Em Tempo - Rastros De Oficina

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Ficha Técnica Organização e edição Fred Linardi Regina Rapacci

Revisão Caroline Joanello

Capa e projeto gráfico Maria Williane

Diagramação Maria Williane

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) L735 Linardi, Fred. Org.; Rapacci, Regina, Org. Em tempo: rastros de oficinas/ Organização de Fred Linardi e Regina Rapacci. – São Paulo: Biografias e Profecias, 2020. E-book pdf; 80p. ISBN 978-65-00-07670-7 1. Literatura Brasileira. 2. Narrativas de Não Ficção. 3. Memórias. 4. História de Vida. 5. Oficina de Escrita de Memórias. I. Título. II. Rastros de oficina. III. Fred, Linardi, Organizador. IV. Rapacci, Regina, Organizadora. V. Kasmanas, Ana. VI. Ferreira, Andréa Aquino. VII. Mello, Anna Maria. VIII. Joanello, Caroline. IX. Muniz, Gabriela. X. Barrios, Irka. XI. Amabile, Luís Roberto. XII. Bento, Maria Gessi. XIII. Williane, Maria. XIV. Vilela, Moema. XV. Cunha, Sabrina. XVI. Pereira, Sylvia Beatrix. CDU 821.134.3(81)

CDD B869.3

Catalogação elaborada por Regina Simão Paulino – CRB 6/1154


rastros de oficinas

Org. Fred Linardi e Regina Rapacci Com textos de Ana Kasmanas, AndrĂŠa Aquino Ferreira, Anna Maria Mello, Caroline Joanello, Gabriela Muniz, Irka Barrios, LuĂ­s Roberto Amabile, Maria Gessi Bento, Maria Williane, Moema Vilela, Sabrina Cunha e Sylvia Beatrix Pereira.


Índice APRESENTAÇÃO 5 Regina Rapacci e Fred Linardi ANA KASMANAS Chá ou café? 11 ANDRÉA AQUINO FERREIRA Gringo 16 Minhas mãos 21 Tristeza 29 ANNA MARIA MELLO A Lata 31


CAROLINE JOANELLO Detalhe-elefante 35 O cabelo de minha avó 39 GABRIELA MUNIZ A pipa 44 IRKA BARRIOS Aparências 48 LUÍS ROBERTO AMABILE Dona Milu e eu 53 Pneu baixo 55 Os apitos eróticos do seu Celestino 57 MARIA GESSI BENTO Dídi e Meu Aprendizado 60 Ferrovias e a vida 62 La habanera 65


MARIA WILLIANE Míope 67 MOEMA VILELA Avós ao telefone 70 SABRINA CUNHA Encanto 74 SYLVIA BEATRIX PEREIRA Geografias 77


Apresentação Era um novembro quente e árido de 2014, em São José dos Campos, quando nos preparávamos para a primeira oficina de escrita de memórias. Depois de quase dois meses sem chuva, começávamos a acompanhar as notícias preocupantes de que, caso ela não aparecesse, as reservas da grande São Paulo e de outras cidades reduziriam-se a níveis abaixo do mínimo necessário. São José dos Campos, um grande centro urbano do Vale do Paraíba, assumia sua condição de vale seco e calorento. Nós dois – Regina e Fred – planejando as aulas que começariam na semana seguinte, nem percebemos a nuvem que acinzentou o céu. Em pouco tempo, chegou a garoa que recebemos como se fosse uma tromba d’água. Ela não passou de uma rápida chuva, um ouro de tolo. Serviu para fazer o mormaço subir e tirarmos uma foto: “olha, choveu aqui”, que enviamos para os amigos de São Paulo. Voltamos ao nosso oásis, o planejamento das aulas: técnicas para narrativas de memórias; meios para rememorar o passado; ferramentas literárias; organização e roteirização das ideias; exemplos de escritoras e escritores que o fazem de modo exímio; atividades práticas em sala de aula; leituras para casa; planejamento de projeto literário! Ufa!


Até que um toque soou no celular do Fred. Era um aviso vindo por e-mail: a data para uma aguardada entrevista no consulado italiano havia sido marcada. – Regina! Fui chamado! Seria um dia crucial para o processo: o carimbo que validava a documentação de todos os antepassados até a atualidade. Com isso, o processo de cidadania poderia ser levado adiante, para Roma. – Vai ser no dia da primeira aula da oficina... – veio o complemento, seguido de uma atenuante –...só que é de manhã. Mas vai dar certo: eu chego a tempo para a aula. Sim. A aula seria às sete horas da noite, em São José do Campos, que ficava a cerca de todas as horas contidas na burocrática italiana em plena Avenida Paulista, com entrada para a Avenida 23 de maio, que vai até a Marginal Tietê, que leva à Via Dutra cheia de caminhões e pista estreita. O atendimento no consulado, que seria pela manhã, aconteceu à uma da tarde, após o compadecimento de uma família à frente do Fred na fila, depois de escutar que, naquele mesmo dia, ele tinha uma turma para dar aula em São José. Pois lá estávamos, na hora certa, com nossos primeiros alunos de uma série de oficinas que seguem realizando um desejo em comum: ter as memórias narradas, escritas a próprio punho, com o sabor da literatura. Nosso desejo tinha um gostinho a mais para nós. A Biografias & Profecias já havia se estabelecido como uma editora sólida em seu propósito inicial, o de eterni-


zar as memórias dos nossos clientes em forma de livro, de modo a inspirar novas histórias paras as futuras gerações. Acontece que, desde 2006, quando tudo começou, víamos muitos clientes que deixavam de contratar o nosso trabalho, fosse por uma incompatibilidade de agendas, fosse por questões orçamentárias. Frustrados, nós víamos o risco daquelas histórias jamais serem passadas para o papel antes que a parte viva delas partisse da nossa existência. O que poderíamos fazer diante disso? Oferecer as ferramentas que usamos ao transformar em livros as narrativas familiares, até então existentes apenas na oralidade e no afeto individual desses personagens. Aquelas duas noites de novembro de 2014 foram o início de uma série de oficinas. Em 2017, o Fred acabou rumando não para a Itália, mas para Porto Alegre, onde se aprofundou ainda mais no gênero da não ficção. Dessa forma, as oficinas passaram a ser oferecidas – além de São Paulo e São José –, em Porto Alegre. No fim de todas elas, havia uma vontade de quero mais. Falávamos sobre uma possível continuidade das aulas, ou reencontros de criação e discussão de textos. Havia mais um: o de organizar uma edição contendo parte do que foi produzido ao longo desses cursos. Então, graças às nossas alunas e alunos, eis a concretização desse antigo desejo. Ver a realização deles é uma retribuição ainda mais especial no significado do nosso trabalho. E nessas idas e vindas, a vida real nos mostra o quanto também gosta de brincar com seus persona-


gens e roteiros. Em 2019, olhem só, a Regina é quem estava vivendo na Itália, à espera da própria dupla cidadania. Foram ela, de lá, e o Fred, de cá, que trabalharam na organização deste que é o primeiro e-book contemplando os escritos de oficina. São escritos trabalhados ao longo das aulas, cujo processo envolve mergulhos profundos e longas caminhadas. Desse modo, aqui são rastros de uma trilha feita por essas autoras e autores, que compartilham parte do que puderam vivenciar. Escritos que mostram também que a narrativa de não ficção não precisa ser árida como, muitas vezes, a vida é. A não ficção respeita os preceitos de se seguir uma narrativa de acordo com os eventos ocorridos, e nada além deles, a não ser os recursos literários utilizados para narrá-los. Por isso comportam a reprodução de cenas, descrição de personagens e ações, diálogos e a própria linguagem literária. São todas essas combinações que tramam uma boa prosa – uma prosa que se refere aos personagens reais. Em tempo, que continuemos a nutrir nossas vidas e memórias com o frescor deste oásis que é a literatura, capaz também de tornar a ligação entre os antepassados e as futuras gerações muito mais saborosa do que intempéries burocráticas e filas de espera. Fred Linardi e Regina Rapacci




Chá ou café? Ana Kasmanas

Chá ou café? Assim sempre começavam as conversas com minha avó Anna. Linda, cabelos grisalhos, sempre arrumadinhos e presos em um coque parecido com o de todas as vovós da minha época. Chá ou café?, ela insistia, inclusive quando eu a procurava para pedir um conselho que ela achava que não iria conseguir me dar. Imagina, quanta humildade. Guardo os conselhos da vó Anna no fundo do meu coração e é para lá que eu corro quando preciso enfrentar os piores desafios da minha vida adulta. Anna alguma coisa Gorskis era o nome dela. Este “alguma coisa” eu sempre quis saber, mas ela dizia: “Filhinha, é difícil de entender, pra quê você precisa falar? Não importa o meu nome”. Ela nasceu na Lituânia, lá pelo ano de 1900. Talvez 1906. Ela também não sabia direito. Tinha três irmãs, era a segunda filha de uma mãe pouco amorosa, mas muito cuidadora. Sei de suas histórias porque tive a paciência e o privilégio de escutá-las sempre que vó Anna tinha vontade de contá-las. Esteve presente na Primeira Guerra Mundial e me contava, tremendo como se fosse hoje, sobre o pânico que sentiu quando, ainda criança pequena, teve que correr com as irmãs e a mãe para um abrigo subterrâneo, e viu sua mãe voltar para tentar salvar uma porca com seus filhotes, o que quase causou a morte de todos ali. 11


Era de uma família grande e, aos 16 anos, viajou sozinha por mais de três meses, quando foi colocada em um navio imigrante num exato dia de Natal. O destino era um país sobre o qual sempre se dizia: abençoado por Deus, tinha comida. E assim eu seguia apaixonada pelas histórias da vó Anna, torcendo para ela não parar (como às vezes fazia) e dizer: “filhinha, isto não é importante...”. Vó Anna contava que, ainda no navio, conheceu o vô João – lindo, alto, olhos cor de violeta –, e que tiveram um rápido romance. Mas, ao desembarcar, perdeu o rapaz de vista e achou que o desencontro seria para sempre. Chegou ao porto de Santos e foi encaminhada para uma fazenda de café no interior (nunca soube exatamente onde era). De lá da fazenda contava histórias simples e rápidas de uma vida, imagino eu, muito dura. Pele clara do Leste Europeu e mãos finas, que logo sofreram com o sol e com a enxada. Condição que a fazia pensar que a vida não seria boa. Até que, como em um conto de fadas, um lindo príncipe – digo, o filho do dono da fazenda – apareceu montado em um cavalo branco, encontrou aquela loirinha linda e a levou para ser assistente na cozinha da fazenda. Com esse novo recurso financeiro, minha avó conseguiu trazer toda a família, que ainda estava na Europa. Ela sempre me dizia que foi a única que conseguiu trazer a família toda. Quando Vó Anna foi encontrar sua mãe e irmãs no porto de Santos, soube que sua irmã caçula, Helena, não havia sobrevivido. Na verdade, metade do navio imigrante que a trouxe não resistiu. Helena havia morrido de tifo. Triste início de vida no país, do qual ela sempre dizia ser “abençoado pela natureza, tinha comida, filhinha”.

