O Céu, a Terra e os Homens

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MUSEU MUNICIPAL DE CORUCHE



A terra, de onde tudo nasce, e onde tudo o que é vivo acaba por regressar ao morrer, está sempre presente. O chão que se pisa é o elemento sólido onde o homem se apoia para se alimentar, caminhar, correr ou partir em direcção ao céu e aos astros. In: Portugal: o sabor da terra, de José Mattoso e Suzanne Daveau


Ficha técnica Exposição CONCEITO E COORDENAÇÃO GERAL Cristina Calais COORDENAÇÃO EXECUTIVA Ana Maria Correia, Cristina Calais, Helena Diogo Claro INVESTIGAÇÃO/TEXTOS Ana Maria Correia, A. Nunes Pinto, Cristina Calais, Nuno Calado, Rosário Caeiro, Vasco Gil Mantas, Victor S. Gonçalves CONSERVAÇÃO, RESTAURO E PREPARAÇÃO DE PEÇAS Dulce Patarra. Archeofactu, Cristina Oliveira e Eva Armindo MAQUETA TOPOGRÁFICA Carlos Loureiro MAQUETA GLOBO TERRESTRE João Rapaz ILUSTRAÇÕES José Luís Madeira, Ricardo Drumond DESENHOS TÉCNICOS Fátima Dias Pereira, Guida Casella, Hugo Pereira, José Carlos Quaresma, José Pedro Machado, Luísa Batalha, Tânia Dinis FOTOGRAFIAS António Gil Malta, Archeofactu, Arquivo Nacional/Torre do Tombo [AN/TT], Biblioteca Nacional de Portugal, Câmara Municipal de Coruche, Faísca/SPEA, Fundo Fotocine/ MMC, Ivone Patrício, Jacinto Castanho, João Almeida, João Edgar, José Cordeiro, José Manuel Vasconcellos [JMV], José Pessoa/Direção-Geral do Património Cultural, Manuel Heleno/Arquivo MNA, Movimento de Expressão Fotográfica / Rancho Folclórico da Erra, Museu Municipal de Coruche, Nuno Calado, Pedro Martins, Projeto Nichos Pedagógicos, Sónia Codinha, Tina Chaves/SPEA, Victor S. Gonçalves/ Uniarq


MULTIMÉDIA Solar System Scope, Tânia Prates, Yellow Note – Design e Comunicação SÍNTESE SONORA DO SINO POR MODELAÇÃO FÍSICA Elin Figueiredo, José Antunes, Miguel Carvalho, Vincent Debut REGISTOS SONOROS DO MONTADO Gonçalo Elias / sítio Aves de Portugal REGISTOS FÍLMICOS Associação Portuguesa da Cortiça (APCOR), João Lopes Teles Branco, Museu Municipal de Penafiel/Sinal Vídeo DESIGN GRÁFICO Yellow Note – Design e Comunicação MUSEOGRAFIA E DESIGN Helena Diogo Claro, Yellow Note – Design e Comunicação REVISÃO DE TEXTOS Ana Paiva EXECUÇÃO E MONTAGEM Museu Municipal de Coruche, Newwood, Yellow Note – Design e Comunicação APOIO TÉCNICO Divisão de Obras e Equipamentos/CMC, Divisão de Património, Ordenamento do Território e Desenvolvimento Urbano /CMC, Gabinete de Imprensa, Relações Públicas e Imagem / CMC, Miguel Oliveira, Rui Palmas/Mão de Fogo, Susete Oliveira IMPRESSÃO Culto da Imagem ILUMINAÇÃO Câmara Municipal de Coruche, Yellow Note – Design e Comunicação

EMPRÉSTIMO DE PEÇAS Amorim Mesquita, Família Veiga Teixeira, Farmácia Almeida (Coruche), Graça Ribeiro da Cunha [GRC], Irmandade de Nossa Senhora do Castelo, João Luís Silva, José António Félix, Maria Fernanda Alambre, Misericórdia de Coruche, Museu do Instituto Geológico e Mineiro, Museu Nacional de Arqueologia, Património nacional à guarda de Ana Catarina Sousa e Victor S. Gonçalves (fiéis depositários), Seminário Maior de Évora FINANCIAMENTO Inalentejo – QREN MECENATO Atlantic Meals, Corticeira Amorim AGRADECIMENTOS Alfredo Melro, Amorim Cork Composites/Matceramica, Ana Catarina Sousa, Angélica Caçador, António Bacalhau, António Gil Malta, António Gonçalves Ferreira, António Neves, Artur Goulart, Artur Lopes Teles Branco, Augusta Calção, Câmara Municipal de Baião, Câmara Municipal de Penafiel, Catarina Durão, Catarina Silva, Corticeira Amorim O-I, David Ribeiro Telles, Dionísio Simão Mendes, Elias Serrano Martins, Eugénia Cunha, Farmácia Almeida (Coruche), Gonçalo Ribeiro Telles, Graça Ribeiro da Cunha, Granorte, Guilherme Cardoso, Heraldo Bento, Irmandade de Nossa Senhora do Castelo, Isabel Gonçalves/Rancho Folclórico da Erra, Jacinto Santos Rodrigo, João Fradique, João Luís Silva, João Malta, João Pais, Joaquim Maria Ribeiro Telles, Joaquim Pais de Brito, Joaquina Mendanha, Jorge de Brito e Abreu, José António Félix, José Gonilha, Lourenço Morais, Luís Jordão, Luís Sebastian, Lurdes Braga, Manapre, Margarida Correia Gomes, Maria do Carmo Fontes Vieira, Maria do Castelo Morais, Maria Fernanda Alambre, Maria Helena da Veiga Teixeira, Maria Isabel Vieira Pereira, Maria José Quintino, Maria Manuela Marçal, Misericórdia de Coruche, Museu do Instituto Geológico e Mineiro, Museu Nacional de Arqueologia, Nuno Virgílio, Paróquia de Santana do Mato, Paróquia de São João Baptista, Paulo Ferreira da Costa, Pedro Pinto, Raquel Vilaça, Rodrigo Fernandes, Ruben Dias, Rui Carreira, Seminário Maior de Évora, Vasco Manuel Mantas, Vítor Pereira e a todos aqueles que de alguma forma colaboraram para a realização desta exposição


Ficha técnica Catálogo COORDENAÇÃO GERAL Cristina Calais COORDENAÇÃO EXECUTIVA Ana Maria Correia, Cristina Calais TEXTOS Ana Catarina Sousa, Ana Maria Correia, A. Nunes Pinto, Elin Figueiredo, José Antunes, Miguel Carvalho, Nuno Calado, Rosário Caeiro, Sónia Codinha, Vasco Gil Mantas, Victor S. Gonçalves, Vincent Debut CONTRIBUTOS LOCAIS António Gil Malta, António da Silva Teles, Fernando Serafim, Heraldo Bento, Jacinto Castanho, Luísa Portugal, Maria Isabel Vieira Pereira ILUSTRAÇÕES Heraldo Bento, José Luís Madeira, Raquel Roque Gameiro, Ricardo Drumond DESENHOS TÉCNICOS Carlos Carvalho, Guida Casella, Hugo Pereira, José Luís Madeira, José Pedro Machado, Luísa Batalha, Tânia Dinis FOTOGRAFIAS Archeofactu, Arquivo Nacional/Torre do Tombo [ANTT], Biblioteca do Vaticano, Biblioteca Nacional de Portugal [BNP], Arquivo Fotográfico/Câmara Municipal de Coruche, Carlos Silva/Fotocine, Fundo Fotocine/MMC, Jacinto Castanho, João Almeida, Jornal O Sorraia, 42, 1930 [JOS], José Manuel Vasconcellos [JMV], José Pessoa/Divisão de Documentação Fotográfica/Direção-Geral do Património Cultural, Manuel Heleno/Arquivo MNA, Manuel Ribeiro, Museu Municipal de Coruche [MMC], Nuno Calado, Pedro Martins, Sónia Codinha, Vasco Gil Mantas, Victor S. Gonçalves /Uniarq APOIO TÉCNICO Helena Diogo Claro, Dulce Patarra


REVISÃO DE TEXTOS Ana Paiva

TIRAGEM 500 exemplares

DESIGN GRÁFICO Yellow Note – Design e Comunicação

AGRADECIMENTOS Adélia Brotas, Adelina Sofia, Amorim Peseiro, Angélica Caçador, Aníbal Soares Mendes, António Neves, António Teles, Artur Lopes Teles Branco, Augusta Calção, Dionísio Simão Mendes, Elias Serrano Martins, Fernando Marques Caçador, Fernando Serafim, Florindo Brites, Gonçalo Ribeiro Telles, Graça Ribeiro da Cunha [GRC], Guilherme Cardoso, Hélder Santos, Heraldo Bento, Irmandade de Nossa Senhora do Castelo, Isabel Gonçalves/Rancho Folclórico da Erra, João Alpuim Botelho, João Coelho Capaz, João Luís Silva, João Malta, João Ramalho, Joaquim Maria Ribeiro Telles [JMRT], Joaquim Pais de Brito, Joaquina Mendanha, Jorge Dias, Lourenço Morais, Luís Sebastian, Margarida Correia Gomes, Margarida Vidigal Pais, Maria do Castelo Morais, Maria José Quintino, Mário Santos, Misericórdia de Coruche, Museu Nacional de Arqueologia, Nuno Virgílio, Paulo Ferreira da Costa, Pedro Pinto, Pedro Ribeiro, Pedro Sena da Silva, Ricardo Almeida, Rita Baltazar, Seminário Maior de Évora, Telmo Ferreira/Rancho Folclórico da Fajarda e a todos aqueles que de alguma forma colaboraram para a realização desta exposição

CAPA/CRÉDITOS Fotografia: Starry Night at La Silla, ESO/H. Dahle Mapa: Fernando Álvares Seco, Portugalliae que olim Lusitania, novissima exacctissima descriptio. Roma, 1560 [i.é. 1561] (Biblioteca Nacional de Portugal, cota cc-379-v) FINANCIAMENTO Inalentejo – QREN IMPRESSÃO Gráfica Comercial EDIÇÃO Câmara Municipal de Coruche/Museu Municipal de Coruche DEPÓSITO LEGAL 383833/14 ISBN 978-989-98647-1-9


Índice Presidente da Câmara Municipal de Coruche

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Apresentação Cristina Calais

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Contributos locais As encostas do poente: uma paisagem do sagrado em Coruche António Gil Malta

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Os sobreiros I Os sobreiros II (Louvor ao sobreiral) António da Silva Teles

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O sagrado nas charnecas de São Torcato (parte I) Histórias de (um) outro mundo (parte II) Fernando Serafim

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O que somos? Como somos? Heraldo Bento

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Ciência versus religião: antagonismo, sincronismo ou paralelismo? Jacinto Castanho

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SAGRADO é a vida e o conhecimento Luísa Portugal

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O Sagrado em Coruche Maria Isabel Vieira Pereira

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Espaços de vida, espaços da morte Coruche e as antigas sociedades camponesas Victor S. Gonçalves e Ana Catarina Sousa

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Deuses e Homens Os deuses e os homens: a romanização em Coruche Vasco Gil Mantas

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“Coruche”: do século V ao século XIII

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O quotidiano e o sagrado Os testemunhos materiais da cripta e silo da Igreja de São Pedro: considerações várias A. Nunes Pinto

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Os restos humanos exumados durante a campanha de escavação de 2001 da Igreja de São Pedro em Coruche Sónia Codinha

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Ressurreição virtual do som do sino de São Pedro de Coruche utilizando técnicas de modelação dinâmica Miguel Carvalho, Vicent Debut, José Antunes e Elin Figueiredo

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Coruche: do século XVI ao século XX

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O trabalho e a festa Devoção e poder na Misericórdia de Coruche nos séculos XVIII e XIX Ana Maria Diamantino Correia

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O trabalho e a festa: de São Miguel a São Miguel Rosário Caeiro

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Natureza e cultura O homem, o montado de sobro e a cortiça: a singularidade de uma relação complexa Nuno Calado

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A história de Coruche confunde-se com as suas gentes, enquanto território povoado desde há milénios. Os registos existentes e encontrados provam inequivocamente este facto, pelo que, desde cedo, o Museu Municipal de Coruche assumiu a preservação da nossa memória colectiva e a divulgação cultural, numa vertente educativa e de desenvolvimento local. O seu percurso, enquanto museu credenciado da Rede Portuguesa de Museus, tem merecido o reconhecimento de entidades idóneas pela acção desenvolvida, tendo já sido agraciado com várias distinções. Localizado em pleno centro histórico da vila de Coruche, partilha do conceito de museu de território, a que se alia a existência de núcleos museológicos e de colecções temáticas. Um equipamento relevante que o Município mantém em funcionamento, associado a um plano de actividades de que faz parte a qualidade e diversificação da oferta aos diferentes públicos, onde nos apraz integrar exposições várias de índole artística, como a Bienal de Coruche. Também o recente e significativo investimento nas áreas da conservação de espécimes, inventariação e divulgação é, como não podia deixar de ser, da maior importância na missão museológica. Tudo o que é feito para a salvaguarda e preservação do nosso património, material e imaterial, destina-se a servir as pessoas, a contribuir para o seu bem-estar, para a sua identidade enquanto cidadãos. Conhecer o passado, pensar o presente e perspectivar o futuro é, no nosso horizonte enquanto autarcas, a leitura que fazemos da exposição de longa duração que agora temos a satisfação de a todos disponibilizar. Recuando às nossas origens, aqui se conta a história do território que é hoje o concelho de Coruche, sob a temática do “sagrado”, um conceito tão humano quanto o de “trabalho”, este último base estruturante da primeira grande exposição do Museu Municipal, “O Homem e o trabalho – a magia da mão”. Assim, e porque no presente se consolida o passado e se lançam as bases do futuro, apreciamos o percurso que nos é dado fazer, com respeito pelas múltiplas abordagens do “sagrado”, vislumbrando no caminho do desenvolvimento sustentável a força do montado de sobro. Uma história que não se encerra e que abre, literalmente, uma janela sobre o futuro... A investigação continua.


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Por último, algumas palavras de apreço. Esta exposição não teria sido possível sem o inestimável contributo de muitos coruchenses, instituições e entidades a quem a Câmara Municipal de Coruche agradece, seja pela partilha de informação, pela disponibilização de registos fotográficos ou fílmicos, pelo empréstimo de peças e acesso aos acervos documentais. Agradecemos igualmente a todos os proprietários que, ainda que de forma transversal a esta exposição, foram permitindo, nos seus terrenos, num já largo período de tempo, trabalhos arqueológicos de prospecção e, mais recentemente, escavações no âmbito de projectos plurianuais de investigação em sítios pré-históricos, nomeadamente em Casas Novas, Cabeço do Pé da Erra e Barranco do Farinheiro. Mas também a intervenção arqueológica em área urbana, junto à igreja de São Pedro, com ocupação romana e medieval/moderna. Encerramos com uma palavra de gratidão aos autores dos textos do catálogo, nomeadamente aos colaboradores locais e aos investigadores, entre eles os da Universidade de Lisboa, da Universidade Nova de Lisboa, da Universidade de Coimbra e da UNAC – União da Floresta Mediterrânica. Ainda aos mecenas, bem como a todas as equipas envolvidas, internas e externas à CMC, que, em articulação, a partir do Museu Municipal, estruturaram e construíram “Coruche: o Céu, a Terra e os Homens” Francisco Silvestre de Oliveira

Presidente da Câmara Municipal de Coruche


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Coruche: o Céu, a Terra e os Homens A nova exposição de longa duração do Museu Municipal de Coruche decorre de um percurso iniciado a 18 de Agosto de 2001 com o contar da história O Homem e o trabalho - a magia da mão. Desde então o avançar das investigações, numa abordagem multidisciplinar, colocou-nos perante a inevitabilidade premente de uma requalificação do espaço expositivo à luz dos conhecimentos actuais. Se a primeira exposição, estruturante de toda a actividade museológica, contou a história de Coruche desde os tempos mais remotos, tendo por base a ideia de que tudo o que construímos na Terra, neste território, tem necessariamente implícito o conceito de “trabalho”, a nossa acção sobre o meio, a exposição que agora se inicia tem por base o conceito de “sagrado”. O nosso lado mais espiritual. As nossas crenças, a nossa relação com o transcendente, com o divino… E pesem embora as nossas diferentes atitudes – condicionadas à artificialidade do espaço expositivo –, a dicotomia vida/morte, mas também sagrado/profano, natureza/cultura apresenta-se como base de uma dialéctica que percorre todo o devir histórico, e que conta, em suma, a história de quem somos. Mas o que é o Sagrado para as gentes de Coruche, para as gentes deste território, deste concelho? No intuito de responder a esta questão, endereçámos convites a mais de uma dezena de coruchenses, que encontraram eco nos textos que compõem o primeiro capítulo deste livro, e a que se seguem, servindo de suporte e de complemento a esta exposição, os artigos de especialidade. Não quisemos pensar só o presente. Explorámos o nosso passado mais distante. Assim, na Pré-História, sagrada é a Terra, Deusa-Mãe, onde o culto aos antepassados se encontra materializado em construções megalíticas, não alheias à orientação do astro Sol e à Lua, e em artefactos votivos, nomeadamente nas placas de xisto decoradas colocadas no peito dos mortos aquando dos rituais da morte, muito provavelmente em representação de uma divindade feminina, sua protectora. Com a romanização deste território vários foram os deuses em que se acreditou. Um panteão de figuras humanas com atributos divinos, onde Minerva, deusa do conhecimento e da sabedoria, gravada numa pedra de anel, se tornou a divindade eleita para símbolo deste Museu e o ex-libris deste espaço expositivo. Com a invasão da Hispânia pelos muçulmanos, com avanços e recuos da linha de fronteira, entre mouros e cristãos, originou-se um longo período de instabilidade, reflexo da oposição de dois monoteísmos. Uma história ilustrada onde o castelo de Coruche se tornou crucial no plano de Reconquista Cristã. No sopé do monte o quotidiano da vila de Coruche foi acontecendo ao ritmo dos tempos litúrgicos, aqui marcado pela presença do sino medieval de São Pedro,


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peça central deste espaço, dado o papel que desempenhou na esfera do quotidiano e do sagrado, mas também pelo seu contexto arqueológico de achado. Ainda pensar o presente e o que de mais sagrado existe no território coruchense, no âmbito da memória colectiva, é registar as Festas em Honra de Nossa Senhora do Castelo. Se por um lado é um momento de pausa na prolongada rotina dos trabalhos agrícolas, por outro reveste-se de uma importância vital consubstanciada na visibilidade máxima do culto mariano, com a procissão da sua Padroeira, no dia 15 de Agosto, e na cerimónia religiosa da bênção dos campos, que a custódia é destinada a servir. E são precisamente os campos, a terra, o calendário agrícola, mas também os momentos de festa do calendário litúrgico católico – o das festas móveis, como o Carnaval e o ciclo da Páscoa, e o das datas fixas, próximas dos solstícios, como os Santos Populares e o Natal – que aqui tratamos ao longo das quatro estações, regidas pelo Sol e pela Lua. Uma abordagem cíclica interposta num tempo linear. Assim questionámo-nos. Poderá o Homem afastar-se da terra? Sendo a Natureza um todo, o Homem é um fragmento inseparável da mesma, ou seja, ele é parte do todo. Inicialmente inserido na sua dinâmica processual, o Homem distanciou-se da Natureza à medida que produzia a sua própria História. Assim, o dinamismo Homem-Natureza fez com que surgisse uma nova relação espaço-tempo, impondo-se o ritmo humano da tecnologia. Mas que futuro? Questionámo-nos. Poderá a cultura respeitar a Natureza? Acreditamos que sim. O imenso montado de sobro pode servir-nos de exemplo, de testemunho. Mas um testemunho harmonioso, porquanto Homem e montado se equilibram – ainda que com um crescimento a ritmos diferentes –, permitindo o desenvolvimento sustentável. À biodiversidade do montado contrapomos a cultura, produto do pensamento. E a sua acepção é tão vasta, o seu produto é tão díspar que, da cortiça, simples rolha, se alcança o Universo no seu uso mais espectacular, o da protecção térmica em veículos espaciais, incluindo o Space Shuttle. Entre o Céu e a Terra, a pluralidade humana marca presença.

Em memória de Domingos Francisco

Responsável Técnica do MMC


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Contributos locais


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As encostas do poente: uma paisagem do sagrado em Coruche ANTÓNIO GIL MALTA1

As encostas a poente da vila abrigam uma das zonas de maior biodiversidade deste concelho transtagano: um “pulmão” de Coruche que é um tesouro biológico e um reservatório de água cujas riquezas os nossos antepassados souberam aproveitar e louvar; um refúgio natural que nos enche de fascínio e grandeza, com cenários que hoje admiramos pela sua beleza e que os antigos veneravam como sagrados. Estas vertentes inclinadas à luz austral do Sol estendem-se por cinco propriedades centenárias: Santo Atanásio, Hortinha, Santa Luzia, Almoinha – Monte dos Lacraus e Correntinhas, tendo aos seus pés, antes de chegar ao leito do Sorraia, a várzea úbere da Corrente. O declive de Santo Atanásio é abrupto e viril. Do seu ventre jorra a água de uma mina que chegou a abastecer a vila.2 Ao seu lado ergue-se lombar a vertente da Hortinha, aprazível e fresca, abençoada no seu sopé pela água que brota de uma singela fonte com uma abóbada coberta por vetustas telhas de canudo. Dos seus cumes a panorâmica sobre a princesa do Sorraia é soberba, erguendo-se sobre as barreiras formadas no Terciário. Ao centro das Encostas do Poente3 afirma-se o declive mais suave, onde se situa a ermida de Santa Luzia, santa protectora da vista, que segundo a tradição foi fundada pelo Santo Condestável na segunda metade do século XIV. 4 Esta encosta foi cultivada desde, pelo menos, o tempo dos Romanos. Na sua aba, por baixo do templo, estendem-se férteis terrenos cuja fecundidade e abundância em água fascinaram os colonos, a ponto de ali erguerem uma das mais importantes villae da região.5 A sua presença tem sido confirmada por achados dispersos, tais como lajes, tijolos, peças de cerâmica sigillata, ruínas (a cerca de meio metro de profundidade), restos de ânforas e um sestércio do século II da Era Cristã, com o busto de Marco Aurélio na face e no seu verso Minerva, de pé, segurando Vitória e apoiando-se num escudo. A quinta, que se situa a norte e a sul da azinhaga de Santa Luzia e que adoptou nos anos sessenta do século XX o nome da ermida, teve no início do século XIX a instalação de uma fábrica de curtumes, pelo seu proprietário naquela época, Francisco de Lemos Bettencourt, da qual restam os tanques. Daí ter ganho a denominação de Horta da Fábrica,6 que se manteve até aos anos sessenta do século passado.


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Conhecidas são também as fontes nesta encosta, especialmente a fonte que está no interior da quinta na sua metade sul, nas cercanias da azinhaga, muito afamada pela qualidade da sua água, remineralizante. São aliás frequentes nas vertentes mais elevadas, no montado, nascentes de água-férrea, devido à abundância do mineral. Merece também menção a fonte do Piolho, perto do sítio do Forno, cujo topónimo faz supor uma reminiscência romana. Esta abundância de nascentes não é alheia à actividade geológica que moldou o perfil de vertentes tão húmidas, embora viradas a sul. Na zona da propriedade que é contígua à Urbanização do Planalto encontram-se alinhamentos de seixos de dimensões centimétricas de quartzo, que são vestígios de paleocanais que assinalam uma cota atingida pelas águas do antigo Golfo do Tejo e do Sado. Se pensarmos que no sobranceiro cabeço, que se eleva por detrás da extinta Moagem Vale do Sorraia, no perímetro do Monte dos Lacraus, o homem pré-histórico do Calcolítico implantou um povoado que dominava a lezíria, é capaz de não ser despropositada a tese de que ali nasceu Coruche.7 É nesta paisagem de arenitos e argilas de subsolo ferroso, onde o homem sempre perscrutou o sagrado, que crescem algumas centenas de espécies características do bosque submediterrânico8 e têm o seu habitat dezenas de espécies de aves e alguns mamíferos, répteis e insectos. Algumas espécies de plantas são milenarmente reconhecidas pelo seu valor medicinal. Mesmo só ao longo da azinhaga de Santa Luzia, outrora conhecida por azinhaga de Nossa Senhora da Graça,9 a diversidade de espécies que se observam, em particular na Primavera, não passa despercebida ao olhar do visitante. Logo a seguir à ermida, quando se inicia o regresso à vila pela azinhaga, fascina o aroma silvestre e o porte frondoso de seculares aroeiras (Pistacia lentiscus L.), cuja grossura dos troncos, para uma espécie arbustiva, impressiona. Acreditava-se que um colar feito com cinco folhas de aroeira ajudava o paciente a libertar-se da malária, que tanto apoquentou a população deste concelho. Ao longo da azinhaga podem observar-se outras espécies às quais são atribuídas virtudes medicinais: conchelos [Umbilicus rupestris (Salisb.) Dandy], alfavaca-da-cobra (Parietaria punctata Willd.), erva-de-São-Roberto (Geranium robertianum L.) ou a malva (Lavatera cretica L.). E no montado, ligadas à religiosidade popular, encontram-se a esteva (Cistus ladanifer L.), cujas máculas cor de púrpura existentes nas pétalas brancas eram apelidadas pelo povo as “Cinco Chagas de Cristo”, o tóxico e fétido trovisco (Daphne gnidium L.), considerado o local onde se acoitavam as almas, a cebola-albarrã [Urginea maritima (L.) Baker], eficaz para atenuar o efeito pernicioso do veneno resultante da picada dos lacraus10 e usada em práticas mágicas para afastar o mal, e o atom, uma planta da família das Apiaceae cujo forte aroma inebria o ar e protege das pragas as espécies circundantes.


Fernando Caรงador Marques

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A esta espécie o povo atribuía propriedades mágicas, que consagrou no adágio: “Onde há aipo e atom, nem o diabo faz som.” A sua flor, que exala um agradável odor perfumado, era colocada nas arcas da roupa. Merece ainda destaque uma espécie sem flor do género Equisetum, que desponta em cada Primavera na baixa que une Almoinha e Correntinhas, na salzeda próxima da ETAR de Coruche. Trata-se de uma planta higrófila, que gosta de terrenos ricos em sílica e com um lençol de água a pouca profundidade, de múltiplas propriedades medicinais. Mas, de todas as espécies da flora conhecidas, as mais emblemáticas são a galacrista (Salvia verbenaca L.)11 e o loureiro (Laurus nobilis L.). A galacrista está ligada a uma tradição antiga que ainda perdura na memória popular: a utilização das suas sementes para limpar as impurezas ou os argueiros dos olhos; levantava-se uma pálpebra, introduzia-se a minúscula semente no olho que, por osmose, inchava, havendo quem dormisse assim, acordando com a sementinha no canto do olho no dia seguinte. O loureiro, árvore sagrada para os gregos e os romanos, continua associado ao dia de Santa Luzia, a 13 de dezembro:12 após a missa, centenas de fiéis, que costumam encher por completo a igreja, gostam de levar um ramo de louro para usarem como tempero todo o ano. Eis um património natural e histórico-cultural que é de todo o interesse aprofundar o estudo e preservar. 1

ntónio Gil Malta, Docente de Filosofia do Agrupamento de Escolas de Coruche e Investigador Auxiliar A do CEFi – Centro de Estudos de Filosofia da Faculdade de Ciências Humanas da Universidade Católica Portuguesa, Lisboa.

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Supõe-se que este fornecimento de água ocorreu, pelo menos, nos começos do século XX.

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riei esta designação na Primavera de 2003 para abarcar numa só expressão o conjunto destas vertentes, C após a realização de um percurso pedestre no dia 9 de Abril, com jovens da Escola Secundária com 3.º Ciclo do Ensino Básico de Coruche, na zona a poente da vila, que deu origem ao projeto escolar “Nichos Pedagógicos”.

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o estudo de Beirante, 2006, intitulado “Salvação e memória de três donas coruchenses do século XIV”, N pp. 247 e 248, a autora refere a existência de Nossa Senhora-a-Nova ao mencionar o testamento de Maria Eanes Garavinha, datado de 19 de Maio de 1394. Esta ermida também é citada por Ribeiro, 1959, no Estudo Histórico de Coruche, p. 159. Segundo a mesma autora e na mesma passagem, o nome da ermida mudou primeiro para Nossa Senhora da Graça, a sua padroeira ainda hoje, e mais tarde para Santa Luzia.

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egundo Alicia Maria Canto, arqueóloga espanhola da Academia de História do país vizinho que visitou S o local, é de crer que onde se encontra a igreja terá existido um espaço de culto romano, para favorecer tudo o que de ali se avistava e que pertencia à villa.

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9 de Março de 1881, quando Alfredo Augusto Cunhal comprou a propriedade denominada Fábrica a José A Augusto Alves do Rio, esta compreendia, além do terreno onde se situou a unidade industrial, as seguintes parcelas: Vinha Grande (uma vinha que já existia no século XIV com a extensão de 3 hectares segundo a op. cit. de Beirante, p. 248), Horta do Jorge, Pomar e Bosque, Vinha da Irmandade de Nossa Senhora das Graças, Rolinhas, Buenos Aires e Moinhos de Vento.


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testemunhar a presença humana na Idade do Cobre está uma ponta de seta e fragmentos de cerâmica A decorada; cf. Calais, 2003, pp. 38-39. Segundo relato popular, apareceram objectos que foram descritos como machados de pedra no prolongamento da cumeada onde se situava o povoado.

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fartura de água faz com que, mesmo no estrato herbáceo, haja nestas encostas manchas verdes todo A o ano.

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festividade em honra de Nossa Senhora da Graça ou das Graças, como também se chamou, que ocorre no A dia 8 de Setembro, foi assinalada com a celebração da missa naquela ermida até à década de 70 do século passado. Outrora (crê-se que no século XIX e no início do XX) chegaram a realizar-se corridas de toiros, um cortejo etnográfico e uma procissão em honra de Nossa Senhora da Graça. Vide Pereira, 1983, p. 62: “Estas festas eram organizadas pelos operários, e com grande brilhantismo. […] Os operários chegavam a arranjar carros alegóricos com distintivos alusivos à sua arte, que nesse tempo era de pedreiro, carpinteiro, alfaiate, sapateiro e outros.”

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Lacrau ou alacrau são os nomes comuns do escorpião tradicionalmente usados nesta região.

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Embora esta espécie já não se possa observar nas proximidades da ermida, dela ainda restam sementes. Há a intenção de que venha a ser reintroduzida.

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Nesta data, há cerca de 100 anos atrás, a festa tinha maior expressão popular. Estava presente a banda musical da Sociedade Instrução Coruchense e realizava-se um baile no largo da ermida; cf. Pereira, 1983, p. 63. A reforçar esta referência bibliográfica, bem como as fontes consultadas para a elaboração deste artigo, estão os testemunhos que recolhi dos meus pais João António Salvador e Cesaltina Rosa Malta, bem como do Eng. António Alberto Cunhal Gonçalves Ferreira, do Arq. Jorge Brito e Abreu e de Joaquim Maria Ribeiro Telles. A título póstumo, recordo os relatos das minhas avós, paterna e materna, Francisca Salvador e Antónia Rosa, e de António Augusto, mais conhecido por António Diogo.

Bibliografia Alcaraz, Juan Antonio Devesa – Vegetacion y Flora de Extremadura, Badajoz: Universitas Editorial, 1995. Beirante, Maria Ângela – “Salvação e memória de três donas coruchenses do século XIV”, in: Estudos de Homenagem ao Professor Doutor José Marques, vol. 3, Porto: Faculdade de Letras da Universidade, 2006, pp. 245-278. Calais, Cristina – “A aventura do trabalho: do talhe da pedra à descoberta dos metais”, in: O homem e o trabalho: a magia da mão, Coruche: Câmara Municipal/ Museu Municipal, 2003, pp. 33-43. Pereira, José Luiz – Aqui está Coruche, Coruche: ed. do autor, 1983. Ribeiro, Margarida – Estudo Histórico de Coruche, Coruche: Câmara Municipal, 1959. Rocha, Fátima – Nomes vulgares de plantas existentes em Portugal, Lisboa: Direcção-Geral de Protecção das Culturas, 1996.


JosĂŠ Manuel Vasconcellos

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Os sobreiros I ANTÓNIO DA SILVA TELES

Família extensa sentinela dos tempos sob um longo cântico de silêncio e redenção onde as luas os sóis e os ventos conjugaram o sonho imenso do encontro dos deuses e dos homens na contradição. Guardiões da perenidade em flor e dos trilhos sondáveis e de luz para o humano sustento e protecção. Penhor de vida que o sol conduz na dança das folhas pequeninas e seu fulgor onde as rugas da ancestralidade tornam fortes os braços da sua sustentação. Celebração do fraternal encontro entre seres vivos companheiros na força criadora. Enquanto a larva do confronto perturba os ares e os cheiros na hora predadora.

Os sobreiros II (Louvor ao sobreiral)

Vens das sombras onde tudo foi começo testemunhas dos tempos fundos e silêncios velhos.

Carregas da história o sopro mudo do arremesso que te planta nos arneiros como espectros repetidos em claros espelhos. Povoa-te a onda que surdina das colmeias ao gorgeio e ao grunhido acenas e dás mantença lande pão-prelúdio que foi sina na hora das candeias dos caminhos da fome humana de milenar sentença. Tua floração assinala o compasso das primaveras por sobre um festival de verde pende em chorão e alumia os dias baços de todas as esperas que na charneca mitigam a sede e a solidão. Chão de troncos rugosos e dispersos em labirinto por onde deambulam novos deuses persistentes que afiam intuitos submersos por instinto para domínio das vontades e seus reveses nas horas frementes. Neste espaço onde voga manso espanto e que por longo murmúrio é transido avaros passos deixam seu tugúrio para a posse do suber-manto despido.

Junho 2013


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O sagrado nas charnecas de São Torcato (PARTE I) FERNANDO SERAFIM

Em meados do século passado no Monte das Figueiras a azáfama é grande. Estamos nos finais do mês de Maio e as fainas agrícolas decorrem dentro do calendário normal para a época. A colheita da tremocilha acumula-se na eira, a aguardar o pisoteio pelas mulas. Em breve começará a ceifa da cevada e do centeio que, em feixes ou molhos levados pelas carroças, tornarão a encher a eira para que a debulhadeira-fixa separe o grão da palha e encha os sacos de sisal do rendeiro. Os bácaros comem erva no prado regado e chafurdam na água junto ao açude, preparando-se para crescerem e, em breve, aproveitar as espigas que irão ficar nos restolhos, reforçado com os bocados das abóboras-porqueiras, os figos e tudo o mais que encontrarem até aos princípios de Outubro quando começa a bolota do montado que este ano promete uma grande safra e boas engordas dos bichos para os finais de Dezembro. A tiragem de cortiça vai também ter início com o afiar dos machados e a reparação das escadas de madeira. A agitação e entusiasmo tomaram conta do grupo de cinco ou seis mulheres que fazem a plantação de arroz em pequenos canteiros quadrados e rectangulares, já devidamente alagados e dos outros trabalhos, tais como da sacha do milho e do feijão-frade. A conversa gira à volta das Trindades, festa que irá ter lugar em São Torcato no primeiro fim-de-semana do mês de Junho e que tem como ponto alto a bênção do gado. Aqui, nesta festa, os agricultores e rendeiros capricham em apresentar o seu melhor gado devidamente tratado e aperaltado. No entanto, o António Catita, pastor das ovelhas do Monte das Figueiras, é considerado invencível, não apenas pelo bom trato do gado luzidio que apresenta, mas também porque ao tosquiá-las deixa ficar pequenos tufos de lã no dorso e na cabeça das ovelhas onde prende fitas de várias cores, predominando os tons vivos, o que dá muita cor e brilho ao seu rebanho. Mas o que mais admira as mulheres é o trabalho que o Catita tem para treinar as suas ovelhas e para que estas o sigam e obedeçam aos seus movimentos. No Monte, alguns dias depois, véspera das Trindades, a mulher do rendeiro anda em grande azáfama com as suas lidas, como levar à cabeça o tabuleiro de madeira, onde acabou de colocar os doze pães, que antes amassara, devidamente


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cobertos com uma toalha de branco imaculado, que irão ser cozidos no forno de lenha acabado de ser bem aquecido. Com a ajuda da pá de ferro distribui de forma cuidada e regular os pães no forno. Por fim, com a mesma pá traça uma cruz na parte superior da entrada do forno, coloca a tampa de latão e faz uma reza para que o Divino faça crescer os pães e aumentar a sua qualidade: “Deus te acrescente para mim e para toda a minha gente”. Depois de cozidos, tira os pães do forno e põe uma assadeira de barro com um grande galo, uma forma com massa de pão-de-ló, as pevides de abóbora, batata-doce e uns bolos de farinha, banha e açúcar para dar às crianças das vizinhas. Mas, para completar um farnel farto é necessário ainda, além do pão e do galo assado, uma panela de arroz branco, devidamente embrulhada em jornais, as azeitonas, as linguiças, os queijos secos olhentos e azeitados e dois garrafões de vinho tinto. Hoje é o dia das Trindades, já se ouviram os primeiros foguetes, o farnel está arrumado num grande cabanejo de vime escuro, coberto com a toalha que se irá estender no chão e onde serão postos todos os mantimentos, mais alguns copos e pratos. O marido já partiu no cavalo. Os filhos estão prontos. A carroça, bem lavada e com os bancos cobertos com as coloridas mantas de Minde, a lanterna colocada e a mula com guizeira nova, inquieta para partir. Dentro de uma hora, chegados a São Torcato, a carroça ficará instalada debaixo de um grande sobreiro na zona envolvente da igreja, onde já estarão outras vindas da Branca, Carapuções e Santana do Mato. O rebuliço é grande, o gado começa a agrupar-se, a missa vai começar e quando acabar e o padre vier para o palanque frente à porta da Igreja, devidamente paramentado e com a caldeira de água benta, aspergir os animais que vão passando em volta da igreja, atinge-se o auge do desfile, que culminará com o Catita a caminhar à frente do seu rebanho. Fez-se silêncio e eis que este ao passar em frente do padre pára, ajoelha-se, pede a sua bênção e, para espanto de todos, as suas ovelhas páram também. É o delírio dos populares que aplaudem e comentam mais este grande feito do Catita. Após o desfile começa o almoço campestre com a abertura dos farnéis ao som de harmónicas e desgarradas até à hora da procissão. A noite promete ainda com um grande baile, até às tantas, abrilhantado por um afamado acordeonista da região.


