Rastros 06.08

Page 1

Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

Entrevista

Lúcia Hardt*

Pedro Russi:Como você vê a educação superior Nesta edição número seis da revista Ras-

no Brasil?

1

tros, entrevistamos a Professora Lúcia Hardt

para conversar a respeito dos vários eixos que

Lúcia Hardt: A questão da educação continua

entrecruzam a educação, pesquisa e extensão,

sendo prioridade nos discursos, em sua grande maioria,

pensando tais movimentos e dinâmicas no ce-

mas não me parece que atingiu a concretude da ação

nário da comunicação social. As palavras foram

prioritária dos organismos governamentais. Ela ainda

surgindo e provocando pensares… Pensamen-

está numa instância de promessa, de esperança, não de

tos daqueles que começam a movimentar ou-

uma ação concreta. Esse é o meu sentimento depois de

tros processos desencadeando interações sobre

quase 25 anos trabalhando na educação, tanto na edu-

o nosso cotidiano para além da educação for-

cação básica como na superior. Existe aí um

mal. Como entender os processos de aprendi-

distanciamento entre aquilo que se afirma sobre o valor

zado-educação conjuntamente com o Riso tão

que ela ocupa na sociedade e aquilo que, na prática, em

castigado e silenciado nos cenários institucionais?

termos de concretude, de materialidade, ela consegue

Ser mais babélicos? São algumas das perguntas

efetivar por conta do lugar que ocupa, que considero ser

que ainda estão girando e propondo desafios-e-

um lugar periférico. É o lugar central nos discursos e

convites para entrar nesses teatros da vida… Eis

periférico nas ações. Assim me parece que se dá hoje

as provocações…

em termos de Brasil e isso tem razões históricas. A educação pode usufruir de um discurso sedutor, apresentar o sujeito como humanitário, como generoso, como virtuoso, a educação se presta a isso. Mas por outro lado, ela não garante o compromisso de fazer com que aquilo realmente se concretize. E nisso está também, arrisco dizer, a pouca articulação política entre os educadores. Nós somos muito desarticulados. Nós também, por sermos esperançosos e generosos, deixamos de ter lutas significativas. E deixamos e permitimos que esse

* Professora com atuação na educação básica e ensino superior. Doutorado e Mestrado em Educação na UFRGS( Universidade Federal do RS). Graduação em História e Especialização em Supervisão Escolar. Trabalhou por 14 anos na rede pública de ensino no município de Novo Hamburgo/RS. Nesse período atuou junto a FEEVALE nos cursos de formação de professores. Atualmente atua na rede sinodal, no BOM JESUS/IELUSC na cidade de Joinville/SC como coordenadora de ensino e desenvolvimento institucional. Presta assessoria ao jornal ANoticia, desempenhando a função de supervisora pedagógica do Projeto – o jornal na sala de aula.

89


Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

descompasso se articule. Precisamos aprender a lutar

tituição, onde hoje estou trabalhando, a gente mesmo

politicamente por esse discurso que se põe e não se

cai nessa armadilha por conta de dizer algumas coisas e

concretiza, e é assim em todos os níveis. Infelizmente

não dar conta de concretizar isso. Então você descobre

vejo nós acreditarmos de novo em uma possibilidade

formas de escapar disso, criando possibilidades de con-

muito recente de que isso iria se concretizar aí, na últi-

vencimento do outro, como se as coisas estivessem acon-

ma possibilidade de projeto político-partidário. No en-

tecendo. É esta questão que deve ser enfrentada, tocada

tanto, vimos que novamente é um discurso requentado.