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E lá foram as três irmãs e a mãe rumo a uma tal de São Paulo, lugar bom para recomeçar a vida. – Filhinha – vó Anna me chamava. – Você sabe o que é cortiço? Pois foi lá onde fomos morar. Cortiço é um quintal com mais de cinco famílias, todas imigrantes. No nosso cortiço, a moradora mais antiga era uma velhinha de 55 anos, brava como um capeta. E lá seguia eu, mergulhada na história, imaginando os personagens que minha avó trazia. Enchendo a xícara de chá (apesar de eu ter pedido café por pelo menos umas três vezes), ela abria um pacote de biscoitos de polvilho e se acomodava na cadeira a minha frente e, sem mais, voltava a contar: Dona Alessandra tinha um filho que, segundo ela, era lindo, mas sem miolos e que tão logo chegou ao Brasil, resolveu ir caminhando até outro país, chamado Uruguai. Em quase todos os dias que se encontravam, Dona Alessandra contava para a minha avó e suas irmãs sobre esse filho querido e lindo. Minha avó até achava essa senhora simpática quando iniciava um sorriso dessas lembranças. A vida foi passando e vó Anna seguia cuidando da mãe e ajudando as irmãs a entender um pouco desta língua complicada que era o português. Nove anos se passaram e, segundo ela, nada importante aconteceu para contar. Suas irmãs se casaram e, já com mais de 25 anos, minha avó não era mais uma moça para se casar. Já tinha passado da idade. Foi quando, um dia, voltando da venda, ela escutou alguém chamar seu nome: – Anna, é você? A Anna do navio? – estava parado à sua frente o rapaz lindo, de olhos violetas. Sorrindo, ela perguntou: 13


– João? O que você está fazendo por aqui? – Vim visitar minha mãe, a Dona Alessandra! – ele respondeu, com um charme incrível na voz. E continuou: – Mas antes de qualquer coisa, preciso perguntar: você se casou? – Não – ela respondeu meio tímida. – Então vamos nos casar amanhã? – propôs o vô João. – Filhinha, filhinha? – carinhosamente, minha avó me trazia de volta: Toma seu chá, tá ficando frio. Ou você prefere café?

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Gringo

Andréa Aquino Ferreira

Ele era apenas uma bolinha de pelo amarelo quando chegou lá em casa. Não sabia tomar leite na mamadeira. Tivemos que usar um conta-gotas para alimentá-lo e depois usamos uma pequena chuca de chá, e só depois de um tempo ele começou a usar uma mamadeirinha. Era um cão sem raça definida. Eu, ora o chamava de Gringo, ora o chamava de Vinagre, pois tinha cor de vinagre de maçã. Eu tinha o cabelo semelhante à cor do pelo amarelado dele, e meus primos me chamavam de Gringa. Na minha cabeça, Gringo era meu filho. E o filho de uma gringa, obviamente, teria que ser Gringo. Na minha memória, ainda guardo o grito que eu dava para chamá-lo. Será que cachorro tem memória? Se tivesse, certamente lembraria de uma voz fina e estridente que lançava ao ar um grito sibilante que o chamava: Gringooooo! Ele sabia que era a ele que estavam chamando, pois corria na direção do som, já que certamente ganharia comida ou afagos, ou até banho, do qual muitas vezes tentava fugir, pois ducha de mangueira no frio não é bom nem para quem gosta de água. Seu pelo era macio, a língua grande, quase sempre pendurada, seus olhos largos e pedintes e o focinho com faro apurado e muito curioso. Com o tempo, o pelo foi ganhando brilho e a cor ficou mais intensa, um amarelo mais escuro, e suas pernas cresceram desproporcionais ao corpo.

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De minúsculo cãozinho amarelo claro se tornou um enorme cão caramelo e, se comparado a outros cães da vizinhança, era grande, o maior entre eles. Cresceu apenas em tamanho. Sua vida era uma brincadeira interminável. Adorava água. Quando ia tomá-la, fazia toda uma pantomima. Primeiro tomava alguns goles, depois sapateava na bacia, fazendo com que a água transbordasse para todos os lados e, aí, virava tudo. Quando tomava banho fazia também estardalhaço e molhava toda a pessoa que estava a banhá-lo. Seu pelo ficava muito sedoso, com um brilho que resplandecia como sol. Mas acho que ele não gostava de ficar limpo, pois corria e se esfregava na terra vermelha solta. Ficava mais sujo do que estava antes do banho. Sempre teve a companhia de muitas crianças, mas era, por assim dizer, o dono do meu coração. Eu o tratava como se gente fosse, achava que ele pensava, e até hoje tenho dúvidas com relação a isso. Será que cachorro pensa? Será que cachorro tem sentimento ou é apenas um animal que age por instinto? Para mim, ele era um companheiro para as brincadeiras, um amigo, um confidente, um amor na forma de cão. E para ele, o que eu era? Uma menina estúpida que não o tratava como animal? Não gosto de dizer que era sua dona. A gente pode ser dona de coisas, de uma cadeira, de uma mesa, mas um cachorro não é uma coisa. E aí volta a mesma pergunta. Cachorro tem sentimento? Ou ele age apenas por instinto? Também sou um pouco animal que age por instinto. Instinto de preservação. Lembro quando ele era muito pequeno e o levei comigo para fora, para a campanha. Fui de carro com minhas irmãs, meus pais e uns primos. No meio da viagem, a camioneta em que estávamos atolou, e o pneu atritou com uma macega. De tanto rodar para tentar sair do buraco, a macega debaixo do pneu pegou fogo. O fogo era muito próximo do tanque de gasolina. Meu pai gritou que corrêssemos. A camioneta poderia explodir. Minha mãe 17


perguntou a ele o que ele iria fazer. Ele disse: vou ficar, vou tentar apagar o fogo. Ela respondeu, então: eu fico com você. Eu não tive dúvidas, não esperei ele falar duas vezes. Peguei o Gringo e corri para o mais longe que pude. Agi por instinto de preservação. E quando larguei o Gringo no chão, ele queria voltar para junto da camioneta. Aí fica a minha dúvida sobre quem era mais animal, pois deixei minha mãe, pai e minhas irmãs menores junto do veículo, tentando apagar o fogo. Pensei só em mim, na minha pele. E na do cão. E o animalzinho querendo voltar para junto deles. Minha mãe gritou para mim que levasse o meu casaco, pois ela havia tirado o seu e o das minhas irmãs e os ensopara com a água de uma poça, e os havia lançado contra o fogo. Estava abafando as chamas. Só aí foi que voltei, e entreguei o meu para ajudá-las a apagá-lo. Minha mãe até hoje conta que fui muito longe, na coxilha, correndo, e que via meu cabelo voando no meio do trigal. Voltei só quando ela me chamou. Gringo brincava com as crianças da casa, fazia fandango. Corria atrás delas e puxava suas roupas. E adorava o colo, e bastava abrir a porta pela manhã que lá estava ele, pronto para novas brincadeiras. O viver dele se resumia a correr, e brincar sem parar. Suas pernas longas esticavam muito quando ele corria, talvez por isso era muito rápido. Corria atrás das crianças, das bicicletas, dos carros, das motos, tudo que passava era motivo para ele correr. Corria, latia e assustava. Mas não mordia. Teria ele noção de por que corria? Ainda me pergunto por que ele fazia corridas intermináveis para lugar algum? Ele tinha um canto para dormir, na garagem, bem junto à parede, próximo da porta que dava acesso a casa. Não lhe era permitido entrar dali adiante. As orelhas se levantavam em razão de qualquer som diferente que pudesse ameaçar o seu território, seu cheiro estava impregnado em cada centímetro daquele lugar e também no jardim da casa. Corria pela 18


grama curtinha e alcançava uma elevação, olhava para o céu azul, e eu via o vento suave bater no seu pelo. Brincava com seu focinho úmido fuçando as gramas e rolava pela terra vermelha do pátio. Sentava as patas traseiras e esperava, pacientemente, a chegada das crianças, mil vozes a lhe darem ordens, a lhe chamar atenção. As crianças lançavam pequenos gravetos para ele apanhar, coisa que ele fazia de forma muito rápida. Risos e brincadeiras eram uma constante. Havia uma grade na frente da casa e Gringo ficava sempre restrito a ela. O jardim era o seu domínio. O estimulávamos para que se tornasse um cão de guarda. Pensávamos que ele enfrentaria os ladrões que passassem além dela. Mas ele era confuso e latia para todo mundo, não identificava nada. Latia para crianças que passavam pela calçada, latia para adultos, latia para todo o lado, mas nunca mordeu ninguém. Ele era todo latido, mas com ele tudo era diversão. Gringo, num desses dias, encontrou alguém que não soube brincar. O guarda-noturno, pago para proteger, o baleou, pois não gostou de sua brincadeira de latir e correr ao lado de sua bicicleta. Normalmente ele amedrontava as pessoas com o seu tamanho, com sua energia. Mas agora ali, caído no chão e ensanguentado, já não amedrontava mais ninguém. Levou três tiros à queima-roupa. Quando decidiu fugir, entrou no jardim já cambaleando, deixando um rastro de sangue por onde passou. Procurou um lugar para deitar, poeirento, onde a grama não havia vingado. Das suas costelas se percebia a respiração ofegante. Na sua barriga, os três buracos de bala. Quando respirava, golfadas de sangue surgiam no ferimento e escorriam. A cada expiração, mais sangue surgia e ia se acumulando ao redor dos buracos de bala. Percebia-se pelo seu olhar que estava sentindo muita dor. Chamamos o veterinário, mas ele disse que nada podia fazer. Ele havia perdido muito sangue e deveria estar com o intestino todo perfurado. Uma cirurgia só iria fazê-lo sofrer mais ainda. 19


A morte chegou. Ele, exausto de um dia sem fim, levantou a cabeça e tentou ver onde estava; com um olhar vazio, seus olhos cerraram. Mas acho que ele ainda podia ouvir o choro das crianças à sua volta. Já desistente de tentar reabrir seus olhos, com o rabo inerte, impotente ante a batalha final, dava-se por vencido, e o sono, uma espécie de descanso, chegou, e mãos carinhosas acariciaram sua cabeça, tentando abrandar sua dor.

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Minhas mãos Andréa Aquino Ferreira

O que fiz com minhas mãos? Elas agora têm aparência craquelada e perderam a maciez. Tornaram-se ásperas. Escondo-as, pois tenho vergonha da aparência que têm agora. Fico a pensar qual uso fiz das minhas mãos para estarem neste estado. Joguei sementes de abóboras nos tarros de leite. Isso aconteceu na casa da minha avó materna quando eu tinha apenas um ano e meio de idade. As sementes eram para secar, para depois serem plantadas. O leite era para fermentar, para ser utilizado na fabricação de queijos. Inutilizei tudo, pois molhei as sementes e contaminei o leite. Ficou uma bebida sementada. Virou comida para porco. Conta minha mãe que, quando eu tinha mais ou menos três anos de idade, logo que mudamos para a casa nova, hoje velha, o nosso jardineiro veio até ela e disse: “patroa, esta ajuda eu não quero”. A ajuda a que ele se referia era a minha. Ele havia feito um canteiro na horta, onde plantava mudas de alface em pequenas covas, e eu ia atrás dele e invertia a posição delas, enterrava as folhas e deixava as raízes para fora. Quando ia fazer doze anos, inventei que o pão de cachorro-quente da minha festa de aniversário seria feito por mim. E o fiz. Tive o apoio da minha avó materna, que me ajudou a fazer a massa do pão. Eu sovei com minhas mãos e os moldei. Minha avó os enfornou, pois achava que criança não deveria chegar perto do fogo. Os pãezinhos foram feitos na granja 21


dos meus avós maternos num grande fogão a lenha. Ficaram deliciosos. Aprendi piano dos sete aos quinze anos. Tentava tocar, mas minhas mãos apenas batiam nas teclas, sem ritmo e sem compasso. Cheguei a me apresentar num recital e foi só nisso que deu a minha vocação de pianista. Aos quatorze anos, aprendi a datilografar. Aos trinta passei na primeira etapa de um concurso público e precisei fazer uma prova prática de datilografia. Tive que aperfeiçoar minha técnica, que na época era lenta, mas com poucos erros. E para passar exigiam rapidez, cem toques por minuto. Era a produtividade mínima esperada, e eu não alcançava as exigências. Por isso, voltei para uma escola de datilografia. Ao longo de um mês, fiquei na escola de datilografia dezesseis horas por dia aperfeiçoando minhas habilidades. Passei na segunda etapa do concurso. Ao assumir o cargo, para minha surpresa, me deram um computador para trabalhar. Aí tive que começar aprender a digitar e a usar o Word e o Excel. Foi só o começo destes 26 anos de aprendizado no serviço público, pois num computador tens que aprender todo dia alguma coisa nova. Pintei quadros dos doze aos catorze anos. Adorava pintar o pôr do sol. Mas percebi que o sol ao vivo é mais bonito do que nas telas que eu retratava. O sol reflete luz, reflete energia, e essa energia não se coloca na tela. Por isso, comecei a fotografá-lo. E até hoje fotografo o pôr do sol, pois isso me encanta e deixa a ilusão de que tudo acaba e tudo pode ter um recomeço. Peguei pesado na construção de uma casa, ajudei a cortar e colocar o taboão de madeira no piso, preparei paredes para pintura, passando massa corrida, lixando e ficando branca como uma múmia. Ajudei na pintura das paredes. A colocar rejunte nos azulejos e no piso. Mãos calejadas, trabalho duro, pesado, mas era o sonho da casa própria. Só que essa casa nunca foi minha, serviu apenas para ocupar meus fins de semana com muito trabalho, nenhuma folga, e para gastar o meu dinheiro. Até hoje 22