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Cerimónia de bênção de gado no domingo da Santíssima Trindade. São Torcato, Coruche, final da década de 40 do século XX [Angélica Caçador/MMC]


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Histórias de (um) outro mundo (PARTE II) FERNANDO SERAFIM

Nos finais dos anos cinquenta do século passado, mês de Agosto na Herdade das Figueiras, o sol acaba de se esconder no horizonte, o gado regressa a casa, depois de ter percorrido neste dia quente os campos de ervas secas e pouco apetitosas. As vacas já recolheram ao curral, onde se apressam a comer um suplemento alimentar da bem cheirosa palha de cevada devidamente acondicionada em fardos numa enorme pilha. No redil as cabras balem à procura dos filhotes e tentam descansar, pois a volta do dia foi dura mas proveitosa porque elas, ao contrário das vacas, conseguem melhor sobreviver ao aproveitar todas as folhas verdes que encontram, desde os silvados às oliveiras e dos sobreiros aos freixos. Há apenas uma que, por estar coxa e não poder acompanhar o rebanho, tem o direito à liberdade de pernoitar fora da vedação. O maioral e o ajudante deram por terminado o seu dia de trabalho e voltam ao monte para jantar e, depois de alguma conversa, irem dormir junto ao gado, em camas improvisadas na palha, cobertos com uma manta, que o corpo merece. O jantar é comido no anexo da cozinha do rendeiro, invariavelmente as sopas de carne da panela: couves, batatas, feijão-verde e por vezes grão ou feijão-seco, acompanhado de muito toucinho e comedido em linguiça e chouriço preto, pão caseiro e vinho tinto do garrafão. Pode-se ainda comer à descrição as frutas da época, melão ou melancia. Após o jantar, e à luz do candeeiro a petróleo, fala-se e contam-se episódios do dia-a-dia dos animais, dos seus comportamentos, do estado do tempo, das pastagens e de situações supersticiosas e inexplicáveis que acontecem, como a de ataques atribuídos a bruxaria ou ao Diabo que se manifestam através da dissimulação em outros seres (andorinhas ou carraceiros) em algumas sextas-feiras, que fazem voos rasantes sobre os animais e levam-nos a tomar comportamentos estranhos como saltar e fugir em pequenos grupos, ou até dos casos de aparecimento em determinados locais, como encruzilhadas e pontes, do Diabo com chifres e pés de cabra, o que muito impressiona o jovem ajudante do maioral. A mulher do rendeiro, que se prepara para lavar a loiça, dá conta que não há água no cântaro de barro e pede que alguém vá à fonte, que fica a cerca de 500 metros do monte. O ajudante do maioral logo se ofereceu, levantou-se, pegou no cântaro e saiu. A noite estava quente, corria uma ligeira brisa em noite com algum luar, o caminho para a fonte faz-se por um carreiro entre sobreiros que criam sombras fantasmagóricas de dimensões irregulares e desconformes sobre uma toalha de


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folhas ressequidas que se estilhaçam com pequenos ruídos ao serem pisadas; os cães da herdade, que ainda não tinham nomes de pessoas, o Tejo, rafeiro da Serra, de grande porte e de pêlo acastanhado, é o líder da equipa de guarda e foi comprado na estação de São Torcato, a um ferroviário oriundo da Covilhã, mais o Barbaças, cão médio, malhado de branco e castanho de pêlo comprido e encrespado, com grandes bigodaças, e o Pirolito, o mais pequeno, de cor pardacenta, mas o mais barulhento, ainda o acompanharam nos primeiros instantes. Depressa desistiram ao reconhecerem qual o percurso e o seu pouco interesse, voltaram à rua do monte, para junto da cadela do maioral, uma linda Serra d'Aires, jovem e brincalhona de longos pêlos escuros que mal deixam ver os olhos. O ajudante do maioral continua pelo carreiro e transpõe os troncos de pinheiro atravessados na vala de guarda do açude que, com algumas tábuas pregadas, servem de ponte pedonal. Depois passa o vale, por cima dos muros dos canteiros onde está plantado o arrozal e onde o barulho do grasnar das rãs vai dando origem ao silêncio à medida que vão saltando à sua passagem, assustadas, para a água dos canteiros. Finalmente, junto à pequena colina aparece a fonte de chafurdo caiada de fresco e que se espelha na água fresca e transparente, decorada com pequenos pedaços de loiça de porcelana que têm como função ornamentar o fundo de areia dourada da fonte e servir de indicador da sua pureza. Logo que estes cacos apareçam com sinais de limos verdes deve despejar-se, com a ajuda do cabaço, toda a água da fonte, remover a areia e lavar os cacos. Ouve-se o pio das corujas poisadas nos sobreiros. O ajudante retira o cântaro do ombro, debruça-se, mergulha-o na água e, depois de cheio, torna a colocá-lo no mesmo sítio e prepara a viagem de regresso. O tempo mudou bruscamente, soprando uma brisa forte que transporta nuvens que tornam a noite ameaçadora, mais escura e misteriosa; não se ouvem as rãs, nem tão pouco o pio das corujas e um estranho silêncio parece percorrer todo o vale plantado de arroz que o vento, ao soprar, transforma num estranho barulho o resmalhar das folhas. Cada vez está mais escuro e há a ponte da vala ainda para atravessar, rodeada de muita e alta vegetação, freixos, salgueiros, silvas e canas. De repente vem-lhe à memória a conversa com o maioral; quando, ao aproximar-se da vala, verifica movimentos estranhos sobre a ponte, tenta ignorar, mas eis que de repente o barulho trôpego de pés de cabra na madeira se torna evidente, assusta-se, dá um pulo, o cântaro cai ao chão e desmaia. No monte estranha-se o atraso e o maioral decide ir ao seu encontro mais o Tejo, o Barbaças, o Pirolito e a Serra d'Aires. Depressa chegam junto dele e do cântaro partido; o maioral ao vê-lo desmaiado dá-lhe umas bofetadas, ele acorda e conta o sucedido: que “viu o Diabo com chifres e pés de cabra a atravessar a ponte”. De repente ouve-se um resmalhar nas canas junto à vala e o maioral também se assusta, mas logo aponta o dedo para a tranquila cabra manca que se entretém a comer delicadamente as folhas viçosas dos freixos, porque se “cabra manca não dorme a sesta”, é suficientemente esperta e gulosa para espantar o sono para bem se alimentar.


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O que somos? Como somos? HERALDO BENTO

Não é fácil a missão de explicar e entender o conceito de Sagrado, retratando a sua influência nas gentes de Coruche, pois coisa sagrada tem muitas facetas e interpretações, originárias dos mitos que o Homem, pela sua mente, foi criando. Desde tempos imemoriais o Homem procurou explicações para os fenómenos que sucediam na Natureza, assim como na própria vida quotidiana. Foram situações dramáticas, certamente, que o levaram a crer em algo transcendente, coisa sobrenatural, ou ente superior, que comandava a vida. Sentindo-se indefeso, desprotegido e frágil, foi criando vários símbolos ou divindades para agradar aos deuses, que a sua mente imaginava existirem. Como tal, terá surgido o conceito de Sagrado, nascido, pois, da ignorância do Homem primitivo. Manuscritos que existem actualmente em arquivos, bibliotecas e museus, assim como a própria investigação arqueológica, têm fornecido muita informação para o conhecimento da evolução do Homem, enriquecendo o Saber. Um povo que não tenha memórias do seu passado, das suas origens, perde referências irremediáveis. Actualmente coexistem abordagens e perspectivas do Sagrado, com práticas de culto que nos podem causar um certo espanto. Por exemplo, na Índia as vacas são consideradas animal Sagrado ou o rio Ganges, que banha a cidade de Benarés, também é Sagrado, onde os fiéis se banham para se purificarem, segundo sua crença e respeito. No Japão também o Sol é Sagrado. De tal modo que este país é conhecido pelo país do Sol Nascente, pois até a bandeira da pátria é simbolizada com a imagem do Sol Nascente. Muitos são os exemplos do conceito de Sagrado no mundo em que vivemos. E em Coruche? Pergunta-se: qual é o conceito de Sagrado para as gentes de Coruche? É o concelho de Coruche, terra farta situada no vale do Sorraia, propícia à agricultura e com vasta charneca, excelente local para qualquer comunidade viver. A floresta, o rio, a planície completam-se, fornecendo e garantindo a subsistência através da caça, da agricultura e da pesca. Qual o relacionamento com o divino? Que influências?


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Certamente que a vivência das nossas gentes passou por todas as mudanças e dificuldades dos povos primitivos e foi absorvendo tudo ou adaptando os conhecimentos existenciais ao seu ambiente vivencial. As respostas são difíceis pois é necessário encontrar caminhos que são árduos, exigindo muito trabalho, paixão, meios e até carolice! Serão pesquisas arqueológicas que poderão dar respostas concretas e positivas, dando-nos a conhecer como era a vida dos nossos antepassados. Certamente que não foi por acaso que vários povos por aqui andaram, como os romanos e os mouros, tendo conceitos de Sagrado completamente díspares. Deixaram-nos os romanos memórias construídas, como a cidade de Conímbriga ou o templo dito de “Diana”, dedicado ao Imperador Augusto, entre outros. Por sua vez, os mouros deixaram-nos mais memórias no campo da cultura ou até no modo de viver, como por exemplo as casas caiadas de branco, a picota, engenho para tirar água dos poços e que ainda se usa; algumas palavras que nós ainda usamos no nosso vocabulário, como almotolia, almoxarife, alguidar, etc. Memória construída é a antiga mesquita de Mértola, templo mouro que foi adaptado a templo cristão. Quando D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, por aqui passou por ocasião das lutas com os Mouros, expulsando-os, mandou que fossem reconstruídas as muralhas da fortaleza, ordenando depois que se construísse um santuário dedicado a Nossa Senhora do Castelo. Assim se chamaria mais tarde a imagem oferecida pelo rei. As gentes de Coruche já possuíam espírito cristão e com tal gesto do rei empolgaram-se e elegeram Nossa Senhora do Castelo como sua Padroeira e Protectora. Há muito que, todos os anos, a 15 de Agosto se realizam grandes festividades em honra de Nossa Senhora com uma grande procissão que percorre as principais ruas da vila, participando milhares de peregrinos, com grande solenidade, onde se sente um certo misticismo e transparece a Fé, com enorme respeito. São cumpridas as promessas, com ofertas de várias maneiras, onde a religiosidade é intensa, sempre com o fito do Sagrado. Acontece também a bênção dos campos, uma cerimónia que é uma reminiscência de um passado distante, em que o culto de Sagrado está presente. É costume, algo sagrado, a seguir à Páscoa, na Quinta-Feira de Ascensão, as famílias irem passear até aos campos, confraternizando e merendando; depois, no regresso a suas casas, trazem uns ramos compostos por algumas espigas de trigo, raminho de oliveira e papoilas, que penduram numa parede previamente escolhida, significando o ramo um símbolo de abastança naquele lar. Mas há outros exemplos. O culto das árvores existe e sente-se especialmente no sobreiro ou na oliveira. Essa árvore generosa que é o sobreiro e nos dá a


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cortiça, produto polivalente, multifacetado, uma riqueza no concelho de Coruche. Tem dezenas de aplicações na indústria, habitações, pavimentos, mobiliário, vestuário, malas, chapéus, calçado, carteiras e, claro, rolhas, cuja produção é de milhões de unidades por dia! O sobreiro é uma árvore que leva quarenta anos a ser adulta. Quando a cortiça é extraída, o que acontece de nove em nove anos, a árvore é tratada pelo tirador com muita sabedoria e amor, pois não a quer ferir com o machado. A árvore é tratada como coisa Sagrada. A oliveira pode atingir centenas de anos de existência. Além de simbolizar a Paz, produz a azeitona que serve para a alimentação do Homem e é transformada em azeite, esse óleo puro e generoso que faz parte da dieta portuguesa. Produto saudável que, ainda, nalguns casos, é utilizado para iluminação e também em alguns ritos religiosos. Têm pois a oliveira e o sobreiro conotação sagrada. Pensamos que o Sagrado traduz um sentimento íntimo no qual o Homem tem um certo misticismo. Será a fé? Será o acreditar em algo? Será Deus? O Homem tem necessidade de possuir uma força interior e acreditar que há sempre algo de Sagrado na vida. A Família, os amigos, todos nós devemos ser fraternos. Fazemos votos para que o trabalho e o projecto do Museu Municipal seja um êxito, pois tem uma excelente equipa, gente jovem cheia de vontade e saber.

Pais e Irmã de Heraldo Bento, 1914 [Heraldo Bento/MMC]


Jacinto Castanho

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Ciência versus Religião: antagonismo, sincronismo ou paralelismo? JACINTO CASTANHO 1

E ordenou o Senhor Deus ao Homem dizendo: de toda a árvore do jardim comerás livremente. Mas da árvore da ciência do bem e do mal, dela não comerás. (sublinhado do autor) Bíblia Sagrada [Génesis 2: 16-17]2

Interpretações especializadas da relação entre ciência e religião têm sofrido transformação nas últimas décadas. Dois aforismos têm dominado a discussão popular entre ciência e religião: um, a resposta de Laplace a Napoleão, de que não precisava da hipótese de Deus para o seu modelo cosmológico e, outro, a afirmação de Einstein de que “a ciência sem religião é coxa, e a religião sem ciência é cega”.3 Estes têm sido marcos na história da relação entre ciência e religião. Richard Dawkins (biólogo, 1941-), no seu livro “A desilusão de Deus”, protagoniza uma enérgica cruzada contra a religião, tentando mostrar com argumentos científicos que, sendo a religião um mal, deve ser eliminada para bem da humanidade.4 Já para Paul Davies (físico e cosmólogo, 1946-) é o estudo dos processos físicos que melhor nos permite aceder à compreensão do religioso. Para Bowles “os defensores do naturalismo científico acreditam que o conflito é inevitável dado que a religião assenta em dogmas tradicionais enquanto a ciência envereda por um novo caminho de verdade expondo a desadequação de ideias antigas”. Stephen Jay Gould (paleontólogo, 1941-2002) atribui à ciência o mundo dos factos e à religião o dos valores morais.5 Também o Papa Bento XVI, em “Dogma e anúncio”, refere: “O pensamento evolucionista encontra-se ao nível dos fenómenos, ocupa-se com os seres do mundo que ocorrem realmente, enquanto a fé na criação se move no nível ontológico, questiona num plano anterior às coisas individuais, admira o milagre do ser mesmo (…).”6 Deste modo, para Gould e Bento XVI, como não há sobreposição, não há discussão. No entanto nenhuma destas posições é normativa. A de Laplace, no século XVIII, parece ser pessoal ou pelo menos confinada à França da época, e as restantes, já no século XX, coexistiam e eram próprias de cada pensador. Peter W. Atkins, no seu livro “A criação”, refere que “não há necessidade de invocar a ideia de um Ser Supremo em nenhuma das numerosas manifestações do universo”.7

Professor de Física e Química, pós-graduado em História e Filosofia da Ciência

1

2

Bíblia Sagrada [Génesis 2: 16-17].

3

Bowler, 2001.

4

Dawkins, 2007.

5

Bowler, 2001.

6

Bento XVI, 2008.


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Lothar Shafer (químico quântico, 1939-) edita o seu livro “Em busca da realidade divina”, onde se lê em contracapa que “este livro explica claramente os conceitos da física quântica, de modo a demonstrar como a ciência e a espiritualidade não estão separadas”.8 Frank J. Tipler (físico, 1947-), no seu livro “A física da imortalidade”, refere que “é precisamente o facto de os seres humanos serem máquinas de uma espécie particular que nos permite provar [itálico de Tipler] que nós, homens, dispomos provavelmente de livre-arbítrio, que deve haver vida depois da morte num lugar que se assemelha bastante ao Céu das grandes religiões universais, e que a vida, longe de ser insignificante, pode ser considerada como a causa última da própria existência do Universo em si”.9 Mais tarde, no seu livro “A física do cristianismo”, afirma ainda: “A singularidade cosmológica é o Deus judaico-cristão.”10 Desde Aristóteles, há 2300 anos, a teoria científica tinha o universo como eterno. O padrão imutável dos céus era a prova desta eternidade. Einstein chegou a afirmar tê-lo provado, embora com alguma prestidigitação. Até ao princípio dos anos 60, face às crescentes provas do contrário, a maioria dos principais cientistas acreditava nisso. Durante 3300 anos, desde a revelação no Monte Sinai, a Bíblia nega-o, afirmando resolutamente que existia um princípio para o nosso universo. Apenas nos últimos trinta anos é que a ciência solucionou a questão. Baseada nas informações dos telescópios e aceleradores de partículas, o Génesis com 3300 anos estava certo desde o início, fazendo uma transposição de 13,7 mil milhões de anos para sete dias, um período de tempo à escala do cidadão comum para melhor compreensão. Existira um princípio,11 e uma evolução, como se refere na tabela seguinte onde se apresenta o modelo cosmológico da Bíblia e da ciência.

7

Atkins, 1985.

8

Shafer, 2003.

9

Tipler, 2003

10

Tipler, 2007.

11

Schroeder, 1999.

Outras religiões e lendas de culturas ancestrais, nomeadamente os Aranda da Austrália Central, ilhas Gilberta, Hindus e algumas culturas chinesas, atribuíam ao universo um início e evolução em vez de eternidade. Com o referido fica-nos, pelo menos a mim com a visão científica do tema, a reflexão seguinte: “Observando o universo em que vivemos, não seremos levados a concluir que andamos a descobrir algo que a religião tinha já anunciado?”


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BÍBLIA (Génesis)

CIÊNCIA (cosmologia/geologia)

Trevas sobre a face do abismo (Gn. 1.2)

Nascimento do universo (flutuação quântica?)

Veio a luz (Gn. 1.3) Expansão do céu (Gn. 1.6-8)

Grande expansão Universo opaco Luz, universo transparente O universo continua em expansão

Juntam-se as águas debaixo do céu e aparece terra seca (Gn. 1.9-10)

A água condensa, formam-se os mares e os continentes

Produzem-se erva verde e árvores (Gn. 1.11-12)

Aparece a vida capaz de fazer fotossíntese

Produzem-se répteis na água e voam as aves (Gn. 1.20)

A vida animal começa na água A vida sai da água após a formação da camada de ozono

Multiplicação das espécies na água e em terra (Gn. 1.22)

Período câmbrico com grande explosão de formas de vida

Aparecimento do Homem (Gn. 1.27)

Aparecimento do Homem na Terra

Bibliografia Atkins, Peter W. – A criação, Lisboa: Editorial Presença, 1985. Bento XVI – Dogma e anúncio, São Paulo: Loyola, 2008. Bowler, Peter J. – Reconciling science and religion, Chicago and London: The university of Chicago Press, 2001. Dawkins, Richard – A desilusão de Deus, Lisboa: Casa das Letras, 2007. Schafer, Lothar – Em busca da realidade divina, Lisboa: Esquilo, 2003. Schroeder, Gerald L. – Deus e a ciência, a Bíblia explicada por um cientista, Lisboa: Europa-América, 1999. Tipler, Frank J. – A física da imortalidade, Lisboa: Bizâncio, 2003. Tipler, Frank J. – A física do cristianismo, Lisboa: Bizâncio, 2007.


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SAGRADO é a vida e o conhecimento LUÍSA PORTUGAL

SAGRADO é a natureza, a vida, a pessoa. O equilíbrio das águas dos rios correndo para o mar. O equilíbrio do útero materno e do líquido amniótico almofadando uma gestação. A repetição e intimidade fértil de homens e mulheres. Se todo o lugar tem o seu aspecto sagrado, o corpo, a pele e o pensamento nas suas diversidades pessoais devem ser entendidas como maravilhoso. O Homem é uma construção maravilhosa. Pleno de vida ou na morte anunciada quando o sol enfraquece e as colheitas de outono aconteceram. O SAGRADO está no quotidiano, no dia a dia, na paisagem, nos olhos que nos olham e nos que olhamos e vemos. A linguagem, o gesto, a comunicação, a língua e as palavras, o toque diz o que somos perante os outros. Não existimos sozinhos, tal como a natureza que precisa de terra, ar e água para florescer. A criatividade que há em cada um de nós fortalece a individualidade mas também as famílias, as comunidades, o trabalho e os valores colectivos da sociedade. A aprendizagem, os saberes são fundamentais para o crescimento, para as relações que estabelecemos com o outro de forma positiva. A sabedoria da natureza que diz que uma pereira dá peras e que uma célula do parênquima renal tem a sua própria função na depuração do sangue. Acreditar nos espíritos que surgem no vento e produzem ruído é mantermos a ingenuidade criativa das crianças, mas com a sabedoria da explicação.


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SAGRADO é o tempo, o presente, a transformação nas estações do ano. SAGRADO é a repetição dos dias, a presença do Sol, da Lua mas também o que vamos sabendo de outras galáxias. A repetição uma e outra vez do parto, esse momento SAGRADO de saída para a vida, para a luz, nascimento e colheita. A memória, esse livro vivido pelas pessoas e pelas comunidades, arquivada em circunvoluções e circulando como seiva através de neurónios, preserva o tempo, as pessoas, as cores e os sentimentos. É com essa semente que construímos o presente, a vida aqui e agora, que falamos de nós e do mundo. Celebramos os nossos mortos com silêncio mas o tempo, mesmo com o frio a crescer, diz-nos que o sol irá subir, a Primavera voltará e a aventura da vida continuará. SAGRADO é o futuro. Nunca nos preparamos para o futuro. Conhecemos a história, o passado, mas não o amanhã. O futuro simplesmente aparece e renova, todos os dias. O conhecimento que vamos construindo mostra-nos a sombra do maravilhoso que nos espera, sempre diferente, oportuno. A experiência é fundamental e a ciência enquanto método vai possibilitar a construção do melhor. SAGRADO é o conhecimento que nos faz compreender o corpo, a palavra, a natureza, a intimidade, as emoções e a realidade. Mesmo que o Homem tente destruir, o Sagrado permanece, o conhecimento permanece, a fertilidade da terra e da mulher permanecem. Sagrada é a busca de sermos sempre mais livres.


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O Sagrado em Coruche MARIA ISABEL VIEIRA PEREIRA

Nasci e fui criada em Coruche, tendo vivido com meus irmãos na casa de nossos pais até que aos 21 anos passei a viver na outra margem do Tejo, onde construí uma vida profissional que, naquela altura, Coruche não podia proporcionar-me. Perspectivei e vivi “O Sagrado” sempre como um dos Tesouros que formavam o belo ramalhete guardado no Baú/Família, o qual, nós, crianças e jovens, íamos descobrindo e aprendendo as regras a ele subjacentes, a fim de as irmos integrando e praticando nas nossas próprias vidas.

Piquenique em família junto à igreja de São Torcato no dia em que esta foi inaugurada. 1932 [Maria Isabel Pereira/MMC]

Não quero deixar de citar alguns daqueles Tesouros a que acima me refiro: Honestidade; Respeito pelas pessoas da família e todos em geral, sobretudo pelos mais idosos; Respeito pelas tradições, usos e costumes; Amor pela Natureza, implicando a sua protecção, para bem de uma sociedade saudável. Especificando agora o Tesouro que chamo de “sagrado”, este era, por exemplo: a forma como se vivia e festejava a Quinta-Feira da Ascensão. Praticamente todo o comércio da vila não abria portas. Muitos dos católicos mais novos iniciavam a comemoração daquele “Dia Santo” com a assistência à celebração da santa missa. Entretanto, nas casas a azáfama era grande: preparavam todos o necessário para se partir cedo para o campo onde, junto da Mãe Natureza, se concretizavam os alegres e fartos piqueniques com familiares e amigos. Era só ao anoitecer que a vila, após um dia em silêncio, voltava a animar-se com o regresso dos vários grupos vindos dos piqueniques, nos quais se tinha dado largas às benditas alegrias. Cansados, mas consolados, voltavam com os “raminhos da espiga” compostos durante o dia e que seriam religiosamente guardados até ao próximo ano. Isto porque eles eram o garante dos bens neles representados e transmitidos pelas plantas que os compunham: a espiga, o pão; o ramo de oliveira, os “condutos” (comeres) e temperos; malmequeres brancos, a paz; malmequeres amarelos, o dinheiro; a papoila, as alegrias. Para os que se sentem perfeitamente sintonizados com os usos e costumes actuais é natural que se interroguem: “Porquê comemorar a Quinta-Feira da Ascensão no campo, sem as normais comodidades, e não na vila, num bom salão de festas, onde comodamente instalados tudo lhes podia ser servido, incluindo a música?”


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Quem não conhece ou não esqueceu o que nos diz a História dos povos mais antigos, sabe que uma das suas muitas tradições era a de festejar nos campos a colheita das searas, agradecendo aos deuses os bons resultados. Ora, na nossa era cristã aquela secular tradição cristianiza-se com a Ascensão de Cristo que os Evangelhos nos contam não se ter efectuado a partir de um qualquer faustoso templo mas, antes, do campo, de um monte. Como não lamentar pois que, na actual e por muitos considerada supercivilizada sociedade, se tenham esquecido e perdido tão bonitas como significativas festividades campestres com a reunião de família e amigos? A este respeito não resisto a deixar aqui algumas palavras que bem reflectem a sábia e já antiga filosofia defendida pelo nosso querido Nobel da Arquitectura Paisagista, Gonçalo Ribeiro Telles, as quais li numa das suas últimas entrevistas: “Nas periferias das cidades da Europa desenvolvida os urbanos retomam relações com o campo, sobretudo por razões de recreio.” E mais adiante, nessa mesma entrevista, diz ainda: “É fundamental integrar o Homem na sua plenitude de construtor, não só de cidades, como também de campo.”1 Como “Sagrado” era também o entusiasmo, misturado de cansaço, com que no Verão se faziam as grandes limpezas nas casas, caiando as paredes, incluindo as suas fachadas. No interior das habitações as mobílias eram convenientemente limpas, os amarelos areados, estreavam-se cortinas e naperons! Tudo ficava terminado no dia 14 de Agosto, porque a 15 a Senhora do Castelo vinha passear pelas ruas da vila e talvez até se acreditasse que, tal como Ela via no coração de todos, ou de quase todos, o amor que Lhe dedicavam, visse também como as casas estavam asseadas tanto por fora como por dentro. “Sagrado” era o esmero de caiar as paredes da chaminé e embelezar o seu chão, porque na noite de 24 de Dezembro não se acendia ali o costumado lume de Inverno. Naquelas noites de 24 de Dezembro, “o Menino Jesus ia descer pela chaminé” para deixar os seus presentes destinados aos elementos da família, cujos sapatos alinhadamente ali ficavam esperando as benditas dádivas. Sagrada era ainda a autorização que solicitava a meus pais para me levantar da mesa, terminadas as refeições do almoço ou do jantar, quando as conversas se prolongavam muito, fossem entre si ou com familiares e amigos que na altura nos visitavam. Autorização que, uma vez dada, agradecia com um beijo a quem ma concedia. Já muito me alonguei, sem contudo ter dito tudo sobre o que para mim foi sempre Sagrado. Termino, pois, afirmando ainda que considero Sagrado o facto de ter guardado a lembrança dos Tesouros que descobri no tal Baú/Família, os quais fui pondo em prática nesta minha já longa vida. Creio ter deixado bem claro que “O Sagrado” em Coruche foi sempre uma significativa e importante parte do viver harmonioso das gentes da minha terra natal, da qual nunca me desliguei.

1

B oletim da Freguesia de São José, ano II, 09.07.2013.


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Espaรงos de vida, espaรงos da morte


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Coruche e as antigas sociedades camponesas VICTOR S. GONÇALVES, ANA CATARINA SOUSA 1

Depois de alguns poucos milhões de anos em que os antepassados do Homem e o género Homo viveram da caça e recolecção, cansaram-se eles de andar à pedrada, a lançar dardos com propulsores duvidosos, correr atrás de mamíferos muito maiores que eles e decidiram inventar a agricultura, os flocos de cereais, a alimentação à base de animais domesticados e, para melhorar tudo isto, construir silos e celeiros, cercas para gado. No Próximo Oriente chegaram mesmo a erguer cidades improváveis, como Çatalhöyük, adorar bovinos de considerável dimensão, leopardos de comportamento suspeito e começaram a viver ao ritmo das colheitas, o que parecia bem melhor que dantes. Fizeram também estranhos santuários, como Göbekli Tepe, em épocas tão recuadas que nos perguntamos se é mesmo verdade ou se o radiocarbono não terá enlouquecido localmente. É mesmo isto? Está isto certo? Bem, errado não é, mas a situação foi incomparavelmente mais complexa. E se no Oriente foi mesmo uma Revolução (e, pelos vistos, mais antiga do que parecia), a Oeste as coisas não estão ainda bem claras. No pequeno mundo do estuário do Tejo, então, sabemos tão pouco que nada é simples ou garantido. E, mesmo em Coruche, em Casas Novas, por exemplo, a influência da Meseta é tão forte como a da actual Andaluzia. E a cerâmica cardial aparece com impressões punto y raya, uma técnica híbrida completamente diferente. Os monumentos e sítios de Coruche que hoje se conhecem, e que o Grupo de trabalho sobre as Antigas Sociedades Camponesas do Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (Uniarq) tem vindo a escavar e a estudar, são apenas parte de uma história longa que tem que ver com a própria evolução social, económica, tecnológica e simbólica das comunidades, locais e transregionais, a partir do 6.º milénio antes da nossa era (a.n.e.) e de um seu segundo

fôlego com a Revolução dos Produtos Secundários, durante o agitado 3.º milénio... Vamos ver sumariamente algumas dessas situações, cuja investigação está ainda em curso. Começaremos pelo vale do Sorraia, descendo depois para sul.

1. Junto ao Sorraia No dealbar da agricultura: Casas Novas O conhecimento do processo de neolitização do actual território português é ainda hoje insuficiente, com grandes vazios de informação. Sabemos que entre a segunda metade do 6.º milénio e o primeiro quartel do 5.º milénio a.n.e. se verifica a presença de um mosaico cultural, com áreas registando sinais de precoce neolitização e outras, onde a caça e recolecção permanecem dominantes até inícios do 5.º milénio, com escassa incorporação de práticas produtoras (agricultura ou pastorícia) e de inovações artefactuais “neolíticas” (cerâmica e pedra polida). Na área do Baixo Tejo, particularmente na sua margem esquerda, a pesquisa tem sido quase exclusivamente direccionada para a Ribeira de Muge (Salvaterra de Magos), onde se situam os conhecidos “concheiros”. A história da pesquisa deste complexo tem já 150 anos,2 registando-se campanhas de escavação até aos dias de hoje.3 As investigações aqui efectuadas têm privilegiado o conhecimento das ocupações dos caçadores-recolectores “mesolíticos”, sendo referida pontualmente a presença de componentes do “pacote neolítico”, como cerâmica decorada.4 1

entro de Arqueologia da Universidade de Lisboa (Uniarq), Grupo de C trabalho sobre as antigas sociedades camponesas. Fotografias dos autores.

2

Oliveira, 1884; Ribeiro, 1884.

3

Bicho et al., 2011.

4

Bicho et al., 2011; Ferreira, 1974; Andrade et al., no prelo.


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1. Escavação da Sondagem 7, na metade ocidental de Casas Novas. Vê-se, no momento da identificação, uma área de combustão não estruturada 2. Aspecto da escavação da Sondagem 5, onde se detectaram áreas com areias muito consolidadas e com algumas poucas manchas de fogo. Na área maior, à esquerda, recolheram-se vários núcleos de lamelas em associação. Um deles, provavelmente proveniente da região de Tomar, permitiu algumas remontagens 3. Na Sondagem 5 uma espessa camada de seixos definia um antigo paleossolo

Uma imagem de Casas Novas, vista a partir dela própria. Estamos aqui já na parte mais ocidental do sítio, mas todo ele, e a envolvência para sul, mostra uma superfície plana e arenosa, profundamente modificada pela agricultura

Imagem do curso actual do Sorraia, a pouco mais de vinte metros do sítio arqueológico de Casas Novas


41

1

2

Podemos explicar o aparente vazio de ocupação na margem esquerda do Tejo através de vários factores. Por um lado, as pesquisas centraram-se sempre noutras temáticas e noutras cronologias, como os concheiros de Muge e do Paul de Magos. Por outro, consideram-se questões de conservação e tafonomia: as condições naturais dificultam a preservação de contextos arqueológicos neolíticos nos terraços fluviais junto aos afluentes do Tejo. A natureza arenosa do sedimento dificulta a conservação de matéria orgânica, óbice particularmente gravoso para a preservação dos níveis de ocupação e consequente reconstituição paleoeconómica. Sabemos ainda que o uso do solo praticado em épocas modernas afectou muito a conservação dos contextos arqueológicos. O projecto de investigação ANSOR 2 (A antropização do Vale do Sorraia), promovido pela Uniarq desde 2010, procura fazer uma leitura do tempo longo das antigas sociedades camponesas, desde os momentos mais recuados, no Neolítico antigo (segunda metade do 6.º milénio a.n.e.), procurando colmatar a lacuna de informação desta fase em Coruche e, naturalmente, na margem esquerda do estuário do Tejo. A identificação do sítio de Casas Novas, em 2010, assumiu assim uma enorme importância a nível local e regional, sendo imediatamente divulgada a descoberta deste sítio na Revista Portuguesa de Arqueologia5 e, posteriormente, em 2011, no 5.º Congresso do Neolítico Peninsular.6 O sítio de Casas Novas situa-se no concelho de Coruche, localidade de Azervadinha. Basicamente, trata-se de uma área aplanada, com cerca de 1000 por 300m (30ha) e altimetrias entre os 21 e os 22m. Casas Novas está actualmente quase na margem esquerda do Sorraia. Este curso

3

de água, aquando da transgressão flandriana, teria um caudal muito mais volumoso, tal como uma ria, particularmente após o episódio climático frio 8.2 cal BP. Os trabalhos arqueológicos foram realizados nos verões de 2010 e 2011, sob a direcção dos signatários, tendo sido recolhido um grande volume de informação. Complementarmente às escavações e prospecções, em 2011 foi efectuado um levantamento geofísico. A extensão da área escavada (402m2, 8 sondagens) e a geofísica permitiram obter uma leitura em área, tratando-se de uma das mais extensas escavações publicadas do Neolítico antigo no actual território português. Para além dos trabalhos de campo e de laboratório, têm vindo a ser desenvolvidos diversos estudos interdisciplinares, nomeadamente análises geo-arqueológicas de proveniência do sílex,7 estudos de traceologia8 e de paleobotânica. Apesar dos constrangimentos de conservação já referidos, temos uma base de informação que nos permite compreender o modo e o tempo de ocupação antiga em Casas Novas. A extensão da área onde se preservam vestígios arqueológicos reflecte o próprio modelo de ocupação do sítio, de carácter não permanente e durante uma longa diacronia, ocupando uma larga extensão na margem esquerda do rio Sorraia. Apesar da dispersão de achados, podemos identificar uma área com maior concentração de materiais 5

Gonçalves, 2009 (data da edição, embora a impressão seja de 2010).

6

Gonçalves e Sousa, no prelo.

7

Andrade e Matias, no prelo.

8

Gibaja Bao, no prelo.


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Três tipos de áreas de fogo em Casas Novas. À esquerda, fossa de combustão de perfil cónico. À direita, fossas de pequena profundidade

e em melhor estado de conservação, correspondendo à área Este, escavada em 2010, e que se estende até ao Monte dos Pavões.

2. fossas sem sinais de combustão, possivelmente relacionadas com armazenamento ou dejecção;

Os níveis de ocupação neolítica encontram-se em estratos de matriz arenosa, consolidada, entre níveis de seixos formados em momentos da derivação do Sorraia. Estes níveis arqueológicos integram realidades interpretadas como estruturas expeditas, não permanentes. O conceito de estrutura é entendido no seu sentido mais lato, incluindo todas as possíveis evidências de construções antrópicas. A interpretação de estruturas desta cronologia é sempre complexa, pois escasseiam os sítios publicados para estabelecimento de paralelos. Podemos identificar três grandes tipos de estruturas em Casas Novas:

Foram detectadas 37 estruturas nas sondagens arqueológicas, na sua maioria áreas de combustão. Esta realidade encontra-se também documentada no levantamento geofísico, onde estão registadas dezenas de anomalias interpretadas como fossas.

1. e struturas de combustão, maioritariamente fossas escavadas no paleossolo;

3. estruturas pétreas expeditas, construídas com seixos.

O modelo de ocupação parece assim preconizar um uso não permanente, estando ausentes evidências claras de áreas habitacionais estruturadas. A cronologia de estas ocupações foi atestada através do radiocarbono, tendo sido obtidas oito datações absolutas para Casas Novas.


43

Estas datações permitem, com segurança, concluir que Casas Novas foi ocupado, ou episodicamente visitado durante uma longa diacronia, do Neolítico antigo à Idade do Ferro, provavelmente em ocupações sazonais numa praia fluvial. O conjunto de materiais ascende a mais de 1500 peças classificáveis, das quais 84% correspondem a pedra lascada. Em geral o conjunto apresenta bom estado de conservação, quer em termos dos níveis de fragmentação quer em termos da ausência de patine ou de rolamento das peças, o que permitiu algumas remontagens líticas. Por outro lado, o conjunto é muito homogéneo, sendo perfeitamente delimitadas as ocupações posteriores ao Neolítico antigo, de duração e volume sempre diminutos. Em termos gerais os registos efectuados em Casas Novas evidenciam a presença de todas as etapas da cadeia operatória microlaminar do talhe do sílex e das rochas siliciosas. A proporção das várias etapas: material de preparação e reavivamento, flancos e tablettes (7,5%), produtos de debitagem, lascas e suportes alongados (46,6%), núcleos (4,5%), material residual e utensilagem (10,2%) indica claramente que o talhe seria efectuado localmente, denunciando uma debitagem semelhante a contextos neolíticos coevos. Quanto à economia de debitagem, verifica-se que, apesar da captação local de quartzito, são relativamente raros os artefactos obtidos a partir de seixos, dominando a indústria microlaminar. Nesta, verifica-se que o sílex é maioritário, com uma grande diversidade de matérias, o que poderá indicar a exploração de redes de troca com o Maciço Calcário Estremenho. O quartzo, matéria utilizada para a produção de artefactos expeditos, está também presente. Decorre ainda o estudo técnico-tipológico, estando atestada a presença de percussão indirecta e de pressão, com núcleos prismáticos. Ao nível dos produtos de debitagem (46%), dominam as lascas e os produtos alongados, entre os quais se regista a presença maioritária de lamelas e algumas pequenas lâminas. Regista-se a presença residual de microburis.

A utensilagem corresponde a cerca de 10% do universo da pedra lascada, encontrando-se documentados os grandes grupos de utensílios retocados do Neolítico antigo,9 nomeadamente: 1. lâminas e lamelas de retoque e uso marginal; 2. lascas de retoque marginal; 3. entalhes e denticulados sobre suporte alongado; 4. entalhe ou denticulado sobre lasca; 5. furadores; 6. geométricos; 7. truncaturas; 8. fundo geral. Ao nível da utensilagem, os geométricos correspondem aos utensílios mais frequentes (50% do conjunto). Esta percentagem é claramente superior à registada em outros sítios contemporâneos, oscilando usualmente entre 8 e 12%. No sítio neolítico de Cortiçóis (Almeirim), por exemplo, a proporção de micrólitos é de 10%,10 correspondendo genericamente a segmentos. Em concheiros os valores dos geométricos são elevados, rondando a metade do conjunto dos artefactos,11 nomeadamente em Cabeço da Amoreira, onde corresponde a 42% e 56%, nos períodos I e III.12 Em Casas Novas os micrólitos geométricos são compostos quase equitativamente por trapézios (36%) e por pontas de seta transversais (33%), sendo residuais os segmentos. Esta percentagem poderá indicar um nível de especialização da ocupação relacionada com a caça e recolecção, como indicam os estudos traceológicos efectuados sobre as pontas de seta transversais. Não foram detectados sinais de lustre de cereal, mas o conjunto analisado é relativamente restrito. Para além de uma leitura de captação de matérias-primas e de funcionalidade, seria também importante 9

Sg. Carvalho, 1998.

10

Cardoso et al., 2013.

11

Carvalho, 2009, p. 44.

12

Roche, 1972.


