: To evaluate portfolios as a teaching, learning and assessment method within an educational process centered on cognitive and metacognitive skills, with the aim of enabling learning in which students act autonomously, responsibly, critically and creatively. Methods: It was a qualitative study. Data were gathered through the techniques of document analysis (26 portfolios) and a focus group. The skills developed by the students during portfolio construction were classified on the basis of cognitive and metacognitive processes. Results: Portfolio construction enabled development of comprehensive, critical and creative thinking among students, through a dynamic, critical and reflective educational process. Conclusions: Portfolios formed an innovative teaching, learning and assessment method that enhanced cognitive and metacognitive skills.

Keywords: Teaching materials. Teaching. Competency-based education. Portfolio. Public health.

Objetivo: avaliar o portfólio como método de ensino, aprendizagem e avaliação no âmbito da formação centrada em competências cognitivas e metacognitivas, almejando um aprendizado em que os estudantes atuem de maneira autônoma, responsável, crítica e criativa. Métodos: pesquisa qualitativa; a coleta de dados se deu por meio das técnicas de análise documental (26 portfólios) e grupo focal. As competências desenvolvidas pelos estudantes durante a elaboração dos portfólios foram classificadas com base nos processos cognitivos e metacognitivos. Resultados: a construção dos portfólios possibilitou o desenvolvimento dos pensamentos compreensivo, crítico e criativo nos estudantes, viabilizando um processo educativo dinâmico, crítico e reflexivo. Conclusões: o portfólio configurou-se como um método de ensino, aprendizagem e avaliação inovador e potencializador de competências cognitivas e metacognitivas.

Palavras-chave: Materiais de ensino. Ensino. Educação baseada em competências. Portfólio. Saúde pública.

COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Departamento de Nutrição e Saúde, Universidade Federal de Viçosa (UFV). Avenida PH Rolphs, s/n, Campus Universitário. Viçosa, MG, Brasil. 36570-900. rmmitre@ufv.br; glaucedias@ yahoo.com.br (c) Departamento de Medicina e Enfermagem, UFV. Viçosa, MG, Brasil. erica.mendonca@ufv.br (a,b)

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Introdução As atuais diretrizes nacionais e internacionais da educação universitária apontam para a necessidade de implementação de novos modos de se pensar e praticar o processo de ensino-aprendizagem. No âmbito da saúde no Brasil, destacam-se as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN), idealizadas a partir das demandas do atual cenário de trabalho, que exige a formação de profissionais com perfil críticoreflexivo e com capacidade para trabalhar em equipes, tendo como referência os valores humanísticos – alteridade, compaixão, resiliência, escuta qualificada e olhar sensível às demandas de saúde dos indivíduos e comunidades1,2. Tais mudanças exigem uma transformação paradigmática na formação superior, do atual modelo baseado essencialmente na transmissão de conhecimentos e na memorização (educação por conteúdos, somativa, classificatória) para um modelo educativo embasado na formação por competências, que inclui conhecimentos, habilidades e atitudes centradas no processo de aprendizagem e em cenários mutantes e abertos3-5. Essas transformações requerem um giro significativo a partir dos pontos de vista pedagógico, epistemológico e psicossocial, preparando o estudante para a dinamicidade da contemporaneidade, que interfere nas condições de vida e de produção de conhecimentos1,2,6,7. Estas questões são reafirmadas por Zabalza8 (p. 9), que destaca que: [...] o que nos é solicitado é que em lugar de levar a cabo uma formação orientada ao conhecimento, desenvolvamos processos formativos que dotem nossos estudantes daquelas competências que melhorem sua preparação para o exercício profissional e para a formação ao longo de toda a sua vida.

Por sua vez, Lizarraga4 (p. 9) enfatiza que os educadores têm o papel essencial de instigar o desenvolvimento integral e holístico dos seus educandos, já que “o ser humano possui a capacidade para dirigir-se sempre em direção à luz, mas só desfrutará dela se utilizar seu pensamento intuitivo, criativo, lógico, prático”. Assim, os egressos demandam cada vez mais flexibilidade e capacidade de adaptação às constantes mudanças que se produzem na sociedade. O desafio que se coloca, portanto, é o de implementar processos pedagógicos que ajudem os alunos a se transformarem em pessoas ativas, potencializando-os e formando-os para a vida5,9. Tal fato requer o investimento em novas metodologias de ensino, aprendizagem e avaliação que permitam, ao discente, apropriação crítica do conhecimento, na perspectiva dialógica e interdisciplinar, tendo, na problematização da realidade, um instrumento de transformação2,6. Em suma, utilizar metodologias ativas de ensino, aprendizagem e avaliação significa apostar em uma educação: que desenvolva processos críticos, que desperte a criatividade e nela se embase, que considere o diálogo como aspecto fundamental, que estimule a reflexão e que apresente as situações como problemas a resolver. A formação deve ser o mais próximo possível da vida real, permitindo a aplicação prática do aprendizado – aprender fazendo – e, ao fim e a cabo, que faça uma aposta na mudança6. Entre as metodologias inovadoras de ensino, aprendizagem e avaliação, destaca-se o portfólio como método de estímulo ao pensamento reflexivo, e potencial processo pedagógico que auxilia os estudantes a se transformarem em pessoas ativas, em investigadores críticos, abertos ao diálogo e ao novo1,2. Nessa perspectiva, este estudo teve como objetivo avaliar o portfólio como método de ensino, aprendizagem e avaliação no âmbito da formação centrada em competências cognitivas e metacognitivas, almejando um aprendizado em que os estudantes atuem de maneira autônoma, responsável, crítica e criativa na construção de seus projetos de vida pessoal, social e profissional, no contexto da política de saúde brasileira – o Sistema Único de Saúde (SUS).

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Métodos Desenho do estudo e coleta de dados Pesquisa de natureza qualitativa, cuja coleta de dados se deu por meio de duas técnicas de investigação: a análise documental e o grupo focal. A análise documental consiste em uma técnica que utiliza como material de análise os documentos, organizando-os e interpretando-os segundo os objetivos da investigação proposta. Os documentos (no caso deste estudo, os portfólios) possibilitam que se opere um corte longitudinal que favorece a observação de um processo de maturação e evolução dos indivíduos, grupos, conceitos, conhecimentos, comportamentos e práticas, além de permitir acrescentar a dimensão do tempo à compreensão do social10,11. Já o grupo focal tem por objetivo identificar percepções, sentimentos, ideias e atitudes dos participantes a respeito de determinado tema ou atividade realizada. Seu propósito pode ser gerar novas ideias ou hipóteses, estimular o pensamento dos participantes e, ainda, entender como estes interpretam a realidade, seus conhecimentos e experiências. Trata-se de uma discussão em grupo, em que o pesquisador/facilitador deve estar ativamente atento ao processo, encorajando a interação entre os participantes12. Os depoimentos dos alunos sobre a experiência de construção dos portfólios coletivos decorrentes dos grupos focais foram gravados e registrados por dois facilitadores, sendo transcritos posteriormente e analisados exaustivamente.

Análise dos dados e aspectos éticos Foram analisados 26 portfólios construídos coletivamente na disciplina de Políticas de Saúde em uma universidade pública, bem como os relatos de nove grupos focais, nos anos de 2010 e 2011, num total de 164 estudantes que cursaram a disciplina no referido período. A construção de portfólios crítico-reflexivos foi utilizada como método de ensino, aprendizagem e avaliação na disciplina de Políticas de Saúde para os cursos de graduação na área da saúde (Enfermagem e Nutrição); tendo como propósito primordial promover o aprendizado sobre as políticas de saúde, com destaque para o SUS, política nacional de saúde do Brasil. Segundo Cotta et al.2 (p. 788-9): Entre os recursos inovadores do processo de ensino-aprendizagem e avaliação destaca-se o portfólio como instrumento-estratégia de estímulo ao pensamento reflexivo. O portfólio permite ao educando documentar, registrar e estruturar os processos de sua própria aprendizagem, visto que a construção se pauta na pactuação entre educador e educando, possibilitando o trabalho colaborativo na articulação e solução de problemas complexos. O portfólio também incentiva o aluno a colecionar suas reflexões e impressões sobre a disciplina, opiniões, dúvidas, dificuldades, reações aos conteúdos e aos textos estudados, às técnicas de ensino, sentimentos e situações vividas nas relações interpessoais, oferecendo subsídios para a avaliação do estudante, do educador, dos conteúdos e das metodologias de ensinoaprendizagem, assim como para estimar o impacto da própria disciplina.

Os portfólios (P) e os grupos focais (GF) foram datados cronologicamente (P2010, P2011; e GF2010, GF2011, respectivamente) conforme o ano em que foram desenvolvidos, bem como numerados aleatoriamente, de forma a possibilitar uma organização para posterior análise e apresentação dos dados. A análise dos dados foi feita mediante classificação das competências cognitivas e metacognitivas (que abrange os pensamentos compreensivo, crítico e criativo) desenvolvidas pelos estudantes durante o processo de elaboração dos portfólios, segundo os preceitos de Lizarraga4.

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Este estudo é parte de um projeto de inovação em docência universitária, e foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade Federal de Viçosa, em consonância com o disposto na Resolução nº 196/9613 do Conselho Nacional de Saúde do Brasil.

Referencial teórico-conceitual O conceito de competência é a chave para a compreensão da nova proposta de formação superior. No Brasil, a orientação organizativo-legal referente à formação universitária relativa às profissões da saúde está inscrita nos seguintes documentos e leis: a Constituição Federal de 1998, a Lei Orgânica da Saúde – 8080/1990, as discussões e relatório final da X Conferência Nacional de Saúde de 1998 (que tratou da temática da formação e desenvolvimento de Recursos Humanos na Saúde), e as DCN dos cursos da área da saúde14,15. Em nível internacional, a referência inscreve-se no Informe da Unesco9 e no Processo de Bolonha15. Na atualidade, a formação por competências apresenta uma importância singular no âmbito universitário, ao compreender-se que facilita a aproximação dos conteúdos estudados com as demandas complexas da sociedade, estimulando as habilidades psicossociais cognitivas e não cognitivas. Ademais, a formação centrada em competências possibilita a integração de saberes essenciais necessários à resolução de problemas tanto pessoais quanto profissionais, nos diferentes cenários da sociedade do conhecimento5. Não obstante, cabe aqui o esclarecimento do que se entende por competência. Trata-se de uma palavra complexa e ambígua, muito em voga na atualidade, em razão, sobretudo, da “confusão terminológica existente relativa aos distintos significados que lhe são atribuídos”5 (p. 60). Para efeitos deste estudo, entende-se por competência a capacidade para utilizar conhecimentos, destrezas, atitudes, valores e habilidades pessoais, sociais e/ ou metodológicas, que capacitarão o indivíduo para o enfrentamento e resolução de problemas, em situações de estudo ou de trabalho e no desenvolvimento acadêmico, profissional, social e ou pessoal1,3-5,16. Além disso, o desenvolvimento das competências torna-se importante para a participação ativa do indivíduo na sociedade na qual se encontra inserido, de forma que este seja capaz de interpretar a informação disponível e assumir uma posição ativa diante das diferentes possibilidades que lhe são apresentadas, preparando-se não somente para o mundo do trabalho, mas para a vida2,17. As competências, portanto, não podem ser pensadas como o resultado da aprendizagem de apenas um elemento, mas a conjunção de vários aspectos, tanto pessoais quanto relacionados a um contexto determinado. Nelas se convergem tanto os conhecimentos necessários que devem estar presentes para fundamentar e dar sentido à ação, quanto destrezas, habilidades (intelectuais, manuais, sociais etc.), atitudes e valores, que colaboram para a correta execução de uma ação, no contexto em que se adquire ou se desenvolve. O importante é que tais habilidades devem estar dirigidas sempre para o alcance de resultados úteis em um contexto determinado, mas tendo em conta que cada cenário está imerso em um permanente processo de mudanças, o que justifica que cada indivíduo deve estar, também, de forma permanente, em constante processo de formação. Isso significa saber utilizar a informação, o conhecimento e a capacidade de saber demonstrá-lo e aplicá-lo em situações novas, complexas e inéditas, de forma autônoma e responsável, o que demandará um saber Fazer, saber Conviver, saber Utilizar estrategicamente o conhecimento e saber Ser1,5,9,16, conforme demonstrado na Figura 1. Em nível da formação na graduação, as competências a serem estimuladas são aquelas que deverão estar centradas: na compreensão de conhecimentos adquiridos, na elaboração de críticas e argumentos, na comunicação clara e explícita, no trabalho em equipe, no compromisso ético, na aplicação dos conhecimentos à prática profissional, no entendimento da cultura, crenças e costumes dos povos em que se esteja trabalhando, na compreensão da diversidade, entre outros – habilidades estas que integram os quatro pilares das competências expressas na Figura 12,4.

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saber (conhecimentos) Conhecimentos teóricos específicos de cada âmbito profissional ou de uma área acadêmica

saber conviver

Domínio das competências

Atitudes pessoais, interpessoais e habilidades que facilitam a convivência e o trabalho em equipe

saber SER Atitudes

saber fazer Conjunto de habilidades, destrezas cognitivas, emocionais, sociais, ou procedimentos que permitem aplicar o conhecimento que se possui e aperfeiçoálo graças a competências metacognitivas

Ajuste de valores, princípios e crenças. Atitudes profissionalmente válidas, modo de perceber e viver o mundo

Figura 1. Domínio das competências necessárias a um aprendizado ao longo da vida no desenvolvimento acadêmico, profissional, social e/ou pessoal. Adaptado de Delors9 e Pastor16.

Mais especificamente, segundo os propósitos deste estudo, destacam-se as competências cognitivas, por formarem parte da “[...] arquitetura mental do ser humano, integrada pelos processos que tem como finalidade preferencial compreender, avaliar e gerar informações, tomar decisões e solucionar problemas”4 (p. 23). Essas competências cognitivas e metacognitivas podem ser sistematizadas em três pensamentos (compreensivo, crítico e criativo), que têm como metas a serem almejadas a tomada de decisões e a solução de problemas (competências complexas), cuja representação gráfica pode ser visualizada na Figura 2.

Resultados A análise dos 26 portfólios e dos depoimentos extraídos dos nove grupos focais realizados na disciplina de Políticas de Saúde nos anos de 2010 e 2011 permitiu a compreensão destes instrumentos como potencializadores do desenvolvimento das competências cognitivas e metacognitivas pelos estudantes, o que foi facilitado intencionalmente por suas divisões didáticas: Conceito de portfólio; Minha trajetória; Aprendendo com o grupo; Espaço de criatividade (Figura 3). Isso demonstra a sistematização de um processo no qual o estudante busca, seleciona, pensa, analisa, reflete, estabelece relações, julga, faz descobertas e gera novas ideias, efetivando o pensamento compreensivo, crítico e criativo (Figura 2).

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competências

Avaliar informação

Interpretar informação PENSAMENTO COMPREENSIVO

PENSAMENTO CRÍTICO Competências avaliativas

Gerar informação PENSAMENTO CRIATIVO

Habilidades 1. Investigar a confiabilidade das fontes

1. Comparar 2. Classificar

2. Interpretar causas

3. Analisar

3. Raciocinar analogicamente

4. Sintetizar 5. Encontrar argumentos

4. Raciocinar dedutivamente

1. Gerar ideias 2. Estabelecer relações 3. Produzir imagens 4. Criar metáforas 5. Estabelecer metas

METAS

TOMADA DE DECISÕES

Solução de Problemas

Habilidades: Considerar várias opções, prever suas consequências e escolher a melhor opção em situações individuais e coletivas

Habilidades: Considerar várias soluções, prever seus efeitos, escolher a melhor solução, verificá-la e avaliá-la em situações individuais e coletivas

Figura 2. Sistematização das competências cognitivas e metacognitivas. Fonte: Adaptado de Lizarraga4.

A elaboração da primeira síntese (provisória) ocorreu após um momento de reflexão do pequeno grupo mediado pelos professores, representando a tomada de consciência de suas capacidades e conhecimento do seu processo de aprendizagem, possibilitada pelo compartilhamento das ideias entre os grupos. A nova síntese, terceiro momento vivenciado pelo grupo, quando os estudantes revisitam e aprofundam as ideias e conceitos iniciais formulados (primeira síntese), possibilitou, aos alunos, a sustentação de um novo conhecimento produzido a partir dos múltiplos pontos de vista decorrentes da teorização e discussão. Conforme representado graficamente na Figura 3, observou-se, assim, que o portfólio atuou como potencializador da formação do pensamento compreensivo, crítico e criativo dos estudantes, propiciado pelo exercício de análise e sínteses (primeira síntese e nova síntese), o que evidenciou a capacidade desse instrumento de desenvolver, nos estudantes, os meios eficazes para lidarem com a informação à qual têm acesso, visando à potencialização de sua aprendizagem. Destarte, os alunos, a partir da seleção e interpretação de reportagens, músicas, charges, poemas, entre outros, refletiram, tomaram decisões, previram e exercitaram novas alternativas, atividades essas importantes para uma atuação crítica e dinâmica no mundo do trabalho e da vida. 578

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Conceito de portfólio

Minha trajetória P

ANÁLISE

Primeira SÍNTESE

NOVA SÍNTESE

Pesquisa individual na literatura científica.

Teorização conceitual pelos pequenos grupos.

(Re)construção, pelos grupos, de um novo conceito de portfólio a partir da vivência.

1- Construção da memória individual: Quem sou eu?/De onde vim?/ Para aonde vou?

Na metade do semestre letivo: mudanças percebidas - PESSOAIS (aprender a ser, aprender a conviver, exercício da reflexão e crítica).

O “novo eu” e o “novo nós” que surgiu na construção do portfólio: percepção, avaliação individual e pelo grupo.

2- Em pequenos grupos: Quem sou eu para o grupo?

O R

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T F Ó L I

Aprendendo com o grupo

O

Espaço criativo

Resenhas, resumos, síntese e processamento de situação-problema e narrativas. Primeiro momento individual.

Poemas, charges, reportagens, músicas, produções artísticas. O estudante pesquisa, reflete, julga, decide, seleciona, sequencia informações, processa e interpreta os dados de forma reflexiva. SUPERAÇÃO DO PENSAMENTO INGÊNUO.

Elaboração, em pequenos grupos, de sínteses e/ou resenhas e resumos coletivos a partir das sínteses individuais. Segundo momento coletivo.

Apresentação, discussão e produção da nova síntese a partir das rodas de conversa (grande grupo). Terceiro momento coletivo.

O estudante: averigua a sustentabilidade das informações; formula inferências; estabelece informações com conhecimentos prévios; investiga confiabilidade das fontes; relaciona as partes com o todo; questiona o óbvio; integra os conteúdos; faz descobertas; gera novas ideias. PENSAMENTO CRIATIVO.

Alcance do aprendizado significativo com autonomia, capacidade para sustentar argumentos, resolução de problemas. EXERCÍCIO COLETIVO DE HABILIDADES DO PENSAMENTO CRIATIVO: INOVAÇÃO, FLEXIBILIDADE, MOTIVAÇÃO.

Figura 3. Divisões didáticas do portfólio a partir do desenvolvimento das competências do pensamento cognitivo e metacognitivo dos estudantes.

O velho e o novo conhecimento, num processo dialético, acarretaram um movimento de produção de novas significações, levando o aluno ao processo de aprendizado mediado por um contexto real – o aprender pela ação –, derivado de uma participação ativa e constante diálogo entre estudantesestudantes e estudantes-professores. Por meio dos depoimentos ilustrados na Figura 4, os quais destacam o importante papel do portfólio como viabilizador dos processos cognitivo e metacognitivo, salienta-se o desenvolvimento dos pensamentos compreensivo, crítico e criativo, oportunizados pela construção dos portfólios no dia a dia dos estudantes. As expressões verbais (extraídas dos grupos focais) e escritas (registros nos

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portfólios) dos acadêmicos evidenciam a transformação destes de uma postura passiva e acrítica de meros memorizadores e tomadores de apontamentos em sala de aula, para modos e atitudes mais ativos, críticos e questionadores das informações recebidas. Estes fatos demonstram capacitação para o manejo dos problemas da realidade, tal como ela se apresenta no mundo real, ou seja, na vida cotidiana dos estudantes na sociedade e no mundo do trabalho, representado pelas atividades desenvolvidas na universidade, nas unidades de saúde, comunidades e domicílios.

PORTFÓLIO COMO VIABILIZADOR DO PENSAMENTO COGNITIVO E METACOGNITIVO SEGUNDO RELATO DOS ESTUDANTES

PENSAMENTO COMPREENSIVO

“A visão que eu tinha sobre o SUS mudou completamente. Antes eu só criticava, agora consigo ponderar sobre vários ângulos e formar minha opinião (GF2010, n. 5)”. “Para construirmos o portfólio, aprendemos que temos que ler e pesquisar [...] com o passar do tempo vi que reaprendi a ler (GF2010, n.1)”.

“Aprendi a ser mais critica, a refletir e não ficar repetindo o que o jornal, a internet e televisão falam [...]. Aprendi que lendo diferentes fontes e opiniões acabamos encontrando nossa verdade (GF 2011, n.2)”.

PENSAMENTO CRÍTICO

“Conquistei o olhar crítico. Agora assisto e leio uma reportagem sobre a saúde e consigo interpretar o que estão falando e refletir sobre os diferentes interesses que estão por trás. Isto eu consegui com o portfólio, com as avaliações e orientações do professor ao longo do semestre (P2010, n. 9)”. “Depois desses meses de estudo ocorreu uma transformação em relação ao meu senso crítico sobre os temas relacionados à saúde e até mesmo sobre as atualidades no mundo. Aprendi o quanto é importante me informar antes de criticar. Também aprendi a gostar de ler e escrever, já que nesta disciplina o que mais fizemos foi escrever e ler (GF2010, n. 5)”.

PENSAMENTO CRIATIVO

“O portfólio estimula a trabalhar com nossa criatividade. Aqui na universidade a gente não pode fazer isto, depois que entra para a universidade a gente esquece como é ser criativo (P2011, n. 3)”. “Eu me redescobri. O portfolio cobrou muito de mim como pessoa e estudante, mas no final eu vi que era capaz, só precisei ter força de vontade (GF2010, n. 5)”.

Figura 4. Representação gráfica do portfólio como viabilizador do pensamento cognitivo e metacognitivo.

O que se observou foi que, pouco a pouco, os estudantes foram se empoderando, buscando novas fontes que subsidiassem suas reflexões, assumindo uma atitude mais responsável, comprometida, analítica e questionadora. Sem embargo, as Figuras 5 e 6 ilustram, por meio de representações gráficas, as habilidades do pensamento compreensivo desenvolvidas com a elaboração dos portfólios, e as percepções que os estudantes tiveram do portfólio como instrumento de ensino, aprendizagem e avaliação, respectivamente. 580

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HABILIDADES DO PENSAMENTO COMPREENSIVO DESENVOLVIDAS COM A ELABORAÇÃO DOS PORTFÓLIOS SEGUNDO RELATO DOS ESTUDANTES (ANÁLISE, 1ª. SÍNTESE E NOVA SÍNTESE)

“Método coletivo de aprendizagem com possibilidades de troca de experiências (P2011, n. 3)”. (1ª SÍNTESE) CONCEITO DE PORTFÓLIO

MINHA TRAJETÓRIA

APRENDENDO COM O GRUPO

“Nosso grupo vivenciou na prática os conceitos de portfolio presentes na literatura; destacando-se a aquisição de habilidades, interesses, atitudes e crescimento pessoal, profissional [...] por meio da autorreflexão e auto avaliação contínuas (P2011, n. 5)”. (NOVA SÍNTESE)

“Com a construção do portfólio aprendi a ser mais paciente, observadora, a escutar, a perceber que as pessoas têm outras ideias, outros pontos de vista e que podem também ser bons, ainda que sejam diferentes dos meus (GF8, n. 3)”. (ANÁLISE) “Falar as ideias e conceitos e fácil; mas passar essas ideias para o papel e debater com os autores e difícil (P2011, n. 5)”. (1ª. SÍNTESE)

“A disciplina estimula não só a conhecer a nossa política de saúde, mas principalmente a se conhecer e a conhecer os colegas do grupo, de onde o colega veio, o que pensa, como é, isto nos ajuda a ser mais tolerantes e acalma nossas angustias (G6, n. 4)”. (ANÁLISE) “Com o passar do tempo descobrimos que o portfolio é uma construção viva, dinâmica, que carrega um pouco de cada um de nós. Fica uma certeza: saímos da disciplina pessoas diferentes daquelas que entramos (P2011, n. 6)”. (NOVA SÍNTESE)

“Aprendemos a construir uma visão positiva do SUS, antes não tínhamos ideia de como ele está presente em nosso dia a dia. Com os conhecimentos adquiridos na disciplina (leituras, reportagens, pesquisas) percebemos como o SUS esta perto de nós (P2011, n. 2)”. (NOVA SÍNTESE) ESPAÇO CRIATIVO

Pesquisar reportagens e charges com a visão positiva do SUS foi difícil; a imprensa em geral o vê de forma negativa. Pra facilitar a discussão sobre as reportagens e charges, tivemos que procurar cada vez mais textos e artigos que nos ajudassem a debater sobre os assuntos; assim fomos nos inteirando cada vez mais sobre os conteúdos (ANÁLISE) (P2001, n. 2)

Figura 5. Representação gráfica das habilidades do pensamento compreensivo desenvolvidas com a elaboração dos portfólios.

Nesse contexto, observou-se a transformação dos alunos de uma visão estática e instituída para uma visão analítica, dinâmica e instituinte dos problemas que se apresentam no cotidiano da vida acadêmica (dentro e fora da universidade), social e profissional. Tal transformação se deu pela oportunidade de se exercitarem os pensamentos indutivos e dedutivos, por meio de sucessivas tentativas e possibilidades do exercício de análises e sínteses; ao elaborarem resenhas e resumos, ao criticarem charges, poemas, música e reportagens, ao exercitarem a resolução de problemas procurando novos valores e comparando experiências positivas e negativas de implementação do SUS COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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presentes na literatura científica e leiga, bem como em documentos e sites de organismos nacionais e internacionais (Ministério da Saúde, Organização Mundial da Saúde – OMS, Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – IPEA etc.); e, finalmente, ao pensarem sobre sua inscrição histórica no mundo, seus valores e papéis que desempenham na vida pessoal e profissional, bem como pelo exercício de compreender o outro – colega do grupo (Figura 5).

O PORTFÓLIO COMO INSTRUMENTO DE ENSINO, APRENDIZAGEM E AVALIAÇÃO SEGUNDO RELATO DOS ESTUDANTES

O PORTFÓLIO COMO INSTRUMENTO DE ENSINO

“O nosso interesse pelas atividades foi aumentando gradativamente à medida que íamos construindo o portfolio. A busca do conhecimento e a necessidade de analisar o cenário sanitário do país nos ajudaram a tornarmos cidadãos mais críticos, além de exercitarmos a convivência e o trabalho em grupo (P2011, n. 1)”. “Aprendi e espero levar por toda a minha vida o quanto ser um profissional de saúde é importante (P2011, n. 2)”.

O PORTFÓLIO COMO INSTRUMENTO DE APRENDIZAGEM

“Foi unânime a opinião do grupo sobre o portfolio ter sido a melhor forma de aprendizagem, pois acarretou em mudanças de concepções, por meio da visão crítica e construtora, tão importante para os cidadãos [...] certamente sairemos dessa disciplina mais capacitados como profissionais da saúde e como seres humanos (P2011, n. 5)”.

“As quatro avaliações ao longo do período letivo foram primordiais, a gente se sentia valorizada e com vergonha quando não contribuía muito com o grupo, mas sempre podia recuperar o tempo perdido e melhorar (P2010, n. 4)”. O PORTFÓLIO COMO INSTRUMENTO DE AVALIAÇÃO

“Aprendi a me auto avaliar, aprendi a perceber o que realmente sei e o que preciso buscar para melhorar, assim se pode ter tranquilidade em relação a nota (GF2011, n. 7)”. “O desempenho e aprendizado são avaliados de forma contínua, o que permite que o aluno sempre possa retomar os rumos/percurso/trajetória (P2011, n. 8)”.

Figura 6. Representação gráfica do portfólio como instrumento de ensino, aprendizagem e avaliação.

Outro achado relevante deste estudo refere-se à percepção, expressa pelos estudantes, do importante papel desempenhado pelo portfólio como estratégia/ferramenta de ensino, aprendizagem e avaliação, conforme se demonstra nos depoimentos ilustrados na Figura 6. Observa-se claramente, nesta figura, a mobilização dos educandos – até então treinados para executar decisões e tarefas pensadas pelos docentes – para uma participação e coconstrução em equipe do novo conhecimento, tanto sobre a Política de Saúde brasileira quanto sobre si próprios e sobre os colegas como seres humanos, que aprendem e se desenvolvem em interação, buscando compreender antes de agir. Estes fatos possibilitaram a descoberta de novos caminhos para que os estudantes desempenhassem com mais efetividade suas missões na universidade, nos serviços de saúde e nas comunidades em que vivem e trabalham.

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Na percepção dos estudantes, a possibilidade de serem avaliados e de se autoavaliarem longitudinalmente, de forma contínua ao longo de todo o semestre, estimulou o exercício do pensamento reflexivo, potencializando o conhecimento de si e dos outros, o que foi reforçado pelo feedback dado pelos docentes e pelos colegas de equipe, tanto no processo de construção quanto nos quatro momentos de avaliação dos portfólios durante o semestre letivo. Exercitar a escuta ativa sobre os diferentes pontos de vista, bem como sobre as alternativas de solução dos problemas que se apresentavam, mostrou-se importante para o aprendizado relacionado tanto aos conteúdos técnicos quanto àqueles relativos às relações entre seres humanos.

Discussão Os resultados deste estudo permitem inferir que o portfólio coletivo se configurou como instrumento, estratégia, ferramenta e método de ensino, aprendizagem e de avaliação inovador e potencializador de um processo educativo dinâmico, crítico e reflexivo. Estes aspectos vão ao encontro das DCN e orientações internacionais ao investirem na formação de futuros profissionais de saúde com perfil humanista, crítico e reflexivo, pautado em princípios éticos e na compreensão da realidade social, cultural e econômica do seu meio, dirigindo sua atuação para a transformação da realidade em benefício da sociedade e comprometimento com o SUS9,14,15,18,19. Desde essa perspectiva, pode-se afirmar que o processo de aprendizagem, da forma como está proposta a construção dos portfólios na disciplina de Políticas de Saúde, permitiu, aos estudantes, o desenvolvimento de uma postura analítica. A adoção do portfólio como método de ensino, aprendizagem e avaliação decorrente da mudança conceitual que incorpora novos objetivos para a formação está pautada na “[...] hipótese de desenvolvimento pessoal e profissional de cada formando, no interior de sistemas ecologicamente estruturados, dinâmicos e interativos que constituem [...] parte integrante e de forte poder determinante do processo de desenvolvimento individual”8 (p. 20). Por meio da teorização e pela busca ativa de documentos, artigos, reportagens, charges etc., os acadêmicos passaram “[...] de uma visão sincrética ou global do problema a uma visão analítica do mesmo – através de sua teorização – para chegar a uma síntese provisória, que equivale à compreensão”20 (p. 10). Dessa apreensão ampla da estrutura do problema no qual os estudantes estavam trabalhando, surgiu a necessidade de elaboração de hipóteses de solução que os impulsionaram a fazer escolhas e selecionar estratégias mais viáveis e interessantes para a abordagem do problema enfocado, de forma coletiva, por meio da pactuação e negociação, dimensões essas de vital importância para o exercício do trabalho em equipe, tanto no mundo acadêmico quanto no mundo profissional. Por sua vez, a síntese diz respeito à integração entre os achados encontrados, por meio da realização de analogias e reflexões que levam o estudante a produzir uma nova configuração significativa, (re)construindo conceitos a partir da conexão de conhecimentos/elementos prévios com os novos. A síntese só é possível de ser realizada se o estudante executa a associação da teoria com a práxis, ou seja, sai do âmbito unicamente conceitual da sala de aula e do espaço interno da universidade, e exerce sua capacidade de buscar no mundo real e na literatura a possibilidade de transformação da realidade tal como se apresenta4,20,21. Neste sentido, análise e síntese são indissociáveis; para sintetizar com êxito, é preciso analisar. Foi a partir deste processo que ocorreu o desenvolvimento do pensamento crítico e reflexivo pelos estudantes, conquistado, gradativamente, na construção dos portfólios coletivos, conforme ilustrado nas Figuras 3, 4, 5 e 6. Pensar ativamente e conectar os conhecimentos teóricos relacionados aos conteúdos acadêmicos, aos problemas encontrados nos serviços de saúde, na comunidade e nos espaços extramuros da universidade, provocam, nos estudantes, mudanças significativas na reorganização de suas mentes/ ideias, nos domínios de seus conhecimentos, no desenvolvimento de atitudes positivas em direção ao seu aprendizado e no controle de suas ações22,23. Assim, por meio do portfólio os estudantes pensam analisando, sintetizando e avaliando as informações, geram ideias e tomam decisões com autonomia para, no final, aplicarem o conhecimento COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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que estão adquirindo. De forma ativa e interativa, os educandos passam a trabalhar numa perspectiva consciente e dinâmica, participando de todas as etapas do seu processo de ensino, aprendizagem e avaliação. Desse modo, tornam-se protagonistas de seu aprendizado, sendo os principais responsáveis por seus resultados acadêmicos. Eis aí a essência da aprendizagem significativa2,,4,24. Tais questões são consoantes com os princípios filosóficos, pedagógicos e ideológicos que norteiam as recomendações das DCN dos cursos da área de saúde. Os achados deste estudo vão ao encontro dos resultados de trabalhos desenvolvidos por Driessen et al.25, em que se demonstrou que os portfólios deram suporte à aprendizagem e avaliação de competências dos estudantes de Medicina, como a capacidade reflexiva; e ao desenvolvimento pessoal e profissional, por meio do desenvolvimento de habilidades de comunicação e empatia em relação aos doentes terminais e suas famílias. A construção do portfólio permitiu, ainda, o desenvolvimento do trabalho em equipe em todas as suas etapas, verificado nas Figuras 3 e 5, no espaço “Aprendendo com o grupo”. Este aspecto, por propiciar uma composição de diferentes pontos de vista, produziu hibridização destes, confluindo para a construção de um novo conhecimento a partir de múltiplos olhares e ressignificação de informações prévias e do senso comum, levando os estudantes ao pensamento crítico e reflexivo. Estudo realizado por Cota et al.2 apontou que os egressos dos cursos de saúde apresentam: pouco conhecimento e nenhum compromisso com o SUS, pouco envolvimento com aspectos da gestão de saúde, pouca compreensão do trabalho em equipe multiprofissional, fraca formação humanística, despreparo para cuidar das patologias prevalentes no país, baixo compromisso com aspectos políticos e sociais de saúd, e fraco conhecimento das condições de vida das comunidades. Desse modo, criar espaços que estimulem a reflexão e criticidade dos estudantes se tornou estratégia apontada como alternativa para o envolvimento e comprometimento dos acadêmicos com os princípios e diretrizes do SUS, destacando-se o trabalho em equipe. Klenowski26 enfatiza que a reflexão reduz a tendência do estudante em agir com impulsividade e melhora a sua capacidade de solucionar problemas. O pensamento reflexivo ajuda o aluno a analisar e debater os problemas de saúde, auxiliando-o no exercício da competência de comunicação. Tais questões são trabalhadas no processo de construção dos portfólios. Os resultados deste estudo apontaram, ainda, para o desenvolvimento da capacidade de analisar, sintetizar, memorizar, avaliar e raciocinar, habilidades imprescindíveis na tomada de decisões mais reflexivas. Lizarraga4, ao percorrer o entendimento desse processo, aponta que os artifícios mentais envolvidos na solução de problemas abordam uma seqüência de ações, nas quais há o manejo da informação (análise/pensamento compreensivo), a geração de alternativas/estratégias de solução do problema, e a seleção da melhor (pensamento crítico/criativo), com posterior avaliação dos resultados. Na construção do portfólio, a metacognição se desenvolve à medida que os alunos refletem sobre si mesmos (autorreflexão), sobre seus colegas (etapa ‑ Minha trajetória) e sobre os conteúdos da disciplina de políticas de saúde (Figura 4). A metacognição diz respeito aos processos mentais que planificam, dirigem a compreensão e avaliam/autorregulam aquilo que foi aprendido (modo de adquirir, organizar e utilizar o conhecimento), ou seja, é a boa utilização das estratégias de aprendizagem que gera o desenvolvimento das competências cognitivas. A metacognição é, nesse sentido, elemento-chave no processo de aprender a aprender27. De acordo com Ribeiro27 (p. 110): “As formas de entendimento da metacognição são: conhecimento sobre o conhecimento (tomada de consciência dos processos e das competências necessárias para a realização da tarefa) e controle ou autorregulação (capacidade para avaliar a execução da tarefa e fazer correções quando necessário)”. Educar sem passar pelo processo de transferência não prepara o estudante para o depois, somente para o agora; daí a importância da atitude reguladora no processo de ensino, aprendizagem e avaliação. Nesse sentido, ensinar a transferir é educar para a vida4. Foi perceptível, pelos relatos dos estudantes, que, ao descobrirem aplicações práticas daquilo que foi aprendido – sentimento de utilidade sobre a importância do estudo das políticas de saúde –, eles estabeleceram uma aprendizagem significativa, exercitando o “aprender a aprender”, tornando-se confiantes de suas próprias capacidades, com motivação, flexibilidade e perseverança (Figura 6). Só 584

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se alcança a superação de dificuldades no processo de aprendizagem uma vez que se conhece aquilo que não foi compreendido (saber/tomar consciência do que não se sabe, identificar suas fragilidades e fortalezas), possibilitando, aos alunos, controlar/gerir seus próprios processos de conhecimento4,27. No processo de construção do portfólio, a avaliação contínua ao longo do semestre letivo, realizada mensalmente (quatro avaliações), oportunizou, aos estudantes, a possibilidade de reverem suas posturas e pensamentos, estimulando o desenvolvimento da metacognição – exercitando o raciocínio, a criatividade, a tomada de decisões e a avaliação dos resultados. Tais resultados coincidem com os achados de estudo realizado por Vieira28, que destacou como vantagens em realizar avaliações por meio do portfólio: a oportunidade de reflexão sobre o progresso dos estudantes; a introdução de mudanças durante o desenvolvimento do trabalho; a possibilidade de aproximar professores dos alunos, criando momentos de aprendizagem que permitiram a estes sentirem a aprendizagem institucional como algo próprio (coerência entre atividades de ensino e as finalidades de aprendizagens), e a reflexão do desenvolvimento do aluno e suas mudanças ao longo do curso. Klenowski26 afirmou, ainda, que a avaliação proporcionada pelo portfólio auxilia no desenvolvimento de um senso de continuidade e na habilidade de autoanálise, além de tornar os alunos parceiros no processo de avaliação, evitando que assumam papel de receptores passivos. É importante destacar que a avaliação não deve comprometer a qualidade da reflexão e/ou autoanálise, conforme salientado em estudos realizados por Tartwijk e Driessen29. A avaliação deve permitir que os estudantes exponham seus esforços menos bem-sucedidos e ataquem seus pontos fracos. Para tal, é necessário que o portfólio eficaz tenha estrutura clara, mesmo que flexível, dando oportunidade, ao aluno, de descrever o seu desenvolvimento próprio e único, o que foi observado no estudo aqui apresentado30.

Conclusões O processo de construção dos portfólios estimulou a capacidade de percepção, análise, síntese, proposição de estratégias e trabalho em equipe, além do autoconhecimento e do desenvolvimento de atributos pessoais, subjetivos, éticos e morais. O educando, ao problematizar o SUS, participou ativamente de sua construção e (re)construção, atuando com autonomia enquanto sujeito, futuro profissional e cidadão. Aos estudantes, foi permitido que vivessem as experiências e as analisassem, colocando-os em situações que os provocavam a pensar, analisar, tomar decisões e resolver problemas. Nesse âmbito, a construção dos portfólios possibilitou o desenvolvimento dos processos cognitivos e metacognitivos (pensamentos compreensivo, crítico e criativo) pelos estudantes, a partir de um processo de formação reflexivo, crítico, transformador e inovador. Não obstante, há que se destacarem alguns aspectos dificultadores e que exigem planejamento e dedicação para enfrentá-los; do contrário, os objetivos podem não ser alcançados, marginalizando e estigmatizando o portfólio como instrumento-método de ensino, aprendizagem e avaliação. Entre os principais problemas vivenciados, destaca-se a necessidade de capacitação do docente para o trabalho com portfólio; alguns estudos salientam ser primordial que os educadores sejam formados, construindo seus próprios portfólios – aprender fazendo – antes de programarem essa estratégia com seus alunos. Outro ponto importante diz respeito ao fato de que a construção de portfólios requer o dispêndio de muito tempo, tanto dos estudantes quanto dos docentes, para correção e orientação. Como estratégia de contornar esse problema, sugere-se que o docente deixe bem claro os objetivos e metas da construção do portfólio, que devem ser disponibilizados aos estudantes desde o início do semestre letivo. Além disso, a organização e divisão do portfólio por apartados e o tamanho aproximado de cada item podem ser estratégias interessantes. De toda forma, a experiência com o trabalho com portfólios demonstra que os ganhos e vantagens superam, em muito, os obstáculos e desafios.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Reconhecimento Este estudo se desenvolveu no âmbito do Projeto de Inovação em Docência Universitária – PRODUS, e foi realizado com o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), entidade do governo brasileiro voltada para a formação de recursos humanos (Processo 23038.009788/2010-78, AUX-PE-Pró-Ensino Saúde 2034/2010). Referências 1. Cotta RMM, Mendonça ET, Costa GD. Portfólios reflexivos: construindo competências para o trabalho no Sistema Único de Saúde. Rev Panam Salud Publica. 2011; 30(5):415-21. 2. Cotta RMM, Silva LS, Lopes LL, Gomes KO, Cotta FM, Lugarinho R, et al. Construção de portfólios coletivos em currículos tradicionais: uma proposta inovadora de ensino-aprendizagem. Cienc Saude Colet. 2012; 17(3):787-96. 3. Blanco A, coordenador. Desarrollo y evaluación de competencias en educación superior. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2009. 4. Lizarraga MLSA. Competencias cognitivas en educación superior. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2010. 5. Aretio LG, Cordella MR, Blanco MG. Claves para la educación: actores, agentes y escenarios en la sociedad actual. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2009. 6. Noguero FL. Metodologías participativas en la enseñanza universitária. 2a ed. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2007. 7. Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portfólio reflexivo: uma proposta de ensino e aprendizagem orientada por competências. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1847-56. 8. Zabalza MA. Competencias docentes del profesorado universitário: calidad y desarrollo professional. 2a ed. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2009. 9. Delors J. La educacion encierra um tesoro. Madrid: Santillana; 1996. 10. Pimentel A. O método da análise documental: seu uso numa pesquisa historiográfica. Cad Pesqui. 2001; (114):179-95. 11. Cellard A. A análise documental. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperriére A, Mayer R, Pires AP. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes; 2008. p. 295-316. 12. Barbour R. Grupos focais. Porto Alegre: Artmed; 2009. 13. Ministério da Saúde. Conselho Nacional de Saúde. Resolução 196/1996. Estabelece diretrizes e normas regulamentadoras sobre pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF): CNS; 1996. 14. Ministério da Educação. Diretrizes Curriculares Nacionais. Brasília (DF): Ministério da Educação; 2001. 15. Bologna Working Group on Qualifications Framework. A framework for qualifications of the European higher education area. Copenhagen: Ministry of Science, Technology and Innovation; 2005.

