Icarus: Revelações; Gabriel Ribeiro

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Gabriel Ribeiro

icarus

Livro 1 Revelações


Copyright ©2016 Gabriel Ribeiro. Todos os direitos reservados. Editor: Neto Bach Editoração: Alternativa Books Revisão: Alternativa Books Capa: Volney Oliveira Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária Juliana Farias Motta CRB7/5880 ______________________________________________________________________ R484i Ribeiro, Gabriel Icarus : livro 1 revelações / Gabriel Ribeiro. -- São Paulo : Alternativa Books, 2016. 228 p. : 14x21 cm .—(Icarus)

ISBN: 978-85-68125-04-5

1. Ficção – Literatura brasileira. 2. Prosa brasileira. I. Título. II. Título : livro 1 revelações. III. Série

CDD B869.3 ______________________________________________________________________ Índice para catálogo sistemático: 1. Ficção – Literatura brasileira 2. Prosa brasileira Impresso no Brasil em Abril de 2016 Nenhuma similaridade entre nomes, personagens, pessoas e/ou instituições presentes nesta publicação são intencionais. Qualquer semelhança que possa existir é mera coincidência.

alternativa books Rua Francisco Escobar, 116, Imirim Cep: 02541-010 – São Paulo – SP. Telefones: (11) 2236-2420 / 99590-7330 editorial@alternativabooks.com.br


Este livro ĂŠ dedicado as duas mulheres mais importantes da minha vida, Nubia e Ana. E tambĂŠm ao grande amigo Neto Bach, por ajudar a dar vida a esse projeto.



i Prólogo

Seattle, Estados Unidos – Setembro de 2053

Daniel se sentou no chão úmido entre as caçambas de lixo. O ar, impregnado com uma mistura do fétido odor de materiais em decomposição e dos aromas do restaurante ao lado, queimava suas narinas ao mesmo tempo em que provocava seu estômago vazio. Um aglomerado de moscas voava de uma sacola a outra, pousando ocasionalmente sobre os pedaços de carne saltados para fora dos sacos de lixo. Cada centímetro de seu corpo estalava de dor. Enquanto recuperava o fôlego, começava a se arrepender de nunca ter sido um praticamente assíduo de esportes, relembrando também as reclamações que fazia durante as aulas de educação física. Ao repousar contra a parede, imaginou por quanto tempo aguentaria correr pela cidade.


O garoto espiou por entre a caçamba. Do outro lado da rua avistou o grande relógio digital localizado próximo aos semáforos. No mostrador lia-se 21:30h, 12°C, qualidade do ar moderada. Daniel tentava ao máximo controlar sua respiração acelerada. Também não fazia muita questão de saber quantos mendigos haviam urinado no local onde agora estava sentado. Com o passar dos minutos, os restos de frango e yakisoba em uma sacola próxima começavam a parecer ainda mais apetitosos. Os exóticos odores fizeram com que sua boca começasse a produzir ainda mais saliva. Seu estômago roncou ainda mais alto. Após considerar suas opções, puxou um dos pacotes com o logotipo do restaurante da família Chien retirando seu conteúdo e levando-os a boca. Tentou se lembrar quando havia sido sua última refeição decente. Dezoito? Trinta horas atrás? Sua noção de tempo havia desaparecido por completo desde o momento em que fugira de sua casa. Não tanto fugir, mas mais para escapar. Sempre que fechava os olhos imagens e sons surgiam em sua mente – os fachos de luz atravessando as cortinas, o grito de sua mãe, a porta principal sendo derrubada, múltiplos disparos e, finalmente, sua irmã caída próxima dos degraus segurando firmemente seu coelhinho de pelúcia. Não havia como dormir ou descansar. Cada barulho vindo dos carros que passavam pela rua fazia com que os músculos de seu corpo tremessem de pavor. Daniel ainda não conseguia acreditar que era um fugitivo da polícia e nem ao menos sabia o real motivo. 8