44

1. 1. Núcleo de lamelas. Sílex oxfordiano (altura: 5,9cm) 2. Lamela (altura 6,6cm). Não retocada, mas com sinais de uso 3. Furador sobre lamela V.15-82, com retoque oblíquo e abrupto nos dois lados 4. Lamela com truncatura 5. Microburil Y.28-132, de sílex (um subproduto de talhe para a obtenção de geométricos) 6. Trapézio assimétrico, de sílex, S.2 -1 7. Trapézio assimétrico, de sílex, Y.25-5 8. Ponta de seta transversal V.15-47

2.

5.

7. 6.

3.

4.

8.

1 cm


45

correlacionar a indústria lítica de Casas Novas com os contextos mesolíticos regionais. A questão das transferências, continuidades e descontinuidades, com as comunidades mesolíticas de Muge assume particular importância: quem são as comunidades que habitaram em Casas Novas? Grupos de caçadores-recolectores locais que contactaram grupos neolíticos e se “neolitizaram”? Ou grupos exógenos que se instalam na periferia do complexo de Muge?

Apesar da existência de cerâmica lisa (cerca de metade do conjunto), é a cerâmica decorada que contribui com melhores informações sobre o âmbito crono-cultural do sítio.

Aguarda-se a publicação dos estudos líticos de Muge mas, numa perspectiva geral, podemos fazer já algumas considerações. Em primeiro lugar, também no contexto mesolítico se regista a presença de sílex nos concheiros de Muge, propondo-se deslocações logísticas à margem direita do Tejo, nomeadamente a Rio Maior.13 As percentagens de geométricos na utensilagem são equivalentes entre Casas Novas e os concheiros de Muge, mas a tipologia é muito diferente. O triângulo está ausente em Casas Novas, nomeadamente o grande triângulo de perfil côncavo, tipo Muge. A ponta de seta transversal apenas surge em contextos neolíticos. Em termos técnicos, a pressão e o tratamento térmico estão presentes em Casas Novas, mas domina a percussão indirecta.

4. técnica mista, impressa e incisa;

A cerâmica decorada inclui: 1. impressa cardial; 2. impressa não cardial; 3. incisa com traços finos; 5. incisa com punto y raya, surgindo em associação com decorações impressas, incluindo motivos cardiais. Regista-se ainda a presença de elementos plásticos, nomeadamente cordões (alguns com incisões), asas e mamilos verticais. 13

Carvalho, 2009.

A cerâmica abre outros âmbitos de análise, permitindo-nos inserir Casas Novas numa escala mais ampla do processo de neolitização, quer em termos da Península Ibérica quer na esfera do Mediterrâneo Ocidental.

Fragmento de recipiente cerâmico V.15-91, com decoração mista (em cima, cardial, em baixo, linhas ziguezagueantes incisas)

Cerâmica decorada com a técnica punto y raya X.28-44


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Detalhe de fragmento cerâmico com impressões de Cerastoderma edule (berbigão)

Cerâmica decorada com a técnica punto y raya Y.28-33

Assume particular importância a presença de dois “estilos” decorativos muito diferentes: a cerâmica cardial e a cerâmica de decoração punto y raya, ou boquique. A cerâmica de decoração cardial, obtida através da impressão da concha do berbigão (Cerastoderma edule) na argila ainda fresca, encontra-se associada ao mundo dos primeiros neolíticos do Mediterrâneo, surgindo sistematicamente com as mais antigas datações de comunidades agro-pastoris do arco franco-ibérico. Em Portugal destacam-se os conjuntos cardiais da Gruta da Nascente do Rio Almonda e da Gruta do Caldeirão,14 com as mais antigas datações claramente “neolíticas” para o território português, em torno de 5480 a 4980 cal BC e 5489 a 5320 cal BC (dois sigmas), respectivamente. Dezoito fragmentos de cerâmica cardial foram recolhidos em Casas Novas. Trata-se do segundo maior conjunto de cerâmica cardial presente no actual território português. Autores como João Zilhão têm estabelecido correlação directa entre estes conjuntos e os do litoral levantino, num modelo de neolitização costeira, por pioneiros neolíticos que ocupavam os territórios menos povoados por caçadores-recolectores. Por outro lado, são particularmente relevantes os fragmentos decorados com o “estilo” punto y raya ou boquique. Trata-se de cerâmicas decoradas com linhas de impressões sobrepostas, frequentemente com

Cerâmica decorada com impressão (em cima) e traços incisos (em baixo) V.1-44

pun-cionamento e arrasto.15 Este universo decorativo apresenta uma distribuição geográfica centrada no interior da Península Ibérica, nomeadamente na Meseta, “convivendo” com a decoração cardial em áreas de fronteira, como a Estremadura portuguesa e a bacia do Tejo. A este respeito vejam-se os paralelos formais das cerâmicas de Casas Novas com La Vaquera, em Segóvia. A cerâmica decorada de Casas Novas encontra-se assim entre dois mundos, o interior peninsular e a orla sul, mediterrânica, da Península. O faseamento cronológico destas duas realidades encontra-se em discussão: alguns autores defendem a sua contemporaneidade e outros integram a cerâmica de tipo punto y raya num momento mais avançado, no chamado “neolítico antigo evoluído”.16 A datação e o conjunto artefactual descrito parecem assim indicar que a ocupação de Casas Novas corresponde aos primeiros momentos da neolitização da fachada atlântica da Península Ibérica. Podemos avançar com um modelo de ocupações curtas, sazonais, eventualmente associadas com a exploração de recursos ligados ao meio ribeirinho. Não existindo ainda outros sítios como Casas Novas na margem esquerda do Tejo, a investigação neste local confirma a importância da compreensão desta área para testar modelos de difusão do Neolítico no actual território português.


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O “mistério” da Quinta Grande Em fins do 4.º milénio, inícios do 3.º, alguém construiu no que é hoje a Quinta Grande, no limite com a Herdade do Monte da Barca, uma sepultura colectiva de grandes dimensões, que foi usada para a deposição de, pelo menos, 30 indivíduos. Reconhecidos foram 29, com placas de xisto gravadas ao peito, e um com uma placa lisa (teria sido pintada ou simplesmente terá ficado por gravar?). Quatro, se não mais, desses indivíduos seriam também acompanhados por báculos de xisto gravados, presumíveis indicadores de funções de chefia, cumulativos ou não com as placas. Esta situação foi detectada por arqueólogos amadores, aquando da construção de um silo da Cooperativa Agrícola do Vale do Sorraia, que arrasou completamente o monumento ou sítio. Por razões diversas, todas elas de louvar, a maior parte do espólio arqueológico deu entrada no Museu Municipal de Coruche, onde se juntaram ainda outros artefactos da mesma origem, recuperados pelo Dr. Dionísio Mendes.

Tudo o que se sabe hoje sobre este lugar da morte deve-se à leitura dos seus artefactos votivos,17 uma vez que não resta qualquer traço do que poderia ter sido a sua arquitectura. É muito pouco provável que se tratasse de um monumento megalítico típico. E ainda mais ilegítimo que se tire essa conclusão a partir das placas de xisto gravadas, uma vez que elas aparecem em antas, de uma maneira largamente maioritária, é certo, mas também em grutas naturais e artificiais, em monumentos híbridos, em tholoi... Na lista de datações de radiocarbono que a Uniarq obteve para sítios do concelho, não muito distantes, existem várias de fins do 4.º milénio e da primeira metade do 3.º que se referem a sítios que foram frequentados pelos vivos que estariam mortos depois, na Quinta Grande... 14

Zilhão, 2001.

15

Alday e Moral, 2011.

16

Carvalho, 2011, p. 32.

17

Gonçalves, 2011.

Quinta Grande. Em segundo plano, instalações da antiga cooperativa agrícola. Durante a sua construção foi aqui localizado um sítio funerário da transição do 4.º para o 3.º milénio a.n.e.


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Junto ao Sorraia de Coruche não resta, entretanto, quase nada deste tempo. Se as cerâmicas, no entanto, recordam o Alto Alentejo, e é quase tudo, as placas mereceram recentemente um parágrafo que as coloca na sua situação possível: “Os motivos e as similitudes entre as placas de Monte da Barca, das antas de Coruche, de Elvas, de Reguengos de Monsaraz, de Ponte de Sor, Mora, e de outros monumentos e sítios do Centro e Sul de Portugal, mostram a pujança de um subsistema mágico-religioso Uma notável placa de xisto gravada, pertencente ao grupo das placas com “orelhas de coelho” Outra notável placa, com uma pouco comum “cabeça dentro da cabeça”

1 cm

e a dispersão dos produtos fabricados por artesãos cuja deslocação aos sítios era quase inevitável. E, numa situação destas, as figuras representadas nas placas de xisto gravadas não poderiam ser de um antepassado local, mas antes de uma figura supralocal, naturalmente uma figura teomórfica.”18


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Em meados do 3.º milénio a.n.e.: a quinta calcolítica do Cabeço do Pé da Erra Escavado nos primeiros anos da década de 80 do século 20, e com novos trabalhos a decorrer em 2011, continuando até 2014, o Cabeço do Pé da Erra é hoje uma fonte de informação única sobre as pequenas quintas de arqueometalurgistas do cobre da segunda metade do 3.º milénio a.n.e. Hoje, sabemos já que se tratava: 1. de uma quinta de ocupação pouco densa, talvez 15 habitantes no máximo, contando com os subadultos; 2. a área de povoamento era constituída por cabanas em arco de círculo, com a base de pedra e as paredes de argila amassada; 3. incluía uma cabana (a n.º 7) completamente circular, mas, fora isso, construída como as outras; 4. na parte a sul da quinta, dominando o Sorraia, localizava-se uma área de trabalho com traços de actividade relacionada com a farinação, com a fazedura de queijos, com a recuperação de sal, com sinais de armaze-

namento de líquidos e sólidos em grandes vasos, uns lisos, outros decorados com motivos do grupo folha de acácia; 5. na área de escavação designada por H.14-15 descobriu-se uma bateria de cozinha constituída por vasos de várias formas e tamanhos e por dois “ídolos de cornos”; um dos recipientes era um copo decorado, idêntico aos identificados nas penínsulas de Lisboa e Setúbal; 6. adossada à cabana 7, foi identificada uma área de combustão associada à metalurgia do cobre; 7. a área de habitação e trabalho do Cabeço do Pé da Erra era protegida por um fosso em U que, em dado momento, foi entulhado e depois reconstruído. Do seu interior foram recolhidos materiais arqueológicos de interesse e, no fundo, foram encontrados restos de uma deposição, provavelmente votiva, de um Bos primigenius, o auroque, antepassado de todos os bovídeos “portugueses” actuais. 18

Gonçalves, 2011, p. 137.

Aspecto do Cabeço do Pé da Erra, visto da estrada que liga Coruche à Erra


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Uma concentração de fragmentos de queijeiras, na área de trabalho a sul das cabanas

Grande fragmento de um pote de cerâmica do grupo folha de acácia E.17-90

Grande fragmento de um vaso esférico B.14-147 com decoração do grupo folha de acácia, variante com triângulos preenchidos

Típicas folhas de acácia, impressas num fragmento recolhido junto à cozinha H.14/H.15, H.14-73

Fragmento de cerâmica com decoração do grupo folha de acácia


51

O conjunto de artefactos identificados na escavação evidencia vários aspectos da sociedade daquela época. A nível geral são evidentes os contactos entre o Alto Alentejo e as penínsulas de Lisboa e Setúbal, por Coruche. É o caso das cerâmicas do grupo folha de acácia, muito bem representado aqui. Ou do sílex, com a mesma proveniência, ou das rochas duras, provavelmente trazidas de Elvas. Ou do xisto, de cerca de 15km. Ou do granito, transportado do sul do actual concelho. A pedra lascada era maioritariamente talhada em rochas locais, mas há também artefactos de sílex, cuja matéria-prima foi importada do litoral, porém trabalhada no sítio. A pedra lascada está representada por dezenas de pontas de seta, muitas de xisto jaspóide, que se encontra à superfície ou foi arrastado pelo Sorraia. Mas há também lâminas, lamelas, furadores, raspadeiras e outros artefactos. A pedra afeiçoada consiste em percutores de quartzo ou de rochas duras, mós manuais (dormentes e moventes), geralmente de granito. Alguns dormentes foram reaproveitados como suporte ou bigorna em operações de martelagem. A pedra polida não é muito abundante, mas inclui os habituais machados e enxós polidos. A cerâmica constitui uma preciosa fonte de informação para o conhecimento deste pequeno grupo. As formas e as decorações são típicas das penínsulas de Lisboa e Setúbal, particularmente as do grupo das cerâmicas decoradas com folhas de acácia ou crucífera ou ainda com grandes triângulos preenchidos com caneluras oblíquas. Até ao momento, e ao contrário do Barranco do Farinheiro, não se encontrou aqui qualquer cerâmica campaniforme. No que se refere à cerâmica de uso comum, a grande descoberta no Cabeço do Pé da Erra foi uma bateria de cozinha, com vasos de vários formatos e tipologias, encontrados em torno a uma área de fogueira (quadrados de escavação H.14 e H.15). Quando o sítio foi abandonado as cerâmicas ficaram exactamente onde estavam e uma minuciosa operação de escavação permitiu reconstituir a sua posição e datá-las pelo radiocarbono.

Levantamento topográfico das áreas intervencionadas desde 1981 pelo Centro de Arqueologia da Universidade de Lisboa, no âmbito do projecto ANSOR (A Antropização do Vale do Sorraia). A Área 2 é uma área aberta, praticamente sem estruturas, afora um extenso derrube de argila e alguns pontos de combustão. É na Área 1 que se concentra a esmagadora evidência da acção humana, estruturada ou não. As cabanas semicirculares, e a única cabana circular, é aqui que se concentram, bem como uma área de trabalho doméstico virada para o Sorraia

Artefactos de cerâmica, como pesos de tear ou “ídolos de cornos”, foram também recolhidos. Os primeiros têm que ver com a tecelagem e são de diferentes tipos, tanto os mais comuns no litoral como os típicos do Alentejo.


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Concentração das actividades arqueológicas em torno à cabana 7

Imagem mista, orto referenciada, do corte ocidental do fosso de protecção que rodeava a quinta da Idade do Cobre do Cabeço do Pé da Erra. São visíveis as duas fases que implicaram a sobreposição de dois fossos parcialmente com o mesmo traçado

Cozinha de H.14/ H.15. O “ídolo de cornos” H.14-99, na altura em que foi retirado do terreno


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Os “ídolos de cornos”, inicialmente interpretados como representações de divindades, são hoje maioritariamente considerados artefactos de uso doméstico relacionados com as artes da cozinha. Mas nestas coisas nada é certo e são precisos mais estudos para que as novas interpretações se afirmem viáveis. Para já, quer no Alto Algarve Oriental quer no Alentejo, aparecem sempre junto a estruturas de combustão, fornos ou fogueiras. No sítio de Xarez 12, junto ao Guadiana, o mesmo acontece.19 E só na região de Badajoz apareceram com gravações simbólicas, o que não afasta uma sua interpretação funcional. Os artefactos para adorno pessoal são exclusivamente contas discóides, de pedra verde, cuja matéria-prima está ainda em estudo. A arqueometalurgia do cobre está bem representada, pela área de combustão para fusão do metal e por alguns cadinhos, mas os artefactos recolhidos são todos de pequena dimensão, peças pouco características, e alguns furadores. Provavelmente as peças maiores, machados e enxós, teriam sido trocadas com outras comunidades. No que diz respeito ao fosso defensivo, há eventualmente que integrá-lo na problemática da agitação social que se agudiza na segunda metade do 3.º milénio a.n.e. Com efeito, entre 2500 e 2000 antes da nossa era, o território no centro e sul do que é hoje Portugal parece ter sido agitado por convulsões provocadas por deslocações

de grupos humanos vindos do Sul peninsular para Ocidente. Não é novidade: a partir de 2900 ou 2800 (parâmetro máximo do intervalo de tempo em anos de calendário calibrados a dois sigmas) a instalação dos povoados fortificados e as arquitecturas dos dispositivos defensivos podem ser lidos como implicando conflitos entre indígenas e “colonizadores”. E todo o 3.º milénio é assim marcado por um elevado grau de conflitualidade. Se estes são os artefactos e estruturas principais, que dizer das “situações”, dos componentes activos da sociedade? Pesca Nenhum vestígio directo do consumo de peixe (espinhas, vértebras, escamas, dentes...) foi até agora identificado nas escavações do Cabeço do Pé da Erra. Nem anzóis, tão comuns em povoados da Idade do Cobre. Mas seria impossível, com o rio tão perto, que não se pescasse. Caça Com a grande acidez do solo, raros são os ossos recolhidos neste sítio, mas as pontas de seta, para além das funções defensivas e ofensivas que têm, são, nesta época, indispensáveis para a caça. No Cabeço são maioritariamente de xisto jaspóide, más para a caça ao javali, bicho hirsuto e de pele rija, mas adequadas para a caça aos cervídeos e aos coelhos ou lebres. 19

Gonçalves, Sousa e Marchand, 2013.

Ponta de seta de xisto jaspóide Esboço inacabado de ponta de seta de xisto jaspóide, com base pronunciadamente côncava Ponta de seta de base recta, de xisto misto (H’.7-2)

1 cm


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Agricultura Curiosamente, não há muitos artefactos de sílex que possam ser interpretados como componentes de foice, mas temos uma grande quantidade de mós manuais, dormentes e moventes, os primeiros sempre de granito, e alguns bem pesados, que tiveram de ser transportados de longe. Os segundos são, por vezes, de melhor qualidade, de rochas duras. Temos aqui uma importante tarefa de farinação. Claro que não sabemos se o pão era feito de trigo ou bolota,

o que é muito diferente. Mas as sanduíches foram inventadas por um inglês excêntrico e visionário, não em Coruche... O pão de bolota dispensa uma agricultura específica e é fácil de obter matéria-prima num ambiente de montado. Ao mesmo tempo, a cerâmica indica uma importante mudança na dieta das gentes do 3.º milénio a.n.e., com a presença de papas, guisados ou ensopados.20 O duro pão de bolota amaciava certamente com o molho das carnes assim cozinhadas... 20

Componente de mó manual: o dormente F.14-6. Apresenta, em ambos lados, traços de ter sido usado como bigorna

Gonçalves, 1989.

Retirada dos vasos da cozinha de H.14/H.15

Alisador-percutor H.14-18 (gabro-diorito?) encontrado dentro do vaso H.14-6, em plena área da cozinha

Copo H.14-40, idêntico aos das penínsulas de Lisboa e Setúbal. Apesar de as superfícies estarem muito erodidas, são ainda visíveis traços da decoração original

Cozinha de H.14/H.15. O vaso H.14-6, restaurado no Museu Nacional de Arqueologia

Cena de moagem


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Tecelagem As noites são frias em Coruche e o clima não mudou muito até hoje, ainda que tenha certamente variado ao longo de ciclos mal conhecidos. O fabrico de roupa e de mantas, substituindo a pele curtida de animais, está amplamente documentado pelos pesos de tear ou afastadores de lissos. Mas o que é interessante no Cabeço é o facto de eles, pelas suas formas, representarem várias tradições de tecelagem, estando presentes os maciços pesos das penínsulas de Lisboa e Setúbal, mas também os pesos rectangulares pouco espessos, ou mesmo os pesos em forma de linguiça, típicos do Alentejo e do Alto Algarve Oriental. Mais uma vez, Coruche como uma encruzilhada de redes de trocas entre o interior e o litoral.

Um dos pesos de tear típicos das penínsulas de Lisboa e Setúbal, no momento em que foi identificado

Talhe da pedra Se não existia sílex junto ao Sorraia médio, havia que o ir buscar, por exemplo, a Rio Maior, passando de uma margem para a outra. Nada de novo: milhares de anos antes, durante todo o Mesolítico, tanto em Salvaterra como no Paul de Magos, há muitos quilos de sílex trazido de fora. E o talhe local de blocos de sílex exógenos é uma realidade.

No Cabeço do Pé da Erra os restos de talhe (também chamados subprodutos) são abundantes e prova claríssima de que os artefactos (quer de xisto jaspóide quer de sílex) eram aí talhados e retocados. O traçado e a construção das casas Não existem reconstituições fiáveis para as “casas” de esta época, salvo longe, em Los Millares, na Andaluzia, a 17km de Almería. Basicamente sabemos que se usavam pedras locais para fazer alicerces em arcos de círculo, a partir dos quais se erguia uma estrutura de madeira ou canas, presumivelmente em forma de cúpula, que era recoberta por argila, que secava ao sol. Estas estruturas exigem reparações frequentes, sobretudo após o período das chuvas, mas são relativamente duradouras e eficazes. No Cabeço do Pé da Erra uma única “casa” (a cabana n.º 7) não segue este padrão, sendo o círculo apenas interrompido para o espaço da porta. Que quer isto dizer? Diferenciação social? A “casa” do chefe? Um espaço de uso diferente? Em 2014 ainda não sabemos... O papel do comércio Claro que, tal como para dançar o tango são precisos dois, para haver comércio têm que existir necessidades complementares. O lendário sal de Setúbal ia para as grandes pescarias de arenques do Mar do Norte. Num lado (e a longa distância) havia arenques e a necessidade de os salgar. No outro um excelente sal. Não era por isso que se falava flamengo em Setúbal ou português no Báltico. Mas não era isso que impedia a troca de se efectuar. Entre o sílex do litoral e as pedras duras, indispensáveis para machados, enxós e goivas, ficavam os antepassados da actual Coruche. Uma rede de povoamento junto ao Sorraia? Esta é uma questão impossível de tratar aqui, por falta de dados e, sobretudo, espaço. Mas, pessoalmente, estou convencido que o Cabeço do Pé da Erra (tal como o Monte dos Lacraus) é uma das quintas da segunda metade do 3.º milénio criadas como satélites do grande sítio do Barranco do Farinheiro. Mas, neste, as escavações são quase


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impossíveis, devido à presença de árvores espalhadas, um pouco anarquicamente, por todo o lado. As sondagens evidenciaram uma situação de difícil interpretação, pelo que nem todos os argumentos são fiáveis. Contudo, um arqueólogo sem intuição não é mais que um contabilista (apesar desta profissão ser tão legítima como outra qualquer...). O que vemos ainda permite deduções, que não são despiciendas.

Arqueologia em construção: o Barranco do Farinheiro O Barranco do Farinheiro, na sua área pré-histórica, era um sítio completamente invisível e estava inédito. A equipa da Uniarq só o identificou quando batia as barreiras verticais formadas pelos derrubes e escorregamentos de areias nas áreas mais expostas dos Barrancos. É um

A localização de Barranco do Farinheiro, aberto a sul

exemplo da enorme dificuldade em encontrar ou localizar, na sequência de acções de busca, sítios como este, com fossos e fossas indetectáveis pela geofísica, que não resulta num subsolo crivado de raízes de árvores. A imagem do corte mostra bem a espessa sedimentação que cobria o sítio e as razões para a invisibilidade referida. O Barranco do Farinheiro, devido a fenómenos pós deposicionais que vêm até aos nossos dias, é hoje um dos sítios com menor área escavada e maior colecção de problemas em aberto. Foi sucessivamente interpretado como um fosso, que protegia um sítio de povoamento, uma fossa-depósito de artefactos, uma fossa dentro de um fosso ou ainda uma eventual porta de acesso ao interior de um povoado. Se uma simples estrutura negativa regista tantas dúvidas, os materiais recolhidos ainda mais, parecendo corresponder a duas fases diferentes,


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O corte natural, descoberto em 2012, e que permitiu a identificação do sítio

Desenho do corte, observando-se a sua complexa estratigrafia

sendo uma delas, a mais recente, contemporânea do Monte dos Lacraus e do Cabeço do Pé da Erra. O excelente vaso, de perfil completo, que escolhi para a vitrina do Museu de Coruche, com paralelos no Zambujal (Torres Vedras), Lexim (Mafra), Liceia (Oeiras), bem como potes do grupo folha de acácia, iguais aos da Rotura (Setúbal) e Chibanes (Palmela), permitem caracterizar cronologico-culturalmente o sítio, nesta fase, num pico positivo da arqueometalurgia do cobre, no 3.º quartel do 3.º milénio a.n.e. A fase mais recente, sem folha de acácia, ou ainda com ela, parece muito diferenciada, pela presença campaniforme. Mas pode ser uma ilusão. Apesar da pequena dimensão dos fragmentos, eles são, por agora, da fase mais evoluída do campaniforme, a dos vasos com decoração compósita ou híbrida. Mas nunca se sabe, quando se sabe tão pouco. A questão dos Barrancos do Farinheiro, falando de mais que um sítio (estratigrafia horizontal) ou de apenas um (estratigrafia vertical), é assim muito complexa e no início do desenrolar do novelo. Salva-nos a importância das datações pelo radiocarbono, que vêm, a nível local, regional e “nacional”, colocar questões há muito por resolver, tanto mais que nunca se tinham datado entre nós, com

Fragmento de pote com decoração folha de acácia B.6-46

precisão, níveis fechados com cerâmicas do grupo folha de acácia... aparentemente mais recente e com duração mais longa do que se pensava. Mas o problema dos novelos é que, uma vez desenrolados, temos de os enrolar outra vez...


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Grande esférico da família do grupo folha de acácia BFR C1-6


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Aspecto de uma das catastróficas intervenções de Manuel Heleno em antas de Coruche. Na Anta Oeste da Estrada de Montemor o monumento foi literalmente esventrado [Foto Manuel Heleno/MNA, 1933/34]

2. Mais a sul... Guardar os mortos: as sepulturas e as antas a sul, no actual concelho de Coruche Nos anos 30 do século 20 Manuel Heleno arrasou literalmente o megalitismo do concelho de Coruche. Desconhecemos as razões desta fúria ortostática: em Montemor-o-Novo sobraram antas, em Arraiolos ou Estremoz também. Mas em Coruche nem uma sobreviveu. Fala-se de monumentos perdidos, um deles referido mesmo por Margarida Ribeiro, mas são provavelmente mitos rurais. Por todo o diversificado e interessante megalitismo ortostático de Coruche passou um tsunami de dimensões impressionantes: as câmaras e os corredores dos monumentos foram literalmente esvaziados à picareta grande, não há traços de crivos e as próprias notas dos Cadernos de Campo estão quase vazias de informação utilizável. Mais de 30 anos antes, em fins do século 19, Santos Rocha tinha escavado muito melhor. Mas comecemos pelo princípio: como são as sepulturas onde se depositavam os mortos do 4.º e do 3.º milénios antes da nossa era?

É muito possível que, na primeira metade do 4.º milénio, as sepulturas, ditas megalíticas, de megalítico tivessem muito pouco. Eram simples sepulturas de pedras fincadas no chão e rodeando o morto, o todo coberto por uma estrutura tumular de terra e pedras. O morto era normalmente acompanhado por geométricos de sílex (trapézios) e instrumentos de pedra polida – machados, enxós, goivas... A cerâmica estava ausente destes conjuntos muito pouco variados. A partir de meados do 4.º milénio (3500 antes da nossa era) as antas, inicialmente pequenas e rapidamente construídas, representam lugares de uso funerário para um grupo diminuto de indígenas, que faz acompanhar os seus mortos por um número relativamente reduzido de artefactos votivos, mas agora também com cerâmicas. Alguns desses monumentos são reutilizados maciçamente a partir de 3200 a.n.e. pelos adeptos de um novo complexo mágico-religioso, que usam figurações da Deusa, gravadas em placas de grés e xisto. Por volta de 2800 a.n.e. juntam-se aos motivos geométricos das placas de xisto representações de uma nova figura, pertencente à mitologia mediterrânica de base: o Jovem


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Deus, muito provavelmente trazido pelos arqueometalurgistas do sul da Península Ibérica. A partir de 2500 já não se constroem antas, mas as antigas continuam a ser reutilizadas, até mesmo na Idade do Bronze. O ponto (ou pontos) de origem das placas de xisto gravadas encontra-se no Alentejo médio, na linha Reguengos de Monsaraz-Évora-Montemor, onde os monumentos chegam a ter mais de 100 placas, correspondendo o conjunto a número mínimo de mortos. Um monumento, a Anta 1 do Paço de Aragão, tem mesmo mais de 200. Quanto às arquitecturas, há os pequenos sepulcros, constituídos apenas por uma câmara funerária, e os que incluem um corredor de acesso à câmara. Estes corredores parecem ter sido inicialmente curtos, apenas com um ou dois esteios de cada lado, mas, numa fase ainda mal conhecida, chegam a atingir os 14 ou 16 metros (Antas 1 e 2 do Olival da Pega, Anta 2 dos Cebolinhos, Anta Grande do Zambujeiro e a notável Anta da Comenda da Igreja).

Anta do Tanque Velho, na actualidade

Temos assim uma situação muito mais complexa do que parece a um primeiro olhar, até porque o número e a diversidade dos artefactos votivos colocados junto aos mortos muda muito com as regiões e o tempo, sendo bem diferenciado entre os conjuntos dos monumentos mais simples e os das arquitecturas mais complexas. E em Coruche? Bem, que se saiba não há um único monumento megalítico stricto sensu no norte do actual concelho de Coruche. Como vimos atrás, é muito pouco provável que o “Monte da Barca” tenha sido uma anta, provavelmente teria sido um sepulcro de tipo hipogeu, ou mesmo híbrido, e o local da sua implantação não corresponde à dos monumentos megalíticos ortostáticos. Não há ali nem granito nem xisto, matérias-primas alternativas na construção de antas resistentes e duráveis...


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Temos assim o sul do actual concelho, onde os monumentos megalíticos se agrupam num número que muito provavelmente ultrapassaria por pouco as três dezenas. Analisando as suas arquitecturas e conteúdos, obtemos duas categorias muito nítidas. Uma delas reuniria sepulturas antigas, como Mouchão das Azinheiras 1 e 2, Tanque do Monte, Aldeia de Bertiandos 3, Vale de Covas ou a Anta Norte de Vale de Gatos. A uma segunda fase pertenceriam Aldeia de Bertiandos 1, Vale Beiró, também chamada de Água Doce, a Anta Sul de Vale de Gatos e Tanque Velho. Em todas, as placas de xisto gravadas estão bem representadas. E as pontas de seta substituem os geométricos... Dois conjuntos artefactuais, se não mais. Gente diferente ou a mesma, evoluída? Anta de Vale Beiró, na actualidade Placa da Anta de Vale Beiró, esta com um perfil invulgarmente biconvexo Detalhe da cabeça, com ombros profundamente recortados, de placa de xisto da Anta de Vale Beiró


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Só isto? Quando as coisas parecem demasiado simples, alguns arqueólogos desconfiam. Provavelmente estamos só a ver a parte exposta do icebergue e o grosso da montanha está escondido.

O outro problema reside na ausência em Coruche, até ao momento, dos amplos mas leves e rápidos de construir tholoi, os monumentos de falsa cúpula, normalmente de xisto. Em termos teóricos não há nada que impeça a sua existência aqui. O sul do concelho tem muitos povoados desta época, a primeira metade do 3.º milénio a.n.e., e em algum lugar deveriam estar os seus mortos. Não sou futurologista, mas quando se olhar melhor os tumuli dos monumentos destruídos por Manuel Heleno algumas surpresas hão-de surgir... Como na grande anta Olival da Pega 2, em que três tholoi se anexavam ao monumento mais antigo, ou na Farisoa ou em Cebolinhos 2... Não há muitas antas em Coruche, e estão todas longe do Sorraia, pelo que voltamos ao problema já enunciado: elas são mesmo de Coruche ou parte delas é a periferia dos grupos de Mora, Ponte de Sor, Arraiolos? Como sabê-lo? A Arqueologia está cheia de incertezas e mesmo de dúvidas para as quais dificilmente haverá resposta. Lisboa, Primavera de 2014

Um artefacto não é necessariamente definido pelo suporte, mas pela sua própria existência, significado e representação. Tal como acontece em outras cerâmicas de antas desta região, e não só, os báculos não aparecem apenas talhados em xisto, mas também são representados em cerâmica. E com técnicas diferentes. É esse o caso deste pequeno vaso da Anta de Vale Beiró

Se na figura anterior se mostraram báculos aplicados sobre a superfície externa do vaso, nesta peça, proveniente da Anta Oeste da Estrada de Montemor, os báculos são representados por impressões efectuadas na perpendicular à parede externa. Os báculos são os mesmos, só a técnica usada na sua sugestão muda...

Artesão de placas de xisto

1 cm


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deuses e homens


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Os deuses e os homens: a romanização em Coruche VASCO GIL MANTAS 1

Embora eu seja mortal e efémero, se por um instante Contemplo à noite o estrelado domínio do céu Deixo de estar na terra: toco o Criador E o meu espírito vivo sorve a imortalidade Ptolomeu, Anthologia Palatina, IX, 577

1. A Romanização da região de Coruche A civilização romana, pelo menos nas suas raízes arcaicas, desenvolveu-se sobre uma ideologia religiosa que, embora distinguindo muito claramente os planos divino e humano, nunca deixou de considerar uma convivência natural entre os deuses e os homens, sem esquecer o lugar que a cada um competia na ordem das coisas, como se deduz da passagem acima, atribuída ao geógrafo Cláudio Ptolomeu, que trabalhou em Alexandria durante os governos de Adriano e Antonino Pio, quando Roma governava um território que se estendia das brumas da Escócia até às areias da Arábia. Por todo este enorme espaço se desenvolveu um estilo de vida comum, no qual as novidades se combinaram com valores ou práticas tradicionais anteriores à romanização, como aconteceu no vale do Sorraia e tentamos demonstrar nesta monografia. Para além de todas as polémicas em torno do conceito de romanização, que não pode ser interpretado hoje como foi no tempo do apogeu dos impérios coloniais europeus, sem que tal autorize visões diabolizantes ou atrevidas aproximações a determinadas realidades contemporâneas,2 é como fenómeno recíproco de aculturação consentida que pode ser mais facilmente interpretado, salvaguardando o impacto do modelo dominante, o do poder político romano.

E em Coruche como foi? Que podemos saber, sobretudo através da prática arqueológica, do quotidiano e dos ideais daqueles que aqui viveram sob a égide de Roma? Embora não subsistam vestígios imponentes, o que se justifica desde logo pelas características vincadamente rurais da região na época romana, ausência de centros urbanos antigos e reutilização intensiva de materiais, o que se vai conhecendo da presença romana ilustra a simbiose entre sagrado e profano que referimos acima. Podemos afirmar que as duas últimas décadas alteraram significativamente a imagem do que foi a região de Coruche na época romana, e isto mesmo sem recurso a um programa de prospecção sistemática, bastando comparar o conhecimento actual sobre esse período histórico com o que sobre ele escreveu Margarida Ribeiro há pouco mais de meio século.3 O número de achados romanos identificados, ainda que a maioria se situe ao longo do Sorraia, aumentou significativamente, contando-se agora por cerca de três dezenas, e mesmo a interpretação dos antecedentes antigos da vila de Coruche admite novas hipóteses. 1

Universidade de Coimbra.

2

Mattingly, 1997; Bancalari Molina, 2007.

3

Ribeiro, 1959, pp. 45-58; Quaresma e Calais, 2005, pp. 429-447.


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A importante ocupação humana que se identifica para o período pré e proto-histórico no termo concelhio, com destaque para um exuberante horizonte megalítico, sugere de imediato a mesma densidade de ocupação humana no período romano, embora com variações relacionadas com os padrões de ocupação do solo, desde logo uma relevante repartição de estabelecimentos agrícolas acima dos níveis de inundação supostos para o Sorraia e seus afluentes.4 Qual era, então, o lugar do território coruchense na Lusitânia romana? Para respondermos a esta pergunta devemos ter em conta a longa duração do domínio romano, que no referido território se estende por seis séculos. Mesmo considerando que a história estava longe de conhecer a aceleração que hoje a caracteriza, trata-se de um processo dilatado, contando com várias fases, desigualmente conhecidas. Como é habitual no território português, a maior parte dos vestígios identificados na zona de Coruche pertence cronologicamente ao período imperial, o que não exclui uma presença mais antiga, que podemos atribuir sem grandes problemas ao século II a.C., quando as forças romanas estabelecem o controlo definitivo da linha do Tejo, em particular após a vitoriosa campanha de Décimo Júnio Bruto.5 A área que hoje corresponde ao concelho de Coruche situa-se numa paisagem de transição entre o vale do Tejo e o Alto Alentejo, ainda que muito relacionada, por via da bacia hidrográfica, com a primeira destas regiões. Na verdade desempenhou sempre uma função de primeira importância nas relações dos grandes centros ribatejanos com o Alentejo, que têm em Coruche um ponto fulcral, sugerindo grande antiguidade para esta povoação. Relatos medievais e modernos garantem a permanência de eixos de comunicação estáveis e antigos, ainda que o traçado de estradas romanas nesta zona não tenha deixado vestígios seguros. É possível que na época republicana a estrada atravessasse o Sorraia para norte perto de Santa Justa do Couço ou na Erra, dirigindo-se à zona frente a Santarém, por Ponte Velha e Alto dos Cacos, deslocando-se posteriormente o seu percurso para Coruche, devido à posição dominante deste local, condições de navegabilidade do rio e relativa proximidade do vau de Escaroupim, no Tejo, que serviu até ao século XIX um dos caminhos tradicionais para o Alentejo.6

O silêncio dos itinerários e a falta de marcos miliários no terreno obriga, naturalmente, a manter reserva sobre a reconstituição da rede viária romana na região, largamente formada por estradas secundárias e caminhos vicinais. Embora Suzanne Daveau atribua à existência de uma fortaleza medieval a valorização da travessia do rio em Coruche, reconhecendo-lhe as dificuldades,7 não parece possível ignorar a existência de um estabelecimento romano no local da vila. Considerando a importância do Sorraia como via de comunicação, é de admitir que a distribuição dos estabelecimentos rurais romanos ao longo do rio (fig. 1), de franca navegabilidade a jusante de Coruche, tivesse igualmente contribuído para deslocar a travessia principal, muito particularmente considerando a existência de uma aglomeração secundária no sítio de Coruche. Como acontece quase sempre, não é lícito atribuir origem romana a nenhuma das pontes coruchenses, devendo a travessia ser feita em barca ou, nos locais adequados, através de pontes de madeira. Recentemente foi proposto que a via romana que unia Olisipo a Emerita, por Ad Septem Aras, passaria por Coruche,8 identificada como Tubucci, daí prosseguindo por Mora e Pavia para atingir, perto de Estremoz, a estrada que de Ebora se dirigia para Emerita. Na verdade, se tivermos em conta a distância sugerida por Ptolomeu, menor que a do Itinerário de Antonino, pois se limita a não mais de 24 milhas, é possível deslocar Tubucci para a Erra, sobre um caminho que, podendo remontar ao período republicano, não mostra testemunhos de utilização significativa mais recente. Aliás, se respeitarmos a indicação de distância do Itinerário, é possível situar Tubucci em Santa Justa do Couço, onde há vestígios romanos. Todavia, as dificuldades levantadas por este traçado desaconselham o lançamento de uma grande via por esta zona, cortada por numerosos cursos de água tributários do Sorraia. As aflições que a comitiva de Dom Edme de Saulieu sentiu ao perambular por esta região em 1533 ilustram bem a questão.9 Assim, embora admitindo a existência de uma estrada secundária com percurso parecido, consideramos que Tubucci, que identificamos com a Tacubis referida na Geografia de Ptolomeu, se deve procurar perto do Tejo (Ptolomeu, Geographia, II, 5), tanto mais que as distâncias


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Fig. 1 – Principais sítios e achados romanos no Vale do Sorraia (Coruche)

1. Maria do Siso 2. Vinagre 3. Mata Lobos 4. Mata Lobinhos 5. Calabre Velho 6. Romão

7. Gamas 8. Zambaninha 9. Raposeira 10. Chão Barroso 11. Cavaleiros 12. Santa Luzia

13. N. Sr.ª do Castelo 14. São Pedro 15. Quinta Grande 16. Horta dos Arcos 17. Monte do Brito/ Monte Velho 18. Carvalha

disponibilizadas pelas fontes antigas, como vimos, não permitem situá-la em Coruche. Como parece evidente, são muitos os problemas de geografia histórica lusitana que aguardam solução e os traçados viários, mesmo das grandes estradas, exigem ainda muito trabalho aos investigadores. Com estas questões complicadas da rede viária devemos relacionar o problema da localização na zona de Coruche dos Turduli Bardili, referidos por Plínio-o-Velho no século I (Plínio, Naturalis Historia, IV, 118), mas dos quais não foi possível até agora encontrar testemunhos, ou mesmo simples indícios, da presença no termo coruchense. Continuamos sem certezas quanto à tipologia do sítio de Coruche na época romana, embora se acumulem testemunhos favoráveis à existência de uma povoação dispersa entre o Monte do Castelo e a antiga zona ribeirinha da vila, onde os materiais romanos vão aparecendo. Pondo de lado a hipótese de situar em Coruche uma capital de civitas,10 devemos procurar definir em que território situar a região. De acordo com os dados contidos na obra ptolomaica, as duas possibilidades mais prováveis sugerem a sua pertença ao município de Olisipo (Lisboa) ou à colónia de Scallabis (Santarém), as cidades luso-romanas

19. Herdade do Pé da Erra 20. Azervada 21. Monte do Divor 22. Ponte do Divor 23. Águas Belas 24. Boicilhos de Baixo

25. Boicilhos do Meio 26. Vale de Águia 27. Açorda 28. S anta Justa a) Rib. de Sor b) Rib. de Raia

cujos espaços administrativos parecem confinantes e constituir o limite sudoeste do convento jurídico escalabitano. É claro que podemos admitir que a zona de Coruche não pertencesse a nenhum destes centros, podendo constituir um pagus, ou seja, um território gerido por magistrados locais e atribuído a uma cidade apenas para efeitos fiscais. Esta hipótese, considerando as características vincadamente rurais da região, não é desprezível, mas choca-se com o valor económico da zona, próxima de grandes centros de consumo e servida por fáceis comunicações. Esta circunstância é particularmente importante para as villae, pois os seus proprietários desejavam produzir excedentes para comercializar, o que só era rentável desde que o escoamento fosse viável e pouco dispendioso, aspecto 4

Arkhaios e Mantas, 2008.