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16. Pastor LVM, coordenador. Evaluación formativa y compartida en la educación superior: porpuestas, técnicas, instrumentos y experencias. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2009. 17. Medina RA. Formación y desarrollo de las competencias básicas. Madrid: Universitas; 2009. 18. Conselho Nacional de Secretários de Saúde. Legislação do SUS/Conselho Nacional de Secretários de Saúde [Internet]. Brasília: CONASS; 2003 [acesso 2012 Mar 10]. Disponível em: http://www.conass.org.br/arquivos/file/legislacaodosus.pdf 19. Frenk J. Health professionals for a new century: transforming education to strengthen health systems in an interdependent world. Lancet. 2010; 376(9756):1923-58. 20. Bordenave JD, Pereira AM. Estratégias de ensino-aprendizagem. 26a ed. Petrópolis: Vozes; 2005. 21. Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 12a ed. São Paulo: Hucitec; 2010. 22. Perrenoud P. A prática no ofício de professor: profissionalização razão pedagógica. Porto Alegre: ArtMed; 2002. 23. Lima VV. Competência: distintas abordagens e implicações na formação de profissionais de saúde. Interface (Botucatu). 2005; 9(17):369-78. 24. Blanchard M, Muzás MD. Propuestas metodológicas para profesores reflexivos: como trabajar com la diversidad del aula. 2a ed. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2007. 25. Driessen E, Tartwijk JV, Vleuten CVD, Wass V. Portfolios in medical education: why do they meet with mixed success? A systematic review. Med Educ. 2007; 41(12):1224-33. 26. Klenowski V. Desarrollo de portafolios para le aprendizaje y la evaluación. 3a ed. Madrid: Narcea SA Ediciones; 2007. 27. Ribeiro C. Metacognição: um apoio ao processo de aprendizagem. Psic Ref Crit. 2003; 6(1):109-16. 28. Vieira VMO. Portfolio: uma proposta de avaliação como reconstrução do processo de aprendizagem. Psicol Esc Educ. 2002; 6(2):149-53. 39. Tartwijk JV, Driessen EW. Portfolios for assessment and learning: AMEE Guide n. 45. Med Teacher. 2009; 31(9):790-801. 30. Pearson DJ, Heywood P. Portfolio use in general practice vocational training: a survey of GP registrars. Med Educ. 2004; 38(1)87-95.

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Cotta RMM, Costa GD, Mendonça ET. Portaforlios crítico-reflexivos: una propuesta pedagógica centrada en las competencias cognitivas y meta-cognitivas. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):573-88. Objetivo: evaluar el portafolio como método de enseñanza, aprendizaje y evaluación en el ámbito de la formación centrada en competencias cognitivas y meta-cognitivas, anhelando un aprendizaje en el que los estudiantes actúen de manera autónoma, responsable, crítica y creativa. Métodos: investigación cualitativa; la colecta de datos se realizó por medio de las técnicas de análisis documental (26 portafolios) y grupo focal. Las competencias desarrolladas por los estudiantes durante la elaboración de los portafolios se clasificaron con base en los procesos cognitivos y meta-cognitivos. Resultados: la construcción de los portafolios posibilitó el desarrollo del pensamiento comprensivo, crítico y creativo en los estudiantes, viabilizando un proceso educativo dinámico, crítico y reflexivo. Conclusiones: el portafolio se configuró como un método de enseñanza, aprendizaje y evaluación, innovador y potencializador de competencias cognitivas y meta-cognitivas.

Palabras clave: Materiales de enseñanza. Enseñanza. Educación basada en competencias. Portafolio. Salud pública.

Recebido em 28/10/14. Aprovado em 05/01/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0753

artigos

A formação do profissional nutricionista na percepção do docente Maria Mercês de Araújo Luz(a) Amanda Batista da Rocha Romero(b) Ana Karolinne da Silva Brito(c) Lívia Patrícia Rodrigues Batista(d) Lídya Tolstenko Nogueira(e) Marize Melo dos Santos(f) Maria do Carmo de Carvalho e Martins(g)

Luz MMA, Romero ABR, Brito AKS, Batista LPR, Nogueira LT, Santos MM, et al. Professional nutritionists education from the perception of the teacher. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):589-601.

This study evaluated the nutrition professionals education from the perception of nutrition teachers at a higher education institution in northeastern Brazil. This was a qualitative study among twenty nutrition teachers who were giving classes within disciplines in the professional cycle between 1980 and 2008. The main limitations faced were deficiencies in physical infrastructure, material and equipment, especially for conducting practical classes. Limitations relating to teaching activities and the knowledge acquired by students were mentioned. In spite of the difficulties, structural improvements were reported. Additional adjustments to infrastructure are required, along with measures aimed at better planning of teaching work and greater awareness among students regarding their role in the teaching-learning process, thereby enabling the education of professionals who are better qualified for the labor market.

Este estudo avaliou a formação do profissional de nutrição na percepção dos docentes nutricionistas de uma instituição de Ensino Superior do nordeste brasileiro. Trata-se de pesquisa qualitativa realizada com vinte professores nutricionistas que ministraram disciplinas do ciclo profissional no período de 1980 a 2008. A principal limitação foi a deficiência de infraestrutura física, de material e de equipamentos, sobretudo para a realização de aulas práticas. Limitações relacionadas à atividade docente e ao conhecimento adquirido pelos estudantes foram mencionadas. Apesar das dificuldades apontadas, melhorias estruturais foram referidas. Adequações adicionais são necessárias na infraestrutura, bem como medidas voltadas para melhor planejamento do trabalho docente e para conscientização do corpo discente do seu papel no processo ensino-aprendizagem, possibilitando a formação de profissionais mais capacitados para o mercado de trabalho.

Keywords: Higher education. Teachers. Nutritionist.

Palavras-chave: Educação superior. Docentes. Nutricionista.

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Departamento de Nutrição, Centro de Ciências da Saúde, Universidade Federal do Piauí (UFPI). Campus Universitário Ministro Petrônio Portela Nunes, bloco 13, bairro Ininga. Teresina, PI, Brasil. 64049-550. mmercesl@ hotmail.com; marizesantos@ ufpi.edu.br (b,d) Nutricionistas. Teresina, Piauí, Brasil. amanda. romero@hotmail. com; livia18patricia@ yahoo.com.br (c) Hospital Universitário, UFPI. Teresina, PI, Brasil. anakarolinnesb@ hotmail.com (e) Departamento de Enfermagem, Centro de Ciências da Saúde, UFPI. Teresina, PI, Brasil. lidyatn@gmail.com (g) Departamento de Biofísica e Fisiologia, Centro de Ciências da Saúde, UFPI. Teresina, PI, Brasil. carminhamartins@ ufpi.edu.br (a,f)

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Introdução O processo de formação de nutricionistas no Brasil, idealizado pela primeira geração de médicos nutrólogos, teve seu início com a criação do primeiro curso, em 1939, no Instituto de Higiene de São Paulo1. Em 2008, existiam 369 cursos de Nutrição, sendo a maior concentração destes na região sudeste, com 212 cursos2. Segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para o curso de graduação em Nutrição, o profissional nutricionista, com formação generalista, humanista e crítica, deve estar capacitado a atuar visando a segurança alimentar e a atenção dietética, em todas as áreas do conhecimento em que alimentação e nutrição sejam importantes para a promoção, manutenção e recuperação da saúde e para a prevenção de doenças de indivíduos ou grupos populacionais, contribuindo para a melhoria da qualidade de vida. Essa atuação deve ser pautada em princípios éticos, com reflexão sobre a realidade econômica, política, social e cultural3. O corpo docente é um dos elementos centrais na formação do nutricionista, constituindo o alicerce fundamental sobre o qual devem ser instituídas as bases das mudanças necessárias a sua formação. Por isso, a discussão do ensino de Nutrição e a formação do nutricionista devem incluir questões como a formação docente e as práticas educativas empreendidas4. As universidades devem estar preparadas para manter seus cursos e garantir condições adequadas para o ensino na graduação. Contudo, o cenário da formação profissional em universidades públicas brasileiras, apesar dos esforços dos trabalhadores da educação, aponta para um estado crônico de dificuldades em gerenciar os processos de trabalho, seja do ponto de vista dos ambientes, da remuneração ou do reconhecimento social desse trabalho5. Nesse sentido, avaliações positivas e negativas sobre as condições do ambiente laboral podem ser feitas pelo trabalhador a partir do seu envolvimento com o trabalho, sua satisfação e comprometimento6. Poucos estudos têm investigado a prática pedagógica, seja no Ensino Básico, na graduação ou pós-graduação. Entre as limitações na prática docente apontadas em alguns trabalhos, encontram-se: salário, dicotomia teoria/prática e desvalorização da profissão7, falta de estrutura física de laboratórios para as práticas8, falta de equipamentos9, excesso de carga horária e sobrecarga de atividades1,9. Desse modo, o objetivo deste estudo foi avaliar a formação do profissional de nutrição na percepção dos docentes nutricionistas de uma instituição de Ensino Superior do nordeste brasileiro.

Metodologia O estudo, de abordagem qualitativa, contou com a participação de vinte professores nutricionistas do Departamento de Nutrição da Universidade Federal do Piauí (UFPI), do Campus Universitário da cidade de Teresina, sendo 17 docentes em exercício profissional e três aposentados que, de acordo com a matriz curricular, ministraram disciplinas do ciclo profissional, ou seja, disciplinas específicas do curso ministradas exclusivamente por nutricionistas, no período de 1980 a 2008. Esse período compreende o início das disciplinas do ciclo profissional da primeira turma do curso de Nutrição da instituição até a criação do programa de pós-graduação em Alimentos e Nutrição. A estrutura do currículo do curso da UFPI acompanhou a evolução histórica da formação do profissional de nutrição no âmbito nacional, e passou por três currículos. Desde 2006, com a aprovação do Projeto Pedagógico do Curso (PPC), em consonância com as DCN do curso de nutrição, está em vigor o Currículo quatro, que consta de 3.945 horas10. Os dados foram obtidos entre março e agosto de 2011, por meio de entrevista semiestruturada em que foram solicitadas informações sobre: dados pessoais do entrevistado, aspectos relativos à formação profissional e dificuldades na prática docente. As entrevistas foram gravadas com a permissão dos participantes e, posteriormente, transcritas na íntegra. Após a coleta, os dados foram organizados e as opiniões dos participantes analisadas tendo como referencial, para o tratamento dos dados, a análise de conteúdo11. Foi realizada pré-análise do conteúdo considerando os critérios: exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência. 590

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artigos

O tratamento dos dados, a inferência e interpretação foram realizados após categorização baseada na classificação dos elementos segundo semelhanças e diferenças, com posterior reagrupamento em função de características comuns. Para efeito de apresentação dos resultados e para garantir o anonimato dos sujeitos da pesquisa, foi utilizada, como código, a letra S seguida do número de ordem da entrevista, para cada participante. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da UFPI e está em concordância com a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde/Ministério da Saúde12. Os participantes foram informados sobre os objetivos e metodologia da pesquisa e assinaram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

Resultados e discussão Na Tabela 1, é apresentada a distribuição dos vinte docentes do curso de nutrição participantes do estudo, segundo faixa etária e aspectos relacionados à formação acadêmica e exercício de magistério Superior.

Tabela 1. Distribuição dos docentes do curso de nutrição da Universidade Federal do Piauí, Campus de Teresina, segundo faixa etária e aspectos relacionados à formação acadêmica e exercício profissional no magistério Superior N

Variável Faixa etária (anos) 30 – 39 40 – 49 50 – 59 60 ou mais Tempo (anos) de conclusão do curso de graduação em Nutrição < 10 10 a 19 20 a 29 30 a 39 ≥ 40 Instituição de Ensino Superior em que concluiu o curso de graduação Universidade Estadual do Ceará Universidade Federal da Paraíba Universidade Federal de Pernambuco Universidade Federal do Piauí Universidade Estadual do Rio de Janeiro Titulação ao ingressar no magistério Superior Graduação Especialização Mestrado Doutorado Tempo de docência na UFPI (anos) < 10 10 – 19 20 – 29 ≥ 30 Titulação em 2008 Especialização Mestrado Doutorado Regime de Trabalho: TP – 20 horas TI – 40 horas Dedicação Exclusiva

%

02 07 10 01

10,0 35,0 50,0 5,0

01 01 13 04 01

5,0 5,0 65,0 20,0 5,0

01 01 06 11 01

5,0 5,0 30,0 55,0 5,0

11 05 03 01

55,0 25,0 15,0 5,0

03 06 10 01

15,0 30,0 50,0 5,0

06 09 05

30,0 45,0 25,0

01 01 18

5,0 5,0 90,0

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Todos os docentes eram do sexo feminino, e metade encontrava-se na faixa etária de cinquenta a 59 anos. A maioria (65%) dos docentes tinha concluído o curso vinte a 29 anos antes da realização do estudo, mais de metade (55%) concluiu o curso de graduação na UFPI e ingressou no magistério Superior sem ter curso de pós-graduação. Metade dos participantes tinha tempo de magistério Superior entre vinte e 29 anos, sendo o menor tempo de atividade docente igual a seis anos, e o maior, igual a 31 anos. A maioria (90%) dos participantes referiu regime de trabalho em dedicação exclusiva. Quanto à titulação, 70% dos docentes informaram possuir mestrado (25%) ou doutorado (45%). Para melhor entendimento das dificuldades encontradas pelos docentes, foram identificadas três categorias de dificuldades, as quais emergiram da análise das informações fornecidas pelos entrevistados, sendo elas: dificuldades estruturais, dificuldades relacionadas às atividades docentes, e dificuldades relacionadas ao embasamento teórico e maturidade dos discentes.

Dificuldades estruturais Dificuldades estruturais foram referidas por 60% dos entrevistados, e as mais citadas incluíram a carência de material e equipamentos, e estrutura insatisfatória de laboratórios para a realização de aulas práticas. Limitações estruturais podem ser evidenciadas nos trechos de entrevistas transcritos a seguir. “[...] as dificuldades quando ingressei foram aquelas dificuldades de ordem estrutural física e funcional.” S1 “[...] Então a dificuldade é essa: o espaço físico é insuficiente, a questão do material pra gente realizar...” S5 “[...] o laboratório de diagnóstico nutricional, [...] não acompanha a demanda do departamento. Nós temos ‘n’ projetos de pesquisa, atividades de sala de aula e, sobretudo, atividades de pesquisa e extensão que precisam desses equipamentos, [...] não estão disponíveis em quantidade suficiente para atender essa demanda.” S9

Nos últimos anos, ocorreram iniciativas do governo brasileiro para melhorar a educação pública federal, sendo uma delas o REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais), com a proposta de possibilitar a oferta de recursos para ampliação de estruturas físicas e tecnológicas e contratação de docentes e técnicos13. Segundo Lima14, essa iniciativa gerou aumento no número de matrículas nos cursos presenciais, com superlotação de salas de aula e alocação de recursos insuficientes para continuar a expansão. Na UFPI, a adesão ao REUNI viabilizou: a criação de novos cursos, contratação de professores, reformas e construções, melhorando a estrutura física da IES, e aquisição de livros e de equipamentos. As disciplinas do Ciclo Básico do curso de Nutrição da UFPI são ministradas, desde sua criação, utilizando instalações físicas e equipamentos existentes para a área básica dos cursos da área da saúde. O espaço físico do Departamento de Nutrição passou por três grandes reformas físicas, inclusive com aquisição de equipamentos. Em 2008, o curso passou a contar com: cinco salas de aula, oito laboratórios, um auditório, dez salas para professores, entre outros espaços10. Limitações de espaço físico também foram dificuldades encontradas em estudos realizados em outras instituições brasileiras. Em pesquisa conduzida com docentes nutricionistas do Paraná, foi referida falta de disponibilidade de locais para práticas, tais como hospitais e clínicas escolas8. A falta de estrutura no trabalho foi um dos principais problemas citados por professores de educação física da rede estadual de Caratinga, MG7. Em estudo com professores da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, foi encontrada insatisfação relacionada com a falta de equipamentos e com baixo estado de conservação dos prédios, sendo uma prática comum a aquisição de materiais por meio de recursos de projetos financiados ou, mesmo, utilizando recursos próprios9.

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Entre os fatores citados como causas das dificuldades estruturais, estavam os elevados custos dos equipamentos, burocracia na aquisição de material e equipamentos, e carência de técnicos, conforme pode ser evidenciado abaixo: “[...] a gente tem uma certa dificuldade ainda em relação a manter as aulas práticas porque você tem um custo de ter um técnico que possa ajudar [...] a gente sabe que há toda uma burocracia até chegar algum conserto, alguma manutenção [...]”. S3 “[...] essa limitação de laboratório; as práticas... elas nos deixavam uma lacuna muito grande. Então só aqueles que realmente queriam, que iam atrás, que tinham que ir buscar com suas próprias pernas”. S2 “[...] às vezes a gente até pensava em colocar no plano de ensino determinadas aulas práticas. Entretanto, não colocávamos por dificuldade de executá-las devido à falta de equipamentos”. S6

Material, equipamentos e estrutura física são necessários para a formação, não apenas do profissional nutricionista como dos outros profissionais da área de saúde. É importante destacar que os materiais são usados com o objetivo de “chamar a atenção” dos alunos, servindo para “quebrar” a rotina de sala da aula15. Durante a execução de atividades experimentais, o aluno constrói seu conhecimento por meio da interação com os objetos estudados, possibilitando melhor apreensão dos conteúdos trabalhados. A falta de equipamentos, de materiais e de estrutura física adequados prejudica o aprendizado e dificulta o desenvolvimento do trabalho docente. Na tentativa de sanar o problema, algumas vezes, são utilizados materiais reciclados ou adaptados que não fornecem precisão científica e podem implicar a não-apropriação devida de conceitos científicos e pedagógicos. Em trabalho realizado na Universidade Federal do Paraná, com professores com formação em pediatria e nutrição, afirmações feitas pelos nutricionistas de dificuldade em aliar teoria e prática reforçam a ideia de que a dicotomia entre esses dois processos constitui elemento complicador do bom desempenho profissional16. A separação entre o ensino e a pesquisa nas universidades brasileiras, bem como a valorização da pesquisa em detrimento do ensino (de graduação) no meio acadêmico, foram relatados por Diniz-Pereira17 como um fator causador de enormes prejuízos à formação profissional. O mundo do trabalho mudou, exigindo do profissional melhor qualificação para que seja capaz de criar e produzir mais em menos tempo, e possibilitar melhor aplicação de recursos18. Para estar apto a atender a demanda desse mercado competitivo, ao longo de sua formação profissional, o estudante precisa desenvolver habilidades que o tornem capaz de realizar suas atividades dentro dos mais altos padrões de qualidade. Assim, maiores investimentos em materiais, equipamentos e estrutura física são necessários para assegurar boa formação profissional e atender ao mercado de trabalho. As DCN do curso de nutrição recomendam a realização das atividades teóricas e práticas de forma integrada, presentes desde o início do curso, e permeando toda a formação do nutricionista3. Isso porque o estudante que é inserido no ambiente de trabalho aprende com situações concretas por meio da experiência prática, o que contribui para a atuação com maior resolubilidade e efetividade19. A falta de estrutura para realização dessas atividades compromete a formação profissional. Em pesquisa com docentes de Cursos de Licenciatura da Universidade Federal do Triângulo Mineiro e da Universidade Federal Uberlândia, os professores apontaram a expansão do número de vagas das universidades públicas combinada com o reduzido recurso financeiro investido e falta de garantia de continuidade de investimentos como um fator complicador, trazendo como consequências: a falta de infraestrutura e o improviso na formação docente e no desenvolvimento de suas atividades20. Apesar das dificuldades apontadas, neste estudo, mais de um terço dos docentes entrevistados (35%) referiu que modificações importantes foram percebidas entre 1980 e 2008, evidenciando melhorias na infraestrutura física, nos equipamentos e materiais ao longo do período de vínculo com a Instituição. Esses avanços são evidenciados nos posicionamentos apresentados:

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“Nós não tínhamos laboratórios, hoje já tem laboratórios na área de Nutrição Experimental e Bromatologia, que estão muito mais equipados, apesar de que ainda precisa desenvolver mais [...]”. S1 “[...] a questão de livros, do material didático, hoje está muito mais fácil. [...] você percebe mudanças muito positivas, sobretudo no nosso departamento. [...] Claro que precisa de muitas melhorias [...] a gente já conseguiu muito em termos de adequação de espaço físico, de equipamentos, de laboratórios [...]”. S7 “[...] eu dei aula lá na Física levando retroprojetor, hoje se dá aula com Datashow, [...] com ar condicionado [...]”. S14 “[...] ao longo da trajetória do curso, muitos aspectos foram melhorados como a ampliação da área física para administração do curso, salas de aula e laboratórios [...]”. S18 Na opinião de alguns professores, uma perspectiva que pode contribuir para melhorar a infraestrutura está relacionada com o estímulo para o desenvolvimento de projetos de pesquisas e incentivo à qualificação do corpo docente, conforme destacado nas transcrições a seguir. “[...] com o que está sendo gerado em termos de publicação, isso vai nos permitir um currículo mais competitivo, para que a gente possa concorrer junto às agências de fomento, a exemplo do CNPq, para que se consigam mais recursos e se amplie mais ainda a infraestrutura para pesquisa e pós-graduação”. S2 “[...] elaboramos alguns projetos de pesquisa, entretanto, os mesmos não foram financiados pelo MEC com a justificativa da falta de professores com titulação de Mestres ou Doutores [...]. Diante desse quadro, passou-se a incentivar os professores a buscarem a Pós-Graduação e com a ampliação do quadro docente, tão logo foi possível, o Departamento liberou professor para realizar Mestrado, passando então a ser uma política adotada por esse setor”. S6

O financiamento da educação brasileira é previsto em lei, sendo o Governo Federal o principal financiador das instituições federais de Ensino Superior21. E apenas pequena parcela dos custos é mantida por meio da arrecadação própria de cada instituição, sendo fruto de seus próprios esforços em adquirir recursos, tais como projetos financiados por agências de fomento à pesquisa22. Fica evidente que a responsabilidade de manter todo o aparato necessário ao ensino é da universidade, e não do docente. As universidades devem estar preparadas para manter seus cursos e garantir, aos docentes e discentes, condições adequadas para o ensino. Segundo as DCN, deve existir articulação entre ensino, pesquisa e extensão/assistência3. Assim, os projetos financiados são importantes para auxiliar os pesquisadores com equipamentos, reagentes e materiais para garantir o desenvolvimento da pesquisa, também necessária para uma boa formação profissional. E a qualificação do professor é necessária tanto para o desenvolvimento das atividades de ensino, pesquisa e extensão quanto para aumentar as chances de conseguir investimentos das agências de fomento para financiamento de projetos de pesquisa.

Dificuldades relacionadas a atividades docentes Número reduzido de docentes foi uma dificuldade referida por 35% dos entrevistados. Na opinião desses docentes, essa limitação causa sobrecarga de atividades, redução do tempo disponível para pesquisa e extensão, e resulta em comprometimento do desempenho. Ademais, segundo eles, a prática docente é dificultada pela carga horária excessiva em sala de aula instituída por reformas curriculares, e também pela burocracia no trabalho. Esses aspectos podem ser evidenciados nos relatos transcritos.

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“[...] nós não tínhamos docentes suficientes para ministrar todas as disciplinas [...]”. S14 “[...] a gente tem colocado certa dificuldade pelo número de professores, [...] com a reforma Curricular aumentou muito a carga horária do professor”. S8 “Agora, tem muita dificuldade: burocracia, o professor ficar muito envolvido com questões administrativas, quando deveria ficar, ter mais tempo, do seu tempo na instituição, voltado mesmo para estudar, para o ensino e a pesquisa, e fazer extensão [...] tudo é o professor que tem que fazer. Então, como ele fica sobrecarregado de tarefas, que o afastam do tempo que ele teria que se dedicar a docência”. S17

Excesso de carga horária e sobrecarga de atividades foram referidos como aspectos negativos na prática docente em outros trabalhos. Em estudo realizado na Universidade Federal do Mato Grosso do Sul, a maioria dos professores referiu excesso de carga horária, e insuficiência de apoio administrativo no gerenciamento de atividades relacionadas aos recursos financeiros de projetos de pesquisa, como: compra de material, manutenção de equipamentos e atividade de laboratório9. Esses fatores podem contribuir para o desgaste do professor, além de ocuparem um tempo que poderia ser dedicado às atividades acadêmicas. O professor de Ensino Superior tem como atribuições desenvolver atividades de ensino, pesquisa e extensão, com prioridade para o ensino. A falta de docentes e de pessoal de apoio acarreta a sobrecarga de atividades, comprometendo a formação dos discentes, sobretudo na pesquisa e extensão. O avanço tecnológico oriundo do desenvolvimento de novas tecnologias, especialmente de informação e comunicação e de novos métodos de gestão do trabalho e organização da produção, exige profissionais cada vez mais qualificados23. Para Santos24, estar qualificado é deter novos conhecimentos e habilidades exigidos pelo mercado de trabalho. E a falta de tempo para capacitar o professor também compromete a formação do discente pela falta de capacitação docente. Assim, o trabalho docente deve ser planejado de modo a minimizar a carga de atribuições para os professores e evitar o comprometimento da qualidade do seu trabalho. O curso de nutrição da UFPI nos anos de 1978 e 1979 oferecia trinta vagas anuais com uma entrada; em 2007, passou a oferecer oitenta vagas. E, desde 1980, as vagas ofertadas passaram a ser distribuídas com metade em cada semestre letivo. Quanto ao corpo docente, em 1982, na conclusão da primeira turma, havia onze docentes nutricionistas; e, em 2008, o curso contava com vinte professores, sendo mais de metade (55%) de egressos da UFPI. No que diz respeito à titulação: em 1982, 64% possuíam apenas o curso de graduação, 18% eram especialistas e 18% eram mestres; em 2008, 45% eram mestres, 25% doutores e 30% especialistas10. Analisando a evolução do referido curso, observou-se aumento de 167% no número de vagas ofertadas para o curso e de 81% no número de professores envolvidos nas disciplinas do ciclo profissional. Quanto à capacitação docente, houve marcante aumento na qualificação, variando de 18% dos professores com pós-graduação stricto sensu no período de formação da primeira turma para 70% em 2008. O quadro de servidores técnicos e administrativos do Departamento de Nutrição em 2008 contava somente com dois funcionários: um técnico de laboratório, e um tecnólogo para dar apoio aos laboratórios de Bromatologia, Bioquímica de Alimentos e de Microbiologia e Controle de Qualidade de Alimentos. O restante dos servidores eram terceirizados e bolsistas sem qualificação para o desenvolvimento de grande parte das atividades administrativas10. Em estudo realizado por Silvério et al.1, sobre o ensino em cursos da área de saúde e sua repercussão na qualidade de vida do docente, os professores apontaram grande comprometimento na qualidade de vida pelo excesso de horas de trabalho. E Santini e Molina Neto25 verificaram que professores de educação física de Porto Alegre sentiam-se sobrecarregados no trabalho, por fatores como: a multiplicidade de papéis, a falta de organização, o número de alunos para atender, o número de horas dedicadas à prática docente, a falta de tempo para se qualificar, e as precárias condições materiais oferecidas pelas escolas públicas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Tani26 enfatiza que, para que as atividades de ensino, pesquisa e extensão sejam realizadas com eficiência, é necessário um suporte de estruturas administrativas que priorizem a qualidade. Esse suporte constitui um importante fator de qualidade no ensino de Graduação – exigindo constante investimento nos setores administrativos, financeiros, tecnológicos e de recursos humanos, que, no entanto, é frequentemente subestimado no âmbito universitário. Borges20 destaca que, com a expansão de vagas nas universidades públicas, ocorreu o crescimento desordenado do número de matrículas nos últimos anos, acarretando sobrecarga de aulas, excesso de disciplinas e elevado número de alunos por turma. E, como a contratação de docentes não acompanhou o crescimento das vagas disponibilizadas nas universidades, o número de docentes fica insuficiente para a demanda, o que os deixa sobrecarregados, impossibilitando-os de conciliar ensino, pesquisa e extensão, e preparar suas aulas com qualidade. As DCN do curso de nutrição salientam que o trabalho do nutricionista deve estar fundamentado na capacidade de tomar decisões e, para tanto, o profissional deve possuir competências e habilidades para avaliar, sistematizar e decidir as condutas mais adequadas, baseadas em evidências científicas21. Assim, o projeto pedagógico do curso deve ser centrado no estudante como sujeito da aprendizagem, e apoiado no professor como facilitador e mediador do processo ensino-aprendizagem, buscando a formação integral e adequada do estudante3. Considerando que o discente é o centro do processo ensino-aprendizagem, o estudante deve ser inserido no ambiente de trabalho desde o início do curso, para que vivencie os cenários reais de prática e com os profissionais, reforçando a exigência de integração entre a teoria e a prática (saber e fazer), o que, também, torna necessário o aumento do número de docentes, visando contribuir para uma boa formação profissional.

Dificuldades relacionadas ao embasamento teórico e maturidade dos discentes Quanto às dificuldades relacionadas ao corpo discente, para 15% dos entrevistados, existe dificuldade, por parte dos estudantes, em aprofundar seus conhecimentos e em redigir textos, o que pode ser evidenciado nos trechos transcritos. “[...] o nosso corpo discente ainda tem dificuldade de acompanhar o aprofundamento do conhecimento que é levado para eles. [...] eles têm muito acesso à informação, até porque o conhecimento do mundo digital agora facilita isso, mas por ter acesso a variados conjuntos de conhecimento e de informação, ele têm uma dificuldade de se aprofundar. Não se aprofundando, ele não traz o retorno”. S10 “Agora o grande perigo nosso é o ‘ctrl C, ctrl V e ctrl B’. Essa questão de você mandar fazer trabalho; isso é seríssimo, porque hoje é difícil, o aluno não sabe mais redigir por ele mesmo”. S11

Outra dificuldade mencionada em relação ao corpo discente diz respeito à dedicação dos alunos nas disciplinas, sendo uma dificuldade na prática docente mostrar, aos alunos, que eles não devem dedicar-se apenas àquelas disciplinas que, em princípio, julguem mais interessantes. “[...] com certeza foi a única dificuldade que eu senti: de fazer entender que eles tinham que se preparar para qualquer desafio e não só para o que eles estavam escolhendo”. S12

De modo semelhante, em estudo desenvolvido com professores nutricionistas do Paraná, metade dos docentes salientaram a dificuldade de aprendizagem dos alunos que não estavam preparados para a leitura, reflexão e discussão dos temas trabalhados27. Esses aspectos reforçam a importância do discente no seu próprio desenvolvimento acadêmico, uma vez que o aluno faz parte do processo de ensino aprendizagem, juntamente com a instituição e o professor, e deve possuir requisitos importantes que influenciam diretamente nesse processo, tais como: capacidade, experiência anterior, disposição, boa vontade e interesse28. Segundo Tani26, para que o corpo discente assuma o papel de protagonista do processo ensino-aprendizagem, é necessária 596

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mudança de mentalidade, tornando-se mais crítico e com mais iniciativa. Além disso, o estudante precisa ter consciência de que está se tornando gradativamente um profissional, o que envolve um processo gradual de amadurecimento, que deve ser iniciado o mais precocemente possível. As mudanças no mundo do trabalho exigem um novo perfil do profissional, com capacidade de identificar e resolver problemas, fazer diagnósticos e estar preparado para atuar em contextos de constantes mudanças. Por sua vez, o docente deve ser um agente de transformação, cuja função é contribuir para a formação de profissionais capazes de aprender continuamente e de construir conhecimentos voltados para promover a qualidade de vida das pessoas. Sua preocupação deve ser propiciar, ao estudante, condições de refletir acerca de: sua postura, responsabilidades, mudanças e possibilidades, desenvolvendo sua capacidade de pensamento, reflexão, análise e síntese. Assim, o estudante pode tornar-se apto a acompanhar as mudanças no mercado de trabalho na mesma velocidade em que elas ocorrem18,29. Para isso, os docentes devem estar capacitados para despertar o interesse nos discentes, auxiliados por novas metodologias de ensino e pela sua inserção no processo de trabalho das equipes, para que eles possam construir novos conhecimentos e serem agentes transformadores da realidade. Cunha30 enfatiza que não há uma preocupação significativa com os conhecimentos pedagógicos, uma vez que se pressupõe que os estudantes do Ensino Superior possuem maturidade para responder às exigências da aprendizagem nesse nível. Entretanto, segundo Esperidião e Munari31, a idade dos alunos, ao ingressarem na Universidade, é cada vez menor e, muitos deles encontram-se em pleno desenvolvimento e apresentam uma série de expectativas e desejos que, algumas vezes, não condizem com a realidade esperada tanto em relação ao curso quanto em relação às condições de ensino. Essas experiências influenciam os pensamentos, sentimentos e ações dos alunos, e nem sempre são levadas em consideração pelas instituições de Ensino Superior. Em estudo sobre as limitações na formação do enfermeiro, Pinto e Pepe32 destacaram que apesar de alguns docentes citarem como características desejáveis dos alunos: a condição de um cidadão e profissional criativo, participativo, crítico, ético, questionador e interativo, a prática pedagógica desenvolvida na abordagem tradicional de ensino dificulta ou, mesmo, impede o desenvolvimento desses traços. Embora os professores aprofundem seus conhecimentos em sua área de atuação específica, muitas vezes, pode faltar-lhes conhecimento científico sobre o processo de ensino-aprendizagem29. Nesse contexto, Silva e Rodrigues33 observaram que graduandos de enfermagem de uma universidade pública, após avaliarem aulas de determinados professores, apesar de ressaltarem sua competência técnica, referiram falta de didática, e excesso de aulas expositivas com participação mínima dos alunos. Ademais, os autores enfatizaram que a utilização de estratégias de ensino não convencionais é importante no processo ensino-aprendizagem por ser um meio atrativo que propicia melhor assimilação do conteúdo. Não existe uma pedagogia perfeita para ser desenvolvida em todos os momentos e para todos os conteúdos. As estratégias pedagógicas são meios utilizados pelos docentes na articulação do processo de ensino para estimular o aprendizado. Em princípio, todas podem ser utilizadas, uma vez que a estratégia de ensino-aprendizagem depende dos objetivos estabelecidos pelo professor e das habilidades a serem desenvolvidas em cada série de conteúdo. A habilidade do professor em identificar essas diferenças e escolher o método mais adequado para cada situação é determinante para o sucesso no processo de educar34. Assim, torna-se evidente a necessidade da reflexão crítica na construção do conhecimento, de modo a definir o objetivo desejado com essa construção e como utilizá-lo para a transformação da realidade. A maioria dos docentes do Ensino Superior não tem formação para serem professores, mas, sim, para exercerem com qualidade a sua profissão como técnicos. E, mesmo para docentes com mestrado e doutorado, falta um conjunto de conhecimentos e práticas para trabalharem como facilitadores do processo ensino-aprendizagem. Neste sentido, Figueiredo35 refere que, no Brasil, a formação dos quadros docentes é a causa estrutural mais importante dentre aquelas que produzem as carências quantitativas e qualitativas do sistema educacional. Portanto, é necessária a institucionalização da educação permanente, de modo a contribuir para que estes melhorem suas práticas de docência. 597


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Apesar das limitações relacionadas aos discentes anteriormente exploradas, também foram observados relatos que definem os estudantes como “comprometidos”, “dedicados” e “com boa formação básica”. Esses aspectos são resumidos no trecho transcrito abaixo: “[...] nós estamos em uma instituição federal pública e que os alunos que ingressam são os que têm uma melhor formação colegial, porque são os que tiram as melhores notas, que conseguem mais pontos [...] são aqueles que têm uma base fundamental melhor [...] Além disso, eles são comprometidos, são empenhados, são interessados pelo curso”. S3

A análise dos resultados demonstra, ao longo da trajetória do curso, por um lado, aspectos positivos relacionados com melhorias estruturais e de material didático, compromisso e qualificação do corpo docente, e interesse e nível intelectual dos alunos; e, por outro, que a principal dificuldade enfrentada por grande parte dos docentes envolve infraestrutura física, de material e equipamentos ainda insuficientes, sobretudo para aulas práticas, seguida pela sobrecarga de atividades na prática docente e por preocupações com o conhecimento adquirido pelo corpo discente. Ressalta-se que, além da necessidade de adequações na infraestrutura para o ensino, devem ser implementadas medidas voltadas para melhor planejamento do trabalho docente e maior reflexão dos professores quanto às suas habilidades e práticas pedagógicas, bem como a institucionalização da educação permanente para a formação dos professores. Essas medidas poderão contribuir para a mudança na abordagem do ensino, para que os estudantes, como sujeitos de sua aprendizagem, tornem-se mais criativos, participativos, críticos, éticos, questionadores e interativos, e, dessa maneira, sejam formados profissionais mais capacitados para o mercado de trabalho.

Colaboradores Maria Mercês de Araújo Luz participou na concepção e delineamento do estudo; coleta, processamento, análise e interpretação dos dados; pesquisa bibliográfica e elaboração do manuscrito. Amanda Batista da Rocha Romero, Ana Karolinne da Silva Brito, e Lívia Patrícia Rodrigues Batista participaram no processamento, análise e interpretação dos dados; pesquisa bibliográfica e elaboração do manuscrito. Lídya Tolstenko Nogueira e Marize Melo dos Santos participaram na interpretação dos dados; pesquisa bibliográfica e revisão do conteúdo intelectual do manuscrito. Maria do Carmo de Carvalho e Martins participou como responsável por todos os aspectos do trabalho. Participou na concepção e delineamento do estudo, análise e interpretação dos dados, elaboração e revisão crítica do manuscrito. Todos os autores aprovaram a versão final do manuscrito e declaram serem responsáveis por todos os aspectos do trabalho, garantindo sua precisão e integridade Agradecimentos À professora Dra. Maria do Socorro Silva Alencar, pelas contribuições em relação à técnica de análise dos dados da pesquisa.