por todos nós, mesmo por quem ocupa o lugar de auto-

E parece nos convencer de que um dia virá aquele gran-

ridade ou de função estratégica, mesmo aquele que está

de momento onde tudo vai ser contemplado. Acho que

no aguardo das políticas. E que pudéssemos conversar

devíamos reagir. Meu sentimento, hoje, depois de 25 anos

mais honestamente, não conversamos honestamente. Me

de trabalho na educação, é de que precisamos reagir

parece que por aí passa um pouco, às vezes, essa auto-

com mais firmeza, com mais articulação e com mais

avaliação que queremos fazer da instituição. Não con-

compromisso político, não no sentido da oposição pela

versamos tudo o que tem de conversar. A gente acaba

oposição, mas no sentido de fazer marcar e demarcar

usando um protocolo administrativo para dar conta das

que nós não estamos mais convencidos e satisfeitos com

exigências que nos são colocadas em termos

os discursos, de que nós temos outras coisas que pas-

macroestruturais e para cumprir as tarefas e acaba es-

sam por orçamentos, por políticas públicas mais signifi-

capando do que essencialmente devia ser discutido, que

cativas, e não apenas de anúncio, sem nenhuma possi-

também passa pela questão da avaliação. Às vezes nos

bilidade de garantir isso em termos concretos, porque

contentamos com o papel que diz “sim” ou “não” e aca-

não adianta prometer novidades sem ter orçamento para

bamos não discutindo as entrelinhas, as sugestões. E

as coisas. E o que sentimos é esse descompasso. Então

eu, como coordenadora desse processo, sinto o quanto

acho que é por aí: nós não podemos perder todas as

isso ainda precisa ser melhor articulado entre quem tem

esperanças, mas ao mesmo tempo dar às nossas espe-

como função desempenhar, chamar isso para si, admi-

ranças mais firmeza e mais compromisso e articulá-la

nistrando fragilidades existentes no sistema. O debate

melhor com as nossas vidas. Acho que elas estão desar-

pedagógico é diminuto, ficando supervalorizado o aspecto

ticuladas.

burocrático. E, aparentemente, sossegamos porque “cumpriu a tarefa”. Mas cumprimos uma tarefa sem dar

Pedro Russi: E no caso de Santa Catarina?

conta do efetivo debate. E nisso eu diria mais: há leituras que faço a partir de Larrosa2, que indicam novos

Lúcia Hardt: Essa mesma lógica do

caminhos para educação. Como ele diz, nós não sabe-

descompasso, dessa assimetria da proposta, se dá nos

mos viver babelicamente. Nós só conseguimos viver na

níveis regional, estadual e local também. É uma armadi-

harmonia, seduzirmos pela tentativa da linearidade, de

lha na qual, às vezes, olhando para a minha própria ins-

pôr harmonia naquilo que não tem harmonia, que são as

1

Jorge Larrosa – professor de Filosofia da Educação na Universidade de Barcelona. Doutor em Pedagogia, realizou estudos de pós-doutorado no Instituto de

Educação da Universidade de Londres e no Centro Michel Foucault da Sorbonne, em Paris. 90


Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

diferenças que estão presentes nas instituições, desde

falam a mesma coisa. Porque todos são generosos de

as mais singelas até as mais sofisticadas. Precisamos

novo, virtuosos de novo, humanitários e têm valor e que-

aprender a viver babelicamente, que significa viver com

rem defender o bem para todos. Essa coisa, quando fica

diferenças, com discursos articulados a partir de pontos

muito igual, é porque tudo está diferente nos bastidores,

de vista absolutamente distintos e que não precisa en-

na clandestinidade, que não tem lugar para ser discuti-

trar em combate, mas em discussão, em diálogo. Evita-

do. E tenho tido até um pouco de restrição, de afasta-

mos esse debate porque não sabemos o que fazer com

mento, de distanciamento sobre discursos de planeja-

essa diferença, então evitamos fazê-la. Devíamos apren-

mento estratégico, por vezes até projetos anunciados

der isso e isso tem a ver com a avaliação. Precisamos

como político-pedagógicos que, de fato, se dão muito

saber o que fazer com essas diferenças, e vou me apro-

mais em discursos institucionais, que tentam retirar o

veitar disso, até por sugestão desse autor a quem eu me

que aparentemente se põe como desvio, como patolo-

referia, que prefiro esse mito da Torre de Babel ao mito

gia, para parecer igual, parecer normal. E eu acho que o

do Pentecostes, que quer de novo dar ordem nas coisas,

normal é que deveria nos assustar, estar todos com a

ainda que de um outro jeito. Mas vejo que mais signifi-

mesma cara é que deveria nos assustar, nos indignar, e

cativo é a gente reconhecer que talvez nesse mito da

não achar que o caminho agora é acertar. Temos muito

Torre de Babel está a idéia de que não há como pôr tudo

mais que nos reconhecer nas diferenças, aquilo que

num lugar só, numa obra só. E o que fazemos quanto à

estamos dizendo de absolutamente distinto uns dos ou-

desordem? Isso tem um caminho: a avaliação institucional

tros, porque somos de unidades distintas.E por isso o

vem dizer isso: o que a gente faz com a desordem, para

marketing institucional é mais uma estratégia de pôr a

que ela também não seja sem sentido e não-produtiva,

coisa em uma determinada linha, uma determinada or-

mas o que a gente faz com o que está posto aí, que é a

dem que nos tira do lugar da reflexão.

desordem? E este é o meu desafio: tentar descobrir como a gente faz isso.

Pedro Russi: Seria um jogo entre Derrida e Paulo Freire?

Silnei Soares: Pensando nisso, como você vê esse movimento do marketing educacional que tenta dar conta dessa desordem por uma via administrativa?

Lúcia Hardt: Talvez, talvez. Tenho lido um pouco de Derrida, da idéia do que é traduzir, o que é dizer aquilo que parece ser e que função é essa quando quero

Lúcia Hardt: Eu acho que isso está bem claro.

traduzir uma situação para os outros. Na verdade, é re-

Tenta homogeneizar o discurso de novo, criando aque-

conhecer que eu parto do interesse de querer dizer para

las coisas — que todos agora falam: missão, valores,

os outros o que parece ou o que devessem ser as coi-

visão —, e você adapta isso de uma empresa mais capi-

sas. Por trás disso tem uma arrogância e uma ignorân-

talista para uma “empresa” mais educacional, e todos

cia, ou seja, eu não estou reconhecendo o lugar de onde

91


Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

o outro parte, porque ele já fez leituras que eu não ad-

demos, não tombamos. A idéia que para mim hoje está

mito que ele tenha feito, como também uma arrogância

valendo muito é que o pedagógico deve ter a capacidade

de imaginar que eu possa convencê-lo. Então, acho que

de tombar, cair no chão, “de quatro” mesmo, de se sur-

esses dois pressupostos não deveriam estar vinculados

preender com o que o outro te coloca. E aí eu aprendo

ao educador. Não posso supor que o outro não compre-

também, junto com o outro, e é esse incentivo que a

enda, não posso supor que eu possa convencê-lo. Ou

gente deveria (re)aprender neste país.

que, pelo menos, nós deveríamos entrar em debate e não em convencimento um do outro. E suportar isso,

Pedro Russi: Essa questão de tombar, de cair no

saindo de um trabalho ainda que não convencidos da

chão... O tombamento pode ser o caminho que tinha se

mesma coisa, aí que está a novidade pedagógica. A gente

pensado para a pesquisa, já que ela poderia dar esse

pode sair de um debate com argumentos diferenciados,

tombamento. É caindo no chão que eu descubro coisas

mas convencidos de que dialogamos e não convencidos

que eu não sabia, mas aí não se coloca isso para discus-

da mesma idéia. E parece que isso é um lugar pouco

são. Tem a pesquisa, que é esse processo de reflexão,

comum na educação. A idéia é de convencimento um do

mas também tem o fato de a pesquisa ter entrado na

outro, até mesmo curricular. A gente quer convencer o

moda: todo mundo faz pesquisa e todo mundo é doutor-

outro de que aquilo é ruim, quando por vezes o rumo é

pesquisador. Então como você vê essa banalização da

outro, passa por outros lugares. Teve uma experiência

pesquisa em todos os setores da pesquisa? Todos dão

bonita que tive com esse projeto que eu faço no “jornal

palestras e todos fazem pesquisa...

da sala de aula” [caderno ANescola3, do jornal A Notícia]. Criamos um tema sobre cheiros e sabores e distri-