5

Mantas, 1999, pp. 21-24.

6

Daveau, 1984, pp. 115-135.

7

Daveau, 1986, pp. 177-188.

8

Alarcão, 2006, pp. 239-242.

9

Bronseval, 1970, pp. 389, 414-415; Mantas, 2012a, pp. 172-174.

10

Alarcão, 1990, pp. 24-25.


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em que a via fluvial teve relevante influência. Cremos que a região de Coruche, no todo ou em parte, pertencia à área administrativa escalabitana, a qual ultrapassava o Tejo como limite. A falta de testemunhos epigráficos com indicação da tribo, ou seja, da circunscrição na qual se encontravam inscritos os cidadãos, um pouco como os eleitores dos nossos dias, complica o problema, pois a sua descoberta poderia resolvê-lo, uma vez que Scallabis pertencia à tribo Sérgia e Olisipo à tribo Galéria.11 Mas esta ausência de documentos pode mitigar-se, ainda que indirectamente, pois uma inscrição achada em tempos na Herdade de Diogo Monteiro, hoje Herdade da Torre,12 sugere que o território coruchense pertencia a Scallabis, uma vez que na epígrafe, como sucede com outros cidadãos olisiponenses em Scallabis (CIL II 327, 328), se indica Olisipo como naturalidade do falecido, circunstância que habitualmente significa origem diferente do local onde se vivia. Desta forma, a presença de olisiponenses, natural atendendo à importância política e económica do principal porto lusitano, resulta normal, não impedindo de nenhuma forma a dependência administrativa de Scallabis. O texto da epígrafe, entretanto perdida, é o seguinte: Consagrado aos deuses Manes. Aqui jaz Mário Quintiliano, filho de Quinto, natural de Olisipo, de dezoito anos de idade. Júlia Rufina, a mãe, e Mário Máximo, o pai, mandaram fazer. Que a terra te seja leve (CIL II 124 = IRCP 415). A que povo atribuir a população indígena desta região a sul do Tejo? É certo que devemos reconhecer que a determinação precisa do solar deste ou daquele grupo étnico nem sempre é fácil, como imediatamente se verifica quando se trata da questão lusitana. Embora Estrabão informe que a Lusitânia é limitada a sul pelo curso do Tejo (Estrabão, Geographia, III, 3, 1), recordamos que este geógrafo utilizou material bastante anterior, transmitindo-nos uma visão do território que reflecte sobretudo a realidade dos tempos republicanos, sem esquecer que a área administrativa designada como Lusitânia abrangia povos diversos, aliás difíceis de distinguir no registo arqueológico. Ptolomeu localiza quatro povos na Lusitânia, verificando-se que o povoamento lusitano ultrapassa o Tejo, pertencendo-lhe cidades como Aritium (Alvega),

Ammaia (São Salvador de Aramenha) e Ebora (Évora), enquanto Caetobriga (Setúbal) e Salacia (Alcácer do Sal) são atribuídas aos Turduli (Ptolomeu, Geographia, II, 5). A região de Coruche situa-se nitidamente numa zona de transição, próxima de uma área claramente túrdula, mas nada, por ora, permite considerar os seus habitantes como Turduli Bardili, atendendo inclusive às suas incontestáveis relações com o vale do Tejo. Devemos acrescentar que, sob o Império, estas questões étnicas não tinham grande importância prática, tanto mais que a província Lusitânia era uma criação artificial romana.13 Como dissemos, não são peças excepcionais as que nos ficaram como testemunho do domínio romano nestas terras coruchenses, o que deve ser interpretado como reflexo das suas características vincadamente rurais e não de eventual mediocridade regional. Não duvidamos que a continuação dos trabalhos arqueológicos e a boa colaboração dos cidadãos no registo de vestígios arqueológicos contribuirá para ampliar aquilo que hoje conhecemos.14 Mas, se os vestígios conservados no Museu podem parecer modestos, a verdade é que eles transmitem uma imagem que não deixa dúvidas quanto à plena romanização da área, expressa de forma muito válida nos pequenos testemunhos do dia-a-dia, talvez mesmo mais significativos, neste aspecto, que os grandes monumentos oficiais. Os materiais expostos no Museu Municipal de Coruche comprovam a recepção de elementos essenciais da civilização romana por parte da sociedade indígena da região, através de práticas e de objectos considerados representativos do que já se designou como o roman way of life. São estes objectos, quase sempre fragmentados e desligados do seu contexto próprio, que permitem reconhecer modas, fluxos comerciais, atitudes mentais e estruturas sociais. Por muito modestos que nos possam parecer, são eles que permitem saber alguma coisa sobre os deuses e os homens que lhes prestaram culto neste rincão da Lusitânia, muitos séculos antes da formação da nossa nacionalidade, da qual constituíram um dos fermentos através da forte marca latina que receberam e absorveram. Ainda que tardem as escavações que um dia porão a descoberto os restos das villae que aqui existiram,


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ficamos com a impressão de uma romanização pacífica, que se desenvolveu ao ritmo de velhos ritos agrícolas, onde as divindades indígenas se associaram às novidades romanas, afinal facilmente assimiláveis na maioria, pois estamos perante sociedades da Idade do Ferro indo-europeia, com numerosos pontos de contacto entre si, para além de existir uma já longa tradição de influência mediterrânica.15 Por tudo isto não nos é difícil imaginar os habitantes da região como laboriosos agricultores e criadores, senhores ou simples trabalhadores das propriedades que a romanização introduziu com um novo padrão de povoamento, as villae, no que podemos reconhecer uma imagem próxima da actual. O mundo romano era muito vasto e os seus espaços só podiam ser vencidos com os meios limitados que se prolongaram até à Revolução Industrial: em terra o passo do homem e do animal, sobre as águas a força do vento ou dos braços dos remadores. As grandes viagens duravam meses e as dificuldades eram muitas, mas este mundo enorme, povoado por gentes de tantas línguas e costumes, reconhecia-se como romano, com o Latim no Ocidente como grande veículo de comunicação, que encontramos utilizado por estratos populacionais muito humildes, como acontece nalgumas padieiras de porta da Citânia de Briteiros ou nos grafitos dos tijolos de Conímbriga, sem esquecer o fragmento de vaso achado em Santa Luzia, bem perto de Coruche, onde alguém gravou uma eloquente expressão de estímulo à bebida.16 No universo pacificado por Roma, após violências incontáveis e administração musculada, é preciso reconhecê -lo, talvez o factor mais digno de sublinhar hoje seja o da eficiente construção, alheia às dificuldades impostas pela imensidão territorial, de uma comunidade de costumes e de destino, que reconhecemos tanto nas margens do Sorraia, cujo nome antigo continuamos a ignorar, como no Tamisa ou no Danúbio, através de testemunhos semelhantes aos do Museu Municipal de Coruche. Vivemos uma época conturbada, pelo que aqui lembramos as palavras do filósofo Epítecto, que foi infeliz escravo de um secretário de Nero, que nos ajudam a compreender as razões do êxito romano: “César conquistou para nós uma paz profunda. Não há guerras, nem batalhas, nem ladrões,

nem piratas, e podemos viajar a todas as horas e navegar de Oriente a Ocidente” (Epicteto, III, 13, 9).

2. Materiais arquitectónicos de Nossa Senhora do Castelo Os arquitectos romanos reuniam funções que se especializaram e que hoje se repartem por arquitectos, engenheiros e mestres-de-obra. Conhece-se um número relativamente pequeno destes profissionais romanos, em parte devido ao facto de que na sociedade romana importava mais quem pagava ou ordenava a construção da obra do que o responsável pela sua execução,17 o que levou alguns deles a “assinarem” as obras através de subterfúgios, principalmente de tipo religioso, como aconteceu com C. Iulius Lacer, na Ponte de Alcântara (CIL II 761), e C. Sevius Lupus, no Farol da Corunha (CIL II 2559). Apesar da reconhecida importância da arquitectura na civilização romana, só chegou até aos nossos dias um tratado sobre a matéria, redigido nos primeiros anos do Império por M. Vitruvius Pollio, tratado que teve enorme influência na arquitectura do Renascimento e do Iluminismo. Curiosamente, este arquitecto transmitiu uma imagem da arquitectura romana que se pode considerar bastante conservadora para a época da redacção da De Architectura, obra que apesar disso se revela hoje insubstituível para a reconstituição de edifícios romanos, mesmo quando muito destruídos.18 Os arquitectos romanos construíram com recurso a várias ordens, com regras e harmonias pré-definidas, cada uma das quais com as suas colunas próprias, em parte de origem grega. Na época imperial a mais importante foi a ordem coríntia, caracterizada por capitéis de exuberante 11

Wiegels, 1985, pp. 82-86.

12

Mantas, 2008, pp. 77-83.

13

Guerra, 2010, pp. 81-98; Mantas, 2012a, pp. 27-30.

14

Mantas, 2001, pp. 53-69.

15

Curado, 2003, pp. 71-77; Arruda e Vilaça, 2004, pp. 11-45.

16

Mantas, 2008, pp. 90-93.

17

Wheeler, 1964, pp. 8-10.

18

Maciel, 2006; Alarcão, Étienne e Golvin, 1978, pp. 5-14.


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Considerando as suas dimensões, a base e o capitel podem ter pertencido, com um pequeno ajustamento, à mesma coluna, que poderia ter o fuste de tijolo, como é muito frequente, inclusive em monumentos importantes, como na palaestra do teatro romano de Mérida. Com efeito, os edifícios romanos combinaram, por razões diversas, normalmente económicas ou por falta de material em quantidade e qualidade, materiais diferentes nas suas colunas, como sucedeu, por exemplo, no templo dito de Diana, em Évora, que possui bases e capitéis de material idêntico, neste caso mármore, enquanto os fustes são de granito. Assim, pensamos estar perante vestígios pertencentes a edifício de arquitectura sofisticada sobre o qual estamos reduzidos a conjecturas. Todavia, atendendo à qualidade das peças em questão, e à dimensão assinalável de alguns silhares reutilizados no exterior da igreja, podemos considerar a hipótese de ter existido um templete na plataforma que viria a ser ocupada pelo santuário cristão. Fig. 2 – Capitel coríntio de Nossa Senhora do Castelo

decoração de folhas de acanto. No recinto de Nossa Senhora do Castelo, com outros restos arquitectónicos, nomeadamente silhares de grandes dimensões reutilizados na igreja, achou-se um capitel coríntio (fig. 2), de calcário, cujas dimensões, recorrendo ao cânone vitruviano para esta ordem (Vitrúvio, De Architectura, IV, 2-12), permitem atribuir à coluna completa (base-fuste-capitel) uma altura de 4,56 metros, pertencendo a um edifício de razoáveis dimensões, ao qual terá pertencido igualmente a base ática encontrada no mesmo local. Parece-nos importante sublinhar que este tipo de capitel coríntio tem raros paralelos em Portugal, apenas registados na região de Beja,19 sugerindo uma datação próxima dos finais do século I, evidenciando relações com as áreas mais cedo romanizadas no território lusitano. Problema mais difícil de resolver é o da determinação do tipo de edifício a que estes materiais pertenceram e como classificar o estabelecimento romano que existiu em Coruche, nomeadamente na área posteriormente ocupada pelo desaparecido castelo e pela igreja que lhe sucedeu.

É verdade que a prospecção geofísica realizada na área em 2000 não permitiu identificar restos de construções,20 circunstância que teria sido mais difícil de acontecer caso aqui tivesse existido uma villa. Não cremos, apesar da prática habitual na região de reutilizar a pedra de construções anteriores, que os referidos materiais tivessem sido trazidos de outro local, pelo que a localização de um pequeno edifício de culto romano neste espaço, privilegiado do ponto de vista topográfico e paisagístico, parece aceitável. A presença de uma villa no terreiro de Nossa Senhora do Castelo, a ter existido, deveria produzir mais vestígios identificáveis, ainda que se possa invocar a presença da inscrição funerária de Menelau a favor de tal hipótese. Porém, como as necrópoles ficavam normalmente ao longo dos caminhos, cremos ser essa a razão a que se deve o achado da referida epígrafe, uma vez que passaria uma estrada nas cercanias. O tosco pé em pedra que aqui se encontrou, embora difícil de datar, parece apoiar a possibilidade da presença de um local de culto, pois tais peças ocorrem com alguma frequência em contextos religiosos romanos de influência oriental.21 Outro problema que se levanta é o de determinar que relação existe, se existe, entre a zona de Nossa Senhora


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do Castelo e a origem da povoação de Coruche. Apesar de várias tentativas que já incluíram pelo menos duas fases de sondagens, continuam escassos os vestígios arqueológicos atribuíveis a uma povoação, como vimos, circunstância que se repete também quanto ao castelo medieval. Todavia, achados dispersos na zona baixa da vila e outros registados na escavação de emergência efectuada junto à igreja de São Pedro22 demonstram a existência de um estabelecimento romano em Coruche, de tipologia indefinida mas que poderá corresponder a uma povoação, já existente nos inícios do século I. Porém, ainda é cedo para considerar esta questão resolvida, embora a continuidade de ocupação do local sugira que assim foi, tanto mais que o sítio de Santa Luzia, relativamente vasto e não muito longe, tanto pode corresponder a uma grande villa como a um vicus. Novos achados e algumas sondagens criteriosamente seleccionadas ajudarão a resolver esta e outras dúvidas, suscitando, provavelmente, novas questões.

3. Expressões religiosas luso-romanas na região de Coruche A religião romana, politeísta como a esmagadora maioria das religiões da Antiguidade, contava com grande número de divindades, organizadas de acordo com uma hierarquia, no topo da qual se encontrava um pequeno grupo de seis deuses e seis deusas, de origem itálica mas cedo helenizado devido aos contactos com o mundo grego, os chamados Dii Consentes. Destes, os mais importantes eram Júpiter, Juno e Minerva, a Tríade Capitolina,23 assim denominada devido ao facto do seu templo principal, de longínqua origem etrusca, se situar na colina do Capitólio, na cidade de Roma, onde sobreviveu pelo menos até ao século VI (Cassiodoro, Variae, VII, 6). Racionalizar um panteão tão rico em divindades maiores e menores e em relatos mitológicos era muito difícil, problema que os Romanos enfrentaram com o seu habitual pragmatismo, quer através da interpretatio, uma espécie de equivalência concedida às divindades estranhas que foram incorporando no seu mundo religioso à medida que a expansão territorial avançava, quer atribuindo-lhes funções

especializadas, relacionadas com aspectos particulares, como tantas vezes sucedeu com a maioria das divindades menores.24 Assim, por exemplo, Abeona era a divindade que acompanhava as crianças na saída de casa e Adeona a que as acompanhava no regresso (Horácio, Ars Poetica, 323-32). Parte das divindades romanas correspondia a abstrações, com muita frequência relacionadas com os cultos cívicos em que se apoiava a estrutura político-social da cidade antiga, como a Vitória ou a Concórdia, ou de interesse mais geral, como a Saúde, ou ainda a entidades que tutelavam locais, caso dos Génios ou dos Lares. O culto imperial, eminentemente político e unificador, conheceu grande expansão, vindo a constituir um dos pontos fulcrais da posição oficial contrária ao Cristianismo. A reconhecida tolerância religiosa romana garantiu a sobrevivência de inúmeras divindades indígenas, como aconteceu no território ora português, onde se conhecem, ainda que a maior parte apenas pelo nome, muitas dezenas, registadas através de inscrições que as nomeiam, maioritariamente datáveis do século II. Sublinhamos que os fiéis destas divindades não eram apenas modestos indígenas, pois entre aqueles não rareiam itálicos de origem e representantes dos grupos mais romanizados da sociedade provincial, como se verifica, por exemplo, através das numerosas inscrições do santuário de Endovélico, no Alentejo.25 O culto funerário dos Deuses Manes era importante, assim como o das divindades domésticas, Lares e Penates. Todavia, numa sociedade de forte base rural era vulgar o culto de divindades campestres, antigas e misteriosas, em santuários dispersos na natureza, como o que existiu em Santa Justa do Couço (fig. 3). A árula de Santa Justa do Couço, romana na forma e característica das práticas 19

Ribeiro, 1999, pp. 191-199.

20

Posselt, 2000.

21

Alvar, 2012, p. 39-40.

22

Quaresma e Calais, 2005, p.429-430.

23

Martin, 1995, pp. 154-156, 170.

24

Lehman, 1981, pp. 58-59.

25

Encarnação, 1984, pp. 561-629; Guerra, 2003, pp. 415-479.


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de culto de então, reflecte o cumprimento de um voto feito a uma divindade que se pensa ser Carneus, protectora de rebanhos e de pastores.26 O ofertante é um homem que se identifica através do esquema onomástico característico das populações indígenas ainda pouco romanizadas, célticas (fig. 4). A divindade a que prestou culto contava com um grande santuário perto de Arraiolos, em Santana do Campo, a Calantica da antiguidade.27 Eis o texto da inscrição: “Consagrado a Carneu Calanticense. Por voto, Papo (?), filho de Talonto, cumpriu de boa vontade a sua promessa.” Fig. 3 – Igreja de Santa Justa do Couço, provável sucessora de um santuário pagão (Heraldo Bento)

A invulgar tolerância demonstrada pelos Romanos chocou-se, por razões essencialmente de ordem política, com os cultos monoteístas que, pelas suas características específicas, não se enquadravam na estrutura religiosa da Antiguidade Clássica, caso do Judaísmo e do Cristianismo, que as autoridades romanas tiveram dificuldade em distinguir durante o Alto Império. Como é evidente, a orientalização progressiva das estruturas políticas do Império e o peso crescente do sector cristão da sociedade romana, sobretudo a partir dos inícios do século IV, alteraram radicalmente a situação,28 ainda que nos meios mais afastados dos grandes centros urbanos e no imenso mundo rural de então a sobrevivência das crenças antigas tivesse ultrapassado o fim político do Império, a ponto dos seus habitantes, os pagani, terem originado o nome genérico atribuído aos que não seguiam o Cristianismo. Os cultos funerários deixaram também vestígios na região de Coruche. As necrópoles romanas situavam-se fora das povoações ou nas proximidades dos estabelecimentos rurais, frequentemente ao longo das estradas. Contavam com grande diversidade de monumentos, incluindo ricos mausoléus ou modestos cipos, cujas inscrições mais ou menos normalizadas facultam importantes informações sobre a estrutura social e demografia da época. No concelho de Coruche conhecem-se raras inscrições funerárias, em parte devido à reutilização das pedras, uma achada no recinto de Nossa Senhora do Castelo e outra, hoje perdida, levada da Herdade de Diogo Monteiro (Monte da Torre) para Coruche. Era normal decorar as faces laterais dos cipos ou aras com representações de instrumentos litúrgicos, como a pátera e o jarro, utilizados no ritual religioso.

Fig. 4 – Árula de Santa Justa do Couço (Seminário Maior de Évora)

26

Encarnação, 1984, p. 800; Green, 2003, pp. 63-65; Mantas, 2008, pp. 70-77. Encarnação situa o achado em Santa Justa de Arraiolos (IRCP 412).

27

Schattner, 1995-1997, pp. 485-558.

28

Elsner, 1998, pp. 11-13.


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O monumento funerário de Menelau (fig. 5), nome grego que sugere uma origem servil para o falecido, foi achado por volta de 1920 numa casa da Irmandade de Nossa Senhora do Castelo, em Coruche.29 Muito prejudicado pela reutilização, perdeu a base e o coroamento, para além de acusar forte desgaste, talvez provocado, na representação do jarro, no lado esquerdo, conservando o relevo de uma pátera com pega, à direita, objectos indispensáveis nos rituais religiosos romanos (fig. 6).

A pedra é mármore de Estremoz-Vila Viçosa, o que permite vislumbrar as redes comerciais de materiais de construção. A letra não é da melhor qualidade, sugerindo para a ara uma datação a recair no século III, concordante com a estrutura geral do texto, cuja tradução é a seguinte: “Mário Menelau viveu cinquenta anos. Vitorina colocou [este monumento] ao marido, modelo de merecimento. Jaz neste túmulo. Que a terra te seja leve!” 29

Mantas, 2008, pp. 83-90.

Fig. 5 – Ara funerária de Menelau, achada no recinto de Nossa Senhora do Castelo (Museu Nacional de Arqueologia)

Fig. 6 – Culto funerário aos Manes de Mário Menelau


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Na inscrição de Nossa Senhora do Castelo a letra inicial M, utilizada como sigla, tanto pode indicar o prenome Marco ou um nome de família (gentilício), como Márcio ou Mário, mais normal. Por esta razão consideramos a sua leitura como Mário, nome representado na inscrição achada na Herdade de Diego Montero (CIL II 124 = IRCP 415) e em epígrafes de Olisipo. Na sequência desta leitura não parece impossível admitir que Menelau tenha sido um liberto da gens Maria referida na inscrição, ao que não se opõe, antes pelo contrário, o seu antropónimo grego, o mesmo do marido da célebre Helena invocada como conveniente casus belii da Guerra de Tróia. Sublinhamos que os portadores destes nomes nem sempre eram gregos, reflectindo esta antroponímia uma moda cultural, semelhante a fenómenos existentes na sociedade portuguesa contemporânea. Não deixa de ser curiosa a valorização do cognome, que provavelmente foi o nome único usado pelo defunto durante anos, simplificando a referência ao gentilício, situação que também se regista, por exemplo, nalgumas inscrições alentejanas. O homem afirma-se, desta forma, face à estrutura social. A religião romana não se conhece apenas através de testemunhos iconográficos ou escritos, como as estátuas ou as inscrições. Os pequenos objectos do quotidiano, caso das lucernas ou dos anéis dotados de pedras semipreciosas ou em pasta vítrea contribuem também para ilustrar a vida religiosa, neste caso reflectindo as devoções pessoais dos seus proprietários. A glíptica romana usava materiais diversos para ornar anéis, muitos dos quais, para além de objectos de adorno, serviam como sinetes. A decoração que ostentavam era também variada, constituindo os elementos religiosos uma parte importante da temática. O método utilizado pelo gemmarius scalptor para gravar um motivo era simples,30 bastando uma pequena broca manual equipada com um reduzido disco de cobre, pó de esmeril, óleo e, sobretudo, bons olhos, uma vez que não se conheciam lentes (fig. 7). A pedra de anel achada em Águas Belas mostra a figura da deusa Minerva, divindade da sabedoria, do trabalho e das artes, incluindo as artes mecânicas, o que lhe garantiu identificação com o ideal da luta pela civilização.31 Imagem tutelar do Museu Municipal de Coruche, a deusa

Fig. 7 — Gravação de uma pedra de anel [Ricardo Drumond]

era uma das divindades que constituíam a Tríade Capitolina, sendo as outras duas Júpiter e Juno. A figura da gema mostra a versão helenizada da deusa, armada para a luta, inspirada pela deusa grega Atena (fig. 8), da qual a ave simbólica era a coruja, curiosamente presente no brasão da vila de Coruche. Alguns imperadores, como Domiciano e o hispânico Trajano, foram convictos cultores de Minerva. Plínio-o-Velho refere a existência de pedras semipreciosas no território lusitano (Plínio, Naturalis Historia, XXXVII, 97), perto de Lisboa, em Suímo. 32

Fig. 8 – Pedra de anel figurando a deusa Minerva, achada em Águas Belas


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A urbanização do território português deve-se à acção romana, embora aqui existissem anteriormente grandes povoados não integráveis no modelo urbano clássico mediterrânico, muitos dos quais foram renovados e transformados, ascendendo gradualmente na hierarquia citadina romana. Uma das inovações romanas foi a cidade capital, destinada a gerir populações estabelecidas em territórios com fronteiras definidas, processo que no Portugal romano se iniciou de forma sistemática com o principado de Augusto (fig. 9), cujo bimilenário da morte passa em 2014.34 Em torno da zona de Coruche desenvolveram-se, ainda que algo distantes, várias cidades importantes da Lusitânia: Olisipo (Lisboa), Scallabis (Santarém), Ebora (Évora) e Salacia (Alcácer do Sal), todas de estatuto privilegiado desde os primeiros anos do Império.

Fig. 9 – O imperador Augusto. Pormenor da estátua dita de Prima Porta (Museu do Vaticano)

4. Mérida, colónia capital da província lusitana As cidades constituíam o elemento essencial do Império, que já foi considerado uma grande federação regida superiormente por Roma,33 contribuindo não só como centros morais da ordem imperial, mas também, ou principalmente, como órgãos administrativos imprescindíveis.

Cada província contava com uma capital, normalmente uma colónia ou município, onde funcionavam os serviços administrativos, se reuniam as assembleias provinciais e se situava o centro principal do culto imperial. A capital da Lusitânia era a colónia de Iulia Augusta Emerita, hoje Mérida, construída na margem norte do rio Guadiana, atravessado por uma longa ponte ainda existente. Mérida era uma cidade vasta, que terá atingido uma população de 50 000 habitantes, muito grande para a época. Possuía todos os monumentos próprios das cidades capitais, praças públicas (fora), templos, aquedutos, termas, circo, anfiteatro e teatro, de que restam ruínas imponentes.35 A colónia emeritense, capital lusitana durante cinco séculos, tinha ligações viárias com as principais cidades lusitanas através de uma desenvolvida rede viária. Da implantação do Cristianismo na cidade ficou memória na hagiografia do martírio da sua padroeira, Santa Eulália. Depois da queda do Império do Ocidente, a cidade manteve a sua importância sob o domínio visigótico, decaindo apenas depois da Reconquista. 30

Kleibrink, 1997, pp. 25-27.

31

Heichelheim, 1965, cols. 1774-1805.

32

Cachão, 2010, pp. 1-4.

33

Grimal, 1988, pp. 261-273.

34

Alarcão, 1990, pp. 359-373.

35

Álvarez Martínez, 1994.


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Emitir moeda fora de Roma e das oficinas monetárias regulares era considerado um enorme privilégio, símbolo dos equilíbrios entre o poder central e os múltiplos poderes locais que integravam o Império. A moeda cunhada em Mérida com a representação da monumental porta principal da cidade, como a que foi achada em Águas Belas, conheceu várias emissões na época dos imperadores Augusto e Tibério, elegendo a muralha, elemento de prestígio nas cidades romanas provinciais, como símbolo da colónia,36 fundada em 25 a.C. pelo governador Públio Carísio para os veteranos licenciados (Emeriti) da conquista do Noroeste hispânico, como refere Dião Cássio: “Terminada esta guerra, Augusto licenciou os soldados veteranos e concedeu-lhes que fundassem na Lusitânia uma cidade chamada Emerita Augusta” (Dião Cássio, Historia Romana, LIII, 26). Muitas vezes a construção das muralhas era financiada directamente pelo imperador, como sucedeu com as portas e torres das cidades de Pax Iulia (Beja) e de Nemausus (Nîmes), oferecidas por Augusto. Ainda hoje o brasão de Mérida ostenta orgulhosamente a porta da muralha romana como símbolo da cidade (fig. 10), agora capital regional da Extremadura espanhola. Muitas destas muralhas eram honoríficas, como parte do cenário urbano, sem verdadeiras funções militares, como sucedeu na cidade de Ammaia (São Salvador de Aramenha/Marvão).

Fig. 10 – Brasão da cidade de Mérida, reproduzindo o tema da porta presente nas emissões coloniais

5. Navegação, ânforas e relações comerciais A economia do Império Romano, muitas vezes anacronicamente comparada com a que caracteriza a globalização dos nossos dias, conheceu um desenvolvimento até então sem paralelo, em larga medida como resultado da hegemonia alcançada por Roma. Todavia, devemos ter em conta que se trata de uma sociedade pré-industrial, com fortíssimas limitações tecnológicas, das quais resultava uma valorização desmedida do recurso à força humana e animal. Em consequência destes factores inibidores, apenas contrariados por uma política organizativa que permitiu limitar-lhe as implicações negativas, devemos considerar três níveis nas actividades económicas romanas: imperiais, regionais e locais. Sem podermos desenvolver aqui esta interpretação, recordamos que estes três níveis de actividade, nomeadamente de ordem comercial, deixavam espaços de intervenção à esfera do estatal e privada, de forma independente ou em cooperação. A localização do território coruchense permitia o recurso, fundamental no comércio romano, a vias de comunicação aquáticas, a partir do Tejo (Tagus) e através do Sorraia. A importância do Tejo como via privilegiada de comunicação, quer interna quer com o mundo marítimo romano, foi sublinhada muito cedo por Estrabão, destacando-se Olisipo como o grande porto da Lusitânia na época imperial.37 O transporte por via marítima ou fluvial garantia duas condições comerciais de particular relevância, como são, em todas as épocas, o volume de carga e o menor custo de transporte. Com efeito, na época romana a maior capacidade de carga assegurada pelos navios permitia custos significativamente mais baixos e muito maior rapidez no transporte, rentabilizando produtos que de outra forma não poderiam ser comercializados, como sucedia com grande parte dos agrícolas se transportados por terra. Através do Sorraia e do Tejo, a região de Coruche comunicava com a colónia de Scallabis e com o porto de Olisipo, exportando e importando em condições que podemos considerar ideais. As cerâmicas constituem um bom índice dessas movimentações, destacando-se as ânforas, contentores particularmente adequados ao transporte embarcado,


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pelo que era vulgar classificar os navios de acordo com o número de ânforas que podiam transportar. As ânforas, representadas na área de Coruche por vários tipos com uma cronologia que cobre toda a época imperial (séculos I a.C. a V d.C.), transportavam sobretudo produtos como vinho, azeite ou conservas de peixe, mas podiam servir para outros, como azeitonas ou amêndoas. Algumas destas ânforas foram produzidas na Lusitânia, sobretudo no Algarve, e nos vales do Sado e do Tejo, enquanto outras são provenientes da Bética, a actual Andaluzia (fig. 11). O estudo das ânforas, tornado particularmente difícil pela multiplicação de propostas classificativas elaboradas pelos especialistas,38 é da maior importância para o conhecimento da história económica e das correntes de tráfico romanas, sem esquecer que a sua raridade em certas regiões pode contribuir para o estudo do regime alimentar das populações locais. Na região de Coruche identificaram-se até agora sete tipos de ânforas: Classe 67, Haltern 70, Lusitana 12, Dressel 14, Dressel 20, Lusitana 3 e Almagro 51c. O segundo, o terceiro e os dois últimos tipos pertencem à categoria das ânforas lusitanas. A ânfora Haltern 70 é um contentor

vinário, enquanto a Dressel 20, registada entre outros sítios em Santa Luzia, é a célebre ânfora globular utilizada na comercialização de azeite. Os restantes tipos destinavam-se ao transporte de preparados piscícolas, salgados ou sob a forma de molhos (salsamenta, garum, liquamen, muria, hallec), ainda que as ânforas Classe 67, oriundas do Guadalquivir, e Lusitana 12 pudessem ter servido também para acondicionar vinho.39 Algumas destas ânforas foram encontradas em excelentes condições, como a Dressel 14 do Monte da Barca,40 conservando o Museu quatro exemplares intactos de ânforas tipo Lusitana 3, achados em Mata Lobinhos. Estes contentores foram produzidos em fornos nos vales do Sado e do Tejo, mas a existência de fornos que produziram ânforas Dressel 14, na zona de Benavente, nomeadamente na Garrocheira e na Courela do Marco, a que se juntaram achados 36

Cerrato, 1992, pp. 250-253, 310-314; Álvarez Martínez, 2006, pp. 221-251.

37

Mantas, 2003, pp. 13-29.

38

Fabião, 2004, pp. 379-410; 2008, pp. 725-745.

39

Quaresma, 2005, pp. 406-407.

40

Ribeiro, 1959, pp. 53-55.

41

Amaro, 1990, pp. 87-96.

Fig. 11 – Os diferentes tipos de ânforas achados no termo de Coruche

CLASSE 67

HALTERN 70

LUSITANA 12

DRESSEL 14

DRESSEL 20

LUSITANA 3

ALMAGRO 51C

ALMAGRO 51C LUSITANA 3 DRESSEL 20 DRESSEL 14 LUSITANA 12 HALTERN 70 II a.C.

CLASSE 67 I a.C.

0

I

II

III

IV

V


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recentes,41 sugere a possibilidade de terem sido igualmente manufacturados na área de Coruche. A localização de fornos ao longo de cursos fluviais é vulgaríssima, devido à facilidade de escoamento dos produtos que fabricavam e, não o esqueçamos, também do aprovisionamento de combustível e de água. Não se identificaram, até agora, embarcações antigas naufragadas no Sorraia, contrariamente ao que sucede no Tejo, ainda que apenas através de restos das cargas, sem que seja possível determinar se subiam ou desciam o rio. O Império Romano era um dos quatro impérios antigos que se consideravam universais (Roma, Pérsia, Índia e China). No interior das fronteiras de um enorme território povoado no Alto Império por 60 ou 70 milhões de habitantes, o comércio a longa distância desenvolveu- se extraordinariamente com largo recurso ao transporte marítimo. O rastreio dos materiais assim comercializados faculta informações da maior importância sobre as redes comerciais, portos de reunião de cargas, centros de distribuição e ritmos dos fluxos de mercadorias, destinadas a mercados privados ou estatais. Por exemplo, os fragmentos de ânforas Haltern 70 (ou Classe 15), de datação augustana, achados em Águas Belas e sobretudo na escavação de emergência junto à capela de São Pedro, em Coruche, testemunham a existência de uma rota regular escalando o Tejo, utilizada por essa época no reabastecimento de tropas empenhadas no Norte da Hispânia e, mesmo, na Germânia,42 estimulando a breve trecho o fabrico local deste tipo de ânfora. Este comércio à escala do mundo conhecido de então permitiu divulgar produtos e modelos que os arqueólogos hoje encontram um pouco por todo o lado, mesmo muito para lá das fronteiras políticas imperiais. Entre esses materiais os vidros, ainda parcamente representados em Coruche,43 e a cerâmica de mesa romana, especialmente a chamada terra sigillata, produzida na Itália, na Gália, na Hispânia e em África, ocuparam um lugar especial, reflectindo ligações comerciais e comportamentos sociais. As viagens marítimas, limitadas a uma parte do ano pelo chamado período do Mare clausum, apesar de lentas interligavam eficientemente as várias regiões litorais do Império, a partir das quais, por via terrestre

ou fluvial, se fazia a distribuição dos produtos. Sabemos pouco sobre as embarcações fluviais de época romana utilizadas na Lusitânia, que podemos imaginar parecidas com as caudicariae italianas, de acordo com uma referência muito provável numa inscrição romana de Sines (CIL II 25). Plínio-o-Velho, que faleceu na trágica erupção do Vesúvio quando tentava prestar socorro às vítimas, deixou-nos algumas informações sobre a velocidade das viagens por mar (Plínio, Naturalis Historia, XIX, 3-5), que podiam ser muito mais lentas em condições menos favoráveis.44 Se de Óstia, o grande porto de Roma, até ao Estreito de Gibraltar se podia efectuar o percurso em sete dias, já a viagem de Alexandria a Marselha se alongava por 30 dias, o mesmo que em 1960 levava a percorrer, por mar, a distância entre Lisboa e Dili. A duração das viagens pelos rios dependia de vários factores e do tipo de embarcações. As caudicariae, carregadas, levavam três dias a cobrir os pouco mais de 30 quilómetros entre Óstia e Roma, movidas por alagem a partir das margens, a exemplo do que se pode ver num mosaico de Mérida.45 Quanto às viagens comerciais por terra a sua duração dependia do tipo de carga, do meio de locomoção e do estado da via. Embora os carros sejam largamente referidos na legislação viária romana, terão sido as bestas de carga a conhecer maior utilização, nomeadamente na Península Ibérica, famosa pelas suas mulas na época islâmica. É possível, atendendo às condições do achado, que as ânforas de Mata Lobinhos estivessem prontas para transporte animal, numa sela de carga.46 Uma jornada de 20 milhas (30 quilómetros) era normal, mas podia ser maior ou menor, consoante as circunstâncias.47

6. Economia, moeda e política O domínio romano generalizou a economia monetária, substituindo largamente uma economia de trocas e introduzindo a moeda em regiões onde não era conhecida como meio de pagamento ou apenas se utilizava como objecto de adorno ou para entesouramento. O termo moeda deriva do facto da primeira oficina monetária de Roma se situar no templo de Juno Moneta, no Capitólio.


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Outro termo também relacionado, pecúnia, reflecte o estádio primitivo da economia romana em que o gado (pecus) era elemento essencial da riqueza, a ponto das mais antigas moedas romanas estatais (Aes signatum) ostentarem um toiro. Da mesma forma, a nossa palavra dinheiro corresponde ao denarius romano, moeda de prata introduzida no século III a.C., quando os progressos da expansão romana na Itália obrigaram a possuir meios de pagamento mais evoluídos e próximos do mundo helenístico. O vale do Tejo, por razões de ordem económica e cultural, cedo conheceu a utilização da moeda romana, embora os testemunhos numismáticos anteriores ao século I a.C. não sejam muito numerosos na região, contrastando com a abundância de numerário do Baixo-Império, situação comum a todo o território português, onde as moedas imperiais anteriores a 192 dificilmente atingem 10% do total conhecido em sítios como Conimbriga.48 A moeda

romana era cunhada em oficinas espalhadas pelo Império e até, quando necessário, em oficinas móveis que acompanhavam os exércitos em campanha (fig. 12). As oficinas hispânicas funcionaram até ao principado de Calígula (38-41 d.C.), quando foram encerradas. Cunhar moeda por iniciativa das cidades dependia da autorização do governo central, mesmo quando se tratava de moedas comemorativas, com as que Liberalitas Iulia Ebora (Évora) cunhou para celebrar, em 12 a.C., a ascensão de Augusto ao cargo, extremamente prestigioso, de Pontifex Maximus, chefe supremo da religião romana. 42

García, 1995, pp. 70-75; Quaresma e Calais, 2005, pp. 439-441.

