2 Preparação e Revisão de Texto | Mercedes Holanda Projeto Gráfico / Diagramação | Newton Dias Silva Capa e Ilustração de Capa | Retro Background Material European Certificate www.Pngtree.com Ilustrações | Todas as ilustrações são de domínio público de uso livre de Direitos Autorais. CN562h Silva, Newton Dias Histórias Sinistras: Contos surreais e relatos fan tásticos / Newton Dias Silva. Fortaleza: edição do autor, 2022, 128 p. ISBN: 979-88-485-8823-1 1. Ficção. 2. Ficção Nacional. 3. Contos. 4. Contos I.nacionaisTítulo.II. Autor. Catalogação na Publicação (CIP) Ficha Catalográfica feita pelo autor CDD: B869 CDU: 821.134.3 Newton Dias Silva Site do autor: www.calamus-scribae.blogspot.com.br Contato: nwdsilva@gmail.com • Fone: (85) 98156-9854 Fortaleza, Ceará, Brasil. Copyright: proibir a cópia, reprodução, distribuição, exibição, criação de obras derivadas e uso comercial sem a prévia permissão do autor.
A todos os contadores de histórias e fazedores de contos que, como diz a lenda da antiga Pérsia, Sherazade, ao narrar histórias fantásticas por mil e uma noites, poupou sua vida e enganou o algoz com as palavras.
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5 A Visita, 7 Agora te vejo, 10 O Santo, 14 O Retrato, 20 A Carta, 23 A Menina, 27 O Milagre, 31 As Maquinações do Mal, 35 O Sonho, 40 O Homem que Decidiu não Morrer, 43 O Vampiro, 46 O Soneto do Diabo, 49 O Homem no Outro Lado da Janela, 53 O Preto que Queria ser Branco, 57 A Hora, 60 Manu Gloriae, 64 O Couro de Bode, 68 Os Desaparecidos, 71 O Anel, 74 O Pesadelo, 76 Obsessão, 78 Cavilação, 81 A Venda, 85 A Crônica do Abuso, 88 O Bode Vintessete, 93 Trago o Seu Amor de Volta, 96 O Alfaiate, 99 As Horas Abertas, 102 O Padre, 104 Os Gatos Pardos, 107 O Oitizeiro, 110 Ao Meio-Dia, 113 Fantásticas Histórias de Chuva, 116 As Correntes da Paixão, 120 Arimatéia, 123 Índice
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uma meia-noite, insone, agonizava em sono arrebatado e inconcluso.
Ouvi então o bater da porta. Batidas insistentes, tão fortes, que pareciam ser de cem pessoas em desesperada aflição.
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O olho arregalado, aberto como crateras, procurando repou sar nalgum recôndito escuro do quarto, sofrendo como um condenado no corredor da morte, a angústia da última noite.
“Uma visita tardia pede entrada em meus umbrais. É só isto, e nada mais”.
A Visita
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Tentei dormir, mas as batidas batiam e insistiam cada vez mais fortes e mais fortes. Aborrecido pela insônia que já me perdurava por meses sem fim, levantei tropeçando nas coisas, caindo nos vãos escuros, nos abismos ancestrais das escadas. Há alguém que não quer que eu durma. “É só isso e nada mais”.
Batiam mais ainda, quanto mais eu me aproximava da porta, mais batiam. Abri a porta e, antes de qualquer coisa, entrou intrépido, um vento gélido e cortante como navalha, fazendo tremer até as estátuas nuas.
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A porta aberta. As batidas cessaram e a noite ainda perdu rava lá fora, tão escura como a alma dos demônios. Demorei os olhos a vislumbrar a figura que me batia à porta. Era um velho. Senti um odor nauseabundo e pus a mão no nariz. O velho sorriu-me. Aos poucos - isto em segundos que pareciam centenas de ho ras - comecei então a visualizar o estranho e inconveniente visitante. Trajava um paletó surrado, descolorido, amarrotado. A barba por fazer, desleixada. O bigode de cor amarelada, com certeza pelo uso de tabaco. Exalava dele um odor mal cheiroso de sujeira, um misto de bebida barata, cigarro e suor, que me causou asco. Ele sorriu mostrando os dentes amarelados, mal cuidados. Deixando escapar um mau hálito repugnante, falou com uma voz penetrante: - Precisa me convidar para entrar. Assenti com a cabeça e ele adentrou lépido, sem cerimônia, refestelando-se em minha poltrona predileta, na sala.
As batidas pareciam-me que iriam pôr a porta abaixo. Provavelmente, tinha acontecido alguma tragédia e viam-me avisar, por certo, pensei. Talvez um incêndio no prédio e tinham me vindo acudir, com certeza, imaginei.
- Aliás, o senhor que deveria estar dormindo. Afinal, quem é mesmo o senhor? - Então, o velho ficou de pé, contra o azedume da noite, “a face branca descorada, o pescoço ceifado, os lábios exangues, o olhar faiscante que tudo perscrutam e os dedos crispados”, tal e qual Heathcliff.
- O senhor deve ser louco! – bradei, sentindo-me insultado.
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- Não gritei nem gemi ou coisa que o valha! Estava tentando dormir.
- Certamente, de loucura entendo eu muito bem. De qualquer forma, volte a tentar dormir, apazígue seu sono e pare de pensar em coisas antigas. Não te entregues à mágoa vã. O velho encheu outra vez o copo.
- Sua insônia me estava incomodando. Os seus pensamentos desencontrados, os pesadelos inquietantes e os anseios psicóticos são para mim como o mel para as abelhas. – o velho estendeu a mão para pegar mais vinho.
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Eu o ouvi gritar e gemer, por isso, eu vim o mais rápido que pude. Não vai me servir uma bebida?
- Meu nome é rancor. E o rancor nunca dorme.
– Confrontei-o, enquanto enchia um copo do meu melhor vi nho. - Exatamente isso. – Disse o velho, saboreando a bebida.
Agora Te Vejo
- Doutor, o que é isso em cima da sua mesa?
u era estudante de enfermagem e vez por outra, prestava serviços em ambulatórios e clínicas médicas, a fim de ganhar um extra. Havia um médico muito conceituado que requisitou meus serviços e, naquele fatídico dia, no instante momento em que entrei no consultório dele, deparei-me imediatamente com um jarro em cima da mesa. Olhei mais de perto e vi uma espécie de planta, talvez um cacto, talvez. A planta tinha crescido e as folhas esta vam sobre os seus papeis, enroscando-se sobre as coisas.
- Chegou esta manhã. Uma cliente mandou deixar aqui. Não sei o que é...
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A planta mostrava longas folhas serrilhadas com bordas es pinhentas. O caule leitoso, como o de uma bananeira. Era curto e grosso. As folhas estiravam-se como braços e ficavam dispostas ao redor da planta. As folhas dentadas, que eram semelhantes às do abacaxi, ficavam aplainadas sobre a mesa e pareciam se mover, semelhantes a tentáculos longos e delgados. Bem no meio da planta brotava uma espécie de carpelo arroxeado, como as bromélias, que parecia prestes a desabrochar.
- O senhor não acha meio esquisito? Parece uma planta carnívo ra... Não gostei muito. - Até que eu gosto. Sinta esse perfume! – disse o doutor pondo o Anariz.planta exalava um suave perfume adocicado, quase que imperceptível. Era como o odor de hortelã ou camomila, um tanto inebriante.
O doutor fez uma cara de menino maroto, quanto está fa zendo alguma travessura. Confidenciou-me em voz baixa que quem lhe havia mandado a planta fora uma cliente muito jovem e bonita. Uma jovem angolana que viera fazer alguns exames gine cológicos, um dia desses. Ela é uma morena lindíssima! – Disse eufórico. – E que par de pernas!
- E se for uma planta venenosa, doutor? - Ora, deixe de bobagens! Vou até colocá-la aqui na janela do -consultório.Eosenhor sabe quem lhe mandou essa planta estranha?
Um tipo de substância química utilizada com o objetivo de manipular as vítimas de abusadores sexuais.
- Doutor isso é abuso sexual! É crime! E se ela o denunciar? O senhor vai preso e ainda vai perder sua licença médica! - Ora, que nada! Com a nossa “Justiça brasileira”? Vai ser a mi nha palavra contra a dela. Além do mais, ela é imigrante ilegal e ainda é uma negra africana! Não vai dar em nada! Eu tenho amigos juízes!
- Enfermeiro filho da puta! - bradou o doutor visivelmente transtornado.
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- Deixe de ser idiota! Você não passa de um bosta dum enfermeiro! Eu sou um médico conceituado. Quem vai acreditar em quem?o médico estava ofegante e raivoso. Colocou-se na minha frente, barrando a porta.
- Nesse caso, doutor, eu mesmo vou lhe denunciar! - bradei indig nado com a confissão do médico.
Fiz menção de sair do consultório. Eu sequer lembrei que ele havia fechado a porta com a chave. Naquela hora, eu preci saria de muita calma para tentar reverter aquela situação.
Outra vez o doutor me chamou a um canto, fechou a por ta à chave e me confidenciou em voz baixa que, durante o exame, fez coisas não muito éticas. Aproveitou-se da ingenuidade da moça e a seduziu. Foi mais longe e administrou Escopolamina, que provoca amnésia e, embora a pessoa não durma, bloqueia a consciência do que está acontecendo.
- Não vou deixar você sair daqui para criar problemas! – disse o médico, correndo para a mesa em que estava a planta. Abriu a gaveta e sacou um revólver. Tive a ligeira impressão que a planta estava um pouco maior do que a tinha visto.
aturdido e atônito com aquela cena grotesca e inimaginável, ouvi alguém bater insistentemente à porta. Ao abrir, deparei-me com uma belíssima jovem. Ela sorriu e entrou no consultório sem nada dizer. Pegou o jarro em cima da mesa, num abraço. Beijou carinhosamente a plan tinha, que agora estava diminuta. Ao sair olhou para trás e me disse numa voz melódica:*BaseadoYa-te-veo.em uma lenda de Madagascar.
Percebi, naquela hora, o quão grave era aquele momento. No entanto, para o meu espanto, a planta que agora estava muito maior, lançou contra o médico seus tentáculos serrilhados, longos e delgados que tremulavam como serpentes esfomeadas em fúria. Balançaram por um momento sobre a cabeça do doutor, e a seguir, como se fosse um ser com uma mente demoníaca e com um instinto perverso, enrolou os tentáculos ao redor do pescoço e braços da vítima, num abraço mortal e quanto mais terrível eram os gritos de horror do desgraçado, mais altos eram os sons semelhantes a silvos e grunhidos que ressoavam da criatura que exalava agora, um fedor se tornava cada vez mais intenso e insuportável, até que finalmente, o homem deu um gemido arquejante e morreu Osestrangulado.tentáculos, um após outro, como serpentes verdes e grandes, com uma força brutal e uma velocidade infernal, levantaram-se e se retraíram, envolvendo lhe todo o corpo, apertando com descomunal força e cruel tenacidade como anacondas que se enroscam velozmente ao redor de sua presa, quebrando os seus ossos, até que não restou mais Aindanada.
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O Santo
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O professor Serafim era um homem de muito estudo, dig no de respeito e estudioso das filosofias, religiões e línguas
uando conheci o professor Serafim, ele já não estava mais em seu perfeito juízo, como diriam alguns, mas ao vê-lo naquela situação de aparente demência senil, percebi o quanto estavam enganados. O que ele me contou, em segredo, ficou escrito aqui neste caderno, para que sirva de advertência para os descrentes, embora saibamos que muitos não levarão a sério, até que seja tarde demais.
“É preciso que se saiba que, tudo o que vemos ou pensamos que vemos, não passa de um so nho dentro de um sonho”. Edgar Allan Poe Q
15 antigas. Agnóstico, sem, no entanto, se rotular ateu, con siderava inútil discutir temas metafísicos, pois são realidades não atingíveis através do conhecimento. Para ele, a razão humana não possui capacidade de fundamentar racionalmente a existência de Deus.
Talvez por essas razões, algum aluno religioso, deixou com ele aquela pequena estatueta - da qual contarei em seguida - pois sabia que a curiosidade dele era bem maior do que qualquer outra coisa, pois o ensino da filosofia não precisa ser complexo, nem intricado. Tem a ver com curiosidade, a mania de fazer perguntas e de querer saber mais, como diria Jean-Jacques Rousseau: “Só se é curioso na proporção de quanto se é instruído”.
Ele observou que a veste possuía os 33 botões de alto a baixo, representando a idade de Cristo, e cinco botões em cada punho, representando as cinco chagas de Cristo. Havia ainda, uma faixa à cintura, de cor preta com um colarinho branco.
O ícone de aparência bem antiga representava cuidadosamente talhada em um bloco de madeira, a figura de um rapaz paramentado com uma veste eclesiástica, semelhan te a uma sotaina própria de diáconos, presbíteros, bispos e seminaristas.
Foi numa tarde de sábado que o professor Serafim chegou a sua casa e encontrou ao pé do portão, uma pequena está tua, cuidadosamente esculpida em madeira maciça, tendo a aparência de um santo católico. Intrigado, o professor Se rafim que não era dado a superstições das religiões, muito menos da Católica, embora as estudasse por puro academicismo, levou consigo, mesmo assim, o pequeno artefato, que media mais ou menos dez centímetros de comprimen to por cinco de largura. A pequena imagem tinha a aparên cia, como oportunamente dito antes, de um santo católico.
O preto representando a morte para o mundo, e o branco, a pureza, segundo o Codex Iuris Canonici, bem entendido.
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O hagiólogo ficou espantado e eufórico com a estátua. Era realmente uma obra de arte digna de Michelangelo. Os detalhes eram impressionantes. Realmente parecia ser uma escultura de um santo católico desconhecido até então para ele e não havia nenhuma inscrição que o identificasse. Concluiu que deveria ser um mártir, mas sem certeza algu ma. Porém, num rápido exame, o sacerdote percebeu umas ranhuras na parte inferior da estátua que, na verdade, observou o professor Serafim, não eram ranhuras, e sim, uma espécie de escrita, muito semelhante à língua Acádia.
Observou ainda, o professor Serafim, que o rosto da imagem mostrava os olhos revirados em agonia, embora a boca tivesse um estranho sorriso, como se experimentasse ali um prazer lascivo, quase sádico. No entanto, o que mais o impressionou, foi uma corrente feita de ferro que se fun dia com a madeira, que acorrentava a estátua em forma de Ocruz.jovem
O acádio (lišānum akkadītum), também conhecido como acadiano ou assiro-babilônio era uma língua semítica da
rapaz representado na escultura tinha ainda as mãos violentamente amarradas para trás, tão bem escul pido, com tanto esmero, que dava para ver os pulsos dila Nocerados.diaseguinte, o professor levou a pequena estátua para um padre que era bastante versado em hagiologia e hagio grafia, a fim de identificar quem estava ali representado na escultura, já que ele não conseguira encontrar nenhuma semelhança com alguns santos católicos que ele conhecia. Nota: o professor teve a leve impressão de que a estátua estava um pouco maior do que o dia anterior, mas não se deu ao trabalho de conferir o tamanho e não levou mais em consideração.
Algum tipo de fraude arqueológica, tais como a Tiara de Saitafernes e a múmia de Rhodugune.
Um dia depois, o professor Serafim percebeu com grande susto, que a estátua estava o dobro do tamanho desde o dia quando a encontrou. E nos dias que se seguiam, parecia que dobrava de tamanho cada vez mais. O professor pas sou então a ter sonhos inquietantes, noites mal dormidas, insônias intermináveis.
17 família afro-asiática, falada na antiga Mesopotâmia há mais de 2.500 anos antes de Cristo, particularmente pelos assírios e babilônios, o que era muito estranho, pois, naquele caso, a adoração de santos católicos só ocorreu por volta do ano 155, depois de Cristo, com o suposto martírio do bispo Policarpo de Esmirna. A língua Acádia já estaria extinta há muitos séculos e com certeza, não seria um arte fato católico e sim babilônico. Porém, as vestes eclesiásticas da estátua e a corrente em forma de cruz eram sim, de culto politeísta católico, o que se sugeriria ser um objeto falso.
A imagem parecia possuí-lo. Dizia que a estátua lhe recitava poemas a noite toda em uma língua antiga e ininteli gível. Impedia-lhe o sono e clamava, varando a noite toda: traduza-me! Conta-se que o professor Serafim entrou em profunda depressão, abandonando o trabalho e a convívio social, se fechando no escritório por dias e semanas inteiUmaras.
senhora que fazia a limpeza da casa do professor, rela tou-me certa vez, que podia ouvi-lo discutir com a alguém até altas horas da noite. Ela não estranhou muito, pois era comum o professor receber visitas de alunos e professores que ficavam por horas debatendo sobre assuntos de seus estudos. Muitas vezes, porém, permanecia em silêncio por dias a fio, até que um dia saiu do escritório muito abati do, com aparência doentia, o olhar frio, uma irremediável amargura de espírito, mas, no entanto, percebia-se um ra-
Naquele momento tive dúvidas de que o professor Serafim estivesse em pleno uso de suas faculdades mentais. Ele pe diu que entrássemos no escritório e, em seguida, fechou a porta com chave atrás de mim. Havia uma estátua do tamanho de um homem. Estava paramentada com vestes eclesiásticas, como um sacerdote. Notei que as correntes estavam arrebentadas no chão.
O professor mudou o semblante e pôs o dedo na boca, pedindo silêncio. Chamou-me a um canto, sussurrando, como quem conta uma travessura.
- Fale baixo! Ele pode nos ouvir. – Segredou-me com os olhos úmidos e rutilantes.
- Professor, e a inscrição, o que dizia? – perguntei, agora já assustadíssimo!
- William Shakespeare estava certo quando escreveu que “há mais coisas entre o céu e a terra do que pode imaginar nossa vã filosofia”! A existência de uma consciência suprema já havia sido percebida por Hermes Trismegisto! A Física Quântica já com provou e registrou na teoria onda-corpúsculo que todo átomo é composto de matéria e energia. A chave está no Sefer Yetzirah:
Ainda curioso, perguntei ao professor do que se tratava a tal inscrição acadiana.
18 diante sorriso no rosto.
“Em trinta e três caminhos maravilhosos da sabedoria legislou YAH YHWH dos Exércitos”! – Bradava o professor eufórico.
- Traduzi, enfim, o cuneiforme, embora não possa me comparar a Henry Creswicke. – disse-me sorrindo, no dia em que o visitei, pois eu estava muito preocupado com sua saúde Logomental.eu quis saber do que se tratava a inscrição.
O professor Serafim foi até a estátua do santo e entrou nela, encerrando-se a si próprio. Senti um torpor, uma sensação nauseante, um transe cataléptico. A minha visão foi des vanecendo, sentindo esvair-me a vida e tomado de pavor, ainda pude ouvir as últimas palavras do professor: - A inscrição dizia, LIBERTE-ME!