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Assim que a chuva se iniciou, Daniel puxou o capuz do seu casaco e analisou os arredores em busca de um abrigo mais apropriado. Graças ao trabalho voluntário de seus pais, conhecia diversos locais para desabrigados em Seattle. Sua melhor opção no momento era o abrigo localizado a poucas quadras do Volunteer Park. Saiu do beco a passos rápidos e constantes, misturando-se entre as pessoas que passavam apressadamente. Em frente à uma loja de eletrônicos as televisões mostravam o noticiário local. A foto de seu pai estava no canto superior da tela. Logo abaixo os dizeres: Terroristas localizados. As letras no rodapé da tela informavam que os responsáveis pelo atentado contra uma das sedes da Icarus Inc., no mês anterior, haviam sido localizados e levados sob custódia pela polícia, após tentarem escapar. Mentiras e mais mentiras. A última informação remetia ao próprio Daniel, acompanhada de um número de telefone, caso alguém soubesse seu paradeiro. Alguns metros atrás, uma viatura virou a esquina, reduzindo a velocidade conforme se aproximava de Daniel. Ao ouvir o som do motor se aproximando lentamente, o garoto voltou a se mover, deixando para trás as imagens dos repórteres. Ele tinha consciência de que se corresse ou mudasse de direção de forma brusca chamaria muita atenção para si. A passos confiantes seguiu pela calçada, na esperança que o policial continuasse dirigindo. No momento em que Daniel e a viatura ficaram lado a lado, um dispositivo acoplado junto à porta do passageiro começou a emitir uma luz azulada. O scanner percorreu o corpo do garoto rapidamente e em apenas cinco segundos a luz se tornou vermelha. A seguir, as sirenes icarus

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acenderam suas luzes emergenciais, acompanhadas do característico som. Os policiais desceram da viatura com as armas em punho e preparadas para atirar. — Parado! — ordenou um deles. Seu corpo estava semivisível por trás da viatura. O cano da arma brilhava de forma ameaçadora ao ser iluminado pela luz dos postes. — Coloque as mãos na cabeça agora! Os dois policiais mantinham as armas apontadas para o garoto, esperando que ele, agora ensopado pela chuva, cumprisse a ordem dada. Em meio ao negrume do céu surgiu um facho de luz branca. O drone desceu cortando as nuvens carregadas, parando logo acima da viatura. Outros dois começaram a se aproximar lado a lado. — Coloque as mãos na cabeça! Agora! — repetiu de forma impaciente o policial. A chuva se intensificou. O corpo de Daniel tremia em uma mistura de medo e frio. Os três drones, agora planando a alguns metros acima de sua cabeça, acenderam seus holofotes. Era a primeira vez que Daniel via os drones tão de perto, antes só os tinha visto em documentários sobre a Icarus Inc. e nos noticiários. À primeira vista não pareciam uma ameaça, apenas robôs redondos de quase setenta centímetros, em tons de branco e prata com um visor escurecido no centro. Abaixo deles, suas duas turbinas flexíveis emanavam uma chama azulada. Um dos drones abriu seu visor revelando uma arma semelhante a uma miniatura de canhão cercada por uma série de engrenagens. Ok. Isso eles haviam deixado de lado nos documentários. Antes de ficar inconsciente Daniel viu a esfera de energia sendo disparada contra seu peito. A dor provo10

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cada fez com que sua mente se desligasse quase que instantaneamente. Ao recobrar a consciência Daniel se encontrou deitado em uma cama hospitalar. Um leve chiado foi gerado quando seus pulsos entraram em contato com as algemas energéticas que o prendiam junto a cama. Um grupo de médicos ao seu redor analisava com cuidado uma série de máquinas conectadas ao seu corpo. Um tubo intravenoso extraía sangue de seu braço esquerdo levando-o até uma bolsa coletora. Linhas de informações apareciam na tela de um monitor ao lado conforme processavam os dados coletados por sensores em sua pele. Assim que os homens notaram que o garoto estava acordado, um a um voltaram sua atenção a ele. Um deles direcionou uma diminuta lanterna aos seus olhos. A seguir o homem agarrou uma seringa cheia com um líquido amarelado opaco, despejando todo conteúdo na corrente sanguínea do garoto. Durante todo processo o médico ignorou completamente os olhares de súplicas de seu paciente aprisionado. A porta de vidro do quarto se abriu, permitindo a entrada de uma mulher, também vestida de branco. Ao retirar a máscara cirúrgica, revelou seus lábios vermelhos e dentes perfeitamente alinhados. Para Daniel, conforme seu corpo recebia o efeito letárgico da medicação, a voz da mulher parecia ficar cada vez mais distante. — Preparem-no imediatamente. Eu quero uma análise completa de seu DNA enviada para meu sistema pessoal pela manhã. Eu quero saber exatamente o que ele é capaz de fazer. Daniel piscou duas vezes tentando lutar contra o efeito do sono forçado, suas pálpebras agiam como se icarus

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fossem feitas de pedra e aos poucos sua cabeça foi caindo para o lado. Na outra extremidade da sala avistou mais quatro adolescentes, também presos em camas e ligados às máquinas. Todos eles estavam separados por paredes de vidro. Quando sua mente finalmente sucumbiu, tudo que lhe restou era a escuridão.