Lúcia Hardt: Eu diria que para fazer um debate

buiu-se para as escolas públicas. E foi surpreendente

sobre a questão da pesquisa é importante vinculá-la a

como não nos damos conta de que os alunos partem de

uma palavra, que parece ser forte pra mim, que é curi-

outro lugar. Um menino escreveu um texto maravilhoso

osidade. Precisamos, na pesquisa, dar lugar a um sujei-

sobre cheiros e sabores, como nós nunca tínhamos ima-

to curioso, mas um sujeito curioso que não se contenta

ginado, falando das grandes navegações, que tudo co-

com as primeiras respostas, que não se contenta com o

meçou por causa de cheiros e sabores, atrás da conser-

que aparentemente se coloca ou com aquilo que, de uma

vação das carnes. Ele fez uma narrativa histórica alta-

forma interessada, pode ser importante comunicar, mas

mente distinta do que eu imagino que os professores

aquele sujeito que tem vontade mesmo de ir às últimas

fariam; do que nós, pedagogos, faríamos. Por isso vale

conseqüências, levar aquilo às últimas conseqüências. O

a pena dialogar por uma coisa em torno do debate, por-

que significa isso? Ter estratégias de como buscar, con-

que podemos nos surpreender. Se eu entro num diálogo

templar essa sua estratégia, e aí eu acho não damos

para não ser surpreendido, não vale a pena tentar. Nós

conta, ainda, com as condições que se tem, condições

entramos querendo convencer e se não nos surpreen-

de trabalho da maioria dos professores, de fazer, de le-

3

Projeto ANescola: faz parte de um programa mundial chamado “Jornal na Educação”, existente em 79 paises e vinculado à Unesco e Associação Mundial de Jornais.

No Brasil o programa é coordenado desde 1980 pela ANJ (associação Nacional de Jornais), atingindo 9 mil escolas de 15 Estados da Federação. São mais de 3,5 milhões de estudantes atendidos por 41 jornais associados. O Jornal ANoticia desenvolve a atividade há seis anos e entrou numa nova fase a partir de 2002 com a publicação 92


Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

var às últimas conseqüências a nossa curiosidade. Fica-

ser buscado, ainda de uma forma singela, mas é um

mos na superficialidade, e aparentemente fica na super-

caminho a ser percorrido. Ainda não chegamos lá.

ficialidade entendendo e fazendo uso desse status de pesquisador porque nos põe em outro lugar. É um equí-

Pedro

Russi:

Pesquisa,

extensão,

voco isso. Devemos reconhecer que estamos na superfi-

assistencialismo: como se relacionam, como dialogam?

cialidade e só conseguimos fazer algo na superficialida-

Como acontece essa pesquisa, entre o assistencialismo

de. Esse é o pressuposto: pesquisa também depende de

e a extensão?

condições de trabalho. E não estamos preparados, nem nesta instituição e nem na maioria das instituições de