43

Quaresma e Calais, 2005, p. 436.

44

Casson, 1973, pp. 281-296.

45

Mantas, 2006, pp. 305-309.

46

Oudman, 2004, pp. 26-31.

47

Chevallier, 1972, pp. 220-225.

48

Hiernard, 1979, pp. 139-151.

Fig. 12 – Localização das oficinas monetárias das moedas romanas achadas no concelho de Coruche


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Este evento lusitano permite-nos referir o formidável uso que a moeda teve em Roma, para além da sua função de meio de pagamento, como suporte da propaganda oficial, através das legendas e dos temas figurados, reflectindo os êxitos e os projectos dos imperadores. Num mundo desprovido de meios de comunicação como jornais, rádio ou televisão, as moedas serviam também para divulgar, tal como os miliários nas estradas mais remotas do Império, o nome e os títulos do imperador em exercício, naquele caso com a vantagem de oferecer a imagem do governante ou familiares, que na época imperial substituíram maioritariamente as representações de divindades características do período republicano. O conhecido episódio do tributo de César, transmitido nos Evangelhos ditos Sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), ilustra bem esta faceta da moeda romana: “Jesus, conhecendo-lhes a malícia, retorquiu: Porque Me tentais, hipócritas? Mostrai-Me a moeda do imposto. Eles apresentaram-Lhe um denário. De quem é, perguntou, esta imagem e esta inscrição? De César, responderam. Disse-lhes então: Dai, pois, a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mateus, 22, 18-21). Como todos os Estados dignos desse nome, Roma tinha um sistema fiscal complexo e que evoluiu ao longo dos séculos. No Alto Império muitos imperadores, como Vespasiano, procuraram manter a carga fiscal baixa, limitando as despesas que poderiam endividar as cidades, política também observada por Trajano, como podemos verificar através da correspondência entre o imperador e Plínio-o-Moço, governador da Bitínia (Plínio-o-Moço, Epistolae, X, 34). A economia romana sofreu flutuações que se podem detectar através da massa monetária em circulação, inclusive na Hispânia, pois o recurso a uma moeda desvalorizada foi um dos processos a que o Estado recorreu frequentemente. Pelos últimos anos do governo de Constantino (306-337 d.C.) a quantidade de moeda em circulação aumentou significativamente, o que pode denunciar a subida descontrolada da inflação ou, pelo contrário, um surto de prosperidade renovada, afixada nas legendas monetárias e não desmentida pela arqueologia, em particular no mundo rural. No Baixo-Império, para além de impostos especiais, em metais nobres

ou em géneros, o sistema repousava em dois impostos principais: jugatio (sobre as terras) e capitatio (sobre as pessoas).49 Para garantir a eficiência da colecta eram mantidos registos rigorosos nas capitais provinciais e no Tabularium, o grande arquivo central em Roma. Em 395, após a morte de Teodósio, o Império foi dividido pelos filhos, Honório (Ocidente) e Arcádio (Oriente), mas as moedas das duas partes continuaram a circular no nosso território, sem distinção. O tesouro encontrado na Herdade da Erra, parte do qual exposto no Museu, inclui numismas de oficinas ocidentais e orientais. Tesouro não significa, em termos numismáticos, um valor material elevado, pois apenas alude a um conjunto de moedas associadas, como neste caso em que foram todas encontradas num contentor cerâmico. As moedas romanas do século IV testemunham de forma clara as enormes dificuldades sofridas pelo Império, assim como as profundas alterações ideológicas que atravessou, denunciadoras da instabilidade política e militar e da transformação do estatuto imperial, agora indiscutivelmente despótico.50 Como é natural e próprio de todas as épocas, a propaganda tentou contrariar a inconveniente realidade. Legendas como Felicitas Temporum Reparatio, Reparatio Reipublicae ou Gloria Romanorum são afirmações de vontade frequentemente contrariadas pelos factos, à medida que o império se afunda numa crise incontrolável que um historiador um dia denominou como a pavorosa revolução.51 O sistema de cunhagem era simples, manual, martelando-se o cunho sobre o metal fundido. As condições de trabalho dos monetarii eram duras, motivando uma revolta em Roma durante o governo de Aureliano (270-275 d.C.), construtor da muralha com o seu nome, anunciadora de novos e pouco propícios tempos para a Urbe. Apesar da brutalidade dos castigos, não faltavam falsificadores, assim como moedas de imitação, para fazer face à falta de numerário. A maior parte das moedas em circulação era de bronze ou de cobre, havendo-as também de ouro e prata, reservadas para pagamentos importantes ou, no caso das primeiras, também com fins honoríficos, inclusive sob a forma de medalhões. No Alto Império, um sestércio valia quatro asses, um denário valia 16 asses e um áureo valia 25 denários, ou seja, 400 asses. No final


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do século I o soldo mensal de um legionário era de 100 sestércios.52 É difícil calcular o poder de compra das moedas romanas, dependente de vários factores. Por exemplo, o aluguer de uma casa, mesmo modesta, na Roma do século II era muito elevado, podendo com a mesma quantia alugar-se uma boa habitação nos arredores. A literatura e a epigrafia facultam dados numerosos, mas é preciso ter em conta a época e as condições de mercado, o mesmo acontecendo com as tarifas indicadas no Édito do Máximo, publicado por Diocleciano em 301 d.C., onde os preços de bens e serviços são indicadores oficiais,53 nem sempre respeitados. Para além de tudo, as moedas romanas, belas ou não, constituem um manancial de informações históricas e culturais de há muito reconhecido.54

7. Cerâmica, vida familiar e lazer Não foi possível ainda escavar no termo de Coruche uma casa do período romano, ainda que possamos imaginá-las de acordo com o que se conhece noutras regiões de Portugal, especialmente nas terras meridionais. Com efeito, a maior parte dos achados conservados no Museu provém de trabalhos agrícolas ou de construção e de prospecções à superfície. Os materiais assim recolhidos permitem delinear um cenário de romanização plena, característico de uma região de economia agro-pastoril desenvolvida. É particularmente significativa a presença no vale do Sorraia de cerâmica importada como a terra sigillata, assim denominada por ostentar uma marca de produção, identificada em numerosas estações arqueológicas, como Santa Luzia e em Coruche, nas escavações de São Pedro, onde ocorre a marca, atribuível ao século I a.C., “Fonteianus”.55 O fornecimento, a partir de Olisipo ou de Salacia, ou por via terrestre a partir de Emerita, era fácil. O achado de sigillata itálica confirma uma romanização precoce, influenciada pela colónia escalabitana e pelo município olisiponense. A sigillata sugálica, produzida no Sul de França e abundante no nosso território a partir de meados do século I, está bem representada, o mesmo se passando com a sigillata hispânica, produzida em Andujar, na Andaluzia, e em Tritium, no Nordeste peninsular, cujo início de fabrico se situa pelo mesmo

período. Entre outros fragmentos expostos pertence a esta qualidade o que foi achado em Águas Belas e que mostra a marca da oficina de “Atteius”.56 Os fabricos africanos também estão presentes no vale do Sorraia: sigillata clara A, oriunda da região de Cartago, na Tunísia actual, a partir do último terço do século I e até ao século III, sigillata clara C, também fabricada na Bizacena, do século III ao século V, e sigillata clara D, da região de Cartago, produzida entre finais do século III e o século VI, todas confirmando relações com o Norte de África por via do porto de Olisipo. Os sítios de Santa Luzia e de São Pedro, em Coruche, sugerem uma romanização precoce, sendo de destacar a ausência no último de cerâmica africana, contrariamente ao que se verifica no primeiro.57 Para além desta baixela de melhor qualidade e simbólica de uma assumida romanização de costumes, as casas romanas, nomeadamente no serviço da cozinha, contavam com a chamada cerâmica comum, por vezes de tradição indígena, como acontece na região de Coruche com a cerâmica cinzenta, provavelmente influenciada pela cerâmica orientalizante presente no vale do Tejo na Idade do Ferro.58 Para armazenamento utilizavam-se grandes talhas (dollia), como as que se acharam fragmentadas em Gamas e Horta dos Arcos, talvez ainda do período republicano, do qual são pouco visíveis os testemunhos nesta região ribatejana. A utilização de barricas (cupae), bastante vulgar, não deixou vestígios arqueológicos. A produção de cerâmica comum era normalmente local ou regional, tendo como origem os mesmos fornos onde se fabricavam ânforas, pesos de tear e materiais de construção, como terá acontecido no forno situado na margem do 49

Chastagnol, 1969, pp. 53-71.

50

Petit, 1974, pp. 145-203.

51

Walbank, 1996; Mantas, 2012b, pp. 117-151.

52

Fredouille, 1968, p. 163; Christol e Nony, 1995, p. 177.

53

Giacchero, 1974.

54

Grant, 1968, pp. 11-73.

55

Quaresma e Calais, 2005, pp. 431-432.

56

Mantas, 2008, pp. 93-94.

57

Quaresma e Calais, 2005, pp. 440-441.

58

Arruda, 2001, pp. 47-49.


88

Sorraia, no sítio de Maria do Siso. As cozinhas, relativamente simples, contavam ainda com outros utensílios, caso dos almofarizes (mortaria), utilizados para pisar ou misturar vários ingredientes. Para além dos fragmentos de almofarizes cerâmicos, importados da Bética, achados em São Pedro, conhece-se outro, este de mármore, encontrado em Mata Lobinhos.59 A sociedade romana privilegiava a autarcia, pelo que muitas actividades de tipo semi-industrial tinham carácter doméstico, sobretudo em meios rurais, caso da preparação de cereais para a frugal alimentação popular ou a tecelagem para obter tecidos para o vestuário e outras utilizações, caso da sacaria. É claro que estas actividades, facilmente identificáveis em quase todos os sítios roma-

Fig. 13 – Visão artística de um banquete romano (Raquel Roque Gameiro)

nos, não eliminavam o comércio ambulante nem a ida ao mercado no centro urbano mais próximo, onde podiam funcionar actividades industriais a uma escala maior. As inscrições sobre cerâmica (grafitos), executadas antes ou depois da cozedura, facultam informações interessantes, tanto mais que, como fontes, correspondem a expressões de evidente sinceridade. Bom exemplo disso é o grafito gravado no bordo de um fragmento de jarro, achado em Santa Luzia,60 onde o oleiro gravou um voto explícito: For[tius], ou seja, Força! Os Romanos inventaram formas de lazer muito semelhantes às dos nossos dias, sobretudo no que toca aos jogos e espectáculos públicos, componente importante da vida religiosa e política. O gosto por actividades sociais


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como banquetes e recepções em ambiente privado, com música e dança (fig. 13), reflectia o gosto mediterrânico, mas também lusitano, por tais eventos. Entre outros, o escritor romano Petrónio, no século I d.C., deixou-nos uma vívida descrição desses banquetes, ainda que de forma rudemente satírica (Petrónio, Satyricon, 26-78). Havia grande diversidade de jogos para crianças e adultos, encontrando-se por todo o Império vestígios da sua prática.61 Estão neste caso as peças de jogo provenientes da escavação de São Pedro e expostas no Museu. Alguns destes jogos sobreviveram até à actualidade, como a nossa versão do Jogo do galo. Outros jogos romanos muito populares foram o Jogo do soldado e o Jogo do moinho. Quando não havia tabuleiro à disposição era vulgar gravar-se o seu desenho numa pedra ou num tijolo, muitas vezes mesmo no chão de um edifício. Os espectáculos do circo, do anfiteatro e do teatro gozavam de particular popularidade, demonstrada pelas inúmeras ruínas destes edifícios na Itália e nas províncias. Mas as populações rurais, como as da região coruchense, deviam contentar-se com trupes itinerantes, também activas nas ruas dos povoados, e que gozavam da estima do imperador Augusto (Suetónio, Vitae, II, 45). Os edifícios de espectáculo, aliás, eram construídos de forma a albergar também o público vindo dos campos, sobretudo aquando de festivais, como o que se conhece em Mirobriga (Santiago do Cacém). As actividades de lazer, em especial as privadas, reflectiam a classe social, mas na cidade de Roma havia festas públicas destinadas a toda a população que ocupavam grande parte do ano, o que não sucedia nas províncias, onde o ciclo natural e a religião ditavam o calendário. A caça foi decerto outra ocupação lúdica praticada no vale do Sorraia na época romana. É possível que o ferro de lança (?) e as glandes de chumbo encontradas na Quinta Grande se relacionem com actividades venatórias e não militares.62 As termas públicas, presentes até nos povoados mais pequenos, gozavam também de grande popularidade. Com o advento do Cristianismo estabeleceu-se o princípio de reservar o domingo para formas de lazer consideradas respeitosas.

8. Economia rural e materiais de construção A agricultura romana era bastante evoluída, ainda que a sua rentabilidade nem sempre fosse particularmente elevada. Embora não disponhamos de estudos polínicos para o período romano na região de Coruche, podemos considerar que aqui prevaleciam as culturas e o coberto vegetal de influência mediterrânica, assim como as actividades pecuárias associadas. É muito provável que os actuais cavalos do Sorraia sejam descendentes dos célebres cavalos lusitanos cuja paternidade era atribuída pela tradição literária ao vento, tal era a sua velocidade.63 Não esqueçamos que a economia rural na região contava com dois factores favoráveis, como eram a proximidade de mercados importantes e a facilidade de comunicações. O vale do Sorraia não parece ter sido submetido a operações de cadastro para efeitos de colonização ou fiscais, nítidas na zona de Santarém apesar da drástica alteração da paisagem dos últimos anos. A maior parte das terras não colonizadas permaneceu na posse dos indígenas, mediante o pagamento de um imposto ao Estado, o que ajudou à difusão das villae. A economia romana assentava essencialmente na agricultura, sem esquecer outras actividades desenvolvidas em ambiente rural, como a exploração de minas e pedreiras ou a silvicultura. Não faltam escritos romanos sobre temas agrícolas, com destaque para os conhecidos tratados de Catão, o Velho, Varrão e Columela.64 Na verdade, a terra foi, na época republicana como na época imperial, a base da vida económica e social romana, como se depreende facilmente da seguinte passagem de Catão, o Velho: “Quando queriam louvar um bom cidadão, davam-lhe o título de 'bom agricultor' de 'bom lavrador'. Estes termos, para os nossos antepassados, eram a mais elevada expressão de louvor” (Catão, De Agricultura, I). Os Romanos não só introduziram novas culturas e desenvolveram 59

Quaresma e Calais, 2005, pp. 435.

60

Mantas, 2008, pp. 90-93.

61

Ponte, 1986, pp. 131-141.

62

Vasconcelos, 1900, pp. 104-105; Ribeiro, 1959, pp. 51-53.

63

Oom e Serrano, 2006; Canto, 2009, pp. 165-218.

64

Hooper e Ash, 1993; Ash, Forster e Heffner, 2006.


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outras como renovaram o equipamento, alargando o uso da utensilagem de ferro, como a que se achou na Quinta Grande, material frequentemente produzido naquelas villae onde se desenvolviam actividades artesanais complementares. Outras ainda, como a apicultura, que Columela refere extensamente (Columela, De Agricultura, IX, 2-14), dificilmente serão detectadas no registo arqueológico. O problema da mão-de-obra tem sido largamente discutido, nem sempre por razões científicas. Não há dúvidas quanto à existência de trabalho escravo, mas este terá sido menos importante que o representado pelo recurso aos assalariados, sobretudo em momentos sazonais de maior actividade, os mercenarii referidos pelas fontes. As villae contavam com uma parte urbana, constituída pela habitação do proprietário, dotada de termas e salas com mosaicos, e com uma parte rústica (pars frumentaria) constituída pelas instalações necessárias ao funcionamento da exploração, celeiros, lagares, moagens, representadas no Museu por diversas mós, oficinas, assim como estábulos e habitações para o pessoal. Entre os 27 sítios identificados com vestígios romanos no vale do Sorraia no termo de Coruche, alguns, como Águas Belas, Boicilhos, Horta dos Arcos e Santa Luzia, correspondem provavelmente a villae. Os estabelecimentos de menor porte, usualmente designados como casais, correspondiam a explorações familiares (fig. 14), cujo centro era construído com maior simplicidade e diferente planta,65 evoluindo muitos deles para autênticas villae. De uma

Fig. 14 – Reconstituição de um estabelecimento rural tipo “casal” [J.L. Madeira]

maneira geral a simples prospecção à superfície não é suficiente para determinar a tipologia dos estabelecimentos menores. Como vimos, é possível que o Menelau da inscrição de Nossa Senhora do Castelo tenha sido um liberto, responsável (villicus) por uma das grandes villae da região, circunstância frequente no território peninsular onde os nomes gregos em ambiente rural reflectem muitas vezes a presença de técnicos. A estes se deverão alguns dos progressos da agricultura luso-romana, caso do regadio a partir de barragens e sistemas hidráulicos complexos, especialmente no sul do território. A vida rural foi considerada escola de virtudes, de firmeza, tanto como fonte honesta de riqueza e nobreza (fig. 15). Eis o que dela escreveu Virgílio: “O próprio pai dos deuses não quis que fosse fácil a agricultura: foi ele o primeiro a renovar os campos com arte, aguçando aos mortais o entendimento com os cuidados [...] tudo venceu o trabalho perseverante, e o acicate da necessidade em sua dura condição” (Virgílio, Georgicon, I, 121-123, 145-146). Os Romanos ficaram famosos pelas suas aptidões como construtores.66 Se os grandes monumentos não se encontram em toda a parte, não faltam vestígios de construções romanas espalhadas pelos campos, com destaque para a tegula (telha de rebordo) e o imbrex (telha de meia cana), os dois elementos fundamentais da cobertura dos telhados. Tijolo, pedra e diferentes tipos de argamassa (opus caementicium, opus signinum) foram largamente utilizados. O arquitecto Vitrúvio refere com muito pormenor os diversos materiais de construção e as argamassas no seu tratado (Vitrúvio, De Architectura, II, 3-10). Em construções mais ligeiras, em zonas menos chuvosas, o recurso à taipa foi vulgar, o que explica que por vezes se encontre directamente o telhado caído sobre os pavimentos, sem vestígio de muros, desfeitos. Nas construções mais simples a pedra era utilizada apenas em determinados elementos, decorativos ou exigindo maior resistência. As colunas podiam ter os fustes em tijolo, os vulgares tijolos de quadrante, como os que se encontraram em Santa Luzia, com as bases e os capitéis em pedra. Colunelos, como o de Mata Lobinhos, pertenciam normalmente a elementos subsidiários das construções, como larários,


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para colocação das estatuetas das divindades protectoras da casa, ou na estrutura de fontes. A variedade de tijolos (lateres) utilizados na arquitectura romana era muito grande, tanto mais que a pedra era reservada, sobretudo na época imperial, para cobrir muros de betão ou de tijolo. Pedreiras, fornos e explorações madeireiras empregavam numerosos trabalhadores, livres e escravos. O trabalho infantil e feminino está comprovado e, embora o labor nos fornos fosse dos mais mal pagos na tabela do Édito do Máximo, a verdade é que temos testemunhos de um grau de literacia muito significativo, através dos grafitos redigidos sobre materiais cerâmicos, circunstância que sublinha o valor deste relevante factor da romanização que era o conhecimento da escrita, naturalmente em Latim.67 O estudo arqueológico dos fornos e dos materiais neles fabricados permite conhecer a organização do trabalho e as médias de produtividade diária por operário: 200 tijolos para um trabalhador adulto e uns 80 ou

50 pesos de tear, conforme o tipo, como aqueles que se acharam em Maria do Siso, Águas Belas, Gamas e Horta dos Arcos. Na maior parte dos casos estes materiais eram produzidos nas cercanias das povoações ou dos estabelecimentos agrícolas, mas podiam ser transportados, por via fluvial ou marítima, como fretes de retorno, para locais bastante distantes, como sucede, por exemplo, com tijolos italianos achados em grande número na actual Tunísia. Para além destes fornos para cozedura de materiais cerâmicos e de contentores diversos havia também fornos de cal, um material importante para argamassas e revestimentos, fornos cuja construção e funcionamento Catão não esqueceu como parte importante da economia das villae (Catão, De Agricultura, 38). 65

Alarcão, 1990, pp. 417-424; Carneiro, 2010, pp. 225-250.

66

Sear, 1989; Adam, 2005.

67

Étienne et alii, 1976, pp. 157-161, 173; Bigorra, 1983, pp. 819-852.

Fig. 15 – Relevo romano com cenas rurais reutilizado num edifício de Narbonne


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Fig. 16 – Miniatura de um manuscrito das Geórgicas de Virgílio com cena pastoril (Biblioteca do Vaticano)


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9. Conclusão

Bibliografia

A exposição do Museu Municipal de Coruche elegeu desta feita a relação entre o imutável, o céu e de alguma forma a terra, e as interpretações que, de um e da outra, os homens vão construindo ao mesmo tempo que edificam, entre mitos e realidades, as suas frágeis moradas temporárias. Parece não haver dúvidas, face aos testemunhos invocados e visíveis na exposição, que a romanização do termo de Coruche corresponde à imagem do mundo rural romano, com os seus homens, para nós quase totalmente desconhecidos, vivendo à sombra de divindades que se podiam cativar pelos sacrifícios e de sobre-humanos imperadores que se deviam propiciar pelo cumprimento da Lei, medida da civilização. Entre uns e outros encontramos o homem, capaz de reconhecer o seu lugar no mundo, o que implicava respeito por uma ordem celeste, pressentida tanto no curso dos astros como na penumbra dos bosques, à qual se associava a ordem humana em que Roma brilhava como astro dominante. Materiais modestos, sem dúvida, mas expressão eloquente da romanidade, ou seja, da vida daquelas gentes rurais a que Virgílio, cantor da restauração augustana e do sempre sonhado retorno aos campos (fig. 16), se referiu de forma lapidarmente intensa: “Feliz também aquele que conhece os deuses dos campos!” (Virgílio, Georgicon, II, 493).

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“Coruche”: do século V ao Século xIII


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A história do território que hoje chamamos Coruche, no período que medeia o fim do império romano do Ocidente, no século V, e o século XIII, ainda está por fazer. São 800 anos de uma história da qual apenas se conhecem pequenos fragmentos. Como se sabe, a queda do império romano colocou a população, que no século V vivia neste espaço, sob o domínio visigodo. Desse tempo são pouco numerosos os testemunhos materiais conhecidos, de que o capitel encontrado no centro histórico da vila de Coruche pode ser um exemplo. A datação imprecisa e alargada no tempo, entre o século VI e o século VIII (?), deve-se ao estado de degradação em que a peça se encontra, o que dificulta a sua leitura.

Capitel com decoração aparentemente compósita. Séculos VI-VIII (?). Vila de Coruche [Foto José Manuel Vasconcellos]

Textos: Ana Maria Correia Ilustrações: Ricardo Drumond

Depois de uma tentativa mal sucedida, em 711 entraram na Hispânia, comandadas por Tariq, tropas muçulmanas oriundas do Norte de África. A facilidade com que dominaram a Península Ibérica é denunciadora das fragilidades internas então vividas na sociedade visigótica. A conquista e integração das populações no al-Andalus terá sido pacífica, sendo estas terras povoadas maioritariamente por população cristã, os moçárabes. Até este momento sabe-se pouco sobre Coruche ao tempo do domínio muçulmano e estão ainda por encontrar mais testemunhos arqueológicos que, juntamente com as três peças cerâmicas de uso doméstico, resgatadas há 50 anos atrás junto da ermida de Nossa Senhora do Castelo, nos permitam conhecer melhor este longo período da história.

Cerâmicas islâmicas. Nossa Senhora do Castelo (Coruche) [Foto José Pessoa/Direção-Geral do Património Cultural]


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Ofensiva moura vinda das terras do Sul...


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Domínio das ordens militares

A Reconquista

A doação de territórios a ordens militares garantia a defesa e manutenção dos mesmos sob domínio cristão. A defesa do castelo de Coruche foi entregue, em 1176, aos freires militares de Évora, mais tarde Ordem de Avis.

A localização de Coruche assumiu no longo processo da Reconquista cristã uma elevada importância estratégica. A fortificação existente garantia um posto de observação intermédio entre Santarém e Évora.

Domínio das ordens militares no Centro e Sul do país (com base no mapa de José Mattoso)

A Península Ibérica Islâmica e Cristã Fronteira entre cristãos e muçulmanos em 1157 Fronteira entre cristãos e muçulmanos em 1210

Principais castelos Principais mosteiros Domínio dos Templários Domínio dos Hospitalários Domínio da Ordem de Avis Domínio da Ordem de Santiago


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O castelo de Coruche, uma pequena atalaia de defesa, teve particular importância estratégica no âmbito do longo processo da Reconquista cristã. Situado geograficamente no eixo entre as cidades de Santarém, Lisboa e Évora, permitia, dada a sua localização sobranceira à actual vila, o domínio visual de um extenso território para sul.

É possível que tenha passado da alçada muçulmana para a cristã aquando da conquista de Évora em 1165. Da necessidade de manutenção deste estratégico posto de observação, rodeado de significativos recursos naturais, D. Afonso Henriques doou o castelo de Coruche, em 1176, aos freires da Ordem Militar de Avis. Dos avanços e recuos do espaço de fronteira, resultado das ofensivas e contra-ofensivas que, de um lado e do outro, iam operando, decorriam momentos de profunda instabilidade e insegurança, com saques, destruição, morte, cativeiro e fuga de população, como o que terá ocorrido em Coruche aquando do ataque almôada, em 1180 ou 1181.

Cena de reconstrução do castelo de Coruche após incursão almôada (proposta)


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De facto é neste contexto, e inserida no processo de Reconquista, que deve ser entendida a concessão, em 1182, por D. Afonso Henriques da carta de foral a Coruche, documento que estabelece as normas pelas quais se devia reger a população do concelho.

Texto do foral afonsino de Coruche (excerto)

Cena da entrega do foral afonsino em 1182 (recriação)


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No início do século XIII, quando a insegurança vivida na fronteira se deslocou definitivamente para Sul, começou a desenvolver-se uma comunidade estável junto à margem do rio, onde hoje se encontra a vila de Coruche. Assim, na primeira metade de Duzentos existiam em Coruche três igrejas – São Miguel, São João Baptista (a matriz) e São Pedro –, testemunhos de uma sociedade organizada e permanente.

Reconstituição da igreja de São Pedro no século XIII, com base no actual edifício


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O quotidiano e o sagrado


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Os testemunhos materiais da cripta e silo da Igreja de São Pedro: considerações várias A. NUNES PINTO 1

Na sequência do apeamento da estrutura anexa ao antigo celeiro, num plano lateral à igreja de invocação a São Pedro, com mais precisão num ponto das coordenadas GPS: 38º 57’33,78”N e 8º31’34,00”W, efectuou-se uma intervenção arqueológica condicionada no tempo,2 cujos trabalhos permitiram uma abordagem científica do recinto, onde se inserem restos de silos e uma estrutura subterrânea reutilizada para acondicionamento de material osteológico e que determinariam também o aparecimento de duas peças das mais antigas representações da ourivesaria e fundição sineira portucalense. Se há espaços ou edifícios que caracterizam a vila, um desses é a Igreja de São Pedro, suposta continuidade de um templo anterior a justificar a sua insistência espacial, quiçá respondendo ao velho modelo da sucessão de edifícios sacros ao longo dos tempos. Relegando a orientação canónica, o levante por habitual, expõe-se no sentido nor-noroeste/su-sudeste, um meridional disfarçado. Mantém a dignidade para a celebração dos ofícios litúrgicos, surpreendendo pela originalidade da arquitectura e soluções decorativas adaptadas aos costumes das centúrias, a que periodicamente foi submetida. Importa sublinhar, no entanto, que na sua simplicidade sobressai toda uma força simbólica, aliada a uma silhueta discreta, que lhe permitiu manter, sem hiatos, a mesma relevância sobre o aglomerado populacional ao longo dos oito séculos de existência. Ocupando o extremo oriente do perímetro urbano, confinante com o curso fluvial, respirava quietude, onde só o ruído da diligência e o trotear do cavalgar quebraria o silêncio. O sítio é um testemunho – e testemunha – da mutação abrangente, um núcleo vital para a época, obliterado pelas disposições urbanísticas ulteriores, convertendo o espaço em ocupação residencial, ex lege, conci-

liando o passado e o presente.3 A sua posição altimétrica, coerente com a topografia local, permitia-lhe contemplar todo um infinito pinturescamente mesetado, por vezes desbotado pela torreira do sol, e espreitar o local onde o eixo viário, persistente e ancestral4 – o caminho de Santarém que levava a Évora5 –, era suposto transpor um dos afluentes do Tejo, o Sorraia, na gíria cornidiana também Zetas ou Zatas (fig. 1).6 Mais tranquilo hoje, se se referenciar a faceta económica ao facilitar o transporte e estimular as actividades comerciais em tempos idos,7 numa região fisicamente privilegiada, nos dias presentes e nos anos de outrora, pelas potencialidades naturais. Com um antes e um depois, o templo carece de uma leitura histórico-arqueológica que permita materializar o momento fundacional e teorizar o plano arquitectónico. Não há consenso histórico sobre a génese do edifício religioso nem argumentos novos diferentes dos divulga1

I nvestigador do CEAACP – Centro de Estudos de Arqueologia, Artes e Ciências do Património.

2

eferem-se as actividades arqueológicas de 27 de Setembro a 7 R de Novembro de 2001, vinculadas ao Museu Municipal de Coruche e coordenadas pela nossa estimada colega Dra. Cristina Calais, a quem expressamos uma palavra de gratidão pelo apoio incondicional subministrado. À Dra. Ana Correia o nosso bem-haja pela disponibilidade sentida.

3

Correia, 2012, pp. 207-213.

4

Mantas, 2002, pp. 107-112; Mantas, 2012, pp. 105, 169-170, 173, 262 e 266.

5

Correia, 2003, pp. 72 e 74; Correia, 2012, p. 200.

6

obre a antroponímia do curso fluvial, Cornide, nas suas viagens por S Espanha e Portugal nos finais do século XVIII, não como antonomásia, apelida-o também de Zetas ou Zatas, Abascal e Cebrián, 2009, pp. 662 e 690-691; D’Andrade, 1945, p. 1; Medrano, 1889, p. 111, e 1893, 8.º mapa de España y Portugal; Wyld, 1842, Mappa Corografica do Reino de Portugal; Sanches, 1757, p. 6; Ribeiro, 2009, pp. 20, 60, 145-146, 300 doc. 42 e 305 doc. 43; Daveau, 1984, pp. 115-117 e 121; Calais, 2003b, pp. 11- 30; Mantas, 2003, pp. 53-55; Correia, 2003, pp. 72, 83-84 e 204; Bronseval, 1970, p. 415.

7

Mantas, 2003, pp. 53 e 55; Firmino, 2003, p. 131.


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Tradicionalmente considera-se dos mais antigos e, ainda assim, um convénio do bispo de Évora, Soeiro II, e D. Fernandes Eanes, mestre da ordem de Avis, exarado em tempos de D. Afonso II, legitima a hipótese da existência de uma igreja regularmente organizada em meados do seu reinado, 1214.9 Ante os condicionalismos e metamorfoses sentidas no mundo medievo, e de modo especial na arquitectura religiosa, este, porque enigmático, interessa sobremaneira entendê-lo. Numa visualização do edificado, a uma cota elevada, sobressai a imagem de dois corpos em descontinuidade. Ao contrário do resto do conjunto, arquitectonicamente ajustado, destaca-se uma estrutura de coerência volumétrica, vincando certos componentes arquitectónicos,10 porventura memória de arquétipos remotos da presença muçulmana, que pulverizaram o território nos séculos X-XII. Não obstante a ausência de topónimos de etimologia árabe, no casco histórico, se os houve, não parecem ter persistido; no entanto, nas referências documentais persistem.11

Fig. 1 – Mappa corográfica do Reino de Portugal com indicação do rio Zatas. Londres. 1842. Biblioteca Nacional (Lisboa)

A comprovarem-se tais manifestações estruturais teria sido um singular legado, regenerado, reflexo do que sucedeu com outros espaços de culto, nos primeiros tempos cristãos,12 nos domínios territoriais a sul do Tejo. Mas se nos abstrairmos das alegações precedentes, não considerando a hipótese de se estar perante vestígios materiais in situ da parte residual de um edifício islâmico, a estrutura dissonante da actual igreja será o que sobeja de uma formulação arquitectónica de modestas proporções, construída ab inicio nos dias mais antigos.

Fig. 1a – Extracto do mapa

O fatídico tremular sentido em vinte e seis de Janeiro de 1531 trouxe também consequências avultadas para o património edificado do tecido urbano. Edifícios houve que ficaram pela fendilhação; noutros o colapso deve ter acontecido. Se não a derruiu, deixou a igreja em muito mau estado.13

dos na centúria de novecentos, que o consignam como templo paroquial sem fornecerem elementos para tempos anteriores ao último quartel do século XIII.8

A gravidade desta realidade pode deduzir-se pela necessidade do poder régio mandar proceder à reformulação do recinto e a trabalhos de reestruturação do edifício de


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culto.14 Na sequência destas obras, no reinado de D. João III (1521-1557) terão surgido ossadas, pertencentes a antigas sepulturas, das quais se fez uma eventual transladação, incluindo do mobiliário fúnebre. 8

orreia, 2003, p. 80; Falcão, 2003, p. 91; Fernandes, C 2005, p. 472.

9

F ernandes, 2005, p. 472; Vilar, 1999, pp. 254-255; Beirante 2006, p. 246; Correia, 2012, p. 194. Parece pertinaz a sua coetaneidade com os documentos considerados mais antigos escritos em galego-português, precisamente o testamento de D. Afonso II (1214) e a notícia de Torto (1214-1216) (Costa, 1992, pp. 187-200), ultrapassados com o surgir da notícia de Fiadores (1175) de Paio Soares Romeu (Pereira, 2001, p. 70).

10

Além da cornija emoldurada apenas em três dos lados, menciona-se a cúpula semicircular a servir de tecto na abside da igreja, o aparelho em tijoleira, do género do opus testaceum utilizado nas paredes – o restauro efectuado no retábulo permitiu verificar a tecnologia utilizada – e o ter relegado a orientação de um edifício cristão.

11

Correia, 2003, pp. 72 e 79.

12

Correia, 2003, pp. 79-80. Há que considerar que a organização político-militar, socioeconómica e religiosa do território, neste tempo, era indefinida. Não havia assim tantos recursos que permitissem derruimentos das edificações existentes, concretamente de edifícios religiosos; a sua reorganização era exequível.

13

Sobre esta questão Osório (1919) transcreve na página 10: “…padecerão muito Santarém, Azambuja, Almeirim e outras povoações vezinhas, onde dizem que se subverterão lugares inteiros” e, na página 17, ainda é mais categórico: “Sãtarẽ esta tã desbaratado que no ay pa que el rey pose enel: po: que sus palacios estã por el suelo por tierra. Todas las casas que estã sobre la ribera murieron infinita gente. En Almerin lo mismo. Margarida Ribeiro diz-nos que a própria matriz ficou arruinada (Ribeiro, 2009, p. 174).

14

Pinto, 1987, pp. 134-137.

15

Curiosamente a toponímia do século XIX (Correia, 2012, p. 197) assinala o Largo da Casa dos Ossos no quadrante sudoeste da Igreja Matriz. Acaso esta determinação provenha de uma deposição de ossos numa fossa/silo, ou mesmo numa necrópole antiga circunscrita à Igreja Matriz, são dois ambientes distintos numa distância muito curta da Igreja de São Pedro.

Terá sido esta a origem do ossário documentado na cripta escavada em 2001. Se não, simplesmente provirá de um cemitério muito próximo do sítio (figs. 2 e 3).15

Fig. 2 – Planta da praça com a indicação do Largo da Casa dos Ossos junto à antiga igreja matriz (século XIX). Biblioteca Nacional (Lisboa)


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Igreja de São Pedro Largo da Casa dos Ossos Fig. 3 – Planta da vila de Coruche no século XVIII, com indicação da Igreja de São Pedro (Nazareth e Sousa, 1983)

Tanto num caso como noutro a transferência provocaria sempre a descontextualização e desmantelamento dos esqueletos. A silagem era um sistema de armazenamento habitual dos cereais e do grão, tanto em ambientes rurais como urbanos, que remonta ao mundo pré-histórico.16 Paralelamente à silagem comunal existia a silagem privada. A presença de silos, numa zona diagnosticada como ritualizada,17 é prova da utensilagem privada. Não será, pois, despiciendo lembrar a coincidência do Bispo de Évora deter a posse de três silos, em Coruche, onde depositava os avultados rendimentos,18 a terça episcopal das igrejas sufragâneas.19 A maioria dos materiais medievos recolhida na escavação está relacionada com a reutilização dos silos que, mesmo dentro da sua modéstia, constituem um complemento cultural e material para a história do seu passado mais remoto.

Os imprevistos decorrentes de uma arqueologia urbana coruchense determinaram o aparecimento, fortuito, de uma evidência arqueológica: uma cripta-ossário, na sua finalidade última. Mostra-se tendencialmente oblonga em corte orientando o eixo maior no sentido noroeste-sudeste, privada de revestimento interno mas sem descurar o solo e as paredes perfeitamente aplainadas numa matriz argila-gresosa. Originalmente este foi, provavelmente, um dos silos detectados, transformado num espaço de considerável volumetria.20 A ampliação instaurada só se concebe com uma finalidade: a situação de emergência em depositar um volume considerável dos restos antropológicos a transferir da suposta necrópole, circunscrita ao edifício de culto do século XIII.


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É explícito o não propósito de cripta sepulcral, conseguintemente não houve inumações stricto sensu – cadáveres em posição anatómica –, apenas o acondicionamento das ossadas que, com o material encontrado associado, ocasionou o primeiro momento de ocupação da cripta, ocupada num tempo que se prevê restrito. Tudo indica que a exigência conjuntural foi mais limitada e só uma parte da câmara foi ocupada por uma densa amálgama osteológica, onde a viabilidade de uma análise antropométrica consentiu a identificação não só de indivíduos adultos como de adolescentes, os outros indeterminados.21 Desta recuperaram-se vários dinheiros da Primeira Dinastia, dos reinados de D. Sancho I (1185-1211)22 e D. Sancho II (1223-1248), alguns testemunhos interessantes de fragmentos cerâmicos, duas peças (AC899 e AC931), atribuídas ao século XIII, que, atendendo à morfologia e à sua posição estratigráfica, datarão da deposição primária na necrópole da antiga igreja.

O motivo decorativo e a morfologia de ambas são elementos de caracterização determinantes para a sua subordinação às manufacturas do mundo flamengo (figs. 4 e 4a).23 16

Falcão 2003, p. 91. Curiosamente estas estruturas eram em Évora designadas por covas de ter pão, por nelas depositarem as reservas das colheitas (Campos, 1943, pp. 51-52).

17

Falcão, 2003, p. 92; Sebastian, 2008, p. 273.