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i Capítulo 1

Washington DC, Estados Unidos – Janeiro de 2055

Seu eu soubesse que ao final do dia eu iria acordar em uma cama de hospital, com máquinas me monitorando, eu com certeza teria aproveitado mais meu aniversário. Mas fazer o que, certo? É a Lei de Murphy. Quando você menos espera, algo muito ruim salta das sombras e arranca você de sua vida pacata – no meu caso, literalmente. Bom, mas antes de tudo, meu nome é Will Shepherd e acabei de completar dezesseis anos. E essa é basicamente a história de como tudo que eu conhecia foi jogado ralo abaixo. O dia começou como todos meus aniversários anteriores. Minha mãe, Andrea, entrou sorrateiramente no meu quarto e me deu um beijo na testa. — Bom dia, querido! — Sua mão se entrelaçou por entre os fios do meu cabelo, bagunçando-os ainda mais. — Feliz aniversário.


— Oi mãe — respondi com minha voz de sono. — Obrigado. Depois de me arrumar passei o restante da manhã na cozinha ao lado dela, ajudando a preparar os sanduíches de metro que seriam servidos. Enquanto isso, na sala de estar, meu pai se digladiava com o sistema de surround sound tentando a todo custo fazer com que ele funcionasse. Eu e minha mãe ríamos baixinho. Nós não sabíamos o motivo pelo qual meu pai ainda tentava mexer nos aparelhos eletrônicos. Isso por si só já era muito engraçado, levando em consideração que ele cresceu em uma época em que a tecnologia estava avançando de tal maneira, que certos conhecimentos básicos deveriam estar encrustados em sua mente. Meu pai, Stephen, trabalha como fotógrafo artístico. Só que tirando sua câmera fotográfica, ele não conseguia se entender com nada que necessitasse de fios e encaixes para seu funcionamento. — Qual é a lógica desse controle remoto idiota? — ele gritou. Era possível ver sua mão ficando vermelha conforme apertava o controle cada vez com mais força. — Eu aperto o sync e nada acontece. Sem dizer nenhuma palavra minha mãe simplesmente balançou a cabeça na direção da sala. A mensagem era clara. Tire ele de lá, por favor. A paciência dela é algo incrível. Ainda mais pelo fato dela ser uma jornalista, sempre em meio a correria de prazos e por estar atenta a tudo que está acontecendo no mundo. Isso era algo que eu realmente admirava nela. — Pai, deixa que eu termino aqui — disse, retirando o controle de suas mãos. — Por que você não ajuda lá na cozinha? 14

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Após analisar toda a situação, tudo que eu precisei fazer foi inverter alguns cabos, ajustar a configuração do meu MacBook e a música invadiu o apartamento. Praticamente toda minha playlist era formada por cantores pop, tanto atuais quanto os mais clássicos. Mas, para agradar aos gostos musicais variados de meus amigos, eu também acabei incluindo um pouco de rock e música eletrônica. Por volta das onze a campainha tocou. Meus amigos chegaram de uma única vez, aproveitando a carona da recém-habilitada Patrícia. Um atrás do outro eles entraram no apartamento, deixando em meus braços um pacote de presente, seguido de um alegre Feliz aniversário! — Uau, Will! — exclamou Aaron, analisando as peças de decoração e as fotos espalhadas. — Sua casa é sensacional! — Valeu cara — respondi. — Só não deixe minha mãe ver você colocando as mãos nas girafinhas de cristal dela. No mesmo instante ele levantou as mãos e me lançou um olhar de agradecimento pelo aviso. Meus pais saíram da cozinha e abraçaram e apertaram as mãos de meus amigos, depois indicaram o sofá para que se sentassem. Sem pestanejarem Luke e Antoine pegaram dois pedaços do sanduíche, devorando-os avidamente antes de se acomodarem próximos a janela, observando a neve que começava a cair. Arthur puxou a mão de Patrícia para que eles pudessem sentar lado a lado. Levemente encobertos pelos ritmos da guitarra e da bateria que vinham dos amplificadores era possível ouvir risadas e conversas que já se iniciavam. Do ponto de vista de qualquer outra pessoa, meus cinco convidados poderiam parecer pouca coisa. Você icarus