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19. Frenk J, Chen L, Bhutta ZA, Cohen J, Crisp N, Evans T, et al. Profesionales de la salud para el nuevo siglo: transformando la educación para fortalecer los sistemas de salud en un mundo interdependiente. Rev Peru Med Exp Salud Publica. 2011; 28(2):337-41. 20. Borges MC. Projetos de expansão das universidades públicas federais do triângulo mineiro e a formação inicial de professores. Debates Educ. 2011; 3(6):1-18. 21. Ministério da Educação. Lei nº. 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Estabelece as Diretrizes e Bases da Educação. Diário Oficial da União. 20 Dez 1996. 22. Duarte CS, Oliveira TSM. O financiamento das instituições federais de ensino superior: o caso da Universidade Federal de Goiás. Rev Organ Sist. 2012; 2(1):102-18. 23. Vieira M, Chinelli F. The contemporary relationship between work, qualification and recognition: repercussions on the Unified Health System (SUS) workers. Cienc Saude Colet. 2013; 18(6):1591-600. 24. Santos EA. Qualificação & trabalho: reflexões sob a ótica da globalização. Rev Esp Dial Descon [Internet]. 2010; 2(2) [acesso 2015 Fev 13]. Disponível em: http://seer.fclar. unesp.br/redd/article/view/4153/3759 25. Santini J, Molina Neto V. A síndrome de esgotamento profissional em professores de educação física: um estudo na rede municipal de ensino de Porto Alegre. Rev Bras Educ Fis Esp. 2005; 19(3):209-22. 26. Tani G. Avaliação das condições do ensino de graduação em Educação Física: garantia de uma formação de qualidade. Rev Mackenzie Educ Fis Esp. 2007; 6(2):55-70. 27. Kopruszynski CP, Vechia A. A prática pedagógica dos nutricionistas que atuam na docência: desafios e perspectivas de mudanças. Quaestio. 2011; 13(1):81-97. 28. Santos SC. O processo de ensino-aprendizagem e a relação professor-aluno: aplicação dos “sete princípios para a boa prática na educação de ensino superior”. Cad Pesqui Adm. 2001; 8(1):69-82. 29. Cavalcante LIP, Bissoli MF, Almeida MI, Pimenta SG. A docência no ensino superior na área de saúde: formação continuada e desenvolvimento profissional em foco. Rev Eletr Pesquieduca. 2011; 3(6):162-82. 30. Cunha MI. Diferentes olhares sobre as práticas pedagógicas no ensino superior: a docência e sua formação. Educ. 2004; 54(3):525-36. 31. Esperidião E, Munari DB. Holismo só na teoria: a trama de sentimentos do acadêmico de enfermagem sobre a sua formação. Rev Esc Enferm USP. 2004; 38(3):332-40. 32. Pinto JBT, Pepe AM. A formação do enfermeiro: contradições e desafios à prática pedagógica. Rev Latino-am Enferm. 2007; 15(1):120-6. 33. Silva RPG, Rodrigues RM. Mudança curricular: desafio de um curso de graduação em enfermagem. Rev Bras Enferm. 2008; 61(2):233-8. 34. Mazzioni S. As estratégias utilizadas no processo de ensino-aprendizagem: concepções de alunos e professores de ciências contábeis. Rev Eletron Adm Tur. 2013; 2(1):93-109. 35. Figueiredo AM. Formação de pessoal qualificado no Brasil: limitações estruturais do sistema de ensino. ComCiência [Internet]. 2013; 148 [acesso 2015 Fev 12]. Disponível em: http://comciencia.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151976542013000400009&lng=pt&nrm=iso

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artigos

Luz MMA, Romero ABR, Brito AKS, Batista LPR, Nogueira LT, Santos MM, et al

Luz MMA, Romero ABR, Brito AKS, Batista LPR, Nogueira LT, Santos MM, et al. La formación del profesional nutricionista en la percepción del docente. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):589-601. Este estudio evaluó la formación del profesional de nutrición en la percepción de los docentes nutricionistas de una institución de Enseñanza Superior del nordeste brasileño. Se trata de encuesta cualitativa realizada con veinte profesores nutricionistas que dictaran asignaturas del ciclo de profesionalización en el período de 1980 a 2008. La principal limitación fue la deficiencia de infraestructura física, de material y de equipos, principalmente para la realización de clases prácticas. Se mencionaron las limitaciones relacionadas con la actividad docente y con el conocimiento adquirido por los estudiantes. A pesar de las dificultades señaladas, se refirieron mejoras estructurales. Son necesarias adecuaciones adicionales en la infraestructura, así como medidas enfocadas en una mejor planificación del trabajo docente y para la toma de conciencia del cuerpo discente de su papel en el proceso enseñanza-aprendizaje, posibilitando la formación de profesionales más capacitados para el mercado de trabajo.

Palabras clave: Enseñanza superior. Docentes. Nutricionista.

Recebido em 13/01/14. Aprovado em 01/03/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0718

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Sem começo e sem fim ... com as práticas corporais* e a Clínica Ampliada Valéria Monteiro Mendes(a) Yara Maria de Carvalho(b)

Entrando no tema... Distintos autores do campo da saúde1-16 têm mencionado o aumento de iniciativas com práticas corporais no âmbito dos serviços de saúde, especialmente no nível da atenção básica, como um dispositivo de produção de saúde. Considerando as características da atenção básica17, a longitudinalidade ou continuidade, que atua como moduladora da prática clínica; a acessibilidade, que permite à atenção se constituir como uma importante porta de acesso ao sistema de saúde; a integralidade, que diz respeito à responsabilidade por todos os problemas de saúde da população adscrita de determinado território; e a coordenação, que se refere à capacidade de responsabilização por um determinado sujeito de modo integrado com os outros níveis da atenção e as políticas de saúde, especialmente na última década, é compreensível o porquê desse crescimento expressivo de iniciativas com as práticas corporais/atividade física. Entretanto, ao mesmo tempo, é perceptível a predominância de atividades orientadas a partir de critérios prescritivos, culpabilizantes e moralizantes. Com intuito de problematizar a respeito das práticas dos profissionais de saúde para além da oferta de grupos que enfatizam o componente técnico da prática e a atuação sobre a doença, propomos pensar e experimentar as práticas corporais em articulação com os usuários, os profissionais de saúde e o serviço. Diante desse desafio, nos apropriamos da Clínica Ampliada18(c), que propõe “uma clínica centrada nos Sujeitos concretos, nas pessoas reais, em sua existência concreta, também considerando a doença como parte dessas existências” (p. 56); e do Método da Roda19(d), que reconhece “os espaços coletivos também como lugar de reflexão crítica, produção de subjetividade e constituição de sujeitos” (p. 14). A aproximação com a Clínica Ampliada foi provocada por acúmulos de desconfortos e instabilidades geradas pelos nossos encontros com todos aqueles que fazem o SUS. Foi ficando cada vez mais urgente explorarmos um referencial teórico-conceitual e metodológico que nos ajudasse a lidar com o desafio de recolocar, de recompor o nosso problema no processo de trabalho, qual seja, reconhecer e considerar a subjetividade, a afetividade e o contexto das práticas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Elaborado com base em Mendes VMM. “As práticas corporais e a Clínica Ampliada: a educação Física na Atenção Básica”, pesquisa com apoio financeiro da Capes, vinculada ao projeto “Políticas de formação em educação física e saúde coletiva: atividade física/práticas corporais no SUS”(Edital 24/2010, Processo 06/61320-9). (a) Licenciada em Educação Física. São Paulo, SP, Brasil. valeriamm@usp.br (b) Departamento de Pedagogia do Corpo Humano, Escola de Educação Física e Esporte, Universidade de São Paulo. Av. Prof. Mello Moraes, 65, Cidade Universitária. São Paulo, SP, Brasil. 05508-030. yaramc@usp.br *

O termo Clínica Ampliada será grafado em itálico por se tratar de uma expressão que diz de um referencial teórico.

(c)

O termo Método da Roda será grafado em itálico por se tratar de uma expressão que diz de um referencial teórico.

(d)

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Uma ‘Clínica’ que qualificasse as ações dos profissionais na construção de projetos de cuidado capazes de dialogar com as necessidades das pessoas e com os princípios do SUS. Esse é um tema que atravessa todas as áreas e profissionais da atenção básica. Trata-se de outro modo de pensar e agir, também como contraponto ao modo Bio(e) da saúde. E o movimento de propor outros formatos para problematizar a produção de cuidado junto às subáreas da saúde, trazidas pelo livro Clínica Comum(f), chama atenção para noções que não enxergamos por meio do olhar biológico de nossa formação. Destas há a noção de entredisciplinar, como aquilo que nos convoca a partirmos “do território do não saber e não do intersaber [...] operado no acontecimento com os outros nos processos de formação, do ato para o saber”20 (p. 26); e, ainda, a noção fazer-saber, que privilegia o saber que “emerge do campo da ação inscrita no encontro”20 (p. 22), impondo-nos o “desaprender o saber-fazer, pois aqui há que se construir a possibilidade de se vivenciar a construção dos vários regimes de verdade que andam no campo dos encontros nos atos de cuidar e de ensinar” (p. 28). E é nesse contexto que aparece a noção de ‘intercessão’, mostrando que “no mundo do trabalho, tanto do ensino como do cuidado, há o encontro, sempre intercessor, como lugar de afecções ‘entre’ e, como tal, de afetos”, à medida que “[...] operar atos produtivos no campo do encontro é estar na incerteza dos vários agires de quem ali se encontra e do que pode, em si e entre si”20 (p. 30). Enfatizamos que reconhecemos que há diferenças entre as proposições da Clínica Ampliada e da Clínica Comum. Nesse contexto, queremos destacar que a questão que se coloca tem a ver com a necessidade de fabricarmos arranjos metodológicos que estejam efetivamente voltados à produção de saúde como uma produção do bem comum. E, nesse sentido, o que sistematizamos diz de um processo, de uma experiência do entre, ou seja, traduz um fazer-saber. Considerando nossa experimentação, queremos mostrar aquilo que está no meio quando se tem como questão problematizar a produção do cuidado com base nas práticas corporais e na Clínica Ampliada. Portanto, o que se apresenta é proposição...

Processo de trabalho: o que fazer e o que não fazer? “Fui ao ortopedista ontem e disse que ainda estava participando das atividades aqui. Ele pediu para que falasse para você fortalecer mais as musculaturas dos joelhos”. (Participante do grupo de práticas corporais)

O que fazer em um grupo de práticas corporais? Essa foi uma das questões que nos cercou na fase inicial do projeto de pesquisa-intervenção com as práticas corporais em um centro de saúde escola (CSE) da região oeste do munícipio de São Paulo. Várias participantes do grupo demandaram diferentes tipos de cuidado frente a diagnósticos como: patologias ortopédicas em joelhos e coluna lombar, limitações articulares decorrentes de câncer de mama e síndrome do pânico. O que não fazer? Não reduzir o sujeito à doença, não dividir o trabalho privilegiando o componente técnico da prática, não fragmentar a intervenção atuando isoladamente no serviço. No entanto, permanecia o dilema sobre os modos de interceder ou produzir intercessões. Estávamos em uma encruzilhada: por um lado, não poderíamos desconsiderar as necessidades e os sofrimentos trazidos pelas pessoas, o que gerava dúvidas

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A utilização do termo bioEducaçãoFísica foi inspirada na fala de um membro da banca de qualificação do mestrado, quando este fez menção às duas tendências apresentadas no texto acerca da Educação Física no campo da saúde. (e)

Esse livro trata da experiência de formação interprofissional do eixo Trabalho em Saúde (TS), que é um dos eixos curriculares comuns aos cursos da saúde no campus Baixada Santista da Unifesp.

(f)


Mendes VM, Carvalho YM

(g) Durante a reestruturação do projeto, quando incorporamos a Clínica Ampliada e o Método da Roda, já privilegiávamos o trabalho com grupos heterogêneos (idade, faixa etária, gênero, estado de saúde), pois este é um pressuposto do trabalho com as práticas corporais. Sobre o tema, sugerimos “As práticas corporais no serviço público de saúde: uma aproximação entre a educação física e a saúde coletiva” e “A educação física no serviço público de saúde”.

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de como trilhar um caminho no CSE sem dirigir o trabalho para o modelo funcionalista e moralizante de pensar o corpo, que se fixa na doença e nos procedimentos técnicos, comumente priorizados pela Educação Física. De outro lado, não compreendíamos como sintonizar, de modo coerente, os saberes e práticas de uma formação em cinesiologia e fisiologia do exercício com as práticas corporais, seguindo as ciências humanas e sociais e os processos de produção de subjetividades. Outras questões surgiram: Direcionar as ações de cuidado ao atendimento de demandas clínicas significaria privilegiar a doença, e não a saúde? Tal situação teria sido originada em função das demandas dos usuários ou seria decorrente da pesquisadora? Estes questionamentos revelavam os limites da pesquisadora para atuar com o sujeito adoecido em detrimento da doença, evidenciando o traço de uma formação “biologicista”. Tudo isso dificultava o entendimento de que era efetivamente possível experimentar a aproximação entre os saberes – cinesiologia, fisiologia do exercício, atenção básica, produção do cuidado e práticas corporais. Era difícil, ainda, compreender que esses dilemas eram intrínsecos ao próprio processo de trabalho, imprevisível, efêmero e instigante, da atenção básica. O que era evidente: a necessidade de composição com os trabalhadores e os usuários e com a história do serviço. O que fizemos? A resposta está relacionada com questões de natureza teórico-conceitual e metodológica que, em última análise, remetem à reflexão sobre formação e educação no trabalho em saúde. Produção de modos mais qualificados de agir em saúde e operar as noções vinculadas a uma “Clínica” que tem como objeto “a doença, o contexto e o próprio sujeito” e a um “Método” que reconhece o “trabalho em equipe como setting pedagógico e terapêutico”19 (p. 79), permitindo a criação de diferentes arranjos com os trabalhadores e usuários do CSE. Quais arranjos? A imprevisibilidade e a incerteza como elementos constitutivos do trabalho em saúde colaboraram para que essa experiência se transformasse em uma experimentação. A intervenção no cotidiano foi gradualmente aprimorando os modos de sintonizar os conteúdos relativos ao cuidado com o corpo, a partir e por meio das práticas corporais, com as demandas e necessidades dos usuários do serviço, independentemente da idade, do gênero ou, ainda, da condição clínica, o que permitiu a formação de um grupo heterogêneo(g) do qual fizeram parte sujeitos com diversas formações e ocupações: pessoas aposentadas, donas de casa, empregadas domésticas, professoras, contadoras, artistas plásticas, nutricionista e psicóloga; e, muito mais, eram mulheres, mães, viúvas, casadas, solteiras, homossexuais, filhas, brancas, negras, paulistanas, nordestinas, ‘chefes de família’, desempregadas, eleitoras, cidadãs... Pensar em processo a partir da Clínica Ampliada significou, por exemplo, reconhecer que era possível acolher e produzir intercessões frente às necessidades dos usuários, incluindo as clínicas, seguindo a linha de trabalho das práticas corporais e compondo com os saberes da cinesiologia e da fisiologia do exercício, por exemplo. O propósito era experimentar como agregar noções tão fundamentais para o trabalho no cotidiano da atenção básica – o vínculo, a corresponsabilidade, a cogestão e o cuidado com o outro – alinhavando uma rede de diálogos e troca de experiências entre os integrantes do grupo de práticas corporais e os trabalhadores do CSE, para trazer à cena situações da vida.

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Acolhimento e interprofissionalidade: a oficina de sexualidade e práticas corporais “Prosseguimos discutindo a pergunta se a masturbação fazia mal porque muitas mulheres sentiam vontade, mas também medo. Olhei para a enfermeira que reafirmou à usuária poder ter vontade de se tocar após ter feito amor com o marido por ser um momento dela [...]. A usuária relatou ter retirado um peso das costas por não se sentir à vontade para falar sobre o assunto com ninguém”. (Oficina de Sexualidade e Práticas Corporais)

O processo de construção de uma rede de diálogo e troca junto aos trabalhadores foi apontando pistas sobre como operar o cuidado no CSE de forma a interagir com outros núcleos de saberes, com as práticas corporais. E a Oficina de Sexualidade e Práticas Corporais pode ser um exemplo interessante. Mais uma vez, a singularidade da atenção básica impôs desafios ao trabalho com as práticas corporais. O convite para que integrássemos a “sala de espera”, concebida por uma ginecologista como Oficina de Climatério e Sexualidade, trouxe a seguinte questão: Como trabalhar a composição de encontros que não se restringissem ao ensino e à reprodução de práticas de fortalecimento muscular para a região pélvica, conforme desenvolvido, de modo frequente, por alguns profissionais da saúde? Ficou evidente, outra vez, a exigência de propormos uma estratégia de modo contextualizado sem reduzir os encontros à mera prescrição de “musculação para a vagina”, termo usado por alguns profissionais da saúde. O caminho encontrado foi inventar maneiras de articular os saberes da cinesiologia e da fisiologia com os problemas, as dúvidas e as experiências das usuárias, a fim de produzir um sentido para a experimentação da região pélvica, a partir da qual pudéssemos trabalhar o cuidado em sentido mais amplo, o que demandava trabalhar não apenas no plano da sexualidade, mas, também, da afetividade e da subjetividade. A composição e o aprimoramento dessa estratégia somente foram possíveis em função de um trabalho processual e partilhado com a médica, a enfermeira e as próprias usuárias. O aprendizado sobre como pensar e produzir o cuidado por meio da “sala de espera” se desenvolveu a cada encontro a partir de ajustes constantes, pois estes foram sinalizando a necessidade de rearranjos pela identificação de aspectos que dificultavam ou facilitavam a interação entre as profissionais, por exemplo. Esse movimento, tal como o de uma artesania, que é o elemento-chave do trabalho com os pressupostos da Clínica Ampliada, exigiu novas costuras em relação à dinâmica dos encontros. Foi assim que o reconhecimento da necessidade de mudanças revelou uma nova face do trabalho coletivo, que diz respeito ao exercício da escuta e da capacidade de negociação/pactuação. Percebíamos a necessidade de propor um caminho que permitisse a interlocução entre os três núcleos de saberes (educação física, enfermagem e medicina), para a efetiva aproximação das outras profissionais do CSE com a linha de trabalho das práticas corporais. Os momentos de conversas com as profissionais e a necessidade de adequação frente à imprevisibilidade dos encontros, considerando que, em cada um deles, o grupo era diferente, possibilitou que eles passassem paulatinamente de um formato de palestra dialogada – que informava sobre climatério, higiene, prevenção, tratamento de doenças – para outro, que permitiu a composição entre o uso da escuta e da palavra, a experiência com o corpo e os conteúdos dos três núcleos de saberes, correlacionando-os com questões que emergiam dos encontros. Ao longo do processo, experimentamos como trabalhar os dilemas, as dúvidas e os problemas das pessoas como disparadores e condutores das conversas. Ao mesmo tempo, falando e experimentando o corpo. Exercitarmos a capacidade de escuta e negociação para estruturarmos os encontros e, assim, os ajustes exigiram que lidássemos com diferentes atravessamentos, como as dificuldades ocasionais que a médica e a enfermeira tinham em articular suas atribuições diárias com a oficina. Fica evidente a necessidade de os serviços da atenção básica incluírem em seus projetos ações que possam ser desenvolvidas pelos profissionais que não se restringem às suas clínicas. É preciso 606

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enfrentar o desafio de conciliar os projetos do serviço com os dos profissionais de saúde, buscando a combinação entre a clínica de cada núcleo de saber com outras formas de intervenção, a exemplo da composição de grupos entreprofissionais, pois ações desta natureza tendem a favorecer a constituição de redes de diálogo e de composição entre os profissionais e a comunidade. A Oficina de Sexualidade e Práticas Corporais foi um importante cenário de aprendizagem sobre o trabalho compartilhado. Especialmente na relação com as usuárias, foi necessário aprimorar a forma de lidar com a diversidade de questões, que incluiu um trabalho formativo sobre o tema participação. Com os profissionais, à medida que íamos reconhecendo nossas especificidades e o que era comum da Clínica, produzimos outros olhares, da médica e da enfermeira, sobre a potencialidade das práticas corporais como disparadora de conversas e produtora de encontros. A partir dessas mudanças, houve a aproximação com as outras enfermeiras do setor de saúde da mulher, que atuavam como uma espécie de retaguarda, orientando sobre o sentido do trabalho, bem como garantindo a consulta para as usuárias. A oficina permitiu tanto o trânsito das usuárias entre este grupo e o de práticas corporais, quanto possibilitou que desenvolvêssemos, junto com a enfermeira, “oficinas” no próprio grupo de práticas, pois buscávamos provocar intercâmbios (das participantes da “oficina” com o grupo de práticas corporais e vice-versa, bem como da enfermeira junto ao último e vice-versa), privilegiando o acolhimento e o acesso e tendo como dispositivo as distintas questões relacionadas à sexualidade. As experiências neste espaço ensinaram como a escuta, a comunicação e a compreensão do funcionamento das relações de poder entre os profissionais, ou a ausência destas, podem contribuir para viabilizar ou dificultar a produção de saúde. A abertura para o diálogo e o interesse para a construção de um trabalho partilhado são determinantes para a qualidade das relações produzidas. Com a participação na Oficina de Sexualidade e Práticas Corporais, ficou claro que o profissional da atenção básica é constantemente convocado a exercitar a reinvenção da produção do cuidado, e que este processo tem mais chances de ter sucesso quando a oferta dialoga com o que as pessoas carregam, isto é, quando os profissionais compreendem que os protocolos fazem parte do cuidado, mas não presidem os encontros de saúde18,19,21.

Vínculo e autonomia para além da caminhada... Caminhando buscávamos experimentar outras formas de lidar com os temas que perpassam essas práticas, visando a problematizar a perspectiva que as associam ao mero condicionamento físico e ao gasto de calorias. Tal discurso garante a manutenção do modelo hegemônico de pensar a saúde, defendendo o consumo de produtos do mercado fitness e a dependência em relação ao profissional, em detrimento de um cuidado crítico e reflexivo. Nessa perspectiva, problematizamos a caminhada, a princípio no jardim próximo ao CSE, um dos locais destinados pela instituição aos encontros do grupo. A intenção era disparar discussões a partir da percepção sobre a prática, ultrapassando a ideia de “palestra sobre os benefícios da caminhada para a saúde”. Priorizamos a experiência como ponto inicial para discutir as sensações relacionadas à caminhada – como a pulsação, a respiração, a postura, os desconfortos no próprio corpo e no corpo do outro – e, ainda, as repercussões relacionadas com necessidades específicas (diabetes, hipertensão, cardiopatias, redução do peso). Com as caminhadas no jardim, colocamos na roda temas pouco explorados pelo profissional de saúde, como o consumo de bens (vestuário e equipamentos) e serviços (personal trainer e academia de ginástica) associados com a qualidade do cuidado. Foi possível, também, debater sobre a realização de encontros sem a participação de um professor/profissional de saúde, com o propósito de trabalhar com o grupo a corresponsabilização e a autonomia no que se refere ao “cuidado de si” e do outro. As provocações tiveram desdobramentos, entre os quais a realização de atividades conduzidas pelas senhoras do grupo. A ausência da pesquisadora foi usada como um recurso de intervenção para incentivar outras experimentações na dimensão do cuidado por parte do grupo. Este movimentoresposta do grupo mostra como o profissional de saúde pode identificar oportunidades para incentivar a construção de ações mais autônomas pelas pessoas, valendo-se do vínculo estabelecido. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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É preciso, no entanto, chamar a atenção para eventuais estranhamentos, como ocorreu com algumas pessoas do grupo, dado o modelo de cuidado centralizador e prescritivo que, muitas vezes, é reproduzido pelos profissionais da saúde junto à população. Nesse sentido, as práticas corporais compreendidas como práticas de saúde e cuidado podem contribuir para que o profissional e o grupo ressignifiquem as relações de poder internas e externas ao grupo. Das caminhadas iniciais no jardim, atravessamos muros e ruas para encontrar as praças, parques e avenidas do entorno do CSE, com o propósito de incentivar outras formas de se apropriar do espaço público e de se relacionar com os “de fora”. São iniciativas que constituem uma forma de trabalhar o vínculo com e entre os usuários, na tentativa de provocar protagonismos. Partimos da ideia de que as pessoas deveriam indicar locais próximos de suas casas, ou que já haviam visitado, ou, ainda, que tivessem interesse de conhecer para que pudéssemos partilhar os interesses para identificar o que era diferente e o que era comum. Esse processo trouxe importantes aprendizados sobre o embricamento dos modos de viver com a verbalização de desejos, interesses e necessidades pelas pessoas. O momento de escolha da prática pode ser apropriado para ensinarmos e exercitarmos os diferentes modos de cooperar, sair das zonas de conforto e não resistir ao que, inicialmente, parece difícil, ou trabalhoso, ou estranho. E, ainda, estar atentos ao conjunto de fatores que envolvem a explicitação ou exposição de uma vontade e, ao mesmo tempo, de uma escolha – por esta ou aquela prática. E, nesse sentido, o destino inicialmente escolhido pelo grupo foi uma praça. Nesta caminhada fora do CSE, a senhora que havia sugerido o local assumiu a condução do grupo, orientando o trajeto a ser percorrido, indicando sobre os serviços oferecidos para a comunidade e ainda reforçando que a praça era um “ótimo lugar para respirar”, pois havia eucaliptos no local. O seu movimento ensejou um diálogo com outra participante, moradora da área, que dizia ao grupo um pouco sobre a vida no bairro: “Usuária 1: Quando vim morar aqui era só eucalipto. Lembra?. Usuária 2: Lembro. Quando chegamos era só barro na Vila Madalena. Pesquisadora: Isso quando? U1: Na década de cinquenta para sessenta. A praça não era bonita e estava começando a construção do colégio [...] Uma vez meu médico veio visitar meu filho, que estava doente, e disse: Você tem um eucaliptal perto da sua casa. Faz ele respirar o ar puro que tem lá”. (Caminhada à Praça Horácio Sabino, Grupo de práticas corporais)

É interessante observar como as pessoas se relacionam e ocupam o espaço público. É nesse contexto que se coloca a potencialidade das práticas corporais para fazer emergir os afetos, as emoções e a memória. É preciso privilegiar a experiência e os saberes das pessoas. Cultuar as relações valorizando os diferentes modos de organizar e de viver a vida pelas pessoas. Assim, as caminhadas foram se constituindo como um momento para aprofundar os vínculos entre as pessoas: “Estávamos caminhando quando D. Irá(h) falou: Deixa eu te mostrar uma coisa. Então retirou da bolsa uma foto em preto e branco dizendo: Essa sou eu com cinco anos no Trianon. Acho que você deve saber que as fotos não eram como hoje que todo mundo tem câmera. Quem tirava as fotos eram os lambe-lambes com aquelas caixas pretas enormes [...]”. (Caminhada ao Parque Trianon, Grupo de Práticas Corporais) 608

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Os nomes citados são fictícios.

(h)


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O relato remete aos distintos aspectos que o profissional de saúde precisa aprender a valorizar nos encontros de saúde, como: a memória, a capacidade de decisão e a renovação da sociabilidade e, ainda, a produção de espaços de protagonismo pelas pessoas – não apenas diante do grupo, mas, também, na relação consigo –, o que chama a atenção para o sentido de assumirmos o cuidado como um processo de produção de subjetividades. O que despertava na usuária aquele parque? O parque Trianon é um dos cartões-postais da cidade de São Paulo: local de passagem, de preservação, de acesso ao verde e de encontro, portanto, de alegria, de estranhamento, de medo, de memória... Durante a caminhada ao parque, as participantes que moravam próximo ou frequentavam o local tendiam a orientar o grupo no percurso, sugerindo, por exemplo, que adotássemos caminhos alternativos por ruas paralelas, por serem “menos agitadas que a Avenida Paulista”, bem como para que tomássemos um atalho pela galeria de um conhecido edifício do trajeto porque era “um lugar mais legal que a rua”. As moradoras da região buscavam, por um lado, contribuir para que o encontro permitisse conversas mais “ao pé do ouvido”, em pequenos grupos, que se constituíam e se desmanchavam ao longo das caminhadas, servindo para reforçar afinidades e facilitar aproximações e, por outro, mostrar os atrativos da região. Entre esses momentos, houve a apresentação do cinema, da livraria e do espaço de exposições gratuitas (visitamos uma exposição sobre a transformação de garrafas plásticas em objetos de decoração, pertencentes à galeria). As pessoas contribuíam à sua maneira com os encontros, sobretudo compartilhando histórias a respeito da vida da cidade misturadas com a cultura, a arte e suas próprias vidas: “Lembram o Horácio Sabino, que dá nome à praça que a gente foi? Aqui era a fazenda de café da família dele. Quando não existia nada disso [...] Mas a “Paulista” era um lugar importante [...] A gente vinha assistir os desfiles de carnaval com aquelas marchinhas [...]”. (Caminhada ao Parque Trianon, Grupo de Práticas Corporais) “Aqui é o Centro Cultural Judaico. Têm sessão de teatro, peça, cinema. Não paga nada. Edilamar respondeu: Não sabia disso. D. Irá prosseguiu: ‘Você vê que o prédio é a Torá, o livro sagrado deles [...]”. (Caminhada ao Parque da Sabesp, Grupo de Práticas Corporais)

Esta forma de trabalhar as práticas de caminhada, além de favorecer o encontro, contribuiu para potencializar o cuidado, especialmente com as pessoas de mais idade, com demonstrações de afeto e nenhuma preocupação, por exemplo, com o desempenho físico, um dos pontos mais valorizados pelos profissionais da área quando o assunto é caminhada. Entretanto, de fato, o afeto figurava como o aspecto mais valorizado por algumas participantes durante a prática, o que faz pensar sobre a necessidade de o profissional estar atento para os sentidos atribuídos aos encontros pelas usuárias: “Percebi que Rita, Adriana e Djanira andavam mais lentamente. Aproximei-me e perguntei se estava tudo bem. Adriana respondeu: Está tudo bem. Estamos acompanhando a Djanira que anda mais devagarzinho”. (Caminhada na Avenida Sumaré e Praça Irmãos Karmam, Grupo de Práticas Corporais)

Os encontros foram viabilizados como espaços para a produção de diálogos, isto é, hábeis para favorecer os encontros com o próprio pensamento e com o pensamento do outro, tendo como fio condutor ampliar a compreensão sobre as relações, os desejos, os interesses, as necessidades e as distintas maneiras de viver a vida, como contraponto ao enfoque centrado na autonomia funcional das pessoas – especialmente no caso de idosos, com exercícios de força, coordenação, equilíbrio e percepção – orientada por uma visão instrumental do movimento. Aqui não se trata de mudança de estilos de vida ou hábitos (dar preferência à escada em relação ao elevador, descer um ponto de ônibus antes do local de trabalho, dentre outras). Também não incita a dependência em relação ao “professor” que trabalha com a prescrição de atividade física e exercícios. Mas pretende chamar profissionais e usuários para experimentarem o protagonismo que se exige COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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quando se descobrem e se praticam outras sensibilidades e formas perceptivas para além da dimensão física do cuidado com o corpo. É neste contexto que o trabalho com as práticas corporais contribui para ampliar a visão sobre o trabalho com o corpo, tendo como norte a produção de autonomia e cuidado – o que passa, necessariamente, pelo aprendizado dos usuários, apoiados pelos profissionais de saúde, sobre os saberes que ampliam a percepção e o conhecimento das distintas maneiras, também, de pensar o cuidado. A autonomia está intimamente ligada à forma como as pessoas se apropriam dos espaços públicos e como experimentam, nesses espaços, os encontros, seja consigo, seja com o outro, seja, ainda, com os equipamentos e serviços de saúde, ou de cultura, ou de lazer.

SEM FIM... saindo com o ENTRE... ENTRE=ENCONTRO “lugar de porosidades de fugas incontroláveis e, por isso, de imprevisibilidades, de incertezas a tornarem precários todos os arranjos que se posicionem antes do próprio acontecimento.”20 (p. 22)

Clínica e Cuidado acontecem para além do encontro. Processo Intercessor pressupõe estar com o outro, ou experimentar a presença no encontro com o outro. Processo de Formação implica varrer o instituído, na ‘desaprendizagem’ e no ‘abrir-se para o entredisciplinar’, ou ‘fazer-saber’.

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Colaboradores Os autores trabalharam juntos em todas as etapas de produção do manuscrito. Referências 1. Freitas FF, Carvalho YM, Mendes VM. Educação física e saúde: aproximações com a clínica ampliada. Rev Bras Cienc Esporte. 2013; 35(3):639-56. 2. Bilibio LFS. Esquecimento ativo e práticas corporais em saúde. In: Fraga AB, Carvalho YM, Gomes IM, organizadores. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 117-38. 3. Bracht V. Educação física & saúde coletiva: reflexões pedagógicas. In: Fraga AB, Carvalho YM, Gomes, organizadores. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 178-97. 4. Martinez JFN, Carneiro JA, Campos MH, Antunes PC, Neves RLR, Baptista TJR. Práticas corporais e SUS: tensões teóricas e práticas. In: Fraga AB, Carvalho YM, Gomes IM, organizadores. As práticas corporais no campo da saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 139-77. 5. Carvalho YM, Luz MT, Telesi E. As práticas corporais na atenção primária em saúde: avaliando os cuidados com o corpo nas unidades básicas de saúde do distrito do Butantã em São Paulo [Internet]. In: Seminário de Avaliação do Programa de Pesquisa para o Sistema Único de Saúde; 2010; São Paulo, Brasil. São Paulo: Instituto de Saúde; 2010. p. 40 [acesso 2011 Out 11]. Disponível em http://www.saude.sp.gov.br/resources/institutode-saude/homepage/nucleos/nucleo-de-fomento-e-gestao-de-tecnologias-de-saude/ relatorio_seminario_avaliacao_ppsus-sp_2006-7.pdf 6. Wachs F, Jardim C, Paulon SM, Resende V. Processos de subjetivação e territórios de vida: o trabalho de transição do hospital psiquiátrico para serviços residenciais terapêuticos. Physis. 2010; 20(3):895-912. 7. Carvalho YM. As práticas corporais como práticas de saúde e de cuidado no contexto da promoção da saúde [tese]. São Paulo (SP): Faculdade de Saúde Pública, Universidade da Universidade de São Paulo; 2010. 8. Abib LT, Fraga AB, Wachs F, Alves CTP. Práticas corporais em cena na saúde mental: potencialidades de uma oficina de futebol em um centro de atenção psicossocial de Porto Alegre. Pensar Prat. 2010; 13(2):1-15. 9. Wachs F, Fraga AB. Educação física em centros de atenção psicossocial. Rev Bras Cienc Esporte. 2009; 31(1):93-107. 10. Carvalho YM, Hallal PC, Warschauer, Mendes VM. Avaliação qualitativa de programas e políticas públicas voltadas para a saúde da população programa CuritibAtiva. In: Anais do XI Congresso Paulista de Saúde Pública; 2009; São José dos Campos, Brasil; São Paulo: Faculdade de Saúde Pública; 2009. p. 170-1. 11. Warschauer M, D’Urso L. Ambiência e formação de grupo em programa de caminhada. Saude Soc. 2009; 18(2):104-7. 12. Freitas FF, Brasil FK, Silva CL. Práticas corporais e saúde: novos olhares. Rev Bras Cienc Esporte. 2006; 27(3):169-83. 13. Warschauer M, Carvalho YM, Martins CL, Freitas FF. As escolhas das práticas corporais e dos profissionais que conduzem as práticas nas unidades básicas de saúde do distrito Butantã-SP [Internet]. In: Anais do 15° Congresso Brasileiro de Ciências do Esporte; 2007; Recife, Brasil. Curitiba: Colégio Brasileiro de Ciências do Esporte, 2007. p. 27 [acesso 2012 Out 11]. Disponível em: http//:www.cbce.org.br/resumos/003.pdf

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14. Carvalho YM, Freitas FF. Atividade física, saúde e comunidade. Cad Saude Colet. 2006; 14(3):489-505. 15. Carvalho YM. Promoção da Saúde, práticas corporais e atenção básica. Rev Saude Fam. 2006; 11(7):33-5. 16. Wachs F, Malavolta MA. Pode ser a oficina de corporeidade uma alternativa terapêutica na saúde mental? Bol Saude (Porto Alegre). 2005; 19(2):13-20. 17. Starfield DB. Atenção primária: equilíbrio entre necessidades de saúde, serviços e tecnologia. Brasília (DF): Ministério da Saúde, Unesco; 2002. 18. Campos GWS, organizador. A clínica do sujeito por uma clínica reformulada e ampliada. São Paulo: Hucitec; 2003. 19. Campos GWS. Um método para análise e cogestão de coletivos. São Paulo: Hucitec; 2000. 20. Merhy EE. Vivenciar um campo de formação de profissionais de saúde: dobrando em mim o fazer da Unifesp Baixada Santista. In: Capozzolo AA, Casetto SJ, Henz AO, organizadores. Clínica comum: itinerários de uma formação em saúde. São Paulo: Hucitec; 2013. p. 19-34. 21. Feuerwerker, LCM. Micropolítica e saúde: produção do cuidado, gestão e formação. Porto Alegre: Rede UNIDA; 2014.

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Mendes VM, Carvalho YM

Nos últimos anos, embora tenha ocorrido um aumento de ações com práticas corporais/ atividade física na atenção básica, compreendidas como uma ferramenta de ampliação da saúde da população,é premente qualificarmos essas iniciativas com vistas ao acolhimento e ao reconhecimento das necessidades de saúde das pessoas, especialmente considerando o distanciamento entre formação e intervenção que ainda persiste nas subáreas da saúde. Nessa direção, propomos a interlocução entre práticas corporais e Clínica Ampliada, problematizando a produção do cuidado por meio de um caminho mais criativo, que privilegia movimentos de composição entre a singularidade dos usuários e trabalhadores e os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS). Com esse arranjo metodológico, trilhamos um percurso que diz de um saber-fazer em processo e de uma experiência de cuidado produzida coletivamente, e nos convoca para pensar e escrever sobre o entre.

Palavras-chave: Práticas corporais. Clínica Ampliada. Método da Roda. Formação e educação em saúde. Trabalho em saúde. No beginning and no end ... with body practices and Expanded Clinics Over the last few years, although the number of actions regarding body practices/ physical activity within primary health care (taken to be a tool for improving the health of the population) has increased, there is an urgent need to qualify these initiatives with a view to accepting and acknowledging people’s healthcare requirements, especially considering the detachment between training and intervention that still persists with healthcare subsectors. For this purpose, we propose interlocution between body practices and Expanded Clinics so as to turn care production into problem-solving actions through a more creative pathway that lays emphasis on movements of composition between the singularities of users and healthcare workers and the principles of the Brazilian National Health System (SUS). With this methodological arrangement, we follow a path involving knowhow in relation to processes and experience of collectively produced care and call for thinking and writing about what lies in between.

Keywords: Body practices. Expanded clinics. Wheel method. Healthcare training and education. Healthcare work. Sin comienzo ni fin ... con las prácticas corporales y la Clínica Ampliada En los últimos años, aunque haya habido un aumento de acciones con prácticas corporales/actividad física en la atención básica, entendidas como una herramienta de ampliación de la salud de la población, es urgente que califiquemos tales iniciativas con el objetivo de acoger y reconocer las necesidades de salud de las personas, considerando el distanciamiento entre formación e intervención que todavía persiste en las sub-áreas de la salud. En esa dirección, proponemos la interlocución entre prácticas corporales y Clínica Ampliada, problematizando la producción del cuidado por medio de un camino más creativo que privilegia movimientos de composición entre la singularidad de los usuarios y trabajadores y los principios del Sistema Brasileño de Salud (SUS) Seguimos una trayectoria que habla sobre un saber-hacer en proceso y de una experiencia de cuidado producida colectivamente y que nos convoca a pensar y a escribir sobre el entre.

Palabras clave: Prácticas corporales. Clínica Ampliada. Método de la Rueda. Formación y educación en salud. Trabajo en salud.

Recebido em 08/09/14. Aprovado em 07/01/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0553

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A vida em suspensão: ‘Fale com ela’ e os sentidos da morte

Rosamaria Carneiro(a)

Prefácio Nesta oportunidade(b), tenho por desafio refletir sobre os muitos sentidos da morte e/ou ‘vida em suspensão’ a partir de ‘Fale com ela’, de Pedro Almodóvar, diretor conhecido por versar sobre temas como: sexualidade, erotismo, corporalidade, parentesco e violência, entre outras searas que tangenciam nossas vidas. Não tenho alternativa, a não ser partir da perspectiva antropológica, já que esse é o meu lugar de fala e de leitura do mundo. Para tanto, este artigo está organizado em três momentos: notas sobre o diretor e sobre ‘Fale com ela’; uma singela historiografia da morte no ocidente; e, por fim, uma reflexão sobre as noções de ‘boa morte’ e de ‘morte natural’, a partir da tecnologia, e suas implicações no campo da saúde na atualidade.

Prenúncio da cria e de seu criador Pedro Almodóvar nasceu em Calzeda de la Calatrava, na Espanha, em 1951. Aos oito anos, mudou-se para Cáceres e, aos vinte anos, para Madrid. Na capital, começou a desenvolver suas atividades artísticas. De início, concentrouse em produção teatral, em ‘Los Goliardos’, porém, já em 1974, dirigiu os seus primeiros curtas-metragens em Super-8, transformando-se em um dos pioneiros de ‘la movida madrilena’. Seu primeiro longa-metragem foi ‘Pepi, Luci, Bom y otras chicas del montón’ (1980), rodado, inicialmente, em 16 mm e, mais tarde, convertido para 35 mm. Rapidamente, converteu-se em um ‘cult’. Com ‘Entre tinieblas y ¿Qué he hecho yo para merecer ésto?’ (1984), abriram-se as portas do reconhecimento e dos mercados fora da Espanha. E assim, com ‘Mujeres al borde de un ataque de nervios’ (1988), consolidou seu sucesso, ao ganhar o prêmio de melhor filme estrangeiro do ano. Depois de anos de altos e baixos, foi agraciado com o Oscar de Melhor Filme Estrangeiro com ‘Todo sobre mi Madre’ (1999), e, pouco depois, estourou com o sucesso de bilheteria ‘Hable con ella’, que conquistou o prêmio de Melhor Roteiro Original. E por último, mais recentemente, brindou-nos com ‘Volver’ (2006) e, em seguida, com o instigante ‘Pele que Habito’ (2011), estória de um médico/monstro que reconstrói o sexo e o corpo do algoz de sua filha, já morta. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Colegiado de Saúde Coletiva, Faculdade de Ceilândia, Universidade de Brasília. Centro Metropolitano, conjunto A, lote 1. Brasília, DF, Brasil. 72220-900. rosacarneiro@unb.br

Uma versão adaptada deste texto foi apresentada no Seminário “Vida em suspensão: os muitos sentidos da morte”, organizado pelo “Programa PET” do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília, e que ocorreu no Museu Nacional de Brasília, em 9 de abril de 2013. Disponível em: http:// www.casadacultura.unb. br/?page_id=9388

(b)

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Em ‘Fale com ela’, deparamo-nos com Begnino e Marco, o primeiro, enfermeiro e, o segundo, jornalista. Os dois estão envolvidos com mulheres em coma, Alicia e Lydia. O coma, enquanto um estado de rebaixamento da consciência, difere dos ditos ‘estados vegetativos’, nos quais persistem somente movimentos automáticos e involuntários. Discute-se que, no coma, existe a possibilidade de retorno à vida, enquanto do estado vegetativo seria improvável. Entretanto, tanto em um caso como no outro, experimentar-se-iam situações de ‘vida em suspensão’ ou de outras vidas, que podem vir a ser também tidas ou consideradas como experiências de morte. Alicia é uma bailarina, que vivia em coma há quatro anos, depois de um acidente de carro. Lydia é uma toureira, que, depois de ter sido ‘partida en dos’ por um touro, tem uma parte significativa de seu cérebro danificada. Duas mulheres hospitalizadas, que nada parecem saber do que acontece ao seu redor, e dois homens que se tornam amigos no interior de um hospital. Begnino havia passado a vida toda cuidando de sua mãe, também enferma, e nunca havia se relacionado sexualmente com nenhuma mulher ou homem. Marco, ao que parece, havia se separado e carregava traumas da antiga relação. Juntos, dialogam e desabafam sobre o estado dessas mulheres, mas com perspectivas bastante distintas. Enquanto Marco reluta, está descrente e não sabe como lidar com Lydia em coma, para Begnino, a vida parece seguir normalmente, ao conversar e fazer planos com Alicia, como se estivesse viva. Em um cotidiano, no mínimo, curioso, Begnino frequenta os locais que Alicia costumava frequentar, conversa e insiste em querer casar-se com a personagem. Um homem ingênuo e, até mesmo, um pouco infantil, parece viver para uma pessoa e um corpo que, por sua vez, parece dali estar bem distante. O drama atinge o seu clímax quando Marco descobre que Lydia o abandonaria e, então, decide deixar a cidade. E quando Begnino, ao narrar para Lydia um filme que havia assistido, ao que tudo indica, mantém relação sexual com a bailarina em coma. Pouco depois, Alicia, mesmo em coma, fica grávida, e o escândalo se estabelece, culminando na prisão de Begnino e na volta de Marco, para ajudar o amigo. Na prisão, Begnino segue vivendo em nome da bailarina, quando diz ao amigo que a única coisa que lhe interessa é saber de Alicia e do bebê. Marco descobre, então, que Alicia saiu do coma, algo pouco provável cientificamente, e que o bebê havia morrido. Era um menino. Sem coragem, nada revela ao amigo, que, ao ingerir uma dose tripla de medicamentos, comete o suicídio, esperando, no entanto, entrar em coma e, assim, ‘acompanhar Alicia’. Begnino morre. E Marco reencontra Lydia em uma apresentação de ballet, no mesmo local em que Begnino o havia visto chorando, na cena que inicia a obra. Para Begnino não parece haver morte. Para o médico que assiste a Marco, poucas são as chances de retorno do coma. Entre as enfermeiras, a maioria não acredita na possibilidade de recuperação. Dessa maneira, diferentes são as percepções, inclusive dos profissionais de saúde envolvidos com o cuidado das que experimentam o coma. Para a maioria, é como se as mulheres estivessem mortas, mas, para o enfermeiro Begnino, estão vivas e, a qualquer momento, podem despertar e retornar à vida social. Coma, prolongamento da vida, corpos inertes, amor, desejo, abuso e assistência médica compõem o desenho dessa obra cinematográfica. Salta-nos aos olhos a dúvida quanto ao que se passa enquanto se vive o coma, o que se sente, se escuta e/ou se entende e, assim, nos deparamos com múltiplos sentidos de vida, mas, sobretudo, de morte.