luto na justiça o tempo e o quinhão que nela coloquei. Numa das vezes em que questionei sobre os meus direitos sobre ela, a resposta foi que só morta eu receberia alguma coisa, de tão lenta essa justiça no Brasil. Tricotei a partir dos oito anos. Até hoje faço roupas para mim e familiares e também para vender. Teve uma época em que o tricô foi o meu ganha-pão. Aprendi a ler. Usei os meus dedos para virar as páginas, e as mãos para segurar os gibis, as revistas de fotonovelas e os livros. Hoje leio de tudo, até bula de remédio. Aos quinze anos ganhei um anel solitário da minha avó materna, minha madrinha, que pouco usei. Ao me casar, usei aliança na mão esquerda durante alguns anos. Usei os dedos para discar os números de telefones, e hoje, teclar no celular. Uso as mãos para fazer gestos enquanto falo, mesmo sabendo que a pessoa do outro lado não os vê. Lavei as fraldas sujas dos meus filhos, meus filhos que usaram fraldas de pano. Faço artesanato: colares, pulseiras, tiaras e brincos. Bordei ponto cruz e outros pontos. Já fiz muitos bordados para vender, para ter um dinheiro extra. Ajudei a bordar toalhas e panos de prato para juntar dinheiro para a festa de quinze anos da minha filha. Juntei as mãos e rezei em momentos de aflição. Quando vi meu filho num hospital, no isolamento de um quarto, com meningite. Mas aí percebi que Deus está em tudo, no ar que respiro, na água que bebo e também naquele menino que era o meu filho, que mesmo doente sabia nos confortar. Crochetei pouco. Ao fazer crochê, sinto que minha mão endurece, fica travada, talvez por pouca prática.

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Pintei unhas de cores diferentes, para deixar as mãos bonitas. E aí percebi que a beleza não está nas cores que eu coloco, mas nos olhos de quem as vê. Protegi com o braço e a mão o meu rosto de um pontapé de um ex-marido, que mesmo assim atingiu meu dente, no qual foi necessário fazer tratamento de canal. Tive que dizer ao dentista que tinha sido apenas um tombo. Quando fui diagnosticada com Meniere, comecei a aprender a linguagem de sinais. Achei que iria ficar surda, totalmente surda, de um dia para o outro. Agora percebo que a surdez já não me perturba mais, pois, se ela vier, virá. Sei que já não ouço tão bem, mas isso não é motivo para desespero. Como a minha mãe, tenho a possibilidade de usar aparelho de audição quando precisar. Acariciei meus filhos e os segurei no colo quando eram bebês. Carreguei-os no carrinho. Com minhas mãos, os ajudei a dar seus primeiros passos. Usei minhas mãos para vesti-los desde que nasceram até a idade em que já não queriam mais ajuda para se vestir. Visto-me desde que aprendi a fazer uso deste aparato chamado mão. Usei o dorso da mão para ver, para sentir a temperatura na testa dos meus filhos. E também para ver a temperatura da mamadeira de nescau que eles tomavam pela manhã. Lavei e lavo a louça da minha casa. Lavei e lavo roupas delicadas que não posso colocar na máquina. Troquei lâmpadas. Dizem que para aprender a morar sozinho tem que saber trocar lâmpadas. Aprendi a fazer isso muito cedo, mas ainda sinto dificuldade em trocar chuveiros elétricos. Passo a vassoura na minha casa, ou um pano úmido para tirar o pó do chão, ou um seco para tirar o pó dos móveis.

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Usei minhas mãos e meu corpo para dançar balé e ginástica rítmica na adolescência. Nos bailes e reuniões dançantes, elas atuavam como para-choques, evitando a aproximação excessiva dos rapazes. Eu adorava dançar separado. Fazia trejeitos ao dançar diferente na época do Dancing Days, e ganhei até disputas entre amigos e amigas dançando as músicas do filme Os embalos de sábado à noite, com John Travolta. Carreguei cartazes, faixas, bandeiras em marchas e em protestos. Foram muitas bandeiras. A bandeira do meu time de futebol, o Internacional. Sempre Inter. Já carreguei a bandeira de diversos partidos: quando criança, carreguei a do partido do qual meu pai fazia parte. Depois, fui franja do partido político que apoiava. Entendo por franja a pessoa que não é filiada, mas o apoia na sua política e vota com este partido. Quando o partido do qual eu era franja desfiliou a corrente da qual eu era simpatizante, tendo como motivo a reforma da previdência, eu fui junto e ajudei a fundar um novo partido. Hoje carrego essa nova bandeira. Carreguei também a do meu sindicato, o dos técnico-administrativos da UFRGS. Carreguei a bandeira da Federação de Sindicatos de Trabalhadores em Educação das Universidades Brasileiras e ainda a da CUT até quando percebi que ela não mais nos representava. Então, lutei para o que o meu sindicato e minha federação se desfiliasse dela. Hoje carrego as bandeiras da Intersindical e do Povo sem Medo. Tentei aprender a bater um tambor de lata, quando participei da Marcha Mundial de Mulheres em São Paulo. Lá vi que os problemas que as mulheres sofrem são os mesmos, independentemente do lugar onde vivem. E que teríamos que bater muito tambor todos os dias a todo segundo e, mesmo assim, tais problemas não amenizariam. E que a solução desses problemas não está em mim, como mulher, pois são decorrentes de uma sociedade capitalista e machista, que entende a mulher como mera mercadoria, acha que mulher não pensa e que nada vale seu trabalho. 25


Um amigo, algum tempo atrás, me disse que já tinha passado a minha idade de protestar e de andar por aí carregando bandeiras. Que protesto era coisa de adolescente. Que eu tinha deixado a adolescência há muito tempo e que era chegada a hora de crescer. Que o natural da vida é a gente ser de esquerda na adolescência e ser de direita na idade adulta. Perguntei a ele quem disse ou quem deduziu a ordem natural das coisas. Por que uma pessoa de meia-idade tinha que se tornar de direita, conviver com desigualdade e achar natural? Se ele não protestava, se achava que tudo estava ótimo, era um problema dele e não meu. Minha mão era livre para dispor da bandeira ou votar no partido que achasse o mais condizente com as ideias em que eu acreditava. Carreguei malas e mochilas nas tantas viagens que fiz para a minha terra natal, para ver minha família, ou para conhecer outros lugares e, afinal, me conhecer. Minhas mãos já fizeram o alimento do dia a dia. Segui receitas sem atear fogo na cozinha. Fiz um ovo frito que tinha cheiro de pipoca, pois enchi a panela de óleo, e o ovo boiava. Minha tia, que chegou para me visitar, me perguntou: “Está fazendo pipoca?”. Cortei meus dedos ao picar beterraba. Escolhi muitas verduras no mercado. Fiz muitos bolinhos de chuva. Fiz pipoca, muita pipoca e, uma vez, ao fazê-la, tive uma queimadura de segundo grau, que até me deixou uma marca. Uma marca bonita, parece um mapa. Fiz bolos de aniversário para a família, isto é, para mim e meus filhos. Tenho dificuldade de confeitar, não usava o bico de confeitar, e meus bolos eram desconstruídos. Fiz um especial para a festa de aniversário de 80 anos da minha mãe, um bolo pelado, ou melhor, naked cake de frutas vermelhas. Ficou meio torto, mas deu para comer. Fiz também um bolo para uma tia, esse feito da forma tradicional, confeitado com nossos recheios preferidos: ovos moles e nozes.

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Aprendi a fazer Zen Shiatsu, para saber usar os dedos e apertar nos pontos certos das minhas dores, ou de um corpo que não é o meu. Fiz muita massagem nas costas e nos pés treinando meu aprendizado. Mas o essencial que aprendi é que há pontos do nosso corpo que podem revelar uma dor que não é física. Usei minhas mãos para ter prazer, um prazer meu, com o meu corpo, com o uso dos dedos, apenas para sentir que não estou morta. E sei que cada pontinho do meu corpo responde à manipulação. Escolhi bons filmes para assistir na NET, usando o controle que pouco sei usar, pois sou uma descontrolada total. Pendurei quadros na parede, usando pregos e martelo. Muitas vezes, o que saía martelado era um dos meus dedos. Sou seguidora da doutrina espírita. Usamos as mãos para dar passe. Minhas mãos já selaram laços, no aperto, sustentaram minha família, brindaram a vida, e como é bom brindar a vida. Vedaram olhos no jogo de cabra-cega, abriram portas, mas também souberam fechá-las. Aplaudiram, mas também foram usadas para vaiar quando tapei bocas com elas. Acenaram adeus. Já ampararam. Já indicaram um caminho. Já confortaram. Já andaram de mãos dadas. Votaram. E muitas vezes já fizeram o sinal da cruz. Escrevi a partir dos seis anos, e nunca mais parei. Escrevi por não saber falar, pelas dificuldades de encarar as verdades que ardem na minha cabeça. Penso que a verdade é relativa, depende do ângulo de visão que temos, e de como encaramos a nossa realidade. A minha realidade e a minha verdade só eu conheço. E aparece nos meus escritos, assim como nos meus olhos, na forma de lágrimas. Acreditei que começar a escrever era um ato de rebeldia. Eu sempre fui rebelde. Mas me acovardava, pois não sabia escrever nem cartas de amor. Meu escrever era cheio de sentimentos contraditórios. Por exemplo, eu me declarava para quem eu gostava, 27


dizendo o que dele me fascinava, mas esquecia de mim e assumia uma atitude retraída e buscava me esconder, o que me diminuía. Mas não, escrever é colocar no papel o que vivo e o que sinto. É uma forma de expressar sentimentos. Eu agia como se nada sentisse. Expressar sentimentos é difícil. Precisa de muita coragem. Houve desistência. Houve recomeço. Houve recuos e tropeços, mas também avanços e aceitação. É muito difícil falar de mim. O recurso foi falar de mim como se estivesse falando do outro. Hoje, a escrita é fuga da solidão, pois há uma voz na forma de letras. A minha escrita me mostra nas entrelinhas e ela não depende só de mim. Ela depende da interpretação do outro, precisa das vivências do leitor, precisa da verdade que ele acredita. Então, o ato de escrever é libertador, pois renova nossas significâncias. Penso naquela moça que apareceu nos jornais pois teve suas duas mãos decepadas, e fico a pensar como ela consegue viver. Não me vejo sem minhas mãos. Sem elas, minha vida teria um outro sentido, ficaria muito difícil de viver.