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também deve estar pensando Nossa, só isso de amigos? ou Essa festa vai ser um saco! Mas ei! Eu não me importo com quantidade. E cinco amigos de verdade para mim já está de bom tamanho. Sem contar que até ano passado eu nem tinha amigos. Todos meus quinze aniversários foram comemorados ao lado dos meus pais e algumas crianças ocasionais que eu vim a conhecer, mas que não tive oportunidade de criar laços mais duradouros. Eu sei, deve ser difícil de acreditar. E não, eu não tenho nenhum problema que dificulta meu relacionamento com pessoas. Enquanto meus amigos se divertiam, Aaron ligava meu videogame e eu colocava os sanduíches na bancada de mármore que dividia a sala da cozinha. De forma automática, parei um momento para olhar as fotos de família que decoravam a parede. Em todas elas eu e meus pais estávamos em um ambiente diferente. E em todas estávamos sorrindo. As imagens no topo retratavam nossos momentos na Grande Muralha da China e no Louvre. Circundando pela direita estavam as fotos com nossos momentos na Irlanda e em seus campos verdejantes, enquanto que na esquerda os safáris na África. Na parte de baixo estavam imagens variadas. Tóquio, Dublin, Sidnei, Madri, São Paulo. Entretanto, meus olhos sempre acabavam sendo atraídos para a foto que ficava bem ao centro de todas. Minha mãe, sentada em uma cadeira de balanço, com um bebê no colo, e meu pai em pé ao lado dela com os olhos levemente marejados. A felicidade deles era palpável e compreensível. Após tantos anos tentando, finalmente tinham conseguido adotar uma criança. E caso você ainda esteja em dúvida, sim, aquele sou eu. 16

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Agora você deve estar pensando: Caramba, que sorte que você teve, viajando pelo mundo todo. Em partes você está certo. Só que, sinceramente, chega uma hora que passa a ser meio cansativo. Mas calma que eu chego lá. Claro que as viagens tiveram suas vantagens. Eu experimentei comidas que eu nem sonhava que existiam. Algumas aparentavam ser nojentas, mas até que eram saborosas, já outras, encantaram meus olhos, mas fizeram com que eu passasse mal durante dias. Outra vantagem é o fato de que pude aprender alguns idiomas. Além de português, que aprendi pelo fato da minha mãe ser brasileira, também aprendi espanhol, italiano, um pouco de mandarim e, antes de nos mudarmos de Israel, comecei algumas aulas de hebraico. O problema é que sempre estávamos nos mudando. Meus pais sempre tiveram um espírito aventureiro. Minha mãe, em parte, porque sempre estava em busca de ampliar seus conhecimentos, além disso, tinha o trabalho fazendo coberturas internacionais. Meu pai, com sua paixão por fotografia, sempre buscava momentos decisivos para serem eternizados em suas obras. Com isso, eu via as crianças nas escolas em que estudei sempre se divertindo com seus amigos, enquanto eu não tinha tempo de me enturmar. Você tem noção de como é complicado ser convidado para uma festa de aniversário e não conhecer ninguém? Eu sei que isso acontece uma vez ou outra, mas no meu caso, foram todas as vezes. Depois de vários anos sem conseguir ter um amigo de verdade, ou sem ter a possibilidade de criar um laço romântico com alguém, isso começou a me frustrar. E obviamente isso teve um reflexo em meus estudos. As notas começaram a diminuir ao mesmo passo em que comecei icarus

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a me isolar mais. Afinal de contas, eu nunca sabia quando nós íamos nos mudar. Assim seria bem mais fácil dar adeus a um lugar. Agora eu tenho que dar o braço a torcer e concordar com as pessoas. Meus pais realmente são os melhores. Não são muitos que iriam sacrificar tudo para dar atenção as vontades levemente egoístas de um filho. Tudo bem, egoísta pode ser forte demais, mas vocês entenderam o que eu quis dizer. Eu só queria ser um pouco mais como uma criança normal. Dois meses depois do meu aniversário de quinze anos, após terminar minha aula com meu tutor de matemática – é eu tenho problema com números, eles simplesmente não entram na minha cabeça –, me deparei com meus pais na sala revirando dezenas de fotografias. A princípio achei que seria algo relacionado à mais uma exposição e nem dei muita atenção. Ao notar que eu estava ali, minha mãe se levantou. — Ei querido, vem dar uma olhada nessa aqui — ela segurava uma fotografia que estava presa com um grampo em uma folha de papel repleta de informações. — Acho que esse aqui tem potencial. Ao olhar com mais atenção, vi que não eram fotos artísticas. Muito pelo contrário, eram bem amadoras. A que estava na mão de minha mãe mostrava um quarto comum, com uma cama de casal queen size e um armário com porta de correr. Ao puxá-la para frente para poder ver as fotos que estavam presas por trás, não tive como conter um sorriso. Elas mostravam o mesmo quarto, mas com a luz apagada, revelando o grande destaque do cômodo. O teto brilhava com centenas de estrelas desenhadas com tinta 18