Morte: sentidos de ontem e de hoje

Para pensarmos sobre a morte ou muitas leituras sociais do que seria morrer, ‘morrer bem’ e/ ou ‘morrer mal’ ao longo de nossa história, o artigo O nascimento do hospital1 parece ser um bom e interessante começo. Segundo o autor, antes da modernidade, a morte era percebida como algo corriqueiro, no sentido de que pouco se fazia para evitá-la. E os hospitais eram uma espécie de ‘morredouro’, para onde as pessoas se dirigiam quando não havia mais esperança. Era igualmente o local de vivência dos ‘desviantes’, dos loucos, dos andarilhos e dos miseráveis. Nesse sentido, funcionava mais como um asilo ou albergue do que como espaço de cura e de reestabelecimento da ordem. Na mesma linha, a morte era interpretada como uma consequência divina e, por essa razão, 616

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segundo tal filósofo, a presença de religiosos e de pessoas que praticavam a caridade era bem mais frequente nos hospitais. Dessa forma, conforme esse mesmo autor, a noção de cura como o que controla e evita a morte, e de hospital como o espaço de prolongamento da vida, parecem ter despontado com o nascimento da medicina moderna. Em defesa da sociedade2, o autor ainda conjuga tais mudanças ao que denominou de ‘teoria da soberania’. E isso porque, em sua leitura, antes da modernidade, vivíamos sob a ideia de que o soberano ‘fazia morrer e deixava viver’, detendo o controle sobre a morte dos que compunham a sociedade, mediante castigos e controle social; enquanto, a partir da modernidade e novas práticas de poder, teríamos passado a viver sob o ‘deixar morrer e fazer viver’, dando ênfase à vida mais longa, ao cuidado da população, de sua saúde e bem-estar em prol de interesses políticos e econômicos. É com essa releitura que o Estado teria passado a atuar no sentido de estender a vida, praticando o que esse autor chamou de ‘biopolítica’. Época de ‘estatização do biológico’, de doença a ser evitada e de saúde a ser cotidianamente construída e vigiada. Para tanto, a medicina moderna, enquanto ciência e prática discursiva, teria sido de fundamental importância, assim como os seus operadores, que, a partir de então, ganharam destaque social e reconhecimento, antes destinado aos clérigos. Dessa maneira, partindo dessa leitura, pode-se apontar, portanto, para uma repaginação da acepção de morte entre os séculos 16 e 18, junto de algumas outras mudanças, já bem conhecidas, de ordem política, econômica e social, ocorridas com a passagem do medievo para a modernidade. Em certo sentido, a morte também se vê secularizada, ao passar a pertencer ao âmbito da ciência e da gestão humana, reiterando a perspectiva de que a morte pode ser lida de maneiras diferentes ao longo dos tempos e dos espaços.

Boa morte e crítica à biopolítica no fim da existência Com essa virada paradigmática, ‘viver bem’ passa a ser socialmente entendido como ter ‘vida longa’ e, mais recentemente, ‘viver com qualidade’. E, assim, advém o elogio e a crítica, a um só tempo, tanto à tecnologia quanto à farmacologia utilizada no mundo da saúde. Para explorar essa alteração histórica e cultural da noção de morte, que não consegue ser dissociada da ideia de vida, já que a vida significa a morte por contraposição e vice-versa, recorrer a alguns artigos de uma antropóloga dedicada à saúde3,4 e estudiosa dessa temática, parece-me frutífero, instigante e elucidativo. Em um artigo de 2003, ‘Tecnologia e morte natural: o morrer na contemporaneidade’, a autora salienta que, com o desenvolvimento do ‘ventilador artificial’ e da acepção de ‘morte cerebral’, passa a vigorar uma leitura de ‘morte moderna’, a do morto controlado por máquinas, que tem a vida porque conjugado a uma máquina, quase como um ciborgue. Essa ‘morte moderna’ seria, então, a encontrada nos centros e unidades de terapia intensiva (CTIs e UTIs), onde deparamo-nos com pessoas sem escolha, ou quase, à mercê dos cuidados da equipe que compõe o centro e da tecnologia. É lógico que o desenvolvimento da tecnologia é de extrema relevância e importância, trata-se de uma invenção humana que salva vidas e que, muitas vezes, a prolonga em busca de esperança; por isso, não se trata aqui de simplesmente negar a tecnologia, mas de pedir atenção para o outro lado da moeda e que tem despontado com intensidade nos últimos anos. Esse, ao menos, parece ser o sentido trilhado em seus escritos, que, no limite, tematizam o excesso de tecnologia e o desaparecimento do doente enquanto pessoa. Nessa chave, a morte funciona como sinônimo de fracasso para o médico e para o hospital. Enquanto, na morte ‘pós-moderna’, mais recentemente tematizada pela autora, interessaria, antes, ‘a qualidade de vida’ e a ‘escolha’ daquele que tem a sua existência prolongada mediante tecnologia, tanto em coma como em estados vegetativos. De acordo com suas linhas, essa outra leitura vem amparada por uma ideia de ‘boa morte’, que é a morte com qualidade, na qual o moribundo ou a família pode e deve participar das decisões tomadas pela equipe médica e, na qual, morrer é, sobretudo, percebido como uma etapa da vida, e não como uma desgraça a ser evitada. Envolvendo, de saída, portanto, uma crítica à medicalização, à noção de que a juventude é a melhor etapa da existência, e a de que morte significaria, per si, uma fragmentação dos vínculos sociais. Nesse sentido, nesses casos, questiona-se o excesso de tecnologia e valoriza-se o uso das ‘tecnologias leves’, ou seja, as tidas como ‘não invasivas’. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Segundo a leitura dessa autora, o requerimento contemporâneo pela ‘boa morte’ estaria conectado ao fato de a geração que ora morre ser a geração dos anos de 1960, a da contracultura, da tentativa de resgate do romantismo e da ideia de totalidade da pessoa perante o racionalismo exacerbado e notadamente moderno. Nesse diapasão, o ideário da ‘boa morte’ viria, genealogicamente, casado a uma ideia de pessoa e em uma geração específica, cuja relação com o excesso de tecnologia e suposto desencantamento do mundo sempre fora pautada, assim como a demanda pela liberdade, escolha e autonomia. Se ora recorro a tais estudos4, é para problematizar o que se tem discutido por dignidade e autonomia de escolha dos pacientes em coma e em estado vegetativo, quanto aos procedimentos a serem realizados e técnicas de prolongamento da vida. Nessa esteira, não são raras as cenas de ‘Fale com Ela’ que nos sugerem, quando não escancaram, a possibilidade de despersonalização do paciente e a inexistência da discussão a respeito da ideia de ‘boa morte’, atualmente valorada no interior de alguns CTIs. Logo no início do filme, deparamo-nos com a cena em que Alicia menstrua e os enfermeiros não se dão conta de tal fato. Surpresos, logo jogam sabão e a manipulam como se lavassem louça ou fizessem qualquer outra tarefa doméstica. Essa cena traz à baila algo da intimidade feminina, ao menos na leitura do mundo ocidental pautado pelo dimorfismo sexual, e despersonaliza a mulher e o corpo feminino, tomado como objeto de manipulação. E o curioso é que isso se dá também da parte de Begnino, que, na contramão dos demais personagens, costuma reconhecer vida no corpo moribundo. Lydia morre, não retorna do coma, já Alicia vive quatro anos em coma e, excepcionalmente, retorna à vida. O coma é um estado liminar, o que conjuga vida e morte. Vida no sentido biológico, mas morte no sentido social. Por isso, algumas famílias de pessoas em coma e pacientes, ainda conscientes, têm reivindicado o direito de eutanásia. Nessa esfera, ter de demandar o direito de morrer soa-me como ilustração do pensado quanto à ‘biopolítica’ e ao investimento estatal no prolongamento da vida4, muitas vezes em detrimento dos anseios daquele que vive ou está morto dessa maneira. Em um texto mais recente, ‘Demanda por eutanásia e condição de pessoa: reflexões em torno do estatuto das lágrimas’, a mesma autora5 discute a crescente demanda no mundo por esse direito de morrer, trazendo à tona o caso de um australiano tetraplégico, antes, praticante de esportes radicais, que, em razão, de ‘nem mesmo poder enxugar as suas lágrimas’, solicita ao Estado o direito de que o matem. Em países com Holanda, Bélgica e Uruguai, a eutanásia existe enquanto um direito, em que pese cada qual possuir legislação e situações específicas. Na Suíça, desde 1998, existe uma organização, a ‘Dignitas’, que propicia a eutanásia para aqueles que a desejarem, e tem despertado, segundo essa mesma estudiosa, uma espécie de ‘turismo do suicídio’, para onde as pessoas têm viajado para conseguir morrer. Enquanto no Brasil, conforme artigo 41 do Código de Ética Médica6, a prática da morte antecipada é proibida e configura homicídio, ressalvado, contudo, o dever de se observar o desejo do paciente e de sua família quanto ao destino do tratamento. Sendo assim, corpo, potência e capacidade de ação figuram, em casos como esses, como cárcere e ausência de vida, sinalizando quão tênue pode ser o limite que separa vida/morte, bem como vida de existência social e autonomia; posto que o que, para alguns, poderia ser prolongamento da vida, para outros, pode ser ‘morte em vida’, vida que é sofrimento e despersonalização, aproximando-se, por conseguinte, muito mais da morte do que da vida. Alicia fica grávida e perde a criança, mas não toma conhecimento de nenhum dos fatos. Vive uma relação com Begnino, sem saber tê-la vivido. É manuseada como uma boneca e torna-se um brinquedo do enfermeiro, que, a despeito de amá-la, trata-a conforme os seus anseios e suas próprias expectativas. Tudo sem que tenha a oportunidade de opor-se ou de questionar. Ela representa uma exceção, pois retornou do coma. E os outros pacientes que se veem conectados aos ventiladores artificiais, o que pensar a respeito de sua pessoa, de sua capacidade de escolha? E até onde pode seguir o uso da tecnologia em nome do bios, quando o próprio enfermo não quer mais viver? Esses seriam alguns dos impasses experimentados na contemporaneidade no tocante aos muitos sentidos de morte, em tempos de altíssima tecnologia e de gestão estatal da vida. E, afinal, estão vivos ou estão mortos?

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Nascer e morrer: de perto e de longe Se percebemos que morte/vida se veem muito mais imbricadas do que a priori poderíamos aventar a partir de uma leitura dicotômica de mundo, e que, ambas, estão muito além do pulsar biológico, ao refletir sobre ‘Fale com ela’, creio que entre o morrer e o nascer existem muitos pontos de semelhança. Nesse sentido, a antropologia do parto/do nascimento, campo no qual me situo especificamente, se vê, por um lado, interpelada e, por outro, também como mobilizadora da antropologia da morte. Segundo a autora já mencionada4, a ideia de ‘boa morte’ aparece também como ‘morte natural’ ou como ‘morte mais natural possível’ – marca também presente na filosofia do parto humanizado ou do ‘parto natural’ dos dias atuais, ou seja, aquele que acontece com o mínimo de intervenção possível e na contramão da cesárea, e que constitui o objeto de meus principais interesses de pesquisa há anos. Em 1991, surge, na Inglaterra, o ‘Centro de Morte Natural’, onde há o preparo para a morte mediante exercícios corporais e redução da ansiedade, assim como também acontece nos grupos de preparo para o parto em que realizei minha etnografia. E, nesse sentido, a premissa do ‘nascer sorrindo’ parece poder ser estendida ao ‘morrer sorrindo’. Em outro sentido, de maneira bem próxima, entre os adeptos da “boa morte”, aparecem também relatos de êxtase ao morrer7, como entre algumas mulheres adeptas do parto humanizado têm narrado nos anos mais recentes na experiência brasileira8. Existe a proposta do leito compartilhado, como no nascimento mais natural, entre o paciente e alguém da família; bem como aparecem relatos de massagens, fitas audiovisuais e uso de florais para, segundo a autora, ‘ir ao encontro da luz’7. Essa proximidade discursiva entre os modos de morrer, estudados pela autora aqui citada, e os modos de viver, que tenho investigado, parece ainda mais marcada quando nos deparamos com a existência de ‘a parteira para o outro mundo’, ou seja, da parteira que auxilia na morte, assim como a que aparece nas cenas de parto. Por essa razão, a autora avalia essa postura da ‘boa morte’ como um retorno pagão à natureza, presente tanto nos discursos orientados ao nascer quanto ao morrer, como já pontuou uma outra antropóloga em sua tese de doutorado sobre o parto humanizado9. Nesses espaços sociais, a tecnologia pode ser vista como antagonista da ‘boa morte’, também apreendida como morte natural, como também aparece no ideário da humanização do parto e do nascimento. Isto posto, parece fazer sentido que a autora em questão perceba uma relação entre aqueles que defendem tal filosofia e a geração de 1960, porque essa geração, segundo os seus escritos, foi – e nesse ponto, penso eu –, também, a precursora da filosofia do parto natural/sem dor, a do movimento hippie e dos direitos civis, sendo também a dos slogans ‘o meu corpo me pertence’ ou ‘o pessoal é político’. A ‘boa morte’, nesses casos, é a morte natural igualmente construída, tecida a partir da individualidade10,11 e do ‘cuidado de si’, revelando-nos mais um modelo social de morte, aquele que não a pensa como surpresa e inevitabilidade e, tampouco, como prolongamento artificial e simples manutenção do bios, mas como uma morte criada mediante o preparo e o protagonismo. De tudo, o que me parece restar é a pluralidade de leituras possíveis a respeito de morte, de vida e de suspensão da vida. É no jogo entre opostos e em leituras que os aproximam e os distanciam que podemos nos dar conta dessa multiplicidade. Procurei, nessa ocasião, realizar um recorte e explorar o campo da assistência médica, o interesse estatal e as tecnologias de prolongamento da vida, de um lado, e, de outro, as leituras interpretativas realizadas por aqueles que experimentam tais situações ou buscam evitá-las, ‘preparando-se para morrer’. ‘Fale com Ela’, por tudo isso, é sem dúvida uma abertura para uma gama de interpretações, como o é o cinema em geral e enquanto linguagem que conjuga palavras e sentimentos...

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Referências 1. Fale com ela. Hable con ella. Direção: Pedro Almodóvar. Espanha; 2002. 112 min. 2. Foucault M. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal; 1993. 3. Foucault M. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes; 2002. 4. Menezes RA. A medicalização da esperança: reflexões em torno da vida, saúde/doença e morte. Amazon Rev Antropol. 2013; 5(2):478-98. 5. Menezes RA. Demanda por eutanásia e condição de pessoa: reflexões em torno do estatuto das lágrimas. Sex Salud Soc. 2011; 9: 37-53. 6. Conselho Federal de Medicina. Código de Ética Médica. Resolução 1931/2009. Aprova o Código de Ética Médica. Diário Oficial da União. 24 Set 2009. Seção 1:90. 7. Menezes RA. Tecnologia e morte natural: o morrer na contemporaneidade. Physis. 2003; 13(2):129-47. 8. Carneiro RG. Cenas de parto e políticas do corpo: etnografia de experiências femininas de parto humanizado [tese]. Campinas (SP): Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas; 2011. 9. Tornquist CS. Parto e poder: o movimento de humanização do parto no Brasil [tese]. Florianópolis (SC): Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, Universidade Federal de Santa Catarina; 2004. 10. Salem T. O casal grávido: disposições e dilemas da parceria igualitária. Rio de Janeiro: Editora FGV; 2007. 11. Velho G. Observando o familiar. In: Nunes EO, organizador. A aventura sociológica. Rio de Janeiro: Zahar; 1978. p. 36-46.

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Este artigo pretende refletir sobre as múltiplas acepções de morte na contemporaneidade, a partir da obra cinematográfica ‘Fale com ela’, de Pedro Almodóvar. Para tanto, dialoga com o filme e com a leitura socioantropológica de Menezes sobre ‘boa morte’, ‘morte moderna’ e ‘morte pós-moderna’, tomando as considerações sobre a noção de pessoa e de naturalidade. Esse esforço termina por resultar, ao final, em outra aproximação entre o morrer, o viver e o nascer nos dias atuais, pensando em suas aproximações e semânticas na atualidade

Palavras-chave: ‘Fale com ela’. Morte. Vida. Pessoa. Life on hold: ‘Talk to her’ and the meanings of death This paper aims to reflect on the multiple meanings of death in today’s society, starting from the film ‘Talk to her’, by Pedro Almodóvar. For this, the film and the socioanthropological reading of Menezes on ‘good death’, ‘modern death’ and ‘postmodern death’ are discussed, taking into consideration notions about people and naturalness. This effort ultimately ends up resulting in another approach between death, life and birth within current days while thinking about their approaches and semantics today.

Keywords: ‘Talk to her’. Death. Life. Person. La vida en suspensión: ‘Habla con ella’ y los sentidos de la muerte El objetivo de este artículo es reflexionar sobre las múltiples acepciones de muerte en la contemporaneidad, a partir de la obra cinematográfica ‘Habla con ella’ de Pedro Almodóvar. Para ello, dialoga con la película y con la lectura socio-antropológica de Menezes sobre la ‘buena muerte’, la ‘muerte moderna’ y la ‘muerte post-moderna’, tomando sus consideraciones sobre la noción de persona y de naturalidad. Ese esfuerzo acaba finalmente resultando en otras aproximación entre el morir, el vivir y el nacer en los días actuales, pensando en sus aproximaciones y semánticas en la actualidad.

Palabras clave: ‘Habla con ella’. Muerte. Vida. Persona.

Recebido em 04/09/14. Aprovado em 13/04/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.1142

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Mais Médicos: um programa brasileiro em uma perspectiva internacional

Felipe Proenço de Oliveira(a) Tazio Vanni(b) Hêider Aurélio Pinto(c) Jerzey Timoteo Ribeiro dos Santos(d) Alexandre Medeiros de Figueiredo(e) Sidclei Queiroga de Araújo(f) Mateus Falcão Martins Matos(g) Eliana Goldfarb Cyrino(h) Oliveira FP, Vanni T, Pinto HA, Santos JTR, Figueiredo AM, Araújo SQ, Matos MFM, Cyrino EG. “Mais Médicos”: a Brazilian program in an international perspective. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):623-34. The shortage of health professionals in remote and vulnerable areas is an important obstacle for universal access to health in several countries. This paper examines the policies of provision of health professionals in Australia, in the United States of America, and in Brazil. In spite of the partial success of previous initiatives, it was only with the “Mais Médicos” (“More Physicians”) Program that the provision of physicians in vulnerable areas had the magnitude and the response in adequate time to respond to the demands of the Brazilian municipalities. Quantitative and qualitative changes in the training of physicians are in course and they seek to assure not only universality, but also integrality and sustainability in the Brazilian National Health System (Sistema Único de Saúde – SUS). The success of these initiatives will depend on the continuity of the intefederative articulation, of State regulation policies, as well as of the continuous monitoring and improvement of the program. Keywords: “Mais Médicos” – “More Physicians”. Primary Health Care. Brazil. Australia. United States of America.

A escassez de profissionais de saúde em áreas remotas e vulneráveis é um importante obstáculo para a universalização do acesso à saúde em diversos países. Este artigo examina as políticas de provimento de profissionais de saúde na Austrália, nos Estados Unidos da América e no Brasil. Apesar do sucesso parcial de iniciativas anteriores, foi apenas com o Programa Mais Médicos que a provisão de médicos em áreas vulneráveis teve a magnitude e a resposta em tempo adequado para atender a demanda dos municípios brasileiros. Estão em curso, no país, mudanças quantitativas e qualitativas na formação médica, que buscam garantir não apenas a universalidade, mas, também, a integralidade e sustentabilidade do Sistema Único de Saúde. O êxito dessas iniciativas dependerão da continuidade da articulação interfederativa, de políticas regulatórias de estado, bem como, do constante monitoramento e aprimoramento do programa.

Palavras-chave: Mais Médicos. Atenção Básica à Saúde. Brasil. Austrália. Estados Unidos da América. Programas governamentais.

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Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, Ministério da Saúde (MS). Bloco G, Esplanada do Ministérios. Brasília, DF, Brasil. 70058-900. felipe. proenco@saude.gov.br; tazio.vanni@saude.gov. br; jerzey.santos@saude. gov.br; sidclei.queiroga@ saude.gov.br (c) Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, MS. Brasília, DF, Brasil. heider@ saude.gov.br (e) Departamento de Gestão da Educação na Saúde, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, MS. Brasília, DF, Brasil. alexandre.figueiredo@ saude.gov.br (g) Doutorando, Instituto de Relações Internacionais, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP, Brasil. mmatos@usp.br (h) Diretoria de Programas, Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde, MS. Brasília, DF, Brasil. eliana.cyrino@ saude.gov.br (a,b,d,f)

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Introdução Em todo o mundo, os sistemas de saúde têm passado por profundas mudanças, fruto de transições demográficas, epidemiológicas, e econômicas1. Nos últimos anos, o governo brasileiro tem desenvolvido uma série de ações visando à reestruturação do Sistema Único de Saúde (SUS), de forma a priorizar a Atenção Básica e enfrentar os limitantes do desenvolvimento daquela que é estabelecida como a porta de entrada preferencial do SUS. Nos seus 25 anos de existência, o SUS possibilitou um importante aumento do acesso aos cuidados de saúde para a população brasileira2. Entretanto, pessoas vivendo em comunidades remotas e vulneráveis ainda enfrentam importantes dificuldades de acesso a serviços de saúde. Desigualdades geográficas na distribuição de médicos podem ser encontradas em vários países e regiões3,4. A Organização Mundial da Saúde estima que 50% da população mundial vive em áreas rurais remotas, mas essas áreas são servidas por menos de 25% da força de trabalho médico5. Muitos países têm buscado soluções para ampliar a cobertura da atenção básica em áreas vulneráveis, atraindo profissionais de saúde para estas regiões6-8. Essas estratégias incluem: políticas de regulação, tais como serviço obrigatório; incentivos monetários, tais como bolsas de estudo; e incentivos não monetários, como extensão de visto de permanência para estrangeiros9,10. Apesar da importância dos recursos humanos para o acesso à saúde, e das políticas anteriores do governo brasileiro para enfrentar as desigualdades na distribuição de médicos e o fortalecimento da atenção básica, nenhuma teve a abrangência, magnitude e celeridade do Programa Mais Médicos, inclusive na sua preocupação com a necessidade de mudança da formação médica. Estas transformações geraram profundas discussões no âmbito nacional e internacional sobre as diferentes estratégias que buscam ampliar o acesso a serviços de saúde em áreas vulneráveis, e a reestruturar os sistemas de saúde por meio do fortalecimento da Atenção Básica. Diante desse quadro, este artigo faz uma análise comparativa entre modelos de organização de serviços de três países: Austrália, Estados Unidos da América e Brasil. A motivação maior para abrir o presente debate refere-se à necessidade da Secretaria de Gestão do Trabalho e da Educação na Saúde (SGTES) de, neste momento de um ano de implatação do Mais Médicos, aprender e dialogar com outros países que apresentam modelos distintos de provimento e fixação de médicos em áreas remotas e regiões de maior vulnerabilidade. Assim, nos inspiramos nos debates e apresentações do “Seminário Internacional Processo de Integração, Educação e Trabalho e o Impacto no cuidado: o papel da formação e da educação permanente nas redes da atenção ordenadas pela Atenção Básica”, promovido pela SGTES nos dias 17 e 18 de setembro de 2014, em Brasília. O estudo foi realizado por meio de pesquisa bibliográfica, com revisão da literatura acadêmica no Lilacs, Medline e Embase, bem como foram analisados documentos, relatórios e apresentações produzidas nas línguas inglesa, espanhola e portuguesa.

Austrália A Austrália possui um sistema misto de saúde, com participação pública e privada. Fundado em 1984, o Medicare provê cobertura universal de saúde à população australiana, mediante financiamento público. O Medicare é o principal financiador dos cuidados em atenção básica na Austrália11. Um terço da população australiana vive na zona rural, sendo que 20% está disperso em mais de mil e quinhentas comunidades rurais com menos de cinco mil habitantes12. Muitas dessas comunidades sofrem com a escassez de médicos, sendo a proporção de médicos por mil habitantes de 1,8 para os centros urbanos e de 0,9 para as comunidades rurais10. Como estratégia de retenção e fixação de profissionais de saúde em regiões remotas, o governo australiano implementou uma série de medidas e programas. Entre os programas mais relevantes para esta discussão estão o Overseas Trained Doctors (OTD) e o Rural Clinical Training and Support (RCTS)13. O OTD, regulamentado por meio do “Act 19AB” de 1 de Janeiro de 1997, é um programa de atração de médicos formados no exterior para atuarem em áreas remotas na Austrália. Os profissionais elegíveis para o programa são: médico generalista, médico generalista hospitalar e médico especialista. 624

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O eixo de destaque relaciona-se a médicos generalistas, sendo coordenado pelas Agências de Trabalho Rurais (Agência Nordeste, New South Wales, Queensland, Victoria, Sul da Austrália, Oeste da Austrália e Tasmânia) e pelo Conselho Médico Australiano, conjuntamente com a área de recursos humanos do MEDICARE. Os requerimentos necessários para exercer a medicina na Austrália, para estrangeiros, são: a) aprovação no teste online; b) comprovação de proficiência em língua inglesa; c) avaliação dos critérios curriculares para aceite de participação em universidades estrangeiras previamente aprovadas pelo MEDICARE; d) contrato individual com uma empregadora; e) obtenção do visto temporário de trabalho-457; f) aprovação na entrevista para obtenção do registro MEDICARE; g) pagamento de taxas14. O participante, inicialmente, possui restrições para o exercício laboral, sendo supervisionado por outro médico, e sua licença não permite o exercício irrestrito da profissão, devendo ser alocado em áreas que o governo australiano considera de maior vulnerabilidade por um período de dez anos. Durante esse período os participantes têm possibilidade de aprimoramento técnico por meio de ofertas educacionais e aulas para realização dos exames de revalidação completa do diploma no país. Os benefícios financeiros variam de acordo com a região escolhida pelo candidato, sendo maiores para os locais nos quais existem maiores necessidades15. Faltando três anos para completar vinte anos de programa, pode-se avaliar que a fixação de profissionais médicos na Austrália ainda sofre com a dificuldade de retenção dos participantes em áreas rurais quando termina o período de dez anos de cumprimento do contrato. Esse problema relaciona-se a diversos fatores pessoais, econômicos e geográficos, que caracterizam as áreas de vulnerabilidade do país, assim como ocorre em demais países que estabeleceram políticas de recrutamento de profissionais estrangeiros16. A maioria das escolas médicas australianas recebe fundos do governo por meio do programa Rural Clinical Training and Support (RCTS), o qual prevê o financiamento para o fortalecimento da formação de clínicos nas áreas rurais. O financiamento é direcionado para que as escolas médicas realizem: seleção de alunos oriundos de áreas rurais, provimento de estágios e internato rural para todos os estudantes de medicina, e aperfeiçoamento dos sistemas de apoio para alunos e educadores médicos rurais17. Entre as metas do RCTS estão: que 25% dos estudantes de medicina realizem, no mínimo, um ano de sua formação clínica em uma área rural e que 25% dos estudantes financiados pela Commonwealth sejam oriundos de áreas rurais. Atualmente, 90% das escolas médicas da Austrália participam deste programa. Cabe salientar que o governo australiano tem incentivado que os estudantes possam estudar em campi universitários regionais próximos a sua região de origem13.

Estados Unidos da América O sistema de saúde nos EUA é bastante diferente do que há no Brasil e na Austrália, uma vez que não existe um sistema público de saúde de cobertura universal. A maioria dos estadunidenses obtém cobertura por meio de planos de saúde pagos por seus empregadores. Indivíduos com 65 anos de idade ou mais podem se inscrever no programa Medicare, que é financiado pelo governo. Famílias com baixa renda, crianças, mulheres grávidas e portadores de deficiências são elegíveis para o programa Medicaid, que também é financiado pelo governo. O governo estadunidense também administra o S-Chip, que provê cobertura a crianças cujos pais têm renda baixa, mas não tão baixa para que sejam elegíveis para o Medicaid. Veteranos das Forças Armadas também contam com assistência médica por intermédio de financiamento governamental18. O Affordable Care Act (Obamacare), aprovado em março de 2010, é considerado a maior mudança no sistema de saúde dos EUA desde a fundação do Medicaid e do Medicare em 196519. É uma lei regulatória federal que visa: expandir a cobertura de planos de seguros públicos e privados; controlar os preços dos planos de saúde; garantir, aos assegurados, tratamentos básicos e, até mesmo, internações de doenças graves, tudo isso independente de sexo ou, sobretudo, de condições preexistentes. No nível individual, a implementação é garantida por meio da obrigatoriedade em adquirir um seguro de saúde. No nível estadual, os estados que aderem ao projeto passam a receber mais verbas federais para programas voltados para a saúde pública19. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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Diferente do Brasil e da Austrália, a formação médica nos EUA é oferecida no nível de pósgraduação. Isto significa que o estudante que deseja formar-se médico necessita, primeiro, fazer um curso de graduação ou undergraduate, contemplando os pré-requisitos para acesso a uma escola de medicina, com duração média de quatro anos. Na escola de medicina, os estudantes, agora chamados graduate students, passam dois anos em salas de aulas e laboratório, e outros dois anos conhecendo a profissão de perto, em hospitais, antes de seguirem para a residência médica. No total, são necessários oito anos para formar-se médico nos EUA20,21. A grande maioria das instituições que formam médicos é privada, cobrando anuidades elevadas. Para que seja possível pagar a formação, boa parcela dos estudantes lança mão de linhas de crédito educativo, cujo pagamento, geralmente, se inicia após a formatura. Neste contexto, não é difícil imaginar que aqueles que fazem medicina terminam o curso com uma dívida substancial. De acordo com a Association of American Medical Colleges, calcula-se que os quatro anos de escola médica privada têm um custo médio de 278 mil dólares22,23. Apesar das recentes iniciativas, nos EUA, de maior regulação do estado sobre o sistema de saúde, ainda são poucas as iniciativas para regulação da provisão de profissionais de saúde em regiões remotas e vulneráveis. As principais iniciativas para reduzir as desigualdades de distribuição de médicos nos EUA são por meio do National Health Service Corps (NHSC) e o Conrad 30 Program. Desde 1972, o NHSC oferece bolsas de estudos e programas de pagamento da dívida do financiamento estudantil para profissionais de saúde que estejam dispostos a prestar serviços de saúde de atenção primária em comunidades carentes. Depois da graduação (e da residência para médicos, osteopatas e estudantes de odontologia), o aluno deve se candidatar às vagas pré-aprovadas em áreas carentes24. O candidato que tiver obtido uma bolsa de estudos do NHSC e que escolher uma especialidade que não seja a de médico geral de família e comunidade, ou que não preencha os requisitos de serviço, deverá reembolsar o governo em três vezes o investimento, com juros. No programa de pagamento da dívida estudantil, os estudantes se inscrevem após a graduação, e o NHSC paga até sessenta mil dólares da dívida a cada dois anos. Há, também, a opção de trabalhar em um local aprovado pelo NHSC durante cinco anos, o que dá direito ao estudante de, potencialmente, receber US$ 170 mil em pagamento da dívida estudantil24. É importante frisar que as áreas de carência de profissionais de saúde são mapeadas por meio dos escritórios regionais do NHSC. Por intermédio do Conrad 30 Program, o governo estadunidense permite, a médicos que estejam no país com um visto J-1 (temporário para treinamento), a permanência no país, após a conclusão do programa de intercâmbio, para atuarem em áreas carentes25. Cabe salientar que indivíduos que entram nos EUA com um visto J-1 devem, normalmente, retornar ao seu país de origem e lá residir por, pelo menos, dois anos. Por meio do Conrad 30 Program, o vínculo do médico é com o empregador local, e não com o governo federal. Após o cumprimento das condições contratuais de trabalho por um período mínimo de três anos, os médicos podem se inscrever para um visto de imigrante, ou de residência permanente25. Aproximadamente 25% dos médicos em atividade nos EUA são estrangeiros26.

Brasil O Sistema Único de Saúde (SUS) é formado pelo conjunto de todas as ações e serviços de saúde prestados por órgãos e instituições públicas federais, estaduais e municipais, sendo permitido, à iniciativa privada, participar deste sistema de forma complementar. O SUS foi instituído pela Constituição Federal de 1988, que determina que a saúde é um direito de todos e dever do Estado, sendo um dos maiores sistemas públicos de saúde do mundo. Apesar de o SUS ter possibilitado um importante aumento do acesso aos cuidados de saúde para a população brasileira, pessoas vivendo em comunidades remotas e vulneráveis ainda enfrentam sérias dificuldades de acesso a serviços de saúde resolutivos. A falta de médicos sempre foi um importante agravante deste problema, como fica claro na campanha “Cadê o médico?”, realizada pela Frente Nacional de Prefeitos, durante o Encontro dos Prefeitos, em Brasília, ocorrido em janeiro de 201327. O Programa Mais Médicos foi introduzido no Brasil em julho de 2013, como parte de uma série de medidas para combater as desigualdades de acesso à atenção básica resolutiva28. O programa 626

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foi estruturado em três eixos de ação. O primeiro é o investimento na melhoria da infraestrutura da rede de saúde, particularmente nas unidades básicas de saúde. O segundo é a ampliação e reformas educacionais dos cursos de graduação em medicina e residência médica no país. O terceiro, intitulado Projeto Mais Médicos para o Brasil (PMMB), é o de provisão emergencial de médicos em áreas vulneráveis. Cabe salientar que no Brasil, antes do PMMB, houve várias iniciativas de atração e fixação de profissionais de saúde em regiões remotas, como exemplo: o Programa de Interiorização das Ações de Saúde e Saneamento (PIASS - 1976), o Programa de Interiorização do Sistema Único de Saúde (PISUS - 1993), e o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde (PITS - 2001), e, mais recentemente, o Programa de Valorização dos Profissionais da Atenção Básica (PROVAB)27. Desde 2011, o PROVAB vem recrutando e alocando médicos, enfermeiros e odontólogos para atuarem em áreas vulneráveis. Entretanto, como nos programas anteriores, a participação dos profissionais médicos no PROVAB estava aquém das necessidades locais ou regionais. Entre 2011 e 2013 a participação teve um aumento importante, passando de trezentos e cinquenta para três mil, quinhentos e cinquenta médicos. Cabe mencionar que, em 2013, a contratação deixou de ser feita pelo município e passou a ser feita pelo governo federal; houve um aumento do valor da bolsa e foi ofertada uma pontuação adicional de 10% na nota da prova da residência médica29. Além disso, foi a partir de 2013 que a especialização em Atenção Primária passou a ser obrigatória. Apesar dos programas supracitados terem contribuído para atrair profissionais para áreas remotas, nenhum conseguiu fazê-lo na magnitude necessária para suprir a demanda dos municípios30. Foi apenas por meio do PMMB que o recrutamento e a alocação de médicos teve a dimensão necessária para atender a demanda dos municípios. Em menos de um ano, o PMMB recrutou e alocou 14.462 médicos em 3.785 municípios. A grande inovação do PMMB se refere à estratégia de chamadas internacionais, quando, além dos 1.846 médicos brasileiros, o programa passou a contar com 12.616 médicos estrangeiros de 49 países participando do programa (Figura 1). Dos médicos estrangeiros que atuam no PMMB, 11.429 são médicos cubanos que foram recrutados por meio de uma parceria entre o Ministério da Saúde do Brasil e a Organização Pan-Americana de Saúde e desta última com o Ministerio de Salud Pública de Cuba31.

Figura 1. Países de origem (exercício profissional) dos médicos participantes do Projeto Mais Médicos para o Brasil.

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Municípios e distritos sanitários indígenas que se encaixavam nos seis perfis de vulnerabilidade (Quadro 1) poderiam participar do programa. Como parte do processo de inscrição, os gestores eram solicitados a identificar o número de médicos necessários de acordo com um número máximo baseado na população do município e para os quais eles teriam a capacidade de proporcionar condições adequadas para o exercício das atividades. Estavam elegíveis para participar: médicos brasileiros graduados no Brasil ou no exterior, médicos estrangeiros graduados no Brasil ou no exterior, desde que vindos de países cujo número de médicos per capita fosse acima de 1,8 por mil, que corresponde ao número de médicos per capita no Brasil antes do PMMB32.

Quadro 1. Perfis dos municípios e localidades participando do Projeto Mais Médicos para o Brasil Perfil do município P1 – Áreas referentes aos 40% dos setores censitários com maiores percentuais de população em extrema pobreza das capitais, conforme IBGE. P2 – Áreas referentes aos 40% dos setores censitários com maiores percentuais de população em extrema pobreza dos municípios situados na região metropolitana, conforme IBGE. P3 – Áreas referentes aos 40% dos setores censitários com maiores percentuais de população em extrema pobreza dos municípios que estão entre os G100, municípios com mais de 80.000 habitantes, com os mais baixos níveis de receita pública “per capita” e alta vulnerabilidade social de seus habitantes. P4 – Municípios com 20% ou mais da população vivendo em extrema pobreza, com base nos dados do Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome. P5 – Município que está situado em área de atuação de Distrito Sanitário Especial indígena. P6 – Áreas referentes aos 40% dos setores censitários com os maiores percentuais de população em extrema pobreza dos demais municípios, conforme o IBGE.

Os critérios de alocação incluíram: as preferências dos médicos inscritos, o local de graduação, a idade do candidato, e se os médicos já haviam trabalhado na Estratégia de Saúde da Família, impossibilitando a permanência no mesmo município dos médicos que já estavam atuando na Atenção Básica. Ambos os médicos e gestores municipais de saúde tiveram de confirmar os resultados de alocação. O percentual da população coberta por médicos do PMMB pode ser observado na Figura 2. Mediante esforço conjunto entre o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, para que possam iniciar suas atividades no Brasil, médicos estrangeiros passam por quatro semanas de treinamento intensivo oferecido pelas universidades brasileiras, que aborda: linguagem clínica, os protocolos assistenciais nacionais e o SUS32. Os médicos aprovados recebem um registro provisório para exercício da medicina chamado Registro Único do Ministério da Saúde (RMS). Foi criado um visto especial para médicos participantes do PMMB, denominado VICAM, emitido pelo Ministério das Relações Exteriores. As universidades brasileiras garantem a supervisão médica continuada para os participantes. Todos recebem um computador tablet que é utilizado para acessar cursos a distância oferecidos pela Universidade Aberta do SUS (UNA-SUS)(i). Os médicos que participam do programa devem dedicar 32 horas de sua semana para atividades clínicas e oito horas para estudos teóricos, sendo, posteriormente, submetidos a avaliações. O contrato assinado pelos participantes tem a duração de três anos, podendo ser renovado por três anos adicionais32. 628

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A UNA-SUS é constituída por uma rede de universidades que oferecem materiais educativos e cursos de ensino a distância para os profissionais do SUS por meio de uma plataforma online.

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Figura 2. Distribuição dos médicos do Projeto Mais Médicos para o Brasil e distribuição das faculdades de medicina no Brasil.