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- Você quer saber o que estava escrito na língua Acádia? Pois bem, não lhe direi simplesmente, vou fazer-me parte dela!
inha tia tinha segredos. Ela guardava cuida dosamente embrulhado em um delicado tecido rendado, um retrato emoldurado dentro de um baú velho, passado à sete chaves, escondido debaixo da cama. Ninguém, nem mesmo o marido, meu tio, sabia de quem era a dita foto emoldurada que ela venerava com tanto afinco. Meu tio não se ocupava sequer em querer saber de quem era a foto misteriosa. Era um homem que lidava com o gado e passava a maioria do tempo dentro dos currais
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O Retrato M
Muitas vezes, minha tia entrava no quarto, trancava a por ta por dentro, demorava quase o dia inteiro enfurnada, a título de fazer uma arrumação. Há quem diga - por ter visto uma vez pelo buraco da fechadura - que ela ficava olhando o tal retrato por horas a fio, com lágrimas nos olhos, petri ficada diante daquela moldura.
Ele até fazia troça com aquela história.
Aquele retrato misterioso aguçava a curiosidade de todos naquela casa. Imaginava-se diversas teorias da conspira ção. Seria o retrato de um amante, uma paixão inesquecida, perdida nas brumas do tempo, a quem ela dedicava aquela veneração e tamanho apreço? É certo que não era a foto do pai, pois não seria motivo de tanto segredo e mistério, pois havia outras fotos dele penduradas pela casa. Muitos se indagaram sobre aquele retrato, mas minha tia tinha sempre arranjava uma desculpa para não se falar sobre o assunto. Passou-se o tempo, até que o destino embaralhou as cartas. Numa manhã, recebi a notícia de que minha tia fora aco metida de uma dor repentina e atroz, que não lhe deu tem po mais para nada. Padeceu silenciosamente, sem grandes embaraços. A morte abocanhou-a com seu manto e levou também com ela seus segredos. Embora seja certo de que,
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21 e dos estábulos, não se interessando por caprichos de mulheres.
Quantas vezes - nem me lembro mais - perguntei para mi nha velha tia, de quem era aquele retrato, que ela guardava com tanto carinho. Ela me olhava com um olhar terno, um sorriso tímido e gentil, então acabava desconversando, enta bulando outro assunto e não dando chance para mais nada.
Deve ser a minha foto pra espantar as muriçocas!– Dizia, galhofando, em estrondosa gargalhada.
Era como se fosse um ritual.
Como ela nunca revelou para ninguém, nem mesmo para mim, de quem era aquele retrato, então, não tive coragem suficiente de olhar e ver de quem era foto.
- Quando ela morreu... - Disse ele devagar com os olhos fe chados, pensativo. - Fui até o velho baú e peguei a moldura, que estava embrulhada em um pano, mas não tive coragem de olhar.
Enfim, o mistério da foto seria revelado, pensei, aproximando-me de meu tio.
22 talvez, a morte tenha mais segredos para nos revelar do que a Novida.dia seguinte da morte dela, fui ver como estava meu tio. Conversamos pouco. Ele circunspecto, o olhar vazio, o semblante sereno. Eu, aguçado ainda pela curiosidade, perguntei para ele sobre aquela foto misteriosa. Ele sorriu. Disse-me que foi a primeira coisa que ele pensou em olhar, depois que ela tinha morrido.
- O que o senhor fez com o retrato? – Perguntei, aflito. Não me cabia mais de tanta curiosidade. No velório dela, antes de fechar o caixão, sem que ninguém per cebesse, botei o retrato do jeito que o encontrei dentro do caixão, junto com ela. Pensei que seria certo que ela levasse esse segredo com ela. Fiquei pasmo e ao mesmo tempo um tanto quanto decep cionado. Como poderia existir alguém como o meu tio, sem ter um mínimo de curiosidade? Ele teve nas mãos a chance de descobrir aquele mistério e o que ele fez? Não podia acreditar que ele tenha feito aquilo. Olhei para meu tio. Ele agora estava com um sorriso no rosto, como o sorriso dela, um sorriso tímido e gentil.
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- O que será que o diacho desse menino quer aqui, numa hora des sas? – Falou baixinho, sussurrando para si própria, tirando
ona Miúda, como fazia todos os dias, já estava na cozinha preparando o café para o seu Ildefonso e arrumando as coisas para o almoço, quando, pela janela da cozinha, que dava para o quintal, viu o menino. Ainda era cedo da manhã, dona Miúda estranhou aquele menino àquela hora. Olhou bem para ele. Estava bem vestido, com roupas finas, de sapatos bem lustrosos, sério. Com certeza não era daquelas bandas.
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A Carta
24 o avental e ajeitando o vestido. O menino continuava lá em frente à porta principal, esperando. Trazia um envelope com ele, observou dona Miúda.
Abriu a porta devagar, e o menino estava lá em pé, parado, empedernido como um soldado. - Ôxente! Que diacho vosmecê veio fazer aqui, a essa hora, seu menino? – Perguntou bem ríspida. Àquela altura, dona Miúda já estava com um pressentimento ruim.
Também lhe passou pela cabeça que poderia ser um convite de alguém importante para uma festa, quem sabe um casamento chique da alta sociedade. Aquele menino era muito bem-educado e não se parecia, nem de longe, com nenhum dos meninos dali das redondezas. Mas era certo que o tal menino não lhe entregaria a dita carta.
Bom dia, senhora! – Disse o menino, solene. – Trago uma carta para o seu marido. Ele está? - Uma carta? Que diacho de carta é essa? Posso ver? – Dona Miúda que já não estava gostando daquele menino bem cedo de manhã na sua casa, com a história da carta, então, lhe aguçou mais ainda a curiosidade. - Não posso lhe mostrar a carta, não, senhora. Só posso entregá-la somente em mãos próprias, ao próprio destinatário, que no caso é o senhor seu marido. Caso ele não esteja em casa, terei de espe rá-lo, nem que seja por um dia inteiro. Não me foi dada a opção de voltar sem ter entregue a carta. – Disse o menino num só fôlego, circunspecto. Dona Miúda ficou emudecida diante de tanta eloquência daquele fedelho esnobe. Ficou imaginando o que seria o diabo daquela carta. Será que o marido tinha se envolvido nalguma falcatrua? Ou então era a carta de uma amante?
25 - O Ildefonso, meu marido, está tomando banho. – Enfatizou dona Miúda – Vou ver se ele já terminou. Vosmecê menino
aceita um cafezinho? Quer entrar um pouco? Fiz um bolo de batata-doce agorinha mesmo, quer um pedaço? – Perguntou ela.
Infelizmente, terei que declinar de seu convite, senhora. Minha tarefa é apenas entregar essa carta ao senhor seu marido, e nada mais. Não posso aceitar nada em troca. – Disse o menino que continuava ali, em pé, impassível. Dona Miúda suspirou e entrou, deixando a porta entrea berta. Olhou para trás e viu que o menino continuava ali, petrificado, na mesma posição. Aquilo já estava ficando es quisito, pensou. Entrou no quarto e encontrou o seu Idelfonso já vestido, a toalha em volta do pescoço, enxugando o cabelo. - Tem um menino esquisito, metido a besta, aí fora, te procuran do. Quer entregar uma carta. – Falou dona Miúda, já meio abusada com aquela história.
- Um menino? Carta para mim? Lá fora? Tem certeza? – Retru cou abalado, o seu Ildefonso.
O suor começou a escorrer pelo corpo e a lhe encharcar a camisa. Nem parecia que ele tinha acabado de se enxugar. Viu também quando ele se esgueirou até a porta do quarto para ver o menino que continuava lá, incólume, em posi ção de sentido, em frente à porta entreaberta. Viu ainda
Dona Miúda percebeu logo a mudança no semblante do marido. Já o conhecia há mais de quarenta anos e sabia quando tinha alguma coisa errada com ele. Sabia, por exemplo, só em olhar para ele, quando estava feliz ou pre ocupado. Sabia até quando estava mentindo. Percebeu que ele, naquele momento em que ela lhe falou do menino e da carta, como ele teria ficado bastante nervoso.
26 quando ele correu para o banheiro, esvaindo-se em fezes, que lhe escorria pernas abaixo. Percebeu assustada que
- Não era a carta que eu pensei que fosse. – Disse ele, sereno, beijando a testa da esposa, atônita, perplexa e confusa. Sen tou-se à mesa, como se nada tivesse acontecido.
- Vamos tomar café. – disse.
- Há coisas que não se deve saber, mulher. – Disse o marido, Umrevigorado.ventoforte
O marido saiu do banheiro já recomposto. Abraçou dona Miúda e ela teve a impressão de que ele estava bastante febril e tremia muito. Dona Miúda ia já saindo às pressas para fazer um chá de gengibre, para baixar a febre, quando ele a deteve. Agarrou-a com mão forte e foi com ela até a porta, onde esperava-o, o menino. Dona Miúda, sem en tender nada, começou a sentir fraqueza nas pernas e sen tou-se para não cair.
tudo aquilo era muito mais sério do que imaginava ser e viu ainda, que aquele mau pressentimento que sentiu bem antes, estava se tornando real.
O que foi, Ildefonso? O que foi aquilo? O que tinha na carta? –Perguntou Dona Miúda, aflita, desesperada, sentada, quase desfalecendo.
entrou casa adentro, balouçando as corti nas. A manhã estava radiante de sol de um dia de verão. Ildefonso pegou a mulher pela mão.
O seu Idelfonso recebeu a carta, abriu-a e leu pacientemen te. Leu outra vez e mais uma vez. Dona Miúda observava o marido absorto com a carta na mão, diante do menino. Devolveu o papel ao menino que deu meia volta e saiu sem olhar para trás.
A Menina
U
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m homem estava sentado no banco da praça, absorto com o seu jornal, que nem se deu conta daquela mulher que se aproximava dele, com um bebê nos braços e trazendo com ela, uma menina de pouco mais de cinco anos.
A mulher tocou-lhe suavemente no ombro dele e disse em voz definhada e meio rouca: - O senhor poderia olhar essa menina, enquanto eu vou até aquela farmácia? – Apontou para o outro lado da praça, estendendo a mão mirrada. O homem concordou e a mulher sorriu-lhe com a face escaveirada, um sorriso trêmulo com ânsias de fadiga.
A menina, tímida e em silêncio, sentou-se ao lado do homem, que lhe afagou a cabeleira alourada.
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- Não vejo nenhuma criança aí, senhor. – Disse o policial, já um pouco duvidando daquela história.
- Senhor policial, a mãe dessa menina pediu para que eu tomasse conta dela enquanto ia até a farmácia e já se passou mais de meia hora e ela ainda não voltou. Não sei o que eu faço. – Disse o homem visivelmente aflito.
- De que menina o senhor está falando? – Perguntou o policial.
- Não demore muito, senhora. – Disse ele.
Ela apenas sorriu-lhe outra vez - um sorriso doce e brevedenotando que lhe fugiu antes do tempo, desta vida airada,
O homem ficou um tanto incomodado e aflito com aquela criança sentada ao seu lado. Não era bom, nos dias de hoje, um homem com a idade dele – já perto dos sessenta – ser visto com uma menininha, sem que ela fosse aparentada dele. Já havia lido sobre casos de velhos pedófilos que se aproveitavam de crianças que brincam nas praças. Sentiu um calafrio, só de se imaginar numa situação semelhante.
- Dessa garotinha aqui, senhor! – Apontou para a menina que permanecia sentada no banco ao seu lado.
- Obrigada, moço. A mamãe não demora. – Disse a menina.
Olhou com o rabo do olho para ver se a menina continuava sentada ao seu lado. A menina o olhou com um singelo Osorriso.tempo passava e a mulher não voltava. Aquela situação já estava terrivelmente incômoda. Foi quando ele tomou uma decisão de um homem decente e chamou um policial que passava por ali. O policial prontamente o atendeu.
Cadê sua mãe, menina? – Perguntou o homem bruscamente, visivelmente irritado.
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- Como o senhor não está vendo? Ela está aqui sentadinha. –Apontou para a menina que permanecia sentada no banco, com um sorrisinho maroto.
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A menina sorriu-lhe ternamente, com os olhos negros e brilhantes, a pele avermelhada por causa do sol e a cabeleira alourada, presa num laço de fita vermelha. Ela então aproximou-se dele e encaixando a sua mãozinha pequenina na mão dele, disse quase em um sussurro, pondo a outra mãozinha em concha na boca: - Agora vou morar com você. O desgraçado empalideceu. Tentou desvencilhar-se da mão da menina, e em vez disso, sentiu um aperto forte e tenaz, agarrando-o com firmeza descomunal. A partir dali, daquele dia, a menina não o deixou mais. Onde quer que ele fosse ou estivesse, a menina o seguia. O mais notável e assustador é que ninguém via a menina, por mais que ele mostrasse ou tirasse alguma foto. Os amigos e familiares já duvidavam de sua sanidade mental. Varava as noites sem conseguir dormir e quando adormecia, tinha terríveis sonhos inquietantes e pesadelos intermináveis, cheios de
O senhor está querendo brincar comigo, senhor? – Bravejou o policial já irritado – Que tipo de brincadeira é essa? Quando se virou outra vez, o homem não mais viu a menina. Desculpou-se com o policial umas mil vezes, por assim dizer. Provavelmente, a mãe já teria vindo buscar a criança sem que ele notasse. Só pode ter sido isso, pensou consigo mesmo. Decidiu ir para a casa e sentiu um calafrio gélido, quase morrendo de susto, ao ver que a menina vinha atrás dele.
O homem então se aproximou e, tocando-lhe no ombro, perguntou: - Você poderia olhar essa menina, enquanto eu vou até aquela farmácia? O rapaz concordou e a menina, tímida, sentou no banco ao lado dele. O homem então saiu dali a passos largos, sem olhar para trás.
A menina não comia, não bebia nem dormia e sequer trocava de roupa. Às vezes, ouvia a menina paralisada, fitando um ponto qualquer na parede, sussurrando palavras ininteligíveis. O mais assustador era aquele sinistro sorriso dela. O homem começou então a definhar e adoecia visivelmente. Tinha febres e delírios constantes.
30 angústias agonizantes. Muitas vezes acordava no meio da noite sobressaltado e se deparava com a menina em pé e estática ao lado de sua cama, como se fosse um fantasma, a fitá-lo insistentemente.
Sentia-se fraco e andava como um vulto melancólico saído das profundezas do inferno. Sua magreza excessiva causava espanto e repugnância. E assim se passavam os dias longos e as noites insones. Em torno daquele homem, eram noites após noites de angústias e sofrimentos que se acercavam sobre ele, até que um dia, um raio de sol entrou por uma fresta da janela, e de repente, ocorreu-lhe uma Eraideia.uma ideia simples, que há muito deveria ter tido.
Chamou a menina e disse que iam passear no parque. A menina saltou de alegria e agarrou bem forte a mão dele. Caminharam lentamente pelo parque, até que o homem avistou um rapaz sentado em um banco lendo o jornal. Ao vê-lo com a criança, de mãos dadas, o rapaz sorriu e acenou para a menina.
Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro.
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Falava que podia curar qualquer doença e fazia disso
O milagre
E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olhará de volta, para dentro de ti. (Friedrich Nietzsche) C onta-se que, há muito tempo, um homem inescrupuloso dizia ter o dom da cura.
Garantia enxotar água-nas-juntas, algueiro, alôjo e antójo, somente com um sopro. Era só fazer o sinal da cruz e salpicar umas gotas de água benta que curava barriga farosa, berruga, bicheira de vaca, bicho de pé, boqueira, bucho quebrado e caduquice. E ganhava muito dinheiro com Certoisso.dia, porém, um espírito que andava por ali a rodeálo, desceu ao seu lado e falou dentro do ouvido dele com uma voz fria e metálica como aço, deixando no ar um aroma de cânfora.
Aquele rapaz – falou o espírito – havia nascido com paralisia cerebral e o velho pai, semblante cansado, resignado, cuidaria, é certo, daquele filho para toda a vida, sem descanso algum, e aquele filho seria como um fardo.
Quando o espírito falava, o homem dizia que tinha a impressão de que tudo ao seu redor silenciava, como que se estivesse envolto numa bolha. Também experimentou um gosto de cravo-da-índia na boca, como aquele gosto de metais, quando se vai ao dentista.
O espírito falou então com voz de mármore:
32 o seu meio de vida. Tinha fama de benzedor e curador.
O homem disse que assim o quis. O toque do anjo foi tão gélido e ao mesmo tempo como se fosse um ferro em brasa lhe queimado a pele.
- Querer um dom de curar os enfermos não é de bom alvitre, mas posso tocá-lo e poderás curar um homem em uma cadeira de rodas. – Disse a ele, o anjo.
O querubim apontou para um homem que levava um rapaz numa cadeira de rodas.
E passou-se assim o tempo devido e o tal homem que dizia ter o dom da cura, não curou mais ninguém. Desesperado, febril, rogando e se remoendo em dor, andou procurando o anjo, sem nunca o ter encontrado. Ele disse então que, muito tempo depois, - talvez anos - foi visitar o rapaz que havia curado. Teria sido melhor não ter sabido. Logo depois de curado, já em casa, o rapaz começou então a espancar o próprio pai. Culpava-o por tudo, por ter nascido daquele jeito e por ter perdido toda a juventude numa cadeira de rodas. Tornou-se um homem de péssimos hábitos e começou a ter mudanças surpreendentes na personalidade e no humor.
Tornou-se extravagante e antissocial, praguejador e mentiroso, dado a bebedeiras e zombarias, com péssimas maneiras, e um criminoso da pior espécie. Não demorou muito – segundo contaram – que as agressões do filho ao pai se tornassem mais violentas e o velho, não mais suportando as agressões gratuitas do filho, matou-o com um vergalhão de ferro, atravessando-o impiedosamente.
O homem então foi, e tocou o rapaz na testa e este, levantou de um salto, como quem acorda de um pesadelo! O pai, atônito, maravilhou-se de tão grande prodígio! Um verdadeiro milagre! O benzedor então encheu-se de orgulho e soberba e o pai do rapaz encheu-lhe de dinheiro.
Por que não tenta curá-lo?
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- Pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, realizando sinais e maravilhas, com o objetivo de enganar, se possível, os próprios eleitos. – Falou o espírito dentro do ouvido do homem, que desdenhou do anjo.
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O velho enlouqueceu e foi encarcerado em manicômio judiciário. Gritava que tinha aceitado um presente do próprio Diabo.
E também se lembrou que desdenhou do anjo. Pois surgirão falsos cristos e falsos profetas, realizando sinais e maravilhas.
O homem, então, o benzedor, caiu em si e lembrou-se do que dissera o anjo.