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fluorescente. Mesmo não sendo uma das melhores fotos, consegui identificar o Cinturão de Órion e também a constelação de Capricórnio, meu signo. — E então, — começou meu pai — o que você acha? — É interessante — com certo esforço apaguei o sorriso. Não queria manter minhas esperanças tão altas. Nem queria saber quanto tempo ficaríamos nesse novo apartamento. O fato de pedirem minha opinião não iria mudar muita coisa. — Sabe... — meu pai se levantou; segurava os óculos com sua mão esquerda enquanto limpava as lentes. A seguir, parou ao meu lado e passou o braço por detrás do meu pescoço. — Eu acho que está na hora de descansarmos um pouco. Sua mãe conversou com o seu avô Naldo e ele conseguiu um contato que nos mandou essas informações de alguns apartamentos na América. Meus olhos passaram ziguezagueando por outras fotos que estavam sobre a mesa de jantar. Todas elas estavam acompanhadas de papéis. O que estava em minhas mãos indicava um endereço em Washington. — Eu acredito que você vai gostar de lá — disse minha mãe, já com seu sorriso naturalmente belo estampado no rosto. — Sem contar que os seus avós devem estar loucos de vontade de colocar o papo em dia. Claro, eu conhecia meus avós maternos, mas somente de passagem. Eles iam e vinham em algumas datas comemorativas, como Natal. Mas apenas por alguns dias, e nunca o suficiente para realmente conhecê-los. Agora, vejam só! Um ano depois, lá estava eu com caixas de presentes encostadas na parede, amigos sujando o tapete persa com migalhas de pão e com o apartamento vibrando com música alta. Eu estava adorando. icarus

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Meu momento de apreciação só veio a terminar quando um pedaço de salame veio voando da cozinha e se prendeu em meu cabelo. Meu pai esfregava os dedos, que estavam sujos de maionese e queijo ralado, no nariz de minha mãe. Essa, por sua vez, revidada com pedaços de salame fatiado. — Ei filhão, não tinha te visto aí. — Meu pai passou as mãos nos ombros para tirar o amontoado de queijo ralado e seu virou para mostrar a língua para minha mãe. — Isso não significa que você ganhou. Ok!? — Você que está dizendo — ela respondeu. — Ei filho, seus avós ainda vão demorar um pouco para chegar aqui, então vamos fazer o seguinte: que tal se eu ligar para eles e dizer que vamos levar a festa para a pista de boliche? — Claro, por que não? É bem capaz que vocês acabem destruindo a casa se não saírem um pouco. Vou chamar o pessoal e já saímos. Na sala, Luke e Antoine discutiam sobre basquete, como sempre. Mesmo fora das quadras eles só falavam disso. Patrícia, Aaron e Arthur pareciam doidos usando os óculos de realidade virtual. Os três se debatiam, tentando se desvencilhar do que quer que estivesse aparecendo no visor deles. Estava prestes a chamar todo pessoal quando ouvi o som pela primeira vez. No início parecia o som que você ouve quando a pressão em sua cabeça fica desigual. Mas rapidamente senti toda minha cabeça invadida por um acorde agudo. Eu nem mesmo conseguia ouvir as conversas ou a música. A seguir, minha visão ficou embaçada e minha cabeça parecia que estava sendo esmagada por duas pesadas placas de metal. Ao encostar meu corpo contra a parede em 20

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busca de apoio, meus músculos passaram a sofrer leves espasmos, como se uma corrente elétrica estivesse passando por mim. A situação ficou realmente séria quando eu a vi. A garota de camiseta rosa com estampa florida e calça de moletom bege estava parada em frente ao meu quarto. Os longos cabelos pretos cobriam seu rosto me impedido de saber como ela era. Seus pés descalços estavam sujos de fuligem e em um momento automático eu quis gritar: Ei, não é você que vai ter que limpar isso depois! Só que no momento eu tinha mais coisas para me preocupar, como meu cérebro que estava prestes a explodir. Seguindo a passos calmos, ela se aproximou cada vez mais. Antes mesmo que pudesse ver com clareza suas feições, fui cercado por meus pais e amigos. Eu nem ao menos tinha notado que já estava caído no chão. Assustados pela situação, eles tentaram me levantar, mas os empurrei de forma brusca para longe. O toque deles em minha pele gerava uma dor insuportável. — Rápido! — alguém gritou. Para mim as vozes pareciam estar a vários quilômetros de distância. — Ligue para a emergência! Com minha cabeça encostada no assoalho de madeira, consegui novamente ver a sinistra figura que se aproximava de mim. Seu braço magro e pálido estava esticado, apontando para o arco da porta da cozinha. Com dificuldade consegui levar meu olhar até onde ela indicava. As lâmpadas pareciam queimar minhas retinas, mas me esforcei ao máximo. Na faixa que minha mãe havia feito com sua bela caligrafia, no lugar de um caloroso Feliz Aniversário, Will!, li uma mensagem em vermelho vivo que, com certeza, não esperava: Fuja Will! icarus