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Tristeza

Andréa Aquino Ferreira

Tenho uma tristeza profunda Tenho vontade de partir Partir para outra vida Essa aqui não dá mais Tenho uma angústia permanente Vontade de gritar, de esmurrar E dizer não quero mais isso Isso para mim não é vida Ficar o dia todo na frente de um computador E chegar em casa só para dormir Minha casa deveria ser o meu aconchego Mas não é Não gosto de estar na minha casa Pois nela só vejo trabalho Roupa para lavar Louça suja na pia me espera Banheiro sujo Só trabalho Prazer nenhum Divertimento nenhum Dia após dia essa rotina me espera 29



A Lata

Anna Maria Mello

Uma lata poderia ser muitas coisas. Aquela havia armazenado molho de tomate. Por fora, estava envolta por um rótulo de impressão brilhante; papel de boa qualidade para tapar o material barato. Nas primeiras semanas depois que cheguei a Porto Alegre os dias eram iluminados. O sol parecia entrar pela cabeça, descendo pelo corpo, passando por todos os órgãos até chegar em cada célula. A bola alaranjada que sumia no Guaíba nos finais de tarde me aquecia. Era tudo novidade e isso me bastava. Faltava um lugar para me instalar. Na busca pela internet, encontrei um apartamento de frente para o rio. Depois de arrastar a mala pelos degraus de uma estreita escada, me jogar na cama com o corpo grudento, roupas molhadas de suor, abri a geladeira e constatei que precisava ir ao supermercado. Dentre as ofertas da prateleira abarrotada de mercadorias, decidi por um bom vinho, uma caixa de massa e duas latas de molho de tomate. Comi, lambendo os dedos. O que sobrou, guardei para o dia seguinte. Durante a madrugada, acordei com ruídos vindos de uma avenida próxima. Breques de ônibus que precisavam de pastilhas novas, pessoas que gritavam saindo de uma balada, pelotão de exército comandado por toques de apito. Sem conseguir pregar o olho nas noites seguintes, bastaram alguns dias para que me mudasse. De lá, levei as roupas e uma lata de molho de tomate. 31


Na nova moradia, longe do Guaíba, o sol descia em meio aos prédios. Nas manhãs, ouvia o cantar de pássaros. O apartamento tinha móveis mais confortáveis, escolhidos a dedo pela proprietária. Mas nada tinha minha cara. As noites eram mais difíceis. Pensava nas coisas que deixara para trás, em São Paulo. As filhas, os cachorros, os amigos. Deitada de barriga para cima, demorava a pegar no sono. Em algumas madrugadas, acordava molhada, com os olhos fixos na parede bege. Não reconhecia nenhum objeto. Por alguns minutos não sabia onde estava. Os dias da semana eram preenchidos por estudos e trabalho, livros que me levavam a lugares longínquos e, por vezes, inóspitos. Em uma sexta-feira de maio, quando recebi a visita de minha filha, o sol já não brilhava tão forte, e as nuvens se agitavam formando tempestades. Julia chegou animada para desbravar os pampas. Assim que entrou, foi logo dizendo: – Nem parece sua casa, aqui combina mais comigo. Ela tinha razão, mas não havia me dado conta. Estava na hora do almoço e resolvi fazer a macarronada, aquela tradicional da “mama”. Sabia que, assim, ela se sentiria em casa. Depois, de barriga cheia, nos atiramos na cama e, juntas, tiramos um cochilo. Ao acordar, do quarto pude ver a sombra de Julia na cozinha. Estava com algo nas mãos. – Mãe, vem cá. Que tal pintarmos essa lata? Achei boa a ideia, faríamos algo juntas. Nesta hora, a panela já estava com água fervente. Mergulhei a lata. Encostei de relance a mão na tampa da panela. Senti arder. Olhei o mindinho; estava vermelho, mas não disse nada a Julia. Logo o rótulo se desprendeu.

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Saímos para comprar tinta e outros apetrechos. No caminho, Julia contou de seu novo emprego na empresa de cosméticos, na área de Marketing. Estava animada, e eu, feliz por vê-la tão bem. De volta ao apartamento, começamos a pintar a lata. Meus dedos melecados de verde cobriam a bolha do mindinho. O cheiro da tinta tomou conta da sala. Abrimos as janelas e resolvemos sair para comer. No caminho, passamos por uma loja de artesanato. Julia olhou para um guardanapo estampado com cactos. – Vai combinar com a lata. – Sim, vai cobrir as imperfeições da tinta. Vamos levá-lo. Pegamos o pacote de guardanapos, um verniz, e voltamos quase correndo para casa. Dessa vez, foi Julia que quis aplicá-lo. Observei como deslizava os dedos sobre as nervuras da lata. Deixou em cima da pia para secar. Voltou depois de um tempo para reaplicar outra camada, enquanto eu ajudava com as malas. Era hora de sua partida. Durante a noite, o cheiro não incomodou. Mesmo assim, abri a janela para circular o ar. No celular, mensagem de Julia, que dizia ter chegado bem. Encostei no travesseiro e dormi. No dia seguinte, a lata já estava seca. Posicionei-a na escrivaninha ao lado de uma pilha de livros. Peguei o lápis com o qual estava escrevendo e coloquei dentro. Admirei-a por alguns segundos, pensando como foi bom o final de semana. O semestre passou rápido. Ganhei outros lápis, borrachas e canetas. Resolvi fazer uma macarronada. Dessa vez, seria para os amigos. Arrumei a casa. Em cima da escrivaninha, bem do lado das pilhas de livros, ajeitei a lata.

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Detalhe-elefante Caroline Joanello

Quando finalmente percebi que minha vocação era a escrita, eu passava por um dia muito ruim. Nada de especial havia acontecido, não existiu um fato determinante, eu simplesmente me encontrava no auge de um processo depressivo, tendo ouvido no dia anterior mais uma reclamação de minha então chefe sobre como eu era incompetente e desatenta — embora ela nunca se animasse a me demitir nos dois anos e oito meses nos quais trabalhei como sua assistente. Eu havia dormido mal, fazia um calor natalino e cheguei ao escritório exausta, pegajosa, antecipando cada milissegundo ainda a ser vivido naquele dia — portanto, vivendo todos, pelo menos, duas vezes. Era 2011, véspera do início do recesso de fim de ano, a chefe já estava a caminho da praia, o escritório era só meu. Comecei a chorar em frente ao computador. Queria saber onde eu estava indo com a minha vida, frustrada porque nenhum anjo ou demônio se materializava na minha frente, compadecido, para me dar as respostas. A memória da gargalhada de minha tia Ana veio do nada, pulou na frente do trem das minhas emoções, me obrigou a puxar o freio. Estávamos na casa antiga dos meus avós, eu, cerca de nove anos, sentada na mesa de jantar vendo ela no outro cômodo, o que parecia ser um quarto — embora não fizesse muito sentido espacialmente. Ela estava deitada na cama e ria com um caderno na mão. A risada dela me causava uma alegria 35


diferente, me dava a sensação de dever cumprido. Do que ela ria? Eu não era capaz de recordar esse detalhe. Recebi um e-mail. Um fornecedor ainda ativo me perguntava sobre prazos para a volta do recesso. O telefone tocou. A empresa de segurança queria que eu informasse a palavra-passe pois eu havia esquecido de desligar o alarme — meio tarde essa ligação, não acha?, perguntei. Agendamos uma revisão para aquela tarde. Recebi-os, alimentei os cachorros, passei café, realizei algumas das tarefas que haviam ficado para trás. Desliguei todos os computadores, o ar-condicionado, conferi portas e janelas, acionei o alarme, enfiei a chave na fechadura e então veio. Minha tia lia uma história que eu estava escrevendo. A cena veio completa na minha mente: férias escolares, eu sozinha na mesa de jantar enquanto os primos brincavam no rio logo atrás da casa, tia Ana entrou para buscar alguma coisa. O que tu tá fazendo aqui sozinha? Era uma preocupação constante de todos, o meu isolamento, sempre lendo alguma coisa e preferindo ficar dentro de casa a sair para brincar. Tô escrevendo um negócio. O quê? Um negócio. Deixa eu ver? Deixei com a condição de que ela não lesse na minha frente. Ela foi para o outro cômodo, deitou-se na cama e iniciou a leitura. Lembro que no começo eu pensei que ela estava rindo por achar muito ridículo o que eu havia escrito. Mas tia Ana, professora do então chamado Primeiro Grau, devia estar acostumada com textos amadores. Gostou, perguntou de onde eu tinha tirado aquelas ideias, contou pra todo mundo, me fez morrer de vergonha e de orgulho de mim mesma. O resgate dessa memória foi o início do rebuliço que tomou a minha vida nos últimos nove anos. Antes disso, eu estava há um bom tempo perdida, tentando suprir a ausência de minha mãe, ausência de morte prematura. Olhando para trás, agora, percebo que deixei de criar quando ela nos deixou. No entanto, na minha adolescência, eu não criava consisten36


temente. Havia uma vontade e um apoio leve da família, um status de passatempo na escrita. A leitura eu levava mais a sério (outra atividade que abandonei junto com a criação): se a professora fornecia uma lista para que escolhêssemos um para resenhar, eu lia todos e resenhava meu favorito; se algum colunista do jornal sugeria um livro, eu ia atrás; se alguém me presenteava com uma leitura, ela era feita com avidez. Assim conheci muitos dos autores que me marcaram para a vida, por mais que hoje eles não estejam necessariamente na lista dos meus favoritos. Enquanto meus colegas reclamavam de ter que ler enredos “chatos, onde nada acontece”, eu explorava o poder dos sentimentos em “Uma vida em segredo”, de Autran Dourado; conhecia o norte em “Macapacarana”, de Giselda Laporta Nicolelis; numa pequena ousadia infantil, retirei da estante destinada ao Segundo Grau “Iracema”, de José de Alencar, onde li minha primeira cena de sexo. A cada livro novo eu tinha a sensação de estar desvendando os grandes mistérios do que era crescer e viver. Permaneceu, dessa época, um carinho especial pela literatura nacional, e uma impressão de que escrever e publicar era algo tão especial que não era para alguém como eu, jovem e simplória, mesmo que a quantidade de leituras e os escritos ocasionais tivessem me fornecido uma facilidade para me expressar nos textos. Em casa, os valores eram outros, as preocupações de ordem mais prática — como pagar todas as contas em dia, garantir um futuro confortável, não faltar comida jamais (“nunca passe fome”, minha mãe repetia e repetia, tentando evitar que eu tivesse algum dia na minha vida algo perto da experiência que ela teve durante toda a infância) — pareciam mais reais e palpáveis. Desencorajada em casa a ser professora, descartei o caminho da licenciatura. Encorajada pela vontade de explorar formas de expressão, optei por fazer vestibular para o curso cujo currículo parecia mais versátil: a publicidade.