Discussão Ao analisarmos o processo nacional e os internacionais de fortalecimento da Atenção Básica e provisão de profissionais médicos em áreas vulneráveis, observamos que, apesar das diferenças de contexto, a problemática tem semelhanças. Estudo recente da Organisation for Economic Cooperation and Development (OCDE) mostrou que, mesmo com o aumento no número total de médicos, a distribuição dos médicos mantém um padrão de grande concentração nas capitais e áreas de escassez nas zonas rurais. Outros dois fenômenos observados são: a feminização e o envelhecimento da força de trabalho médica33. Cada vez mais países buscam medidas para assegurar a universalização da cobertura de saúde, bem como o fortalecimento de um sistema de saúde resolutivo e adequado às necessidades de saúde da população8. A distribuição desigual dos profissionais de saúde, especialmente médicos, representa importante limitante para alcançar estes objetivos. Conforme observamos nos três países analisados, o problema da iniquidade na distribuição de profissionais de saúde é bastante complexo, e uma série de estratégias concomitantes têm sido utilizadas para mitigá-lo5,34. No curto prazo, os três países têm lançado mão do recrutamento de médicos (nacionais e estrangeiros) dentro de modelos que assegurem a atração e a retenção desses profissionais em áreas remotas. O modelo brasileiro e o australiano utilizam combinações de incentivos financeiros e educacionais para isso. Já o modelo estadunidense tem maior foco nos incentivos financeiros e na retenção dos médicos estrangeiros que já estão no país realizando treinamento, por meio da extensão do visto de permanência. Faz-se necessário ressaltar que existem importantes limitações na comparação da atratividade de um país de média renda com países de alta renda. Também é preciso esclarecer as mesmas limitações em relação à possibilidade entre países com propostas políticas extremamente divergentes em relação ao sistema público de saúde. Na Austrália, a remuneração dos médicos participantes do programa Overseas Training Doctors é variável, sendo maior para aqueles atuando em zonas mais remotas. No Brasil, a remuneração dos participantes do PMMB é a mesma, entretanto a ajuda de custo para instalação é maior para os participantes que se deslocarem para zonas mais remotas. Também existe, no país, um sistema de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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pagamento da dívida estudantil universitária que se assemelha ao NHSC estadunidense, no qual o médico que tenha, no mínimo, um ano de trabalho em localidades com carência de médicos poderá requerer o abatimento, ao mês, de 1% do saldo devedor da dívida ao Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior (Fies)35. Apesar de existirem poucas avaliações de programas de provisão de profissionais de saúde em áreas carentes, evidências sugerem uma maior efetividade de programas combinando diferentes incentivos7,8,16. Iniciativas de mais longo prazo incluem modificações na graduação e residência médica, com o intuito de promover a atuação médica em áreas vulneráveis, especialmente, de médicos de família e comunidade. Por ser um dos países que mais sofre com a escassez de médicos em zonas remotas, a Austrália implementou, desde cedo, medidas importantes para sanar este problema mediante seleção de estudantes de áreas rurais e desenvolvimento de estágios e internato em áreas rurais. Mais recentemente, o país também ampliou os campi universitários da saúde em regiões distantes das grandes metrópoles. No Brasil, com a finalidade de ampliar a oferta de vagas, dando prioridade às regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste, consideradas regiões com maior escassez de médicos, o Ministério da Educação, criou, em 2012, um programa voltado à expansão de vagas do ensino médico nas Instituições Federais de Ensino Superior, as IFES, e estabeleceu a meta de criação de 1.615 vagas em cursos de Medicina existentes ou novos cursos de Medicina nas Universidades Federais, durante os anos de 2013 e 2014. Para a criação dos novos cursos, foi proposto um projeto de criação de Residência Médica nos mesmos locais dos novos cursos, como forma de apoio aos cursos36. O governo federal utilizou critérios semelhantes aos da Austrália para selecionar municípios onde poderão ser abertos novos cursos de medicina36. Antes da Lei 12.871 (que instituiu o Programa Mais Médicos), a localização de possíveis novos cursos de medicina era definida sem um direcionamento por parte do Estado brasileiro, de modo que não havia garantias de interiorização dos cursos. Desta forma, o mercado determinava a distribuição de cursos, sendo esse um dos fatores que levou à iniquidade da distribuição de profissionais de saúde no país, mesmo levando em conta que a abertura de novos cursos médicos deveria ser apreciada pelo Conselho Nacional de Saúde37. Como pode ser observado na Figura 2, a maioria dos cursos de graduação em medicina estão localizados nas capitais e grandes cidades, sendo que existe forte correlação entre o local de formação e o local de estabelecimento profissional dos médicos38. Em 2013, o Conselho Nacional de Educação iniciou esforço conjunto com associações de ensino, o Conselho Nacional de Saúde, o Ministério da Saúde e outros, para a revisão das diretrizes curriculares nacionais dos cursos de medicina, que, entre muitas medidas, assegura que 30% das atividades do internato sejam desenvolvidas em serviços de atenção primária, bem como de urgência/emergência3. Os Ministérios da Saúde e Educação têm atuado conjuntamente para a ampliação das vagas de residência médica, especialmente em medicina geral de família e comunidade. As esferas federais, estaduais e municipais deverão se articular de forma a viabilizar que os contratos organizativos de ação pública de ensino em saúde (COAPES) garantam ambiente adequado para a integração ensino-serviço. A telesaúde tem sido cada vez mais importante na ampliação da atenção à saúde em áreas vulneráveis. São muitos os desafios para que ações a médio e longo prazo possam substituir medidas de curto prazo. O fortalecimento do sistema de saúde depende da atuação integrada de todos os profissionais de saúde, depende de processos de educação permanente na definição e no desenvolvimento de competências gerais e especificas voltadas à produção da saúde e à integralidade do cuidado. Estas definições devem ancorar as Diretrizes Curriculares Nacionais e a construção do sistema unificado de avaliação da graduação, aproximando instituições formadoras do sistema de saúde. As mudanças quantitativas e qualitativas na formação médica buscam garantir não apenas a universalidade, mas, também, a integralidade e sustentabilidade do Sistema Único de Saúde. O êxito dessas iniciativas dependerá da continuidade da articulação interfederativa, de políticas regulatórias de estado, bem como, do constante monitoramento e aprimoramento do programa. A potência do Mais Médicos, entre outras, relaciona-se a uma proposta de mudança que não tem medo de procurar novos caminhos, que dialoga com experiências nacionais e internacionais e com todos os sujeitos envolvidos na ampliação do acesso e da melhoria da qualidade da atenção básica e do SUS. 630

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Colaboradores Os autores participaram, igualmente, de todas as etapas de elaboração do artigo. Agradecimentos Agradecemos a todos os trabalhadores da SGTES, que vêm contribuindo, de forma crítica e criativa, na produção de práticas inovadoras na gestão do trabalho e da educação na saúde, e que vivem esse momento único de implantação do Mais Médicos. Aos parceiros do MEC: SESU, INEP e SERES, por todo o trabalho de cooperação no compromisso público pelo fortalecimento da formação na saúde integrada às diretrizes do SUS. Um agradecimento especial é devido à contribuição de Alexandre Rocha Santos Padilha e Mozart Julio Tabosa Sales. Referências 1. Crisp N, Chen L. Global supply of health professionals. N Engl J Med. 2013; 370(23): 950-7. 2. Paim J, Travassos C, Almeida C, Bahia L, Macinko J. The Brazilian health system: history, advances, and challenges. Lancet 2011; 377(9779):1778-97. 3. Póvoa L, Andrade MV. Distribuição geográfica dos médicos no Brasil: uma análise a partir de um modelo de escolha locacional. Cad Saude Publica. 2006; 22(8):1555-64. 4. Grobler L, Marais B, Mabunda SA, Marindi PN, Reuter H, Volmink J. Interventions for increasing the proportion of health professionals practising in rural and other underserved areas. Cochrane Database Syst Rev. 2009; 21(1):1-25. CD005314. 5. Araújo E, Maeda A. How to recruit and retain health workers in rural and remote areas in developing countries. In: Bank W, organizador. Relatório. Washington (DC): World Bank; 2013 [acesso 2014 Set 20]. Disponível em: https://openknowledge.worldbank.org/ bitstream/handle/10986/16104/78506.pdf?sequence=1 6. Chopra M, Munro S, Lavis JN, Vist G, Bennett S. Effects of policy options for human resources for health: an analysis of systematic reviews. Lancet. 2008, 371(9613):668-74. 7. Buykx P, Humphreys J, Wakerman J, Pashen D. Systematic review of effective retention incentives for health workers in rural and remote areas: towards evidence-based policy. Aust J Rural Health. 2010; 18(3):102-9. 8. Dolea C, Stormont L, Braichet J. Evaluated strategies to increase attraction and retention of health workers in remote and rural areas. Bull World Health Organ. 2010; 88(5):379-85. 9. Lehmann U, Dieleman M, Martineau T. Staffing remote rural areas in middle - and lowincome countries: a literature review of attraction and retention. BMC Health Serv Res. 2008; 8:19. 10. Viscomi M, Larkins S, Gupta T. Recruitment and retention of general practitioners in rural Canada and Australia: a review of the literature. Can J Rural Med. 2013; 18(1):13-23. 11. Wiese M, Jolley G, Baum F, Freeman T, Kidd M. Australia’s systems of primary healthcare - the need for improved coordination and implications for Medicare Locals. Aust Fam Physician. 2011; 40(12):995-9. 12. Australian Institute of Health and Welfare. Rural, regional and remote health: indicators of health status and determinants of health [Internet]. Canberra: Australian Institute of Health and Welfare; 2008 [acesso 2014 Set 20] (Rural Health Series; 9). Disponível em: http://www.aihw.gov.au/publication-detail/?id=6442468076

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38. Seixas PH, Corrêa NA, Moraes JC. MigraMed - Migração Médica no Brasil: tendências e motivações [Internet]. São Paulo: Observatório de Recursos Humanos em Saúde de São Paulo; 2014 [acesso 2014 Set 20]. Disponível em: http://www.observatoriorh.org/sites/ default/files/webfiles/fulltext/iiienc_migra_uru_dic10/migracao_medica_no_brasil_p. seixas.pdf 39. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Resolução n. 3, de 20 de junho de 2014. Institui Diretrizes Curriculares Nacionais do Curso de Graduação em Medicina e dá outras providências [Internet]. Brasília (DF): 2014 [acesso 2014 Set 20]. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index. jsp?data=23/06/2014&jornal=1&pagina=8&totalArquivos=64

Oliveira FP, Vanni T, Pinto HA, Santos JTR, Figueiredo AM, Araújo SQ, Matos MFM, Cyrino EG. Más Médicos: un programa brasileño en una perspectiva internacional. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):623-34. La escasez de profesionales de la salud en áreas remotas y vulnerables es un importante obstáculo para la universalización del acceso a la salud en diversos países. Este artículo examina las políticas de provisión de profesionales de salud en Australia, Estados Unidos de América y Brasil. A pesar del éxito parcial de iniciativas anteriores, fue solamente con el Programa Más Médicos que la provisión de médicos en áreas vulnerables alcanzó la magnitud y la respuesta en tiempo adecuado para atender la demanda de los municipios brasileños. En el país están en curso cambios cuantitativos y cualitativos en la formación médica cuyo objetivo es garantizar no solo la universalidad sino también la integralidad y sostenibilidad del Sistema Único de Salud. El éxito de estas iniciativas dependerá de la continuidad de la articulación inter-federativa, de políticas regulatorias de estado, así como del constante monitoreo y perfeccionamiento del programa.

Palabras clave: Más Médicos. Atención Básica de la Salud. Brasil. Australia. Estados Unidos de América. Programas gubernamentales. Recebido em 03/10/14. Aprovado em 09/10/14.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0225

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El Programa Más Médicos: un análisis complementario desde la perspectiva de la salud internacional O Programa Mais Médicos: uma análise complementar sobre a perspectiva da saúde internacional The More Doctors Program: a further analysis from the perspective of international health

Mario Roberto Rovere(a)

El artículo constituye un importante aporte para comprender y para poner en valor un programa de gran escala, tomando “el toro por las astas” tal como el Sistema Brasileño de Salud (SUS) y el movimiento sanitario brasilero nos tiene acostumbrados desde hace mas de treinta años. La ”triangulación” propuesta en el artículo entre Brasil, Australia y EE UU ayuda a comprender las dificultades de garantizar la cobertura territorial de la medicina y la necesidad relativamente universal de generar mecanismos contrarios a la “tendencia espontanea” del empleo médico en países capitalistas. Mis comentarios además de valorar este trabajo de objetivación y de triangulación sobre políticas activas de Recursos Humanos intenta ofrecer un análisis complementario también desde la perspectiva de la salud internacional. La migración profesional y/o el drenaje de cerebros es un fenómeno mundial de larga data pero que se aceleró desde los años de 1990 bajo el impulso de la denominada “globalización” que - a diferencia de las migraciones del siglo XIX que requerían mano de obra masculina para las manufacturas- se caracterizó por “importar” mano de obra con predominio femenino para el área de servicios. Las evidencias indican que las decisiones profesionales de los médicos resultan de una lógica que podríamos definir como “market oriented” lo que explica que el flujo internacional migratorio ocurra fundamentalmente “de sur a norte” de los países periféricos a los centrales, pero también al interior de nuestros países desde las zonas rurales o las pequeñas ciudades hacia las capitales y las grandes ciudades. Un fenómeno que se verifica en los porcentajes de médicos extranjeros en EUA y en Australia y que resulta en proporciones aun mayores en varios países europeos como Gran Bretaña o España. Se afirma incluso que el estado de bienestar europeo solo se puede sostener por el peso relativo de los extranjeros en su fuerza laboral. Usamos intencionadamente el término “market oriented” porque su contrapartida son las decisiones “policy oriented”, es decir aquellas vinculadas con las convicciones, con la ideología, con las políticas públicas. Resulta imprescindible en ese sentido constatar que los únicos médicos que en gran escala migran de “Norte a Sur” son los médicos cubanos. Un fenómeno que hasta incluso los EE UU COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Ciencias de la Salud, Universidad Nacional de La Matanza. Buenos Aires, Argentina. roveremarior@ gmail.com

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han reconocido como consecuencia de la ayuda internacional cubana a los países africanos afectados por el Ébola. Resulta en consecuencia fundamental incluir en este análisis la pregunta sobre porque nuestros países latinoamericanos con innumerables e importantes escuelas de medicina en prestigiosas universidades públicas, - es decir financiadas por todos los ciudadanos de un país, incluso por aquellos que nunca podrán asistir a ellas-, formamos fundamentalmente médicos “market oriented”. No se trata tan solo de una tendencia espontanea o de fallas en el mercado de trabajo. La estrategia principal de las profesiones liberales ha sido y es la de mantenerse en una fuerte sobre demanda, lo que requiere un férreo control de la “producción de profesionales” lo que en muchos países se verifica al ver que universidades públicas masivas tienen sistemas restrictivos “especiales” en sus carreras de medicina. Colocarse en sub-oferta no se explica solo por la búsqueda de ventajas económicas sino también para desplegar estrategias políticas orientadas a limitar las posibilidades de sistemas públicos extensos, como el propio SUS. Este fenómeno se ha complejizado porque en algunos países como la Argentina se ha liberalizado la “producción de médicos” pero los mecanismos restrictivos se han desplazado al control de las especialidades, cuyas “sociedades científicas” han devenido en corporaciones dedicadas predominantemente a la regulación del ingreso a la especialidad. La principal diferencia en perspectiva internacional del “Mais Médicos” comparado con Australia, EE UU y otros países centrales es ética ya que, no solo ha pactado con los países “proveedores” de profesionales - lo que en el caso de Argentina me consta personalmente - sino que, además ha definido un conjunto de países que por mostrar proporciones de médicos por habitante iguales o inferiores al Brasil no son elegibles para el programa. De los otros “casos” internacionales también se pueden aprovechar elementos que pueden complementar las políticas públicas sobre empleo médico. La experiencia de Australia y de otros países involucrando a las universidades en sistemas de ingresos preferenciales y subsedes geográficamente desconcentradas, lo que en términos internacionales se conoce como “pipeline”, permitiría que el mapa de alcance real de las universidades públicas no mostrara el contraste que muestra el mapa de la Figura 2 para Brasil pero que se repetiría en la mayoría de los países latinoamericanos. Del caso norteamericano queda la inquietud sobre el sistema de crédito educativo y la compra de deuda por los programas de radicación en zonas más desprovistas de profesionales. Aun conociendo el rechazo generalizado en América latina a estas estrategias persiste la pregunta “¿Hasta qué punto las universidades y los sistemas de formación de posgrado de financiamiento público pueden continuar favoreciendo con sus sistemas de ingreso la formación de jóvenes de familias de alta renta con altas expectativas de migración, de sobre-especialización y de empleo en el sector privado?”. La experiencia venezolana resulta por demás elocuente. Cuenta con uno de los sistemas de educación médica en universidades públicas más extenso, sin embargo el gobierno debe apelar a una Escuela de Medicina paralela para contar con fuerza laboral para sus políticas públicas. La experiencia argentina es menos conocida pero aun contando con universidades públicas gratuitas, los jóvenes de baja renta y de regiones geográficas apartadas acceden a la educación médica a través de la Escuela Latinoamericana de Educación Médica y luego resultan los principales o los únicos candidatos a radicarse y/o a ingresar en el sistema de residencias de medicina general en el interior del país. En todos los casos no se trata de diferencias o de discusiones ideológicas, se trata de saber cómo y cuando fue que las universidades públicas dejamos de cumplir nuestros mandatos institucionales y sobre todo cual será el aporte que podremos hacer en el futuro para que un programa como el Mais Médicos no sea necesario, especialmente en una Región en donde se acepta que la salud es un derecho y que el Estado debe garantizar ese derecho.

Recebido em 23/03/15. Aprovado em 23/03/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0245

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Programa Mais Médicos: em busca de respostas satisfatórias More Doctors Program: in search of satisfying answers Programa Más Médicos: en busca de respuestas satisfactorias

Mário Scheffer(a)

O artigo em debate, ao apresentar os sistemas de saúde australiano e norteamericano, em contraste com o Brasil, traz um panorama sobre o difícil desafio, compartilhado por diversos países, de enfrentar a má distribuição ou a falta localizada de médicos. No sentido de ampliar o debate e evidenciar sua complexidade, tomam-se por base duas extensas revisões publicadas1,2 que recensearam medidas destinadas a garantir a presença de médicos em áreas desassistidas, em interiores e subúrbios. Esses estudos sublinham que as respostas não são únicas e nem mesmo duráveis ou satisfatórias. Alguns fatores-chave, determinantes da escolha, pelo médico, do lugar de seu exercício profissional, têm sistematicamente influenciado a recorrência do problema. Por exemplo, sabe-se que a ausência de atratividade de regiões com piores indicadores sociais e as condições inadequadas de trabalho, com cargas horárias excessivas e má remuneração, dificultam a fixação de médicos. A renda elevada pode não ser uma compensação quando médicos são submetidos ao isolamento profissional e à baixa qualidade de vida deles próprios e de seus familiares. Não há que contar com o assistencialismo de base filantrópica individual e pessoal de médicos decididos a cobrirem populações carentes. O altruísmo que caracterizou o início da profissão médica moderna, há muito foi substituído pela ideologia profissional de valorização das ultraespecialidades, dos altos rendimentos pessoais e da transformação dos próprios consultórios em microempresa inserida num competitivo mercado de negócios3. Nesse sentido, um dos apelos possíveis está locado nas políticas públicas e gestões macroeconômicas, que produzem desenvolvimento regional e ajudam a corrigir alguns aspectos geradores da má distribuição de efetivos médicos. Além dos programas similares ao brasileiro, os sistemas nacionais de saúde têm buscado várias outras soluções1, que podem ser agrupadas em três tipos de estratégias, independente do grau de sucesso de cada qual. O primeiro grupo de medidas tem foco nos futuros médicos, aumentando, desde a graduação, o número e a qualificação dos dispostos a trabalhar nas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Medicina Preventiva, Faculdade de Medicina, Universidade de São Paulo. Av. Dr. Arnaldo, 455, 2º andar, sala 2166, Cerqueira César. São Paulo, SP, Brasil. 01246-903. mscheffer@usp.br

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regiões menos atrativas; o segundo, dirigido aos médicos já em atividade, inclui incentivos financeiros e regulatórios para deslocar os profissionais que vivem concentrados em determinadas regiões e atividades; o terceiro prevê alternativas que envolvam outros profissionais de saúde combinadas com tecnologias de telemedicina e assistência à distância. As intervenções diversas adotadas por países2 tentam agir sobre diferentes momentos do percurso profissional: na formação inicial, no recrutamento ou instalação, na fixação ou manutenção do médico no local do trabalho. Há limites claros de, pelo menos, três medidas mobilizadas: 1) o aumento do número global de médicos é ineficaz, pois gera saturação da oferta e concorrência exacerbada em áreas onde já existe alta densidade de médicos; 2) os incrementos financeiros são insuficientes, pois tal política tem custo elevado, estimula a permanência provisória e não fixa médicos em médio e longo prazo. Da mesma forma, assistiram impacto relativo, não sustentável, países que promoveram ajuda monetária, bolsas, bônus, condições compensatórias e preferenciais em especializações e residências médicas, como contrapartida à instalação de jovens médicos em regiões deficitárias; 3) as políticas de recrutamento de estrangeiros, baseadas na melhor remuneração e no aperfeiçoamento profissional como fatores de atração, ainda que permitam o ajustamento emergencial da oferta em áreas remotas, não podem ser vistas como panaceia, pois a disponibilidade internacional de migração de médicos atingiu um certo limite4. A literatura menciona resultados mais favoráveis às iniciativas que visam modificar a formação inicial, capazes de conduzir os estudantes a se instalarem, posteriormente, nos locais remotos, e de adaptar os conteúdos da graduação à prática em atenção primária à saúde. No Brasil, a dosagem e a combinação de possíveis medidas devem considerar cenário mais adverso que outros países, pois, em nosso caso, às desigualdades regionais de distribuição de médicos somam-se a cristalização do subfinanciamento do Sistema Único de Saúde e a adoção de políticas que promovem o acirramento da privatização da saúde, subtraindo médicos e serviços, drenando recursos humanos e financeiros do sistema público5. Uma contribuição do artigo em debate é a apresentação dos motivadores e critérios utilizados para a decisão política: de alocação de médicos brasileiros e estrangeiros em municípios selecionados, de expansão da oferta de cursos de medicina e vagas de Residência Médica, e de mudanças curriculares dos cursos de graduação, que são os constituintes do Programa Mais Médicos. O manuscrito resgata iniciativas governamentais já testadas no Brasil desde os anos 1990, todas elas de curto alcance e baixo impacto, para, em seguida, deter-se na descrição do Programa Mais Médicos, considerado, pelos autores, medida mais abrangente “para combater as desigualdades de acesso à atenção básica resolutiva”. Se, talvez, o programa seja mesmo abrangente no sentido da quantidade de médicos alocados – o que poderia ser mais bem qualificado por pesquisas de avaliação que evidenciem o impacto sobre as condições de saúde da população assistida –, pode-se indagar sobre sua durabilidade. Para que o debate resulte em proposições que aprimorem a política pública, impressões entusiasmadas devem ser ponderadas com possíveis fragilidades. Ao fixar médicos, por meio de provimento emergencial, o projeto ampliou a assistência na atenção básica em regiões carentes desses profissionais6, além de ter possibilitado, aos médicos brasileiros, intercambiarem experiências com médicos estrangeiros7. Eis aqui, sem dúvida, aspectos positivos. Entretanto, foram levantadas inadequações8 pontuais: na execução das atividades de supervisão e tutoria, no acolhimento e na capacitação dos profissionais, na decisão de gestores locais em substituir médicos contratados por intercambistas, nas punições a médicos cubanos que mantêm seus familiares no Brasil. E há também preocupações quanto à sustentabilidade do projeto em si, após os seis anos da prorrogação permitida em lei, considerando o modelo paliativo baseado em bolsas de especialização, com componente assistencial mediante integração ensino-serviço, e sua inexequibilidade de longo prazo, decorrente do formato atual fortemente dependente dos acordos de cooperação entre Brasil e Cuba intermediados pela Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS).

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Para pesquisadores que são, eles próprios, responsáveis pela condução e execução de um dado programa analisado, é compreensível a exaltação das positividades e das qualidades diferenciais, em comparação com outras políticas já experimentadas. Mas estudos e pesquisas são orientados por outra direção: todo pesquisador examina a questão por diversos ângulos e quer, pela crítica ao não alcançado, isto é, pelas negatividades, chegar a melhorias de outras mais positividades. No caso, para além do adágio “é difícil ser juiz e parte”, o posicionamento epistemológico equilibrado do pesquisador em relação ao seu objeto, elucidaria a necessidade de distanciamento ou, mesmo, a explicitação das escolhas de abordagem definidas pela proximidade. Cabe aos estudos sociais e políticos partirem do apontamento de problemas detectados nas realidades vividas, para alcançarem, pela reflexão crítica, ações mais efetivas. Nesse sentido, deve-se repensar a abrangência e a magnitude da atual política brasileira de alocação de médicos em regiões vulneráveis. E se, de fato, a proposta vigente foi célere, talvez essa rapidez corresponda exatamente ao seu caráter emergencial. Caberia, então, ao temporário como solução, cambiar-se em políticas permanentes. A meta há de ser mesmo ‘procurar novos caminhos’, conciliando a governabilidade do momento com o desenvolvimento do estado democrático e a promoção do direito universal à saúde. Para os gestores públicos, ser governo e, ao mesmo tempo, homens de estado tem sido um grande desafio contemporâneo.

Referências 1. Ono T, Schoenstein M, Buchan J. Geographic Imbalances in Doctor Supply and Policy Responses. OECD Health Work Papers. 2014; 69:1-66. 2. Bourgueil Y, Mousquès J, Tajahmadi A. Comment améliorer la répartition géographique des professionnels de santé?: les enseignements de la littérature internationale et des mesures adoptées en France [Internet] [acesso 2015 Abr 23]. Rapport n° 534 (biblio n° 1635). Paris: Institut de recherche et documentation en économie de la santé. 2006. Disponível em: http://www.irdes.fr/Publications/Rapports2006/rap1635.pdf 3. Schraiber LB. O médico e seu trabalho: limites da liberdade. São Paulo: Hucitec; 1993. 4. OECD Health Policy Studies. The looming crisis in the health workforce: how can OECD countries respond? [Internet] [acesso 2015 Abr 23]. OECD; 2008. Disponível em: http:// www.who.int/hrh/migration/looming_crisis_health_workforce.pdf 5. Marten R, McIntyre D, Travassos C, Shishkin S, Longde W, Reddy S, et al. An assessment of progress towards universal health coverage in Brazil, Russia, India, China, and South Africa (BRICS). The Lancet. 2014; 384(9960):2164-71.

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6. Organização Pan-Americana da Saúde. Nota da OPAS/OMS no Brasil sobre o Projeto Mais Médicos [Internet]. 2015 [acesso 2015 Abr 23]. Disponível em: http://www.paho. org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=4798:nota-da-opasomsno-brasil-projeto-mais-medicos&catid=1274:programa-especial-mais-medicosnoticias&Itemid=827 7. Machado MH, Campos F, Lima N. Em defesa do Mais Médicos. Valor Econ. 28 Jan 2015; Opinião. 8. Tribunal de Contas da União. Relatório de Auditoria do Programa Mais Médicos [Internet]. 2015 [acesso 2015 Mar 20]. Disponível em: http://portal2.tcu.gov.br/portal/ page/portal/TCU/imprensa/noticias/noticias_arquivos/005.391-2014-8%20Mais%20 M%C3%A9dicos.pdf

Recebido em 30/03/15. Aprovado em 31/03/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0286

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Mais médicos e a construção de uma política de pessoal para a Atenção Básica no Sistema Único de Saúde (SUS) More doctors and the built of a personnel policy for the Primary Care in the Brazilian National Health System (SUS) Más médicos y la construcción de una política de personal para la Atención Primaria en el Sistema Brasileño de Salud (SUS)

Gastão Wagner de Sousa Campos(a)

O Programa Mais Médicos trouxe importante benefício imediato a milhões de brasileiros ao lhes ampliar o acesso e garantir o direito à saúde. O Mais Médicos, graças ao sistema de formação e de supervisão de equipes da Saúde de Família, também estimulou a aproximação entre as universidades e o SUS, com ganhos para os dois lados desta cooperação. Por isto, sou seu defensor. Entretanto, gostaria de apontar três estratégias para avanço e consolidação da Atenção Básica no SUS, que necessariamente implicarão mudanças radicais no Mais Médicos. Estratégias estas não aventadas pelos autores do artigo “Mais Médicos: um programa brasileiro em uma perspectiva internacional”. A primeira estratégia se refere à necessidade de uma ampla reforma do Estado brasileiro, de uma radical reforma da gestão pública, particularmente na saúde. O Programa Mais Médicos é uma evidência clara da impossibilidade de os municípios lograrem implementar e gerenciar redes de atenção básica com qualidade, sustentabilidade e cobertura para 80% da população brasileira. Sem a interferência direta do Ministério da Saúde, nunca se teriam acrescido 14.462 médicos ao SUS em pouco mais de um ano. Municípios não têm dado conta de instituir uma política de pessoal que assegure qualidade e estabilidade ao SUS. Depois de vinte anos de funcionamento do SUS, podemos afirmar, com segurança, que a concepção de que o provimento de pessoal para o SUS dependeria, sobretudo, dos municípios e dos estados fracassou. A cronicidade do descuido com os profissionais vem comprometendo a legitimidade do SUS junto à população. No atual modelo de gestão, a responsabilidade sobre este fracasso fica diluída. O grau de fragmentação do SUS tornou-se disfuncional. A persistência da epidemia de dengue é outro sintoma negativo de nosso precário modelo de funcionamento. Necessitamos unificar e integrar o sistema público mediante a implementação de um organismo público interfederativo, organizado em duzentas e poucas regiões de saúde e constituído por todos os municípios, estados e pela União. Defendo a criação do SUS/Brasil, uma autarquia com gestão tripartite e com controle social: cogestão do sistema por conselhos com maioria de usuários e participação de trabalhadores de saúde, além dos gestores. Esta autarquia teria, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas. Rua Tessália Vieira Camargo, 126. Campinas, SP, Brasil. 13083-887 gastaowagner@ mpc.com.br

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ainda, a vantagem de proteger o SUS do patrimonialismo, do clientelismo e da descontinuidade de políticas e de programas dos governantes da União, dos estados e dos municípios. Esta consideração reforça a necessidade de maior participação da União e dos estados tanto no financiamento quanto na gestão do SUS. A política, a formação e a gestão de pessoal não poderão continuar a cargo de municípios e dos estados. A baixa efetividade da gestão de pessoal do SUS é o principal fator a dificultar recrutamento e qualificação do trabalho em saúde no Brasil. A segunda estratégia se refere à constituição de Políticas de Pessoal condizentes com a complexidade das necessidades de saúde dos brasileiros. O Mais Médico é um programa emergencial e complementar. Tem duração prevista de três anos, e deverá ser prorrogada sua vigência, acredito. Defendo que a autarquia SUS/Brasil crie carreiras, de âmbito estadual ou nacional, por esferas organizativas do SUS: carreira para Atenção Básica; para hospitais, urgência e média complexidade; para Vigilância à Saúde; e para Apoio Administrativo e Financeiro, que assegurem sustentabilidade aos programas do SUS. Todos os profissionais atualmente trabalhando no SUS poderiam optar por passarem para essas carreiras ou permanecerem em seus postos em serviços dos municípios, estados, da União e de Organizações Sociais, submetendo-se, contudo, às normas de gestão do SUS/Brasil. Com a constituição deste tipo de política, a capacidade de recrutamento, de formação e de gestão de pessoal melhoria bastante. Programas ao estilo do Mais Médicos, bem como estágios obrigatórios na Atenção Básica à Saúde e em regiões com dificuldade de fixação de pessoal, teriam caráter complementar às contratações por concurso público previstas nas carreiras acima citadas. Por último, acatando o mote dos autores por “uma perspectiva internacional”, gostaria de mencionar o relevante tema do direito ao trabalho. A globalização tem assegurado livre trânsito ao capital e a bens e serviços mediante normas liberais de regulação do mercado. Entretanto, permanecem restrições medievais à circulação da ‘mão de obra`, das pessoas. A luta pelos direitos sociais depende, cada vez mais, da defesa de direitos da população trabalhadora. A exploração de trabalhadores na Ásia, de migrantes, prejudica interesses e direitos de trabalhadores europeus ou latino-americanos. Neste sentido, considero injusto o acordo de trabalho entre Ministérios da Saúde, OPAS, governo de Cuba e médicas e médicos cubanos. A justificativa de que isto seria problema de ordem interna a Cuba, não me convence. A totalidade do valor da bolsa deveria ser pago aos profissionais cubanos, e o governo, com base em leis de recolhimento de impostos e de taxas, poderia cobrar-lhes impostos. O pagamento direto ao Estado cubano, por parte do Estado brasileiro, somente se justificaria por reconhecimento do gasto com a formação desses profissionais, o que poderia estar disposto no acordo e ser feito à parte do valor da bolsa. Outro aspecto que me incomoda são as restrições ao livre trânsito dos familiares das médicas e dos médicos em serviço no Brasil. Trata-se de uma flagrante restrição ao direito de ir e vir, de eleger um local para viver. Parece-me que estamos diante de um patrão tirânico: o governo cubano. Quando o Brasil não se opõe a este tipo de controle rígido, estamos, de fato, nos aproveitando da opressão aos profissionais cubanos para diminuir seu poder de barganha com o contratante. Estas críticas não invalidam o Programa Mais Médicos; os benefícios ao SUS e à população falam por si mesmos. Estas críticas se dirigem ao conformismo e à inércia de nossos governantes, do parlamento e de parte da sociedade diante de problemas estruturais e crônicos das políticas públicas e de saúde no Brasil.

Recebido em 13/04/15. Aprovado em 15/04/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0288

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Réplica Reply Respuesta

As observações dos debatedores se somam ao esforço empreendido por este grupo de autores implicados com a crítica e aprimoramento da política em análise, esforço do qual faz parte tanto o seminário internacional que motivou o artigo quanto o próprio. Em linhas gerais, todos os debatedores reconheceram as questões sociais que justificaram a criação do Programa Mais Médicos (PMM), notadamente a falta e a má distribuição de médicos e a inadequada formação desses profissionais (qualitativamente e quantitativamente) para as necessidades do Sistema Único de Saúde (SUS). Entendem o PMM como importante para enfrentar estas questões e analisam efeitos positivos do mesmo. Concordando com a maioria das observações, dado o espaço da réplica, focaremos nas observações mais críticas. Em primeiro lugar, é necessário compreender contextualmente e globalmente o PMM. Ele é parte de um momento de priorização da Atenção Básica (AB) que, nos últimos quatro anos, teve aumento expressivo do financiamento (o orçamento federal ampliou-se em mais de 100%¹), inédito investimento de 5,6 bilhões em estrutura e ampliação e diversificação das modalidades de equipes multiprofissionais; contudo, a falta e má distribuição de médicos condicionou a expansão do acesso com qualidade a um contingente importante da população². De outro lado, é necessário perceber o PMM como um conjunto articulado de ações de curto, médio e longo prazo. O Provimento Emergencial já garantiu a cobertura de cinquenta milhões de brasileiros e chegará a 63 milhões ainda em 2015³. Diferente de 2013 e 2014, quando os médicos com registro no Brasil ocuparam aproximadamente 10% das vagas, em 2015 ocuparam 92% das novas vagas, reduzindo consideravelmente a necessidade de médicos estrangeiros para os próximos anos. As principais dificuldades apontadas pelo Tribunal de Contas da União, decorrentes de avaliação realizada quando da implantação do programa4 já foram atualmente superadas5, com destaque para: a ampliação e qualificação da supervisão, que recebeu nota 9,3 (em escala de zero a dez) dos médicos brasileiros3; e a constatação do importante aumento do número de médicos, equipes, cobertura e consultas na AB5. Outro destaque é que a Lei 12.8716 não prevê data para o fim do programa, e sim determina que a autorização concedida a cada profissional para o exercício da medicina sem registro no Brasil seja de três anos (prorrogável por mais três), tempo maior que o tempo médio de permanência dos médicos nas equipes de saúde da família no período anterior ao programa7. Esclarecido isso, é possível que, a exemplo dos EUA e Austrália, o PMM possa seguir por anos como estratégia de provimento, a cada ano com mais brasileiros e mais dirigido às áreas que, mesmo com as demais ações do programa, sigam com dificuldade de atrair médicos. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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A meta fixada pelo programa deve atingir 2,7 médicos/mil habitantes em 2026, por meio da expansão de vagas de graduação em medicina, em instituições públicas e privadas, de modo que o país saia da insuficiente oferta de 0,8 vagas por dez mil habitantes e chegue a 1,34 já em 2018: com menos de dois anos de PMM já foram autorizadas 40% do total de vagas previstas; o interior passou a ter mais vagas que as capitais e as regiões norte e nordeste, com as autorizações em curso, igualar-se-ão proporcionalmente à região sudeste. Na perspectiva apontada por Rovere8, o PMM reorientou a legislação de abertura de escolas de uma lógica ” “orientada pelo mercado” para uma lógica “orientada pela política em que a variável mais importante passa a ser a necessidade social da região e a qualidade. Ampliou-se o acesso geográfico e também social devido à expansão de vagas públicas, potencializada pela lei das cotas, e a de vagas privadas, combinadas com o Prouni e o FIES, inclusos nas contrapartidas exigidas às novas escolas. As novas diretrizes curriculares, a avaliação bianual de progresso e o Contrato Organizativo de Ação Pública de Ensino Saúde são instrumentos dotados ao SUS pela lei para, junto com o MEC, dar passos importantes na qualidade dessas escolas, na proximidade da formação com o modelo de atenção e serviços do SUS, e com as necessidades mais relevantes da população, para a superação da orientação “pró-mercado” criticada por Rovere8 e Scheffer9. Vale notar que a Lei prevê instrumentos no mesmo sentido de uma reorientação e regulação estatal da formação de especialistas. A determinação da universalização da residência médica até 2018, a definição de uma especialidade de acesso – a medicina geral de família e comunidade – e a obrigação de que a mesma aconteça nos serviços do SUS projetam mais de 16,5 mil médicos residentes na AB do SUS em 2019 e um papel progressivamente importante dessa dimensão do programa. Visto de uma perspectiva contextual e global, o PMM não é um programa provisório: trata-se de uma política definida em Lei, com apoio à adesão crescente que almeja profundo impacto tanto na formação quanto na atuação médica no Brasil dos próximos anos. Com este olhar, muitas das sugestões feitas pelos debatedores devem se tornar tarefas agregadas a dimensões do PMM em busca de seu aperfeiçoamento. Por fim, cabem algumas observações Os desafios apontados por Gastão10 sobre as dificuldades da municipalização da gestão do trabalho no SUS e a importância de avançar para modelagens regionais e interfederativas do mesmo é instigante, e exigiria de nós maior espaço para fazer o bom debate que nos suscita. O debate da cooperação Brasil-OPAS-Cuba também exigiria mais linhas do que dispomos aqui, mas ofertamos quatro considerações: a cooperação é e deve ser realizada exatamente nos termos previstos na Lei nº 12.781; é a mesma lei que garante, aos familiares de médicos cubanos do programa, os mesmos direitos no Brasil que os familiares de médicos de qualquer outra nacionalidade; o modo de relação que Cuba estabelece com a OPAS se assemelha ao estabelecido por aquele país com mais de sessenta outros em todos os continentes; é importante notar que o médico cubano é um funcionário de carreira em seu país, e que a bolsa recebida por ele é apenas um dos benefícios de que goza como funcionário de carreira em missão internacional. Concluímos alertando que, tanto a sociologia na virada do século passado11 quanto a saúde coletiva, excetuando certa versão positivista, desmontam a ilusão de separação/isenção do sujeito que pesquisa com relação ao objeto social que analisa: no estudo de uma política como o PMM, médico algum, docente de escola médica, gestor e mesmo usuário pode se declarar não afetado pelo tema, o que interferiria em sua suposta “neutralidade”. Concordamos com a perspectiva de Passos e Barros12 e Merhy13, para os quais enriquece a pesquisa quando a produção de conhecimento é realizada por sujeitos implicados com ela, assumindo o lugar de sujeitos epistêmicos. Para eles e também para Santos11, são necessários o reconhecimento da implicação, a promoção de ambiente público de debate e crítica e a maximização do diálogo com os diferentes atores e pontos de vista.