As MaquinaçõesDoMal Hesíodo era um homem feio. Magro, tinha um andar oblíquo, o lombo encurvado, como quem carrega um peso nas costas. Tinha a face escaveirada, desdentado, com a pele amarelada como a de um sapo e ainda por cima, mancava de uma perna desde o nascimento, pois havia nascido a fórceps, como quem que não quisesse ter nascido. Desde criança fora abandonado pelos pais, jogado de casa em casa, crescendo ora com tios, ora com vizinhos, e algumas
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36 vezes na rua. Mesmo assim, aprendeu a arte da ourivesaria e mantinha um pequeno quiosque em um shopping da cidade, onde além de relógios e joias, consertava quase qualquer coisa que as mãos caveirosas e pálidas tocassem. Por conta disso, era grande o vai e vem de pessoas em busca de seus serviços.
Havia um rapaz evangélico dessas igrejas pentecostais, que vendo a amargura ateísta dele, de vez em quando vinha e lhe entregava um panfletinho sobre mensagens bíblicas.
Ele apenas recebia displicentemente, amassava e jogava na lixeira mais próxima. Certa vez, porém, um desses panfletos lhe chamou a atenção, pois estava escrito em letras vermelhas: “O que Deus quer de nós”? Considerou que aquilo era uma pergunta filosófica e esse guardou na carteira para ler
Certaposteriormente.tarde,estando ele em seu pequeno quiosque, surgiu de repente, uma bela mulher que, sorrindo-lhe com o mais belo sorriso que jamais havia visto, trouxe-lhe um broche de ouro velho para conserto. A presença daquela mulher o destreinou completamente, que mal conseguiu entender o que ela dizia, inebriado com aquela concupiscente e provocante boca vermelha, transbordante de lascívia, pois o pecado é mais fecundo do que a virtude. O pobre miserável tentou em vão esconder a feiura e a pobreza que o atormentava, mas a mulher não pareceu se importar. Ao sair, prometendo voltar
Discutia longas e intermináveis horas, sempre se encharcando de café e exaltando-se ao ponto de quase ter um aneurisma.
Sempre às dez horas da manhã, deixava o quiosque com um funcionário e saía para passear pelo shopping, conversando com um e outro, olhando as vitrines e falando entre jornais, sobre política e futebol. Era um homem muito culto. Na solidão das noites lia livros e mais livros, pois nunca teve o afago de uma mulher. Além disso, contaminado pelas filosofias, tornou-se ateu ferrenho e escarnecedor, dizendo coisas terríveis sobre a cristandade.
Durante a noite não dormiu, varando a madrugada, adoentado, febril, lendo e relendo os “vinte poemas de amor e uma canção desesperada” de Pablo Neruda, delirando de paixão, remoendo-se de dor e de desejo.
“Áspero amor, violeta coroado de espinhos, brejal entre tantas paixões eriçadas, lança das dores, coroa da cólera, por quais caminhos e como te dirige a minha alma? Por que precipitaste teu fogo doloroso, de súbito, entre as folhas frias do meu caminho”? No dia seguinte estava exausto, indeciso e nervoso. Fez o conserto da joia de ouro velho da mulher e a esperou febrilmente, tal um moribundo a esperar a morte.
37 no dia seguinte, ela tocou-lhe a face escaveirada com tanta meiguice que ele se sentiu mal e uma diarreia morna lhe escorreu pernas abaixo.
A mulher chegou finalmente, mil vezes mais bela do que no dia anterior, mas ele já eivado e cego pela súbita e encaniçada paixão, não enxergaria outra coisa além da beleza dela. Em poucos minutos já estavam tomando café e conversando sobre o Céu, a Terra e as Potestades do ar. Ele não acreditava que aquela mulher o queria de alguma forma. Além do mais ele era pobre e feio. Ela, porém, gostava de ouvir suas palestras intelectualizadas e já tinha dito o quanto admirava o seu conhecimento sobre quase tudo! Em pouco tempo, já eram grandes amigos e se encontravam todo dia. Ele já desvairado de paixão, incrédulo, dizia a todos que deixaria ser levado por ela até mesmo até os confins do inferno, se realmente tal lugar existisse. No entanto, nada ainda havia acontecido, até um dia em que ela lhe chegou provocante e insinuante, convidando-o para ir ao apartamento dela. Atônito, ele entrou no carro em que ela veio, um surpreendente sedan Lexus SC, que custaria algo em torno de cem mil dólares. Em poucos minutos
Pôs a mão no bolso de trás da calça e encontrou o panfleto onde estava escrito, “O que Deus quer de nós?”. Segurou o papel por alguns instantes e leu rapidamente Provérbios 18: “O nome de Jeová é uma torre forte. O justo corre para dentro dela e recebe proteção”. Sentiu um pouco de alívio, logo ele, um ateu convicto.
38 já estavam no condomínio de luxo, numa cobertura no trigésimo andar, de frente para o mar. Foi aí que Hesíodo envergonhou-se de sua pobreza.
Como a mulher demorava a voltar ele pôs-se a explorar o local. Novamente sentiu o odor acre e viu uma porta entreaberta de onde parecia vir o cheiro. Empurrou a porta e atônito, deparou-se com uma cena impressionante. A princípio, ele pensou que fosse um quarto de UTI. Havia um homem imobilizado a uma cama de hospital. Ligado a ele, saíam diversos tubos sanfonados que alcançavam o teto e pareciam se conectar com o quarto ao lado. Apavorado, Hesíodo viu quando o homem acamado abriu os olhos e olhou para ele numa expressão de horror e dor. Era um homem ainda jovem, mas nas condições em que se encontrava ali, parecia já ter uns cem anos.
Ela entrou em um dos quartos, dizendo que iria tomar banho e vestir algo mais apropriado e que ele se sentisse à vontade e que podia se servir de alguma bebida. Ele notou que o silêncio dentro do apartamento era insidioso. Ele sentiu um odor acre de amêndoas... Quem sabe um perfume, talvez, imaginou. Naquele momento, atormentou-lhe também um sentimento de medo.
Os diversos tubos que saíam de seu corpo pareciam lhe sugar as entranhas. O pobre homem fez sinal com os olhos esbugalhados para que Hesíodo olhasse no quarto contíguo ao que estavam. Ao abrir a porta dessa vez, experimentou a real visão do inferno. Diversos corpos
39 dilacerados estavam pendurados em ganchos, como em um açougue. Vários tonéis, cheios do que parecia ser gordura humana borbulhavam, deixando sair aquele odor acre de amêndoas. Hesíodo saiu em direção à porta da frente, já sentindo o desarranjo intestinal. Pelo barulho do chuveiro, percebeu que a mulher ainda continuava no banho. Em seu desespero, desabou em lancinante carreira escada abaixo, desengonçado, arquejando como um cão. Sequer se lembrou de que estava no trigésimo andar. Quando enfim chegou embaixo, ouviu o barulho dos sapatos da mulher. Como ela havia chegado em tão pouco tempo era um misto de horror e preocupação. Pareceu-lhe ter ouvido uns gemidos por sobre o sussurro de vozes, como um som saído de um túnel. Era ela que o chamava carinhosamente. O sangue lhe gelou nas veias quando ela parecia estar cada vez mais perto. Lembrou-se então do panfleto evangélico e clamou em silêncio pelo nome de Deus, como havia lido nos Provérbios. Pediu a Jeová que o protegesse em sua torre forte. No dia seguinte foi acordado por um vigilante. Estava todo sujo, encolhido dentro de um anel de concreto, no meio das ruínas de um edifício completamente abandonado. Descobriu que estava desaparecido há vários dias e por mais que contasse o que tinha se passado, nunca ninguém acreditou nele. Ele, no entanto, sabia agora que havia mesmo um nome a quem clamar nas horas de angústia e solidão.
S
onhava que estava caindo, caindo, caindo, em um cair sem fim. Acordava depois, assustado, no chão ao lado da cama, ensopado de suor, tremendo.
O Sonho
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Ouvia o tique-taque do relógio em cima da cabeceira da cama e conferia que já passava das três da manhã, como das outras vezes do mesmo sonho. Morava só. Não tinha nem com quem comentar o sonho que já o vinha atormen
O suicida ia pular, mas do alto do edifício, na fímbria do horizonte, viu o mar. (Nemésio Silva Filho)
Algumas vezes caminhava até a biblioteca pública para pesquisar sobre sonhos. Leu quase todos os livros sobre o assunto, mas não se convencia com as explicações simplórias e simplistas. Queria mais, queria desvendar que tipo de premonição o sonho lhe queria dar.
ela desdenhava dele. Antes que abrisse a boca a pitonisa botou cartas sobre a mesa e ordenoulhe, fitando-o com enormes olhos sonsos e agudos, que escolhesse uma carta. Ordenou-lhe. Ele não acreditava em nada, mas apontou uma.
41 tando há vários meses. Não dormia mais, com medo de cair de novo dentro do sonho. Saía para ver a rua, ainda deserta, silenciosa.
Foi aí que um dia, em suas andanças, viu um cartaz de uma cartomante, cuja conduta, dizia-se, era altamente ilibada. Numa tarde então, depois de seu sonho inquietante, sentou-se de frente com a quiromante, que lhe sorriu com o canto da Pareceu-lheboca.que
O vento da madrugada açoitava as árvores, únicas teste munhas silentes do seu terror noturno. Amanhecia com pletamente exausto, mal humorado, irascível, com uma dor de cabeça do tamanho dos astros.
A cartomante ficou séria, mas lhe falou que não havia com o que se preocupar. A carta que ele escolheu era a Torre que anuncia eventos inesperados, que algo irá mudar ou provocar uma transformação súbita. Ele saiu vazio. A cartomante em nada acrescentou à sua busca por respostas. Que eventos inesperados? Que transformação súbita?
Acordou no dia seguinte restabelecido. Teve a impressão de que o temível sonho em que caía não lhe havia atormentado como das outras noites. No entanto, percebeu que não
Alguém acendeu a luz e atônito, viu-se rodeado por médicos e enfermeiras que lhe sorriam. Soube depois que, milagrosamente, havia acordado de um coma profundo.
Ainda assustado e incrédulo, ouviu dos médicos que ele estava ali no hospital há mais de um ano, depois de ter caído de um edifício, numa suposta tentativa de suicídio.
42 se encontrava em casa e sim em um quarto de hospital.
coronel Alarcão morreu na fria madrugada do dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e cinquenta e nove, há exatos cinquenta e seis anos. No dia da sua morte, estava confortavelmente sentado em sua poltrona defronte para o janelão de onde se avistava o verde-azul do mar, saboreando a sua costumeira chávena de café. E assim passava os dias, observando o sinuoso e incansável dançar das vagas, que se espatifava no quebra-mar. Descansava a vista fatigada
43 O Homem Que DecidiuNão Morrer O
- Queres mais trinta anos? Terás que me convencer. Aí não te levo em meu manto.
Sem que ele percebesse, sentou-se ao seu lado, sorrateiramente, o Ceifador, o Mercador de Almas, o chamado Espectro das Trevas, com suas enormes asas abertas em leque, pronto para arrastá-lo para a voragem dos infernos.
44 na fímbria do horizonte, donde balouçavam distantes velas brancas de jangadas.
O coronel estreitou-se na poltrona sentindo lhe invadir o sopro morno da morte. Deu-lhe ânsias de vômito, pois sentou-se ao seu lado o próprio Demônio. Refez-se do asco que lhe causava o odor podre da efígie funesta que lhe atormentava.
Atreveu-se então a desafiá-la e perguntou-lhe, inconsciente mente como Dante: - “Quem és tu que vens antes do tempo”?
E a Alma Negra que espreita o Orgulho e a Avareza, respon deu na mesma réplica de Virgílio: - “Sobre esta lama imunda em breve poderás perceber o que se es pera”. O velho estremeu, pois sabia que a Morte o tinha encontra do e já o algemava. Tinha ainda tanta coisa que queria fazer! Chorou em desespero e o anjo escarlate cingiu-lhe num abraço putrefato e disse taxativo: - “Abandonai toda a esperança”!
Mas não quero morrer ainda. – Sussurrou o coronel aflito com a iminente desgraça. - Ainda tinha a pequenina esperança de ganhar mais alguns anos, quem sabe uma trinca. - O ceifador sorriu deixando escapar o hálito azedo dos mortos.
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Ele, o coronel Alarcão, irremediavelmente encarcerado em seu corpo petrificado, ouvia tudo sem poder mover sequer um dedo. Dizem que ficou assim durante exatos trinta anos, tendo uma morte atroz em seguida. E nada mais foi dito.
O coronel então propôs para o anjo comedor de almas, um ardil, cujo conteúdo e tratado não poderemos jamais saber, por ser um acordo entre almas perdidas. O chamado Espectro das Trevas topou a espicaçada, mas advertiu o coronel solenemente: - Mas tenhais muito cuidado, pois não se engana a Morte. A cida de de Dite tem muitas moradas e que culpa tenho eu de vossa vida perversa? O ceifador então saiu e deixou o velho sentado em sua poltro na, como era seu costume passar ali as tardes. Ficou acertado que voltaria daqui a trinta anos para levá-lo definitivamente. A brisa sadia da tarde voltou a soprar e o velho coronel ficou ali petrificado defronte para o janelão de onde se avistava o verde-azul do mar. Depois disso, depois que o Mercador de Almas desamarrou as cordas da morte, desvencilhando-se da funérea tarefa, o velho coronel permaneceu ali sentado, impassível, calado, pensativo e apreensivo quanto ao que acabara de acontecer. Havia com sucesso negociado a sua Hora com o Ceifador e obtido êxito. Permaneceu assim absorto por muito, muito tempo, até a terceira vigília. E foi assim que o encontraram na manhã seguinte. Completamente catatônico. Os médicos, um a um, o examinaram e meneavam a cabeça entre si. Não havia mais o que ser feito, a não ser deitá-lo o mais confortavelmente possível, pois era certo que tinha sofrido um derrame ful minante, resultando em um quadro de catalepsia patológica grave. Provavelmente nunca mais se recuperaria.
aquela manhã fria e chuvosa, um homem velho e esquálido, de tez amarelada que demonstrava claramente a vigência de uma dor que lhe causava grande sofrimen to, entrou no bar e pediu uma cerveja. Andava trêmulo e devagar como se contasse os passos. Se alguém o estivesse observando, diria que ele tinha o sinistro aspecto doentio de um strigoi. Ficou ali por horas, sentado na mesa de frente para a rua. Era certo que sua mente doentia maquinava alguma coisa,
O Vampiro N
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47 quem sabe talvez um crime de morte. A sua tristeza intrínse ca estampava-se nos seus olhos azuis avermelhados. Quem tivesse o dom de ler mentes, certamente iria despencar dentro do poço obscuro de seus pensamentos e saberia que lhe martelava a certeza de que a mulher dele o estava traindo, embora ele não aparentasse que era ele vítima de um abominável adultério. É provável e certo para um homem que não exista dor maior do que essa. Logo chegou os jornais com a notícia. O bar tornou-se um burburinho só. Debatia-se nas mesas o assunto do dia. Um casal teria sido atacado brutalmente na noite anterior em um quarto de hotel que ficava bem ao lado do bar. Os corpos estavam estrangulados em cima da cama e parecia, segundo a polícia, que teria sido um crime passional, pois conforme havia sido apurado junto ao gerente do hotel, as vítimas se encontravam frequentemente ali, como se fosse às escondi das. Já era sabido que a mulher era casada e estaria tendo um caso extraconjugal com o homem. É possível que o marido traído os tenha seguido e os flagrados em pleno ato liAbidinoso.cenado crime era esta: o casal estava nu em cima da cama. Garrafas de bebidas e duas taças de vinho ainda pela metade em cima do criado-mudo. Não havia sinal de arrombamento, nem sinal de luta, como se o casal tivesse sido surpreendido e não podido sequer ter tido tempo de saber o que os teria atingido. Ambos estavam semidegolados com as gar gantas rasgadas como por garras. O que mais impressionou os paramédicos e os peritos forenses foi a total ausência de sangue nos corpos, como se tivessem sido totalmente sugados por um vampiro.
O velho esquálido de tez amarelada fez sinal ao garçom e pediu mais uma cerveja. O frenesi causado pela notícia do crime do hotel já havia se acalmado e as pessoas já volta-
Quem o estivesse observando desde a hora em que ele entrou no bar, teria a nítida impressão de que ele parecia bem mais jovem e saudável do que aparentava ser.
Não obrigado, meu rapaz, estou farto. Esta noite tive um manjar dos deuses e ainda estou satisfeito.
48 vam a outros assuntos. Finalmente o garçom voltou com a cerveja. - O senhor vai querer comer alguma coisa, senhor? – perguntou o rapaz se dirigindo ao velho querníctero.
A escassez tira o Diabo de sua toca – Provérbio turco Como se tivesse saído do soneto do padre Antônio Tomás, uma pobre e desgraçada mulher, ficava todos os dias sentada no chão sobre um papelão. Tremendo em ânsias de fadiga, estendia a mão mirrada a quem passasse, rogando que lhe jogassem uma moeda. Foi outrora uma belíssima mulher, porém muito mimada. Esnobava sua beleza e partia corações, além de proposital
O Soneto Do Diabo
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50 mente humilhar os seus inúmeros e sinceros pretendentes, alucinados por avassaladora paixão incorrespondida.
Ela, porém, gargalhava, blasfemando contra o doce das pa lavras de sabedoria que o seu pai inutilmente lhe oferecia, maldizendo a Deus, maldizendo os feios, maldizendo os pobres! Dizia que queria mesmo era conhecer um homem rico, um príncipe, nem que fosse o próprio diabo, que a enchesse de muito dinheiro, joias e pedras preciosas, que a levasse a restaurantes caros e hotéis de luxo, que a levasse para co nhecer o mundo inteiro em viagens intermináveis. Sua alma fútil tinha escassez de tudo. E a escassez tira o Diabo de sua Conta-setoca. que, de tanto desejar um príncipe, o desejo reali zou-se da forma que ela queria. Conta-se que certo dia, um anjo caído que andava a rodear a terra e a passear por ela, desencaminhando os soberbos e fracos de juízo, apaixonou-se perdidamente por aquela bela senhorita. Então ascendeu do quinto dos infernos para ouvir os desejos dela, transformado em um belo mancebo, muito rico, bonito e elegante, vestido de roupas brancas, sapatos brancos e gravata branca. Tinha os cabelos louros e reluzen tes como o ouro. O belo sorriso branco e a pele pálida, deixa va saltar-lhe olhos enigmáticos, da cor esverdeada de uma esmeralda. Quem chegou perto dele o bastante, percebeu que, na verdade, ele tinha os olhos amarelados, tal e qual os
O pai dela, homem muito simples e temente a Deus, advertia-lhe de que a beleza é coisa passageira. Que tivesse cuida do, pois a beleza é fogueira das vaidades! Recitava constan temente o Eclesiastes e admoestava-lhe diariamente: “...Aplica o teu coração a conhecer a sabedoria e a conhecer os desvarios e as loucuras, e descobrirás que também tudo isto é aflição de espírito”.