Lúcia Hardt: Eu gosto muito do texto, do conteú-

ensino superior, porque 82% das instituições são priva-

do jornalístico, até porque eu estou inserida nisso por

das e, portanto, não tem condições adequadas de pes-

conta desse projeto [jornal na educação, com o AN Es-

quisa. Essa humildade deve partir da gente, sujeito-pro-

cola]. E quando leio coisas no jornal, ou olho na televi-

fessor que ocupa qualquer função. Tem que ser uma

são, olho documentários, o que me chama muito a aten-

humildade pessoal e ela não pode vir de fora, senão

ção é que a pesquisa está se prestando, não por ela

estar dentro de si. É importante que você reconheça isso,

mesma, mas pelos sujeitos que a utilizam — e aí vem o

que lugar ocupa nesse cenário aí, sem desprestigiar a

assistencialismo, muito rapidamente —, para dizer que

pesquisa, porque existe possibilidade de fazê-la de uma

aquilo que se descobriu mudou a atitude dos sujeitos,

forma séria. Já existem exemplos no Brasil, e ainda hoje

como se fosse um ato mágico. Fazem um levantamento

as universidades públicas dão maior conta disso, apesar

de informações e, agora, então, os sujeitos alfabetiza-

das precariedades que sofrem por conta de orçamentos

dos descobrem que não é mais pela cartilha, mas é

e de políticas públicas, mas ainda são as que melhor dão

pelos pressupostos do seu trabalho. Então eles fazem

conta disso. E isso implica concepção de trabalho, do

duas ou três entrevistas e dizem que sabem o que é

que é trabalho humano, o que é hora-atividade de um

estar alfabetizado. E de uma forma mágica a pesquisa

professor, o que é possibilidade de estruturação dessa

resolveu que este é o caminho então, diferente de ou-

reflexão que implica na pesquisa em termos individuais,

tros tantos. Uma idéia que se defende hoje de projetos

em termos coletivos, interação com o outro que está

de ensino: não é mais de currículo formal, com conteú-

envolvido na pesquisa, que é esse terceiro que nem está

do, mas são projetos baseados na questão: “O que inte-

dentro da universidade, mas acaba entrando pela porta

ressa ao aluno?”. Aí os alunos dão dois ou três depoi-

da pesquisa, pela porta da extensão e que precisa ter

mentos e então agora toda a escola precisa se modifi-

lugar e também voz para ser reconhecido como um su-

car, porque agora não é mais conteúdo, é projeto. Esse

jeito que fala, com legitimidade, do seu lugar. Eu diria

é um entendimento ainda de pesquisa numa direção meio

assim: a pesquisa é um projeto da grande maioria das

mágica, que na verdade não fez pesquisa até as últimas

instituições ainda a ser consolidado, a ser construído, a

conseqüências, houve uma estratégia pedagógica bem

mensal de um caderno interativo atingindo todo o Estado de SC. O projeto estabeleceu parcerias com as Prefeituras de vários municípios e com a Secretaria de Educação do Estado garantindo uma distribuição sistemática do periódico nas escolas e criando uma equipe pedagógica para dar apoio aos professores. 93


Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

articulada no sentido de provar o que está antecipada-

nidades de amigos, onde a conversação é possível, por-

mente dado, ou seja, eu resolvi pesquisar isso, mas já

que nas academias não há debate, há grupos e guetos

estava convencido daquilo, não me permiti ser tocada

que brigam entre si por causa desse regime de verdade.

por aquilo que apareceu e reafirmo o que pensava antes

É claro que não vou absolutizar, não é só isso que acon-

da coleta de dados, porque aquilo precisa convencer, mais

tece, mas predominantemente vemos muito isso. Acho

do que ninguém, a mim mesmo, para confirmar o que

que isso diminui a possibilidade de se colocar como curi-

eu digo e para colocar como verdade. Aí é que eu digo

oso, como alguém que tem vontade de rachar com algu-

que a relação com a pesquisa deve ser um enfrentamento

mas verdades, quebrá-las, como alguém que quer fazer

das políticas de verdade. Aí entra muito Foucault e a

pesquisa sem ter a priori a comprovação ou não disso,

idéia de regimes de poder, de regimes de saber, porque

estar ousando, levantar como questão, problematizando.

nós estamos imersos nisso também, como professoresSilnei Soares: Há um excesso de seriedade na

pesquisadores e toda a formação e titulação, que aparentemente se mostra muito recomendada. Nós também

academia?

estamos nesse regime de saber, nesses regimes de poder e nessas políticas de verdade, e convencemos as

Lúcia Hardt: Eu acho. Exatamente isso. Somos

pessoas de que aquilo que estava dado antes, que esta-

sisudos demais, rigorosos demais, e isso nos faz não

va inserido na minha política de verdade, de saber, eu

pôr em risco aquilo que conquistamos, seja através do

agora comprovo e portanto ganho mais lugar nesse re-

seu estudo, das suas críticas. Temos dificuldade de brin-

gime de verdade, de poder. Bom, eu diria assim: fiz um

car com aquilo que escrevemos ontem. Porque temos

artigo sobre isso, a partir das leituras que fazemos -

que estar justificando tudo, e naquele momento que jus-

porque não temos autoria, nesse ponto eu sou muito

tificamos, dificilmente temos a humildade de reconhe-

humilde, construímos coisas a partir das leituras que faz.