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Referências 1. Pinto HA. Múltiplos olhares sobre e a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e Qualidade [dissertação]. Porto Alegre (RS): Escola de Enfermagem, Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Escola de Enfermagem, Universidade Federal do Rio Grande do Sul; 2014. 2. Pinto HA, Sales MJT, Oliveira FP, Brizolara R, Figueiredo AM, Santos JT. O Programa Mais Médicos e o fortalecimento da Atenção Básica. Divulg Saude Debate. 2014; 51:105-20. 3. Ministério da Saúde. Balanço da terceira chamada do Ciclo 2015 do Projeto Mais Médicos para o Brasil [Internet] [acesso 2015 Abr 9]. Brasília (DF): MS; 2015. Disponível em: http://portalsaude.saude.gov.br/images/pdf/2015/abril/09/09.04-Balanco-3chamada_brasileiros-formados-exterior.pdf 4. Tribunal de Contas da União. Acórdão nº 331/2015. Plenário. Relator: Ministro Benjamin Zymler. Diário Oficial da União. 12 Mar 2015. 5. Ministério da Saúde. Departamento de Planejamento e Regulação da Provisão de Profissionais de Saúde. Nota Técnica nº 432/2014. Assunto: Relatório de Auditoria Operacional no Programa Mais Médicos. Brasília (DF): MS; 2014. 6. Lei nº 12.871, de 22 de outubro de 2013. Institui o Programa Mais Médicos, altera as Leis nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993, e nº 6.932, de 7 de julho de 1981, e dá outras providências [Internet] [acesso 2015 Abr 9]. Diário Oficial da União. 23 Out 2013. Disponível em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index. jsp?jornal=1&pagina=1&d ata=23/10/2013 7. Girardi, S. N., Carvalho, Cristiana Leite, Araújo, Jackson Freire, Farah, Jaqueline Medeiros,Wan der Maas, Lucas, Campos, Luis Antonio de. Índice de escassez de médicos no Brasil: estudo exploratório no âmbito da Atenção Primária. In: Pierantoni CR, Dal Poz MR, França T, organizadores. O trabalho em Saúde: abordagens quantitativas e qualitativas. Rio de Janeiro: Cepesc/IMS/UERJ, ObservaRH; 2011. p. 171-86. 8. Rovere M. El Programa Más Médicos: un análisis complementario desde la perspectiva de la salud internacional. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):635-6. 9. Scheffer M. Programa Mais Médicos: em busca de respostas satisfatórias. Interface (Botucatu). 2015; 19(54):637-40. 10. Gastão GWS. Mais médicos e a construção de uma política de pessoal para a Atenção Básica no Sistema Único de Saúde (SUS). Interface (Botucatu). 2015; 19(54):641-2. 11. Santos BS. Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal; 1989. 12. Passos E; Barros RB. A construção do plano da clínica e o conceito de transdisciplinaridade. Psicol Teor Pesqu. 2000; 16(1):71-9. 13 Merhy EE. O conhecer militante do sujeito implicado: o desafio de reconhecê-lo como saber válido. In: Franco TB, Peres MAA, organizadores. Acolher Chapecó: uma experiência de mudança do modelo assistencial, com base no processo de trabalho. São Paulo: Hucitec; 2004. v. 1, p. 21-45.

Recebido em 15/04/15. Aprovado em 26/04/15.

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Governamentalidade, ‘Sociedade Liberal Avançada’ e Saúde: diálogos com Nikolas Rose (Parte 1)

entrevista

DOI: 10.1590/1807-57622015.0216

Governamentality, ‘Liberal Advanced Society’ and Health: dialogues with Nikolas Rose (Part 1) Gobernamentalidad, Sociedad Liberal Avanzada y Salud: dialogos con Nikolas Rose (Parte 1)

Sérgio Resende Carvalho(a)

Apresentamos aqui a primeira de uma série de três entrevistas realizadas com Nikolas Rose, que, no seu conjunto, exploraram aspectos de sua ampla produção acadêmica(b). Nestas priorizamos aspectos que pudessem contribuir para os debates do campo da Saúde Coletiva, o que incluiu, entre outros, questões sobre o Estado, Políticas Públicas e Saúde (entrevista 1), e o papel dos saberes e práticas psi no governo das condutas (entrevista 2). Estudos recentes de Rose em torno das ciências da vida, biomedicina e neuro-ciências (entrevista 3) foram, igualmente, foco de nossa atenção.

(a) Departamento de Saúde Coletiva, Faculdade de Ciências Médicas, Universidade Estadual de Campinas Rua Tessália Vieira de Camargo, 126, Cidade Universitária Zeferino Vaz Campinas, SP, Brasil. 13083-887. ou sresende@fcm. unicamp.br

Nikolas Rose Nikolas Rose é professor de sociologia, fundador e chefe do Department of Social Sciences Health and Medicine, do Kings College de Londres desde 2012. Nos anos 1990, foi professor do Goldsmiths College e, de 2002 a 2012, da London School of Economics. Tem publicado diversos estudos históricos e políticos sobre a Ciências Sociais, a Medicina e as ‘Disciplinas psi’. Nestes trabalhos tem se interessado, em especial, em realizar uma genealogia da subjetividade, refletir sobre o ‘governo das condutas’ e sobre as transformações das racionalidas e técnicas de poder político. Suas atuais investigações têm como objeto as mudanças contemporâneas das ciências da vida – biomedicina, genômica, neurociências, psiquiatria, etc. É internacionalmente conhecido pela contribuição de seus trabalhos na introdução do pensamento foucaultiano nos países anglo-saxões e para o aprofundamento e expansão do mesmo. Alguns de seus textos e livros encontram-se, hoje, disponíveis no Brasil1,2 onde vem desenvolvendo crescentes laços de parcerias institucionais e acadêmicas. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

Entrevista realizada em maio de 2014, por Sergio Resende Carvalho, no ‘Department of Social Sciences Health and Medicine’, do Kings College de Londres, durante estágio como pesquisador visitante, realizado – sob os auspícios da Capes – Ciências Sem Fronteira, de 2013 a 2015. A transcrição foi revisada por Nikolas Rose antes de ser traduzida pelo trevistador.

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entrevista

MICHEL FOUCAULT NO REINO UNIDO Você pode nos dar uma ideia do contexto de seu trabalho acadêmico após a década de 1970, e tecer alguns comentários sobre o significado e importância, para você e outros estudiosos britânicos, do contato com a obra de Michel Foucault? Meu primeiro contato com a obra de Foucault, como tantos outros na Inglaterra, foi com uma tradução de uma versão resumida da história da loucura, denominada “Madness and Civilization”3, que eu li quando estava na universidade. Eu já era bastante crítico da psicologia e da psiquiatria, e eu usei o trabalho de Foucault como parte de um questionamento crítico da psiquiatria e, de forma mais geral, das disciplinas psi e o poder das disciplinas psi. Isso deve ser compreendido em relação à situação daqueles de nós que eram marxistas no Reino Unido naquele período: final dos anos 1970 e início dos anos 1980. Muitos de nós nos tornamos bastante críticos do economicismo de muitos ‘marxismos’, que colocavam excessiva ênfase na transformação das forças e das relações de produção e que pareciam ignorar, ou pelo menos deixar de lado, os problemas das transformações ao nível da cultura e ideologia. Alguns de nós, muitos dos quais eram professores ou trabalhavam em profissões relacionadas, pensávamos ser fundamental analisar o modo pelo qual as ideologias contribuíam para a reprodução política e social, e, em particular, a forma como elas contribuíam para a formatação e reformatação da identidade e da subjetividade humana. Os recursos marxistas que tínhamos à nossa disposição, na época, eram realmente bastante limitados: a obra de Gramsci ‘Prison notebooks’4 havia sido traduzida naquele período, e muitos de nós éramos influenciados por suas ideias de hegemonia. E, de modo mais significativo, muitos de nós estávamos interessados no estruturalismo francês, na linguística estrutural – em particular, o trabalho de Saussure –, na psicanálise estrutural – a obra de Jacques Lacan –, e no marxismo estrutural que foi por nós associado, em especial, com o trabalho de Louis Althusser. O texto mais importante que lemos era o “Aparelhos ideológicos de Estado” de Althusser, porque ele argumentava que era, por intermédio de meios ideológicos, que as formações sociais haviam sido capazes de reproduzir-se de geração em geração, e que esses meios ideológicos funcionavam, sobretudo, por meio da construção de um certo tipo de subjetividade. A linguagem da ideologia, a linguagem da constituição da consciência humana, a discussão sobre isso em termos de uma espécie de psicanálise estrutural: isto se tornou uma bandeira para muitos de nós que começamos a tentar teorizar essas questões. Naquele momento – estamos falando de meados dos anos 1970 – eu estava trabalhando com um pequeno grupo de amigos, em geral psicólogos críticos, e nós produzimos um pequeno periódico denominado “Ideologia e Consciência”. Nós o caracterizávamos como um periódico marxista sobre ideologia, linguística e feminismo: foi nestes termos que estávamos tentando produzir nosso próprio arcabouço conceitual para analisar e criticar, e, eventualmente, intervir sobre os modos ideológicos de reprodução.

Ideologia, subjetividade e poder Como é que você, e seus colegas desenvolveram os argumentos sobre a ideologia, subjetividade e poder? Como você lidou com as diferentes conceituações sobre subjetividade nas abordagens foucaultiana e da psicanálise? Muito em breve, em nossas análises, ficamos bastante insatisfeitos com os principais argumentos, especialmente com a ideia de ideologia, porque a ideologia sempre operava com base na verdade e falsidade, ideologias eram ideias falsas que tinham uma função social e estavam relacionadas à noção de consciência.

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Porque nós nos tornamos muito mais interessados na formação da subjetividade na qual a consciência era um efeito, mas não era “a mestra em sua própria casa”. Estávamos lendo Jaques Lacan naquela época, e ele tinha uma frase que retrata bem este ponto, algo como “no exato momento em que eu concordo com a minha própria identidade eu sou movido em direçao a outra”. Isso quer dizer que a crença de que a consciência estava no controle de si mesmo, esse tipo de “psicologia do ego” era enganosa – acreditar na primazia da nossa própria consciência pode ser necessário para nossas vidas cotidianas, mas era, citando Althusser , uma “relação imaginária das condições reais de existência de cada um”. Foi no contexto dos debates sobre a natureza da subjetividade que muitos de nós estabelecemos um tipo diferente de contato com a obra de Michel Foucault – e ele, é claro, em “The Order of Things”5, abordou este mesmo problema de uma maneira muito diferente, ao escrever uma arqueologia das condições sob as quais a figura do “homem” emerge como um “duplo empíricotranscendental”. Então, houve um conjunto de modos em que, juntamente com os meus colegas, eu tentei desenvolver esses tipos de argumentos; sobre a ideologia, subjetividade e poder. Para alguns, o melhor caminho era o caminho através da psicanálise: e alguns dos meus amigos achavam que a psicanálise fornecia a estrutura intelectual para se entender como os seres humanos foram moldados, e, indo além, foram transformados pelas relações de poder da qual eles faziam parte. Eles eram, sobretudo, psicólogos críticos, e eles escreveram um livro chamado “Changing the Subject”, no qual defenderam a necessidade de uma nova “teoria do sujeito” para se compreender o modo pelo qual o poder influenciava a subjetividade do indivíduo. Eu fui um dos que tomou um caminho diferente. Argumentamos que a própria psicanálise tinha de ser vista como uma forma particular em que os seres humanos vieram compreender a si mesmos, a agir sobre si mesmos, com os seus próprios sistemas de autoridade e modos de subjetivação: a psicanálise deve ser submetida ao mesmo tipo de análise crítica que poderíamos aplicar a outras formas de entendimento do ser humano que estão estreitamente associadas com as relações de poder. Nós não achamos que a resposta seria criar a nossa própria “teoria do sujeito” – que seria apenas mais uma entre tantas –, mas perguntar como, por que e de que maneiras, ‘teorias do sujeito” tinham sido fortemente associadas a regimes de autoridade e de subjetivação. Esta linha de argumentação, de forma simplificada, foi aquela que eu segui em meus três primeiros livros: “The Psychological Complex”6, “Inventing Ourselves”1,7, and “Governing the Soul”8. Como um aparte, eu me divirto, às vezes, quando algumas pessoas criticam meu trabalho posterior por não abordar a problemática do sujeito no momento em que eu levei aproximadamente dez anos, três livros e muitos artigos e capítulos de livros trabalhando sobre essa questão – e, é claro, que é também um tópico, ou um dos tópicos, do meu recente livro sobre as neurociências9.

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Carvalho SR

Governamentalidade No final da década de 1980 e na década de 1990 muitos de seu grupo tomaram a noção de governamentalidade para pensar a relação entre o Estado, a sociedade e os indivíduos. Você pode fazer alguns comentários sobre isto e a importância desta perspectiva para suas investigações? Você tem de pensar para trás, em direção à década de 1980, e sobre o que estava ocorrendo politicamente no Reino Unido, nos EUA, e indo além, em muitos países europeus. Expondo de forma simplificada, estava ocorrendo em larga escala, em grande extensão, uma crítica fundamental ao Estado de Bem-Estar Social, à racionalidade do Welfare, da maquinaria estatal organizada em torno dos sistema de seguridade e planejamento, e às consequências de três décadas de crescimento, mais ou menos descontrolado, do aparelho bem-estar.

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Como deveria este “evento” – se alguém pode chamá-lo assim – ser compreendido? Muitos na esquerda operavam com uma espécie de nostalgia do Welfare, esquecendo-se – ou, pelo menos, assim me pareceu – que eles haviam estado entre os críticos mais ferozes dos resultados do Estado de BemEstar, sua classe de funcionários bem pagos e cheios de si, e de sua falhas para ampliar a equidade e a justiça. Foi neste contexto que aqueles de nós que tínhamos traduzido e lido a palestra de Foucault sobre a governamentalidade (que foi publicada em inglês em nosso periódico) passamos a pensar que havia uma maneira diferente de colocar algumas das questões que haviam sido previamente postas em termos do Estado e da ideologia. Esta forma diferente era a de começar a pensar sobre uma grande variedade de estratégias e táticas e tecnologias para a conduta da conduta, ou seja, para tentar caracterizar as configurações que existiam, em determinado momento, para a formatação da conduta individual e da conduta coletiva. Colocado desta forma, em termos da multiplicidade de práticas para a moldagem da conduta individual e coletiva, uma série de questões foram tornando-se claras para nós. Quando eu digo “nós” aqui, eu estou falando em termos realmente bastante práticos, termos não metafóricos. Formamos um grupo, um grupo chamado “A História do Presente”, e nos reuníamos a cada quatro semanas – na verdade, na London School of Economics, que era um local conveniente; e discutíamos textos que as pessoas estavam lendo ou textos que as pessoas estavam escrevendo, e tentávamos pensá-los a partir desta perspectiva em desenvolvimento, quais poderiam ser as estratégias de análise e conceitos que deveríamos utilizar. A primeira coisa que ficou claro foi que, em termos de conduta da conduta, o Estado não era nem o ponto de partida necessário, nem o ponto final de todas essas estratégias. Estados só poderiam governar tendo como base multiplicidade de práticas para a condução de conduta, que eles próprios não deram origem e nem controlavam. Estas práticas para a condução de conduta envolvia uma grande quantidade de outros tipos de autoridades, fossem eles psicólogos, psiquiatras, professores, contadores, economistas, funcionários da justiça: os pequenos governantes da vida cotidiana que exerciam o poder sobre os indivíduos através de uma ampla gama de diferentes práticas e que ganharam sua autoridade, em grande parte, tendo como fundamento a reivindicação de seus conhecimentos. Estas eram autoridades que afirmavam o seu conhecimento, que estavam agindo sobre os indivíduos, com o objetivo de moldar suas condutas, em geral de maneiras bastante racionalizadas, com o finalidade de produzir determinados objetivos. Então começamos a tentar analisar esta multiplicidade de práticas para a condução da conduta: as formas de autoridade que existiam no seu interior; os tipos de conhecimento dos quais dependiam; as estratégias e técnicas que eles usam; e as concepções do sujeito humano que, de alguma maneira, as sustentavam, porque todas as práticas de conduta da conduta, a nosso ver, continham algum entendimento, explícito ou implícito, do que os seres humanos eram, e com quem eles se assemelhavam. A partir de seus trabalhos sobre a governamentalidade, você se considera um estudioso foucaultiano? Embora isto tenha passado a ser denominado de estudos governamentais, devido à ideia do governo (‘government’) como a condução da conduta, por causa do trabalho que alguns de nós fizemos sobre as mentalidades de governo, sobre racionalidades e tecnologias de governo, nesse momento, eles tinham uma conexão o mais solta possível com os escritos de Michel Foucault. Nós fomos inspirados por um certo ethos de investigação, mas a maioria de nós não era estudioso Foucaultianos, a maioria de nós não tinha assistido ou lido as palestras, que não eram de domínio público naquele momento – você tinha de ir para o arquivo em Paris para ouvi-las – e poucos de nós fizemos isto. Como você sabe, eu trabalhava em particular com Peter Miller, que é agora um Professor da London School of Economics, com Tom Osborne que agora é Professor de Sociologia em Bristol, e com Andrew Barry, que agora é Professor do Departamento de Geografia da University College London. Lemos muito de Foucault, lemos a palestra sobre governamentalidade e, para nós, isto nos induziu a seguir modos

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potentes de seguir em frente. Mas percebíamos – ou acreditávamos – que nós teríamos de produzir muitos conceitos, abordagens e técnicas analíticas por nossa conta – e isso é o que fizemos.

RACIONALIDADE POLÍTICA E TECNOLOGIAS

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Carvalho SR

O que significa, na sua proposta e de Peter Miller, o conceito de racionalidades políticas? Você acha que Liberalismo, Estado do Bem-Estar, e Neo-liberalismo – nomeado por você como Democracia Liberal Avançada ou Sociedade Liberal Avançada – representam as racionalidades políticas mais importantes do mundo ocidental? Quais são as contribuições e limites desta classificação para uma ação política e para um programa de investigação? Esta é uma questão importante, e eu acho que algum esclarecimento é importante aqui. O nosso trabalho, o trabalho que Miller e eu fizemos, era de uma ‘História do Presente’. Estávamos preocupados em tentar entender a sociedade britânica, e, em certa medida, as europeias, os seus modos de governo, formas de poder, modos de subjetivação, na décadas dos 1980`s e 1990´s. A partir desse ponto de vista, nós tentamos traçar uma genealogia da emergência destes modos particulares de pensar sobre, e de tentar governar, os seres humanos. Argumentávamos que, em um determinado momento, você pode ver uma semelhança familiar no interior de toda uma série de modos de pensar e agir sobre os sujeitos, e tentamos mostrar isso através de trabalho histórico bastante detalhado. Para fins aproximados e genéricos de comunicação, nós dissemos: “OK, vamos chamá-los de Liberalismo, Welfarismo e Liberalismo Avançado”. Estes conceitos nunca foram feitos para ser mais do que descritores nominais, eles certamente não foram feitos para ser algo como termos que marcam uma época, como os de modernização ou o individualismo reflexivo da sociedade de risco. Eles eram apenas maneiras aproximadas e imediatas de falar sobre uma família de programas e técnicas e modos de intervenções em um determinado momento. Nós tentamos mostrar que qualquer um poderia ver coisas semelhantes em outros países europeus que inicialmente pareciam relativamente diferentes. Por exemplo, se você estivesse olhando para os países nórdicos, as suas trajetórias para o liberalismo, as suas trajetórias para o Welfare State eram muito diferentes. Eles vieram de estados teológicos muito fortes, e isso moldou a maneira pela qual eles se movimentaram para formar seus Estados de Bem-Estar. No entanto, o que estava acontecendo enquanto estávamos escrevendo foi que eles estavam, em suas próprias maneiras, questionando aqueles Welfare States a partir de uma perspectiva da liberdade e autonomia, da escolha e da atenuação dos poderes do Estado, e assim por diante. Então, eu gostaria de salientar a importância de fazer o trabalho empírico, mais do que deslocar termos como welfarism de um lugar para outro, porque eu acho que isso pode ser altamente simplista e ambíguo. Vemos isso com o neoliberalismo. Eu tenho tentado evitar usar o termo neoliberalismo, exceto ao caracterizar essas filosofias políticas e doutrinas governamentais que explicitamente se referem a si mesmas como neoliberal. Porque eu usei esse termo, Liberalismo Avançado, foi para dizer que uma família de modos de governar estava tomando forma, na qual o neoliberalismo era apenas um elemento. Vimos isso na Reaganomics, vimos isto na ‘Terceira Via’ de Bill Clinton, vimos isto na ‘Terceira Via’ de Tony Blair. A menos que você queira dizer que Reagan, Blair, Clinton são os mesmos que Hayek, e é o mesmo que o Ordoliberalismo na Alemanha da década de 1940, a menos que você queira dizer que eles são todos iguais, você precisa ser mais específico. Se você dizer que eles são todos neoliberais, você perde a capacidade de analisar as suas diferenças. É por isso que eu me irrito bastante com a fácil utilização do termo neoliberal no discurso crítico contemporâneo para caracterizar coisas que, muitas vezes, são muito, muito diferentes uma da outra, porque eu acho que, muitas vezes, obscurece tanto quanto revela. Especialmente porque isto deixa de lado a necessidade de análise. Então você vê argumentos que dizem, quase textualmente, que “o que está acontecendo no neoliberalismo”, “o que está ocorrendo tem suas causas no neoliberalismo”,

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“o que há de errado nisto é neoliberalismo”; isto não parece, para mim, ser um modo muito útil de se trabalhar. Para voltar à sua pergunta, eu não acho que esses três blocos são as racionalidades políticas mais importantes do Mundo Ocidental. Eu acho que aqueles que estão fazendo este trabalho precisam analisar essas racionalidades em relação a problemas específicos que eles encontram, e que a especificidade dos mesmos é mais importante do que a descrição geral. Existem muitas formas diferentes de welfarism, há muitas formas diferentes de liberalismo. Eu só quero salientar novamente que o ethos aqui, retornando a uma resposta anterior para sua pergunta, que o ethos aqui era de uma análise empírica conceitualmente informada, e que os conceitos que usamos para fazer a análise eram muito mais importantes do que as descrições genéricas. Além dos conceitos de governamentalidade e racionalidade política, tecnologia é um dos conceitos mais importantes em suas investigações. Você pode explicar o que quer dizer com isso e discutir, em sua resposta, sobre como esses termos e conceitos se relacionam entre si? Há muitas explicações diferentes do por que Michel Foucault inventou este pequeno termo ‘governamentalidade’. Miller e eu tomamos isso como uma provocação, e nós trabalhamos nele da seguinte maneira: nós dissemos: OK, vamos pegar a palavra governamentalidade e fragmentá-la. Em primeiro lugar, há certas mentalidades, modos de pensar as regras. O que é uma mentalidade? A mentalidade é uma forma de pensar, uma forma de analisar, certa retórica, um modo de falar, uma maneira de dividir o que é legítimo e o que não é legítimo, para aqueles que desejam governar, para aqueles que desejam exercer a autoridade. E há muitas, muitas racionalidades diferentes, desta forma, racionalidades políticas. O que faz uma racionalidade política governamental? Uma racionalidade política é governamental na medida em que ela pode tornar-se prática, na medida em que ela pode se transformar a si ou aliar-se a um modo particular de intervir nas vidas individuais e coletivas com o objetivo de geri-las e de transformá-las. Assim, por um lado, você tem as racionalidades, por outro lado, você tem essas maneiras de intervir, modos práticos de intervir, e nós denominamos esses modos práticos de intervir: ‘tecnologias’, tecnologias de governar. Nós usamos o termo tecnologia para descrever um arranjo (assemblage) de diferentes elementos, orientada para se alcançar um determinado objetivo prático. Orientada, neste caso, para alcançar um objetivo prático de governar condutas em direção a determinados objetivos. Na verdade, eu não gosto da palavra assemblage, eu prefiro a palavra dispositivo, ou algo assim, mas vamos chamá-la de assemblage neste momento. Por uma assemblage busca-se significar um determinado arranjo de pessoas, de atividades, de recursos técnicos, de edifícios, de maquinaria, de maneiras de julgar e agir, que tornam possível intervir com o objetivo de moldar a conduta. Você pode nos dar algum exemplo do uso desses conceitos? Vamos tomar o Serviço Social. Serviço Social é um tipo de tecnologia. Ele envolve pessoas com um certo tipo de autoridade e treinamento. Elas trabalham de maneira bem prática, elas transportam a realidade para o pensamento através das anotações dos casos, por meio de suas grades de percepção, e assim por diante. Elas têm várias técnicas de intervenção em relação aos seus objetos, elas têm certos poderes que lhes são dados por lei. Elas habitam certas formas institucionais, escritórios, edifícios, elas têm arquivos, elas acumulam materiais de determinadas maneiras, elas vão nas casas das pessoas, elas julgam as pessoas de determinadas maneiras, elas podem disponibilizar certos recursos ou podem levar as crianças para longe de sua moradia, ou elas podem fazer isso, aquilo e aquilo outro. Portanto, este é um tipo de dispositivo complicado, envolvendo pessoas, formas de conhecimento, tipos de ações, modos de inscrição etc. Isso é o que entendo por uma tecnologia, e ela é governada por uma certa prática objetiva, uma certa técnica direcionada para um determinado fim.

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Nem todo pensamento político conseguiu fazer-se governamental. Será que Utopismo em algum momento logrou-se fazer-se prático, ele, em algum momento, conseguiu conectar a si mesmo com uma tecnologia de governo? Será que o comunismo, em algum momento, conseguiu tornarse prático, tornar-se técnico? Será que, de fato, o socialismo logrou inventar qualquer tecnologia de governo por sua própria conta? Bem, se você olhar para alguns dos escritos clássicos sobre o socialismo, você diz, não, o socialismo não inventou o plano. O socialismo não inventou o Estado centralizado. O socialismo não inventou toda uma série de maneiras em que a conduta humana era governada, na verdade, ele apossou-se de muitas coisas que tinham sido inventadas em outros lugares e as utilizou para seus próprios fins. Então, você precisa olhar para além do pensamento, além da doutrina e dogma político, para olhar as maneiras com que algumas formas de pensamento buscam tornar-se técnicas, para se conectarem a uma tecnologia de intervenção, e você descobre que isso não é apenas um problema de implementação de uma doutrina política, mas uma questão complicada de montagem de tecnologias que buscam traduzir essa doutrina para um conjunto de práticas, estratégias e técnicas. Então, falar sobre a governamentalidade, é falar sobre a maneira pela qual um certo estilo de pensamento sobre o que deve ser feito, se liga a um certo modo técnico de realização. Outra parte do argumento que Miller e eu fizemos, é que a característica desses estilos governamentais de pensamento, é que eles estão constantemente refletindo se eles lograram alcançar, ou não, o que pretendiam alcançar. E, de modo geral, a resposta é “não”. Então, é por isso que, em algum lugar, nós tomamos a frase, “a vontade de governar é eternamente otimista, mas governamentalidade é uma operação congenitamente defeituosa”. Você sempre quer reduzir a criminalidade, e você faz isso e aquilo para tentar reduzir o crime e você não reduz a criminalidade e, em seguida, você diz: por que não logramos reduzir o crime? Há algo de errado com a maneira com que nós estamos fazendo isso? Então, vamos tentar pensar em outra maneira de fazê-lo. Então, a falha de um modo de intervenção é sempre a oportunidade para um outro modo de intervenção.

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Carvalho SR

SOCIEDADES LIBERAIS AVANÇADAS Você pode comentar como as ‘Sociedades Liberais Avançadas’ concebem a função do Estado, o exercício da autoridade e a relação entre autonomia e liberdade, tomando como referência a problemática da área da saúde? Você pode refletir sobre isto utilizando, como exemplo, a situação do setor de saúde no Reino Unido hoje em dia? Esta é uma pergunta complicada, porque o que está acontecendo nas mudanças do setor da saúde no Reino Unido deriva do desenvolvimento de um conjunto de diferentes processos, que se interconectaram mas que têm diferentes genealogias. Na verdade, essa é uma lição que aprendemos com Michel Foucault. Se você ler “O Nascimento da Clínica”, você vê rapidamente que o surgimento da medicina clínica no início do século XIX se deve a um conjunto de mudanças bastante díspares. Mudanças na prática da educação médica, mudanças nos modos de segurança, mudanças na organização física do hospital, alterações na coleta e manutenção de registros etc. Juntas, estas mudanças que surgem ao longo de diferentes percursos, produzem algo semelhante a um evento, um evento que, neste caso, foi o nascimento da medicina clínica. Então, o mesmo ocorre com as transformações que se deram em torno da questão da saúde na Inglaterra nos dias de hoje. Deixe-me apenas tentar falar sobre duas ou três destas dimensões. A primeira destas dimensões diz respeito à possibilidade do planejamento estatal. Na Grã-Bretanha, temos um serviço nacional de saúde. Quando o National Health Service foi criado, havia uma crença de que, como a saúde da nação melhoraria, a necessidade de serviços de saúde reduziria, portanto, custos seriam reduzidos. A realidade se mostrou, significamente, diferente e contrária. A procura de cuidados de saúde cresceu ano após ano, década após década. Os custos dos cuidados de saúde foram crescendo e crescendo

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e crescendo. O aparato de atenção à saúde era extremamente complicado com médicos generalistas, hospitais, clínicas, em todo o país, cada um deles um pequeno e complicado universo. E, no centro desta, estava o secretário de estado da Saúde, que supostamente deveria estar planejando o serviço de saúde. Se você ler as memórias dos Secretários de Estado da Saúde, irá descobrir que, uma e outra vez, eles estavam sentados em Whitehall com a cabeça em suas mãos, dizendo: “não só eu não tenho nenhum controle sobre o que está acontecendo nesses hospitais, mas eu nem sei o que está acontecendo. Eu não tenho o conhecimento, e muito menos a capacidade para controlar isto. O pior é que esses ‘terríveis’ doutores são incrivelmente poderosos, eles têm o conhecimento e eles estão controlando a coisa e eu não tenho nenhuma maneira de exercer o poder sobre eles. Toda vez que eu tentar cortar algo, ou até mesmo mudar alguma coisa, os médicos vêm e dizem, oh, você não pode fazer isso, as pessoas vão morrer”. Portanto, aqueles que devem governar o serviço de saúde estavam constantemente dizendo: “não podemos governar o serviço de saúde”.

A quase-marketização dos serviços de saúde Houve muitas tentativas de resolver isso, e todas falharam! Assim, a beleza, a macabra beleza, da nova gestão pública foi que ela encontrou uma maneira de fazer isso. Ela pretendeu resolver esta questão através da transformação do serviço de saúde em um quase-mercado. Eles disseram algo como: “Certo, o secretário de Estado não pode saber, e não pode controlar o que acontece na sala de operações, o que acontece no consultório de cada médico, o que acontece em cada clínica. Não há nenhuma maneira que ele ou ela possa saber, muito menos controlar isso. Mas o que podemos fazer é controlar as entradas e as saídas. Podemos controlar os orçamentos, e nós podemos controlar os objetivos. Podemos dizer, aos hospitais, que estamos estabelecendo que você é livre, você é autônomo, você determina o que acontece em seu pequeno universo. Mas, ao mesmo tempo, nós dizemos “este é o seu orçamento e é isso que você tem que conseguir, em termos de operações, taxas de mortalidade, tempo de espera ou o que seja. E se você não atingir essas metas, podemos cortar seus orçamentos”. Assim, de um só golpe, um novo caminho tornou-se possível, objetivando tentar governar o que estava acontecendo em todas estas áreas muito abrangentes e remotas, sem que alguém, no centro, tenha de saber tudo e controlar tudo. Até certo ponto, isso era o que Hayek falou em “The Road to Serfdom”10: quanto era impossível controlar um domínio tão disperso através do planejamento central. O neoliberalismo, em sua versão dos anos 1940, afirmava o mercado como a forma mais eficiente de fazer as coisas, porque, no mercado, as escolhas são feitas pelas pessoas que estão mais próximas do terreno, e, no plano, as escolhas são feitas por alguém que reivindica total conhecimento, mas que está muito distante do que está acontecendo entre você e seu médico na clínica.

As relações entre o experto/provedor e o cliente/consumidor A segunda dimensão das mudanças no Reino Unido foi o outro lado desta marketização: mercados envolvem atos de consumo, e isso significa consumidores. Uma das coisas interessantes sobre Margaret Thatcher e o thatcherismo foi que ele era muito hostil ao poder profissional. Ele era hostil a essas profissões, que diziam: “Bem, nós sabemos mais do que você e é por isso que nós temos mais poder do que você. Você no Estado não pode nos dizer o que fazer, porque possuímos o conhecimento esotérico e a autoridade que ele carrega. E você o cliente não pode nos dizer o que fazer, porque nós somos os especialistas e você não é”. Advogados, médicos, esses eram os dois principais enclaves do poder profissional que ninguém poderia romper. Eles haviam sido muito criticados por pessoas do lado liberal, porque os médicos e advogados tinham tanta liberdade de escolha profissional e estavam tomando decisões que eram, na verdade, decisões morais, e não aquelas que se fundamentavam no conhecimento especializado. Eles também foram muito criticados pela esquerda e pela direita. Mas, a partir da esquerda, da

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direita e do centro, ninguém realmente sabia o que fazer com eles, como transformar essas relações de poder entre especialistas e clientes. Assim, a segunda dimensão-chave foi a transformação dessa relação entre o experto e o cliente em uma relação entre um prestador e um consumidor. O cliente se tornou um consumidor, como no mercado, e o advogado ou o médico, ou qualquer outra autoridade, tornou-se um fornecedor de um serviço, e se o cliente não gostasse do que fez o provedor, o cliente o abandonaria e iria fazer compras em outro lugar. E assim, de um só golpe, pelo menos, esta era a intenção, o poder sem limites do profissional ficou exposto. Não porque os políticos dissessem “Você não pode fazer isso, você pode fazer aquilo, você não pode fazer aquilo”, mas porque, se o paciente não gostasse de algo, o paciente iria para outro lugar. O cliente é “rei “ – como em seu supermercado, também no serviço de saúde, a retórica era a de que o consumidor é o “rei” Esta foi uma forma realmente muito interessante de colocar em questão a autoridade profissional. Tratava-se de uma transformação na forma de expertise, na subjetividade do experto, porque o experto agora não poderia simplesmente dizer: “Isto é o que é bom para você, aquilo é o que é bom para você, tome essa medicação, você vai ter aquela operação “. Eles agora teriam de convencer o consumidor de que essa era a coisa certa a fazer. Mas isto também envolveu uma transformação na subjetividade do paciente: como um consumidor, os pacientes também tiveram de reconhecer que eles eram sujeitos que poderiam escolher, não mais um paciente paciente: não seja um paciente paciente, seja um consumidor com discernimento para fazer escolhas.

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Carvalho SR

Estado, o quase-mercado e a liberdade de escolha no Sistema Nacional de Saúde E qual foi o papel do Estado? O papel do Estado foi o de fornecer a infraestrutura para isso, as condições que permitiriam estes quase-mercados a funcionarem. Isso ainda está em curso no momento: debates sobre se os hospitais devem publicar as suas taxas de mortalidade para as pessoas que têm determinados tipos de operações, ou se as escolas devem publicar suas taxas de sucesso das crianças junto a determinados tipos de exames e assim por diante. Embora haja divergências sobre os detalhes, a estratégia básica demandava que o provedor tornasse público esse tipo de informação que o cliente, então, faria uso a fim de fazer a sua escolha. Isto não é realmente compreendido pela sugestão de que isto constituía uma redução do poder do Estado. Eu acho que isto seria uma maneira incorreta de colocar a questão. Não foi um recuo do Estado, embora seja o que é dito na maioria das vezes. Isto foi uma reconfiguração no modo pelo qual a regulação política seria exercida sobre estes domínios. E foi uma reconfiguração na qual o regulamento político iria fornecer infraestrutura e demandaria que o sujeito se tornasse um sujeito capaz de discernimento e de fazer escolhas, e iria educar o sujeito para ser um sujeito da escolha. Agora, vemos todos os tipos de coisas que procuram fazer a mesma coisa, que não foram objeto de sonho nestas estratégias iniciais, mas que se alimentaram delas: sites de comparação, por exemplo, administrados por empresas privadas, que reinvidicam dar ao sujeito a capacidade para realizar escolhas. Claro que, como você e eu sabemos, não é tanto a capacidade de escolher, mas, sim, a obrigação – uma vez que você tem a capacidade de escolher, você tem a obrigação de escolher. Você não pode simplesmente ir ao seu médico e dizer: “Doutor, eu estou doente, faça alguma coisa, me ajude”, não, isso é uma relação de dependência. Você tem de fazer julgamentos sobre qual o tipo de tratamento que você quer, e você tem de assumir a responsabilidade de cumprir o seu papel, cumprindo sua parte, na escolha e na efetivação do caminho que foi escolhido. E, é claro, sendo um mercado, um indicadorchave e orientador das ações é o financeiro. Você torna os hospitais dependentes de quantas pessoas querem usar seus serviços, você faz com que os médicos sejam dependentes de quantas pessoas querem usar o seus serviços. Você os paga de acordo com o número de pessoas que querem usar seus serviços, você produz uma espécie de quase-mercado. Então, aqueles hospitais ou médicos que são mais populares, que oferecem o melhor serviço para seus clientes, eles são os que vão prosperar, à semelhança de seu supermercado, o melhor supermercado vai prosperar. E aqueles que produzem um serviço inferior, certamente, as pessoas vão simplesmente ir para outro lugar.

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É claro que, na realidade, as coisas não funcionaram desta maneira. Se você for uma família com quatro crianças e uma das crianças está doente e você não tem um carro, você precisa ir ao hospital mais próximo, você não vai começar a fazer a pesquisa e não escolherá levar seu filho para algum lugar a cento e cinquenta milhas de distância, porque ele vai lhe prestar um melhor serviço. Se você vai a um médico, você quer, basicamente, que o médico lhe dê o que o médico, o especialista, pensa que seja o melhor – tendo como base os anos de treinamento e os anos de experiência. Além disso, este novo sistema gerou problemas de cálculo muito significativos para esses diferentes tipos de atores, tornando cada hospital um pequeno ator de cálculos por sua própria conta, para que ele possa entender e trabalhar sobre o que é o seu mercado, que preços ele tem de cobrar, e todos esses tipos de coisas. Isto se tornou imensamente difícil, e uma grande quantidade de contabilistas e consultores teve de ser empregada pelos hospitais – a grande custo – para tentar fazer esses cálculos e encontrar os melhores caminhos para atingir essas metas. No excelente trabalho de Michael Power sobre a sociedade de auditoria, ele mostra, muito claramente, o que agora se tornou bastante óbvio: se você disser a um hospital “sua meta é diminuir o tempo de espera nos serviços de acidentes e para abaixo de três horas”, e que você somente será pago se atingir essa meta, então, é claro que o hospital vai colocar mais recursos neste setor e menos nas operações de quadril para as pessoas acima dos sessenta. Assim, as metas desequilibraram o modo pelo qual os atores trabalhavam, porque eles sabiam onde ele iriam ser auditados. Você produziu uma cultura de metas e, em alguns casos, as pessoas mentiam para aparentar que tinham, com certeza, alcançado os objetivos. Há também um problema de planejamento neste quase-mercado. Quando você está executando um serviço de saúde em uma área específica, você está preocupado não apenas com o que vai acontecer hoje, mas o que vai acontecer no período de cinco, dez e 15 anos. Se você está preocupado com a Saúde Pública, se você está preocupado com a Saúde Psiquiátrica, ou se você está preocupado com o envelhecimento da população, você precisa planejar vinte ou trinta anos à frente, a fim de fazer isso. Mas o mercado estimula um tipo de visão de curto prazo. Assim, a mercantilização não funcionou tão bem, a lógica de metas produziu resultados paradoxais, os arranjos orçamentários tornaram-se incrivelmente difícil de se fazer, uma vez que toda operação teve de ter um preço, e isso também produziu mais e mais problemas de escolhas. Por exemplo, suponha que você possa obter esta operação por cinquenta libras neste hospital, mas você pode obtêla por 75 libras naquele hospital, mas o hospital mais caro tem uma taxa de resultado melhor do que o mais barato: então, como você vai escolher? Alguns consumidores assumiram este papel de paciente ativo com muito entusiasmo, mas tem ocorrido todo tipo de efeitos. Por exemplo, alguns medicamentos para a fase terminal do câncer, que podem aumentar a expectativa de vida de alguns por três meses, são extremamente caros. Ainda esta manhã, houve a divulgação de que um determinado medicamento custa noventa mil libras para o tratamento de um ano, que pode aumentar a expectativa de vida de alguém com estágio de câncer por mais seis a nove meses. Em uma economia impulsionada pelo mercado, isto não é de fato custoefetivo. Mas quando um provedor diz: “Nós não vamos prover isto para você, não há custo benefício em lhe fornecer isto”, o seu grupo ativo de pacientes começa a fazer lobby e diz, você sabe: “Você não acha que a nossa vida vale noventa mil libras?”. Você tem um novo conjunto de contestações em expansão. Eu acho que existem e que tem surgido todo tipo de coisas bastante incorretas no sistema, e (duvido) até mesmo se você pode chamar isto de um sistema, é mais um acidente do que um sistema! Mas isso não significa que o problema que estava se tentando resolver era um problema incorreto, ou que a situação que existia antes fosse perfeita, pois nela havia muitas falhas.