51 olhos de um gato, com as pupilas fixas e inquietantes e um olhar de um vazio profundo.
Tempos depois, ela voltou só, maltrapilha, velha e doente.
Os pais dela ficaram sós, lamentando a ausência da filha única, que não se dignava ao menos de enviar sequer uma carta qualquer que fosse. E nunca mais voltou à sua terra, nem mesmo quando soube da morte dos pais.
Uma vez, ao passar por ela, pus um par de moedas em sua esquelética mão. Ela me olhou e sorriu-me com a boca desdentada e oca. Pronunciou um mantra qualquer ininteligíApesarvel.
da idade já avançada e da condição miserável na qual se encontrava, os olhos dela ainda guardavam um res quício de sua beleza de outrora.
O casamento aconteceu rápido, a despeito da não aprovação pelos pais da bela moça. O tal moço excêntrico, embora per didamente apaixonado, não quis se casar na igreja, de bran co como ela queria, pois professava outra religião. Dizia ele que só dobrava os joelhos para Melek Tauus, o Anjo Pavão e somente rezava ao Sol, e não à cruz.
Ninguém mais a reconhecia, o que não era de estranhar, pois dizia-se que já tinham passado mais de cem anos. Ela então nada mais pôde fazer, a não ser cair na mendicância e viver na rua.
Mesmo assim, desafiando a autoridade dos seus genitores, o que já era de se esperar, a beldade se casou com o rico homem de branco. A festa foi inesquecível e ocupou toda a cidade. No mesmo dia em que se casaram, sumiram no mundo em lua-de-mel. Nunca mais se ouviu falar deles, a não ser de vez em quando vinham notícias de que estavam a bordo de cruzeiros luxuosos ao redor do mundo.
Foi quando ela me disse sem que eu perguntasse, que enga nou a todos e a si mesma. Mas não enganou o Diabo. Ele lhe deu tudo: riquezas, dinheiro, joias, viagens, prosperidade, poder, fartura, luxúria, desejos infinitos. A única coisa que ele quis dela foi amá-la como um mortal. Mas ela não era mulher de um homem só.
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Em sua cegueira causada pela ganância, ela não se deu conta de que até mesmo nos mais sórdidos pactos celebrados com o Demônio, era possível existir um mínimo de ética e de decência.
O Homem No Outro Lado Da Janela
Diabo às vezes permeia a sua sombra nefasta entre nós de forma sutil, mas neste caso específico, engendrou ele uma diabólica maquinação. Verdadeiramente, diverti mento para ele é causar confusão e disparates. Mas, se isto for mesmo obra do Diabo, como diz dona Glória, entronizada em seus já setenta anos de existência, no ofício de secretária já há mais de cinquenta anos, não é nada de se duvidar, afinal, alguém que chegue são e salvo aos setenta e é certo que já tenha visto todo tipo de coisas
53
O
Nos anos setenta, dona Glória trabalhava em uma repar tição pública. Eu trabalhava no mesmo lugar, servindo o cafezinho e fazendo serviços gerais. Ao lado dela, um se nhor muito distinto de nome Osmundo, sentava-se numa mesa que ficava defronte a uma enorme janela de onde se podia ver a praça da matriz. Quando ele se desvencilhava dos afazeres burocráticos, por volta do meio-dia, gostava de sentar-se junto à janela para ver a vida passar, conforme ele mesmo dizia para ela.
Diante daquela confidência, dona Glória preocupou-se pela saúde mental do senhor Osmundo, mas não lhe disse Nonada.decorrer do tempo em que o senhor Osmundo traba lhava lá, invariavelmente dona Glória o encontrava petrifi cado diante da janela, miseravelmente esgotado e de uma
Foi em um desses dias que ele, visivelmente assustado, chamou a atenção de dona Glória. Lá na praça ele viu a si próprio sentado em um dos bancos. O outro vestia a mes ma roupa que ele naquele momento. Dona Glória disse-lhe que podia ser alguém muito parecido, quem sabe até um irmão gêmeo. O senhor Osmundo ficou muito perturbado com aquela visão, afinal ele não tinha irmão algum, que dirá um gêmeo. Desceu até a praça, mas não encontrou ninguém, o que era de se esperar. Dona Glória o tranquilizou dizendo que não se afobasse por causa daquilo. Ele, no entanto, confessou para ela que não era a primeira vez que tinha visto a si próprio lá na praça. Geralmente sempre às sextas-feiras, era certo que o “outro” estaria lá.
54 neste mundo. E se ela diz que o que se passará, é coisa do Diabo, convenhamos, é melhor acreditar, pois outra explicação não há.
55 palidez mortal. A visão de si próprio o tinha causado um estrago enorme em sua fisionomia. De um homem robusto e bem afeiçoado, tornou-se esquálido e de aspecto doentio. Foi então que ela se lembrou do fenômeno chamado “Doppelgänger”.
Com o desaparecimento do senhor Osmundo, dona Glória instintivamente mudou-se para a mesa que era dele, pois ficava defronte para a janela que dava para a praça da ma triz. Certa vez, em um dia atarefado, perto do meio-dia, numa sexta-feira, olhando pela janela enquanto se servia de café, ela viu a si própria cruzar a praça e sentar-se em um dos bancos.
Em determinadas circunstâncias, se esta criatura for avistada também por outra pessoa, significa que haverá má sorte e sérios problemas físicos e emocionais. Já para quem avistar a própria cópia, está fadado para um destino cruel que o levará à morte iminente e em alguns casos, para a loucura e para o esquecimento. É claro que dona Glória não lhe falou nada sobre isso. Melhor seria se o dissesse. Teria talvez evitado o pior.
Com o passar do tempo o senhor Osmundo praticamen te deixou de ir ao trabalho. Ninguém mais o encontrava em lugar nenhum. O mais estranho é que quase ninguém mais se lembrava dele, como se ele jamais tivesse existido. A própria dona Glória se recordava vagamente dele e fazia um esforço enorme para se lembrar de sua fisionomia.
De acordo com a lenda, o “Doppelgänger” é uma criatura que se torna um clone de alguém e que anun cia maus augúrios, já que “a pessoa vê sua alma se proje tando para fora do corpo”.
A miserável mulher estremeceu até a raiz da alma. Soltou a xícara e a garrafa de café, que estrondou no chão, espa tifando-se em mil pedaços. As pessoas correram para ver do que se tratava aquele barulho, mas nada encontraram a
não ser a xícara e a garrafa espatifada no chão e quase todo o café derramado próximo à janela. Deve ter sido o vento, disseram, em seguida fechando a janela. Como eu trabalhava nos serviços gerais, fui chamado para pôr ordem no estrago. Enquanto limpava a sala, senti um forte cheiro de alfazema e leite de rosas. O perfume agrido ce penetrou insistentemente na sala.
Espere...quem é dona Glória?
Achei que fosse do produto que eu estava utilizando na limpeza, mas repentinamente me lembrei que era o perfume característico de dona Glória.
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O Preto Que Queria Ser Branco O preto entrou na tenda da cigana. Ele era de raça pre ta subsaariana, quase azulada, banto de cor e alma. Os olhos sanguíneos, vermelhos, denunciavam-lhe a descendência racial direta dos quilombolas. Essa cigana era considerada uma mulher de poderes fenomenais e extraordinariamente assustadores dignos de Faus to. Tinham já feitos prodígios demoníacos, sentenças devas tadoras, feitiços deslumbrantes. Conhecia o submundo da magia negra e era praticante dos mais recônditos e infernais
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- Pode ir. O senhor já está branco.
O banto saiu da tenda. O sol castigou-lhe a pele como se fosse um ferro em brasa. Olhou em volta e percebeu que to dos assustados, olhavam para ele. Em vão tentou falar com
- Quero ser branco. – disse o preto taxativo. Para ele não have ria nem mais nem menos. Tinha que ser branco a qualquer custo. Venderia sua alma ao mais vil dos demônios.
O preto azulado sentou-se resoluto diante da cigana, como o corvo de Poe adentrara em seus umbrais. A escuridão da tenda encobriu o banto, tornando-o ainda mais preto. Ele ansiava mesmo um feitiço poderoso a qualquer custo, de sesperadamente. A cigana adivinhou logo o que o banto an siava, mas perguntou-lhe, só por praxe. Coisa de ciganos e adivinhos. Perguntam, embora já saibam o querem aqueles que os procuram. Perguntam, só por perguntar.
58 segredos do Vodu e da Santeria. Diziam até que ela era uma bruxa fugida de Salém. E era bem possível que assim o fosse.
A cigana sorriu. Não era a primeira vez que alguém a procu rava para tais fins. Naquela tenda a alma humana não pas sava de mísera moeda de troca para a satisfação dos mais esdrúxulos desejos. Os demônios escondidos nos cantos exultavam. A cigana segurou com força a mão do banto. Ele fechou os olhos, rangeu os dentes, salivou e com voz rouca, repetiu: - Quero ser branco!
A cigana sorriu. Sacou de uma faca e fez um pequeno corte em forma de cruz na mão do preto, deixando esvair uma quantidade considerável de sangue em uma tigela. O preto experimentou uma tontura passageira e adormeceu na ca deira. Acordou no dia seguinte disposto. Mais uma vez a cigana lhe sorriu.
- O senhor está em Dar es Salaam. Mas tenha cuidado. Aqui na Tanzânia, as pessoas odeiam os albinos.
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alguém. Todos fugiam dele. Muitos viravam o rosto com re pulsa. Assustado, o banto retornou para a tenda da cigana.
- Pode ir. O senhor já está branco. – repetiu a cigana, agora visivelmente hostil, empurrando-o para fora da tenda. O banto, apavorado, perguntou onde estava. A cigana maternalmen te levou-o para fora da tenda.
urante toda aquela noite quente, que bem podia ter sido silenciosa, além do ladrar incessante dos cachorros, ouviram-se murmúrios nos quartos do palacete assobrada do do PareceuComendador.queninguém ali dormiu bem, pois logo cedo do dia, lá pelas quatro horas, todos já estavam de pé, na cozinha, comentando entre si o que mais lhes parecia impossível de se acreditar. Todos tiveram o mesmo e impressio nante pesadelo quase que ao mesmo tempo. Acordaram sobressaltados e atônitos. Nem todos se lembravam com clareza sobre o que tinham sonhado, mas concordavam en-
A Hora D
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Dona Glorinha ainda sugeriu ao Comendador que chamassem um padre com urgência para benzer a casa, pois coisas assim não eram de bom agouro. O Comendador, avesso a qualquer tipo de crença, desconversou. Chamar um padre para quê? Os padres que fiquem lá com suas bíblias e suas hóstias, escarneceu entre estrondosa gargalhada, seguida pelos filhos, visivelmente nervosos. Na minha casa não entra padre, disse taxativo, encerrando o assunto. Antes tivesse engolido tal ofensa.
Dona Glorinha chamou dona Hermengarda à parte e disse que precisava sair mais cedo naquele dia, pois teria que ir buscar o filho na rodoviária, pontualmente ao meio-dia.
Dona Glorinha quando soube do estranho evento, benzeu -se toda e acendeu três velas para cada um dos Arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael, dos quais era fervorosa Donadevota.Hermengarda observou ainda que os cachorros esta vam nervosos desde muito cedo e não sossegaram durante a noite toda. O papagaio tagarela que ficava na cozinha, estava também estranhamente mudo, o que não era muito comum. O Comendador fez pouco caso do assunto e botou a culpa dos pesadelos na comida pesada de Dona Glori nha. Todos riram.
61 tre si que foram atormentados vigorosamente pelo mesmo Napesadelo.verdade, nem todos, acrescento, tiveram esse pesadelo coletivo. Além do Comendador, sua esposa, dona Hermen garda e seus oito filhos, quatro homens e quatro mulheres, só quem não sonhou naquela noite fora Dona Glorinha, uma negra que desde criança ajudava na cozinha e o filho pequeno do Comendador, que se chamava carinhosamente de Felipinho, que nessa época tinha apenas cinco anos.
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Às onze horas, Dona Glorinha terminou o almoço e conforme havia dito, saiu acompanhada do menino Felipinho rumo à rodoviária para buscar o filho. Segundo ela, ten cionava retornar ao sobrado lá pelas duas horas, ainda a tempo de pôr a mesa para o almoço. Dona Hermengarda sossegou e disse que ela não se avexasse. Poderia tirar a tarde de folga e só voltasse no fim do dia. E assim o fez.
Às treze horas em ponto, ouviu-se um ruído surdo seguido de um assobio. Ninguém deu importância. No minuto seguinte o centenário palacete assobradado de três andares desabou de uma vez só, ruindo sobre todos, elevando uma descomunal coluna de poeira nunca antes vista. O barulho foi tão grande e ensurdecedor que foi ouvido a quilôme-
Ao meio-dia em ponto, todos estavam sentados à mesa do almoço: o Comendador, dona Hermengarda e os oito fi lhos do casal. Um dos rapazes observou que o papagaio havia sumido e não foi encontrado em lugar nenhum da casa. Dona Hermengarda também avisou ao marido que os cachorros, que eram dois, da raça rottweiler, pularam o muro e fugiram para o terreno ao lado. O Comendador impassível, prometeu ir buscá-los depois do almoço. O al moço então foi servido.
Dona Hermengarda concordou, mas antes ela teria que deixar o almoço pronto e que levasse com ela o menino Felipinho. Assim ficou então acertado entre as duas muAlheres.manhã transcorreu normalmente, como de costume. Como era um dia de sábado, todos ficaram em casa. O Co mendador sentou-se na enorme varanda do sobrado para ler o jornal e beber uns aperitivos para esperar o almoço. Os filhos do Comendador ficaram na piscina e as meninas sentadas nos bancos do jardim entre conversas e risinhos de adolescentes. Uma manhã agradável.
Ali mesmo desceu ao “tenebroso abismo, onde a dúvida ergueu altar profano”.
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Dona Glorinha, “como um fantasma que se refugia na solidão da natureza morta”, voltou ao local onde antes era o robusto e centenário palacete assobradado do Comendador e só encontrou um enorme vazio.
tros de distância. Uma impressionante montanha de des troços tomou o lugar do sobrado, afundada no chão pelo peso descomunal da construção centenária, abrindo uma cratera de tão grande porte, como se um terremoto tivesse passado por ali. Longe dali, dona Glorinha, o filho dela que foram buscar na rodoviária e o menino Felipinho, mal sabiam o que tinha acontecido, mas o que o menino falou, a fez estremecer da cabeça aos pés. Sem ver para quê, o menino virou-se para ela e disse pausadamente: “Agora estão todos defi nitivamente enterrados!”. Claro que dona Glorinha só foi entender horas depois e o menino não falou mais sobre o Anosassunto.depois,
Desde quando ainda jovem, vivia de pequenos roubos que, com o passar do tempo, evoluiu para a prática de assal tos à mão armada, sequestros, assassinatos e toda a sorte
homem macérrimo e doente, andava às voltas com uma ideia fixa, que o vinha há dezenas de meses exaurindo-lhe o semblante, agora mortificado, de aparência abjeta, desprezível, como um edifício oco.
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Manu Gloriae
Havia já sido advertido de que sua saúde inspirava cuidados, mas não dera ouvidos aos médicos, pois havia urgência em obter o seu intento. Era um homem de maus trabalhos. A doença não adoece o caráter de um homem.
O
65 de delitos. Passou boa parte da vida atrás das grades, em paredado em um presídio de segurança máxima. Mas foi lá, encarcerado, sem ver a luz do sol, privado da liberdade, que aprendeu muito sobre o mundo e as coisas. Tal e qual Edmond Dantès, porém nem tanto inocente e injustiçado, obteve o conhecimento de uma grande fortuna, mas que não poderia ser roubada, a não ser de forma misteriosa.
Numa noite angustiante, dessas noites quando não se consegue dormir por conta de sonhos perturbadores, ouviu uma voz que saía das paredes, uma voz que se esvaía como a água que mina das infiltrações. Essa voz misteriosa falava de um encanto, de uma feitiçaria abominável, de um objeto maligno que lhe traria uma imensa fortuna. Dizia ainda que era necessário que ele quisesse de toda a sua alma. Ele então quis saber.
A voz que saía das paredes começou então a lhe dizer, por quase oitenta noites mal dormidas e angustiadas.
“Há um encanto bastante perturbador, com uma reputação de fa zer invisível aquele que o invocar e há ainda, um objeto demoníaco, uma vela que faz paralisar aqueles que vêem a sua luz. De fato, ninguém de alma decente jamais ousaria fazer uso de tal feitiça ria”. Ele então quis saber. Os olhos amarelos brilharam de cobiça.
A voz quase sussurrando, então continuava: “A Mão da Glória é um terrível artefato de magia negra e decer to, como um amuleto demoníaco, nunca é conseguido de maneira fácil. Para se conseguir uma Mão da Glória é necessário decepar a mão de um criminoso que tenha sido enforcado. Mas não basta decepar a mão do primeiro que encontrar. O corpo tem de estar de pendurado, não menos do que vinte e quatro horas em um patíbulo, na beira de alguma estrada.
O homem ouviu tudo atentamente e fez anotações minu ciosas, escrevendo a sangue frio na própria pele com uma Anosnavalha.depois, disseram que o encontram jogado ao léu, na imundície das ruas. Os braços em carne viva, onde ainda se podia ver caracteres intraduzíveis rasgados na pele, numa profusão de feridas infeccionadas e purulentas. Ouvia-se dele que tinha o poder da invisibilidade. Que podia entrar em qualquer lugar sem ser visto. Que era proprietário do mais demoníaco dos amuletos. Porém é certo que ninguém lhe dava ouvidos. Pergunta va-se como um homem portador de poder tão assustador
66 A mão deve ser separada do corpo de um só golpe. Nesse momen to também, se pegaria cabelo e gordura do cadáver para produzir a vela que a mão segurará. A mão deve ser drenada de todo o san gue, utilizando-se para isso de um pedaço de tecido de mortalha, mergulhado em uma mistura de sal, salitre, amônia, pimenta, entre outras especiarias e enfurnada por setenta semanas em um recipiente de terracota. Depois disso, tal amuleto ficaria secando ao sol nos dias mais quentes do ano, ou na falta disso, um forno servirá, onde junto, seria queimado verbena e abeto. A mão seria então moldada como um punho, onde se encaixaria a vela, feita com a gordura hu mana, cera e óleo de sásamo. O cabelo do enforcado servirá para moldar o pavio. Uma vez dentro da casa onde se planeja o assalto, basta o possuidor pronunciar um mantra demoníaco enquanto se acende a vela e quem estiver adormecido na casa, não poderá Alémdespertar.dessa propriedade maligna, a vela poderá até mesmo ser mergulhada em água e mesmo assim não se apagará. Apenas lei te fresco, sangue ou a vontade do seu dono poderá apagar a chama da vela que queimará eternamente, sem se consumir”.