cer: “Não sei como pude escrever aquilo”. E dizer que

Então, ser autêntico e original não é nenhuma intenção

avançamos, dizer que agora pensamos diferente. De al-

minha. Minha intenção é apenas dizer como essas coi-

guma forma a gente sempre quer amarrar, porque nós

sas me tocam, aquela que mais me toca. Acho que, como

somos formados na idéia de ordem e nós queremos colo-

educadores, somos muito devotos da verdade e temos

car coerência na nossa vida, sendo que ela é incoerente.

problema em colocar isso em questão, de ironizar essa Pedro Russi: Estaríamos voltando a essa luta pelo

verdade, de dizer que precisamos brincar com ela, quebrá-la, rachá-la às vezes, para dar início a uma ou-

riso?

tra possibilidade. E nós, pesquisadores, fazemos isso.

94

Larrosa disse que a pior coisa na vida dele, na convivên-

Lúcia Hardt: Eu tenho lido este livro [“História

cia da vida acadêmica hoje, está sendo vivida nas comu-

do Riso e do Escárnio”, de Georges Minois] e fiz um arti-

nidades acadêmicas. Ele está preferindo viver em comu-

go sobre ele, que diz bem isso: que temos de voltar a ler


Ano VI - Nº 6 - Outubro 2005

os gregos para entender a cidade, voltar à “suruba”,

exerce a questão de educação neste país, porque não

quando se podia falar tudo, dizer tudo, e quem tirou esse

tem condições, não temos destino de verbas adequa-

direito da grande maioria de falar de tudo, de rir de si

das, não há debates efetivos, e aparentemente tenta-

mesmo e de usar máscaras e rir dessas mascaras, foi a

mos sobreviver, porque nós todos sobrevivemos também,

filosofia, foram Platão e Sócrates. Quando a filosofia se

e precisamos sobreviver em alguns momentos; precisa-

tornou lugar formal e regime de poder, ela retirou — e,

mos suportar as dores que carregamos, as culpas que

nisso, desmontou — estruturas da desordem, que tinham

carregamos nas costas. Precisamos dessas bengalas para

o seu sentido de criar no povo a possibilidade de ir lá,

sobreviver. Quero dizer que precisamos nos reunir mais

em um teatro de arena, e ficar discutindo os seus dese-

e tentar juntar isso como força política mobilizadora para

jos e suas vontades através de um linguajar específico.

encarar aquilo que falta fazer pela educação. Não é que

E aí foi dito, inclusive neste livro, umas das teses é de

não tenha nada feito, mas falta fazer bastante.

que quem domesticou o teatro foi Platão, porque ele começou a dizer que não podia mais usar palavras de tal

Pedro Russi: Agora você chamou atenção para

ordem, que tinha de ser uma linguagem instrutiva, pe-

uma coisa: a questão de não ter assunto para discutir.

dagógica, bem na concepção que lhe caracterizou. Mas

Certas universidades, certos lugares da elite, têm uma

na verdade nós domesticamos aquilo que era próprio do

disciplina, um movimento chamado “teatro”, não como

ser humano, que era a vontade, a transgressão, a possi-

curso, mas como disciplina, e no Terceiro Mundo e nas

bilidade de ser curioso até o fim. Nós hoje não somos

faculdades do chamado Terceiro Mundo, essa disciplina

curiosos até o fim porque nos domesticaram. É o senti-

não aparece. Se eu colocasse o teatro em certos luga-

mento que tenho quando estou em uma instituição: aca-

res, ele não poderia estar revitalizando coisas que não

bamos sendo domesticados pela instituição.

se quer revitalizar?