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O curso abriu para mim algumas portas pelas quais eu jamais imaginaria passar. Peguei em câmeras fotográficas e filmadoras pela primeira vez, conheci algumas preocupações políticas e sociais que nunca haviam sido pautadas em casa ou na escola, percebi que eu podia criar e ter um futuro aceitável para meus pais. Continuei lendo e escrevendo — havia disciplinas de criação literária na faculdade —, me aventurei pela fotografia, me apaixonei pelo cinema. Escrevi roteiros, consegui estagiar em algumas produtoras, com a intenção de ser roteirista e diretora, descobri o teatro, namorei as artes plásticas. E, então, no inverno de 2005, perdi minha mãe. De 2005 a 2011, foram seis anos no mais completo vácuo criativo, lutando contra uma melancolia que não apenas me paralisava, mas devorava minha memória. Parei de ler, de ver filmes, peças, ouvir músicas. Eu não via motivo, pois no instante em que virava a página ou sentava numa mesa de bar para debater o que havia assistido, eu esquecia de tudo. Não conseguia memorizar, portanto, não conseguia falar sobre. Minha mente estava sempre exausta, e foquei apenas no que era inevitável realizar: o mínimo dos trabalhos da faculdade, os estágios que apareciam, as oportunidades de trabalho que pipocavam na minha frente. Nada relacionado à criação. A chave permaneceu na fechadura por um tempo, o alarme da casa soou, precisei retornar ao escritório, atender o telefone, dizer a palavra-passe, despedir-me novamente dos cachorros e, quando finalmente ganhei a rua, senti um ânimo que há muito não sentia. Há poucos dias, li um texto de Murakami contando a história de como a ideia de escrever lhe ocorreu do nada, durante um jogo de basebol a que ele assistia sentado no gramado e que, antes disso, ele jamais havia pensado a respeito. Venho pensando a respeito da escrita desde os oito anos de idade, pelo visto. Apenas havia esquecido deste detalhe-elefante, deixando-me perder pelos arremedos na trama. 38


O cabelo de minha avó Caroline Joanello

— Vó, tu sempre teve o cabelo curto?, pergunto, enquanto ela arma a teia de linhas na máquina de costura que fica em frente à janela do seu quarto. Reclama que não enxerga mais o buraco da agulha, mas maneja com rapidez o maquinário e o tecido. Sento-me na cama, voltada para ela. Ela, sentada na máquina, de costas para mim. Seu cabelo de fios grossos e cacheados, ainda grisalhos, finalmente me chama a atenção, porque o comparo com as inúmeras fotos que vejo amontoadas na cômoda e pelas paredes. Minha avó vive o agora de maneira bastante presente, mas se cerca de lembranças por toda a parte. Fotos dela com outras pessoas, em momentos importantes das suas vidas: casamentos, batizados, comunhões e crismas, viagens de férias; fotos de pessoas que eu desconheço nas quais ela não está; fotos dos netos — a maioria tendo como protagonista o neto mais novo, também o mais presente. Do casamento dela, apenas uma foto, em que traz o cabelo curto. Ela então me conta que cortou o cabelo na época do casamento e nunca mais deixou crescer. Esqueço-me de perguntar o motivo. Intuo que é pela praticidade. Antes da reforma na parte da frente da casa, ocorrida nos anos 2000, o banheiro ficava na rua, tinha uma basculante sempre aberta e uma porta de madeira vermelha por cujas frestas o vento

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passava livre. Ter um cabelo comprido e cheio de cachos deveria ser um verdadeiro tormento. Nas poucas fotos que vi de minha mãe quando criança, ela também trazia o cabelo curto. Um corte estratégico que evitava gripes e piolhos. Depois de adulta, já vivendo na cidade, ela passou a variar bastante o uso do cabelo, e dela herdei essa alegada coragem de passar a tesoura sem muita piedade. * * * A mãe também casou de cabelo curto. As fotos do casamento estão todas guardadas dentro de um álbum antigo, velho a ponto do plástico protetor ter se mesclado com as imagens e já não ser possível removê-las de lá sem causar dano à sua integridade. Nelas, minha mãe sorri. Ao que parece, casou-se por amor, contra a vontade de todos os familiares envolvidos. Ela, muito pobre, meu pai, classe média, o sempre presente embate de classes que vemos tanto na vida real como na ficção. Tinha vinte e três anos. Eu, sua única filha, vim três anos depois. Minha avó casou-se obrigada. Não há sorrisos na única foto que vejo desse dia, também pendurada na parede, talvez colocada ali pelo costume automático de expor fotos — raras que eram antigamente. Nunca amou meu avô, embora ele a amasse, e tinha a total afeição do sogro. “Meu pai era apaixonado pelo teu avô, e disse que me matava se eu não casasse com ele”, me conta, o tom de voz natural de quem já se acostumou com esse enredo. Casou-se com quinze anos, teve minha mãe, sua primeira filha, aos dezenove. Minha bisavó não está mais viva para dizer se amava ou não o marido. Engravidou de minha avó aos quinze anos, já dentro do casamento. Eu pretendo nunca me casar. Pretendo nunca ter filhos. 40


* * * Quando meu bisavô se apaixonou pela bisa, a família dele foi contra a união. Miravam uma possível escalada social com a filha do dono das terras onde trabalhavam. No entanto, ele não cedeu. Casou-se por amor em 1939. A bisa tinha 14 anos. Minha avó veio um ano depois. As duas enfrentaram juntas uma vida difícil, pois além da fúria do clima que pautava o trabalho na roça, tiveram de enfrentar a fúria de uma sogra descontente. Quando chego para conversar com minha vó, num ensolarado e fresco domingo, encontro-a ruminando essa parte de sua vida recém-descoberta. Aos 79 anos de idade, pela coincidência de ter contratado para pintar a sua casa os filhos de uma senhora que conviveu com todos os envolvidos naquela época, ela finalmente descobriu porque foi sempre tão maltratada pela família do próprio pai. — Minha avó queria vingança, ela diz. Fiquei sabendo que ela tentou me matar várias vezes quando eu era pequena. Cresceu, mas seguiu sendo maltratada. Numa região isolada, numa comunidade pequena, onde todos se conheciam e, no fim, acabavam adquirindo algum grau de parentesco entre si, o sentimento foi passado adiante para a sogra de minha avó. — Eu comi o pão que o diabo amassou a minha vida inteira, e eu não entendia o porquê. Agora eu sei, e sei que eu não tive culpa de nada. * * * Fico me perguntando se a bisa tinha o mesmo sentimento que meu bisavô quando este decidiu enfrentar o desejo de sua família. Se o sofrimento pelo qual ela passou, de viver entre inimigos declarados, era com41


partilhado com ele, ou se ela acabou ali no meio desse pequeno furacão por também não ter tido a possibilidade da escolha. Minha avó não teve escolha, e acabou tendo o mesmo destino de sua mãe. Vivendo no meio de pessoas que não a queriam ali nem quando ela foi um bebê. Curiosamente, este também foi o destino de minha mãe, mesmo tendo casado com quem ela havia escolhido. Nunca perguntei para ela se ela havia mesmo escolhido, ou se casara com meu pai porque ele a escolhera. Mas as histórias que ela me contava a respeito do namoro dos dois dão a entender que o desejo era mútuo. E também deixam bem claro que a família de meu pai foi bastante hostil com ela desde o início, e este foi um dos motivos que fez o casal se mudar para outra cidade. * * * Meu cabelo não tem nada a ver com os de minha mãe e de minha vó, ele é liso e fino como o de meu pai. Eu jamais fui maltratada durante minha infância, e não cedo diante dos comentários da família a respeito da minha solteirice aos 34 anos de idade. Recentemente a vó me perguntou se eu não tinha arranjado nenhum outro namorado depois que terminei meu último relacionamento. Disse que não, e que eu não queria. — Mas tu é feliz, né, mana? — Sim, vó. Estou muito bem assim. — Que bem que tu faz. Se é para se incomodar, é melhor ficar sozinha mesmo.

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A pipa

Gabriela Muniz

Era de manhã. Podia sentir o vento batendo nas minhas bochechas insistentemente, como que pedindo permissão para entrar. Mas eu não deixava. Não que não gostasse dessa sensação. De fato, uma das minhas brincadeiras preferidas era ficar com a boca aberta e deixar o vento brincar dentro de mim. Mas eu estava com pressa naquele dia. As minhas pernas mal conseguiam acompanhar os passos largos e firmes do meu avô no caminho para a praia. Ele não falava. Eu também não. Só o barulho do vento nas folhas das árvores. Tínhamos chegado no dia anterior, de noite, como de costume. A pequena casa da praia nos esperava sempre com seu odor úmido e salgado. E o ritual se repetia: descer as malas e abrir rapidamente janelas e portas “para deixar o vento entrar”, dizia minha avó. Naquela época, os cinquenta quilômetros que separavam nossa “casa na cidade” da praia de La Floresta me pareciam uma longa e verdadeira viagem de aventura, a bordo do Ford azul 1928, modelo “Cachila” do meu avô. Como eu amava esse carro! Banco de couro branco já gasto pelo tempo, faróis enormes saltando na frente parecendo olhos esbugalhados e o mais divertido: os estribos laterais que ajudavam a subir, mas que para mim eram um brinquedo multiuso mutante, ora trampolim, ora cama de bonecas, ora mesa do chá da tarde.

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Eu e meu avô não tínhamos uma relação muito próxima. Ele não gostava muito de conversar. Mas eu sabia que ele gostava de mim, isso era fato e, para mim, bastava. Eu reconhecia seu carinho quando me deixava brincar no carro parado na garagem, por exemplo. Às vezes, ele se aproximava e colocava suas mãos entrelaçadas na minha frente e fazia um gesto como que querendo cortar o meu queixo. Aí ele ria alto, muito alto. Eu nunca entendi o que exatamente significava esse gesto, mas sempre devolvia o riso porque sabia que o faria feliz. E assim nos comunicávamos. Por isso naquela manhã eu levei um susto quando meu avô me chamou e disse: – Vamos! Temos que aproveitar que tem vento. O encontrei de pé, na porta já aberta e com uma pipa na mão. Ele nem esperou a minha resposta, se virou e apertou o passo. Eu o segui firme, segurando o fôlego, mas por mais esforço que fazia, havia pelo menos uns dois metros de distância entre nós. Ele pegou o caminho que dava na praia. O vento aumentou na beira do mar. Era sempre assim. A primavera uruguaia não deixava o sol esquentar nossa praia. Não ainda. Seriam necessários mais uns três meses para poder entrar no mar. Eram as regras. Por isso minha perplexidade com o convite inusitado do meu avô que continuava segurando a pipa na sua mão direita. Ela era enorme... ou pelo menos os meus oito anos acharam que era. Branca e cor-de-rosa, com fios de papel pendurados e formato hexagonal. Quando ela subiu, pareceu que o céu inteirinho se abriu para recebê-la. Ela era única, linda, forte, poderosa na imensidão azul. – Você quer segurar? – perguntou meu avô, já me passando a linha antes da minha resposta. E foi aí que aconteceu.

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Por um momento achei que a força do vento me levaria junto com a pipa. Eu conseguia ouvir ao longe a voz do meu avô me dizendo para deixar os pés inteiros no chão, dobrar um pouco os joelhos, manter a mão firme, puxar com segurança. Mas a minha alma não estava lá. Por alguns minutos ela saiu e foi passear no céu, do lado daquela pipa brilhante. Quando percebi, já estávamos voltando pelo mesmo caminho, rumo à pequena e úmida casa. Em silêncio. Os passos já não tinham a pressa da ida e eu, carregando a pipa apertada no meu peito, com certeza, não era mais a mesma menina. Alguns meses depois o meu pai foi me buscar no colégio antes da hora e eu sabia que algo tinha acontecido. Nunca mais eu vi o meu avô. O Ford 1928 foi vendido e a minha busca desesperada por aquela pipa no meio das tralhas do quartinho dos fundos nunca teve sucesso. Ele se foi sem saber, mas o dia em que me levou para empinar pipa na praia nunca mais sairia de mim. Ainda consigo ouvir a sua voz ao longe cada vez que preciso empinar as minhas pipas diárias: “mantém os pés no chão”, “segura com firmeza e segurança”. Nenhum livro ou curso ou faculdade me ensinou tanto quanto o silêncio daquela manhã ventosa de primavera. Ele nunca soube. Ou talvez sim.

