O Céu, a Terra e os Homens

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Histórias de (um) outro mundo (PARTE II) FERNANDO SERAFIM

Nos finais dos anos cinquenta do século passado, mês de Agosto na Herdade das Figueiras, o sol acaba de se esconder no horizonte, o gado regressa a casa, depois de ter percorrido neste dia quente os campos de ervas secas e pouco apetitosas. As vacas já recolheram ao curral, onde se apressam a comer um suplemento alimentar da bem cheirosa palha de cevada devidamente acondicionada em fardos numa enorme pilha. No redil as cabras balem à procura dos filhotes e tentam descansar, pois a volta do dia foi dura mas proveitosa porque elas, ao contrário das vacas, conseguem melhor sobreviver ao aproveitar todas as folhas verdes que encontram, desde os silvados às oliveiras e dos sobreiros aos freixos. Há apenas uma que, por estar coxa e não poder acompanhar o rebanho, tem o direito à liberdade de pernoitar fora da vedação. O maioral e o ajudante deram por terminado o seu dia de trabalho e voltam ao monte para jantar e, depois de alguma conversa, irem dormir junto ao gado, em camas improvisadas na palha, cobertos com uma manta, que o corpo merece. O jantar é comido no anexo da cozinha do rendeiro, invariavelmente as sopas de carne da panela: couves, batatas, feijão-verde e por vezes grão ou feijão-seco, acompanhado de muito toucinho e comedido em linguiça e chouriço preto, pão caseiro e vinho tinto do garrafão. Pode-se ainda comer à descrição as frutas da época, melão ou melancia. Após o jantar, e à luz do candeeiro a petróleo, fala-se e contam-se episódios do dia-a-dia dos animais, dos seus comportamentos, do estado do tempo, das pastagens e de situações supersticiosas e inexplicáveis que acontecem, como a de ataques atribuídos a bruxaria ou ao Diabo que se manifestam através da dissimulação em outros seres (andorinhas ou carraceiros) em algumas sextas-feiras, que fazem voos rasantes sobre os animais e levam-nos a tomar comportamentos estranhos como saltar e fugir em pequenos grupos, ou até dos casos de aparecimento em determinados locais, como encruzilhadas e pontes, do Diabo com chifres e pés de cabra, o que muito impressiona o jovem ajudante do maioral. A mulher do rendeiro, que se prepara para lavar a loiça, dá conta que não há água no cântaro de barro e pede que alguém vá à fonte, que fica a cerca de 500 metros do monte. O ajudante do maioral logo se ofereceu, levantou-se, pegou no cântaro e saiu. A noite estava quente, corria uma ligeira brisa em noite com algum luar, o caminho para a fonte faz-se por um carreiro entre sobreiros que criam sombras fantasmagóricas de dimensões irregulares e desconformes sobre uma toalha de


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