18

Vilar, 2005, pp. 280-281; Vilar, 1999, pp. 252-255; Correia, 2003, p. 80; Ribeiro, 1959, p. 104.

19

Fernandes, 2005, p. 364; Correia, 2012, p. 198.

20

Calais, 2003a.

21

Codinha, 2001, pp. 6-9.

22

O estudo dos numismas foi elaborado pelo Dr. Guilherme Cardoso, com revisão de A. Nunes Pinto.

23

Dewilde e Plaetsen, 1994, pp. 46, 49 fig. 3.6, n.os 5, 6, 19, 50; p. 51, fig. 3.7, n.os 14, 15, 17, 22; p. 55, fig. 3.8; Verhaeghe, 1987, pp. 207, 221, fig. 13; Groote, Moens e Ervynck, 2004, pp. 56-61; Moens, Ameels e Groote, 2011, p. 64, fig. 29, 7; p. 67, fig. 30, 11; Smeets e Steenhoudt, 2010, p. 45 (ZO-10-GR-46 Sp5); exemplares do Museum te Tongeren (Brujin, 1965).

Mesmo no seu estado fragmentário, estas peças diferenciam-se substancialmente do demais espólio, pondo de manifesto o papel do aglomerado populacional como mercado e lugar de consumo de produtos de certo prestígio.

Fig. 4 – Cripta-ossário. Jarro/bilha de importação. Século XIII 5 cm

Fig. 4a – Exemplares encontrados na região da Flandres

5 cm


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Fig. 5 – Cripta-ossário. Jarras litúrgicas (?) engobadas e brunidas. Século XIII


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No mesmo sector, envolto nesta amálgama, recolheu-se um considerável número de fragmentos e pequenas jarras intactas, que merece um reparo especial, por singularidade da forma, variedade tipológica, acabamento e pela própria dispersão espacial. Ostentam paralelos com aquelas que se vêm identificando em contextos e espaços cronológicos similares, compatíveis com uma produção tardia. Constituem, pois, um conjunto transladado aquando do levantamento da antiga necrópole (fig. 5). Considerando o estado de conservação e o número de exemplares, julgamos terem tido uma atribuição que não a de simples jarra do quotidiano, mas usadas na liturgia ou em qualquer ritual de exéquias fúnebres,24 como Fig. 6 – Cripta-ossário. Candil original. Século XIII (?)

oferendas e legados dos banquetes em reverência dos defuntos. É neste cotejo que a evidência do seu significado deve ser entendida. Supor-se-ia consequência de sentimentos religiosos ou testemunho da ambição de personagens de prestígio da sociedade coruchense da época? No sector contíguo, claramente diferenciado a nível da sequência estratigráfica e igualmente hierarquizado, entre as descobertas recuperaram-se dois objectos de particular interesse, não associados, um de cerâmica (fig. 6) e outro metálico (fig. 7). Assente em derrube de adobe, posicionado e isolado, surge o primeiro testemunho: o candil, que terá assistido e iluminado a deposição dos ossos. Uma versão circunstancial, de configuração arabizante, não deixa de enriquecer o repertório da iluminária medieval e em simultâneo alargar o leque de uma vasta tradição tipológica. 24

Ocorre-me considerar que ao longo dos tempos tem-se verificado que as práticas funerárias são o espelho ideológico da sociedade dos vivos. A persistência de usos antigos está documentada no testamento em relação ao saimento de três paroquianas coruchenses: a seguir à procissão fúnebre incluía-se uma refeição colectiva, ao redor da inumação, que permitia a validação das decisões das defuntas (Beirante, 2006, pp. 252 e 257). Prova contundente conotada a um ritual funerário perceptível em ambiente referenciado em Coruche.

Fig. 7 – Cripta-ossário. Sino fragmentado, século XIII [Desenho Hugo Pereira]

5 cm


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É uma peça marcante, de seriação cronológica ambígua. As reservas na determinação temporal persistem. Pelas características morfológicas e contextualização, poder-se -á associar ao elenco dos objectos transferidos, datáveis do século XIII (?), sugerindo a mesma datação. Embora manifestando concordância com estes espólios, não dispomos de quaisquer paralelos que permitam legitimar uma cronologia cabal. A um nível superior encontrava-se in situ o segundo testemunho, um elemento cronológico por excelência: o sino (fig. 7), fracturado na transição da asa para o ombro e rompimento no bordo. Mesmo sem voz fez-se anunciar: na sua simplicidade e elegantes proporções,25 mostra na sintaxe decorativa os habituais cordões e na faixa intermédia uma cruz, um pentagrama e uma inscrição com os caracteres em relevo, indicando o ano da sua fundição: E (r) a Mª CCCª XXª Vª, ou seja: 1287 Anno Domini, o que permitiu datá-lo dos finais do século XIII. É uma peça circunstancial, única, segundo a meritória investigação do Doutor Luís Sebastian.26 Uma pequena campânula em bronze, com a matriz dos sinos eclesiásticos que completavam as igrejas, a partir do século IV e em concordância com as dimensões dos sinos do século XII-XIII.27 Quando em funções, são uma linguagem convencional: um potencial de toques e repiques numa codificação acústica entendida pelas pessoas.28 O seu eco de bronze dissipado pelo vento deixa-se ouvir à distância, ora assinalando as horas do dia e da noite ora convocando ao templo os que precisam ora advertindo para as próprias tragédias: em francês, tocsin (rebate). Na interpretação mística do teólogo francês Gaume, o sino “a cada badalada faz retinir ao longe os dois mistérios da morte e da vida – alfa e ómega – mistérios necessários para orientar a vida do homem, consolar as suas esperanças.29 O segundo silo, de cubagem pequena, manifesta decadência, abandono e reutilização sem vestígios ósseos. Revela-nos como particularidade interessante a fragilidade ou preciosidade dos materiais que arrecadou, em

número restrito mas determinantes, graças aos quais o depósito pode ser datado num quadro cultural circunscrito ao século XIII. Recuperaram-se três fragmentos de dinheiros de D. Sancho II, um deles ilegível, e um dinheiro de D. Afonso III (fig. 8); uma miniatura de púcaro, com uma das moedas no interior,30 e uma pequena peça elaborada numa liga de dois metais, de configuração espatulada (fig. 9). Constitui certamente uma peça capital do espólio, um exemplar único na ourivesaria medieval. A graciosidade e valor intrínseco do testemunho esculpido correspondem ao estatuto de quem o possuiu ou o manipulou.

Fig. 8 – Silo 2. Moeda (dinheiro) de D. Afonso III (1248-1279) [Foto Archeofactu]

Fig.9 – Silo 2. Artefacto armoriado achado na escavação de São Pedro [Foto Archeofactu]


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A Idade Média, tal como os povos da Antiguidade, atribuía grande importância aos símbolos, concebidos em material mais dúctil e precioso por excelência, o ouro, prestigiando e ajudando a compreender o poder e a fé.

Manifesta dimensões reduzidas: tem o triângulo 23mm, a esfera 8mm, o cone 13mm, o que perfaz 44mm de comprimento total; a espessura varia entre os 2 e 8mm; de peso 12,55g.

Parece razoável ver na peça (ampliada) interpretação funcional que lhe pode ser atribuída em consonância com a iconografia que ostenta: um sinete/chancela, onde a mesa está ausente, aplicado para autenticar a ordenação do poder, ou, se for mais reservada, o espelho ideológico-económico de um alto dignitário real, no seio da comunidade coruchense na Idade Média. Ou, mais convincentemente, a extremidade de um pequeno bastão/ceptro, utilizado por um representante local da autoridade soberana. O carácter iconográfico medievalista da peça parece perpetuar uma tradição31 cuja correspondência é flagrante, pois o ceptro não era uma obra de arte, mas um stato documental da autoridade real.

Num campo plano, delimitado por uma bordadura relevada larga e lisa, o elemento central é a cruz. Formada por cinco escudetes, onde os laterais mantêm a disposição antiga, deitados, cada um carregado apenas com três besantes.

O documento arqueológico atesta, reitero, em terras de além Tejo, a necessidade de alguém representar o poder régio.32 Peça metálica armoriada, com um significado codificado: mensagem de preeminência pelo que pode transmitir. Compatível com uma trajectória pessoal (como símbolo soberano), um entorno cultural (canaliza o imaginário através dela), um interesse económico (pelo valor intrínseco), uma evidência torêutica (sensibilidade artística), uma iconografia narrativa (conserva a tradição). Como quando o Professor Nogueira Gonçalves fez alusão ao cálice de D. Gueda Mendes.33 Em detalhe, após o restauro revela-se uma pequena insígnia com símbolo icástico, numa combinação de cobre e ouro, componentes utilizados na ourivesaria medieval, fundida pelo procedimento de cera perdida e cinzelamento a frio de pouca sensibilidade artística que, do ponto de vista conceptual, respira uma discreta elegância. Apresenta partes distintas: uma placa laminar espessa, recortada segundo uma forma triangular, isósceles quase isoédrica, sobrepondo-se a um elemento esferóide e à conicidade de outro que regista um espigão acoplado, servindo tanto como empunhadura como para ser hasteado em vara.

No reverso a decoração de fundo tem aspecto similar. No entanto, o elemento iconográfico central é substancialmente diferente: as quinas foram substituídas por um castelo com três torres, a central mais elevada, com porta sobrelevada e seis seteiras distribuídas pela fachada. Uma estrutura decorativa incisa, com certa lógica, delimitada por um sulco, preenche todo o espaço sobrante dos elementos centrais com uma série de linhas sem alterarem a orientação entre si, formadas por um motivo em ziguezague, num escamado, ligeiramente arqueado e repetitivo, criando uma sequência ritmada perfeita. Não subsistem exemplares, nem se vislumbram referências a nível nacional, até ao momento, para se estabelecer comparação com tão enigmática peça. Recorremos a afinidades iconográficas. 25

De salientar que só a partir do século XIII é que aparecem os sinos de grande porte.

26

Sebastian, 2008, p. 290.

27

Sebastian, 2008, pp. 286-288, figs. 260-261.

28

Torga, 2010, p. 65.

29

Gaume, 2013.

30

As moedas encontram-se disseminadas, sem a intenção que tiveram no momento de inumação primeira, quando colocadas na boca.

31

O uso de um pequeno bastão encimado por um ornato é antigo e permanece com a mesma preeminência até aos soberanos europeus da última centúria. O ornato ocorre com frequência como remate de um estilete destinado a abrir documentos ou quebrar selos de cera (instrumentum scriptorium), o que poderá ser o caso da pega de Coruche.

32

Daveau, 1984, p. 122.

33

“Para nós, portugueses, ele é também um monumento de recordação pátria, mandado executar por um daqueles que participaram na fundação da nacionalidade”, Gonçalves, 1984, p. 42.


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Ao contemplar-se a interessante série de exemplares da sigilografia de Santarém, utilizados em documentos da época, era de 1284, ou seja de 1246,34 uma relação estreita é admissível nos aspectos iconográficos e cronológicos. O rigor da composição dos selos, diríamos mesmo a fórmula canónica, nada tem com as normas estéticas e modulares desta peça. Não importa o vínculo de uma execução de menos aparato, de agradável efeito plástico, ainda que fiel à torêutica da Idade Média, a outros que reflectem uma delicadeza de pormenores e minúcia, espécimen de qualidade superior na heráldica medieval.35 O mesmo comportamento, de confronto de parâmetros iconográficos, se pode pôr em relação com a pedra de armas que ostenta o escudo medieval do concelho, incrustada na ponte de Alcôrce. De igual modo o cotejo com o reportório numismático da época será um contributo profícuo. Parece-nos supor, por sua vez, alguma influência do reino de Castela, pois as probabilidades de aproximação dos parâmetros iconográficos e temporais é indubitavelmente parentesca, a nível da face que ostenta o castelo, do exemplar heráldico do Archivo Histórico Nacional de Madrid, correspondendo a um selo real, em cera, de uma carta de câmbio, doação a três de janeiro de 1181, em Toledo, de Afonso VIII a Tello Pérez e sua mulher Guntrodo.36 Esta diversidade documental exprime uma distância estilística mas não cronológica. Perante o laconismo das fontes escritas são os testemunhos materiais recolhidos que transmitem o contexto socioeconómico e cultural de toda uma vivência articulada com o universo do quotidiano dos coruchenses no passado medievo. O lote ceramológico resgatado durante a intervenção arqueológica, objeto deste trabalho, tem um rótulo comum: a proveniência, pois provém em grande parte da cripta e do silo. Embora não seja exaustivo no seu repertório morfo-tipológico, é determinante para ilustrar uma série de produções estandardizadas que se afirmam pela diversidade da sua caracterização, puramente funcional.

Produção, utilização e rejeição dos objectos de cerâmica, são parâmetros do ciclo que os elementos da sociedade lhes podem proporcionar. Por consequência, é no abandono que o arqueólogo tenta interpretar o universo correlativo. Todo e qualquer objecto cerâmico não se resume, todavia, unicamente à vertente utilitária. Transmite toda uma informação susceptível de investigação, desde o intercâmbio comercial à análise estética, morfológica e funcional. Dado que a função é determinante para a forma, este lote reflecte uma multiplicidade de actividades quotidianas (quadro 1). Afirmam-se diversas categorias funcionais, com separativos das formas fechadas e abertas e indicadores a inclusão em cada uma delas da tipologia correlativa: I – destinada à reserva ou ingestão de líquidos e alimentos elaborados, sólidos ou liquefeitos, circunscrita ao serviço de mesa (bilhas, jarras, jarros, púcaros, canecas, malgas e tigelas); II – de utilidade básica na cozinha, quer na conservação ou preparação dos alimentos quer em contacto directo ou indirecto com o fogo (panelas, potes, cântaros e caçoila); III – para armazenamento e conservação dos mais variados líquidos e géneros alimentícios de consumo corrente (talhas); IV – com funcionalidade complementar, integrada na cozinha e armazenamento (testos); V – de iluminação, quer associada à mesa quer à cozinha (candil e candeias); VI – com vertente lúdica, sancionando o imaginário infantil (jarrinha e panela) e a transformada em peças de entretimento (marca de jogo). 34

Brandão, 1883, estampa na p. 1; Azevedo, 1897, p. 174; Gonzaga, 1983, p. 176, espécime n.º 157; Marques, 1936, pp. 201 e 203.

35

Nestes selos o castelo não tem uma forma tão simples e o estilo é de uma fortificação luso-árabe com as suas características portas.

36

Rodriguez-Picavea, 1995, pp. 331-332.


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UTENSILAGEM DOMÉSTICA CERÂMICA DE MESA

CERÂMICA DE COZINHA Bilha

CERÂMICA DE ARMAZENAMENTO

Panela

Jarra FECHADAS

Jarro

FECHADAS

Pote

Talha

Púcaro Cântaro

Caneca Malga

Alguidar

ABERTAS

ABERTAS Tijela

Caçoila

CERÂMICA COMPLEMENTAR Testos

CERÂMICA DE ILUMINAÇÃO

CERÂMICA DE DIVERSÃO

FECHADAS

Candil

Miniaturas

ABERTAS

Candeia

Pedras de Jogo

Quadro 1 – Formas cerâmicas provenientes da escavação da Igreja de São Pedro (José Luís Madeira)


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Catálogo

JARRAS Inventário AC848 AC849 AC850 AC857 Pé plano, saliente, corpo hemisférico, asas de secção elíptica, colo alto tronco-cónico, demarcado por incisão na junção com o ombro. Engobada e brunida com linhas verticais irregulares, em superfícies distintas, exteriormente. Dimensões Diâm. da boca: 84mm; alt.: 102mm; diâm. máx.: 90mm; diâm. da base: 32mm Diâm. da boca: 82mm; alt.: 106mm; diâm. máx.: 101mm; diâm. da base: 34mm Diâm. da boca: 82mm; alt.: 103mm; diâm. máx.: 95mm; diâm. da base: 32mm Diâm. da boca: 90mm; alt.: 107mm; diâm. máx.: 91mm; diâm. da base: 40mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Século XIII

PÚCARO Inventário AC854 Base plana, corpo tronco-cónico carenado com asa de secção ovalada, lábio biselado. Caneluras no terço inferior do corpo e a sublinhar o bordo. Dimensões Diâm. da boca: 90mm; alt.: 97mm; diâm. máx.: 89mm; diâm. da base: 60mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XII-XIII 5 cm


117

JARRO Inventário AC875 Pé plano, saliente, corpo elipsoidal, colo alto cilíndrico, lábio em bisel, asa de secção ovalada. Na junção colo-ombro discreta incisão e caneluras a dividir o colo. Dimensões Diâm. da boca: 86mm; alt.: 157mm; diâm. máx.: 115mm; diâm. da base: 50mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIV-XV

JARRO / BILHA Inventário AC899 Pé anelar, lobuloso, corpo globular. Sobre a pasta avermelhada vidrado esverdeado esponjado. Modelo atípico peninsular, testemunha contactos comerciais com a região da Flandres. Dimensões Diâm. da base: 140mm; alt.: 51mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Século XIII

JARRO / BILHA Inventário AC931 Corpo globular, colo esvasado, lábio aplanado com desenvolvimento externo de contorno arredondado. Parede externa brunida e decoração minuciosa impressa em fino cordão. Modelo atípico peninsular, testemunha contactos comerciais com a região Flamenga. Dimensões Diâm. do bordo: 120mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Século XIII 5 cm


118

BILHA Inventário AC890 Base plana, corpo periforme com asas de secção em fita, colo alto, cilíndrico, marcado por moldura a sublinhar o bordo, incisão no arranque do mesmo e três caneluras no ombro. Dimensões Diâm. da boca: 75mm; alt.: 230mm; diâm. máx.: 180mm; diâm. da base: 94mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIII

PANELA Inventário AC888 Base plana, corpo globular com asa em fita, colo divergente, lábio bem definido de contornos arredondados. Ranhuras na separação do colo-bojo, início do ombro e inflexão do bojo. Dimensões Diâm. da boca: 140mm; alt.: 206mm; diâm. máx.: 200mm; diâm. da base: 106mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XII-XIII

PANELA Inventário AC878 Base plana, corpo globular com asa de secção em fita, colo baixo, lábio em aba de contornos arredondado. Molduras no ombro e parte mediana do corpo. Dimensões Diâm. da boca: 124mm; alt.: 186mm; diâm. máx.: 210mm; diâm. da base: 100mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Século XIV

5 cm


119

MALGA Inventário AD028 Pé anelar, faiança, copa com grande esvasamento. Composição geométrica pintada a azul-cobalto sobre fundo branco, com cobertura estanífera. Dimensões Diâm. da base: 50mm; alt.: 16mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIV-XV

MARCA DE JOGO Inventário AD017 Objecto tendencialmente circular produzido a partir de um fragmento de matéria-prima indefinida, superfície preenchida por uma série de finos punções. Dimensões Diâm.: 68mm; esp.: 19mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIII-XIV

MARCA DE JOGO Inventário AC906 Objecto tendencialmente circular, obtido a partir de um fragmento de talha, vestígios de cordão plástico com impressões digitais. Dimensões Diâm.: 73mm; esp.: 14mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIII-XIV

MARCA DE JOGO Inventário AC926 Objecto tendencialmente circular, elaborado a partir de um fragmento de peça indeterminada, vestígios de incisão circular.

5 cm

Dimensões Diâm.: 46mm; esp.: 6mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Cronologia Séculos XIII-XIV


120

MOEDA Inventário AC991 Dinheiro Reinado D. Sancho I (1185-1211) Anverso Escudetes dispostos em cruz e rosetas como elementos cantonantes, dentro de um círculo. Legenda: REX SANCIVS Reverso Cruz pátea no centro, acantonada por quatro cravos. Legenda: PO RT VGAL Módulo Comp.: 15mm; larg.: 12mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Peso 0,41g

MOEDA Inventário AC965 Dinheiro Reinado D. Dinis (1279-1325) Anverso Cruz, no centro, cantonada alternadamente por estrelas e crescentes, dentro de um círculo. Legenda: AL GA RB II Reverso Escudetes dispostos em cruz (quinas deitadas) dentro de um círculo. Legenda: D REX PORTVGL Módulo Ø 18mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Peso 0,80g

MOEDA Inventário AC975 Dinheiro Reinado D. Afonso IV (1325-1357) Anverso Cruz grega com estrelas e crescentes, alternadamente, acantonados dentro de um círculo. Legenda: ALF REX PORTVGL. Reverso Escudetes dispostos em cruz dentro de um círculo. Legenda: GA RB II AL Módulo Ø 17,5mm Contexto arqueológico Cripta-ossário Peso 0,55g

1 cm


121

CANDIL Inventário AC895 Fundo discoidal convexo, reservatório cilíndrico, bico de forma piramidal separado por um curto canal, vestígios da garganta estreita tronco-cónica, asa elevada “tipo orelha” sobre a parede superior da peça, modelo atípico. Dimensões Diâm. da boca: 20mm; alt.: 80mm; diâm. máx.: 119mm; diâm. da base: 117mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Século XIII (?)

CANDEIA Inventário AC932 Base discoidal irregular, câmara aberta de paredes divergentes, lábio em bisel e bico por estrangulamento. Dimensões Diâm. do bordo: 84mm; alt.: 26mm; diâm. da base: 60mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

CANDEIA Inventário AC896 Base discoidal irregular, depósito aberto de paredes esvasadas, lábio simples, contraído, ocasionando o bico. Dimensões Diâm. da base: 50mm; alt.: 29mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

PÚCARO Inventário AC853 Pé plano, saliente, corpo elipsoidal com carena e asa de secção oval, colo ausente, lábio com engrossamento externo. Parede entre as extremidades da asa preenchida por caneluras com acentuada equidistância.

5 cm

Dimensões Diâm. da boca: 98mm; alt.: 125mm; diâm. máx.: 120mm; diâm. da base: 50mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XII-XIII


122

JARRO Inventário AC852 Pé plano, saliente, corpo elipsoidal com asa de secção oval, colo alto, lábio boleado. Ranhura na união colo-bojo. Dimensões Diâm. da boca: 76mm; alt.: 140mm; diâm. máx.: 98mm; diâm. da base: 46mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

BILHA Inventário AC872 Base plana, corpo globular com o arranque da asa e várias caneluras. Dimensões Diâm. da base: 52mm; diâm. máx.: 115mm; alt.: 75mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XII-XIII

BILHA Inventário AC891 Base plana, corpo globular com arranque de asa, caneluras e linhas de torno ressaltadas. Dimensões Diâm. da base: 97mm; diâm. máx.: 245mm; alt.: 180mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIII-XIV

5 cm


123

PANELA Inventário AC879 Base plana, corpo globular com asa de secção em fita, colo largo de pouca altura, lábio extrovertido biselado na parte interna, caneluras no início do ombro e na zona de flexão do corpo. Dimensões Diâm. da boca: 140mm; alt.: 250mm; diâm. máx.: 240mm; diâm. da base: 90mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XII-XIII

PANELA Inventário AC884 Base plana, corpo ovóide com asas de secção em fita, colo curto esvasado, lábio biselado com engrossamento interno. Caneluras no início do ombro e inflexão do corpo. Dimensões Diâm. da boca: 156mm; alt.: 280mm; diâm. máx.: 280mm; diâm. da base: 115mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Século XIV

POTE Inventário AC881 Lábio extrovertido biselado para o interior, colo de pouca altura, corpo ovóide. Caneluras na junção colo-ombro e uma série uniformizada completam a metade superior do corpo, no terço inferior conserva um orifício. Dimensões Diâm. da boca: 147mm; alt.: 232mm; diâm. máx.: 260mm Contexto arqueológico Cripta-ossário, cripta/desactivação Cronologia Séculos XII-XIII 5 cm


124

MALGA Inventário AC898 Fragmento parietal, faiança, copa hemisférica. Vidrado estanífero com motivos geométricos pintados a azul-cobalto sobre fundo branco. Dimensões Alt. do frag.: 29mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

MALGA Inventário AD030 Fragmento parietal, faiança, copa indeterminada. Vidrado estanífero com pintura a azul-cobalto sobre fundo branco. Dimensões Frag.: 25x22mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

JARRINHA Inventário AD014 Pé anelar, corpo periforme. Vidrado estanífero e uma composição com propensão geométrica pintada de azul esverdeado. Dimensões Diâm. da base: 70mm; alt.: 48mm; diâm. máx.: 85mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Séculos XIV-XV

5 cm

SINO Inventário AB174 Pequena campânula, de bronze, com matriz dos sinos eclesiásticos, num listel a Era de 1325 (que corresponde ao ano vulgar de 1287) em capitais, bem como o pentagrama e a cruz, que rematam a composição decorativa. Moldagem a cera perdida e cinzelagem. Dimensões Diâm. da boca: 220mm; alt.: 29mm Peso 5,6kg Função Religiosa Contexto arqueológico Cripta/desactivação Cronologia Século XIII

5 cm


125

MOEDA Inventário AC967 Real 10 soldos Reinado D. João I (1385) Anverso L. A sigla IHNS coroada. Legenda: IHNS PORTVGALI Reverso Entre cercaduras concêntricas, um escudete em cruz Módulo Ø 18,5mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Peso 0,91g

MOEDA Inventário AC969 Real de 3 libras ½ Reinado D. João I (1398-1408) Anverso L. A sigla IHNS coroada. Legenda: DEI GRA REX PO Reverso Entre cercaduras concêntricas, um escudete em cruz, cantonado por castelos. Legenda: ADIVTORIVM NOSTRVM QV Módulo Ø 25mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Peso 2,81g

MOEDA Inventário AC962 ¼ de Real

1 cm

Reinado D. João I (1409-1415) Anverso Quinas dentro de um escudo sobreposto à cruz da Ordem de Avis, são visíveis apenas os términos dos braços, circundados por uma linha pontilhada. Legenda: IHNS PORTVGALI Reverso Cruz pátea cantonada por quatro rosetas, no interior de um círculo ponteado. Legenda: ADIVTORIVM NOSTRVN Módulo Ø 18,5mm Contexto arqueológico Cripta/desactivação Peso 0,73g


126

MOEDA Inventário AC971 Dinheiro Reinado D. Afonso III (1248-1279) Anverso Escudetes em cruz, com besantes tocando a margem e a legenda intercalada a duas letras: PO RT UG AL Reverso Cruz pátea no centro com duas estrelas e dois crescentes acantonados, dentro de um círculo. Legenda: ALFONSV REX Módulo Ø 17,5mm Contexto arqueológico Silo 2 Peso 0,83g

1 cm

PÚCARO Inventário AC855 Fundo plano, irregular, bojo elipsoidal, colo alto cilíndrico, lábio afilado, canelura viva na junção colo-bojo. Dimensões Diâm. da boca: 60mm; alt.: 84mm; diâm. máx.: 64mm; diâm. da base: 36mm Contexto arqueológico Silo 2 Cronologia Séculos XIII-XIV 5 cm

ARTEFACTO / CEPTRO Inventário AC963 Pequena insígnia com símbolo icástico. Lâmina numa liga de cobre e ouro, expandindo-se em forma de triângulo, esculpida na face anterior com quinas, na posterior com um castelo, ambas com molduras incisas envolventes. Orla saliente, acoplada a um elemento esferoide transversal, firmando-se directamente noutro de secção cilíndrica e forma ligeiramente cónica. Fundida e cinzelada. Dimensões Compr.: 44mm; larg.: 22,5mm; esp.: 8mm. Triângulo: compr.: 23mm; larg.: 22,5mm; esp.: 2mm Material Cobre e ouro Contexto arqueológico Silo 2 Cronologia Séculos XIII-XIV Sino: desenho Hugo Pereira Peças cerâmicas: desenhos Luísa Batalha Artefacto/ceptro: desenho Carlos Carvalho Moedas: fotos Archeofactu

1 cm


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Bibliografia Abascal, Juan Manuel; Cebrián, Rosário – “Los Viajes de José Cornide por España y Portugal de 1754 a 1801”, Antiqvaria Hispanica, 19, Madrid: Real Academia de La História, 2009. Aragão, A. Teixeira de – Descrição geral e histórica das moedas cunhadas em nome dos Reis, Regentes e Governadores de Portugal, 2.ª ed., vol. I, Porto: Livraria Fernando Machado, 1964. Azevedo, Pedro A. de – “Alguns selos antigos do concelho de Santarém,” O Arqueólogo Português, III, Lisboa: Museu Nacional de Arqueologia, 1897, pp. 173-176. Beirante, Maria Ângela – “Salvação e memória de três donas coruchenses do século XIV”, Estudos em Homenagem ao Professor Doutor José Marques, vol. 3, Porto: Faculdade de Letras da Universidade, 2006. Brandão, Zeferino N. Gonçalves – Monumentos e lendas de Santarém, Lisboa: David Corazzi,1883. Bronseval, Frère Claude – Peregrinatio Hispanica, Paris: Presses Universitaires de France, Tome I, 1970. Brujin, Anton – De Middeleeuwse pottenbakkerijen in Zuid-Limburg (Publicaties van het Provinciaal Gallo-Romeins Museum te Tongeren, 9), Tongeren, 1965.

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Os restos humanos exumados durante a campanha de escavação de 2001 da Igreja de São Pedro em Coruche SÓNIA CODINHA 1

1. Introdução Se em vida o esqueleto humano é o suporte do corpo, na morte é o suporte do registo do que foi a vida desse corpo, constituindo o registo mais duradouro da existência de um indivíduo. De facto, os ossos e os dentes reagem activamente aos diversos constrangimentos mecânicos e a várias condições patológicas, fornecendo importantes informações sobre a idade, sexo, características morfológicas e condições paleopatológicas dos indivíduos. Neste sentido, o campo de estudo da paleoantropologia contribui para projecções sobre a estrutura da população, afinidades biológicas, comportamentos culturais e padrões de doença essenciais à reconstrução da biologia dos grupos populacionais que nos antecederam. No presente trabalho apresentam-se os resultados do estudo paleobiológico dos restos osteológicos, nomeadamente três esqueletos e um ossário (ossário 4), exumados do espaço contíguo da Igreja de São Pedro, Coruche, durante a intervenção arqueológica decorrida entre finais de Setembro e inícios de Novembro de 2001. As principais características dos restos humanos constituintes da amostra aqui apresentada, tanto dos esqueletos como do ossário 4, são a elevada fragmentação e a degradação da superfície óssea. Estes efeitos destrutivos inviabilizaram nalguns casos a análise paleobiológica. De notar que inclusivamente os dentes, os constituintes do esqueleto com o maior potencial de preservação dada a forte estrutura do esmalte dentário, o qual é o material mais denso do esqueleto, caracterizavam-se por uma grande fragilidade e alterações cromáticas na forma de colorações negras, provavelmente devidas à impregnação de sais existentes no solo.

A corrosão, observada na superfície de todas as peças ósseas, muito provavelmente estará associada tanto à acidez do solo como à acção das raízes das plantas, que ao excretarem ácidos orgânicos dissolvem a matéria mineral de ossos e dentes. Outra consequência da secreção de ácidos orgânicos pelas raízes remete-se a alterações cromáticas da superfície óssea, com as zonas onde as raízes actuaram a apresentarem uma coloração distinta do osso adjacente. Por outro lado, as raízes também podem potencialmente fragmentar os ossos quando, por exemplo, se conseguem introduzir nos canais medulares diafisiários ou na abóbada craniana através dos orifícios naturais, acabando o seu crescimento progressivo por danificar as peças ósseas.2 Há que notar que a grande fragmentação e degradação observadas nos ossos do ossário 4 poderão estar em larga medida relacionadas com o próprio contexto de inumação, uma vez que os ossários, por se tratarem de inumações secundárias, implicam o remeximento e/ou remoção dos ossos do seu local de deposição primário.

2. Metodologia aplicada na análise paleobiológica Dada a variação de preservação do material ósseo, durante a análise paleobiológica utilizaram-se os dados cruzados de vários métodos de análise antropológica consoante os ossos disponíveis. Durante a estimativa da idade à morte dos ossos de indivíduos adultos considerou-se a severidade da patologia degenerativa articular, na medida que esta está relacionada com a idade, CENCIFOR - Centro de Ciências Forenses (Universidade de Coimbra). Fotografias da autora.

1

2

Botella et al., 2000.


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e o estádio de obliteração das suturas cranianas de acordo com o método proposto por Masset,3 uma vez que a natureza extremamente fragmentada da amostra invalidou a aplicação da maioria dos métodos para a estimativa deste parâmetro demográfico. Durante a avaliação da diagnose sexual desta amostra, tanto para os esqueletos como para as peças ósseas do ossário 4, cujo estado de preservação permitiu a aplicação dos diferentes métodos de análise, observaram-se as características morfológicas dos ossos ilíacos4 e também se realizaram medidas para o talus, calcâneo5 e ossos longos.6 De notar que este parâmetro demográfico, que muitas vezes é inviável num esqueleto completo, em material desarticulado (ossário) a sua análise se complica de sobremaneira. Ao contrário da diagnose sexual, a qual se mostra inviável nos indivíduos não-adultos, a estimativa da idade à morte de indivíduos subadultos revela-se mais eficaz, apresentando intervalos etários relativamente curtos comparativamente aos conseguidos para os adultos. Este facto deve-se às complexas e rápidas mudanças cronologicamente sequenciáveis que ocorrem nos diferentes constituintes do esqueleto humano durante o crescimento. Embora os estádios de desenvolvimento da erupção e calcificação dentárias propostos por Ubelaker7 sejam o método mais preciso para a estimativa da idade à morte nos ossos de não-adultos, estes só puderam ser aplicados num fragmento de mandíbula recuperado do ossário 4. Assim sendo, e embora os ossos de não-adulto recuperados deste ossário se encontrassem fragmentados, recorreu-se às medidas do comprimento das diáfises dos ossos longos segundo Stloukal e Hanákova8 e aos diferentes estádios de ossificação das epífises e diáfises apresentados em Scheuer e Black,9 na obtenção de uma idade aproximada para os ossos em questão. A caracterização morfológica compreende o estudo dos caracteres métricos10 e não-métricos dos diferentes ossos com o intuito de caracterizar fisicamente os indivíduos e verificar semelhanças e/ou diferenças morfológicas entre populações. Dada a fraca preservação do ossário 4, a análise métrica deste remeteu-se ao cálculo dos índices de achatamento dos ossos longos, uma vez que

a extrema fragmentação da maioria dos ossos invalidou a estimativa dos índices de robustez e da estatura. Pela mesma razão, no ossário 4 também somente se procedeu à observação e registo de caracteres não-métricos pós-cranianos dada a inexistência de crânios completos nesta amostra. Na análise métrica tanto dos esqueletos como do ossário utilizaram-se os índices de robustez e achatamento desenvolvidos por Olivier e Demoulin11 e para o cálculo da estatura as fórmulas desenvolvidas por Mendonça.12 O estudo dos caracteres não métricos cranianos teve por base as definições de Hauser e De Stefano13 para o crânio e as descrições de Saunders14 para os caracteres pós-cranianos. No âmbito da paleopatologia, o estudo da patologia degenerativa tanto articular como não-articular baseou-se nas propostas de Crubézy.15 Quanto a outros diagnósticos paleopatológicos mais específicos, estes serão indicados à medida que forem descritos. No decorrer da análise da cavidade oral utilizou-se a escala de Smith16 para a quantificação do grau de desgaste dentário, as gradações de Lucaks17 para a caracterização das cáries quanto ao tamanho, e as propostas de Moore e Corbet18 para a descrição da sua localização. O desenvolvimento da doença periodontal19 foi analisado segundo as propostas de Mendonza.20 Também se perscrutaram possíveis sinais de stress e problemas de crescimento através da detecção de hipoplasias lineares do esmalte dentário (HLED).21 A estimativa do número mínimo de indivíduos do ossário 4 teve por base a metodologia proposta por Herrmann et al.22

3. Os esqueletos De entre o conjunto de restos humanos recuperados do espaço contíguo da Igreja de São Pedro recuperaram-se três inumações primárias, as quais concernem três esqueletos adultos. O estado de degradação do esqueleto 1 impossibilitou qualquer tipo de análise antropológica por não se terem recuperado quaisquer ossos ou dentes completos. Neste sentido, somente se pode afirmar que estes restos ósseos terão pertencido a um indivíduo adulto.


131

Os esqueletos 2 e 3, embora apresentassem a superfície óssea bastante alterada e estivessem bastante fragmentados, foram ambos diagnosticados como femininos e a sua idade à morte estimada em 30 a 40 anos e 20 a 30 anos, respectivamente. Não se registaram quaisquer sinais de patologia degenerativa articular em ambos os esqueletos, tendo-se detectado no esqueleto 2 entesopatias23 ligeiras na área de inserção do triceps brachii de ambos os cúbitos, e no esqueleto 3 entesopatias ligeiras na crista lateral supracondilar dos úmeros e na fossa solear das tíbias. Em ambos os esqueletos observaram-se espigas laminares nas vértebras torácicas e lombares, as quais poderão dever-se ao esforço continuado sobre as costas, por exemplo a levantar pesos, já que as espigas laminares se desenvolvem nas zonas de inserção dos ligamentos amarelos da coluna. A análise da cavidade oral revelou desgaste dentário muito ligeiro em ambos os esqueletos, o que poderá estar associado à juventude dos indivíduos. No esqueleto 3 detectaram-se três cáries médias, o que aponta para uma alimentação rica em hidratos de carbono e pobre higiene oral. Hipoplasias lineares do esmalte dentário foram observadas no esqueleto 2, o que poderá significar que o indivíduo em questão superou um período de stress nutricional ou patológico durante o seu crescimento. Ainda no campo da paleopatologia, a tíbia direita do esqueleto 3 apresentava uma periostite24 a meio da diáfise, na parte lateral da tíbia direita. De notar que em áreas em que o periósteo está próximo da pele, como neste caso, este tipo de lesão resulta frequentemente de contusões e processos isquémicos secundários a traumas e não necessariamente a algum processo infeccioso. Juntamente com os ossos das mãos do esqueleto 3 foi recuperado um os petrosum de um não-adulto (fig. 1), cujo estádio de desenvolvimento corresponde a um indivíduo com uma idade à morte estimada em seis meses lunares.25 De notar que esta peça óssea, parte da pirâmide petrosial, é das que apresentam um maior potencial de preservação, o que significa que este osso possa ser o único resto ósseo que se preservou de um feto. Considerando que este esqueleto é feminino e com uma idade

3

Masset, 1982.

4

Ferembach et al., 1980.

5

Silva, 1995.

6

Wasterlain, 2000.

7

Ubelaker, 1989.

8

Stloukal e Hanákova, 1978, in Ferembach et al., 1980.

9

Scheuer e Black, 2000.

10

equenas variações morfológicas nos ossos caracterizadas pela sua P distribuição descontínua. A etiologia congénita da sua frequência permite que sejam utilizados como um meio para calcular distâncias biológicas entre grupos de uma mesma população (Cunha, 1994).

11

Olivier e Demoulin, 1990.

12

Mendonça, 2000.

13

Hauser e De Stefano, 1989.

14

Saunders, 1978.

15

Crubézy, 1989.

16

Smith, 1984.

17

Lucaks, 1989.

18

Moore e Corbet, 1971, in Lamarque, 1991.

19

doença periodontal pode ser definida como a degeneração intermitente A dos tecidos que suportam os dentes. É geralmente caracterizada por uma resposta inflamatória que normalmente resulta numa reabsorção alveolar, criando uma distância anormalmente grande entre o osso e a junção cimento-esmalte do dente (Ortner, 2003). A perda progressiva de osso alveolar consequentemente levará à perda do dente devido à ausência de superfície para a inserção dos ligamentos (Larsen, 1997).