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DESAFIOS Você comentou em algumas entrevistas que você, e outros pesquisadores, tentaram desenvolver, após os anos setenta, um pensamento que poderia lidar com o nível micro da política, mas que, também, pode conectá-lo com a questão do Estado e da Economia, que são tão centrais para o marxismo. Além disto, você afirmou que vocês estavam tentando oferecer um pensamento alternativo que não deveria ser marxista, mas socialista e de esquerda. Você acha que vocês alcançaram, de alguma maneira, esses objetivos e desejos?

entrevista

Carvalho SR

Acho que a resposta a essa pergunta é não, de fato, não. Alguns de nós esperávamos que, com o governo Blair no Reino Unido e o governo Clinton nos Estados Unidos, estes governos da ‘Terceira Via’, que algo produtivo aconteceria com o pensamento progressista. Na melhor das hipóteses, essas estratégias e racionalidades da ‘Terceira Via’ incorporaram alguns dos elementos que pareciam potencialmente produtivos nestas novas formas de pensar, e tentaram combiná-los com algumas noções mais antigas de coletividade, solidariedade e compromisso. Alguns de nós enxergaram uma possibilidade de uma relação entre esses modos de pensar que eu venho comentando e essas novas maneiras de tentar racionalizar e exercer o poder político. Por várias razões, se foi a Guerra do Iraque ou o problema Monica Lewinsky nos Estados Unidos, se era a direita viciosa paralisando Clinton nos Estados Unidos ou se foi uma falta de coragem no Reino Unido, as esperanças da ‘Terceira Via’ de governar – que parecia abrir possibilidades de um pensamento novo e criativo – deram em nada. Ao mesmo tempo, essas formas de análise tornaram-se um tanto estéreis. Livros de texto sobre governamentalidade foram produzidos, cursos de estudos da governamentalidade foram desenvolvidos, governamentalidade tornou-se uma outra subdisciplina acadêmica. A vida e a inventividade seguiram em frente, e, à revelia de tudo isto, as periodizações toscas e passageiras que usamos para pendurar o nosso trabalho empírico – Liberalismo ou Welfarismo ou Liberalismo Avançado – foram reificando, e a inventividade, a criação de conceitos, o engajamento empírico com a política do presente, todos eles pareciam estar desaparecendo. Não totalmente, é claro, alguns estudos maravilhosos foram produzidos, mas, pelo menos para mim, o momento criativo – que também foi um momento político – havia passado. O interessante é que eu acho que há uma nova possibilidade de inventividade, mas, provavelmente, não no Reino Unido ou na Europa, mas para aqueles que estão tentando desenvolver estas formas de pensar na América Latina, no Sudeste da Ásia, na África, para tentar e pensar sobre como a conduta é conduzida nestes contextos muito diferentes, com suas próprias histórias, tecnologias, subjetividades, e os seus próprios e muito distintos presentes. Mas, na medida em que eu tenha algo a mais a dizer sobre estas questões, gostaria de exortar as pessoas que utilizam este trabalho nestas situações que evitassem, simplesmente, de importar as análises. Em vez disso, eu espero que eles vão tentar pensar sobre qual era o ethos, qual foi o incentivo para desenvolver este tipo de trabalho, qual eram os estilos de pensamento que nós estávamos tentando desenvolver. E pensar sobre o que funcionou e o que não funcionou. E, então, reinventá-los para esses diferentes tipos de contextos. Isso é o que eu espero que as pessoas fariam neste mundo muito diferente de hoje – um mundo de globalização, um mundo da internet, um mundo de mídias sociais, um mundo com novos Estados de segurança. O mesmo ethos em um mundo diferente exige não apenas crítica ou reconfortantes gestos de resistência, mas criatividade, invenção, uma atenção ao empírico, realismo sobre o passado e responsabilidade para o futuro.

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Referências 1. Rose N. Inventando nossos selfs. Petrópolis: Vozes; 2011. 2. Rose N. A política da própria vida - biomedicina, poder e subjetividade no século XXI. São Paulo: Paulus; 2013. 3. Foucault M. Madness and civilization. 2nd ed. London: Routledge; 2001. 4. Gramsci A. Prison notebooks. New York: Columbia University Press; 2011. 5. Foucault M. The order of things. London: Routledge; 2001. 6. Rose N. The psychological complex: psychology, politics, and society in England, 1869-1939. London: Routledge & Kegan Paul PLC; 1985. 7. Rose N. Inventing our selves: psychology, power, and personhood. Cambridge: Cambridge University Press; 1998. 8. Rose N. Governing the soul: shaping of the private self. 2nd ed. London: Free Association Books; 1999. 9. Rose N, Abi-Rache, Jelle M. Neuro: the new brain sciences and the management of the mind. New Jersey: Princeton University Press; 2013. 10. Hayek FA. The road to serfdom. 2nd ed. London: Routledge; 2001.

Palavras-chave: Governamentalidade. Estado. Saúde. Políticas públicas. Keywords: Governamentality. State. Health. Public policies. Palabras clave: Governamentalidad. Estado. Salud. Políticas públicas. Recebido em 19/03/15. Aprovado em 15/04/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0275

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Cecílio LCO, Carapinheiro G, Andreazza R, organizadores. Os mapas do cuidado: o agir leigo na saúde. São Paulo: Hucitec, Fapesp; 2014.

Marilene de Castilho Sá(a)

Nem pirâmide, nem círculo: “desenhando” o SUS entre o imperativo coletivo da regulação e a legitimidade (e necessidade!) da produção singular de “mapas de cuidado” Tomo a liberdade de iniciar esta resenha do livro “Os Mapas do Cuidado: o agir leigo na saúde”, organizado por Luiz Carlos de Oliveira Cecílio, Graça Carapinheiro e Rosemarie Andreazza, com um subtítulo que contém uma alusão, carinhosa, a um artigo de Luiz Cecílio1, que, na época, impactou profundamente o meu modo de pensar o sistema de saúde e de cujas ideias ali apresentadas compartilho até hoje. No presente livro, os autores recuperam – desta vez, apoiando-se em densa pesquisa empírica – e, em muitos aspectos, superam a tese inicialmente explorada por Cecílio em 1997. Mais do que apontar os limites de pretensão de normatividade e controle sobre o sistema de saúde almejados em desenhos tecnocráticos que propõem uma rede ideal, a forma como os autores deste livro recortam, exploram e estudam seu objeto – o leigo e seu agir, na construção de seus itinerários (ou mapas) de cuidado em saúde – nos leva a ampliar o olhar (e a olhar a

partir de novos lugares) para questões complexas que atravessam o modo como pensamos e realizamos a gestão em saúde. Uma delas, me parece, é a irredutível tensão entre a necessidade de reconhecimento de singularidades (em nome da valorização dos sujeitos, da solidariedade, da equidade e da justiça distributiva) e o imperativo da regulação (em nome do coletivo, da igualdade e da universalização do acesso a recursos sempre finitos). Buscando superar a visão pejorativa dominante, este estudo considera que leigos são aqueles que não pertencem ao corpo de “especialistas da saúde”, que não detêm conhecimento ‘especializado’ sobre determinado assunto. Apresentam-se, assim, segundo os autores, como um contraponto a tal saber hegemônico, não como negação ou oposição, mas como um contraste potencialmente revelador do funcionamento da “máquina” da saúde, podendo apontar elementos que permanecem obscuros para os especialistas. Caracterizar este agir leigo, examinar suas relações com outros agires (dos profissionais, gestores e políticos), e valorizá-lo como potencialmente produtor de deslocamentos no pensamento que os especialistas têm produzido sobre o sistema de saúde é a proposta deste livro. COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Departamento de Administração e Planejamento em Saúde, Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca, Fundação Oswaldo Cruz. Rua Leopoldo Bulhões, 1480, sala 716. Manguinhos. Rio de Janeiro, RJ, Brasil. 21041-210. marilene@ ensp.fiocruz.br

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A ideia central que emerge do livro [...] é que o cuidado em saúde será sempre coproduzido pelos usuários e pelos especialistas, por mais que estes últimos, no fundo, pensem que cabe ao usuário apenas usar, presos que ficam a uma tautologia que se recusa a reconhecer um usuário-fabricador de caminhos e de significações, a partir das peças ou elementos da máquina da saúde. O leigo inventa, pelo método da bricolagem e da recomposição, surpreendentes totalizações precárias e contingentes, movidos pelo sofrimento advindo do adoecimento, do medo da morte e da consciência da fragilidade humana. O agir leigo resulta em surpreendentes e singulares ‘sistemas de saúde’ nos interstícios da máquina da saúde. (p. 15)

Assim, a autonomia e a criatividade, condensadas na metáfora do “usuário fabricador”, ou a heteronomia e a passividade/ conformidade – sugeridas na imagem do “usuário fabricado” – ou, ainda, a complexa e paradoxal dinâmica das organizações de saúde2, movidas por processos que escapam à racionalidade instrumental-teleológica das teorias sistêmico-estratégicas de planejamento e gestão, são algumas das questões que a pesquisa apresentada neste livro pode instigar no leitor. Uma pesquisa que, como destacam os autores, ocupou-se da ação humana – o agir de homens e mulheres em busca do cuidado que julgam necessário para si – e, embora não tenha adotado, a priori, nenhuma teoria da ação humana, apresenta uma leitura da ação humana “interessada e situada”, desenvolvida em contextos histórico-sociais de restrições e (im) possibilidades, que foi assumindo a centralidade à medida em que o estudo progredia. O interesse dos autores sobre o agir leigo como objeto de estudo se traduz de forma coerente no processo de pesquisa, por meio de uma especial capacidade de escuta sensível dessas singularidades, apoiada no método biográfico, particularmente na abordagem de narrativas de vida que, com criatividade e genuína disposição para apreender, vão explorando as possibilidades de utilização no próprio curso da pesquisa. Deste modo, juntamente com a originalidade e importância de 660

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seu objeto, este livro se destaca pela valorização do caráter dialógico/interativo do processo de pesquisa e da experiência/vivência dos sujeitos como via de acesso ao conhecimento e, igualmente, como elemento indispensável à gestão em saúde. Merece destaque, também, o esforço de construção coletiva por um grupo de pesquisa tão grande e diversificado quanto a formações e inserções institucionais, incluindo a parceria com o Instituto Universitário de Lisboa, ao qual se filia a Professora Graça Carapinheiro. A pesquisa foi realizada em dois municípios da região do ABCD paulista, em duas fases: a primeira, um estudo exploratório que consistiu em entrevistas com atores estratégicos e informantes-chave do sistema de saúde (em particular, gestores e profissionais); na segunda, foram colhidas histórias de vida de usuários “muito dependentes dos serviços de saúde”, indicados pelos profissionais entrevistados. O livro está organizado em seis capítulos. No primeiro, os autores apresentam o caminho metodológico. Capítulo extremamente importante para pesquisadores, profissionais de saúde e alunos, por apresentar, com detalhes, o processo de construção metodológica da pesquisa – o que é raro na maioria das publicações. A leitura deste capítulo me cativou (e capturou!), especialmente pela centralidade que conferem à análise de sua implicação, os aproximando da perspectiva teóricometodológica com que venho trabalhando3,4. Aqui, além do reconhecimento dos diversos vínculos ou inserções da equipe de pesquisa, que têm duplo ou tríplice estatuto – são profissionais de saúde e/ou gestores, além de pesquisadores –, se remetem aos afetos e sentidos que emergem do contato com os sujeitos da pesquisa, de como suas narrativas e os cenários em que se dão os impactam e são, de certo modo, trazidos para a reconstituição e análise dos casos nos seminários de pesquisa. O parágrafo seguinte é ilustrativo deste processo: Na segunda fase, as histórias de vida tiveram o poder de conduzir nosso olhar e nossa escuta para surpreendentes dimensões, para modos de uso e composição dos vários serviços de saúde que normalmente ficam de fora de nosso olhar. E mais do que isso, obrigou-nos a entrar em um processo, ainda


Talvez tenha faltado, aos autores, considerarem um quarto estatuto, que é o de pesquisador-usuário ou gestor-pesquisadorusuário, na medida em que todos são, de alguma forma, usuários do sistema de saúde (público e/ ou privado) e produtores de seus próprios mapas de cuidado. Trata-se, aqui, de um elemento importante a ser considerado na análise da implicação4: a identificação dos pesquisadores com os sujeitos da pesquisa, com alguns deles e/ ou com situações trazidas por estes. Nesta perspectiva, uma importante estratégia para a análise do material empírico foi a leitura coletiva das narrativas, nos seminários de pesquisa, lidas em voz alta, parágrafo a parágrafo. A mesma dinâmica foi adotada na devolutiva dos achados da pesquisa aos colegiados gestores dos municípios estudados: a leitura compartilhada das narrativas projetadas em uma tela. Por possibilitar um “[...] verdadeiro deslocamento no modo como os gestores pensam o sistema de saúde” (p. 40), pode favorecer a busca de novos caminhos, possibilidades de enfrentamento dos problemas, mas pode também gerar resistências, dificuldade de escuta, certo “[...] estranhamento nos gestores [...] por vezes difícil de ser trabalhado” (p. 48). E, assim, parece que os dois movimentos ou reações aconteceram, com repercussões distintas da devolutiva nos dois municípios estudados. Podemos remeter tal estratégia à discussão realizada por Dejours5, para quem a percepção do sofrimento alheio e mobilização contra o mesmo não diz respeito apenas a um processo cognitivo, sendo necessária, também, uma participação “pática” do sujeito que o percebe. Não basta assim apenas a inteligibilidade do drama. É também necessária a comoção das testemunhas, lhes despertando compaixão. Esta compreensão abre algumas perspectivas interessantes para refletirmos não só sobre a escolha das estratégias de devolutiva de pesquisas, mas sobre as estratégias pedagógicas de formação e educação permanente, assim como de supervisão, apoio institucional e gestão das equipes de saúde.

No segundo capítulo, são relatados os resultados da fase exploratória, particularmente os elementos apontados pelos “especialistas”: os gestores e profissionais de saúde. Foram produzidas quatro categorias empíricas (a rigor, problemas teórico-práticos), que compuseram a grade analítica e contribuíram para a leitura do material produzido junto aos usuários. A primeira categoria, a quimera da atenção básica, problematiza a dificuldade de se realizarem as promessas contidas nas propostas oficiais de organização da rede básica de serviços. A segunda categoria coloca o problema teórico do usuário fabricado e o usuário fabricador. Explora-se aqui a

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que tímido e exploratório, de autoanálise, ao perceber e vivenciar as tensões que atravessavam e constituíam o grupo composto por pesquisadores de duplo e tríplice estatuto. (p. 48)

[...] tensão entre a pretensão de se produzir um usuário disciplinado, guiado pelos procedimentos padronizados e previsíveis – o ‘usuário ideal’ – e o ‘usuário real’, que é autônomo, nômade, que faz escolhas e que subverte a racionalidade planejada pelos administradores. (p. 53)

A terceira categoria trata da disjunção entre os tempos dos usuários, dos gestores e dos profissionais. Os autores identificam um “tempo das possibilidades” (p. 61), no qual se situam os gestores, em sua busca de racionalização do uso dos tempos de acesso e consumo de serviços; um “tempo do cuidado” (p. 61), no qual se moveriam os profissionais de saúde, buscando viabilizar o tempo adequado para a disponibilização das tecnologias que avaliam como imprescindíveis para o bom cuidado; e, ainda, um “tempo das necessidades” (p. 61), no qual se situa o usuário, buscando rapidez para o acesso ao cuidado a partir de sua perspectiva, marcada pela experiência da doença. Tais tempos ou lógicas, longe de serem complementares ou sinérgicos, parecem competir entre si. Trata-se de uma categorização potente para pensarmos o desafio de se lidar com racionalidades e expectativas tão diversas, sem esquecermos, no entanto, que gestores nem sempre se movem regidos pelo “tempo das possibilidades” da utilização eficiente de recursos. Há, por exemplo, os que privilegiam os tempos das oportunidades políticoclientelísticas. Ou, ainda, que alguns profissionais podem não se mover regidos pelos “tempos do cuidado”. Alguns, infelizmente, se deixam COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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levar pelos tempos longos da burocracia, da desresponsabilização (como os autores reconhecem em outros capítulos); e, também, do lado dos usuários, há os que “atravessam” esses vários tempos, o que o próprio estudo vai mostrar, buscando encontrar brechas nas lógicas dos gestores e dos profissionais, não apenas para o atendimento do que pode ser oferecido pela medicina tecnológica, mas pelo que podemos considerar como uma necessidade de encontrar um sentido, um acolhimento e um alívio para seu sofrimento. A quarta categoria aponta para as múltiplas lógicas de regulação do acesso e consumo de serviços de saúde, e será melhor explorada nos capítulos seguintes, que apresentam o funcionamento de um SUS real que se conforma [...] menos como o resultado de uma ação governamental de base técnicoadministrativa-gerencial, [...] e mais como resultado da ação de múltiplos atores [...] que vão produzindo lógicas de regulação do acesso e consumo de serviços de saúde que transbordam e escapam [...] do formalismo e configuração do que temos chamado de “sistema de saúde”. (p. 64)

A partir do terceiro capítulo, o olhar dos usuários sobre a rede básica começa a ganhar centralidade. Suas histórias de vida revelam que, mesmo vivendo graves problemas de saúde e utilizando frequentemente os serviços especializados e de alta complexidade, utilizavam, também, os serviços básicos de saúde. É na rede de atenção básica que os usuários vão ‘consumindo’ tudo que lhes é oferecido para a composição do seu cuidado: medicamento, transporte, troca de receitas, (raras) consultas não agendadas em situações de crise, consultas regulares com o generalista para tratar dos problemas mais ‘simples’, em particular hipertensão e diabetes, etc. (p. 66)

Essas referências foram recortadas em três categorias empíricas: A rede básica como posto avançado do SUS; a rede básica como lugar das coisas simples; a rede básica como espaço de impotência compartilhada entre equipes e usuários. 662

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No quarto capítulo, os autores desenvolvem uma discussão do conceito de “regime de regulação”. Este conceito surgiu na pesquisa a partir do reconhecimento de certas regularidades sociais sincrônicas na constituição e funcionamento dos sistemas de saúde nos dois municípios estudados. Os autores admitem que tal conceito é um recurso analítico, podendo os diferentes regimes de regulação identificados no estudo – o regime governamental, o profissional, o clientelístico e o leigo – ser considerados como “tipos-ideais”, no sentido weberiano; e que esta opção teórico-conceitual está sempre marcada, no processo de pesquisa, por uma tensão entre as regularidades observadas nos dois municípios, que permitiam enunciar a presença de “regimes”, e a extrema diversidade de arranjos, soluções e composições que também podiam ser observadas. Progressivamente, os autores foram concluindo ser mais adequado, no caso de regime de regulação leiga, falar de um agir leigo. Se bem pensado, há um agir profissional, um agir governamental, um agir político e um agir leigo [...] Poderíamos dizer que há agires que vão resultando em regulações, que podem ser vistas como expressão na vida social de regimes de regulação. (p. 93)

Mais do que uma tipologia dos regimes de regulação, me parece que o mérito deste estudo é trazer para o “plural” o substantivo “regulação”, dando visibilidade teórica a agires e lógicas de operação do sistema de saúde que os gestores, os profissionais, os políticos e os usuários em geral conhecem, mas que a maioria dos estudos sobre gestão do sistema e o discurso normativo das políticas de saúde parecem resistir a enxergar. Lógicas que, frequentemente, se articulam, se combinam, muitas vezes no fio da navalha entre a transgressão e o quebra-galho6, mas cujo conhecimento é condição essencial para que avancemos na universalização e equidade do acesso aos serviços e na qualidade do cuidado produzido no SUS real. O capítulo 5, para além de sua importância para o aprofundamento dos conceitos de “agir leigo” e de “mapas de cuidado”, talvez seja o que mais mobilizará o leitor, pela intensidade das imagens e das histórias de vida apresentadas por meio das narrativas de 18 usuários, todos


respectivas trajetórias terapêuticas. Esses agires vão conformando mapas de cuidado singulares. A ideia de “mapa de cuidado” convoca uma analogia cartográfica, com “escalas”, “coordenadas” e “referências” – construídas sob a forma de vínculos com quem detém posição estratégica nas trajetórias de procura de cuidado. Como observam os autores, no atual modo de organização e funcionamento do sistema formal de saúde, não há reconhecimento e valorização dos mapas de cuidado dos usuários como estratégia para a cogestão do cuidado. “Todo usuário almeja um mapa do cuidado estável, isto é, que tenha ‘pontos’ estáveis, com os quais ele possa contar nos vários momentos da vida [...]” (p. 146). O último capítulo nos fornece novos elementos para compreender as complexas relações público-privadas presentes na constituição do SUS, revelando a força do agir leigo, que vai produzindo uma surpreendente e criativa bricolagem de serviços públicos e privados na conformação de seus mapas de cuidado, e demonstrando a importância deste tema para a gestão pública em saúde. Assim, mais do que um livro sobre os desafios do desenho da rede de serviços e de sua regulação, trata-se de um livro sobre a necessidade de, sem abrirmos mão daquilo que nossos agires especializados podem aportar para a gestão do sistema de saúde e para a produção do bom cuidado, nos permitirmos um deslocamento em direção a um agir leigo, sem o qual o bom cuidado não se realiza. Este deslocamento não é nada fácil. Citando Deleuze, que por sua vez evoca Foucault, os autores admitem que:

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“batizados” ficticiamente com nomes de flor. Mulheres como Amarílis, Dália, Hortência, Orquídea, Érica, Rosa, Magnólia... Homens como Jasmim, Cravo, Lírio, Jacinto. O recurso aos nomes de flor, de início, nos parece contrastar com a dramaticidade de suas vidas – muito distantes do que poderia ser um “mar de rosas” –, mas, aos poucos, percebemos sua congruência com a delicadeza necessária a um processo de pesquisa que se propõe a “colher” narrativas de vida, e o faz delicadamente como se colhem flores, e as arruma em “vasos”, “arranjos”, combinações estéticas, de sentido e significação, que só foram possíveis de serem produzidas pela capacidade de escuta sensível dos pesquisadores e pela qualidade das interações entre estes e os usuários entrevistados. Assim, aprendemos neste capítulo, por exemplo, que a insuficiência de recursos econômicos que marca as narrativas desses usuários e condiciona negativamente o acesso a bens de saúde é, em boa medida, compensada pelo caráter estratégico que assumem os recursos relacionais e cognitivos de que dispõem, e que possibilitam que abram caminhos, brechas no sistema instituído, em busca do cuidado que necessitam. Revela-se aqui o saber-experiência desses usuários. Do mesmo modo, tornam-se visíveis as redes sociais que fazem mover, junto com os usuários singularmente considerados, o agir leigo na saúde – redes de “[...] parentesco, de vizinhança, de amigos, de colegas de trabalho, de parceiros da doença, de afinidades religiosas, de cumplicidades políticas, etc.” (p. 125). Dois casos são “paradigmáticos” e situamse em extremos opostos: o de Orquídea – personificação do “usuário fabricador”, de tipo ideal, marcada pela riqueza de caminhos com que vai se apropriando de suas relações com a sociedade, com os poderes instituídos, com a políticas públicas e com os profissionais de saúde, para garantir os complexos e custosos cuidados que seu filho demanda; e Jasmim – paradigma do “usuário fabricado”, abandonado pelo sistema em sua doença, sem soluções efetivas de alívio do sofrimento, pela demora e descontinuidade do cuidado, aliada ao descompromisso terapêutico de profissionais e à ausência de recursos alternativos, especialmente no âmbito das relações familiares. Entre esses extremos, encontram-se sempre narrativas do agir leigo, com maior ou menor impacto regulatório nas

[...] é no momento em que alguém dá um passo fora do reconhecível e do tranquilizador, quando precisa inventar novos conceitos para terras desconhecidas, caem os métodos e as morais, e pensar torna-se, como diz Foucault, um “ato arriscado”, uma violência que se exerce primeiro sobre si mesmo. (p. 26-7)

E podemos dizer aqui que os autores se arriscaram, não apenas buscando uma outra forma de pensar a questão do acesso ou da regulação do acesso aos serviços de saúde, como buscando escutar, de fato, seus usuários, na construção de seus mapas de cuidado. E aqui, COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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a escuta, como observaria Dejours6, é também sempre arriscada, pois se nos dispusermos a escutar, de fato, assumimos os riscos de compreender e, com isto, colocar em cheque nossas crenças e conhecimentos.

Referências 1. Cecílio LCO. Modelos tecno-assistenciais em saúde: da pirâmide ao círculo, uma possibilidade a ser explorada. Cad Saude Publica. 1997; 13(3):469-78. 2. Enriquez E. A organização em análise. Petrópolis: Vozes; 1997. 3. Lévy A. Ciências clínicas e organizações sociais. Belo Horizonte: Autêntica, FUMEC; 2001. 4. Barus-Michel J. Clínica e sentido. In: Barus-Michel J, Enriquez E, Lévy A, organizadores. Dicionário de Psicossociologia. Lisboa: Climepsi; 2005. p. 242-50. 5. Dejours C. A banalização da injustiça social. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas; 1999. 6. Dejours C. Parte I: trajetória teórico-conceitual; Parte II: a clínica do trabalho; Parte III: perspectivas. In: Lancman S, Sznelwar L, organizadores. Christophe Dejours: da psicopatologia à psicodinâmica do trabalho. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz; 2004. p. 47-334.

Recebido em 11/04/15. Aprovado em 23/04/15.

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Simonelli AP, Rodrigues DS, organizadores. Saúde e Trabalho em debate: velhas questões, novas perspectivas. Brasília (DF): Paralelo 15; 2013.

Ricardo Luiz Lorenzi(a) Daniela Sanches Tavares(b) Emilia Maria Bongiovanni Watanabe(c)

Saúde e trabalho em debate: velhas questões, novas perspectivas1 – recentemente lançado pela Editora Paralelo 15 – enfeixa um conjunto extenso e diverso de experiências, pesquisas e reflexões acerca da saúde do trabalhador no Brasil. Suas organizadoras reúnem um elenco de mais de quarenta autores – entre docentes, gestores de serviços, pesquisadores e técnicos de diversas instituições – para, com suas contribuições, avivarem o debate contemporâneo sobre o tema no país. A obra percorre vários temas fulcrais de um vasto campo de pesquisa e intervenção, aguçando seu olhar analítico tanto pela atualização da perspectiva teórica de algumas das disciplinas envolvidas em suas questões, quanto pela reflexão sobre as vivências profissionais adquiridas no cotidiano dos autores, em suas respectivas práticas. E é talvez por essa razão que o livro, conquanto desuniforme em seu todo, transparece um forte (e esperado) acento de experiências no âmbito do Sistema Único de Saúde. Pois, entre os responsáveis pelas contribuições compiladas, muitos provêm de atuação profissional junto aos CERESTs e aos serviços de vigilância em saúde do trabalhador, embora colaborem também outros que, no espaço de sua

trajetória acadêmica, colocam-se de modo eletivo em nítida articulação com o SUS – quer por seus princípios ou por suas práticas. Composta por quatro partes, “Contextos de saúde e trabalho”, “Modelos, métodos e técnicas”, “Terapia ocupacional e saúde do trabalhador” e “Experiências e pesquisas aplicadas”, a publicação enseja um profícuo diálogo interdisciplinar, interinstitucional e entre serviços de saúde e academia, e o faz de modo igualmente instigante, mesmo sob o risco de que o fio da meada se perca pela profusão de olhares. Um risco inerente à natureza complexa das questões abordadas e à multipolaridade da narrativa, como se observa ao longo dos textos. Os autores, por sua vez, enfrentam esse risco com a serenidade de quem conhece o(s) assunto(s) em profundidade e com a assertividade que a experiência acumulada confere. Emblemático dessa experiência, o capítulo 17 (Mendes et al.) aborda uma série de estudos de casos sobre diferentes desfechos do programa de reabilitação profissional do CEREST Piracicaba. Revela-se ali uma interdisciplinaridade de cunho interinstitucional, que é produzida em resposta a demandas sociais concretas e que avança na defesa da saúde COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

(a) Serviço de Epidemiologia e Estatística, Fundacentro. Rua Capote Valente, 710, Pinheiros. São Paulo, SP, Brasil. 05409-002. ricardo.lorenzi@ fundacentro.gov.br (b) Serviço de Ergonomia, Fundacentro. São Paulo, SP, Brasil. daniela.tavares@ fundacentro.gov.br (c) Programa de PósGraduação, Fundacentro. São Paulo, SP, Brasil, emiliawatanabe@ ig.com.br

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coletiva. Expressão desse fenômeno é o fato de que, à medida que os atores envolvidos ousam ampliar o escopo das ações para além do espaço habitualmente “transitado”, logra-se articulação efetiva com a equipe de reabilitação do INSS local. Pela conjugação de esforços com esse e outros atores institucionais, robustecem-se equipe e modelo de atenção, resultando uma gama de atividades com grau diferenciado de resolutividade e, por conseguinte, maior impacto social do que de praxe. O relevo do trabalho em rede – consubstanciado na experiência deste CEREST – também vem analisado, sob outra perspectiva, no capítulo 15 (Jackson-Filho e Barreira). Este aborda os diversos aspectos determinantes no êxito do modelo de atenção piracicabano, tornado referência no enfrentamento da morbidade por acidentes de trabalho e por LER/DORT – sobretudo – mas, também, no de outros agravos ocupacionais. Descreve o papel da capacitação e educação permanente da equipe, da participação ativa de sindicatos e da sistematização de dados estatísticos auferida pelo SIVAT – Sistema de Vigilância de Acidentes de Trabalho, criado em Piracicaba como ferramental de informação e de análise epidemiológica. A importância do SIVAT no CEREST Piracicaba também é discutida por Almeida, Vilela e Takahashi no capítulo 8, junto ao relato e à reflexão da experiência de concepção do MAPA – Modelo de Análise e Prevenção de Acidentes de Trabalho. Os autores indicam como e por que a construção social de intervenções preventivas supera dialeticamente a dimensão sociotécnica de análise dos fatores acidentogênicos e dos acidentes em si. A legitimidade conquistada junto à sociedade, a sustentabilidade e a real integralidade das ações do CEREST mostram o papel fundamental que cabe ao Estado desempenhar, na vigilância das condições de trabalho e da saúde dos trabalhadores, criando condições de suporte à emancipação social. Na terceira parte, um dos capítulos apresenta uma roda de conversa entre terapeutas ocupacionais (TOs) que relatam suas trajetórias e atuações nos CERESTs, bem como a busca pela identidade profissional da TO na Saúde do Trabalhador. A descrição destas trajetórias é interessante ponto de partida para uma reflexão ainda mais profunda a respeito do processo de construção da identidade profissional desta categoria neste campo, desde a década de 1990 até os dias atuais, a despeito das desconstruções 666

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de políticas públicas desde então. No que tange à identidade profissional das TOs, pareceu muito pertinente a observação de Bregalda e Lopes (capítulo13) quanto ao motivo da sensação de perda de sua identidade profissional dentro do Programa de Reabilitação Profissional do INSS. As autoras consideram que tal sensação decorre, sobretudo, dos impedimentos institucionais para a mais importante de suas funções básicas: a de despertar o exercício da potência de ação dos segurados, no retorno ao trabalho. Lembram bem que estes impedimentos não se restringem ao INSS, mas antes, são informados por um conjunto de valores e crenças a respeito do trabalho na sociedade contemporânea, no qual o aproveitamento máximo da força de trabalho é o imperativo supremo, e onde parâmetros exclusivamente quantitativos são erigidos por uma cultura de suposta excelência. As autoras trazem evidências que corroboram estudo de Medeiros2, o qual mostra como a gestão pública focada em resultados numéricos, quando aplicada a trabalhos sociais complexos – como a reabilitação profissional – tende a empobrecer o trabalho, desvirtuar princípios e dificultar o vínculo de confiança e respeito entre os segurados e os profissionais de saúde. O debate se desenvolve com fecundidade também no campo teórico (em sentido “mais estrito”), onde se busca compreender a relação entre os processos produtivos e o processo saúde-doença no trabalhador, na complexidade do cenário atual. Isso se faz pelo recurso crítico aos fundamentos epistemológicos da psicodinâmica do trabalho, da ergonomia e da teoria da atividade, situando o leitor nas coordenadas dos desafios contemporâneos e das novas perspectivas de investigação e intervenção sobre tais processos. Os capítulos 1, 2 e 4 – respectivamente: “Trabalho e subjetividade” (Lancman, Jardim e Barros), “Ergonomia e trabalho” (Camarotto, Simonelli e Rodrigues) e “Aprendizagem expansiva no trabalho” (Engeström) – se inserem claramente nessa linha. Também se apresentam propostas teóricometodológicas nos capítulos 9 e 14. Alguns aspectos específicos de inclusão profissional de pessoas com deficiência recebem uma atenção particular no livro. Este tema é analisado a partir de visões distintas e complementares, nos capítulos 3 (Toldrá), 5 (Simonelli, Rodrigues e Camarotto) e 6


dos acometidos por LER/DORT. Sabe-se que os trabalhadores que procuram tratamento para LER/ DORT, frequentemente, identificam os mesmos aspectos da organização do processo de trabalho como responsáveis tanto pela doença osteomuscular quanto pelos problemas de ordem psíquica4. E ainda, que, frequentemente, os sintomas de ordem psíquica antecedem os osteomusculares, numa espécie de pródromo destes últimos. Fica claro o valor da compreensão dos determinantes do fenômeno, para a assistência ao trabalhador adoecido (como sujeito uno, não cindido em psique e soma) e na prevenção desses agravos. À guisa de contextualização e abrindo parênteses na resenha, fazse oportuna alguma informação adicional que destaque a dimensão psicossocial acima referida. Resultados do Inquérito de Força de Trabalho da União Europeia mostram que, aproximadamente, 28% dos respondentes (correspondendo a cerca de 55,6 milhões de pessoas) reportaram ter sido afetados em sua saúde mental por exposição a riscos psicossociais no período 1999–2007, e que, dentre aqueles com manifesto problema de saúde relacionado ao trabalho, 14% sofreram estresse, depressão ou ansiedade5. No Brasil, embora nos faltem dados mais precisos e abrangentes, o panorama não é menos preocupante. Segundo informativo do Ministério da Previdência Social, os transtornos mentais vêm ocupando o terceiro lugar em quantidade de concessões de auxílio-doença acidentária aos trabalhadores brasileiros segurados6. A propósito e não por acaso, o tema se insere na Agenda Nacional de Prioridades de Pesquisa7, na pauta: “Desenvolvimento de Modelos, Metodologias e Sistemas de Informação em Saúde, Ambiente e Trabalho”(d). Logo, se as demandas COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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(Guimarães). No terceiro, discutemse as barreiras existentes à inclusão desses sujeitos no mercado de trabalho, traçando-se um panorama geral do problema no país e analisando-se duas perspectivas: a dos trabalhadores incluídos com deficiência física e a de profissionais atuantes em instituições que promovem a inclusão de indivíduos com deficiências mentais. No quinto, são colocados em foco os pressupostos, métodos e etapas da implementação de um modelo de inclusão que tem como referencial teórico a análise ergonômica do trabalho (AET) adotada pela escola francesa. Os autores recuperam proposta de um modelo que utiliza a Classificação Internacional de Funcionalidade, Incapacidade e Saúde como referência para avaliações de caráter biopsicossocial na classificação das potencialidades do trabalhador reabilitado, e a AET como abordagem para a adaptação dos locais de trabalho3. No sexto capítulo, discorre-se sobre adaptação de postos de trabalho com o apoio da ergonomia física. A dimensão psicossocial dos agravos à saúde do trabalhador merece consideração crescente no contexto de um mundo do trabalho que acelera e intensifica o ritmo de vida, o que cria grande potencial gerador de estresse, sofrimento psíquico e adoecimento dos corpos e mentes. Divisão (corpo/ mente), aliás, arbitrária – conforme assinalam Mendes e SeligmanSilva na análise do desgaste mental relacionado ao trabalho, capítulo 14 – ilustrando-a com um estudo de caso. Assim como nos mostram, revisando evidências, Araújo, Bernardes e Jesus (capítulo 9): não só a sobrecarga de trabalho, mas também a pressão no tempo de execução de tarefas, o baixo controle sobre o trabalho, altas demandas psicológicas e o estresse podem estar associados a distúrbios musculoesqueléticos. Ou como nos aponta Alencar (capítulo 12), descrevendo o círculo vicioso de dor física e sofrimento mental

Vide seu item 23.2.4: “Estudos sobre agravos, incluindo-se os acidentes e doenças decorrentes da sobrecarga de trabalho, exposição a fatores de risco, transtornos neurocomportamentais, endócrinos, imunológicos, mentais, câncer, distúrbios decorrentes de fatores imateriais da organização da produção, dor crônica, [...]”– grifos nossos7.

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reveladas na esfera psicossocial da saúde do trabalhador são de grande vulto, exigindo da sociedade respostas cada vez mais qualificadas, em contrapartida, a perspectiva de trabalho aberta é imensa e resta a ser explorada. Em sinopse, a obra possui um caráter de mosaico de preocupações, argumentos, reflexões e análises de vários atores engajados na superação dos dilemas da conflituosa relação saúde e trabalho. Fica claro – desde o início – o compromisso com o caráter emancipador da práxis, assumido pelos autores. Quanto ao livro, como contributo de interdisciplinaridade voltada à transformação da realidade social e atestada pela fértil confluência de saberes e de práticas ali contidos, a indexação sob a epígrafe de Saúde do Trabalhador lhe é perfeitamente adequada. Neste sentido, vem se somar, e com brilho próprio, a outras publicações recentes do campo, resenhadas alhures8-10. A pluralidade expressa nos seus dezenove capítulos, por outro lado, cobra seu ônus à leitura. Ao idealizarmos essa resenha, deparamo-nos com a dificuldade em identificar um fio condutor único, ou uma urdidura clara entre os textos. Esse aspecto se mostrou relacionado não apenas à pluralidade de assuntos e seus diferentes enfoques, mas, também, à heterogeneidade das abordagens e ambiências da narrativa (se alguns capítulos possuem cunho, digamos, “didático”, outros se caracterizam por maior liberdade discursiva). À medida que se avança na leitura fica nítido que a dificuldade em rastrear os percursos discursivos não é meramente textual, mas contextual. São múltiplos os polos dos quais partem as contribuições, e igualmente tantos são os seus destinos. Certos autores buscam a ressignificação de suas práticas, traduzindo-a para o “esperanto” da Saúde do Trabalhador; outros trazem conteúdos mais identificados com seus “dialetos disciplinares” de origem, embora equivalentemente críticos. Gradualmente, uma tácita complacência para com o desigual vai se produzindo no espírito do leitor e a dificuldade inicial se atenua. Sim, grosso modo, é forçoso reconhecer que o debate proposto é amplíssimo e que reflete a crise por qual passam aparelho de Estado, ciência funcionalista e práticas de saúde distanciadas das necessidades sociais. Decerto poucos discordam disso. Menos óbvio é como desmontar fronteiras disciplinares anacrônicas e vencer o 668

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corporativismo inercial, seu patrono; enfim, como operar, na prática, a transdisciplinaridade almejada. Tais questionamentos recaem, implicitamente e com maior peso, sobre as experiências e pesquisas aplicadas reunidas na 4ª parte do livro (nunca é fácil para quem se coloca em campo de batalha!). De todo modo, assevere-se, a riqueza de resultados não se furta a comparecer, mesmo se lhes custem o abandono de determinadas certezas que uma zona de conforto costuma prover. Assim sendo, justiça seja feita ao caráter heterogêneo do livro: por que não saudá-lo por tal ousadia? As experiências relatadas servem, sem sombra de dúvida, como exemplo de atuação interdisciplinar e interinstitucional. Refere-se aqui a uma abordagem interdisciplinar que figure como uma estratégia para compreensão, interpretação e explicação de um problema, como proposto por Minayo11. Subentenda-se a dualidade conhecimento versus prática posta em jogo, no qual o principal sujeito – o trabalhador – deve participar. E constate-se: essa participação ainda é incipiente ou inexiste em larga escala, no país. O prefácio da professora Lea Soares previne o leitor sobre o teor multifacetado da obra; todavia, ressente-se da falta de um introito, um exame adicional do conteúdo apresentado, que recuperasse o histórico do empreendimento. Este talvez coubesse aos organizadores da obra, propiciando o argumento de origem da iniciativa editorial, não informado nesta edição (embora ela seja evidentemente louvável). Especialmente porque o público-alvo não é discriminado a priori – sem qualquer demérito para organizadores e debatedores, certamente imbuídos das melhores intenções. Isso reforça nossa convicção de que caberia outra nota prefacial, em adendo à primeira. Fica a sugestão para a próxima edição. De qualquer modo, são muitos os motivos para que se recomende a leitura do livro, evitando-se aqui uma enfadonha citação, por redundância ao já exposto. Atemo-nos apenas a um, o da necessidade de se ampliar o entendimento habitualmente restrito que se faz de promoção de ambientes de trabalho seguros e saudáveis. Pois é fato que, omitindo-se o papel que os fatores imateriais da organização da produção cumprem no processo saúdedoença, não só se subestima a carga da doença/ agravo à saúde do trabalhador (pela visão reducionista do nexo causal), como, também,


seja diretamente (mediante políticas públicas trabalhistas, sanitárias e previdenciárias bem informadas e efetivadas), quer de modo indireto, cuidando para que as ciências aplicadas e seus agentes (universidades e institutos de pesquisa) perenizem o interesse em ofertar informação relevante nesse campo. Essa visada não suprime, mas antes, convoca responsabilidades de um numeroso rol de atores para a missão de promover a saúde no nível local, nos ambientes de trabalho. A despeito das desigualdades que se observam entre países (ou regiões) pobres e ricos(as), parece haver um razoável repertório de estratégias de promoção da saúde do trabalhador ao alcance da sociedade organizada, em, pelo menos, boa parte do mundo, inclusive o Brasil. A publicação nos convida a pensá-las, para balizar nossa atuação. Boa leitura!