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i Capítulo 2

Não havia muito o que dizer. Eu estava ficando louco. Ponto. Se minha família biológica possui algum histórico de doença mental, já devo estar experimentando os sintomas iniciais. “Oi, eu sou Will e essa é a minha amiga imaginária, a Garota Sinistra.” Só que como eu tenho bom senso, ou talvez seja apenas um medroso mesmo, conforme fui explicando o que havia sentido durante minha festa, deixei de lado a parte da garota no corredor. Algo me dizia que isso só iria piorar ainda mais as coisas. Quando o médico de plantão veio falar comigo – o crachá indicava Michael Hanson, neurologista –, ele garantiu a meus pais que sua equipe faria de tudo para chegar à causa do problema. Nunca tinha visto minha mãe chorar tanto quanto naquela noite. Felizmente, ou quem sabe infelizmente, dependendo do ponto de vista, após oito horas de testes e o que


pareceu ser litros de sangue removidos, todos resultados dos exames deram negativo. Até mesmo minha ressonância magnética indicava que o meu cérebro estava conforme os padrões. Bom, uma preocupação a menos na lista. Apesar disso, ficou a dúvida sobre o que poderia ter causado minha repentina e excruciante dor de cabeça. — O sistema imunológico do seu filho está perfeito, senhora Shepherd — disse o doutor Hanson, explicando com seu tom neutro e profissional. — Por via das dúvidas eu quero que ele passe a noite aqui para observação. — Sim, claro. Sem problemas — minha mãe tentava a todo custo manter uma postura calma, mas as lágrimas entregavam completamente como ela se sentia. Seus olhos estavam vermelhos de tanto chorar. Seus cabelos completamente desgrenhados. E assim se iniciou minha estadia monótona no Hospital Universitário George Washington. Sinceramente eu esperava mais. Não que o hospital fosse ruim, mas as séries que assisto online me passaram uma ideia completamente diferente. Claro que por serem criações elas tendiam a exagerar um pouco, mas toda ficção tem como âncora a realidade. Onde estavam os residentes e suas intrigas amorosas ou rixas para saber quem ia ficar com a melhor cirurgia? Nem mesmo as enfermeiras ficavam de papo nos corredores trocando as últimas fofocas. Parecia que eles tinham me internado na pior parte do prédio. Por volta das onze da noite eu já estava quase arrancando os fios que estavam presos em meus braços. Minha mãe estava em um sono inquieto no sofá, murmurando algo que eu não conseguia entender, apesar de captar meu nome entre algumas palavras. Meu pai havia saído icarus

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para encontrar algo para comer, mas o conhecendo bem, ele devia estar perdido entre os corredores, se recusando a pedir ajuda para algum funcionário. Sem ter muitas opções comecei a mudar freneticamente entre os canais. Mais de sessenta opções e não estava passando nada de interessante. A única coisa que chamou minha atenção foi um programa de culinária que estava ensinando uma receita de suflê. Ainda assim, o único motivo de ter assistido era o fato de o convidado ser um streamer famoso. Ficou claro depois de alguns minutos que ele levava talento apenas para jogar e apresentar seu próprio show. Coitada da garota que se casasse com ele. A cozinha iria ser incendiada todas as noites. Quando o show terminou, me restou apenas deixar o controle de lado e ficar escutando o bipe constante do monitor cardíaco. De início o som até que era reconfortante. Uma lembrança de que apesar de ter sofrido algo tão repentino, eu ainda estava vivo. Mas depois de alguns minutos, aquilo já estava me deixando completamente louco. Comecei a tatear pela máquina em busca do botão de força, mas desisti ao ver o olhar de reprovação de uma enfermeira que surgiu bem naquele momento. — Mocinho, que tal voltar para sua cama e relaxar um pouco? — ela perguntou com um leve tom autoritário. Eu conhecia esse tom, os professores do meu colégio usavam o tempo todo para tentar controlar os alunos. — Claro. Me desculpe — respondi colocando as mãos para cima indicando que não ia tentar mais nada. Mesmo assim, ela só saiu de vista quando viu que eu realmente estava deitado. 24