20

Mendonza, 1982.

21

s hipoplasias lineares do esmalte dentário são deficiências na espessura A do esmalte resultantes de distúrbios fisiológicos durante a actividade dos ameloblastos do esmalte aquando da produção da matriz. Caracterizam-se por linhas transversais, sulcos ou buracos na superfície labial das coroas dentárias. Aparentemente os dentes são afectados diferencialmente pelo stress fisiológico, com os dentes anteriores a mostrarem-se mais sensíveis (Lukacs, 1989; Goodman e Rose, 1991; Roberts e Manchester, 1995; White, 2000).

22

Herrmann et al., 1990.

23

arcadores de stress ocupacional que se definem como lesões M inflamatórias que afectam as áreas de inserção dos tendões do músculos. Devem-se ao recorrer contínuo e repetitivo dos músculos, com uma forte tendência para formar fibrose (Cunha, 1994).

24

periostite, ou reacções periósteas, corresponde a lesões osteológicas não A específicas, produto de um agente infeccioso ou mesmo de um trauma. O processo inflamatório manifesta-se sob a forma de porosidade ténue, estriação longitudinal e subsequente deposição de placas de osso novo sobre a superfície cortical original (Campillo, 2001; Roberts e Manchester, 1995).

25

Fazekas e Kósa, 1978; Scheuer e Black, 2000.


132

à morte compreendida entre os 20 e os 30 anos (o que significa que se encontrava no período fértil), a presença deste pequeno osso juntamente com os ossos das mãos poderá indiciar que esta mulher estaria grávida de aproximadamente seis meses na altura da morte e este fragmento ósseo ser o que se preservou de um feto de seis meses lunares que se encontraria no útero aquando da morte do indivíduo. Outro factor a favor da hipótese de que o os petrosum recuperado possa pertencer a um feto deste indivíduo, é o facto do esqueleto ter sido inumado com ambas as mãos unidas e dispostas sobre a zona pélvica. No entanto, uma vez que não se recuperaram mais ossos de feto, impossibilita a confirmação desta hipótese, podendo este pequeno osso ter-se somente misturado com as terras de enchimento da sepultura, não tendo qualquer associação directa ao indivíduo em questão.

Fig. 1 – Os petrosum de um não-adulto recuperado juntamente com os ossos das mãos do esqueleto 3

1 cm

4. O ossário 4 O número mínimo de indivíduos estimado para o ossário 4 foi de 50 indivíduos, 45 adultos (valor estimado com base no fémur esquerdo) e 5 não-adultos. A discrepância dos valores das estimativas do número mínimo de indivíduos para os diferentes tipo de ossos de adulto (tabela 1), com os fémures e tíbias a mostrarem os valores mais elevados, estão de acordo com o facto desta amostra se tratar de uma inumação secundária, uma vez que a maior robustez dos fémures e das tíbias lhes proporciona um maior potencial de preservação que, por exemplo, os rádios, cúbitos ou perónios.

Fig. 2 – Abertura septal no úmero SP.C96.540 recuperado do Ossário 4

A estimativa da idade à morte para a maioria dos ossos de indivíduos adultos revelou que estes teriam pertencido a indivíduos cuja idade à morte se situaria entre os 20 e os 50 anos. Para os ossos de não-adulto recuperados, a idade à morte estimada varia entre os 30 meses e os 15 a 16 anos (tabela 2) A diagnose sexual foi possível para alguns ossos, tendo-se verificado que a maioria das peças ósseas onde foi possível a aplicação de métodos para a determinação deste parâmetro demográfico pertencia a indivíduos do sexo masculino (32 ossos em 56 – tabela 3). No entanto, há que notar que isso não significa que estão necessariamente representados mais homens que mulheres neste ossário, mas que simplesmente se diagnosticaram mais ossos masculinos. Há que atender também à grande fragmentação óssea desta amostra. Por exemplo, o osso mais viável para a diagnose sexual, o osso coxal, permitiu detectar um mínimo de três homens e duas mulheres. A análise métrica e morfológica revelou que, quanto ao achatamento, 47% das tíbias são mesocnémicas, 35% euriméricas e 18% platicnémicas, o que aponta para um achatamento médio. Os resultados para os fémures revelaram que 70% dos fémures onde foi possível calcular este índice apresentavam platimeria e os restantes 33% eurimeria. A platimeria está associada ao aumento das superfícies de inserção muscular, nomeadamente do músculo quadrícipe crural, pelo uso excessivo durante a marcha. Relativamente aos caracteres não métricos, detectou-se a presença de abertura septal numa frequência de 35% (fig. 2) e de terceiro trocanter numa frequência de 12,5%.


133

No campo da paleopatologia, o estudo da patologia degenerativa articular foi inviável dada a ausência de zonas articulares completas ou cujo estado de preservação permitisse esta abordagem. O mesmo tipo de constrangimento foi verificado para a patologia degenerativa não articular. No entanto ainda se observaram algumas entesopatias mormente ligeiras na linea aspera de alguns fémures, na fossa solear, tuberosidade anterior e maléolo interno de algumas tíbias, no maléolo lateral de um perónio e na crista supracondilar de alguns úmeros. Embora por norma as vértebras recuperadas deste ossário estejam completamente corroídas pelos factores tafonómicos, ainda assim se detectou a presença de nódulos de Schmorl26 em duas vértebras torácicas (fig. 3), os quais poderão estar associados a pressões biomecânicas e esforço físico sobre a coluna. O diagnóstico de patologia infecciosa remeteu-se à observação de alguns casos de periostite nas diáfises de várias tíbias, tanto na face medial como na face lateral. De entre as lesões periósteas observadas são de salientar o caso particular da tíbia SP.C75.451 (fig. 4) que, para além de um espessamento do periósteo na parte medial da diáfise, apresenta também nesta mesma face proliferação de osso novo, e o fémur SP.75.448, que apresenta um forte espessamento cortical. Embora estes tipos de lesão pareçam de origem infecciosa, a natureza da amostra, aliada ao estado de fragmentação dos referidos ossos, impediu a precisão de um diagnóstico. A patologia oral não revelou o desenvolvimento de cáries ou tártaro nos dentes. O desgaste dentário é de grau médio (grau 4 numa escala de 8), tendo-se observado doença periodontal27 em quatro mandíbulas. Também se detectou um abcesso28 peri-apical num fragmento mandibular, nomeadamente num primeiro pré-molar (fig. 5). Na presente amostra a perda ante mortem de dentes é bastante significativa. Nas 20 peças ósseas observadas contabilizaram-se 27 perdas de dentes ante mortem num total de 177 dentes analisados, cinco perdas de dentes no maxilar superior e 22 no inferior. De notar que os molares foram os dentes mais afectados. A perda de dentes ante mortem pode estar relacionada com o desenvolvimento

da doença periodontal, cáries, uso da cavidade oral como instrumento, e consequentemente a traumatismos nos dentes, e à idade. De facto, apesar da percentagem de cáries detectada ter sido muito pequena, não podemos descurar a hipótese de que as perdas de dentes se possam ter devido ao desenvolvimento de cáries que terão levado à completa destruição da coroa e posteriormente à perda do dente.

5. Considerações finais A análise paleobiológica desta amostra permitiu concluir que os restos humanos exumados do espaço contíguo da Igreja de São Pedro, Coruche, correspondiam a um número mínimo total de 53 indivíduos, 48 adultos e 5 não-adultos. De entre estes estão contabilizadas as três inumações primárias, as quais correspondiam a três indivíduos adultos, dois do sexo feminino e um de sexo indeterminado. No que concerne ao ossário 4, foram contabilizados um maior número de ossos masculinos, no entanto isto não significa que houvesse necessariamente mais homens no ossário, mas que foram diagnosticados mais ossos masculinos. Há que atender sempre à severa degradação óssea de todo o material desta amostra, a qual invalidou a análise completa das peças ósseas. A estimativa da idade à morte para a maioria dos ossos de indivíduos adultos revelou que estes teriam pertencido a indivíduos cuja idade à morte se situaria entre os 20 e os 50 anos. Este intervalo etário é corroborado pela pouca frequência de artrose registada bem como pelo ligeiro a médio desgaste dentário observado. Tanto 26

Os nódulos de Schmorl são pequenas depressões nos discos intervertebrais que se devem à formação de hérnias no disco intervertebral na placa de crescimento da vértebra adjacente. Este tipo de lesão está associado a pressões mecânicas e ao esforço físico ou, no caso de vértebras de indivíduos jovens, a problemas durante o crescimento (Rogers e Waldron, 1995; Capasso et al., 1999).

27

Ver nota 19.

28

Os abcessos resultam do desenvolvimento de uma infecção, geralmente na ponta apical da raiz do dente. Na origem deste processo infeccioso podem estar cáries, desgaste dentário severo, doença periodontal ou alguma lesão traumática. À medida que os micro-organismos se acumulam na caixa polpar inicia-se a infecção. O aumento de pressão vai originar a formação de um orifício para a libertação do pus, e é esta a fase que permite a identificação deste processo em material esquelético.


134

Fig. 3 – Nódulos de Schmorl nas vértebras SP.C110.233 e SP.C.42.295 recuperadas do Ossário 4

Fig. 4 – Face lateral da diáfise da tíbia SP.C.75.451 com periostite e proliferação de osso novo recuperado do Ossário 4

Fig. 5 – Abcesso peri-apical detectado no fragmento mandíbular SP.C.88.85, recuperado do Ossário 4


135

a incidência de artrose como de desgaste dentário tendem a ser mais acentuados em indivíduos idosos. Para os ossos de não-adulto recuperados a idade à morte estimada varia entre os 30 meses e os 15 a 16 anos. Relativamente aos caracteres não métricos, no ossário 4 detectou-se a presença de abertura septal numa frequência de 35% e de terceiro trocanter numa frequência de 12,5%. Este último também foi detectado no esqueleto 3. No campo da paleopatologia, o estudo da patologia degenerativa articular foi inviável dada a ausência de zonas articulares completas ou cujo estado de preservação permitisse esta abordagem. O mesmo tipo de constrangimento foi verificado para a patologia degenerativa não articular, no entanto ainda se observaram algumas entesopatias mormente ligeiras nalguns ossos dos membros inferiores e úmeros do ossário 4. Embora se tenham detectado nódulos de Schmorl em duas vértebras torácicas, os quais estão associados muitas vezes a esforços biomecânicos na coluna, considerando as entesopatias ligeiras detectadas poder-se-á adiantar que provavelmente os indivíduos em questão não exerceriam actividades físicas muito vigorosas. No entanto, há sempre que considerar que estes são dados muito relativos dadas tanto a natureza de ossário de grande parte da amostra como a severa fragmentação que a caracteriza.

Ainda no âmbito da paleopatologia, tanto no ossário 4 como nos esqueletos se detectaram casos de periostite, principalmente nas tíbias. Estas lesões infecciosas não específicas apontam para a coabitação com agentes infecciosos. No entanto, principalmente para o caso da periostite observada nas tíbias, não se pode descartar a hipótese desta se dever a contusões e a processos isquémicos secundários resultantes de traumas sobre as pernas e não necessariamente a um processo infeccioso. Ao nível da análise da cavidade oral, não se detectou incidência de cáries ou tártaro nos dentes do ossário 4, tendo-se observado doença periodontal em quatro mandíbulas e um abcesso peri-apical num fragmento mandíbular. A perda ante mortem de dentes foi a condição mais relevante, com um total de 27 dentes perdidos ante mortem numa soma de 177 dentes analisados. Excepto para a presença de cáries e de hipoplasias lineares do esmalte dentário nos esqueletos 3 e 2 respectivamente, existe concordância de resultados entre o ossário 4 e os esqueletos recuperados aquando da mesma campanha de escavação.


136

N.º MÍNIMO DE INDIVÍDUOS TIPO DE OSSO

DIREITO

ESQUERDO

Úmero

28

25

Rádio

6

4

Cúbito

18

9

Fémur

33

45

Tíbia

18

17

Perónio

6

10

Pirâmide petrosial

13

21

Tabela 1 – Resultados obtidos na estimativa do número mínimo de indivíduos do Ossário 4

DESIGNAÇÃO

OSSO

ESTIMATIVA DA IDADE À MORTE

SP.C42.235

Diáfise de fémur

30 meses

SP.C88.38

Diáfise de fémur

3 anos

SP.C42.234

Fragmento de mandíbula

6 anos +/- 24 meses

SP.C110.197

Fémur direito

8 a 9 anos

SP.C96.572

Extremidade proximal de fémur direito

15 a 16 anos

Tabela 2 – Resultados obtidos para a estimativa da idade à morte dos ossos de indivíduos não-adultos do Ossário 4


137

MASCULINO

FEMININO

INDETERMINADO

N.º DE OSSOS ANALISADO

Calcâneo direito

0

1

0

1

Coxal esquerdo

2

1

0

3

Coxal direito

3

2

0

5

Fémur direito

4

3

1

8

Fémur esquerdo

5

2

1

7

Talus esquerdo

2

2

0

4

Tíbia direita

6

5

0

11

Tíbia esquerda

7

0

0

7

Úmero direito

2

4

0

6

Úmero esquerdo

2

2

0

4

OSSO

Tabela 3– Resultados obtidos para a diagnose sexual do Ossário 4

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138

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139

Ressurreição virtual do som do sino de São Pedro de Coruche utilizando técnicas de modelação dinâmica MIGUEL CARVALHO, 1 VINCENT DEBUT, 2 JOSÉ ANTUNES,3 ELIN FIGUEIREDO 4

Resumo

1. Introdução

Datado de 1287, o sino da Igreja de São Pedro de Coruche é o sino mais antigo conhecido em Portugal. A sua descoberta arqueológica em 2001 tem impulsionado a realização de diversos estudos respeitantes ao seu enquadramento histórico, a ornamentação e simbologia, a análise metalográfica, entre outros. Todavia, a sua sonoridade, que representa um dos aspectos estéticos essenciais, ainda não foi revelada. É certo que, por ter sido encontrado partido e incompleto, uma análise precisa das suas características sonoras através de medições vibratórias ou acústicas torna-se impossível. Com o objectivo de dar resposta a essa necessidade, desenvolvemos uma metodologia inovadora que combina técnicas experimentais e de modelação da acústica musical, permitindo a ressurreição virtual da voz deste sino medieval. A metodologia conjuga medições geométricas, cálculos por elementos finitos (MEF) e técnicas de síntese sonora por modelação física. Com base num levantamento rigoroso da geometria do sino de Coruche, as suas propriedades vibratórias foram estimadas por análise modal, resultando numa descrição precisa da afinação interna deste instrumento. Uma vez os parâmetros modais estimados, foi simulado o comportamento vibratório do sino percutido, através da implementação de técnicas de síntese modal. Foram assim obtidos diversos sons que correspondem aos emitidos pelo sino no passado. Paralelamente, pertencendo o sino de Coruche a uma fase de transição dos perfis que se estendeu desde o século XII ao século XV, foi realizado um estudo de cariz histórico relativo às técnicas de construção e aos aspectos de afinação dos sinos deste período, de forma a gerar novo conhecimento sobre a fundição sineira em Portugal e situar o sino de Coruche no contexto em que se insere.

Exumado de uma cripta-ossário numa escavação arqueológica realizada em São Pedro, na vila de Coruche, Portugal, este sino é um exemplo raro sobrevivente da fundição sineira anterior à introdução, cerca do século XVII, de técnicas de afinação através da alteração da forma do sino após a sua fundição.5 De particular importância, este exemplar pertence a um período de experimentação em que o perfil dos sinos evoluiu notavelmente, de cónico para a sua forma actual, o que, sem dúvida, originou grandes alterações na sua qualidade sonora. Para a obtenção de um som puro e claro os sinos necessitam de ser afinados após a sua fundição, um processo que consiste essencialmente na alteração localizada da massa e da rigidez da sua estrutura, de forma a obter um determinado conjunto-alvo de frequências modais (as frequências de ressonância, associadas aos modos vibratórios do sistema). O som de um sino apresenta inúmeros parciais resultantes dos seus modos vibratórios e a sua qualidade sonora depende principalmente dos primeiros. Usualmente, cinco modos vibratórios são afinados na 1

entro de Ciências e Tecnologias Nucleares, Laboratório de Dinâmica C Aplicada, Campus Tecnológico e Nuclear, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, IST/CTN/ADL, Sacavém, Portugal. INET-MD, Instituto de Etnomusicologia, Centro de Estudos em Música e Dança, Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.

2

epartamento de Ciências Musicais, Faculdade de Ciências Sociais D e Humanas, Universidade Nova de Lisboa, Lisboa, Portugal.

3

entro de Ciências e Tecnologias Nucleares, Laboratório de Dinâmica C Aplicada, Campus Tecnológico e Nuclear, Instituto Superior Técnico, Universidade de Lisboa, IST/CTN/ADL, Sacavém, Portugal.

4

ENIMAT/I3N, Departamento de Ciências dos Materiais, Faculdade de C Ciências e Tecnologia, Universidade Nova de Lisboa, Caparica, Portugal.

5

Sebastian, 2008.


140

Uma questão crucial, no que diz respeito aos sinos históricos, prende-se com a análise das suas características de afinação, em particular as relações de frequências entre os seus parciais, os quais formam a estrutura musical do som radiado. Uma abordagem simples consistiria na realização de uma identificação modal experimental rigorosa das propriedades dinâmicas dos sinos, com base em ensaios vibratórios, analisando as relações de frequência entre os parciais identificados. Para tal, Debut et al.6 propuseram recentemente uma técnica de análise baseada em algoritmos sofisticados de identificação modal, e demonstraram a sua eficácia através da análise de afinação de um conjunto de 102 sinos pertencentes aos carrilhões do Palácio Nacional de Mafra. No entanto, para o presente trabalho, esta abordagem não é de todo viável, uma vez que o sino de Coruche foi encontrado fragmentado e incompleto (fig. 1), impedindo assim qualquer medição vibratória do seu som original.

Neste estudo, a primeira etapa do nosso trabalho consistiu na medição da geometria do sino, para inferir o seu perfil e poder construir um modelo completo 3D por elementos finitos. Usando esse modelo matemático e as propriedades mecânicas do bronze obtidas por técnicas de caracterização de materiais, foram calculadas estimativas dos parâmetros modais do sino, as grandezas que caracterizam o respectivo comportamento vibratório. Em seguida, usando os parâmetros dos modos calculados, foram realizadas simulações numéricas temporais com base numa representação modal da dinâmica do sistema. Assim, como principal resultado deste estudo, o sino de Coruche voltou a poder ser escutado.

Fig. 1 – Sino da Igreja de São Pedro, Coruche [Archeofactu]

5 cm

actualidade, seguindo determinados rácios de frequências, de forma a obter intervalos musicais específicos: bordão (“hum”, 0.5f0), fundamental (“prime”, f0), terceira menor (1.19f0), quinta (1.5f0) e nominal (oitava, 2f0).


141

2. Contextualização histórica A introdução do sino na região europeia ter-se-á dado, segundo alguns autores, por volta de 1000 a.C., através da migração de povos indo-europeus. Por volta do ano 400, o bispo de Nola, Paulinus (353-431), e posteriormente o Papa Sabinianus, c.a. 600, contribuíram para a introdução dos sinos na igreja cristã. Embora estes ainda não cumprissem funções musicais, foram colocados em grande parte das torres das igrejas, durante a Idade Média, aumentando progressivamente em número e em tamanho, acabando por adquirir um simbolismo próprio dentro do cristianismo e acumulando funções essencialmente de aviso e de chamada para o culto.7 Exemplares encontrados no final do século VI e inícios do século VII levam-nos a concluir que os primeiros sinos europeus não eram de bronze, mas sim de materiais como o ferro forjado, como é o caso de sinos encontrados no Mosteiro de São Gall e no Mosteiro de Santa Cecília, ou de cobre, como é o caso de um sino da igreja de Stival, Pontivy. No caso particular da Península Ibérica, existem referências à utilização de sinos no rito visigótico desde o século X e, no caso específico português, a referência mais antiga de utilização de sinos reporta-se a 870.8 No que diz respeito a técnicas de construção de sinos utilizadas nos primórdios da fundição sineira, sabe-se, através do tratado “De Diversis Atribus”, do monge Theophilus, que nesta época os moldes eram realizados à mão livre. Para a sua construção utilizava-se uma técnica designada por modelação horizontal com falso sino em cera, que consistia na utilização de um torno horizontal, sobre o qual se acumulava e moldava o barro até este assumir a forma do macho com o perfil interior do sino. Ainda segundo Theophilus, utilizava-se um cadinho para a fusão do metal, “recipiente de tijolo, pedra e barro, inflamado em contínuo pelo accionamento de um ou mais foles”.9 Relativamente ao perfil do sino, verifica-se que a sua geometria foi alvo de diversas experimentações ao longo dos tempos. Alguns autores admitem a coexistência de diferentes perfis durante, pelo menos, parte do período medieval, mantendo-se esta diversidade, em maior ou

menor grau, até ao século XVI.10 Por volta dos séculos VI-VII, as referências apontam para a existência de sinos com perfis verticais de secção quadrangular.11 Nos dois séculos seguintes, já com o bronze como principal componente utilizado na construção de sinos europeus, nomeadamente na Península Ibérica, os sinos começaram a apresentar formas hemisféricas, esféricas e campanulares. Nesta época os sinos apresentavam um perfil mais cónico, o que os tornava menos musicais.12 Mais tarde estes tornaram-se mais espessos no bojo, aproximando-se assim a sua forma da dos sinos ocidentais, como os conhecemos nos dias de hoje.13 Apesar da longa existência deste instrumento, é apenas no século XI que adquire funções musicais no mundo ocidental, quando nos mosteiros se começaram a agrupar pequenos conjuntos de sinos afinados na escala diatónica, para funções de instrução musical e utilização como registo adicional do órgão. Um dos mais primitivos instrumentos deste género é a cymbala, que se encontra representado, por exemplo, nas Cantigas de Santa Maria.14 Assim, começou a sentir-se necessidade de fundir os sinos de forma a associá-los a determinadas notas musicais. Uma vez que os monges se baseavam em raciocínios matemáticos, os quais se viria a descobrir mais tarde não serem perfeitamente adequados, acabaram por suspeitar que os desvios de afinação inerentes eram causados por erros de fundição, o que os levou a tentar afiná-los depois de fundidos, podendo considerar-se esta a origem da afinação destes instrumentos.15 6

Debut et al., 2013.

7

Price, 1933.

8

Sebastian, 2008, cap. I, § 3.

9

Sebastian, 2008, cap. I, § 12, p. 71.

10

Sebastian, 2008, cap. I, § 5.

11

Sebastian, 2008, cap. I, § 5.

12

Perrin et al., 1995.

13

Bagot, 1997.

14

Lehr, 1965; Price, 1933.

15

Lehr, 1965.


142

Cerca de 1200, depois de alguma experimentação com a geometria do sino, este adquire uma nova forma, mais alargada e mais espessa em algumas partes, conhecida como sugarloaf (fig. 2), o que permitiu que os sinos tivessem uma nota mais reconhecível, possibilitando um melhor efeito musical. Este desenvolvimento poderá ter sido devido tanto a necessidades de maior resistência física do instrumento como a considerações musicais, ou ainda a técnicas melhoradas de fundição.16 Foi também nesta época que Vincent Beauvais escreveu: “in a bell three individual tones can be produced: a low one by striking the bell in the middle, a high one by striking at the upper waist, and an intermediate one by striking at the lower waist”, revelando-se pela primeira vez um interesse pelo fenómeno dos parciais dos sinos.17

Vestígios arqueológicos do Mosteiro de São João de Tarouca provam que, no século XIV, já era empregue em Portugal uma técnica de modelação com falso sino em barro, sendo que o torno horizontal era substituído pelo torno vertical, encontrando-se o molde fixo durante todo o processo, rodando apenas a cércea de madeira que dava ao molde a forma do perfil desejado.20 Além disso, neste período, no qual se enquadra o sino de São Pedro de Coruche, ocorre uma fase de transição na forma dos sinos, tornando-se o corpo mais vertical e o ombro mais quadrado, surgindo as primeiras manifestações precoces daquilo que viria a ser o perfil gótico de 3 tons, muito comum no século seguinte, em que pelo menos três parciais importantes no sino estavam em concordância satisfatória.21 Na figura 2 está representada a evolução dos perfis entre os séculos XII e XV.

3. O sino de Coruche

Fig. 2 – Evolução do perfil do sino entre os séculos XII e XV 18

Assim, a fundição sineira “terá apenas sofrido uma lenta evolução até aos séculos XIII-XIV, caracterizando-se até então pela fundição de exemplares de limitada proporção e pela ineficiência técnica, mantidos pela conformidade dos meios em relação às necessidades”.19 Foi apenas em meados do século XIV, com a introdução das cérceas na fundição sineira, que se verificou um grande avanço na campanologia. Até então, os sinos eram construídos praticamente à mão livre, sem o auxílio de um molde, fixando-se apenas algumas dimensões a priori, nunca existindo, consequentemente, dois sinos com perfis iguais.

O sino de Coruche é um pequeno sino medieval, de altura 21cm (sem a asa), com diâmetro 22cm na boca, representando um peso de 4,8kg, que foi descoberto em 2001 numa cripta-ossário durante o decurso de uma escavação arqueológica junto à igreja de São Pedro, realizada por Cristina Calais (veja fig. 3). Datado de 1287, é o sino mais antigo conhecido em território português até à data. Para além do facto histórico, este sino destaca-se como um exemplar único de um período onde se verificaram grandes progressos na fundição sineira, nomeadamente ao nível da afinação, o que lhe confere uma grande relevância para a musicologia. O sino foi encontrado partido e incompleto, com uma lacuna ao nível do ombro, inviabilizando qualquer medição acústica ou vibratória fiável para avaliar a sua sonoridade. Entretanto, as propriedades do seu material foram acedidas através de estudos elementares por espectrometria de micro-fluorescência de raios X, dispersivo de energias (micro - FRX). Os resultados evidenciaram que o sino foi fabricado em bronze, com uma composição de cerca de 76% de cobre (Cu), 21% de estanho (Sn) e 3% de chumbo.22


143

Fig. 3 – Identificação do sino, sob uma densa camada de telhas, no decorrer da escavação da cripta-ossário

4. Medição da geometria do sino de Coruche Como referido anteriormente, as propriedades dinâmicas de uma estrutura podem ser obtidas de duas formas: (1) experimentalmente, através de métodos de identificação modal, ou (2) teoricamente, através de cálculos modais. Tendo em vista o estado de preservação do sino descoberto, a abordagem teórica impôs-se de forma natural. No entanto o seu desenvolvimento implica o conhecimento detalhado das propriedades físicas dos materiais (componentes do bronze) e da geometria do sino. Com esse intuito, foi desenvolvida uma metodologia que permitiu reconstituir a fisionomia do sino a partir de uma série de medições geométricas, que incluíram os diâmetros e as espessuras em função das coordenadas azimutal e axial. Assim, foi definida uma malha com 36 pontos igualmente espaçados no plano azimutal e em 26 alturas diferentes, num total de 936 pontos. Como ilustrado na figura 4, o sino foi fixado num suporte rotativo, com a boca para cima e as medições foram feitas a cada 10 graus ao longo da sua circunferência. As medições de posição absoluta foram realizadas com um transdutor de deslocamento óptico (laser). As espessuras e os raios foram medidos com um paquímetro adaptado para o efeito. Os erros de medição registados são inferiores a 0,3mm.

As coordenadas de cada ponto no espaço tridimensional foram posteriormente calculadas a partir das medições geométricas. Uma vez que as medições absolutas descrevem apenas os desvios a partir de um ponto de referência, foi definida uma linha central de forma a dispor as 26 secções transversais ao longo da altura do sino. Foram calculados os raios médios e os correspondentes desvios de cada “anel” a partir dos dados das medições dos diâmetros e de posição absoluta, e de seguida foram minimizados os desvios relativamente ao raio médio, recorrendo ao método dos mínimos quadrados. Foram ainda compensados possíveis erros de alinhamento devido ao posicionamento do sino sobre o suporte. Uma vez conhecido o raio para cada secção transversal, o sino completo foi reconstruído simplesmente como uma pilha de anéis, assumindo que todas as secções transversais se baseiam num centro comum. Finalmente, transformações geométricas simples permitiram a descrição dos perfis interior e exterior do sino. 16

Bagot, 1997.

17

Lehr, 1987.

18

Diagrama de Richard Often.

19

Sebastian, 2008, cap. I, § 10, p. 67.

20

Sebastian, 2008, cap. I, § 10.

21

Bagot, 1997.

22

Sebastian, 2008, cap. VIII, § 9.1.


144

Fig. 4 – Montagem experimental utilizada para as medições do sino de São Pedro de Coruche. À esquerda o transdutor óptico para a medição do perfil exterior; à direita a medição das espessuras

A figura 5 mostra, em função da coordenada axial, o raio efectivo (valores interior e exterior) ao longo da circunferência do sino. Sem grandes surpresas, a geometria do sino apresenta desvios relativamente a uma estrutura axi-simétrica perfeita, com desvios máximos de cerca de 2,5mm. Ao nível sonoro, estas imperfeições geométricas geram a presença de pulsações nos sons produzidos, que se designam batimentos.

Fig. 5 – Raios exteriores (à esquerda) e interiores (à direita) medidos do sino, em função das coordenadas azimutal e axial

5. Cálculo modal pelo método dos elementos finitos Uma vez conhecida a geometria do sino, o cálculo dos modos vibratórios constitui a etapa seguinte do processo de análise, dado que estes são necessários para a realização ulterior de simulações numéricas satisfatórias das respostas dinâmicas do sino. Para tal foi utilizado o método dos elementos finitos (MEF), que permite, a partir da geometria do sino e das propriedades dos materiais, calcular os parâmetros modais. Basicamente, o MEF consiste na construção de um modelo (neste caso do sino de Coruche), mediante a decomposição do sistema complexo original num número finito de elementos, os quais constituem a malha da decomposição, cujos movimentos podem ser calculados a partir das equações fundamentais da dinâmica, tendo presentes as relações de continuidade pertinentes entre elementos vizinhos e as condições de fixação da estrutura (condições aos limites). Desta forma, foi construído um modelo 3D do sino de Coruche utilizando o método dos elementos finitos. Para tal foi utilizado o programa de cálculo CAST3M, desenvolvido pelo Commissariat à l'Energie Atomique (CEA, França). Com base em testes de convergência preliminares, a malha utilizada (fig. 6), composta por 28 512 elementos sólidos (hexaédricos com 20 nodos), demonstrou ser


145

suficientemente fina para a realização de cálculos modais precisos. Os cálculos foram realizados como se o sino se encontrasse suspenso, adoptando condições aos limites livres. Com base na composição do bronze, a sua densidade foi estimada em aproximadamente 8700kg/m3.23 E, para o módulo de Young, foi assumido o valor 90GPa, com base no trabalho de Subrahmanyam.24 Para o coeficiente de Poisson foi utilizado o valor 0.34.

Fig. 6 – Corte transversal vertical do sino e malha por elementos finitos

Os fenómenos de dissipação foram negligenciados nos cálculos modais. Assim, de um ponto de vista matemático, foram utilizadas as soluções de valores próprios sem amortecimentos para definir a base modal do modelo físico do sino. No entanto, para calcular o comportamento vibratório do sino através das simulações temporais, a dissipação de energia foi considerada assumindo um amortecimento proporcional no sistema. Os fenómenos dissipativos vibratórios (amortecimento interno) e acústicos (radiação sonora) foram quantificados em termos de amortecimentos modais, utilizando estimativas obtidas em laboratório através da identificação modal detalhada de um sino experimental. Os resultados das identificações mostraram que os amortecimentos aumentam com a frequência, podendo apresentar valores tão pequenos como 0.007% no caso dos modos de frequência mais baixa. A figura 7 mostra as formas modais correspondentes aos cinco primeiros parciais, obtidas através dos cálculos

MEF. Uma característica das estruturas axi-simétricas é o facto de os modos aparecerem aos pares, cujas frequências são idênticas para geometrias perfeitamente axi-simétricas. Cada parcial corresponde a um par de modos. No entanto, as pequenas assimetrias presentes na geometria do sino (fig. 5) originam pequenas diferenças de frequência entre as duas componentes modais de cada parcial. De forma pragmática, a frequência de um dado parcial é aqui considerada como sendo a média das duas frequências modais correspondentes. Se compararmos as formas das vibrações modais apresentadas na figura 7 com as normalmente encontradas nos sinos modernos,25 podemos concluir que os modos de vibração são muito semelhantes. No entanto, as relações de frequências dos diversos modos são diferentes. Este facto acarretaria a existência de diferenças sonoras perceptíveis entre um sino moderno e este sino histórico, mesmo que ambos tivessem a mesma frequência fundamental e fossem excitados em condições semelhantes. A tabela 1 apresenta as relações de frequências entre os parciais ideais de um sino moderno de terceira menor e as relações obtidas a partir dos cálculos MEF para o sino histórico de Coruche, tomando como referência a frequência do segundo parcial, a fundamental, usualmente aceite como uma referência adequada.26 Como podemos verificar, à excepção do quarto modo, são evidenciadas diferenças de cerca de 15% em comparação com as relações de frequências ideais para um sino moderno. De acordo com estes valores, podemos concluir que, em termos de afinação, este sino do século XIII está muito longe daquilo que os fundidores, mais tarde, acreditaram ser a afinação ideal. Uma avaliação dos batimentos existentes em cada parcial pode ser também realizada através da análise das diferenças de frequência entre os pares de modos que 23

Davis, 2001.

24

Subrahmanyam, 1972.

25

Para mais detalhes consultar Rossing, 2007.

26

Rossing, 2007.


146

Fig. 7 – Formas e frequências modais calculadas através do MEF para os cinco primeiros parciais do sino de Coruche

RELAÇÃO DE FREQUÊNCIAS

f1 /f2

f2

f3 /f2

f4 /f2

f5 /f2

Sinos modernos

0.5

1

1.2

1.5

2

Sino de Coruche

0.58

1

1.37

1.55

2.29

16

-

14

3

15

Diferenças [%]

Tabela 1 – Relações de frequências típicas para os sinos modernos de terceira menor e as relações obtidas para o sino histórico de Coruche com base nos cálculos MEF realizados (tomando como referência a frequência fundamental f2)


147

constituem cada parcial. Desta forma, podemos quantificar um fenómeno conhecido como o warble,27 percepcionado como um conjunto de batimentos de baixa frequência no som radiado, o qual afecta significativamente a nossa percepção sonora de um sino. No caso dos modos de frequência mais baixa, os cálculos realizados conduzem a batimentos de frequências entre 1 e 20Hz, sendo que actualmente um valor inferior a 1Hz é geralmente exigido no caso de um sino de boa qualidade.28 Do ponto de vista histórico, este resultado revela as limitações do know-how técnico dos primeiros fundidores, incapazes de fundir um sino perfeitamente axi-simétrico.

Note-se que, para a realização das simulações numéricas temporais, uma dificuldade importante advém da curta duração do tempo de contacto, normalmente situado no intervalo 0.2-0.5ms.30 A fim de obter simulações precisas, foi utilizado um passo de tempo adequado, da ordem de 4x10-6s, tendo uma duração de 10s. Por outro lado, a base modal utilizada cobre a gama de frequências 0-10000Hz, num total de 104 modos. No que respeita aos amortecimentos modais, conforme referido anteriormente, estes aumentam com a frequência. As simulações numéricas aqui apresentadas foram realizadas utilizando um expoente clássico de valor 1.5 na lei de Hertz.

6. Formulação do sistema dinâmico

7. Simulações numéricas no domínio temporal

Sem entrar em detalhes que não cabem neste texto, o modelo físico desenvolvido e implementado baseia-se em equações diferenciais parciais que regem os movimentos do sino e do badalo, às quais são aplicadas determinadas condições aos limites e condições iniciais. Estas equações foram discretizadas no espaço por projecção modal e no tempo por diferenças finitas, podendo então ser resolvidas numericamente. Em termos gerais o modelo desenvolvido consiste: • num conjunto de equações diferenciais ordinárias que descrevem o comportamento vibratório do sino, aproximado como um sistema multimodal linear; • numa equação dinâmica associada ao movimento do badalo, aproximado pelo seu movimento de corpo rígido; • numa força que descreve a interacção (não-linear) entre o badalo e o sino, a qual é representada usando a teoria da elasticidade desenvolvida por Hertz para os fenómenos de contacto. Esta força de interacção “funciona” como excitação do sino, quando este é percutido pelo badalo. Apesar de algumas limitações, o modelo referido acima é capaz de representar a física essencial presente na dinâmica do sino, incluindo detalhes suficientes para a obtenção de simulações satisfatórias e “sons” credíveis.29

Uma série de cálculos temporais relativos ao sino de Coruche será agora apresentada, para dar uma visão das suas propriedades vibratórias e sonoras. Foram realizadas simulações paramétricas para diferentes hipóteses, relativamente às características desconhecidas do badalo, que não foi encontrado durante as escavações. Ao modificar a massa do badalo e as propriedades do material, a duração do tempo de contacto é afectada, bem como as características da força de excitação do sino gerada. Consequentemente, são percepcionadas mudanças audíveis no espectro da resposta vibratória do sino, bem como no som radiado. Neste trabalho são estudados os efeitos sobre as respostas do sino da variação da massa, da forma e da rigidez de contacto do badalo. Salvo indicação diferente, a velocidade de impacto utilizada foi 0.2m/s, a massa do badalo 0.2kg, o raio da esfera do badalo 0.029m e a rigidez de contacto cerca de 1010N/m1.5. O local de impacto corresponde, na direcção axial, à coordenada 0.03m (a partir da boca do sino). 27

Lehr, 2000; Rossing, 2007.

28

Lehr, 2000.

29

Para o leitor interessado, os detalhes técnicos e aspectos computacionais respeitantes à modelação física realizada encontram-se em Carvalho et al., 2014.

30

Fletcher, 2002; Woodhouse et al., 2012.


148

O primeiro conjunto de simulações diz respeito à influência da massa do badalo. A figura 8 mostra os espectros de aceleração do sino calculados no ponto de contacto, quando a massa do badalo é variada de um factor três (0.2 e 0.6kg). Para efeitos de comparação, os sinais de aceleração do sino foram normalizados em relação ao seu conteúdo energético, antes de serem pós-processados. À semelhança do observado em testes de impacto, o aumento da massa do badalo acarreta uma duração do impacto superior, limitando a transferência da energia de impacto para os modos superiores, pelo que são excitados preferencialmente os modos de frequência mais baixa. Este efeito de filtragem “passa baixo” com o aumento da massa do badalo, afecta claramente o som irradiado, originando um som menos brilhante.

Fig. 9 – Resposta temporal e espectrograma da aceleração no ponto de contacto (coordenada axial 0.03m), para uma rigidez de contacto de 108N/m1.5. Velocidade de impacto 0.2m/s, massa do badalo 0.2kg, raio da esfera do badalo 0.029m

Fig. 10 – Resposta temporal e espectrograma da aceleração no ponto de contacto (coordenada axial 0.03m), para uma rigidez de contacto de 1010N/m1.5. Velocidade de impacto 0.2m/s, massa do badalo 0.2kg, raio da esfera do badalo 0.029m Fig. 8 – Espectro da aceleração no ponto de contacto (coordenada axial 0.03m) para dois valores da massa do badalo (0.2 e 0.6kg). Rigidez de contacto 1010N/m1.5, velocidade de impacto 0.2m/s, raio da esfera do badalo 0.029m

Nas figuras 9 e 10 podemos ver as respostas no domínio temporal e os espectrogramas correspondentes da aceleração do sino no ponto de contacto, para dois valores da rigidez de contacto. Os efeitos da rigidez do badalo são estudados utilizando valores cerca de 108N/m1.5 e 1010N/m1.5 nos cálculos, respectivamente para os casos de menor e maior rigidez. Como é possível verificar, a rigidez de contacto influencia significativamente as transferências

de energia, já que um badalo mais rígido excita eficientemente um maior número de modos. Pelo contrário, um badalo com menor rigidez excita melhor os parciais de ordem inferior. Note-se também nas figuras 9 e 10 a pulsação correspondente aos batimentos nas respostas temporais do sino, já que cada parcial resulta da combinação de dois componentes modais com frequências ligeiramente diferentes, devido às assimetrias do sino, conforme foi referido.