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Aparências Irka Barrios

Começou na quinta-feira, após a leitura de um conto sobre o circo de horrores. Nem tanto por conta do circo, mas de um personagem específico, uma aberração de criatura, humilhada, explorada e, mesmo assim, satisfeita com a exposição. Satisfeita com a fama. Horas depois, no café, me deparei com o livro de Umberto Eco que conta a história da feiura. No sábado, depois de uma conversa idiota sobre um resultado milagroso, resolvi que seria uma boa ideia tentar uma coisa. “Não dói nada”, a profissional falou, “só vai inchar um pouquinho”. “Amanhã tu vai estar igual a um peixe boi”, ela disse, após vinte minutos de dores e choques. Tarde demais para abandonar o procedimento estético pela metade. Levantar e sair com meio rosto descamado seria bem pior. Não havia como escapar. Cheguei em casa com um cheiro de couro de galinha grudado nas narinas. Coloquei água para esquentar no microondas, ela sugeriu aplicar compressas de chá de camomila no local. Assisti ao copo girando lá dentro, vi a gosma que se movimentava dentro da água. Lembrava um couro de galinha cozinhando na água fervente. Ao me ver, Henrique reagiu com espanto. “O que tu fez?” É a pergunta coringa dele. Usa-a para várias situações. Às vezes me irrita, às vezes me faz rir. No sábado me fez rir, senti-me a criança que acabara de aprontar uma arte das grandes. 48


Às vezes lembro de uma amiga contar que logo após o parto do único filho, o marido olhou para ela e perguntou se aquele barrigão ia sumir. E enfatizou o último monossilábico: “Né?” Eu a vi contando o episódio para várias pessoas. Todo mundo ria, achava muita graça. No domingo pela manhã meus olhos incharam muito, muito mesmo. A pele que rodeia as pálpebras inferiores adquiriu uma coloração arroxeada e eu passei a enxergar através de uma pequena fenda horizontal. Tive que usar óculos escuros para não assustar as pessoas. Quem me encarava de frente, saltava de susto. “O que aconteceu?” Eu inventava uma desculpa qualquer e mantinha o olhar. O mais esquisito era que eu estava gostando daquilo. Quando morei no centro, encontrava uma mãe e seu filho no mercado, toda a semana. O guri devia ter uns 18 anos. O rosto era muito branco, o cabelo bem preto e ele injetara aquele troço que tinge a esclera. É uma modinha em determinados grupos e há opções de diversas cores: roxo, verde, amarelo, etc. Com uma pesquisa rápida na internet descobrimos que o procedimento pode causar cegueira. O rapaz, entretanto, ignorou os perigos. Quando suas pálpebras se abriam, enxergava-se um olho totalmente preto. Não bastasse isso, o guri tinha uns calombinhos embaixo da pele, três de cada lado, equidistantes, subindo da linha da pupila até a lateral da cabeça. A mãe tinha a aparência de uma mãe. Outro dia segui um garoto que tinha parte do rosto deformado. Não o ultrapassei, só me mantive uns metros atrás. Interessava-me a reação das pessoas ao ver um rosto tão incomum, assim como me sentir na pele daquele ser acostumado à rejeição. Domingo à noite tive um compromisso. Fui de óculos escuros. Comecei a listar as desculpas mais esfarrapadas: problemas na visão, picada de abelha, alergia respiratória, conjuntivite etc. No fim das contas, optei por usar uma explicação ridícula: estou monstruosa. 49


Depois da separação, minha mãe fez uma plástica no rosto. Um mês após o procedimento, ela não havia recuperado a aparência normal. Uma tarde me chamou e confessou que não sabia mais quem era. Mês passado ela soube que precisava retirar uma das mamas por conta de um tumor. A médica disse que faria a reconstituição durante a cirurgia, que era importante para a autoestima da paciente. Eu pensei que ela não fosse ligar, mas nunca estive tão enganada. Segunda de manhã meu rosto amanheceu maior. Os cantos internos dos olhos formavam uma dobra grossa que caía por cima da camada de baixo e eu tinha medo de encostar os dedos porque a pele ardia muito. A ponte nasal, área entre as sobrancelhas, alargou-se. Parecia que eu tinha um olho virado para cada lado. Algumas síndromes apresentam essa condição como característica. Chama-se hipertelorismo. Quando se exagera no botox, as pacientes ficam com esse efeito de hipertelorismo. Uma parcela mínima volta para reclamar. Sequei o rosto com todo o cuidado. Henrique se vestia no quarto. “Bu!”, eu disse após entrar de repente. Ele não disse nada, só desviou o olhar. Em 2015, a França aprovou uma lei que obriga todas as publicações a inserirem uma nota nas fotos em que foi utilizado o Photoshop para consertar imperfeições de modelos. Havia uma grande preocupação com o desconforto que fotos adulteradas estariam causando na autoestima de adolescentes, cada vez mais frustradas com seus corpos. Em 2019, o nosso presidente acha uma grande humilhação um homem ser casado com uma mulher mais velha e supostamente mais feia que a primeira dama do Brasil. Segunda-feira, durante a tarde, um senhor que há muito tempo não aparecia me procurou. Ouvi a conversa dele com a secretária. “Tô procurando a dentista”. “A Irka?”, ela perguntou. “Não sei o nome. É uma alemoazinha alta”, ele respondeu. Acho que não sei mais quem eu sou. 50


Assisti ao filme Animais noturnos na segunda à noite. Na abertura, há um audiovisual em que uma artista filmou mulheres bem gordas, nuas, dançando freneticamente, balançando excessos de pele e de gordura em frente à câmera. A exposição também continha mulheres gordas deitadas de frente, de lado, todas em pose de exaustão. “É tudo o que nos acerta em cheio”, disse o ator Marcos Caruso a respeito da arte contemporânea. O doutor Lecter também concorda, e vai além, defendendo que, na arte, a estética deve ser superior à ética. Acordei no meio da madrugada. O quarto era tão escuro que, mesmo após os segundos necessários para a adaptação, eu continuava sem enxergar. Achei que estava cega.

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Dona Milu e eu Luís Roberto Amabile

Seria um voo pinga-pinga, coisa de passagem aérea barata. De São Paulo a João Pessoa, com escala em Belo Horizonte e Brasília. No avião, avisto alguém em meu lugar. É uma senhora antiga, com pele de chão agreste. Peço para ver a sua passagem. O assento marcado é outro, bem mais atrás. Digo a ela, mas talvez pensando que eu fosse o comissário de bordo, ela responde que prefere ficar ali mesmo. Se chegasse alguém, aí se mudaria. Ora, eu sou esse alguém, mas por que insistir? O avião não estava lotado, pelo menos por enquanto eu poderia me acomodar na poltrona ao lado. Dona Milu e eu estivemos juntos das 8h às 14h30. A maior parte do tempo dentro do avião, a não ser quando tivemos de trocar de aeronave em Brasília, o que não estava previsto. Como ela não entendia nada sobre asas, plataforma e portões de embarque, e a companhia aérea nos soltou no aeroporto sem nenhuma orientação, eu a ajudei. A dona Milu morava em Patos, na Paraíba, “lá nos cafundós do sertão”. Tinha ido a São Paulo porque a filha caíra em depressão, e “nessas horas, você sabe, só a mãe mesmo”. Eu sabia, sabia bem, pois às vezes sentia muita falta de minha mãe, mas não falei nada. Dona Milu me mostrou fotos da filha, que naquele momento já melhorara (por isso ela estava voltando para os seus “cafundós”). Também vi fotos de seu “véio” e do sítio que eles têm nos arredores de Patos. 53


E o que tinha para fazer lá na cidade dela? Ela desandou a falar sobre a Menina Santa, que atrai romeiros de toda a parte. Era a principal atração de Patos, a dona Milu inclusive me garantiu que o seu pai conseguira dois milagres. Disse também que eu devia dar uma passadinha em Patos, visitar o santuário e aproveitar para tomar um café na casa dela. Apesar de, como todo mundo, estar precisando de alguns milagres, declinei amavelmente do convite, pois o meu roteiro era só pelo litoral. Continuamos a conversar e, no desembarque em João Pessoa, na hora de nos despedirmos, a dona Milu me disse que naquele dia eu havia sido o filho que ela não teve.

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Pneu baixo Luís Roberto Amabile

Eu tinha esperança de encontrar o Paulo Zulu, modelo-proprietário e proprietário-modelo da pousada Zululand, em Guarda do Embaú. Estava hospedado ali, ia aproveitar o café da manhã para lhe perguntar se muitas pessoas ficam ali só por sua causa, se tinha gente que apertava a campainha e pedia para conhecer a pousada apenas para ver de perto uma celebridade. Mas o Zulu não apareceu e eu tinha de seguir viagem. Mais de 300 km me separavam de Curitiba, onde devia almoçar. Antes de entrar no carro, vi que os pneus estavam meio baixos. Era necessário calibrá-los e deixei para fazer isso em algum posto da BR101. Uma vez na estrada, esqueci-me do assunto. Pneu baixo aumenta o consumo de combustível e a borracha gasta mais rápido, mas não estava preocupado com isso, não era eu quem pagava a viagem e o aluguel do carro. Também se diz que pneu baixo em alta velocidade esquenta mais rápido, aumentando o risco de estourar. Se o pneu estourasse, ficaria difícil controlar o carro, mas não pensei nisso. Na minha ansiedade, só queria ganhar tempo enquanto a manhã estava fresca, e o movimento, menor. Acelerei e passei reto pela entrada de Floripa, depois deixei para trás a entrada de Bombinhas, porém em algum lugar próximo a Itapema, tive de entrar num posto para evitar uma iminente pane seca. Havia um carro de polícia parado, talvez mais de um, ali no posto, mas não fui capaz de notar nada errado. O frentista veio me atender e 55


tampouco percebi algo estranho com sua maneira de agir. Eu só pensava em chegar logo a Curitiba. Pedi para encher o tanque, ele o fez, e assim, como se diz “Quer que dê uma olhada no óleo?”, o frentista soltou: – Teve um assassinato aqui hoje. – Como assim, um assassinato? – Cheguei de manhã e achei o corpo. – Sério? – É, eu achei que o cara estivesse dormindo, chamei, cutuquei e então vi a poça de sangue. Então olhei pelo espelho retrovisor e me dei conta de que essa era a razão de tantos policiais e de também haver gente do outro lado da rua olhando. Lembrei-me do pneu baixo. – O senhor pode calibrar os pneus pra mim? – Não vai dar. – Por quê? – O cara foi morto bem ao lado do calibrador. Falei para o policial para tirar o aparelho de lá, mas ele não deixou, disse que era parte da cena do crime. Paguei e fui saindo bem devagar, para ver o corpo. E o vi, no canto do lugar da troca de óleo, estatelado, descoberto, quase encostado no calibrador, absolutamente morto. No posto seguinte parei para calibrar os pneus.

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Os apitos eróticos do seu Celestino

Luís Roberto Amabile

Dona Lurdes fixou o olhar em mim. Pensei que ela fosse rir, mas a expressão dela não se alterou. Falou sem pressa: – Ah, você quer ver os apitos eróticos do seu Celestino… – É… – murmurei para não deixar que um silêncio provavelmente constrangedor tomasse conta. Eu tinha entrado por um corredor numa rua apertada, como são todas no Centro de Juazeiro do Norte, e topado com um pátio repleto de esculturas. Eram enormes e coloridas, a maioria talhada em madeira, representando figuras religiosas, fantásticas e de animais (aos menos as esculturas que estavam expostas). Devia checar as informações do Centro de Cultura Popular Mestre Noza. E ao abrir o arquivo no computador me deparei com o comentário do repórter anterior: – Não deixe de pedir para ver os apitos eróticos do seu Celestino. Ficam escondidos na sala de dona Lurdes, a administradora do local. A partir daí, a imaginação passou a me atormentar. Como seria um apito erótico? O lugar de encostar os lábios no apito representaria alguma parte erótica do corpo? O som teria poder afrodisíaco? Quando entrei na sala de dona Lurdes, eu estava até um pouco ansioso para ver os apitos. Porém, enquanto ela me olhava, fui tomado de certa vergonha, com medo de que minha cara estivesse lembrando a de um tarado. 57


– O seu Celestino não é mais o único a esculpir os apitos – dona Lurdes comentou. – Ah, é? – eu disse por dizer. – É, e ainda bem, porque ele está velho e esse tipo de arte ia se perder – continuou a respeitável senhora. – É mesmo – falei só por falar. – Venha comigo – ela indicou uma outra salinha, ao lado da dela. Entramos e dona Lurdes usou uma chave que aparentemente só ela tinha para abrir um gaveteiro de metal. Dentro estavam pequenas esculturas de madeira – cabiam na palma de mão – representando algumas posições sexuais. Não resisti e tive de comprar três (foi difícil eleger as três posições). Antes, testei para saber se o apito funcionava. E, não, o lugar de encostar os lábios para assoprar não é nenhum ponto erótico do corpo. E, também, acho que o som não é afrodisíaco. Ao menos até agora não tive a chance de experimentar.