67 vivia ali naquela miséria humana. Se podia entrar em qual quer lugar sem ser visto, por que não entrava no J.P.Morgan Chase, Casa da Moeda, no Gold Bullion Depository em Fort Knox ou no enigmático cofre mórmon na Cordilhera Wasatch e sairia então carregado de ouro e posses vazios dele, amarelados pela icterícia escleral, tomavam uma cor escura nas órbitas. Seu semblante se modificava repentinamente, ruborizava a face escaveirada e abria um discreto sorriso, digno do mais sábio dos homens. Sabia que lhe viriam tais perguntas. Quando tomou posse da Manu Gloriae achava mesmo que lhe viriam imensas fortunas. Poderia conquistar todos os tesouros que assim almejasse. Teria acesso ao mais intransponível dos cofres. Desvendaria todos os segredos guardados a sete chaves. E assim o fez. Mas a Manu Gloriae não lhe daria tanto poder a troco de nada. Ao conhecer os segredos humanos, ao penetrar nos mais profundos segredos da Humanidade, aquele homem adoeceu profundamente e quis devolver o poder amaldi çoado da Manu Gloriae e fracassou de forma miserável. Já era muito tarde para o arrependimento. Depois disso, acuado, como se fosse Lázaro, caiu em abstrusa desgraça. Qual invisibilidade seria maior do que um homem doente, enlouquecido e de péssima reputação, jogado nas ruas?
Osvaliosas?olhos
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O Couro De Bode Por fim das forças, Agripino queria ficar rico. Andava preenchido até à alma com a mais profunda depressão - a doença da cobiça - que lhe atormentava noite e dia. Sua figura magra, taciturna e encurvada, causava repugnância. Sua sombra disforme projetava no solo, um edifício negro, cujas janelas, semelhantes órbitas destituídas de espírito, vagava desolada, alheia a ele próprio, como se quisesse desvencilhar-se dele, numa inútil batalha, infértil delírio, terrível desolação.
Consultava febril o jornal à cata dos números sorteados, ávido de vê-los como se fossem seus números. Jogava dia riamente em toda sorte dos jogos azarentos, nunca tendo
Agripino também era dado às orgias e frequentava o baixo meretrício.
Depois de ter empreendido todas as etapas dos doze tra balhos, entre eles o mais reprovável tendo sido o de violar o túmulo de uma criança e ofertá-lo ao amaldiçoado Belzebu, Agripino então se encontrou novamente com a velha necromante, para receber dela o objeto do desejo, o qual iria enfim torná-lo rico, milionário, como sempre sonhara.
69 sido contemplado com a sorte grande, a qual perseguia com unhas e dentes, dia após dia.
Encontraram-na, a bruxa velha, em sua casa e tão logo ela viu Agripino, soube de que tipo de homem ele se tratava. Viu-lhe a alma corroída pela ganância e esfomeada de riqueza e lucro fácil. Propôs-lhe uma série de coisas odiosas, doze trabalhos que deveria fazer para atrair os dinheiros, não antes de lhe impor centenas de advertências, sob a pena de malograr o trabalho dos mortos e de se endividar com o Demônio. E boa coisa é não contrair dívidas com o maligno Senhor das Moscas.
A velha megera, a boneca de pano do Diabo, trouxe-lhe enrolado, um couro de bode curtido, advertindo-o seve ramente de que não o desenrolasse de forma alguma, pois
Uma vez embriagou-se em um cabaré e come çou a falar de seus anseios de riqueza com uma puta velha. A mulher também se embriagou com a possibilidade de obter riqueza súbita e fácil, além de também concretizar os anseios de se juntar àquele homem como consorte. Chamou-o à parte e sussurrando-lhe como num segredo de morte, com o olhar transtornado de um moribundo, con fidenciou-lhe que conhecia uma mulher que dominava as artes demoníacas do vaticínio e que era certo que ela con seguiria realizar o desejo de Agripino em tornar-se milionário da noite para o dia. Os olhos dele se esbugalharam e de braços dados com a meretriz, adentrou a noite em busca da jabiraca, afilhada do Demônio.
Agripino sempre, no entanto, de guarda do couro de bode, cioso do objeto, não deixando ninguém chegar perto o bas tante para desenrolá-lo, o que decerto seria a sua ruína. Mas o tempo é o senhor da razão.
O domínio sem misericórdia das trevas estendeu-se sobre tudo.
Assim Agripino tornou-se milionário, proprietário de fa zendas e imóveis nas mais diversas partes do mundo, empresário bem sucedido, reconhecido internacionalmente, tendo sido inclusive convidado pela mais alta elite do país a pleitear cargos políticos que o fariam mais rico ainda.
A esposa lhe veio sorrindo dizendo que tinha encontrado aquele couro nas coisas dele e que achara que ficaria muito bem na sala. O coração de Agripino quase lhe salta boca a fora. Um ar quente vindo de fora da casa soprou, trazendo consigo um odor nauseabundo impregnando totalmente o ambiente.
Tresloucado, na mais profunda agonia, sentindo esvair-se a si próprio, trôpego, ofegante, tenta em vão enrolar o cou ro, agora coberto de vermes. Tinha enfim chegado o seu devido tempo.
70 naquele couro de bode estavam todas as maldições, doen ças, pestes terríveis e misérias possíveis. O próprio mijo do Demônio estava ali enrolado naquele couro e que o Todo-Poderoso Deus se apiede da alma daquele que o desenrolar antes do devido tempo, como assim tinha que ser.
Descuidou-se Agripino uma única vez da guarda do objeto da maldição e viajou a negócios. Quando chegou a casa, estancou horrorizado ao se deparar com o fatídico couro de bode estendido na sala, como um objeto de decoração.
O
Meu pai... - dizia ele sem tirar o olhar fixo da paisagem imaginária - uma vez saiu de casa dizendo que iria até a padaria para comprar leite e pão. Minha mãe me disse que como ele fazia isso toda manhã de domingo, não estranhou nada. Só percebeu que ele tinha sumido, perto da hora do almoço.
Os Desaparecidos
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velho Antônio, quando bebia, vidrava os olhos verdes de esmeralda em um ponto fixo, fitando através da janela, espelhando o céu. Ficava assim por tempos e tempos, remoendo velhas memórias, fotos amareladas de pessoas esquecidas, regurgitadas ali mesmo na toalha quadriculada da mesa do bar.
A fumaça diáfana desenhava coisas no ar. Ele me narrava quase sempre com lágrimas nos olhos, aquela mesma his...minhatória. mãe, coitada, nunca entendeu o porquê de o meu pai ter ido embora daquele jeito. Naquele dia fatídico eu ainda era pequeno, tinha seis anos, mas eu vi o desespero dela correndo de um lado para o outro, o almoço esfriando em cima da mesa à espera de meu pai que nunca veio. Foi marcante como ela enlouqueceu nos anos seguintes. Cul pava-se constantemente.
O velho Antônio servia-se de mais uma dose cachaça, es premia meio limão na borda do copo e acendia um cigarro.
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Nos dias que se seguiram ao sumiço de meu pai, a cidade toda o procurou em vão. Munidos com fotos dele, saíram numa busca frenética nos hospitais, delegacias, hoteis, ro doviárias e nunca o tinham visto ou ouvido falar dele. Pro curaram em todas as cidades circunvizinhas, publicaram a foto dele em quase todos os jornais e programas de televisão. Por muito anos depois, ainda se viam cartazes colados nos postes de toda a região. A foto dele varou o mundo, mas nunca o encontraram.
É claro que muita gente veio até minha mãe com histórias rocambolescas, suposições estapafúrdias, extravagantes devaneios de mentes doentias e teorias conspiracionistas de toda a sorte. Surgiam boatos de que o tinham visto por toda parte, ora encontrava-se só, ora acompanhado de uma bela mulher. Minha pobre mãe sofria só em pensar que ele poderia ter ido embora por conta de uma outra mulher. Eu, ainda pequeno, sofria com o sofrimento dela.
Um dia veio-lhe um homem que dizia falar com o mun do do além, mandado não se sabe por quem. Trouxe-lhe o conforto de que dele tinha recebido uma mensagem de que estava bem. Minha mãe acreditou nele e sossegou. Era
Pela primeira vez vi minha mãe com o semblante tranquilo. Depois que meu pai foi embora outra vez, ela passou a tarde toda na varanda, pensativa, absorta, envolta em um silêncio sepulcral. Minha mãe agora estava em paz e eu sabia que ela também não voltaria mais.
73 bem melhor acreditar que ele tinha morrido. Mesmo assim, ainda lembro, ela nunca mais fechou a porta da frente, que era para o caso de ele um dia voltar e encontrar a porta sempre aberta.
Trinta anos depois, um homem entrou por aquela porta. Disse que era ele, mas não se parecia com ele. Não de como nos lembrávamos. Minha mãe o recebeu sem grande entusiasmo. Aquele homem não deu nenhuma explicação. Passava o tempo todo em silêncio, como se tentasse lembrar de algo. Minha mãe uma vez me chamou e cochichou no meu ouvido que aquele homem era ele sim, mas não era ele. Fiquei ainda mais confuso, mesmo trinta anos de pois. Tentei travar contato com aquele homem que dizia ser meu pai desaparecido. Ele me olhava e parecia não me ver. Apenas sorria. Num certo dia de domingo, esse mesmo homem disse que iria sair para comprar um jornal. Como se esperava, ele não mais voltou, como da última vez. Minha mãe fez pouco caso. Não o quis mais procurar. Também não preparou-lhe o almoço, pois sabia que ele tinha ido embora, dessa vez para sempre.
avia um homem naquela rua que tinha por muitos anos um armarinho, muito sortido de coisas várias. Podia-se ali, sem nenhum exagero, encontrar-se de tudo o que se procurasse e mesmo que não se encontrasse o que se queria, aquele homem se prontificava e se empenhava de tal zelo, a ponto de consegui-lo em poucos dias, aquilo que se Dizia-seprocurasse.também que aquele homem naquela rua, goza va da má fama de “incomparável infâmia, inexprimível miséria humana e crimes imperdoáveis”. Não havia para ele, quaisquer que fossem os empecilhos para se conseguir
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H
O Anel
Um anel. Busco simplesmente um anel e ponho no senhor toda a minha esperança de encontrá-lo. Não é um anel comum. Tenho por ele grande apreço sentimental. O valor dele é para mim ines timável. A verdade é que sei onde ele se encontra, mas falta-me arrojo e determinação para buscá-lo. - balbuciava o homem em aflição. - E onde ele está? Esse anel? O homem aflito então abaixou a voz. O ambiente pesado sufocava-lhe as palavras. Era noite e a chuva caía aos cântaros, embalada por trovões gigantescos e assustadores reVezlâmpagos.emquando, quando relampejava, as sombras se amon toavam num canto como refugiados e refletia-se a figura horrenda do Demônio na vidraça da janela, pousando a mão sobre a cabeça daquele homem.
75 itens para seu armarinho abarrotado de artigos de origens duvidosas, principalmente quando recebia a incumbência de um artigo raro, incumbência essa que se tornava um desafio. Movia pedras e montanhas para que se concretizasse o êxito da empreitada, o mais rápido que fosse, numa guer ra pessoal e infindável consigo mesmo, para se sobrepor aos prazos estipulados por ele e superar-se a si próprio, numa conduta doentia e frenética de superação.
Em uma noite pesada e chuvosa chegou até ele um homem muito aflito. Buscava um objeto de altíssimo valor senti mental. Sentou-se com ele no soturno escritório para que ali fosse iniciada a negociação pelo tal objeto.
-
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Contava que tinha um sonho repetitivo, recorrente, atribu lado, difícil. Sentia-se quase sempre sufocado e que era pu xado e arrastado pelas pernas em direção a uma espécie de banheiro, pois no sonho, dizia, dava para ver os azulejos brancos nas paredes e o odor de desinfetante, aquele cheiro de pinho misturado com o fedor de urina. Aí o pesadelo acabava ali no banheiro, não continuava e o menino não sabia o que acontecia depois que ele era puxado para ali. No dia seguinte, sabia que o pesadelo se repetiria e que acabaria de novo sendo arrastado para o banheiro. De ou-
O Pesadelo Não era de hoje, mas o menino se queixava sempre que tinha pesadelos horríveis.
77 tras vezes, o sonho recomeçava com uma nova roupagem. Era como se estivesse em uma casa nova, espaçosa e com janelas grandes que davam para um quintal ainda maior, onde se via um milharal.
Tempos depois, já passando dos cinquenta anos, tinha ain da o pesadelo recorrente e interminável. O sonho às vezes o atormentava durante semanas, mas parecia que não che garia a nenhum término. Às vezes, o pesadelo era tão real que, no meio da noite, apertava a mão da esposa sonolenta ao seu lado, querendo que ela o socorresse e impedisse que fosse levado para sempre dali. E quase sempre ela o abra çava e o sonho cessava. Mas amanhã começaria tudo outra vez.
odores de “cheiro alienígena”, pois des confiava que teria sido abduzido por entidades de outro planeta, no dia em que presenciou um objeto metálico no quintal. Mas isso já seria uma outra história.
Nos dias em que sentia no ar esses estranhos e específicos odores, era certo que teria o tal pesadelo do banheiro. Mas tal sonho não o assustava mais. Pelo contrário, esperava o dia em que o sonho ultrapassasse a cena fatídica do banheiro. Queria a todo custo saber o que iria acontecer logo depois, mas por capricho, o sonho só acabava naquele mesmo ponto. O que viria depois ainda era um mistério e a curiosidade mal o deixava dormir.
Ele também dizia, o menino, que quase sempre sentia no ar, uma fragrância que quase não podia descrever, como se fosse a mistura de diversos cheiros, como seiva de alfazema e tangerina, ou até mesmo percebeu algumas vezes, um cheiro adocicado, semelhante ao cheiro da fervura de calda de Chamavaabacaxi.aesses
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Quem tem culpa de sangue, caminha cambaleante, assim de lado, com as pernas pensas, como se portasse uma dor, uma agulha na carne. Tal e qual num poema de Leminski: Carrega o peso da dor, Como se portasse medalhas, Uma coroa, Um milhão de dólares Ou coisa que os valha. Não vive. Atravessa a existência afundada para sempre no
Obsessão
alma andrajosa retorcia-se diuturnamente sobre si mesma com o peso atroz da culpa irreparável do passado, quais raízes aprofundadas na medula óssea. Nunca dormiu de verdade sequer uma vez na vida. A não ser um sono breve e espasmódico, entrecortado por violentas tormentas de pesadelos tempestuosos e sonhos difíceis.
79 mar do arrependimento, tendo constantes visões doentias do EraInferno.assima vida miserável de Adélia, uma mulher cuja
A presença diária daquela inocente criatura lhe trouxe alí vio para suas dores e entre elas nasceu uma afinidade nun ca vista entre avó e neta. Adélia renasceu para a vida e até o sono lhe veio reparar a fadiga da existência. A netinha passava praticamente o dia todo ao seu lado como um anjo Entendiam-seguardião.
O nascimento de um neto é um evento magnífico e traz refrigério para as almas combalidas como a de Adélia.
como ninguém. Nasceram uma para a outra, disso ninguém tinha dúvida.
Um dia, a netinha que já tinha cinco anos, chegou-lhe bem perto, como quem quer contar um segredo. As mãozinhas tocaram-lhe frias, os olhinhos fitando um ponto cego. - Vovó, quem é essa mulher ao seu lado?
Casou sem ao menos ter sabido o que é ser feliz, padecen do de uma gravidez penosa e quase interminável. Sorriu unicamente quando viu o filho sair de suas entranhas, não por tê-lo visto nascer, mas por ter sentido o alívio das dores de parto. Sorriu pela segunda vez quando o filho lhe trou xe a netinha para que a conhecesse.
contorceu-se toda quando sentiu um violento e brusco puxão nos cabelos. Uma dor lancinante percorreu -lhe a espinha, estalando todos os ossos, como se lhe ras gassem a pele, como quando um açougueiro ali chegasse e estripasse um coelho a sangue frio.
- Quem é? – repetiu - Quem é essa mulher que está lhe abra çando? O sangue de Adélia gelou-lhe nas veias. Sentiu mesmo um peso na cintura apertando-a, como num abraço. Sentiu ainda um bafo morno no ouvido.
- Ela está assoprando no seu ouvido, vovó! – A menina apon tando ainda para ela, inocentemente divertia-se com aqui Adélialo.
Penosamente, antes de perder os sentidos, antes de desfa lecer em um colapso, ainda ouviu a menina dizer:
- Ela não gosta nem um pouco de você.
80 Adélia empalideceu. Viu que a menina apontava em sua direção. Virou-se bruscamente, mas nada viu. A menina parada sorria e apontava para ela.
doutor, mestre em leis, erudito e profundo conhe cedor de toda a hermenêutica do Direito Romano, da jurisprudência vigente e intérprete da Lex Duodecim Tabularum, sentou-se ofegante na poltrona, de frente para aquele homem esquisito, de tez amarelada, que exalava um odor adocicado como amêndoas em calda e tetracloreto de car bono. Esse estranho homem, mal entrou na sala, o ar ficou seco, pesado, soturno e sentiu-se uma angustiante sensação in cômoda. Trouxera-lhe logo pela manhã um documento
81 Cavilação
O
Foi o senhor mesmo quem escreveu isso? Que mente doentia teria escrito tal coisa? Sou legisperito há mais de trinta anos e nunca, nunca vi coisa tão nauseabunda e distorcida da realidade!
Penso que esse homem que acusa deve ser inocente.
-
O senhor leu a segunda página? Faça a gentileza, leia a segunda página e vai entender melhor. – disse calmamente o homem amarelo exalando o odor inebriante do Cestrum nocturnum.
- Por isso o procurei antes de tomar qualquer atitude. – disse o homem amarelo com uma voz disfônica e quase inaudível – soube que o senhor é o melhor doutor em leis e o mais experien te. Leia a segunda página e irá entender melhor. Terei paciência e não o interromperei. É preciso que o senhor leia com calma e com
82 onde estavam graves denúncias. Acusava um homem de planejar revoltas e desobediência civil de tal porte, que poderia abalar toda a ordem ideológica, econômica e política do Leupaís.aprimeira
página de um monte de papeis encader nados que aquele homem lhe trouxera. A vista ficou-lhe turva. Ele não estava acreditando em nada daquilo. Não podia ser!