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abre-se o caminho da culpabilização da vítima e desumanização da atenção à saúde. O livro reúne evidências empíricas para se dirigir em sentido oposto. E não tergiversa em questões éticas: opõe-se radicalmente à ideologia do ato inseguro e se posta com firmeza contra a banalização e naturalização dos riscos (que toma aqueles evitáveis por naturais). Logo, sua leitura é atualíssima e fundamental para aqueles que tenham como objetivo compreender e avaliar a nocividade do trabalho para tomar decisões, tais como gestores de serviços, auditores-fiscais, peritos do INSS e peritos judiciários, além de poder servir de inspiração a novas práticas para os profissionais que atuam em CERESTs, INSS etc. Enfrentar os efeitos perniciosos da reestruturação produtiva e da flexibilização do trabalho sobre a saúde dos trabalhadores requer a decisiva participação do Estado, quer

Referências 1. Simonelli AP, Rodrigues DS, organizadores. Saúde e Trabalho em debate: velhas questões, novas perspectivas. Brasília: Paralelo 15; 2013. 2. Medeiros FM. Reabilitação profissional previdenciária sob a lógica reducionista: a desconstrução neoliberal [dissertação] [Internet]. Juiz de Fora: Faculdade de Serviço Social, Universidade Federal de Juiz de Fora; 2012 [acesso 22 Out 2014]. Excerto. Disponível em: http://www.fundacentro.gov.br/politica-publicasem-sst/bibliografia http://www.fundacentro.gov.br/ politica-publicas-em-sst/bibliografia 3. Simonelli AP, Camarotto JA, Bravo ES, Vilela RAG. Proposta de articulação entre abordagens metodológicas para melhoria do processo de reabilitação profissional. Rev Bras Saude Ocup. 2010; 35(121):64-73. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ S0303-76572010000100008 4. Sato L, Bernardo MH. Saúde mental e trabalho: os problemas que persistem. Cienc Saude Colet. 2005; 10(4):869-78. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ S1413-81232005000400011

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5. Hassard J, Teoh K, Cox T, Dewe PD, Cosmar M, Grundler R, et al. Calculating the cost of workrelated stress and psychosocial risks [Internet]. Luxembourg: Publications Office of the European Union; 2014 [acesso 13 Out 2014]. Disponível em: https:// osha.europa.eu/en/publications/literature_reviews/ calculating-thecost-of-work-related-stress-andpsychosocial-risks 6. Ministério da Previdência e Assistência Social. Cai número de acidentes de trabalho e aumenta afastamentos por transtornos mentais. Prev Quest [Internet]. 2012; [acesso 2014 Out 13]; (59). Disponível em: http://www.previdencia.gov.br/ arquivos/office/4_120326-105114-231.pdf 7. Ministério da Saúde. Secretaria de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos. Departamento de Ciência e Tecnologia. Agenda nacional de prioridades de pesquisa em saúde. 2a ed. Brasília (DF): Editora do Ministério da Saúde; 2008 [acesso 13 Out 2014]. Disponível em: http://livroaberto.ibict.br/ handle/1/495 8. Augusto LGS. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Resenha de: Minayo Gomez C, Machado JMH, Pena PG, organizadores. Cad Saude Publica [Internet]. 2011 [acesso 13 Out 2014]; 27(10):2071-2. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0102311X2011001000022&script=sci_arttext 9. Correa RMC. Saúde do trabalhador na sociedade brasileira contemporânea. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2011. Resenha de: Minayo Gomez C, Machado JMH, Pena PG, organizadores. Cienc Saude Colet. 2013; 18(3):893-4. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ S1413-81232013000300035 10. Lorenzi RL. Vigilância em Saúde do Trabalhador no Sistema Único de Saúde: teorias e práticas. Belo Horizonte: Coopmed; 2013. Resenha de: Moura-Corrêa MJ, Pinheiro TMM, Merlo ARC, organizadores. Rev Bras Saude Ocup. 2013; 38(128):315-7. doi: http://dx.doi.org/10.1590/ S0303-76572013000200018 11. Minayo MCS. Da inteligência parcial ao pensamento complexo: desafios da ciência e da sociedade contemporânea. Pol Soc [Internet]. 2011 [acesso 13 Out 2014]; 10(19):41-56. Disponível em: https://periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/ download/2175-7984.2011v10n19p41/19592

Recebido em 05/11/14. Aprovado em 23/04/15.

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Educação, mídia e saúde: uma análise da construção do pânico e do risco em Zero Hora Education, media and health: an analysis of the construction of the panic and risk in Zero Hora Educacion, mídia y salud: un analisis de la construcion del panico y del riesgo en el periodico Zero Hora

Em 2009, os jornais de todo o país começaram a noticiar a ocorrência da então chamada “Gripe Suína” no Brasil. O jornal Zero Hora, de grande circulação em todo o estado do Rio Grande do Sul, iniciou uma grande campanha contra o vírus H1N1, causador da (posteriormente batizada) “Gripe A”, sob a forma de: reportagens especiais, alertas aos diferentes extratos populacionais, chamadas à vacinação etc. Assim, na tentativa de entender esse panorama que envolve discurso jornalístico e contexto social, a presente dissertação tem como tema a compreensão dos eventos, processos, expressões comunicativas de uma sociedade, em que práticas sociais são entendidas como cultura. A base teórico-metodológica associa as contribuições dos Estudos Culturais, de vertente inglesa, com os fundamentos discursivos da teoria do conteúdo. Como objeto de estudo, foram analisadas 143 reportagens e capas do jornal Zero Hora de 2009 a 2012, reunidas por meio de pesquisa na Memória RBS e que faziam menção à “Gripe”, “Gripe Suína, “H1N1” e “Gripe A”. Dessa forma, o objetivo geral deste trabalho é analisar os discursos sobre o vírus da Gripe e os riscos a ele associados, envolvendo a ação do jornal no seu contexto de atuação. Os resultados mostram que o jornal explora à exaustão a opinião dos especialistas (médicos, infectologistas, Ministros, Secretários, pesquisadores etc.) para dar veracidade e credibilidade às reportagens produzidas sobre

o vírus; defende a prevenção por meio: da mudança de hábitos considerados “de risco”, da adoção de determinadas rotinas de saúde e higiene (lavagem de mãos, uso de álcool gel, vacinação) e da publicação profusa de gráficos, tabelas, números, percentuais e de outros aspectos quantitativos relativos à Gripe. O medicamento Tamiflu surge, nas reportagens, como “único remédio capaz de combater a doença”, como um substituto da própria vacina, bem como um remédio escasso e de difícil obtenção. Além disso, as reportagens de Zero Hora construíram, em torno da epidemia, uma espécie de pânico moral – regulando condutas, sujeitos e comportamentos considerados inapropriados pelos experts. Argentinos, chilenos e mexicanos, notadamente, foram responsabilizados publicamente, na mídia impressa, pela disseminação do vírus no Brasil. Outro aspecto verificado nas reportagens diz respeito à utilização de termos e expressões que enfatizam o gauchismo (por exemplo, “Gripe gaúcha”, “porque o RS está mais vulnerável”, “o lar gaúcho enfrenta a gripe A”, “vírus deixa o chimarrão mais amargo” etc.), bem como o emprego de certa gramática bélica em torno da epidemia (“o avanço da gripe no Estado”, “estratégia”, “corrida”, “exército”, “mobilização”, “Dia D para a vacinação”, “morte(s)”, “fatalidade”, “combate”, “cerco” e “guerra”). As estratégias de construção do pânico moral em torno da gripe A, de utilização COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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do “gauchismo” como representação identitária nas problematizações acerca da gripe e das práticas preventivas demandadas, assim como a gramática bélica sobre a epidemia, acabam por constituir um “currículo da gripe” no conjunto de reportagens veiculadas pelo jornal Zero Hora durante o período selecionado. Destaca-se, com esta pesquisa, o protagonismo da mídia impressa na construção da “pandemia de significações” na qual se constituiu o surto de gripe A no Rio Grande do Sul.

Palavras-chave: Estudos culturais. Mídia. Risco. Pânico moral. Gripe A. Keywords: Social Support. Cultural studies. Media. Risk. Moral panic. Type A Flu. Palabras clave: Apoyo Social. Mídia. Riesgo. Pánico moral. Influenza A.

Rozemy Magda Vieira Gonçalves Dissertação (Mestrado), 2013 Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Luterana do Brasil, Canoas, RS rozygong@gmail.com

Recebido em 13/01/15. Aprovado em 16/03/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622014.0531

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Rede de Apoio Social das adolescentes em conflito com a lei Support Network of adolescents in conflict with the law Apoyo Social Network de adolescentes en conflicto con la Ley

A saúde coletiva vem se tornando campo fértil para o desenvolvimento de projetos comunitários que abordam a rede de apoio social como recurso terapêutico voltado para autonomia dos sujeitos. Esta pesquisa é produto de uma dissertação de Mestrado em Saúde Coletiva e teve por objetivo: analisar a interface entre a rede de apoio social, a institucionalização e a saúde da adolescente em conflito com a lei. O estudo combinou técnicas e instrumentos quantitativos de coleta e análise de dados com outros de abordagem qualitativa, procedimento próprio à Análise de Redes Sociais. Envolveu 34 adolescentes, que cumpriam medida socioeducativa em um centro educacional feminino coordenado pelo Governo do Ceará. O instrumento utilizado na coleta de dados denominou-se gerador de nomes e qualificador da relação de apoio; e, para reconhecer os significados atribuídos à institucionalização e à saúde, utilizaram-se, como estratégia de investigação, as narrativas. Para a organização dos dados, seguiu-se o mapeamento da redepor meio do UCINET e NET DRAW. A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética da UNIFOR. Os resultados são relativos à rede das 34 adolescentes; nestes o número de atores, no total, foi de 145 membros, dentre amigos, familiares e profissionais da instituição. Em destaque, teve-se, como o familiar mais citado, a mãe, e predomínio do apoio material e emocional. Da rede de amizade, ficou evidenciado o apoio emocional dos

colegas da instituição e amigas que se encontram fora da instituição. Quanto à rede de procedência dos profissionais da instituição, o apoio percebido foi o emocional, e o informacional sendo oriundo da diretora e instrutores, que detinham maior contato com elas. Destacam-se limitações na rede analisada, como: pouca diversidade de atores sociais e precariedade de vínculos de amizades entre as adolescentes da instituição. Elementos facilitadores foram identificados como: apoio da família nuclear, bem como de funcionários da instituição. Com relação aos significados atribuídos à institucionalização e saúde, emergiram cinco significados: a influência maléfica da rede de amizade e familiar; a adesão voluntária por situações de conflito com a lei, que remete à possibilidade de acesso fácil ao dinheiro e às drogas; entradas consecutivas em delegacias da Criança e do Adolescente, e reincidências de cometimento de atos infracionais; a institucionalização oportuniza o distanciamento das drogas, proteção e momentos de reflexão, e o papel da instituição como promotora de saúde. O emprego da metodologia de análise de redes sociais permitiu reunir informações acerca da procedência e tipo de apoio percebido pelo grupo de adolescentes e tecer considerações acerca do núcleo de relações estabelecidas em torno de cada adolescente. Tais elementos demonstram a fragilidade e baixa densidade na rede analisada; e dos apoios mais citados teve-se o emocional, oriundo dos três tipos de COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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redes. Quanto aos significados atribuídos a institucionalização e saúde, encontrou-se que a instituição dispõe de diferentes recursos e estratégias que favorecem o cuidado em saúde, sendo reconhecido o seu papel de forma positiva pela maioria das adolescentes. Keyla Rejane Frutuoso de Morais Dissertação (Mestrado), 2012 Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva, Universidade de Fortaleza kmorais@fanor.edu.br

Palavras-chave: Apoio Social. Adolescente institucionalizado. Saúde do adolescente institucionalizado. Keywords: Social Support. Institutionalized adolescent. Health of institutionalized adolescents. Palabras clave: Apoyo Social. Adolescente institucionalizado. Salud del adolescente institucionalizado.

Texto na íntegra disponível em: http://uolp.unifor.br/oul/pages/academico/posgraduacao/ novoSite/teseDefendidaPL.jsp?p_nr_curso=231

Recebido em 19/07/14. Aprovado em 25/02/15.

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DOI: 10.1590/1807-57622015.0343

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Estratos Paula Carpinetti Aversa(a)

Introdução A perspectiva arqueológica1 que pretende “vasculhar os arquivos da humanidade para neles encontrar as origens complicadas e humildes de nossas convicções elevadas”2 (p. 97), compreende que os jogos de força “não têm primeiro motor: a economia não é causa suprema que comandaria todo o resto; nem a sociedade; tudo age sobre tudo, tudo reage contra tudo”2 (p. 98).

(a) Psicóloga e arte/ educadora, Mestre em Artes pela Unesp (São Paulo) e doutoranda em Psicologia pela Unesp (Assis), onde pesquisa as articulações entre arte e produção de subjetividade. p_aversa@ hotmail.com

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Estrato 1 “De um lado, haverá uma nau dos loucos cheia de rostos furiosos que aos poucos mergulha na noite, entre paisagens que falam da estranha alquimia dos saberes, das surdas ameaças da bestialidade e do fim dos tempos. Do outro, haverá uma nau dos loucos que constitui, para os prudentes, a Odisséia exemplar e didática dos defeitos humanos”.3 (p. 27)

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Estrato 2 “Não se esperou o século XVII para ‘fechar’ os loucos, mas foi nessa época que se começou a ‘interná-los, misturando-os a toda uma população com a qual se lhes reconhecia algum parentesco. Até a Renascença, a sensibilidade à loucura estava ligada à presença de transcendências imaginárias. A partir da era clássica e pela primeira vez, a loucura é percebida através da condenação ética da ociosidade e numa imanência social garantida pela comunidade de trabalho. Esta comunidade adquire um poder ético de divisão que lhe permite rejeitar, como num outro mundo, todas as formas da inutilidade social. É nesse outro mundo, delimitado pelos poderes sagrados do labor, que a loucura vai adquirir esse estatuto que lhe reconhecemos. Se existe na loucura clássica alguma coisa que fala de outro lugar e de outra coisa, o é porque o louco vem de um outro céu, o do insano, ostentando seus signos. É porque ele atravessa por conta própria as fronteiras da ordem burguesa, alienando-se fora dos limites sacros de sua ética”.3 (p. 73)

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Estrato 3 “É entre os muros do internamento que Pinel e a psiquiatria do século XIX encontrarão os loucos: é lá – não nos esqueçamos – que eles os deixarão, não sem antes se vangloriarem por terem-nos ‘libertado’”.3 (p. 48)

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Estrato 4 “Um lugar mítico no campo, o castelo de La Borde abriga uma clínica psiquiátrica singular, na qual se trata a loucura de maneira diferente. La Borde tornou-se ao longo do tempo uma utopia realizada [...]. Brecha na tradição do aprisionamento do mundo da loucura, [...], parece reatar com outras modalidades, pré-clínicas, da indistinção de loucos e de homens dotados de razão, da normalidade e da patologia”.4 (p. 44)

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Referências 1. Foucault M. Arqueologia do saber [1969]. Rio de Janeiro: Forense Universitária; 2009. 2. Veyne P. Foucault: seu pensamento, sua pessoa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2011. 3. Foucault M. História da loucura na idade clássica [1961]. São Paulo: Perspectiva; 2004. 4. Dosse F. Gilles Deleuze & Félix Guattari: biografia cruzada. Porto Alegre: Artmed; 2010.

Este trabalho apresenta um diagrama produzido na dissertação “Vibrações: a Arte/ Educação nas Práticas e nos Discursos em Saúde Mental”, realizada junto ao programa de pós-graduação em Artes da Unesp. Valendo-se da perspectiva arqueológica proposta por Foucault, procurou-se escavar os estratos ou camadas sobrepostas dos saberes construídos em torno das concepções de loucura, subjetividade e arte, com a finalidade de ressaltar as transformações históricas que tais concepções sofreram ao longo dos tempos, por meio de palavras e imagens.

Palavras-chave: Perspectiva arqueológica. Foucault. Loucura. Subjetividade e arte. STRATA This paper presents a diagram that was produced in the dissertation “Vibrations: Art/ Education in Practice and Discourse within Mental Health” which was developed within the Arts Graduate Program at Unesp. From the archaeological perspective proposed by Foucault, it was sought to excavate strata or layers of knowledge built around the concepts of madness, subjectivity and art, in order to emphasize the historical transformations that these conceptions have undergone over time, through words and images.

Keywords: Archaeological perspective. Foucault. Madness. Subjectivity and art. ESTRATOS Este trabajo presenta un diagrama producido en la disertación “Vibraciones: el Arte/ Educación en las prácticas y en los discursos en la salud mental” realizada con el programa de post-grado en Artes de la Unesp. Valiéndose de la perspectiva arqueológica propuesta por Foucault, se buscó excavar en los estratos o capas sobrepuestos de los saberes construidos alrededor de las concepciones de locura, subjetividad y arte, con la finalidad de subrayar las transformaciones históricas su fricas por tales concepciones en el transcurso de los tiempos, por medio de palabras e imágenes.

Palabras clave: Perspectiva arqueológica. Foucault. Locura. Subjetividad y arte.

Recebido em 12/05/15. Aprovado em 28/05/15.

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COMUNICAÇÃO SAÚDE EDUCAÇÃO

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INTERFACE - Comunicação, Saúde, Educação publica artigos analíticos e/ou ensaísticos, resenhas críticas e notas de pesquisa (textos inéditos); edita debates e entrevistas; e veicula resumos de dissertações e teses e notas sobre eventos e assuntos de interesse. Os editores reservam-se o direito de efetuar alterações e/ou cortes nos originais recebidos para adequá-los às normas da revista, mantendo estilo e conteúdo. A submissão de manuscritos é feita apenas online, pelo sistema Scholar One Manuscripts. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) Toda submissão de manuscrito à Interface está condicionada ao atendimento às normas descritas abaixo. Forma e preparação de manuscritos SEÇÕES Dossiê - textos ensaísticos ou analíticos temáticos, a convite dos editores, resultantes de estudos e pesquisas originais (até seis mil palavras). Artigos - textos analíticos ou de revisão resultantes de pesquisas originais teóricas ou de campo referentes a temas de interesse para a revista (até seis mil palavras). Debates - conjunto de textos sobre temas atuais e/ou polêmicos propostos pelos editores ou por colaboradores e debatidos por especialistas, que expõem seus pontos de vista, cabendo aos editores a edição final dos textos. (Texto de abertura: até seis mil palavras; textos dos debatedores: até mil palavras; réplica: até mil palavras.). Espaço aberto - notas preliminares de pesquisa, textos que problematizam temas polêmicos e/ou atuais, relatos de experiência ou informações relevantes veiculadas em meio eletrônico (até cinco mil palavras). Entrevistas - depoimentos de pessoas cujas histórias de vida ou realizações profissionais sejam relevantes para as áreas de abrangência da revista (até seis mil palavras). Livros - publicações lançadas no Brasil ou exterior, sob a forma de resenhas críticas, comentários, ou colagem organizada com fragmentos do livro (até três mil palavras). Criação - textos de reflexão sobre temas de interesse para a revista, em interface com os campos das Artes e da Cultura, que utilizem em sua apresentação formal recursos iconográficos, poéticos, literários, musicais, audiovisuais etc., de forma a fortalecer e dar consistência à discussão proposta. Notas breves - notas sobre eventos, acontecimentos, projetos inovadores (até duas mil palavras). Cartas - comentários sobre publicações da revista e notas ou opiniões sobre assuntos de interesse dos leitores (até mil palavras). Nota: na contagem de palavras do texto, incluem-se quadros e excluem-se título, resumo e palavras-chave. ENVIO DE MANUSCRITOS SUBMISSÃO DE manuscritos Interface - Comunicação, Saúde, Educação aceita colaborações em português, espanhol e inglês para todas as seções. Apenas trabalhos inéditos e submetidos somente a este periódico serão encaminhados para avaliação. Não serão aceitas para submissão traduções de textos publicados em outra língua. A submissão deve ser acompanhada de uma autorização para publicação assinada por todos os autores do manuscrito. O modelo do documento estará disponível para upload no sistema.

Nota: para submeter originais é necessário estar cadastrado no sistema. Acesse o link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo e siga as instruções da tela. Uma vez cadastrado e logado, clique em “Author Center” e inicie o processo de submissão. Os originais devem ser digitados em Word ou RTF, fonte Arial 12, respeitando o número máximo de palavras definido por seção da revista. Todos os originais submetidos à publicação devem dispor de resumo e palavras-chave alusivas à temática (com exceção das seções Livros, Notas breves e Cartas). Da primeira página devem constar (em português, espanhol e inglês): título (até 20 palavras), resumo (até 140 palavras) e no máximo cinco palavras-chave. Nota: na contagem de palavras do resumo, excluem-se título e palavras-chave. Notas de rodapé: identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Nota importante: ao fazer a submissão, o autor deverá explicitar se o texto é inédito, se foi financiado, se é resultado de dissertação de mestrado ou tese de doutorado, se há conflitos de interesse e, em caso de pesquisa com seres humanos, se foi aprovada por Comitê de Ética da área, indicando o número do processo e a instituição. Em texto com dois autores ou mais também devem ser especificadas as responsabilidades individuais de todos os autores na preparação do mesmo. O autor também deverá responder à seguinte pergunta: No que seu texto acrescenta em relação ao já publicado na literatura nacional e internacional? O autor pode indicar dois ou três avaliadores (do país ou exterior) que possam atuar no julgamento de seu trabalho. Se houver necessidade informe sobre pesquisadores com os quais possa haver conflitos de interesse com seu artigo. CITAÇÕES E REFERÊNCIAS Interface adota as normas Vancouver como estilo para as citações e referências de seus manuscritos. CITAÇÕES NO TEXTO As citações devem ser numeradas de forma consecutiva, de acordo com a ordem em que forem sendo apresentadas no texto. Devem ser identificadas por números arábicos sobrescritos. Exemplo: Segundo Teixeira1,4,10-15 Nota importante: as notas de rodapé passam a ser identificadas por letras pequenas sobrescritas, entre parênteses. Devem ser sucintas, usadas somente quando necessário. Casos específicos de citação: a) Referência de mais de dois autores: no corpo do texto deve ser citado apenas o nome do primeiro autor seguido da expressão et al. b) Citação literal: deve ser inserida no parágrafo entre aspas. No caso da citação vir com aspas no texto original, substituí-las pelo apóstrofo ou aspas simples.

instruções aos autores

Projeto e política editorial


instruções aos autores

Exemplo: “Os ‘Requisitos Uniformes’ (estilo Vancouver) baseiam-se, em grande parte, nas normas de estilo da American National Standards Institute (ANSI) adaptado pela NLM.”1 c) Citação literal de mais de três linhas: em parágrafo destacado do texto (um enter antes e um depois), com recuo à esquerda. Observação: Para indicar fragmento de citação utilizar colchete: [...] encontramos algumas falhas no sistema [...] quando relemos o manuscrito, mas nada podia ser feito [...]. Exemplo: Esta reunião que se expandiu e evoluiu para Comitê Internacional de Editores de Revistas Médicas (International Committee of Medical Journal Editors ICMJE), estabelecendo os Requisitos Uniformes para Manuscritos Apresentados a Periódicos Biomédicos – Estilo Vancouver 2. REFERÊNCIAS Todos os autores citados no texto devem constar das referências listadas ao final do manuscrito, em ordem numérica, seguindo as normas gerais do International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) – http://www.icmje.org. Os nomes das revistas devem ser abreviados de acordo com o estilo usado no Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). As referências são alinhadas somente à margem esquerda e de forma a se identificar o documento, em espaço simples e separadas entre si por espaço duplo. A pontuação segue os padrões internacionais e deve ser uniforme para todas as referências. EXEMPLOS: LIVRO Autor(es) do livro. Título do livro. Edição (número da edição). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Exemplo: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Sem indicação do número de páginas. Nota: Autor é uma entidade: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. Séries e coleções: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). *

CAPÍTULO DE LIVRO Autor(es) do capítulo. Título do capítulo. In: nome(s) do(s) autor(es) ou editor(es). Título do livro. Edição (número). Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. página inicial-final do capítulo Nota: Autor do livro igual ao autor do capítulo: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28.

Autor do livro diferente do autor do capítulo: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al., se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do capítulo. *

ARTIGO EM PERIÓDICO Autor(es) do artigo. Título do artigo. Título do periódico abreviado. Ano de publicação; volume (número/ suplemento):página inicial-final do artigo. Exemplos: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. até seis autores, separados com vírgula, seguidos de et al. se exceder este número. ** Obrigatório indicar, ao final, a página inicial e final do artigo. *

DISSERTAÇÃO E TESE Autor. Título do trabalho [tipo]. Cidade (Estado): Instituição onde foi apresentada; ano de defesa do trabalho. Exemplos: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [tese]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertação]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. TRABALHO EM EVENTO CIENTÍFICO Autor(es) do trabalho. Título do trabalho apresentado. In: editor(es) responsáveis pelo evento (se houver). Título do evento: Proceedings ou Anais do ... título do evento; data do evento; cidade e país do evento. Cidade de publicação: Editora; Ano de publicação. Página inicial-final. Exemplo: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brasil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [acesso 2013 Out 30]. Disponível em: www.google.com.br Quando o trabalho for consultado on-line, mencionar a data de acesso (dia Mês abreviado e ano) e o endereço eletrônico: Disponível em: http://www......

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Sem paginação: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [cited 2002 Aug 12]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/Wawatch. htmArticle

Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990.

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Segue os padrões recomendados pela NBR 6023 da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT - 2002), com o padrão gráfico adaptado para o Estilo Vancouver.

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RESENHA Autor (es). Cidade: Editora, ano. Resenha de: Autor (es). Título do trabalho. Periódico. Ano; v(n):página inicial e final. Exemplo: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTIGO EM JORNAL Autor do artigo. Título do artigo. Nome do jornal. Data; Seção: página (coluna). Exemplo: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. CARTA AO EDITOR Autor [cartas]. Periódico (Cidade).ano; v(n.):página inicialfinal. Exemplo: Bagrichevsky M, Estevão A. [cartas]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. ENTREVISTA PUBLICADA Quando a entrevista consiste em perguntas e respostas, a entrada é sempre pelo entrevistado. Exemplo: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista a Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. Quando o entrevistador transcreve a entrevista, a entrada é sempre pelo entrevistador. Exemplo: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [entrevista de Yrjö Engeström]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. DOCUMENTO ELETRÔNICO Autor(es). Título [Internet]. Cidade de publicação: Editora; data da publicação [data de acesso com a expressão “acesso em”]. Endereço do site com a expressão “Disponível em:” Com paginação: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [acesso em 20 Jun 1999]; 40. Disponível em: http://www.probe.br/science.html.

Os autores devem verificar se os endereços eletrônicos (URL) citados no texto ainda estão ativos. Nota: Se a referência incluir o DOI, este deve ser mantido. Só neste caso (quando a citação for tirada do SciELO, sempre vem o Doi junto; em outros casos, nem sempre). Outros exemplos podem ser encontrados em http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html ILUSTRAÇÕES Imagens, figuras ou desenhos devem estar em formato tiff ou jpeg, com resolução mínima de 300 dpi, tamanho máximo 16 x 20 cm, com legenda e fonte arial 9. Tabelas e gráficos torre podem ser produzidos em Word ou Excel. Outros tipos de gráficos (pizza, evolução...) devem ser produzidos em programa de imagem (photoshop ou corel draw). Nota: No caso de textos enviados para a seção de Criação, as imagens devem ser escaneadas em resolução mínima de 300 dpi e enviadas em jpeg ou tiff, tamanho mínimo de 9 x 12 cm e máximo de 18 x 21 cm. As submissões devem ser realizadas online no endereço: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo APROVAÇÃO DOS ORIGINAIS Todo texto enviado para publicação será submetido a uma triagem e pré-avaliação inicial, que inclui a identificação de pendências na documentação e sistema de busca por plágio. Uma vez aprovado, será encaminhado à revisão por pares (no mínimo dois relatores). O material será devolvido ao (s) autor (es) caso os relatores sugiram mudanças e/ou correções. Em caso de divergência de pareceres, o texto será encaminhado a um terceiro relator, para arbitragem. A decisão final sobre o mérito do trabalho é de responsabilidade do Corpo Editorial (editores e editores de área). Os textos são de responsabilidade dos autores, não coincidindo, necessariamente, com o ponto de vista do Corpo Editorial da revista. Todo o conteúdo do trabalho aceito para publicação, exceto quando identificado, está licenciado sobre uma licença Creative Commons, tipo DY-NC. É permitida a reprodução parcial e/ou total do texto apenas para uso não comercial, desde que citada a fonte. Mais detalhes, consultar o link: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/ Interface - Comunicação, Saúde, Educação segue os princípios da ética na publicação contidos no código de conduta do Committee on Publication Ethics (link: COPE).

instructions for authors

DOCUMENTO LEGAL Título da lei (ou projeto, ou código...), dados da publicação (cidade e data da publicação). Exemplos: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.


instructions for authors

Project and editorial policy INTERFACE - Communication, Health, Education publishes original analytical articles or essays, critical reviews and notes on research (unpublished texts); it also edits debates and interviews, in addition to publishing the abstracts of dissertations and theses, notes on events and subjects of interest. The editors reserve themselves the right to make changes and/or cuts in the material submitted to the journal, in order to adjust it to its standards, maintaining the style and content. The manuscript submission is online, by the Scholar One Manuscripts system. (http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo) All papers submitted to Interface have to follow the instructions described below. Form and preparation of manuscripts SECTIONS Dossier - essays or thematic analytical articles, by invitation of the editors, resulting from original study and research (up to six thousand words). Articles - analytical texts or reviews resulting from original theoretical or field research on themes that are of interest to the journal (up to six thousand words). Debates - a set of texts on current and/or polemic themes proposed by the editors or by collaborators and debated by specialists, who expound their points of view. The editors are responsible for editing the final texts (original text: up to six thousand words; debate texts: up to one thousand words; reply: up to one thousand words). Open page - preliminary research notes, polemic and/or current issues texts, description of experiences, or relevant information aired in the electronic media (up to five thousand words). Interviews - testimonies of people whose life stories or professional achievements are relevant to the journal’s scope (up to six thousand words). Books - publications released in Brazil or abroad, in the form of critical reviews, comments, or an organized collage of fragments of the book (up to three thousand words). Creation - Texts reflecting on topics of interest for the journal, at the interface with the fields of arts and culture, which in their presentation use formal iconographic, poetic, literary, musical or audiovisual resources, etc., so as to strengthen and give consistency to the discussion proposed. Brief notes - comments on events, meetings and innovative research and projects (up to two thousand words). Letters - comments on the journal and notes or opinions on subjects of interest to its readers (up to one thousand words). Note: In case of counting the text words, the tables with text are included and the title, the abstract and the keywords are excluded. SUBMITING ORIGINALS Interface - Communication, Health, Education accepts material in Portuguese, Spanish and English for any of its sections. Only unpublished papers and submitted only to this journal will be accepted for evaluation. Translations of

texts published in another language will not be accepted. Submissions must be accompanied by an authorization for publication signed by all authors of the manuscript. The model for this document will be available for upload in the system. Note: You must do the system registration in order to submit your manuscript. Go to the link http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo and follow the instructions. When you have finished the registration, click “Author Center” and begin the submission process. The originals must be typed in Word or RTF, using Arial 12, respecting the maximum number of words defined per section of the Journal. All originals submitted for publication must have an abstract and keywords relating to the topic (with the exception of Books, Brief notes and Letters). The first page of the text must contain (in Portuguese, Spanish and English): the article’s full title (up to 20 words), the abstract (up to 140 words) and up to five keywords. Note: In case of counting the abstract’s words, the title and the keywords are excluded. Footnotes: These should be identified using lower-case superscript letters, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary. NOTE: during the submission process the author needs to indicate whether the text is unpublished, whether it was the result of a grant, whether it results from a master’s thesis or doctoral dissertation, whether there are any conflicts of interest involved and, in case of research with humans, whether it was approved by an Ethics Committee in its field, specifying the process number. In articles with two authors or more, the individual contributions to the preparation of the text must be specified. The author also must answer the following question: What your text adds to what has already been published in the national and international literature? Please indicate two or three referees (from Brazil or abroad) who can evaluate your manuscript. If you consider necessary, inform about researchers with whom there may be conflicts of interest concerning your paper. CITATIONS AND REFERENCES The journal Interface adapts the Vancouver standard as the style to use for citations and references in manuscripts submitted. CITATIONS IN THE TEXT Citations should be numbered consecutively, according to the order in which they are presented in the text. They should be identified using Arabic numerals as superscripts. Example: According to Teixeira1,4,10-15 Important note: Footnotes will now be identified by means of lower-case letters, as superscripts, in parentheses. They should be succinct and should only be used when necessary.


Specific cases of citations: a) Reference with more than two authors: in the body of the text, only the name of the first author should be cited, followed by the expression “et al.” b) Literal citations: These should be inserted in the paragraph between quotation marks (“xx”). If the citation already came in quotation marks in the original text, replace them with single quotation marks (‘xx’). Example: “The ‘Uniform Requirements’ (Vancouver style) are largely based on the style standards of the American National 1 Standards Institute (ANSI), adapted by the NLM.” c) Literal citation of more than three lines: in a paragraph inset from the text (with a one-line space before and after it), with a 4 cm indentation on the left side. Note: To indicate fragmentation of the citation use square brackets: [...] we found some flaws in the system [...] when we reread the manuscript, but nothing could be done [...]. Example: This meeting has expanded and evolved into the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE), and has established the Uniform Requirements for Manuscripts Presented to Biomedical Journals: the Vancouver Style2. REFERENCES All the authors cited in the text should appear among the references listed at the end of the manuscript, in numerical order, following the general standards of the International Committee of Medical Journal Editors (ICMJE) (http://www.icmje.org). The names of the journals should be abbreviated in accordance with the style used in Index Medicus (http://www.nlm.nih.gov/). The references should be aligned only with the left margin and, so as to identify the document, with single spacing and separated from each other by a double space. The punctuation should follow the international standards and should be uniform for all the references. EXAMPLES: BOOK Author(s) of the book. Title of the book. Edition (number of the edition). City of publication: Publishing house; Year of publication. Example: Schraiber LB. O médico e suas interações: a crise dos vínculos de confiança. 4a ed. São Paulo: Hucitec; 2008. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** Without indicating the number of pages. Note: If the author is an entity: Ministério da Educação e do Desporto. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: meio ambiente e saúde. 3a ed. Brasília, DF: SEF; 2001. In the case of series and collections: Migliori R. Paradigmas e educação. São Paulo: Aquariana; 1993 (Visão do futuro, v. 1). *

BOOK CHAPTER Author(s) of the chapter. Title of the chapter. In: name(s) of the author(s) or editor(s). Title of the book. Edition (number). City of publication: Publishing house; Year of publication. First-last page of the chapter. Note: If the author of the book is the same as the author of the chapter: Hartz ZMA, organizador. Avaliação em saúde: dos modelos conceituais à prática na análise da implantação dos programas. Rio de Janeiro: Fiocruz; 1997. p. 19-28. If the author of the book is different from the author of the chapter: Cyrino EG, Cyrino AP. A avaliação de habilidades em saúde coletiva no internato e na prova de Residência Médica na Faculdade de Medicina de Botucatu - Unesp. In: Tibério IFLC, Daud-Galloti RM, Troncon LEA, Martins MA, organizadores. Avaliação prática de habilidades clínicas em Medicina. São Paulo: Atheneu; 2012. p. 163-72. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the chapter, at the end of the reference. *

ARTICLE IN JOURNAL Author(s) of the article. Title of the article. Abbreviated title of the journal. Date of publication; volume (number/ supplement): first-last page of the article. Examples: Teixeira RR. Modelos comunicacionais e práticas de saúde. Interface (Botucatu). 1997; 1(1):7-40. Ortega F, Zorzanelli R, Meierhoffer LK, Rosário CA, Almeida CF, Andrada BFCC, et al. A construção do diagnóstico do autismo em uma rede social virtual brasileira. Interface (Botucatu). 2013; 17(44):119-32. Up to six authors, separated by commas, followed by “et al.”, if this number is exceeded. ** It is obligatory to indicate the first and last pages of the article, at the end of the reference. *

DISSERTATION AND THESIS Author. Title of study [type]. City (State): Institution where it was presented; year when study was defended. Examples: Macedo LM. Modelos de Atenção Primária em BotucatuSP: condições de trabalho e os significados de Integralidade apresentados por trabalhadores das unidades básicas de saúde [thesis]. Botucatu (SP): Faculdade de Medicina de Botucatu; 2013. Martins CP. Possibilidades, limites e desafios da humanização no Sistema Único de Saúde (SUS) [dissertation]. Assis (SP): Universidade Estadual Paulista; 2010. STUDY PRESENTED AT SCIENTIFIC EVENT Author(s) of the study. Title of the study presented. In: editor(s) responsible for the event (if applicable). Title of the event: Proceedings or Annals of ... title of the event; date of the event; city and country of the event. City of publication:


Publishing house; Year of publication. First-last page. Example: Paim JS. O SUS no ensino médico: retórica ou realidade [Internet]. In: Anais do 33º Congresso Brasileiro de Educação Médica; 1995; São Paulo, Brazil. São Paulo: Associação Brasileira de Educação Médica; 1995. p. 5 [accessed Oct 30, 2013]. Available from: www.google.com.br * When the study has been consulted online, mention the data of access (abbreviated month and day followed by comma, year) and the electronic address: Available from: http://www...... LEGAL DOCUMENT Title of the law (or bill of law, or code...), publication data (city and date of publication). Examples: Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal; 1988.

Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. ELECTRONIC DOCUMENT Author(s). Title [Internet]. City of publication: Publishing house; date of publication [date of access with the expression “accessed”]. Address of the website with the expression “Available from:” With page numbering: Wagner CD, Persson PB. Chaos in cardiovascular system: an update. Cardiovasc Res. [Internet], 1998 [accessed Jun 20, 1999]; 40. Available from: http://www.probe.br/science.html Without page numbering: Abood S. Quality improvement initiative in nursing homes: the ANA acts in an advisory role. Am J Nurs [Internet]. 2002 Jun [accessed Aug 12, 2002]; 102(6):[about 1 p.]. Available from: http://www.nursingworld.org/AJN/2002/june/ Wawatch.htmArticle The authors should check whether the electronic addresses (URLs) cited in the text are still active.

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Lei nº 8.080, de 19 de Setembro de 1990. Dispõe sobre as condições para a promoção, proteção e recuperação da saúde, a organização e o funcionamento dos serviços correspondentes e dá outras providências. Diário Oficial da União, 19 Set 1990. This follows the standards recommended in NBR 6023 of the Brazilian Technical Standards Association (Associação Brasileira de Normas Técnicas, ABNT, 2002), with its graphical standard adapted to the Vancouver Style.

Note: If the reference includes the DOI, this should be maintained. Only in this case (when the citation was taken from SciELO, the DOI always comes with it; in other cases, not always).

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REVIEW Author(s). Place: Publishing house, year. Review of: Author(s). Title of the study. Journal. Year; v(n):first-last page. Example: Borges KCS, Estevão A, Bagrichevsky M. Rio de Janeiro: Fiocruz, 2010. Resenha de: Castiel LD, Guilam MC, Ferreira MS. Correndo o risco: uma introdução aos riscos em saúde. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1119-21. ARTICLE IN NEWSPAPER Author of the article. Title of the article. Name of the newspaper. Date; Section: page (column). Example: Gadelha C, Mundel T. Inovação brasileira, impacto global. Folha de São Paulo. 2013 Nov 12; Opinião:A3. LETTER TO EDITOR Author [letters]. Journal (City). Year; v(n.):first-last page. Example: Bagrichevsky M, Estevão A. [letters]. Interface (Botucatu). 2012; 16(43):1143-4. PUBLISHED INTERVIEW When the interview consists of questions and answers, the entry is always according to the interviewee. Example: Yrjö Engeström. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview conducted by Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM]. Interface (Botucatu). 2013; 17(46):715-27. When the interviewer transcribes the interview, the entry is always according to the interviewer. Example: Lemos M, Pereira-Querol MA, Almeida, IM. A Teoria da Atividade Histórico-Cultural e suas contribuições à Educação, Saúde e Comunicação [interview with Yrjö Engeström].

Other examples can be found at http://www.nlm.nih.gov/bsd/uniform_requirements.html Illustrations: Images, figures and drawings must be created as TIFF or JPEG files. Minimum resolution: 300 dpi. Maximum size: 16 x 20 cm, with captions and font Arial 9. Tables and tower graphs can be created as Word files. Other kinds of graphs must be created in image programs (corel draw or photoshop). Note: In the case of texts sent to the Creation section, images should be scanned at a minimum resolution of 300 dpi and be sent in jpeg or tiff format, with a minimum size of 9 x 12 cm and maximum of 18 x 21 cm. Submissions must be made online at: http://mc04.manuscriptcentral.com/icse-scielo ANALYSIS AND APPROVAL OF ORIGINALS Every text will will be submited to a preliminary evaluation by the Editorial Board, that includes the identification of shortcomings in the documentation and search system for plagiarism. In case the reviewers have divergent opinions, the paper will be submitted to a third reviewer for arbitration. The final decision about the merit of the work is the responsibility of the Editorial Board (editors and area editors). The texts are the responsibility of the authors and do not necessarily reflect the point of view of the publishers. All content in the approved paper, except where otherwise noted, is licensed under a Creative Commons Attribution, type BY-NC. Reproduction only for non-commercial uses is permitted if the source is mentioned. See details in: http://creativecommons.org/licenses/by-nc/3.0/ Interface - Communication, Health, Education follows the principles of ethics in the publication contained in the Committee on Publication Ethics code conduct (link: COPE).


Como o Brasil mudou nos últimos cinquenta anos Marta Arretche (org.) Esta obra desmonta a tese clássica segundo a qual o Brasil teria vivido uma “inaceitável estabilidade” da desigualdade. Em 14 ensaios, que abordam educação e renda, políticas públicas, demografia, mercado de trabalho e participação política, o livro demonstra que, na verdade, as desigualdades entre os brasileiros foram expressivamente reduzidas nas últimas décadas, embora o país continue entre os mais desiguais do planeta. R$ 69,00 16x23 489 páginas

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Caixa Postal 592 Botucatu - SP - Brasil 18.618-000 Fone/fax: (5514) 3880.1927 intface@fmb.unesp.br Textos completos em . <http://www.scielo.br/icse> . <http://www.interface.org.br>

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saúde

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Publicação interdisciplinar dirigida para a Educação e a Comunicação nas práticas de saúde, a formação de profissionais de saúde (universitária e continuada) e a Saúde Coletiva em sua articulação com a Filosofia e as Ciências Sociais e Humanas.


APOIO/SPONSOR/APOYO Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq Faculdade de Medicina de Botucatu/Unesp Fundação para o Desenvolvimento Médico e Hospitalar Famesp Instituto de Biociências de Botucatu/Unesp Pró-Reitoria de Pesquisa/Unesp

INDEXADA EM/INDEXED/ABSTRACT IN/INDEXADA EN

. Bibliografia Brasileira de Educação <http://www.inep.gov.br>

. CLASE - Citas Latinoamericanas en Ciencias Sociales

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