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Dídi e Meu Aprendizado Maria Gessi Bento

Lembro bem de quando fomos avisados, em casa, que Tio Alexandre, pra mim Dídi – com acento no primeiro i; somente eu o chamava assim – havia falecido repentinamente. Dídi era brincalhão e carinhoso. Era 27 de dezembro de 1950. Helena chegou em minha casa, dizendo: – Dona Stella, o padrinho morreu. Minha mãe trocou rapidamente de vestido e saiu com Helena. Eu, aos seis anos de idade, permaneci em casa. Morávamos a uma quadra da casa do Dídi. Tio Alexandre era casado com uma das tias de minha mãe. Ele era, pra mim, meu avô. Mais tarde meu pai chegou do trabalho e me disse: – Minha filha, Tio Alexandre morreu; tu queres que eu te leve até lá? Por mim, não tinha nenhum problema. Respondi que queria ir, até pela curiosidade. Lá chegando, vi que, no meio da grande sala de jantar, no lugar da mesa, havia algo elevado, bem mais alto do que eu, com muitas flores e rodeado de muitas pessoas conhecidas. Meu pai, então, me pegou no colo para que eu visse além das flores. Ali estava Dídi. Parecia dormir, não fosse o filete de sangue que lhe escorria de uma das narinas. Olhei bem. Foi a última vez que o vi; e eu sabia. 60


Já no chão, fui procurar minha mãe em meio às pessoas. Foi quando Dona Gina, uma vizinha que tinha um bazar, me convidou para ir até a casa dela. Me lembro que brincou comigo e me deu uma lembrancinha tirada da prateleira de brinquedos. Mais tarde, meu pai me levou para casa e me pôs para dormir. Depois que peguei no sono, ele voltou para o velório. Sei que dormi tranquila até acordar pela manhã. Tive um bom aprendizado. Ainda hoje, e principalmente nos dias atuais, a morte não me causa pânico, ou medo, ou angústia. Ela apenas faz parte da vida.

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Ferrovias e a vida Maria Gessi Bento

Santa Maria, minha terra natal, foi por muito tempo a Capital Ferroviária do Rio Grande do Sul. Ali se concentravam oficinas e escritórios da Viação Férrea do Rio Grande do Sul. Era o entroncamento de toda a malha das estradas de ferro do estado. O Rio Grande todo era servido por ferrovias. Isso dava aos ferroviários uma enorme força como categoria. Meu pai, Arcy, iniciou seu trabalho na VFRGS aos 12 anos de idade. Nas grandes e médias cidades, a gare da estação era local de encontro e passeio, sempre com muitas pessoas que iam e vinham viajando pelos trens. Podia-se ir da fronteira do estado até a cidade de São Paulo pelo trem Paulista, que só partia depois que chegasse o Fronteira. Isso oportunizava um atraso, ao final da viagem até São Paulo, de até doze horas. Com muita alegria, meu pai, minha mãe e eu, num lindo final de tarde de janeiro de 1952, embarcamos no Paulista e iniciamos um passeio de quatro noites e quatro dias, de Santa Maria até São Paulo. Lá estaria nos esperando tio Ernani, único irmão de minha mãe. Iríamos de ônibus até o Rio de Janeiro, nosso destino final. Viajamos numa das ótimas cabines de um dos carros dormitório. Mas havia também carros somente com bancos estofados. Todos os trens tinham carros, nominados de segunda classe, com bancos de madeira e passagem mais barata.

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Nem imagino o número de estações nesse longo percurso que fizemos. O número de passageiros que faziam esse trajeto era bem menor do que aqueles que embarcavam e desembarcavam durante toda a viagem. Paisagens magníficas, movimento em todas as estações. Nas estações de cidades maiores, podia-se encontrar ótimos restaurantes. Em algumas paradas, o trem permanecia de dez a quinze minutos e os passageiros podiam descer e passear na gare. As paradas mais demoradas deviam-se ao fato de que as locomotivas Maria Fumaça consumiam carvão como energia e água para a caldeira, e precisavam ser abastecidas. Foi no carro restaurante do trem, com um ótimo cardápio, que aprendi a me comportar numa mesa de restaurante. Ao chegar no estado de São Paulo, o comboio era atrelado a uma locomotiva a diesel da Estrada de Ferro Sorocabana. Maior rapidez, somente um trem elétrico. No fim da tarde do quarto dia de viagem, chegamos a São Paulo. Meu tio nos esperava na Estação da Luz, que hoje acolhe a magnífica Sala São Paulo, uma das melhores salas de espetáculo do mundo. Experimentamos a famosa garoa paulista – àquela época era diária. Até isso as mudanças do clima nos negam agora. Com toda a curiosidade de uma criança com sete anos, tentei entender aquela enorme metrópole da qual víamos uma pequeníssima parte. Lembro que passamos no Viaduto do Chá, fomos jantar e voltamos para o Claridge Hotel. Na manhã seguinte, embarcamos em um ônibus rumo ao Rio. Outra maravilhosa surpresa, visto que, para ser um avião, só faltavam as asas e o sanitário. Poltronas reclináveis, vidros ray-ban, porta-malas sob o ônibus. Em janeiro de 1951, havia sido inaugurada a Via Dutra, ligando Rio a São Paulo. Por essa via, transitavam os ônibus fantásticos. Em Rezende, única parada, almoço. Esse tipo de ônibus e estrada ainda não haviam alcançado o Rio Grande do Sul. 63


Na chegada ao Rio, muita alegria. Tia Maria Angélica, esposa de Tio Ernani, meu primo e as três primas nos esperavam ansiosos e com muito carinho. Da última vez que meus pais e meus tios haviam se encontrado, eu e as primas gêmeas ainda não havíamos nascido. Tentamos todos resgatar as saudades e as vivências criadas pela distância. Essa foi a tônica de nossa estadia de um mês em terras cariocas. Para chegarmos de volta em casa, fizemos a mesma viagem, ao inverso. No ano seguinte, todos os integrantes da família Ernani-Maria Angélica, viajaram do Rio até Santa Maria para uma vez mais nos abraçarmos e matarmos a saudade. Com a morte prematura de minha mãe, Stella, essa foi a última vez que nossas duas famílias completas se encontraram. Muito jovem ainda, meu pai se aposentou da VFRGS, não passando pelo período de desmonte das ferrovias. Com o advento do governo militar, a partir do golpe de 1964, as ferrovias foram propositadamente sendo deixadas em segundo plano e o transporte rodoviário, o escolhido para ligar as diferentes regiões do país. Hoje nos deparamos apenas com fantasmas daquelas malhas ferroviárias. Quando o último trem de passageiros passou na estação de Santa Maria, fomos, várias pessoas, assistir à passagem e nos despedir do trem. E eu chorei.

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La habanera Maria Gessi Bento

Em 2013, a Oficina de Literatura do SINBANCÁRIOS abordou o tema saúde. Em fevereiro do ano seguinte, os integrantes da oficina e seu mestre, Alcy Cheuiche, fizeram uma viagem a Cuba, que é um parâmetro internacional em saúde. Os livros editados com os trabalhos escritos na oficina fariam parte da Feira Cubana do Livro. Isso porque o livro é editado em português e espanhol. Minha neta, que participou da oficina, fez parte desse momento turístico-cultural. Conta ela que, em Cuba, geralmente eram acompanhados por alguém de língua nativa, e que o portunhol só funciona mesmo aqui no Rio Grande do Sul/Argentina ou Rio Grande do Sul/Uruguai. Então, quando ela foi sozinha a um mercado de artesanato, precisou se comunicar em inglês. Nesse mercado, comprou para mim uma escultura entalhada em madeira escura, que representa uma figura feminina nua, encostada a um totem, e usando apenas um chapéu de abas largas. É uma escultura pequena, com o pedestal e o chapéu removíveis; fácil de carregar na bagagem. Me trouxe outras lembranças também. Ela está sempre a me trazer coisas. Quem sabe, qualquer hora, marijuana?

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Míope

Maria Williane

Um par de lentes grossas disfarçado numa armação de acetato que mal se sustenta no rosto depois do primeiro suor matinal. Eis a fragilidade de ver. Não tiro os óculos nem para tomar banho – e tiro! Mas é que esqueço sua função de prótese, suporte pra vista cansada que não alcança o poste na esquina, que dirá o horizonte. Tenho olhos jovens e cansados, uma miopia lerda que se apega a eles, coisa de não se ver bem a vida e o futuro – sempre tão distante. Em dias de cerração, vez e outra apalpo minha cara procurando os óculos, preciso me certificar de que eles estão bem ali e essa solidão nublada que se derrama sem nitidez alguma, ao menos dessa vez, não é sintoma da miopia, mas da cidade. Na cerração, partilho. Se deixo a vista nua, sem esse artifício caricato, o mundo é vertigem. Fico tonta de olhar pra baixo e não distar o chão, perder na falta meus próprios pés. Sem os óculos, mal enxergo o contorno das coisas que estão a dois palmos dos olhos. Sou refém de um objeto. Com receio, penso em Borges, na cegueira de Borges, e sofro náuseas, um pânico de não enxergar coisa alguma, de não ter mais óculos, lentes de contato ou cirurgias que livrem da treva, não poder tocar as coisas com os olhos, mesmo sob as lentes, mesmo sob a grossura disfarçada das lentes, a luz virando um borrão, protótipo de nada, o mundo perdendo contraste e saturação, se enchendo de nervuras difusas em cada limite. 67


Certa vez uma amiga me disse que eu deveria aproveitar essa perspectiva da falha, abraçar a imperfeição disforme e atentar para o que existe a partir dela: haveria um mundo novo atravessado pela miopia, um lado B que poderia ser surpreendente. Muitos anos depois, à noite, na janela lateral do quinto andar, prédio 8 da faculdade, minha miopia se engasga no parapeito. Luzes brancas e amarelas se insinuam entre copas de árvores, cruzando prédios e desenhando um letreiro de farmácia. Eu sempre pensei, com pouca consciência, que a luz era relativamente detida na lâmpada, como um cachorro numa coleira, já que há sempre um limite pra essa luz embutida; mas as luzes que saltam à noite, essas luzes que me ensinam a dúvida à janela lateral do quinto andar, se insinuam livres e dançam. “Não parece água?” — quero saber. Pessoas cruzam as praças enquanto se perdem e se encontram de novo entre as copas imensas das árvores. Eu estou de óculos e vejo pessoas cruzando o espaço vazio por debaixo das luzes, tantas que me alcançam sem desconfiar do meu voyerismo. Tiro os óculos e as pessoas viram borrões, ganham algum grau de invisibilidade, enquanto os pontos de luz se expandem, roubam espaço, furam a distância e me encaram de perto. Eu sei que bem ali, nesse exato momento, só eu posso testemunhar a luz vertendo água de si, crescendo na falha dos meus olhos. Há um rebuliço que orienta desde a lâmpada mais ordinária de um poste de luz até as estrelas mortas do céu e, como uma derrota que se aceita de bom grado, eu acabo admitindo a beleza no meu olhar míope e grosseiro.

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Avós ao telefone Moema Vilela

No telefone, uma das minhas avós me chama de “meu passarinho verde” e conta tudo, tudinho: outro dia a vizinha deu um peixe, mas era com escama, daí ela teve que descamar o peixe. Ela lavou tapete, e lavou as calcinhas, e lavou uma cortina também. Ela pediu para o vô José estender a cortina, mas ele não escutou. Ela conta naquele tempo sem pressa que dá tempo de tudinho. A última vez que essa vó ligou não atendi. Seis da manhã. Eu dormindo. Depois ela conta que ligou porque viu uma ema, de manhãzinha, na porta do sítio. “Daí eu pensei, ai, que coisa mais linda, vou contar pra Moeminha”. As ligações amorosas desta minha avó às seis da manhã são muito famosas, origem de muitas histórias e imbróglios familiares que adoramos repetir para as visitas. A outra avó fala tudo tão rápido que depois que desligamos eu cogito se ligo para outras pessoas, quero tirar a dúvida sobre o que de fato aconteceu: estou indecisa, até preocupada, sobre quem está doente e quem vai para África do Sul, duvidosa sobre se o papa Francisco falou mesmo que ele também tem medo da morte, muito curiosa para saber o que aconteceu com o vestido de casamento que ela não ia me repassar porque parece que depois de ter casado outras mulheres acabou sendo jogado no rio, pela janela de um carro em movimento – ou foi isso que eu ouvi.