O homem amarelo, de olhos amarelos, dentes amarelos, de hálito cetônico, que estava sentado tranquilamente à sua frente, o olhou serenamente como um Buda.
Isso é uma cavilação! – bradou o Erudito doutor. - O que significa isso? Santo Deus! Isso é um escárnio! Que queres de mim? Que eu acredite nessa trama execrável? Saiba que pelo Código de Ética e Disciplina do Duodecim Tabulae, capítulo dois, arti go oitavo, diz que devo informá-lo de forma clara e inequívoca, quanto a eventuais riscos da sua pretensão, e das consequências que poderão advir de tal demanda. Mas isso é uma ignomínia!
O Jurisprudente, visivelmente abalado, terminou a leitura da segunda página e ficou em silêncio por alguns instantes. Sentiu o sufocante odor adocicado penetrar-lhes nas nari nas e observou bem melhor aquele homem de pele amarela e olhos amarelados que parecia ser portador da síndrome de Lutz-Richner-Landolt.
O doutor legista sentiu-se lisonjeado e voltou-se para o cartapácio. Em silêncio leu e releu a segunda página e empalideceu visivelmente. Limpou freneticamente os óculos várias vezes, como se quisesse ter certeza do que estava lendo. O homem amarelo, de odor adocicado, o observava em silêncio.
Mas tencionava receber alguma coisa pela cabeça do homem. - Com certeza o senhor será bem recompensado. Há gente muito interessada em colocar as mãos nesse homem. Não se preocupe. O senhor será regiamente recompensado.
Com certeza essa era a causa daquele amarelidão. Era magro e quieto como uma aranha e esquelético como um cão com calazar. Quando abria a boca para falar exalava um hálito com odor similar ao de frutas envelhecidas.
- Essa denúncia que o senhor me trouxe é gravíssima. É possível que essa pessoa, a quem o senhor aponta neste documento, pode ser sentenciada à morte. Está ciente disto? E as consequencias dessa condenação serão catastróficas e com certeza, abalará os alicerces pré-estabelecidos.
83 serenidade. Depois posso explicar-lhe os pormenores.
O esquelético homem amarelo, de olhos amarelos e de há lito cetônico, sorriu e assentiu com a cabeça. Poderia sim, entregá-lo. Sabia de coisas sobre ele e onde ele se escondia.
O senhor tem prova desta denúncia? Pode entregar esse homem à Justiça?
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O aracnídeo homem sorriu e estendeu a mão ao juriscon sulto, selando o acordo. A mão era fria como o mármore dos necrotérios. O erudito doutor sentiu um calafrio. - Como devo chamá-lo, senhor? Não me disse seu nome... A boca do amarelo se abriu, lançando um odor de veludo mofado das malas ancestrais. Abriu a bolsa de couro que trazia à tiracolo e entregou um cartão de visita. - Meu nome é Judas. Judas Iscariote
Em sua lida diária, não havia obstáculos para realizar uma venda e nunca, em hipótese alguma, aceitava um “não” como resposta a seus reclames. Vendia coisas que tinham
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omo nenhum outro, ele era um excelente vendedor. Eu disse excelente? Menti. Era excepcional! Já nascera com aquele intuito. Um dom para vender tudo o que lhe propusessem para tal. Qualquer coisa, mesmo! Ambicioso, ávido por lucro, era lépido e astuto. Aguerrido, lançava-se intrépido, diuturnamente, em andanças sem rumo, febril como um explorador em busca de um tesouro.
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A Venda
Numa dessas andanças pela cidade vislumbrou um impo nente, luxuoso e alto edifício empresarial, todo negro, de portas negras de vidro opaco, chão de granito negro. Tinha certeza que nunca o tinha visto antes. Mas como não o teria visto, se passava ali quase todos os dias? Incrível como não o tinha ainda percebido. Lembrou que naquele local existia um velho prédio em ruínas e agora, para seu espanto, uma torre de vidro e aço se erguia até o céu. Conjeturou atônito de como a construção civil andava a passos largos! Construíam praticamente da noite para o dia! Não era à toa que a cidade estava crescendo daquele jeito! Ambicioso, viu ali a chance de oferecer seus produtos. Prédio novo, novos escritórios! Entrou e ainda espantado, decidiu bater de porta em porta, andar por andar. No mínimo, deixaria seu cartão de visita. E foi assim que, ao bater em uma das portas luxuosas, já no último andar, de onde se podia ver o mar, que lhe veio ao encontro uma mulher deslumbrante, qual Sílfide de sorriso provocador, insinuante e gentil. Ela prontamente o deixou entrar, ofereceu-lhe água e vinho e, sem hesitar, comprou-lhe bastante coisas.
86 um altíssimo valor e coisas supostamente invendáveis, inúteis, supérfluas e enganosas como pirâmides financeiras. Estudava com cuidado o possível cliente bem antes de abordá-lo. Se fosse alguém de posses, chegava à ousadia de oferecer um artigo caro, como um super iate de luxo de quinze toneladas. Dizia-se que era extremamente feliz em seu ofício. Não saía de mãos abanando. Gabava-se, esnobe, de nunca ter perdido uma venda. Sua pasta tinha todo tipo de catálogo dos mais diversos produtos, desde artigos da indústria naval, construção civil, imóveis, equipamentos hospitalares a anúncios classificados de baixo custo.
Ele estava estasiado! Que sorte! Nunca tinha vendido tanto em um só dia! Foi embaralhado nos catálogos e blocos de pedidos que ele ouviu uma proposta que lhe gelou dos pés à cabeça até a medula. Aquela mulher deslumbrante qual
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Despojou-se de sua alma e ali mesmo passaram a tarde em selvagem sexo, embriagados pelo desejo ardente e pelo álcool Debaixodevastador.deum viaduto, enrolado em jornais, imundo, faminto, fedorento, coberto de pústulas como num cão sarnento, o viciado em crack, soropositivo, alcoolizado, pronunciava palavras desconexas que ninguém entendia. Falava de um edifício todo negro, de portas de vidros opacos e chão de granito negro, onde certo dia, quando era um vendedor de sucesso e extremamente feliz, teria encontra do o demônio e com ele feito um negócio do qual se arre penderia amargamente para toda a sua existência! A maior venda que tinha feito, da qual não tinha nenhum orgulho. Vendera a própria alma. E depois... e depois tudo é mistério, o horror, o horror! Uma história que não deve ria ser contada.
Náiade e fatal como Medusa, com seu sorriso lascivo e pe trificante, propôs comprar-lhe um fio de cabelo, uma gota de saliva, uma gota de sangue. Pagaria a ele o que fosse, o que lhe pedisse e achasse justo. O vinho escancarou a boca abominável e falou por ele.
Tentou falar, mas o colar de ferro lhe sufocou mais ainda. Os lábios estavam em carne viva. Sentiu sede e fome.
A Crônica Do Abuso Abud abriu os olhos. Havia um homem de costas para ele, sem nenhuma roupa, que exasperado, parecia fa lar ao telefone. Tentou sair de onde estava e percebeu que estava atado com correntes a um estrado de madeira. O corpo todo lhe doeu quando fez outro esforço. Aos poucos, sua visão foi se acostumando com o ambiente e descobriu, enfim, onde estava. Viu os cadeados que lhe prendiam às correntes e ao estrado. As travas de madeira que lhe to lhiam os movimentos das pernas. As presilhas de ferro nos dedos dos pés, como se fossem anéis parafusados na ma deira, rasgando a carne. As algemas nos tornozelos que se fechavam a cada movimento. Moveu um pouco a cabeça para um lado e descobriu que também havia um colar de ferro que lhe apertava o pescoço por meio de um parafuso.
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O terror invadiu a pobre alma de Abud e ele entoou uma oração de quando era menino... ”Santo Anjo do Senhor, meu zeloso guardador...” e lembrou-se bem daquele homem. Trabalhava na mesma repartição pública que ele e já o tinha visto algumas vezes nas reuniões e nas festas de aniversariantes. Todos o tratavam por Sr. Ormuz. Do tipo persuasivo, manipulador, tinha o olhar inquietador,
— Ah, o colar! Quer que eu tire o colar? – o homem aproxi mou-se e, com uma chave de fenda e um alicate, arrancou-lhe os parafusos, lentamente, um a um, numa sequência interminável.
— Conhece? “A Falência do Prazer e do Amor” de Fernando Pessoa. Já leu Fernando Pessoa?
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— Escolheu bem. Assim podemos conversar. “Quando te vi amei-te já muito antes: Tornei a achar-te quando te encontrei. Nasci pra ti antes de haver o mundo. Não há cousa feliz ou hora alegre que eu tenha tido pela vida fora, que o não fosse porque te previa, porque dormias nela tu futuro”...
Imbecil! Que quer lá fora, se tem tudo aqui dentro, inclusive a mim? Posso matá-lo agora mesmo, se eu quiser. Não me tente!
— Não... – balbuciou. Deixe-me sair...
Enfim acordou, o meu menino! – o homem que ele havia visto sem roupas, agora vestido, se aproximou com uma jarra d’água. Deu-lhe de beber à vontade. - “Se você tomar da água que eu lhe der jamais terá sede, eu vou preencher o vazio de sua vida para sempre.” – sorriu, e acrescentou: — Posso lhe dar a liberdade ou a morte, mas antes, poderá escolher um alívio. Quer que eu tire as algemas, as correntes ou a “Forquilha do Herege”, o colar de ferro dos negros fujões? Os olhos de puro terror de Abud não viam senão o carrasco. Tentou falar, o colar rangeu entre parafusos.
—
—
Desconfio que não me deseja mais.
— Está a faltar ao trabalho, Abud. Não tenho mais justificativas a dar. Você está se saindo um péssimo funcionário. Um péssimo exemplo para os colegas. Não tenho mais justificativas a dar. Falei há pouco com o setor de RH e perdi até a paciência com eles, o que dificilmente deixo acontecer.
Abud empalideceu mais ainda. ”santo anjo do Senhor, meu zeloso guardador...” Ele havia estado refém do Sr. Ormuz durante duas semanas. Como ele teria chegado até ali, ele não lembrava por mais que tentasse. As correntes se contorceram no corpo de Abud, os cadeados e as algemas se fecharam mais. Os parafusos soltavam grunhidos. As travas das presi lhas se apertaram. A dor e a vergonha e o medo cingiram-se em Abud. A cela em que Abud se encontrava preso estava escura, úmi da, suja e havia correntes, cadeados e pregos nas paredes. Ganchos e arpões pendiam enferrujados. No canto, havia cai xotes de madeiras, baratas, caixas e jornais velhos entulhados.
90 lembrava Grigory Rasputin. Abud fizera amizade com ele e aos poucos ele já o tinha dominado ao ponto de serem vistos sempre juntos. Almoçavam sempre juntos. Ele lhe emprestava dinheiro sempre que precisava e nunca aceitava que lhe pagasse. Conversavam horas sobre quase tudo, confidências, livros, filmes e Abud julgava estar aprendendo bastante com aquele homem. Sr. Ormuz gabava-se de nunca ter faltado ou chegado atrasado um dia sequer, em 18 anos de serviço. Chegava sempre antes de todo mundo e saía tarde da noite.
— Duas semanas, já. Não se lembra? Maldito!
— Quanto tempo?... Perguntou num fio de voz, num fio de voz.
Nunca tinha ficado doente e nunca havia se envolvido sentimentalmente com qualquer funcionário, até conhecer Abud. Até conhecer Abud.
— Oh, meu Deus! - Sr. Ormuz caiu aos pés de Abud, com as mãos em penitência - O que disse? - Abud empalideceu outra vez. Os cadeados e as correntes mordiam sua carne. O colar de ferro não lhe deixava ver o que acontecia. Ouviu o tilintar de chaves e ferramentas entrecortado pelos sobrenaturais gemidos de choro e o ranger de dentes do Sr. Ormuz.
— Quanto a mim... – disse o Sr. Ormuz – Tenho que ir. Não posso me dar ao luxo de faltar ao trabalho. Quando eu voltar, podemos conversar mais um pouco... Espere... – suspirou Abud. As correntes se retorciam de dor e vexame. – tenho uma coisa a dizer...importante... E o que pode ser...? – desdenhou.
—
E Abud recitou o poema, tão baixo... tão baixo...
Mas, havia ainda, uma coisa que Abud não via e ninguém um anjo, a um canto, em meio aos entulhos, triste, aca-
brunhado de dor. Quem olhasse não veria nada além de uma sombra no canto. E o anjo recitou um poema no ouvido de Abud, tão baixo... tão baixo...
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via:
— Temos que ir ao hospital! Você está em péssimo estado! Oh, meu Deus! – O homem visivelmente transtornado começou então a manejar as ferramentas e as chaves de fenda, ar rancando os parafusos e as presilhas e os cadeados e as correntes e as travas...
—
— Oh, meu Deus! Oh, meu Deus! O que disse? - Sr. Ormuz repentinamente se descompôs em prantos e medo e dor.
E Abud, outra vez, recitou o poema, tão baixo... tão baixo...
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— Temos que ir ao hospital! Dizemos que foi atacado por um cão feroz. Que acha? – O homem freneticamente arrancava-lhe os parafusos, as travas e os cadeados, um a um, numa seqüência interminável.
— Você teve sorte, rapaz. Poucos escapam de um cão feroz. – fa lou-lhe entre sorrisos. — Você chegou inconsciente. Graças ao distinto senhor que lhe trouxe aqui, tivemos tempo de reanimá-lo. Um milagre! Abud virou o rosto e olhou para um canto do quarto. Pen sou ter visto uma sombra. Mas estava muito cansado para pensar. No entanto, havia uma coisa que Abud não via e ninguém via: um anjo, a um canto. Quem olhasse não veria nada além do que parecia ser uma sombra... E o anjo disse alguma coisa no ouvido de Abud, tão baixo... tão baixo...
— Acabou... acabou... Na repartição, onde trabalhava Abud, todos estranharam além de tudo isso, o fato de que, em 18 anos, pela primeira vez, o Sr. Ormuz faltara ao trabalho.
— Sim... um cão feroz. – balbuciou atônito, Abud. - um cão feroz... Abud abriu os olhos. Percebeu que estava em uma enfermaria. Uma enfermeira aplicou-lhe alguma coisa no braço. Ajustou o soro.
O Bode Vintessete
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bode é um dos bichos mais parecidos com gente que dá até medo. Certa vez meu avô Alfredo me contou uma estranha e curiosa história.
Ele criava no quintal um bode pai de chiqueiro, vinte cabras leiteiras e seis cabritinhos que somavam no total vinte e seis bichos, conforme ele tinha contado antes de ir pra feira, naquele sábado. Quando ele voltou, lá pras bandas do meio-dia, contou dezessete, tendo inclusive, outro bode macho, bonito, imponente, o pelo todo preto, lustroso e os olhos amarelos.
O
- E eu sei lá! Apareceu aí do nada!
O bode não gostava de ficar no chiqueiro junto com os ou tros bichos e vivia dentro de casa mesmo. Onde meu avô ia, o bode estava atrás. Parecia até gente. No começo meu avô ficou meio cabreiro, mas depois se acostumou. De tar-
- Ôxente, hôme de Deus, que bicho é eche, Alfredo meu véi?
- Me seguiu nada, muié! Comé que eu num ia notar um troço desse tamanhão atrás de mim a viagem toda?
O fato é que meu avô voltou na feira para ver se alguém andava procurando aquele pai de chiqueiro, mas ninguém tinha perdido nenhum bode daquele tamanho. Bonito como era, teve foi gente querendo comprar o bicho. Meu avô voltou com o bode pra Jurema já com a ideia de ficar com ele uns tempos até para cruzar com as cabras e au mentar a criação, até o dono aparecer para buscar. Meu avô botou o nome dele de Vintessete.
94 - Ôxente! Da donde apareceu eche bicho? Eche bicho num é meu, não! Contou os bichos mais uma vez pra ver se tinha contado direito. Chamou minha avó, dona Rita.
- Pois olhe eche estrupício aqui – apontou para o bode preto que ruminava impassível, observando tudo, com os olhos amarelados fixos em minha avó.
- Vai ver eche bicho te seguiu da feira até aqui. Vai ter que voltar lá pra devolver pro dono, seu Alfredo!
- Ô Rita, minha véia, a gente contou dezesseis bichos, contando com os cabritim novos, num foi? – Minha avó assentiu, confirmando, enquanto estendia umas roupas no varal.
95 de, depois do almoço, o bicho dormia debaixo da rede de meu avô e tomava até café com ele. Minha avó reclamava do mal cheiro do bode, mas não tinha jeito. O Vintessete já tinha conquistado mesmo o coração de todos, apesar de tudo. Era teimoso que só a peste.
O bodão sem cerimônia nenhuma ficou fazendo parte da família por um ano. O maior mistério foi mesmo foi quando ele desapareceu da mesma maneira como tinha surgido. Exatamente ao completar um ano.
Havia chovido muito na noite anterior e no dia seguinte procuraram Vintessete por todo lugar e nunca mais o enCoisascontraram.dosertão.
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A
Trago O Seu Amor De Volta
mulher, de uns tempos para cá, passou a frequen tar fervorosa e assiduamente, as vigílias na igreja. Quando não era um retiro espiritual que durava a semana inteira, era o Ofício da Imaculada, varando as madrugadas. Noutras vezes, era a novena da Nossa Senhora do Não-Sei -O-Quê, novenas e mais novenas, vigília de oração pelas famílias, etc., etc.
A mulher que ele amava, desvencilhou-se dele como fuma ça entre os dedos. Deixou todas as dores com ele e foi-se embora com diácono afro.
Tornou-se um ébrio e na bebida tentava esquecer, apedrejado, cruzando ruas e caminhos. Somente nos cabarés do baixo meretrício encontrava abrigo, pois há mais comiseração entre bêbados e prostitutas, do que entre clérigos e sacer Foidotes.numa dessas noitadas que, certo dia, viu pregado em um poste, um cartaz que dizia: TRAGO O SEU AMOR DE VOLTA. Relampejou nele, uma réstia de esperança. Enve redou-se então pelas ruas, em busca da cartomante que dizia trazer em três dias, a pessoa amada de volta. A cartomante olhou para ele e se apiedou.
- Quer que ela volte pela linha branca ou pela linha preta? – per guntou a cartomante embaralhando as cartas. – Pela linha
97 - O padre disse que vamos ficar enclausurados para rezar o terço pela paz mundial. – dizia ela ao marido. Paz mundial, coisa nenhuma! Foi em um desses retiros madrugadas adentro que ela conheceu um diácono que a seduziu entre terços, vigílias e rezas. Ela estava mesmo era nos braços de um negro banto de olhos melosos, bonito, viril e cheiroso, que a curou de todos os males e a levou consigo encantada, como num conto de Grimm.