Pedro Russi: Isso se passa também com os es-

Lúcia Hardt: Na minha formação, tive pouco

tudantes, naquele chavão de que os estudantes não lêem.

acesso a esse conhecimento, mas sou uma apaixonada por isso a partir das experiências que pude ter. Tanto na

Lúcia Hardt: Exatamente. Nós nos pomos sem

educação básica, com a qual estive mais tempo envolvi-

saber exatamente de onde vem isso. Acho que também

da, entendo que o teatro, de alguma forma, vincula as

acabamos criando premissas que nos salvam como pro-

pessoas de outro jeito, as pessoas saem do lugar da

fessores: afinal, a minha aula não é tão boa porque eles

comodidade e vão se colocar de pé diante dos outros.

não lêem. Estão mal nas notas porque, afinal, não estu-

Elas precisam fazer escolhas de textos, precisam fazer

dam. Estamos sempre achando uma desculpa para não

escolhas sobre performances, precisam fazer escolhas

discutir a questão que vai mais fundo, talvez mais pro-

de como vão se relacionar com o público, que são coisas

fundo, que diz respeito a como é que se dá, como se

que ensinam muito mais do que o conteúdo no qual você,

95


Rastros - Revista do Núcleo de Estudos de Comunicação

formalmente, apenas escuta, transmite e repete. É um

Lúcia Hardt: Eu diria que talvez a comunicação

teatro onde tem uma criatividade, uma potencialidade.

não educa quando ela não se encontra com a

Tenho defendido essa inserção prática dentro das esco-

multiplicidade. E contar com isso é dizer que ela educa

las como um esforço de inovação, de criatividade, que

para aprender a viver nessa multiplicidade. E ainda que

não permite ao sujeito ficar omisso. Ou ele está dentro

o jornal tenha o ranço da “verdade”, eu sei disso, e ape-

do cenário ou ele está fora do cenário, e acho que talvez

sar disso precisamos lutar onde é possível. E acho que

essa podia ser uma contribuição muito importante. Ele

vale a pena acreditar que, ainda que em recortes precá-

mereceria ter destaque dentro das nossas ações, princi-

rios, podemos fazer alguma coisa, acreditar que eu não

palmente nas nações mais periféricas, porque sempre

estou usando o jornal para convencer os alunos de que a

pareceu ser uma coisa da elite, como se o teatro fosse

leitura é perversa ou ela é generosa, cada aluno tem o

um acréscimo, uma sofisticação, um intruso. E os de-

direito de olhar com a sua própria capacidade de inter-

mais, tendo o básico, está bom. E é muito de que hoje

pretação e que esse é um direito necessário tanto na

se fala nas políticas – impressionantemente do PT – onde

educação quanto no campo da comunicação. Mesmo que

se diz que todos precisam de condições mínimas, e que

ele não se dê com tanta autonomia como imaginamos

é ali a escola mínima, é a bolsa-escola. Temos que rea-

ingenuamente, já vem viciado, rançoso, mas apesar dis-

gir a isso. O mínimo já fez história, quinhentos anos que

so ele pode ser trabalhado, pode ser tocado. Então a

se vão e nem se tem o mínimo e não se fala do resto.

comunicação para mim, e a educação, como dizia antes

Precisamos cobrar um direito maior dessa coisa, de que

— talvez eu reunisse esses dois conceitos —, é a Torre

se deve fazer inteiro. Precisamos da coisa inteira e, pelo

de Babel. Porque estamos ali tentando produzir uma coi-

menos, brigar por ela, ainda que ela se dê paulatina-

sa, alguns entendem, outros não. Surgem os avessos,

mente, que elas aconteçam paulatinamente, mas o in-

as interpretações, a diversidade.

teiro está em jogo e não só uma parte, a migalha, o resto que sobrou, o que restou e que o FMI permite que seja investido em educação, mas que o inteiro volte a ter lugar.

Silnei Soares: Uma questão sobre educação e comunicação: eu pensei, lembrando dos textos com que você trabalha no AN Escola, que ali se trata de uma perspectiva iluminista ainda, de educação pelos meios. Mas, pensando na comunicação, sem tentar reduzi-la ao midiático, como é que a comunicação educa fora do espaço institucional?

96


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.