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Uma das histórias que repetimos dessa avó que fala rápido é de quando ela perdeu um guarda-chuva. O guarda-chuva tinha um punho em forma de cachorro. Atrapalhada procurando e perguntando para todo mundo do objeto perdido, ela choramingou: – Ai, Moacir, o senhor não viu por aí um cachorro com um guarda-chuva na cabeça?! O Moacir, muito educado, respondeu que tinha visto cachorros, mas nenhum de guarda-chuva. As histórias desta minha avó são famosas, origens de livros, gargalhadas sem fim e cachorros com guarda-chuvas na cabeça que adoramos chacoalhar para as visitas. Desde que mudei de cidade, falo com meus avós por telefone. Só que, nos últimos meses, meu avô já não me ouve mais muito bem por ligação, então todo dia há um déficit de 1420 quilômetros na minha vontade de conversar com meu avô. Mineiro, de Três Pontas, trabalhador do campo, e quieto, meu avô gosta muito de ler. Ele gosta de ler e eu de caçar livros que ele pode gostar de ler. Fazer encontrar livro e leitor pede engenho. Ainda assim, já deixei de dar algum livro só de lembrar o muxoxo e a cara da minha avó, desanimadíssima ao ver o vô desembrulhar um calhamaço de presente, prevendo as horas sem companhia em que ele passaria lendo, na rede, na cadeira de vime no quintal, na beirada da cama, o mundo fervendo lá fora. Uma vez dei a meu avô uma versão de Moby Dick, depois de uma sequência de José de Alencar. Passaram-se meses até eu voltar na cidade e eu não lembrava mais disso, mas quando entrei na casa deles e abracei ele e minha avó, a primeira coisa que ele fez depois de abraçar foi me olhar nos olhos e dizer: – Aquele homem estava obsedado para matar aquela baleia.

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Meu avô gosta de começar uma conversa contando um causo, uma piada, uma memória. Ele já chega contando. Não tem explicação prévia, nada de “Me contaram uma piada muito boa” ou “Estava lembrando de uma história de quando eu era criança”. Você está lá mastigando uma chipa e olhando o celular, ele chega na cozinha e diz algo do tipo: “O marido de Donana era muito bom farmacêutico, só que era gago”. Não sei se dá para o vivente fazer isso por telefone. Por isso, quando telefono para meu avô, não há só um estorvo na definição do som, na qualidade da ligação de nossas operadoras – há também uma certa incompatibilidade de ritmos. Existem entendimentos e pessoas cujo tempo é mais próprio para uma conversa ao vivo. Então, para ter uma boa conversa com esse meu avô, tenho que esperar as brechas de trabalho para voar até a casa da Rua Eduardo Santos Pereira, onde depois de percorrer o farto quintal, me servirão um café com doce de goiaba e a melhor das conversas, por fim. Meu outro avô se despediu de mim quando eu tinha onze anos. Às vezes converso com ele, por clara ou turva operadora, com uma definição de som submarina. Falo sobre as histórias que vivemos e sobre as outras, que não conheci e não deu tempo de perguntar. Sabendo dessa velocidade dos fatos, na impossibilidade de morar ao mesmo tempo com todo mundo que amo e adoro, sigo telefonando para os meus avós e apreciando a conversa que surgir – derramada ou em ricochete, em qualquer ritmo e tecnologia. Mesmo que às vezes eu saia dessas ligações com sono às seis da manhã, pensando sobre por que uma ema foi para África obsedada por um vestido. Ou com um tipo de saudade brutal, maior do que as cachalotes, tão desacorçoada com os limites da realidade quanto um cachorro com um guarda-chuva na cabeça.

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Encanto Sabrina Cunha

– Eu queria ter te conhecido há dez anos. Silêncio. Marcos não entendia exatamente o significado daquela frase que acabara de dizer, mas sentiu leveza. Estavam em uma parada de ônibus na zona sul de Porto Alegre. Gi emudeceu, sentiu suas mãos suarem e o coração disparar. Eles trocaram olhares confusos, mas sinceros. Ele pegou na mão dela e deu um sorriso. Ela correspondeu da mesma forma e ali permaneceram por alguns instantes até serem interrompidos pelo lotação de Marcos. Apesar do barulho do trânsito daquela noite de quarta-feira, Marcos e Gi só conseguiam enxergar um ao outro. Ele se despediu, embarcou e, ao olhar para trás, teve certeza de que a relação deles nunca mais seria a mesma. Marcos e Gi trabalhavam juntos havia três anos e era notável que a convivência aproximara os dois. Almoçavam juntos, compartilhavam problemas, tinham sintonia. Gi tinha 30 anos e o tom de pele de índia, cabelos pretos e longos. Sua personalidade era forte e determinada, características que fizeram Marcos nutrir imensa admiração. Ele tinha um estilo despojado, usava bermuda, boné e, para cada tatuagem no corpo, uma história sobre a qual ele fazia

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questão de contar. Era engraçado e fazia Gi rir o tempo todo, suas pernas eram tortas e ela adorava, achava bonito. Faltavam quinze minutos para o meio-dia, quase hora do almoço, em meio a ligações e clientes entrando e saindo da imobiliária, quando ele fez o convite para ela: – A noite vai ser perfeita hoje, pensei em dar uma esticadinha até o bar Garota de Ipanema tomar uma cerveja bem gelada. Tu gostarias de me acompanhar? Num primeiro momento Gi pensou em dizer não, estava indisposta, sem maquiagem, e a única coisa que queria naquele dia era chegar em casa e descansar. Porém, como já havia dispensado alguns convites dele, resolveu aceitar: – Gostaria. Estou precisando me distrair, mas não quero chegar muito tarde. – Não tem problema, vamos direto daqui, só que não vim de carro hoje – ele respondeu, sentando ao seu lado na cadeira. – Então tu vais comigo – disse ela, observando-o deslizar sobre as rodas da cadeira, mostrando uma tensão que ela achava engraçado. Às sete da noite saíram e juntos foram para o bar. No caminho, conversavam sem intervalos. Emendavam um assunto no outro, antes mesmo de finalizá-los. Na mesa do bar, Gi não se importava mais com a hora. O bar era aconchegante, ficava de frente para o Lago Guaíba, e puderam assistir dali mesmo ao pôr do sol que, naquele entardecer, mesclava diferentes tons de rosa e refletia sua imagem nas águas, remetendo a uma obra de arte. A cada Skol bem gelada servida pelo garçom, um brinde ao momento, histórias compartilhadas e, já bem mais próximos, Marcos teve a consciência de estar diante de uma grande mulher. E daquele apertado arrependimento. Eu queria ter te conhecido há dez anos. 75



Geografias Sylvia Beatrix Pereira

Trocamos um bom dia rápido, digo que seu cachorro é cute, ela sorri, responde com alguma coisa ininteligível, só entendo my sweetie. É um vira-lata manco, com muitos pelos brancos no focinho, olhos escancarados, mistura de dachshund, pinscher e algum tipo de terrier. Lembrei do velhote que tenho em casa e que, apesar de ostentar mais pelos brancos, está em melhor estado que o sweetie dessa senhora. Senti saudades. Estava em outras terras, apreciando o nascer do sol, desejando que o dia logo terminasse. As horas eram contadas pela velocidade das batidas do coração e pelo tempo sem respirar. Ela me diz que é a primeira vez que o leva para passear na praia, que suas patinhas nunca haviam tocado na areia e que ele tinha se divertido muito com as ondas. Enquanto isso, o pequenino se sacode, coça, lambe e ela exclama oh, my god, que trabalho vai ser escovar esse pelo e deixar my sweetie limpo again. Matuto, o velhote lá de casa, nunca foi à praia. A paisagem à minha frente deve estar listada como um dos top 10 clichês de filmes românticos. Poderia ser o cenário de Cidade Dos Anjos, com Meg Ryan e Nicholas Cage, que me faz chorar baldes desde a primeira vez que o assisti, em 1998, ou Alguém Tem Que Ceder, com Jack Nicholson e Diane Keaton, que me faz rolar de rir, principalmente na cena de Erica, personagem de Keaton, que, entre soluços e gargalhadas, sai do bloqueio criativo e volta a escrever. O bumbum do Nicholson também 77


contribui para que eu gargalhe. O som da minha gargalhada parece algo distante, uma experiência de outra vida. Areia branca e bem fria, uma faixa escura de sargaço se estendendo até onde a vista alcança, algumas gaivotas, céu e mar unidos pelo tom marinho. Das ondas, um silencioso mantra. Se durante o pôr do sol aplaudimos, quando ele nasce, reverenciamos. À noite, angústia, pela manhã, medo. Nos filmes o cenário é perfeito, o sol desponta bem no meio do horizonte, a imensidão do mar é o berço que o astro-rei precisa para ser embalado e o céu está livre de nuvens que possam servir de obstáculos para os raios. Nesta sexta-feira, sem a presença das celebridades, o roteiro teve alguns coadjuvantes indesejáveis. Uma faixa densa e acinzentada participa da tomada principal. Os raios estão travando uma pequena batalha. Se o dia queria nascer, teria que se esforçar. Esta cidade tem milhares de habitantes, uma praia linda e todos os dias esse espetáculo se repete e tudo o que vejo é my sweetie e sua cuidadora. Cadê todo mundo? As possibilidades são muitas. Desligando o ruidoso despertador, preparando o café da manhã, checando as últimas postagens nas mídias sociais, ou fazendo uma selfie com cara de sono e legendando com “I am not a morning person”, lendo as manchetes dos jornais, dando comida para o gato, conferindo a agenda de atividades ou sofrendo com a prova de Geografia. Preferiria sofrer de novo pela prova de Geografia. No colegial um professor me desafiou. Inverteu os papéis, pois até então quem fazia isso era eu. Aluna frequente das aulas extras que aconteciam nas férias, conhecidas como segunda época, eu ia para a escola por obrigação. Em sala, importunava os colegas que se sentavam ao meu redor e, por extensão, incomodava o professor. Todos homens, a única professora que tive foi a de Educação Física. Nunca entendi como alguém 78


que tivesse o propósito de estimular suas alunas sobre os benefícios do esporte pudesse ser tão desleixada e fora de forma. O professor de Geografia pelo menos entendia do assunto. Cansado com as minhas posturas em sala e com uma visão mais de futuro, resolveu me provocar para a próxima prova agendada. Apostava o que fosse que eu não conseguiria ser bem-sucedida, o que me fez despertar e desejar tirar uma nota melhor, eu não sei. Sei que a noite que antecedeu o resultado foi uma das mais longas que vivi. Sentimento muito semelhante ao deste nascer do sol. O dia nem começou e eu já queria que terminasse. O dia que antecede um resultado está sendo o mais longo que já vivi. My sweetie estava alheio a tudo isso. Desconjuntado, lambia lentamente uma das patas, depois a outra e voltava a repetir o movimento. A senhora sorria. O amor que sentia pelo cachorro estava em seu sorriso. Senti inveja. Meus lábios encontravam dificuldades em se expressar daquela forma nos últimos tempos. Lembrei-me de Matuto, sorri. A memória encurta uma distância de 12 horas mais rápido que a velocidade da luz. Sorri de amor. No horizonte os raios batalham por espaço entre as nuvens ainda escuras, o parto do sol está difícil. No instante da memória, respirei maresia. Um raio desponta. Ela acena para mim, bye! O céu nubla. Perco o sorriso. Respiro curto. Quando voltar, levo Matuto à praia.

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