Ele não dormiu durante um mês inteiro. A casa estava cheia de fotos, das coisas e do cheiro dela. Desandou e perdeu o prumo. Culpava Deus e a Igreja por tê-la perdido. Andava por aí como um notívago, perambu lando maltrapilho pelos bares e noitadas.
98 preta é garantido, mas vai lhe custar muito dinheiro. – frisou.
A partir daquele dia, a mulher não saia mais de casa. Ele se recompôs e passou a enchê-la jóias, vestidos, perfumes e presentes caros, mas não de carinho e de afeto.
Imediatamente ele foi detido e acusado de homicídio dolo so, ocultação de cadáver e crime de violação de sepultura, embora ele dissesse insistentemente, que só queria o seu amor de volta.
Ele a aceitou de volta. Recebeu-a efusivamente, encheu a casa de rosas.
Ele pagou uma quantia considerável e ela fez o que tinha que ser feito e evocou as potestades do ar.
Mas a mulher não era mais a mesma. Não comia, não bebia, não falava, nem sequer dormia. Passava o dia todo apática em um sofá da sala com os olhos perdidos em um ponto qualquer no horizonte.
Mesmo assim, diante daquilo tudo, embriagado pela sua demência, ele estava radiante com a volta da pessoa amada, até que um dia, a situação tomou um rumo inesperado.
De fato ela voltou, três dias depois. Os olhos chorosos, ca belos desgrenhados, trêmula, mas não suplicando perdão.
Os vizinhos sentiram um odor insuportável vindo do apar tamento e acionaram a Polícia. Quando os policiais entra ram no local, encontraram a mulher sentada na sala, diante da janela, já em adiantado estado de decomposição, com os olhos vividamente abertos e preservados, fitando serenamente, um ponto qualquer no horizonte.
O Alfaiate
F
irmino, o alfaiate, acordou sobressaltado com aquele sonho. Não que tivesse sido um pesadelo, mas um daqueles sonhos repetitivos, sufocantes e intermináveis.
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Varou toda a noite tendo o mesmo inquietante sonho. Na manhã seguinte, contou para a esposa o que tinha sonhado, enquanto ela lhe preparava o café.
- Essa noite sonhei de novo com uma mulher que chegava e me trazia um pano de cor marrom para que eu fizesse um paletó. Dizia que tinha que ser com urgência e então ia embora. O que será que significa? Já faz um bom tempo que eu tenho a impressão que sonho com isso toda a noite.
100 A mulher não deu muita importância com aquela história do marido. Falou que devia ser porque ele estava muito atarefado no trabalho. Ele concordou, mas não disse para a esposa que o que mais o impressionou no sonho, é que a dita mulher chorava muito. O choro dela fora o que mais o tinha impressionado.
Ao cabo de alguns meses, já no final do ano, Firmino, o alfaiate, deixou de sonhar com aquela mulher. Tinha já, na verdade, esquecido. E por ter realmente esquecido daquele estranho sonho, não percebeu quando recebeu uma enco menda de um paletó. Ele como o único e mais requisitado alfaiate da cidade, era comum receber encomendas de pa letós e becas, principalmente no final de ano, para as festas de formatura e colação de grau.
Uma mulher viera bem cedo da manhã e deixara um pa cote com o tecido para a encomenda. Firmino, o alfaiate, estremeceu ao abrir o embrulho: um tecido marrom ace tinado. Junto com o tecido, um bilhete onde vinha escrito: “urgente, urgentíssimo”. - Só pode ser coincidência! Não é possível! - pensou consigo Quismesmo.logo saber quem era a tal mulher que solicitou-lhe a encomenda do paletó. Junto com o bilhete, havia também uma quantia em dinheiro e o endereço de entrega. Pôs, en tão, imediatamente, a fazer o paletó. Fez da melhor manei ra possível, caprichou mais do que nas outras encomendas, usou as melhores linhas, o mais caprichado corte e colocou os melhores botões que pôde encontrar. No final, o seu empenho resultou em excelente trabalho.
Embatucado e amedrontado com aquela estranha coinci dência, decidiu ir pessoalmente ao tal endereço. Tinha que saber quem era aquela mulher. Tinha que saber quem es-
101 tava lhe pregando aquela peça. Na sua conturbada cabeça, dizia-se a si próprio que aquilo não iria ficar por isso mesChegoumo. ao endereço que estava escrito no bilhete. Era um palacete desses antigos, numa rua pacata e deserta. O as pecto do casarão demonstrava ser de pessoas de classe alta e abastada. O enorme portão de ferro estava entreaberto. Tocou a campainha e como ninguém atendia, corajosamente curioso, adentrou no bem cuidado jardim do casarão. Andou por alguns metros e quando subia os primeiros degraus que dava para a casa, foi impedido por um balaço que lhe estilhaçou o crânio, sem chance de sequer saber quem seria o seu agressor.
Num instante, o local ficou cheio de curiosos e carros de polícia, com seus frenéticos gemidos dos toques das sire nes intermitentes.
A única coisa que os jornais disseram é que Firmino, o alfaiate, fora assassinado pelo marido enga nado que aquartelado dentro de casa, estava à espera do infeliz amante de sua esposa adúltera, que também fora encontrada morta no interior do palacete. O marido cor neado também matou-se com outro certeiro tiro entre os olhos, deixando a terrível história dita pelo não dito, sem outras explicações, refém somente das especulações dos Nocircunstantes.velóriodo desgraçado alfaiate, todos notaram que ele vestia um luxuoso paletó marrom acetinado.
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As Horas Abertas As horas dividem os dias, as noites, os anos, os sé culos e os segundos, sendo elas propícias ou maléficas. De acordo o entendimento dos antigos, desde os tempos remotos, esquecidos nas inefáveis colunas imemoriais dos tempos, existem certos espaços temporais chamados de “as horas abertas”, que são, conforme registrou Câmara Cascudo, “aquele momento em que as coisas más podem agir, deixando demônios e fantasmas atuarem livremen te”. Coincide sempre a morte chegar nessas horas. Os moribundos expelem seu último suspiro nesse pequeno espa-
“Ao escurecer e nas ultimas trevas, aparecem assombrando nas encruzilhadas negrinhos misteriosos, cavalos sem cabeça, visa gens brancas e vagas, silvos, apitos, rumores sem a mínima ex plicação”. Meio-Dia, Meia-Noite e pelas trindades, são horas misteriosas para o viajante. Horas de aparições e de bruxedos.
À hora do Meio-Dia, encontram-se pelas estradas umas coisas más que se chamam de redemunhos e do meio deles saltam as visagens e as aparições saída dos infernos para expiar seus pecados e anunciar suas maldades.
Nessas horas inefáveis aparece lá em lugares ermos e sombrios o próprio Diabo a andar pela terra procurando a quem atentar com seus desejos e volúpias. Nas Trindades, que é a hora aberta, é quase de fé que nas encruzilhadas se vê coisas ruins.
103 ço de tempo, pelas madrugadas, nas primeiras horas da manhã, no quebrar da barra ou ao anoitecer. São justamente essas as horas em que se morre.
Um caixeiro viajante ou um andarilho que, por pura má sorte, se encontrar em pleno meio-dia vagueando em uma estrada deserta e ouvir assovios, choro de criança ou vozes chamando, que nunca se vire, que não se comova e que não levante a cabeça. “O remédio é fechar os ouvidos, apressar o passo, fazer o Pai-Nosso e esconjurar o demônio”. Se olhar é certo que fica louco. Muitas vezes, andarilhos solitários contam que se escutam vozes e passos de alguém caminhando ao lado e quando se olha para trás, somente a estrada vazia a se perder de vista. É bom que não lhes dê ouvidos. Acautelai-vos e apressai o passo. São as horas abertas pro curando a quem devorar.
O Padre Uma pequena cidadezinha nos confins do sertão atormentado pela seca, esquecida e perdida entre os montes de pedras, no meio da caatinga ardente, tinha como prefeito um coronel abastado que morava na Capital e só ia lá uma vez por mês para assinar os papeis da prefeitura. Conta-se que durante a campanha eleitoral, além da troca de votos por dentaduras, ele tinha prometido que iria pedir para a Arquidiocese, um padre para comandar a recém construída Igreja que tinha como patrono Santo Antônio de Pádua. Para angariar mais votos e enganar o povo fervoroso, o tal coronel por pura megalomania, mandou buscar na Itália uma estátua do Santo Antônio em tamanho natural, esculpida em mármore Carrara por um famoso
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105 escultor italiano, exaurindo completamente os cofres pú blicos do já minguado município, claro, sem antes superfaturar a negociação. Mas antes disso, o coronel tivera uma ideia bem bizarra.
Em vez de solicitar para a Arquidiocese um padre de ver dade, contratou um velho turco que ele tinha conhecido em uma zona de baixo meretrício, onde gostava de passar as noites jogando carteado e se abufelando com as quengas, tudo com dinheiro público. Esse turco já tinha sido seminarista e conhecia um pouco da liturgia católica. A ideia do coronel era que ele iria se passar por padre e assim enganar o povo mais uma vez. Assim dito, assim feito.
Quando ele perguntava diziam que já tinham se confessado com o outro padre. Que outro padre? Berrou o coronel. O falso padre, o turco, se limitava a repetir a história que o povo dizia. Havia outro padre que estava no confessionário. O coronel teve então a ideia deles ficarem escondidos dentro da igreja para saber quem seria esse outro padre. Logo depois de se esconderem, viram com terrível espanto, a estátua de Santo Antônio de Pádua descer do pedestal. Ficaram ali petrificados sem saber nem entender o que estavam presenciando. San to Antônio de Pádua foi até o altar, ajoelhou-se e pareceu estar fazendo uma oração em silêncio. A estátua, agora já com aparência humana, caminhou então lentamente para
O falso padre chegou e foi recebido com festa. Passou a celebrar as missas sem chamar muita atenção, embolsando o dinheiro das ofertas e se embriagando com o vinho na sacristia. O coronel teve outra ideia. Queria que o falso pa dre obrigasse o povo a se confessar e assim, ficaria sabendo de algum segredo que pudesse tirar alguma vantagem. O falso padre então mandou avisar que todos os paroquianos tinham a obrigação de se confessarem todos os domin gos antes da missa, mas apesar disso, ninguém aparecia no confessionário.
106 onde estava o coronel e o falso padre que já se tremiam de medo. Naquele momento o turco teve um ataque cardíaco e morreu ali mesmo, sendo encontrado depois. Quanto ao coronel nada se sabe, nem que rumo tomou. Sumiu por Atécompleto.hoje,dizem, na igreja daquela pequena cidade esquecida e perdida entre os montes de pedras, no meio da caatinga ardente, existe um sacerdote humilde e inspirador dentro do confessionário.
À noite todos os gatos são pardos. Quando a porta de vidro deslizou fazendo aquele ruído característico, cabeças sincronizadas se viraram, curiosas. As mulheres atentas, os homens extasiados. A nova cliente que já era esperada por todos, enfim dava o ar da graça. E realmente a moça era muito bonita. Embora seja certo de que a expectativa é a grande filha da puta da história, a beleza daquela senhorita superou acima do esperado. Ela, trajando um micro vestido vermelho, propositalmente bem curto acima dos joelhos, deixava à mostra as bem torneadas coxas
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Os Gatos Pardos
A partir daqui, a história toma um outro rumo. Não se sabe ao certo o que aconteceu logo após a visita daquela cliente.
Depois do barzinho, a situação fugiu do controle do casal,
A secretária ainda na porta do elevador, lembrou ao chefe que ele teria no dia seguinte, uma importante reunião com a holding da empresa e que o voo para São Paulo estava marcado pontualmente para as oito horas da manhã. O chefe a tran quilizou, dizendo que estaria no aeroporto bem antes disso.
108 e pernas, delineadas por uma provocante meia cor da pele, como naqueles anúncios de revistas. A boca sensualmente
insinuou um sorriso para os homens já hipnotizados, reféns do batom propositalmente vermelho-pecado. As mulheres, lançando-lhe um olhar à egípcia, desdenhavam da ofuscante beleza da moçoila.
O chefe visivelmente nervoso e ao mesmo tempo mantendo a compostura de um homem bem casado, censurou a todos com um olhar reprovador, principalmente para os machos afoitos, bem no estilo de Iracebeth, a Rainha de Copas: “ca beças rolarão”!
Tudo era apenas especulações. Dizia-se que o chefe fora fisga do pela beleza da moça e que por causa dela afundou na mais profunda miséria humana, destruindo um sólido casamento e aplicando um vultoso desfalque na empresa, sendo suma riamente exonerado por justa causa.
A cliente ficou um bom par de horas na sala do chefe e perto das dezenove horas saíram da sala, a título de jantarem jun tos, no intuito meramente comercial, para tratar de negócios.
Depois do suposto jantar de negócios, o chefe e a cliente saíram para um barzinho somente com o intuito de espairecer e jogar conversa fora, sem maiores consequências, afinal ele estava cônscio de que deveria estar presente na reunião da holding em São Paulo, no dia seguinte.
Aturdido, mas uma vez procurou pela moça e a encontrou no banheiro. Estava nua, de costas. Ele pôde ver a pele flácida das pernas e das coxas, agora sem as lascivas meias. Obser vou também, ainda, alguns hematomas e cicatrizes cirúrgicas nas costas. Para piorar ainda aquele terrível pesadelo, percebeu uma considerável quantidade de medicamentos sobre uma mesinha no canto. Atônito e agora assustado ainda pôde ler o festival de rótulos: abacavir, didanosina, estavudina, lamivudina, tenofovir, zidovudina, efavirenz, nevirapina e etravirina. Sobre a mesa viu também uma pilha de exames laboratoriais. Em um misto de curiosidade e de pavor, leu na etiqueta em letras vermelhas: paciente HIV positivo.
O homem acordou atordoado pela ressaca devastadora. Já passava das onze horas da manhã e desesperado, lamentou profundamente pela sua ausência na reunião em São Paulo.
e voluptuosamente numa cama de casal no apartamento da concupiscente cliente. Sabe-se lá o que fizeram a noite inteira.
Olhou ao redor e estranhou que o quarto mais parecia um quarto de hospital. Viu muitos equipamentos hospitalares, um suporte para soro ao lado da cama e sentiu um leve odor de medicamentos, como num ambulatório de hospital.
109 que tomados pelo sabor adocicado dos espumantes, aluci nados pela embriaguês dos notívagos, encontraram-se febril
Aliás, a reunião já era! Seria preciso uma desculpa muito bem elaborada para justificar tamanha falha. Na verdade nenhuma justificativa seria suficientemente aceitável. O aparelho celular tocava como um louco.
Abriu a janela do quarto e a tarde principiava-se bela sobre a cidade..
Procurou pela moça. O vestido vermelho tentador e as sensuais meias cor da pele estavam jogadas sobre uma cadeira.
O Oitizeiro
Sentado em um banco da praça, sob a sombra generosa de um oitizeiro antigo, um homem simples e de apa rência humilde, sem grandes pretensões para com o mun do, armava todo dia sua banquinha de quinquilharias e miudezas. Ficava ali por horas, comercializando seus produtos tão simples quanto ele próprio.
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Alguns vinham ali jogar conversa fora, apenas para se sen tarem também debaixo da sombra do oitizeiro, esbaforidos com o calor tropical, refestelando-se nos bancos, travando calóricos debates sobre quase tudo o que se passava pelo
Mas ele agradecia a Deus por aquele oitizeiro ter nascido justamente ali, onde construíram a praça, onde ele podia se sentar todo o dia e armar sua banquinha sob aquela som bra dadivosa e refrescante.
Porém, havia uma história terrível em torno daquele ho mem simples e de aparência humilde (somente para nos mostrar que as coisas nunca são o que parecem ser).
Sem saber que ela estava grávida (não que isso fizesse dife rença para ele), despejou nela toda sua ira, submetendo-a
Fala-se, à boca pequena, que esse dito homem já fora muito rico, dono de muitas posses, latifundiário e por causa dessa imensa riqueza, tinha se tornado em um homem de maus bofes, perverso e desalmado.
Aquele homem simples bem que podia ter sido um homem de negócios ou quem sabe até mesmo um médico conceituado na cidade ou até sabe-se lá, um político bem assentado na vida pública. Mas não. Ele dedicou-se a coi sas pequenas, não almejou ser grande em nada e, por fim, já velho, sobrou-lhe apenas a pequena oportunidade de ter conseguido licença da prefeitura para negociar miudezas no centro da cidade. Mesmo assim, ele parecia que não in vejava nada, nem queria nada a não ser saúde para poder trabalhar (como ele mesmo dizia com sua voz quase inau dível), mesmo que o ganho obtido daquela pequena banquinha fosse ínfimo e risível.
Tratava todos de forma absolutamente cruel, principalmente para com sua esposa. Mantinha-a em cárcere privado, batia nela e a humilhava na frente de todos. Certo dia, chegado de uma viagem que não lhe foi muito lucrativa, encontrou a desventurada mulher adoentada, de cama.
111 país. O homem ouvia as exasperadas queixas em silêncio, assentia com cabeça e invariavelmente sorria.
Percebeu tardiamente que de toda a sua exuberante rique za, ele tinha perdido um tesouro bem maior e muito mais valioso: um filho. A mulher jazia morta a seus pés e nada mais havia o que ser feito.
112 às mais bárbaras torturas. Mas antes de morrer, a pobre mulher, ofegante, disse-lhe que estava esperando um filho dele. Ele, estarrecido, estancou petrificado ainda com o chicote na mão e sentiu sua alma esvair-se como fumaça.
Conta-se ainda, que ele caiu em desgraça e perdeu tudo o quanto tinha, ficando pobre e miseravelmente só. Alguns dizem que logo depois daquele crime hediondo, ele sepul tou o corpo da mulher no terreiro atrás da casa, no mesmo lugar onde hoje foi construída a praça, exatamente sob as raízes daquele oitizeiro centenário.
ona Esmeralda me pegava para contar histórias do tempo em que ela era menina. Sabia que eu gostava des sas histórias de assombração, alma penada, coisas do outro mundo. Eu me sentava com ela debaixo do pé de jambo no jardim, a aragem fresca e a sombra enorme abraçava a tarde toda.
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Ela mandava trazer uma garrafa de café e o potinho de bis coitos de araruta. Sem tirar os olhos do crochê, começava a narrar bem devagar, sempre com uma pausa silenciosa para um gole quente de café.
D
Ao Meio-Dia
- Esse rapaz, que era pescador, saía muito cedo e só voltava tarde da noite, mas nesse dia ele chegou mais ou menos ao meio-dia, para a surpresa de sua esposa, que o recebeu ainda na calçada. Ele estava com as roupas todas molhadas, encharcadas mesmo, que a água escorria, molhando tudo.
-
Quando eu era menina... – olhava pra mim por cima dos óculos de lentes grossas – eu morava ali no bairro de São João do Tauape. Bem em frente da minha casa, morava um casal. Ele era pescador e todo dia de manhãzinha saía para o porto das jan gadas na enseada do Mucuripe. Pausa para o café.