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Esse dia, com certeza, entraria na lista como sendo o pior aniversário da minha vida. Ao invés de estar comendo bolo e ouvindo música com meus amigos, estava sendo obrigado a ficar olhando para o teto branco, ouvindo o ritmo do meu coração e um ocasional suspiro vindo da minha mãe. O que eu não daria para estar deitado em minha própria cama, ligando os pontos fluorescentes no teto para formar algumas constelações... Meu pai entrou no quarto de repente. Trazia um copo de café para ele e para minha mãe, além de alguns pacotes de salgadinho. Ao ver que eu ainda estava acordado sentou na ponta da cama. — E aí campeão, como está se sentindo? — Bem melhor agora. Só estou sem sono. Meu pai também tinha sinais de preocupação. Seus olhos pareciam mais cansados que o habitual e as linhas no centro da testa estavam mais acentuadas. Além disso, desconfio que um dos motivos de ter demorado tanto para voltar, além de possivelmente ter se perdido, é que ele precisava de um tempo sozinho. — Quer um pouco? — ele esticou o pacote de salgadinho em minha direção. Só balancei a cabeça positivamente e apanhei um pouco das batatinhas sabor churrasco. — É eu imaginei. Comida de hospital sempre foi uma coisa terrível. Ao ver de relance minha mãe tremendo no sofá ele se levantou e com cuidado a cobriu. Depois colocou o dedo indicador em frente aos lábios sinalizando para fazermos silêncio. — Por que você não tenta dormir um pouco? Hoje foi um dia bem agitado — falou baixinho. icarus

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Agitado era um bom eufemismo para o que realmente tinha acontecido. Como minhas opções não eram tantas repousei a cabeça no travesseiro e forcei meus olhos a se fecharem. Algo que as pessoas sempre achavam estranho a meu respeito era o fato de que nunca conseguia me lembrar dos meus sonhos. Sério mesmo, sempre que acordava, os detalhes desapareciam por completo, como insetos fugindo quando você acende a luz. E para piorar ainda mais meu dia, hoje foi a exceção. Eu daria qualquer coisa para que os detalhes tivessem se perdido em algum lugar da minha mente. Δ A princípio, o sonho parecia ser o mais banal de todos. O gramado aos meus pés balançava gentilmente com a brisa fresca da manhã. O sol aquecia minha pele gerando uma sensação agradável, fazendo com que me lembrasse das tardes na Irlanda. Mas eu conhecia aquele lugar, e com certeza não era na Europa. Por entre as árvores, eu conseguia visualizar os arranha-céus cinzentos que faziam parte da existência da Grande Maçã. O contraste do Central Park com o resto da cidade de pedra sempre me encantava. Um lembrete de que mesmo com a correria do dia a dia, os habitantes tinham um lugar para relaxar, nem que por alguns minutos. Logo à minha esquerda, próximo ao lago, um grupo com quatro crianças brincava com um frisbee amarelo. Entre elas, correndo de um lado para o outro, tentando abocanhar o objeto, estava um beagle de pelagem branca e marrom. As crianças riam a plenos pulmões cada vez 26

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que o cachorro pulava e mordia o ar, deixando mais uma vez de obter o que ele mais queria no momento. Mais a frente, sentados em um banco, um grupo de adolescentes se divertia a sua própria maneira. De mão em mão eles passavam um saco de papel que escondia, de forma não tão sutil, uma garrafa de bebida alcóolica. Um ciclista passou rente ao meu corpo, quase me derrubando. — Ei — gritou o homem. — Presta atenção garoto! Típico mau humor nova-iorquino. Um artista olhou em minha direção ao ver a cena, parando por um momento de fazer uma caricatura de uma senhora de cabelo lilás. Deitados a alguns passos de onde eu estava, um casal fazia um piquenique romântico, com direito a uvas, chocolate e champanhe. Logo acima, pássaros voavam entre uma árvore e outra aproveitando ao máximo o clima primaveril. O engraçado é que conseguia sentir perfeitamente os aromas da cidade e os sons dos carros e das conversas mais próximas. Para mim tudo aquilo era real. Você deve estar pensando: Até os seus sonhos são chatos. Ei, não é todo mundo que sonha estar voando ou ajudando um agente secreto. Sem contar que não me lembro dos outros sonhos. Talvez eu já tenha passado por essas situações. Vai saber... O problema é que gostaria que tivesse parado por aí. Enquanto continuava meu passeio pelo Central Park, o som de galhos quebrando chamou minha atenção. Ao virar me deparei mais uma vez com minha amiga imaginária, a Garota Sinistra. Assim como no meu apartamento, ela vestia a mesma camiseta de estampa florida e a calça de moletom sem icarus