Dona Esmeralda fez outra pausa. Olhou-me para conferir a minha reação diante daquela história. Tomou mais um gole de café e um biscoito de araruta. Era o jeito dela de fazer suspense. Deliciava-se com a curiosidade do ouvinte.
A tarde pronunciava-se bela. O som bucólico do apito de um trem passando ao longe ainda retém-se na minha me mória. Então ela voltava para a história.
- Pois bem... - continuou – a mulher ficou tiririca com o marido. Começou a reclamar que ele tinha molhado a casa toda e encharcado toda a cama, que ela tinha acabado de mudar. Foi buscar uma toalha e umas roupas secas para o marido, mas quando en trou no quarto, não o encontrou mais. Muito intrigada, correu para fora, para ver se o marido tinha ido embora, mas nada, não
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A mulher ficou muito chateada com aquilo e começou então a ralhar com ele, pois ia molhar a casa toda, que ela acabara de limpar. O marido nada falou. Apenas entrou em casa e foi direto para o quarto e se deitou na cama do jeito que tinha chegado.
Começava sempre assim:
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o encontrou e ninguém o tinha visto sair. Não preciso dizer que a pobre da mulher ficou desolada com aquilo. Sentou-se na cal çada e esperou o marido voltar. Anoiteceu e a mulher sentada na calçada e nada de o marido voltar para casa. Tarde da noite veio a terrível notícia de que a jangada tinha naufragado e todos os pescadores tinham morrido afogados em alto mar. Enlouquecida, a pobre mulher dizia que não era possível, pois ele tinha chegado mais cedo naquele dia. Dona Esmeralda fez outra pausa. Tomou mais um gole de café e com muito suspense concluiu: - Ele tinha morrido exatamente ao meio-dia.
uando ribombavam trovões e relâmpagos, rasgan do o céu todo cacheado de nuvens roxas, preto-azuladas, cor de chumbo, como se fossem gigantescas montanhas no horizonte, o chão tremia balançando as paredes da casa velha e trepidavam as panelas na velha bateria de alumí nio na cozinha. Seu Alfredo, meu avô logo saía para o al pendre, abraçando com carinho dona Rita, minha avó, que encolhida de frio, se enrolava da cabeça aos pés numa col
HistóriasFantásticasDeChuva
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- Menino! – era a interjeição de meu avô quando algo lhe impressionava. Era como se ele estivesse ralhando com os céus, admirado e ao mesmo tempo agradecido pela quantidade de água que presenciava, nunca vista antes pelos mais jovens, ali pelas bandas do sertão do Vale do Acaraú, castigado pela seca.
Aí começavam as histórias.
rencial, que sem trégua, desabava desde a noite anterior, escavucando o chão, arrebentando valas no barro vermelho, alagando o solo, inundando as veredas e certamente sangrando o açude. Certamente.
- Só vi um inverno desses, quando daquela vez, quando eu en frentei uma inundação da peste. O rio Acaraú encheu tanto que parecia um mar. Muita coisa ficou debaixo d’água. O povo di zia que no meio da noite aparecia de vez em quando um navio enorme, um galeão espanhol, vindo do nada, à deriva no meio da noite, como um fantasma por cima das casas.
117 cha de retalhos. Satisfeitos, encantados, olhos translúcidos, ambos assistiam maravilhados ao espetáculo da chuva tor-
A mulher preparando um cafezinho quente pra espantar o frio, assentia e fechava os olhos, como se fosse para rebuscar nos calendários imaginários das cangalhas do tem po, histórias antigas contadas pelos vaqueiros nos tempos imemoriais. Os trovões ribombavam outra vez, o céu re lampejando, golpeando o horizonte, o chão tremendo que dava medo. Nas noites de chuva grossa ele sempre vinha com umas histórias e narrativas extravagantes, como o intrigante caso de uma mulher grávida que, numa noite de chuva torren cial, para o espanto de todos, pariu um enorme peixe, um
- Tu se alembra, minha véia?
118 camurupim, bem gordo. Aquele peixe tinha uns quaren ta quilos. A mulher quase morre de sangramento. Foi um alvoroço medonho na cidade. Aí quando ela pariu, o bicho falou com voz de gente, anunciando que uma tromba d’água iria inundar todo o vale e que não iria sobrar nin guém. Naquela mesma noite o peixe foi solto dentro do rio Acaraú e foi por causa disso que a tragédia não aconteceu, afirmaria por muitos anos depois, a mãe do peixe.
Meu avô contava muitas histórias como essas. Muitas narrativas, que segundo ele mesmo tinha protagonizado e muitas outras que teria escutado quando criança. Tinha dons igualmente extravagantes e assustadores. Dizia-se, que tinha uma estranha proeza: pegava uma faca e apertava o cabo com força e pela ponta vertia um líquido da cor de café que enchia uma xícara, não se sabe do quê. O povo presenciava tudo aquilo admirado e de vez em quando aparecia um gaiato pra jogar água na fervura. - Êita que o seu Alfredo é chêi das lorota! Pense num véi pra -mentir!Táduvidando de mim, cara de soín? – respondia ele, sem dar muita atenção, já emendando outra narrativa, mais inve rossímil ainda do que a anterior. Meu avô era um homem alto, magro, meio alourado de olhos claros. Morreu de um mal estar repentino ainda em cima do cavalo. E não era pra menos, pois já contava cento e sete anos. Diz-se que o animal se ajoelhou para que pu dessem desmontá-lo. Já estava morto. Na hora do enterro, quiseram-lhe quebrar as pernas, pois não havia esquife para o tamanho dele. An tes disso, apareceu um homem que trabalhava com mar cenaria e que se propôs a fazer um caixão na medida certa do homem.
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Quando chove e os trovões e relâmpagos esbravejam no céu, emergem do imaginário do sertão essas histórias fantásticas, eventos intrigantes, casos deslumbrantes, além de nossa imaginação. E meu avô por certo, se fosse vivo, es taria agora contando suas assombrosas histórias das noites de chuva no sertão.
Um hôme trabaidô e honesto como seu Alfredo, não pode chegar lá no Céu, pru mode falar com Nosso Sinhô, com as pernas que bradas, de jeito manêra!
Por causa desse imprevisto, o enterro foi adiado e deu tem po de chegar um de seus filhos que morava distante e que achava que não iria chegar a tempo, mas chegou.
-
Cresceu ali mesmo na casa grande e desde pequena já ajudava na lida da cozinha. Mesmo alforriada pela Lei do Ventre Livre, aprendeu cedo o que era o trabalho escravo na Fazenda. Mas era feliz. O patrão, dono da fazenda, apesar de ter muitos escravos, era um homem de ideais abolicionistas e não se presenciava ali o maltrato com os pretos, como ela ou-
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AsDaCorrentesPaixão
Quinquinha era uma pretinha alforriada e já contava com seus dez anos de idade. Tinha o cabelo pixaim, as pernas finas, os olhos e o bucho grande. Ela parecia mais com um boi de melão-caetano, dois palitos enfiados num sabugo, dois cambitos segurando um caçuá. E não era bonita, não, a pobrezinha! A moleca ainda era tão malamanhada que dava dó. Era mais desembestada do que indigestão de torresmo.
O filho do patrão tinha quase a mesma idade da pretinha e herdara talvez do avô, que era português, a índole escravocrata e era dado a humilhar os pretos da fazenda. Dizia que a raça preta tinha sido feita para as correntes e para o açoite. Em sua repulsão figadal aos pretos, tinha uma predileção especial em oprimir a pobre Quinquinha, que envolta em sua inocência de criança, aceitava o assédio moral com a parcimônia de um Muitasmonge.emuitas vezes, o mancebo divertia-se quando entor nava sobre a cabeça de Quinquinha a panela de feijão ainda quente, causando-lhe queimaduras severas. Ainda não satisfeito com a atrocidade, lambuzava o rosto da pobre coitada esfregando-o no chão nos restos que sobrava, entre outras se vícias, sob o olhar severo do pai impotente e envergonhado, mas que nada fazia, além de lamentar as ações do filho.
Por conta desses abusos e da conduta criminosa do filho, mandou-o para a Corte, a fim de estudar. Talvez se emendasse e se tornasse um abolicionista, esperava o pai. Passaram-se então os anos e quando ele voltou, voltou esnobe e afetado. Atormentava-o a iminente possibilidade de a princesa Isabel assinar a abolição dos escravos. Ao entrar na fazenda, acompanhado por um séquito de serviçais a levar-lhe as dezenas de malas, deu logo de cara com Quinquinha, já moça feita. Estava simplesmente linda, belíssima!
Os olhos pretos como jamais vira. Os cabelos pre tos trançados caiam-lhe nos ombros. Usava um vestidinho simples de cambraia, enfeitado de laços cor-de-rosa, deixando ver um par de pernas bem torneadas e coxas deliciosas, como ele nunca vira em nenhuma mulher branca nos salões de bailes que frequentava na Corte. Sem esconder o quanto estava surpreso, ensaiou um sorriso. Ela mal olhou para ele. Apenas dirigiu-lhe um singelo olhar sem nenhuma intenção
121 via falar. Mas não era bem assim.
Era 13 de maio de 1888. A Lei Áurea havia sido então assina da no Paço Imperial às 15 horas pela Dona Isabel Cristina, a Redentora.
122 de dar-lhe as boas vindas. A mágoa queixou-se no fundo da alma dela e as humilhações e o horror vieram à tona. Um fio de lágrima brotou em silêncio dos olhos pretos dela. Ele viu e estremeceu. Deixou-se cair numa poltrona. “E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração”. Ali mesmo ele adoeceu. Caiu em desgraça, febrilmente fulminado somente pela paixão e pelo desejo carnal. Naquele momento fora vio lentamente devastado e sua alma mesquinha foi açoitada e arrebatada para o inferno dos escarnecedores. Os dias e os meses se passavam e ele não pensava mais em nada, a não ser nela. Não comia, não bebia, não dormia. Pas sava a noite em claro, insone, embriagado pela “fada verde”, a escrever inesgotáveis sonetos de amor, saídos do fundo da alma miserável. Estava acorrentado a ela e nada mais importava. Chamava de amor o que na verdade era só paixão do entia. Queria possuí-la, mas não podia e isso o atormentava no meio da noite, açoitado, como por uma dor dilacerando as suas Prostrou-seentranhas.numa cama e não mais saiu. Médico nenhum soube explicar o que o afligia. Em seus delírios noturnos, fe bril, pedia ao pai que ordenasse a Quinquinha que lhe fizesse uma visita, que lhe desse as boas vindas, que lhe dirigisse a palavra, afinal ela era uma escrava! Que a trouxessem acorrentada até ele! Implorava para vê-la e chorava copiosamente e, entre soluços, chamava por ela. O pai resignado e absorto velava o filho desgraçado, já moribundo, miseravelmente jo gado sobre a cama em um emaranhado de sonetos, entorpe cido pelo absinto e envenenado pelo arsênico, alheio à estron dosa euforia lá fora.
“Sabe, porém, isto: que nos últimos dias sobrevirão tempos trabalhosos”. - 2 Timóteo 3:1 Ovelho Arimatéia sentou-se. Lembrou já ter ouvido essa sentença “Tempos críticos, difíceis de manejar”, em algum lugar. Eram exatamente esses tempos que ele estava vivendo agora. Difíceis de manejar. Estava cansado, exausto, perplexo. Já completara 75 anos, mas não se sentia tão velho assim. Era forte e saudável, apesar da idade. Afinal, quando criança, fora bem alimentado com o leite e o quei-
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Arimatéia
A sentença repetiu-se e tirou-lhe de suas lembranças.
124 jo de coalho da fazenda, batata-doce, coalhada, rapadura, carne de criação. Teve como poucos, uma infância feliz e com fartura. O pai, que de profissão era abatedor em matadouro, criava suínos e, um dia, querendo iniciá-lo na arte do açougueiro, o incentivou a abater um leitão. Foi horrí vel. A cada machadada, o porco soltava os mais terríveis e angustiantes gemidos que alguém já ouvira. Dizem que se um animal estiver sendo abatido e houver uma pessoa chorando por ele, ele demora mais a morrer. E foi o que aconteceu, mas, enfim, o pobre animal caiu por terra, ensangüentado, e Arimatéia, sentiu a vida do bicho esvain do-se pela lâmina do cutelo. Seu corpo todo se estremeceu e ele percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva. Depois do abate, Arimatéia ficou toda a tarde ardendo em febre e jurou nunca mais repetir tal façanha, porém, o vulto nunca mais sairia de sua me mória. Nunca mais.
“Acho que li em algum lugar... talvez nos Evangelhos”pensou. Olhou para um exemplar da Bíblia, que estava em cima da mesinha de canto. Quis pegá-lo, desistindo logo em seguida, pois sabia que a Bíblia não se abriria mais para ele. Tomou um café e voltou, pela enésima vez a limpar a arma. Estava sozinho em casa e apurou a audição em busca de algum barulho da vizinhança. Silêncio.
Já passara do meio-dia. A tarde estava em completo silêncio, apenas entrecortada, de vez em quando, pelo som de um carro passando distante e breve. Apesar do momento de paz, a pobre alma de Arimatéia estava inquieta e an gustiada e não se cabia mais em si mesma. O velho não sabia o que fazer. Era preciso tomar uma decisão logo, mas aquela situação era crítica e muito difícil de manejar. Afi-
“Tempos críticos, difíceis de manejar”.
125 nal, nesses 75 anos de vida, ele nunca havia experimentado angústia de tal porte, a não ser, no dia em que matara o porco e a sensação parecia ser a mesma. Foi até a janela que dava para um muro, onde havia um jardinzinho improvisado. Ficou parado um instante e voltou-se bruscamente.
Percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um —guarda-chuva.Nãoépossível!
— Vou sair. Andar um pouco, sei lá! – falou consigo mesmo. Em passos lentos saiu de casa e o sol inclemente o es bofeteou na face. O calor era terrível e por um breve ins tante quis voltar para o aconchego da casa, mas a casa não lhe queria mais. A rua em que ele morava era estreita e lhe pareceu ainda mais estreita, como se estivesse se fechando em torno dele. Ele atribuiu essa sensação a um mal-estar repentino, uma vertigem. Continuou assim mesmo, cambaleante. Estava péssimo! Olhou para trás e viu a casa ao longe, bem longe. Tinha andado tanto assim? Estava tonto e procurou alguém que lhe pudesse ajudar a voltar para casa. Não havia ninguém. A rua estava vazia e era silêncio profundo. Não havia pássa ros, nem pessoas, nem carros, nem nada. Só a rua estreita a alongar-se mais ainda. Havia um longo muro que ladeava toda a rua, mas não projetava sombra nenhuma.
– teve medo. Sentiu os pêlos se arrepiando por todo o corpo. Outra vez, o vulto pareceu passar ao lado. Esgueirou-se até a cadeira e sentou-se apreensivo. Pegou a arma e pôs-se novamente a limpá-la freneticamen te. Sabia que aquela situação iria levá-lo à loucura e talvez fosse melhor mesmo que o levasse. O que ele tinha feito não tinha perdão, mas o fez por achar certo fazê-lo. Guar dou a arma entre os livros que estavam sobre a mesinha. Ele olhou para a Bíblia e a Bíblia olhou para ele. Mas já era tarde demais para apegar-se às coisas espirituais.
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O sol estava a pino sobre a cabeça de Arimatéia.
Olhou para cima e viu a placa azul, envelhecida pelo tem po e pela maresia: Rua Tijubana. Era a rua que ele morava, com certeza. Sempre quis saber o significado daquele nome de rua. Seria tupi-guarani? Continuou a árdua caminhada e enfim, chegou à esquina. A Rua Padre Mororó, sempre cheia de carros, ônibus e pessoas estava vazia. Procurou o barzinho para beber a bendita coca-cola e nada viu senão portas fechadas, calçadas vazias. Até o posto de gasolina do outro lado parecia abandonado pelo tempo.
— Que porra é essa? – Aquela situação nunca antes vivida estava lhe deixando completamente desorientado. Um vento forte soprou levantando um redemoinho de poeira. Apoiado no muro do cemitério, Arimatéia sentiu náuseas e medo e dor. Percebeu um vulto, uma mulher, passar ao seu lado, com um vestido negro, como se fosse feito do pano preto de um guarda-chuva.
— Que porra é essa? Será que eu bebi? – Completamente de sorientado, aos tropeços, o velho Arimatéia chegou ao res taurante e sentou-se no batente, na sombra. Sentiu alívio e
— Na esquina da Padre Mororó tem um barzinho. Bebo alguma coisa lá. Uma coca-cola geladinha cai bem – pensou. Com dificuldade, cansaço e indisposição, alcançou o final da rua.
— Deus do Céu, onde estará todo mundo? – A pronúncia da palavra Deus causou-lhe um amargor na boca e cuspiu, fe dorento, uma gosma catarrenta. A sede castigou-lhe mais ainda e lembrou-se da coca-cola geladinha. Lembrou que tinha um restaurante na esquina da Rua Castro e Silva, em frente ao Cemitério São João Batista. É certo que ele tinha receios de comer alguma coisa naquele antro, mas não havia outra saída. De onde ele estava, dava pra ver que tinha alguém lá, finalmente. Achou longe, mas com dificuldade, iniciou a empreitada. As pernas doíam, não sentia os de dos dos pés e percebeu que estava todo mijado.
— Aquele velho, que mora ali na Tijubana, se matou hoje de ma nhã. Parece que ele era açougueiro. Tá lá, a casa escancarada... Horrível. Deus se apiede de sua alma!
Uma multidão de pessoas corria de um lado para o outro, numa balbúrdia generalizada. Havia carros e motos de po lícia pra todos os lados. Ele não conseguia ouvir direito o que as pessoas falavam, tão grande era a confusão de pessoas, carros, ônibus e buzinas. O barulho era intenso, mas o desgraçado Arimatéia, estupefato, sentado no batente do restaurante, arquejante como um cão danado, observou alguém perguntar para o seu Raimundo do restaurante, o motivo daquela algazarra toda. E o homem, debruçado no balcão velho e sujo, falou algo que fez a pobre alma do velho Arimatéia, fender horrivelmente, num misto de agonia, medo e dor.
sorriu. Respirou com dificuldade, e extenuado, pediu uma coca-cola geladíssima, ao homem que, debruçado no balcão velho e sujo, proseava com outro homem que parecia ignorar o velho arquejante, sentado no batente.
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— Seu Raimundo, me traz uma coca... – pediu, alterando a voz, mas o homem no balcão não lhe prestou atenção algu ma. — Ô seu Raimundo!... – Arimatéia tentou levantar, mas sua atenção se voltou para a rua.