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graça. Só que desta vez, o mais bizarro era que onde ela pisava uma pequena chama aparecia. Além disso, desta vez pude finalmente ver seu rosto, e ele mostrava sinais de grande desconforto. A partir desse momento, todo o ambiente se tornou um pesadelo. Aos poucos todo o gramado passou a ser engolido pelo fogo. Cada folha que se desprendia das árvores tornava-se cinzas que se espalhavam pelo ar. Tanto meu nariz quanto meus olhos começaram a ficar irritados com a quantidade de fumaça e cinzas. De forma automática e desesperada, comecei a bater em meu braço no instante em que uma chama pousou em minha camiseta. Ao apagá-la terminei com um buraco no tecido e a pele levemente avermelhada. De algum lugar o frisbee amarelo veio voando uma última vez, pousando entre mim e a Garota Sinistra. Notei que a coleira do cachorro estava presa ao objeto, fundindo-se ao plástico derretido. — Mas que droga! — gritei. — Quem é você? O que você quer comigo? — Will — foi a única resposta que obtive. Sua voz saiu quase sussurrada. De maneira anormal — tudo bem, eu estava sonhando, então anormal pode ser levado em consideração — as nuvens começaram a se aglomerar sobre toda a extensão do Central Park. Rapidamente, toda a luz solar foi bloqueada, restando apenas a iluminação agressiva do fogo selvagem, sedento por mais coisas para queimar. Em meio ao vermelho intenso e o negrume da fumaça, a Garota Sinistra continuava sua caminhada. Entre o crepitar das chamas, ainda conseguia ouvir meu nome. — Will... Will... 28

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Cada vez mais, sua voz sussurrada parecia estar mais próxima. Quase como se ela estivesse... Uau! Foi nesse momento que notei. Ela estava realmente falando dentro da minha cabeça. Seus lábios azulados nem ao menos estavam se movendo. — Não entendo o que você quer — eu disse. Mas antes que ela pudesse me responder, mentalmente ou não, eu parei e gritei. — Cuidado! Atrás dela duas figuras se materializaram por entre a fumaça. Os corpos feitos de cinzas avançaram. Em suas mãos pude notar algo que se assemelhava muito aos antigos cassetetes policiais que via em filmes de época. Sem que ela tivesse ao menos algum tempo para reagir, as figuras começaram a desferir golpes pesados contra seu corpo. A Garota Sinistra caiu na grama incendiada no mesmo instante. Seus lábios azulados foram tomados pelo carmesim de seu sangue. Uma rajada repentina fez com que eu perdesse o equilíbrio. Voando baixo, dois helicópteros se aproximaram. Os holofotes focados sobre a violência gratuita que se desenrolava. Ao lado das aeronaves cinco drones flutuavam de maneira coordenada. Em questão de segundos as máquinas se aproximaram, estendendo garras metálicas que a removeram do solo. Os olhos brancos da Garota Sinistra se encontraram com os meus no momento que seu corpo chegava ao helicóptero. E então, ela gritou. Juro que nesse momento senti um arrepio percorrer toda minha espinha. Tendo o seu corpo como epicentro, ela iniciou uma reação em cadeia por toda a cidade. Os vidros e janelas em cada veículo, prédio e loja começaram icarus

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a se fragmentar. Em pouco tempo as ruas estavam encobertas por milhares de fragmentos brilhantes e afiados. Em meio ao caos que se iniciava, o piloto de um dos helicópteros perdeu o controle da aeronave. A cauda metálica colidiu diretamente com a copa incendiada de uma árvore. Madeira e metal se encontraram com violência. Assim que a aeronave colidiu com o chão, uma parte da hélice se desprendeu, atacando o solo como um cortador de grama gigante e descontrolado. O segundo helicóptero começou a perder altitude, atingindo três dos drones em sua queda. Ao final da segunda explosão, uma das criaturas cinzentas finalmente notou minha presença. Em um movimento rápido, o cassetete se transformou por completo, obtendo a forma de um rifle, com a ponta cilíndrica se tornando uma saída oca. E ela estava apontada diretamente para a minha cabeça. O clique do gatilho soou como um trovão em meus ouvidos. A dor se espalhou por todo meu corpo quando o projétil me atingiu.

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gabriel ribeiro


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