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O raio da esfera do badalo influencia também as respostas vibratórias do sino, uma vez que a região das superfícies em contacto afecta a rigidez de contacto. Este aspecto é ilustrado na figura 11, onde estão representados os espectros de aceleração do sino para impactos utilizando badalos com dois raios diferentes (da esfera do badalo). É possível verificar que, para uma massa de badalo constante, aumentando o raio da esfera conduz a uma redução significativa da duração do contacto, aumentando portanto o número de modos excitados.

anteriormente. O decaimento geral da vibração do sino é afectado e, uma vez que os parciais superiores desaparecem rapidamente, o espectro sonoro percebido resulta “sem brilho”.

Fig. 12 – Resposta temporal e espectrograma da aceleração no ponto de contacto (coordenada axial 0.03m), para valores dos amortecimentos modais multiplicados por três. Rigidez de contacto de 1010N/m1.5, velocidade de impacto 0.2m/s, massa do badalo 0.2kg, raio da esfera do badalo 0.029m

Fig. 11 – Espectro da aceleração no ponto de contacto (coordenada axial 0.03m) para dois valores do raio da esfera do badalo (0.009 e 0.029m). Rigidez de contacto de 1010N/m1.5, velocidade de impacto 0.2m/s, massa do badalo 0.2kg

Tal como referido anteriormente, a escolha adequada dos valores de amortecimento modal constitui um ingrediente chave para simular correctamente as respostas do sino ao longo do tempo, nomeadamente ao nível de decaimento dos parciais, já que este é um factor muito significativo na percepção sonora. As simulações anteriormente apresentadas deste sino histórico foram realizadas com base em valores dos amortecimentos modais, estimados através de um procedimento de ajuste, relativamente aos valores identificados experimentalmente a partir de um sino de laboratório. A figura 12 mostra a resposta do sino no local de contacto, quando o amortecimento do sistema é três vezes maior do que os valores utilizados

Finalmente, os resultados apresentados na figura 13 dizem respeito às respostas vibratórias (em velocidade) simuladas, ao mudar a localização do ponto de impacto pelo badalo, ao longo do sino. As simulações foram realizadas considerando sucessivamente cinco pontos de contacto, a partir do ombro até a boca do sino. Para além de ilustrar a variação nas respostas vibratórias dos vários parciais do sino, em função do ponto de excitação, esta figura mostra que o espectro de resposta é mais rico quando o sino é excitado na zona usual de percussão pelo badalo, próximo da boca. Apesar de não serem considerados neste trabalho, os efeitos locais de deformação plástica na bola do badalo poderiam ter sido contabilizados no nosso modelo através da introdução de um termo dependente da velocidade durante o impacto.31 31

Hunt & Crossley, 1975.


150

A presente abordagem está focada nos aspectos vibratórios do sino, carecendo ainda da inclusão do cálculo do campo de pressão irradiado pelo mesmo. Trata-se de um aspecto tão delicado como importante, que será abordado em breve pelos autores.

Fig. 13 — Espectrograma da velocidade do sino no ponto de contacto para impactos sucessivos nas coordenadas axiais hc=0.9h, 0.8h, 0.65h, 0.4h e 0.2h (desde o ombro até a boca), correspondendo respectivamente aos instantes t=0, 5, 10, 15 e 20s. Rigidez de contacto de 1010N/m1.5, velocidade de impacto 0.1m/s, massa do badalo 0.2kg, raio da esfera do badalo 0.029m

8. Conclusões Após uma contextualização histórica, foram estudadas neste artigo as propriedades vibratórias, em particular no respeitante à afinação, do sino da Igreja de São Pedro de Coruche. Foi ainda desenvolvido um modelo de simulação que permite uma demonstração musical das características sonoras deste sino histórico. A abordagem desenvolvida baseia-se em técnicas de modelação, envolvendo cálculos modais pelo método dos elementos finitos, bem como a síntese sonora através de simulações numéricas utilizando modelos físicos não-lineares. O modelo de simulação permitiu realizar um conjunto abrangente de cálculos das respostas vibratórias no domínio temporal, bastante realistas, para um sino moderno do laboratório e para o sino da Igreja de São Pedro de Coruche. Foi assim possível analisar diversos aspectos importantes, tendo em consideração diferentes hipóteses relativas às características físicas do badalo, desconhecidas, as quais condicionam a excitação por impacto. As simulações realizadas ilustram ainda as diferentes respostas vibratórias obtidas em função da localização do ponto de impacto.

Do ponto de vista musical, os resultados obtidos revelam as deficientes qualidades do sino de Coruche, no que respeita à afinação, quando comparado com os sinos modernos de terceira menor. No entanto, é necessária uma contextualização destes resultados à luz da sua época de fundição. Os defeitos observados na axi-simetria do sino – e os consequentes batimentos sonoros – poderão ter sido devidos a limitações técnicas, quer do processo de modelação quer das práticas de fundição em uso na época. No que respeita ao perfil do sino, podemos verificar que este se demarca já dos perfis característicos dos sinos do século XII. Por outro lado, através dos sons sintetizados, é possível percepcionar uma nota bem definida. No entanto, uma análise dos parciais evidencia que a sua estrutura “harmónica” é ainda muito díspar da dos sinos góticos de 3 tons, tal como seria de esperar num sino do século XIII, concluindo-se assim que este se encontra dentro dos padrões da sua época.

Agradecimentos Os autores agradecem expressamente a Cristina Calais, Responsável Técnica pelo Museu Municipal de Coruche, e à sua equipa pelo acolhimento e todo o apoio durante a campanha de medições, e ao Doutor Luís Sebastian, director do Museu de Lamego, pela partilha de conhecimento sobre os aspectos históricos do sino de Coruche. Um agradecimento especial a Xavier Delaune e Philippe Piteau, investigadores do CEA-Saclay (França), pelo apoio na utilização do programa CAST3M e ao nível da instrumentação. Este trabalho recebeu o apoio financeiro da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT), sob as subvenções SFRH/BPD/73245/2010 e SFRH/BD/91435/2012.


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Coruche: do século XVI ao Século xx


153

Século XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Século XVI

Séc. XVII

Século XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Na segunda metade do século XVI foi criada a Santa Casa da Misericórdia de Coruche. Em 1584 a irmandade obteve a autorização para celebrar missa na sua igreja. [MMC]

Séc. XVI

Século XVII

No ano de 1657 a Real Irmandade de Nossa Senhora do Castelo teve os seus primeiros estatutos aprovados. [MMC]

Século XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Braço de imagem de São Francisco de Assis, proveniente do recolhimento franciscano de Coruche. Século XVII (finais)

Gravura de Nossa Senhora do Castelo. 1779

Séc. XVI

Séc. XX

Santa Casa da Misericórdia de Coruche

Foral manuelino da Erra. 1514

Séc. XVI

Séc. XIX

Livro de matrícula dos Irmãos. 1607

Foral manuelino de Coruche. 1513

O rei D. Manuel I mandou reformar os forais do reino, tendo, em 1513, atribuído um novo foral à vila de Coruche e em 1514 à Vila Nova da Erra. [AN/TT]

Séc. XVIII

Séc. XX

“EU EL-REI [...] hei por bem de lhes fazer mercê de que possam fazer todos os annos uma feira na dita Villa, que dure tres dias, sendo o de S. Miguel de cada um anno (…).” Livro XLVIII da Chancelaria, fl. 312

No ano de 1689 o rei D. Pedro II autorizou a realização em Coruche de uma feira franca pelo São Miguel. [JMRT/MMC]

Em 1676 foi autorizada a construção de um recolhimento franciscano na vila de Coruche, de onde provém este braço de um santo de roca. [JMV]

Séc. XVI

Século XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Frontal de altar da igreja de São Pedro (Coruche) Igreja de Santana do Mato.

Neste século, o interior de algumas igrejas do concelho foi revestido com azulejos policromos. [JMV]


154

Séc. XVI

Século XVIII

Séc. XVII

Séc. XIX

Séc. XX

Séc. XVI

Séc. XVII

Século XVIII

Séc. XIX

Séc. XX

Torre do relógio e chafariz da praça Edifício dos Paços do Concelho

Igreja matriz de S. João Baptista

Pelourinho

Planta da vila de Coruche em 1789 (adaptada).

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Em 1754 na igreja da praça realizaram-se obras de douramento do retábulo e da tribuna da capela-mor. No dia 1 de Novembro de 1755 a terra também tremeu em Coruche, levando as pessoas a procurar refúgio na ermida de Nossa Senhora do Castelo. Na Erra houve edifícios afectados e em São Torcato telhados destruídos.

Século XIX

Séc. XX

Igreja da Misericórdia

Em 1803, dado o estado ruinoso da igreja da praça, a condição de matriz passa para a igreja da Misericórdia.

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Século XIX

Séc. XX

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Desenho da torre sineira da antiga igreja da praça

Século XIX

Séc. XX

Os sinos da antiga igreja matriz da praça no campanário de São Pedro

Em 1857, da igreja da praça apenas subsistia a torre sineira. Demolida nesse ano, os sinos foram transladados para o campanário fronteiro à Igreja de São Pedro. [MMC] Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Século XIX

Séc. XX

Torre do relógio e chafariz da praça Edifício dos Paços do Concelho

Edifício dos Paços do Concelho, torre do relógio e chafariz da praça. Finais do século XIX

Nos finais do século XIX a torre do relógio e o chafariz da praça foram destruídos para no mesmo lugar se construir o edifício do açougue municipal. [MMC]

Edifício do açougue municipal construído no final do século XIX. [GRC/MMC]


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Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Século XX

Estação de comboios de Coruche. Inauguração do ramal Setil-Vendas Novas. 1904

O rei D. Carlos veio a Coruche no dia 14 de Janeiro de 1904 para a inauguração da linha de caminho de ferro Setil-Vendas Novas. [MMC]

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Século XX

Mercado na praça. Anos 30, século XX

Até à primeira metade do século XX o mercado semanal realizava-se em pequenas bancas na então Praça do Comércio (actual Praça da Liberdade). [GRC/MMC]

Séc. XVI

Séc. XVII

Séc. XVIII

Séc. XIX

Século XX

Visita de D. Manuel a Coruche depois do terramoto de 1909

O terramoto de 1909 provocou danos significativos no edifício dos Paços do Concelho, na ermida de Nossa Senhora do Castelo e no hospital da Misericórdia. O rei D. Manuel II esteve em Coruche para avaliar a dimensão dos estragos. [AN/TT]


156

o trabalho e a festa


157

Devoção e poder na Misericórdia de Coruche nos séculos XVIII e XIX ANA MARIA DIAMANTINO CORREIA 1

O carácter indissociável do sagrado e do profano, eixo condutor desta exposição, está bem patente no quotidiano das misericórdias portuguesas, onde religiosidade e devoção se fundem com poder social, económico e político. Desde a sua fundação, a partir dos finais do século XV, que as misericórdias foram confrarias de leigos que, sob jurisdição régia, tinham como objectivo a prática das catorze obras de misericórdia impostas pela doutrina cristã (sete espirituais2 e sete corporais3). Estas são instituições absolutamente únicas, independentes entre si e sem qualquer hierarquia, respondendo em igualdade de circunstâncias perante a Coroa, nunca tendo estado na alçada da Igreja.

As elites locais, atraídas pelo incentivo régio, preencheram as fileiras destas confrarias, o que, aliado ao progressivo aumento do património das misericórdias, muito contribuiu para o poder e influência alcançados na esfera local. O sentimento de pertença a um grupo restrito era aliciante para as elites e estas, por sua vez, canalizaram para a irmandade o crédito que a posição social lhes conferia, numa reciprocidade de interesses e benefícios mútuos. Neste contexto, atente-se ao mais antigo livro de registo de irmãos da Misericórdia de Coruche, datado de 1607 e profusamente decorado. A primeira página foi reservada a três figuras de sangue real: D. João de Lencastre,

Técnica Superior de História do Museu Municipal de Coruche. Investigadora do Centro de História da Sociedade e da Cultura (Universidade de Coimbra).

1

2

Dar bom conselho, ensinar os simples, consolar os aflitos, perdoar as ofensas, sofrer as injúrias com paciência, castigar com caridade os que erram, rogar a Deus por vivos e mortos.

3

Dar de comer a quem tem fome, dar de beber a quem tem sede, vestir os nus, remir os cativos e visitar os presos, dar pousada aos peregrinos, curar os enfermos, enterrar os mortos.

Livro de matrícula dos Irmãos. 1607. Misericórdia de Coruche [Arquivo Fotográfico MMC]


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D. Lourenço de Lencastre e D. Jorge de Lencastre.3 Este último, duque de Coimbra, era filho do rei D. João II e, à data de abertura deste livro, já havia falecido, conforme, aliás, está registado no mesmo. Era pai de D. Lourenço, que, por sua vez, era pai de D. João, os dois últimos comendadores de Coruche.4 Parece-nos evidente a estratégia de captar a atenção e o interesse das principais famílias coruchenses. O resultado está patente nas páginas seguintes à mencionada, onde foi feito o registo dos irmãos da primeira condição,5 confirmando a incorporação na irmandade de elementos da elite local. Quanto à data exacta da fundação da irmandade coruchense, esta permanece ainda desconhecida, sabendo-se contudo que terá sido criada durante a segunda metade do século XVI.6 Em muitos casos, as misericórdias resultaram da anexação de confrarias já existentes, como parece ter acontecido em Coruche, ao terem sido incorporadas as confrarias de Nossa Senhora da Purificação, de São Brás e de Nossa Senhora da Conceição.7 A integração das duas primeiras ocorreu em 1564 por alvará do cardeal D. Henrique, primeiro arcebispo de Évora, e a terceira foi anexada por alvará régio em 1579.8 É de supor que em 1584 a irmandade tenha a sua igreja edificada, uma vez que em 22 de Junho desse ano o arcebispo autoriza a celebração de missa na igreja da irmandade.9 No âmbito da acção das misericórdias, não pode ser descurada a lógica da caridade, a qual, longe da concepção de ajuda ao próximo, estava relacionada com a remissão dos pecados e a salvação das almas. Ou seja, tinha como objectivo primordial o benefício directo e individual dos que a praticavam, sendo este apenas um veículo de aproximação a Deus, numa preparação em vida para o momento do Juízo Final, uma preocupação central na vida de todos. Era através da caridade, revelada pelo exercício das obras de misericórdia, que as almas alcançavam a eternidade. Esta concepção proporcionou em larga medida o enriquecimento patrimonial das misericórdias como principais beneficiárias das últimas vontades dos testadores, que instituíam um cada vez maior número de legados pios.10 Todavia, ao longo do século XVIII as misericórdias debateram-se com a acumulação excessiva destes encargos, cujo cumprimento ultrapassava largamente

a sua capacidade financeira. Compreende-se assim o esforço empreendido pelas misericórdias na realização de cerimónias aparatosas, que, associadas a práticas devocionais, lhes permitissem projectar publicamente uma imagem de poder, grandeza e coesão de grupo. Partindo do exemplo da Misericórdia de Coruche, através do testemunho escrito efectuado pelos dirigentes nas actas das reuniões da Santa Casa e ao longo destes dois séculos charneira, pretende-se: verificar a preocupação constante em torno dos enterros; a manutenção de rituais cíclicos de enorme poder simbólico, como a Semana Santa; e o empenho (e canalização de recursos) da irmandade em aquisições e obras de melhoramento patrimonial, reafirmando o seu estatuto na esfera de influências locais.

A celebração da morte A centralidade da morte na vida de todos explica a importância da sua celebração. A incerteza em relação a este momento e a imprevisibilidade do mesmo explicam o empenho depositado na sua preparação ao longo da vida. Segundo a perspectiva na qual o indivíduo é composto por corpo e alma, era manifesta a valorização desta em relação ao primeiro, dado o seu carácter eternizável. Além disso, após o Concílio de Trento (1545-1563) e a progressiva difusão da ideia de Purgatório, constata-se um avolumar do investimento dos testadores na salvação da alma, o que, como se disse anteriormente, muito contribuiu para o enriquecimento patrimonial das misericórdias. Além do mais, em 1593 o cardeal arquiduque Alberto da Áustria, enquanto vice-rei de Portugal no reinado de Filipe II, concedeu às misericórdias o privilégio do monopólio legal dos enterros, considerando serem estas as únicas confrarias capazes de organizar os préstitos fúnebres com a solenidade devida. Atribuição que não ficou isenta de protestos por parte de outras instituições, nomeadamente das Ordens Terceiras. A proeminência adquirida pelas misericórdias num aspecto tão fundamental/central na vida do indivíduo e da comunidade explica o empenho e esmero que depositavam na realização de tais cerimónias.


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Enterro, óleo sobre tela de António Alves Teixeira (século XIX). Museu Nacional de Soares dos Reis [Foto José Pessoa/Divisão de Documentação Fotográfica/Direção Geral do Património Cultural]

Assim, o cumprimento das sétimas obras de misericórdia, “enterrar os mortos” e “rezar a Deus pelos vivos e mortos”, era levado muito a sério pelas irmandades, cujas faltas abalavam a reputação das mesmas, afastando possíveis testadores. Nos enterros dos irmãos toda a irmandade devia comparecer. Este era aliás um dos benefícios em pertencer à confraria. O acompanhamento dos enterros estava descrito no compromisso e as diferentes formas de tratamento dependiam da categoria e prestígio social do defunto ou da sua família. Nos acórdãos da Misericórdia de Coruche transparece a atenção dispensada pelos seus dirigentes a esta obrigação da Santa Casa. Nos registos escritos foram apontados os incumprimentos tanto dos irmãos como dos capelães, estes enquanto funcionários da Santa Casa. Em Fevereiro de 1720 a mesa administrativa11 advertiu o capelão, que

não acompanhava a bandeira da Santa Casa nos enterros, e determinou que este fosse multado em um tostão se reincidisse. Neste caso o andante (referido, por vezes, 3

rquivo da Santa Casa da Misericórdia de Coruche (doravante ASCMC), A Livro da Irmandade de Sancta Misericordia de Coruche, 1607.

4

Correia, 2013, p. 42.

5

xistia uma distinção entre os irmãos de primeira e de segunda condição. E A primeira categoria estava reservada às principais figuras da terra e a segunda categoria era por norma preenchida por mestres de ofícios.

6

Goodolphim, 1897, p. 323; Correia, 2012, pp. 202-203.

7

Ribeiro, 2009, p. 167.

8

Correia, 2012, pp. 202-203.

9

ASCMC, doc. 4.

10

Bens deixados para o sufrágio perpétuo da alma.

11

rgão dirigente das Misericórdias, composto simbolicamente por 13 Ó irmãos eleitos e presidido pelo provedor.


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como andador), empregado da Misericórdia que, entre outras, tinha a obrigação de andar pelas ruas com uma campainha em punho, difundindo uma mensagem, ficou responsável por contabilizar mensalmente as faltas do dito capelão e transmiti-las superiormente.12 Na sessão de 8 de Setembro de 1752 apurou-se que a irmandade não acorria, logo que soava o sino, com a sua tumba para ir buscar os defuntos. Deste facto resultava a perda do que a Misericórdia devia auferir, não se tratando o defunto de um irmão ou de um pobre, visto que “hiam os quem de fora da vila em carro a igreja Matriz”. Além da sua reputação ficar abalada, “dando escandalo a naõ enterrarem os mortos hua das obras de Misericordia a que se acha obrigada”. A solução encontrada foi nomear sete irmãos que em cada mês deveriam, ao toque do sino, transportar a tumba e a bandeira da irmandade, sob pena de repreensão da mesa administrativa.13 O assunto voltou à discussão em 28 de Setembro de 1761, quando se apontou “a falta de penho (sic) [e] zello dos Irmaõs desta Santa Casa [...] em acompanhar os defuntos”. Uma vez mais se insiste em designar, desta feita, quatro irmãos da segunda condição para transportarem a tumba e um irmão da primeira condição para levar a bandeira e, sucedendo-se mensalmente, ficarem responsáveis pela representação da irmandade.14 A par dos desaires internos, registaram-se igualmente contendas com outras instituições locais sobre a realização das cerimónias fúnebres. No ano de 1778 podem assinalar-se conflitos externos e internos. Em Março a mesa administrativa entra em conflito com o reitor da Colegiada de São João Baptista, que mandava enterrar os fregueses sem que antes pagassem a esmola pelo uso da tumba da Santa Casa, fazendo-se a ressalva aos enterros “por amor a Deus”, ou seja “aqueles que não tiverem bens que possam pagar covage e enterro”.15 As misericórdias enterravam graciosamente os irmãos e os pobres. Todos os outros que desejassem o acompanhamento da irmandade tinham de pagar. Além disso, era feito o aluguer de tumbas a outras instituições. Em Setembro a irmandade foi novamente acusada pelos corpos dirigentes de não comparecer nos enterros, reafirmando-se, uma vez mais, que “sendo principal objecto desta Irmandade o executar

as obras de Misericórdia”. Estipula-se a nomeação de dois irmãos da primeira condição e dois irmãos da segunda condição, numa sucessão mensal, para o cumprimento desta obrigação. Os quatro irmãos ficavam responsáveis por conduzir os mortos até à sepultura, cabendo a um elemento da mesa administrativa o transporte da bandeira da irmandade. Cada enterro era anunciado pelo andante e, caso tivessem algum impedimento, os irmãos do mês tinham que encontrar um irmão substituto, sob pena de uma multa de meio arrátel de cera.16 Em 1790 os irmãos persistem em faltar “a este indispensavel dever”. A mesa, presidida então pelo provedor Manuel Couceiro Neves Facamelo, decidiu multar imediatamente os irmãos faltosos com o pagamento de um arrátel de cera branca. A medida foi justificada como forma de “se evitarem escandalos e murmurasois que pela falta de Caridade, neste cazo, tem avido”.17 Parece evidente o manifesto desinteresse dos irmãos em carregar a tumba da irmandade como anteriormente se fazia. O problema verificava-se essencialmente no acompanhamento de pessoas que não pertenciam à irmandade. A dificuldade na execução desta obra não foi exclusiva da Misericórdia de Coruche. De facto, os problemas registados pela irmandade local sucederam-se igualmente, ao longo do século XVIII, em outras misericórdias. Para tal concorreram não só o declínio financeiro que estas instituições foram obrigadas a enfrentar durante os séculos XVIII e XIX, resultado do crédito malparado, da difícil cobrança das dívidas e dos excessivos encargos pios, mas também das progressivas alterações culturais e sociais introduzidas pelo Iluminismo.18 Perante as dificuldades, e à semelhança das suas congéneres, a Misericórdia de Coruche contratou os chamados condutores mortuários, que faziam o trabalho braçal inerente aos enterros. Na sessão de 3 de Julho de 1843 considerou-se que os funerais eram feitos de forma “pouco lovavel”, o que tinha que ser alterado. Além dos quatro condutores mortuários, o cortejo fúnebre passaria a ser precedido pelo andador a tocar a campainha e vestido como era costume, logo seguido pelo capelão que rezava ao finado os últimos ofícios. Assim sendo, foram


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admitidos quatro homens, António Correia, José da Costa Soares, José da Silva e Filipe António, que por 18 alqueires de centeio transportavam os falecidos no hospital da Misericórdia e, por caridade, “algumas pessoas conhecidas como inteiramente pobres”.19 Uma semana depois é contratado um quinto condutor, Francisco António Teixeira, de alcunha Traquete, que “deveria transportar a bandeira da irmandade no enterro dos desvalidos que falecessem no Hospital, bem como de todos aqueles que morressem fora do dito Hospital, mas cuja pobreza e miséria fosse notória”.20 Na sessão da mesa de 9 de Julho de 1846 o guarda do cemitério,21 Francisco José Teixeira, um dos condutores mortuários contratados em 1844, concorda em enterrar os mortos do hospital pelo ordenado anual de 9600 réis.22 Em 1855 a Mesa não consegue que a condução dos defuntos seja arrematada. Ainda assim, cinco indivíduos, quatro condutores e um coveiro, ofereceram os seus préstimos gratuitamente, de Abril a Julho desse ano, o que a Mesa aceitou e agradeceu.23 Findo este período, não houve lançadores em praça para este serviço da Misericórdia, sendo a documentação omissa sobre a solução encontrada.24 De facto, no Compromisso de 1880, os primeiros estatutos da Misericórdia de Coruche,25 determina-se a obrigação da irmandade em conduzir até ao cemitério público os falecidos no seu hospital, assim como todos os restantes desamparados (art.º 90.º, § único), cujo critério incluía aqueles que, “embora tenham casa para assistir, não possuam bens proprios ou industria sufficiente para se manter” (art.º 92.º). Apenas a estes e aos membros da irmandade estava garantida a gratuitidade da condução, embora o transporte fosse feito em tumbas distintas. No primeiro caso, era usada a tumba do serviço diário com capa de baeta e, no segundo caso, um esquife exclusivo para a condução de irmãos com capa de veludilho preto.26 Quem não estava incluído em nenhuma das situações anteriores, e assim o desejasse, a Santa Casa alugava a sua tumba por um valor nunca inferior a 500 réis (art.º 93.º, § único). É clara no compromisso a obrigação imputada aos irmãos de apenas assistirem aos funerais dos restantes membros (art.º 14.º). Aliás, esse continuava a ser um benefício dos

irmãos da misericórdia, o acompanhamento fúnebre por parte de todo o corpo da irmandade à sepultura (art.º 13.º). Possivelmente o texto do compromisso é o reflexo de uma prática já consolidada dos irmãos se apresentarem apenas nas cerimónias fúnebres dos elementos que pertenciam a este grupo restrito. Pelo exposto se inferem as mudanças sociais e culturais que entre o século XVIII e o século XIX norteiam as atitudes e as práticas do indivíduo perante a vivência da morte, mas também o entendimento da caridade e do pobre, enquanto intercessor mais próximo de Deus. O progressivo afastamento desta concepção, ao longo do século XIX, pode explicar a recusa dos irmãos em acompanharem os enterros como noutros tempos. Ainda assim, a Misericórdia continuou, em conformidade com o compromisso, a realizar este importante serviço que acima de tudo lhe permitia projectar para o exterior a sua identidade e exclusividade. 12

ASCMC, Acórdãos, 1715-1732, sessão de 11.02.1720, fl. 72v.

13

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 08.09.1752, fls. 177v-178.

14

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 28.09.1761, fls. 231v-232.

15

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 08.03.1778, fl. 388.

16

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 06.09.1778, fl. 4.

17

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 14.11.1790, fl. 174v.

18

Veja-se Araújo, 2007, pp. 5-22.

19

ASCMC, Acórdãos, 1818-1843, sessão de 03.07.1843, fl. 130-130v; Livro de consertos de capelães, físicos e mais pessoas que servem nesta Casa, 1736-1844, termo de 03.07.1843, fl. 70v.

20

ASCMC, Acórdãos, 1818-1843, sessão de 09.07.1843, fl. 131v; Livro de consertos..., termo de 09.07.1843, fl. 71v.

21

a sessão de 20 de Maio de 1861 é referido que o cemitério dos falecidos N no hospital, em tempos, se localizou num quintal murado na Rua do Forno. Em 1895 a Misericórdia foi autorizada a construir nessa mesma rua a casa mortuária e de autópsias, num edifício que pertencia a Joana Isabel de Matos Lima Dias, uma das benfeitoras da Santa Casa de Coruche (Correia, 2013, p. 75).

22

ASCMC, Acórdãos, 1818-1843, sessão de 09.07.1846, fl. 26-26v.

23

ASCMC, Acórdãos, 1843-1865, sessão de 08.04.1855, fls. 80v-81.

24

ASCMC, Acórdãos, 1843-1865, sessão de 08.07.1855, fl. 83v.

25

té este momento a Misericórdia de Coruche, como muitas irmandades A de menores dimensões, regia-se pelo Compromisso da Misericórdia de Lisboa aprovado em 1618, adaptando-o, sob aprovação régia, à realidade e práticas locais.

26

ASCMC, Acórdãos, 1873-1905, sessão de 29.06.1877, fl. 45.


O registo sistemático nos acórdãos de questões relacionadas com a Semana Santa é revelador da sua importância entre as restantes actividades promovidas pela Misericórdia de Coruche. Durante este período, que devia ser de penitência e purificação para a Páscoa, realizava-se um sermão todas as sextas-feiras à noite na igreja da Santa Casa. Todavia, no ano de 1773 o arcebispo de Évora recusou-se a autorizar os “sermoins das Sextas feiras da Quaresma a noute como antigamente se faziaõ”.28 Perante este facto, a mesa administrativa considerou que os sermões deviam realizar-se ao domingo, visto “ser [este povo] muito pobre e andar ocupado no trabalho”.29 Ao pregador a Misericórdia pagou, em 1775, pelos seis sermões 14 400 réis30 e no ano seguinte 16 800 réis.31

Cristo na Cruz. Século XVI (último quartel). Misericórdia de Coruche [Foto José Manuel Vasconcellos]

A Semana Santa As comemorações rituais associadas à Paixão e Morte de Cristo ocupavam um lugar de destaque no calendário litúrgico das misericórdias. Os momentos finais da vida de Jesus Cristo, considerados como o exemplo máximo de humildade e de misericórdia, deviam, por isso, ser ciclicamente recordados, o que as misericórdias faziam com esmero e sumptuosidade. A Quaresma, e principalmente a Semana Santa, era um período de intensa celebração religiosa, que incluía sermões, missas, ladainhas e procissões. Esta era portanto uma ocasião que as irmandades entendiam como propícia para a sua promoção exterior, não só apresentando-se como um grupo restrito mas também manifestando a sua capacidade de organização, mobilização e influência local. Por este motivo, não se coibiram de realizar cerimónias grandiosas, mesmo em tempos de maiores dificuldades financeiras, sobrepondo, por vezes, a vertente religiosa à assistencial.27

A importância simbólica imputada às procissões não era descurada pelas misericórdias, que as preparavam minuciosamente, seguindo um conjunto de critérios muito bem estipulados nos compromissos. No ciclo da Semana Santa era na quinta-feira (a Quinta-feira Maior) que as misericórdias mais investiam forças e recursos, dado o protagonismo assumido na organização da procissão das Endoenças. Do latim indulgentiae, que significa indulgência, perdão, esta procissão era concebida para ter um profundo impacto não só em quem integrava o cortejo mas também para os que a ele assistiam. Nos acórdãos de Coruche foi feito, a cada ano, o registo escrito do lugar que cada elemento da Misericórdia ocupava no corpo da procissão. De facto, durante toda a centúria de setecentos a mesa administrativa da Misericórdia coruchense fez o assentamento da estrutura da procissão, num criterioso código de precedências. Integravam o desfile os irmãos da Santa Casa e a distribuição das bandeiras, tochas, lanternas e pálio era previamente estabelecida, obedecendo a uma ordem, reflexo da hierarquia social. O transporte das insígnias de maior prestígio estava reservado aos irmãos da primeira condição, cabendo ao provedor o porte da bandeira da irmandade, o que lhe conferia a almejada visibilidade social que o desempenho deste cargo lhe proporcionava. No préstito participavam igualmente as restantes entidades locais, organizadas


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segundo um rigoroso protocolo. Além destas, a integração de pobres nas celebrações adquiria um elevado valor simbólico, evidenciando a prática das obras de misericórdia como o objectivo primordial da Santa Casa.32 Por esta razão, a Misericórdia de Coruche distribuía, no final do cortejo, doces e vinho aos penitentes.33 Uma das celebrações mais significativas na Quinta-Feira Santa era, sem dúvida, o Lava-pés. Neste ritual o provedor, reproduzindo a cena bíblica da Última Ceia, quando Cristo lavou os pés aos doze apóstolos, lavava os pés ao mesmo número de pobres, numa encenação de humildade e inversão de papéis sociais. Uma vez mais o minucioso registo escrito do nome dos doze pobres que anualmente participavam nesta cerimónia atesta a importância da mesma. A partir de 1774 o corpo dirigente da irmandade de Coruche decide que cabia a cada um dos mesários a nomeação de um pobre a contemplar.34 Em 1776 o valor da esmola atribuída a cada um dos doze pobres era de 120 réis, optando a Misericórdia por não distribuir, nesse ano, ramos de flores.35 Estes tinham que ser homens comprovadamente “pobres e necessitados” com idade superior a 20 anos.36 Em sessão de Março de 1782 estipula-se que os esmolados do Lava-pés fossem naturais ou moradores no concelho de Coruche, o que sugere a ocorrência de abusos.37 Além da quantia em dinheiro, a Misericórdia tinha ainda a obrigação de vestir os participantes na cerimónia do Lava-pés. Por norma o irmão tesoureiro ficava incumbido de mandar fazer os fatos. Em 1787 foi arrematado a José António, alfaiate da vila, este serviço, que deveria ser “acontento (sic) de todos, e naõ [ser] obra falsificada”. O conjunto era constituído por uma véstia (jaqueta) e calção de saragoça forrado de estopa, meias, sapatos, ligas, fivelas e chapéu. Custou ao cofre da Santa Casa 38 500 réis.38 No ano de 1791 determinaram que os fatos, compostos apenas por véstia e calção, fossem executados pelo irmão José Pereira, que os fez por 300 réis cada conjunto, com a fazenda previamente adquirida pelo irmão tesoureiro. Em simultâneo, decidiram ajustar com o padre Vitorino de Paiva Raposo, pela soma de 24 mil réis, o acompanhamento com música de todas as celebrações da Semana Santa e, no que diz respeito aos sermões do

Lava-pés e das Lágrimas (Sexta-Feira Santa), estes foram oferecidos pelo provedor.39 Como se sabe, ao longo do século XVIII as misericórdias debateram-se com cada vez maiores dificuldades financeiras. No caso de Coruche, este é um assunto progressivamente mais recorrente nas actas do século XVIII, tornando-se a situação por vezes aflitiva no decorrer do século XIX.40 A escassez de recursos obrigou a uma gestão diferente do orçamento, com reflexos visíveis no aparato das práticas de culto religioso. Em 1793 foi feito o Lava-pés e a procissão do Enterro do Senhor, na Sexta-Feira Santa, “e naõ se fazendo a de quinta feira pela falta de Irmandade e se evitar a dispeza que com a mesma se costuma[va] fazer, e que pela mesma cauza se naõ fizesse Semana Santa com muzica […] e so sim se falase a alguns Padres para acompanharem a dita Prociçaõ”.41 O pedido de moderação no Lava-pés expresso em 1794, “sem pompa, fausto nem vaidade”, contrasta com a sumptuosidade anteriormente requerida e, por isso, a procissão do Enterro foi feita “só com o Senhor morto no Seu esquife e que levase só os nove Anjos necessarios”.42 Saliente-se que neste período estavam em curso obras de melhoramento 27

Lopes, 2010, p. 54.

28

ecorde-se que as misericórdias estavam sob a jurisdição da Coroa, R embora a Igreja tenha procurado de diferentes formas impor a sua presença. A supervisão das práticas de culto religioso foi muitas vezes motivo de conflitos.

29

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 24.02.1773, fl. 321-321v.

30

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 23.04.1775, fl. 344v.

31

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 07.04.1776, fl. 357v.

32

Araújo, 2006, p. 159.

33

xistem acórdãos onde é referida igualmente a distribuição de amêndoas, E aspecto significativo, dada a simbologia que lhe está associada de nascimento e luz celestial, muito apropriada a esta época festiva.

34

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 27.02.1774, fl. 331.

35

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 19.03.1776, fl. 355.

36

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 23.02.1777, fl. 372v.

37

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 25.03.1782, fl. 57v.

38

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 04.03.1787, fls. 111v-112.

39

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 20.03.1791, fl. 179.

40

Correia, 2013, pp. 41-82.

41

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 15.12.1793, fl. 211v.

42

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 13.04.1794, fl. 214v.


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do edifício da igreja, assunto que desenvolveremos adiante no texto. A esta realidade acresce, no final do século XVIII, uma proximidade forçada da Misericórdia de Coruche com outras instituições locais. Referimo-nos à Real Colegiada de São João Baptista, sediada na igreja matriz da vila, que, em Fevereiro de 1781, solicita autorização à Santa Casa para usar temporariamente a igreja desta, enquanto “a Igreja Matriz desta villa se estava concertando e por esta cauza incapaz de na mesma se celebrarem os officios Divinos, e o Sancto Sacreficio da Missa, e mais acções da dita Igreja”.43 Todavia, no acórdão datado de 9 de Março de 1780 está expressa a determinação de “vir a musica para a semana Santa que se fazia na Igreja [e] se fizessem as funçoens que esta Santa Casa faz na mesma semana com a mesma musica dando-se para a sua satisfaçaõ a quarta parte da importância em que se ajustasse”.44 Pode depreender-se que, embora tenha havido um pedido de autorização para o uso da igreja da irmandade em 1781, é possível que esta já fosse partilhada desde o ano anterior em celebrações como as da Semana Santa. Em 1782 a Misericórdia decidiu que a Semana Santa fosse celebrada com música, função que ajustou com o padre Victorino de Paiva Raposo, organista da Santa Casa e ecónomo da Colegiada. O valor do ajuste não é referido, mas a mesa administrativa coloca a hipótese da confraria do Santíssimo Sacramento proceder ao pagamento de duas partes da importância.45 Refira-se que a confraria do Santíssimo Sacramento, sediada na igreja de São João Baptista, onde tinha uma capela, é descrita como sendo uma “Numeroza Irmandade e munto bons Peramentos”.46 Ter-se-á constituído cerca de 1542 e os seus primeiros estatutos aprovados em 1781-82.47 Partilhando a confraria com a Misericórdia muitos dos irmãos, embora com objectivos e dimensões muito diferentes, e, caso tenha acompanhado a Colegiada na transladação da igreja de São João Baptista para a da Misericórdia, pode colocar-se a hipótese de ter simultaneamente ocorrido uma aproximação entre as duas irmandades. Uma maior cooperação de esforços, nomeadamente na Semana Santa, parece ter existido. Desde logo em 1782, quando se antevê uma possível divisão das despesas com a música, mas também

nos respectivos compromissos, que no final do século XIX foram aprovados. A confraria do Santíssimo Sacramento ficou obrigada pelo compromisso de 1875 a concorrer com a cera precisa para a exposição do Santíssimo Sacramento na Quinta-Feira Santa e no Domingo da Ressurreição (art.º 59.º §1), bem como a promover a cerimónia do Lava-pés, para a qual deveria dar a esmola para o sermão (art.º 59.º §2). No que diz respeito ao compromisso da Misericórdia, aprovado em 1880, a irmandade dispõe-se a “coadjuvar para que se faça a Procissão do Enterro em sexta-feira Santa, prestando-se a acompanha-la com os seus balandraus” (art.º 96.º § 2.º). Sem dúvida que na viragem do século XVIII para o século XIX houve alterações no quotidiano da Misericórdia de Coruche. Desde logo a partilha do seu templo com a Colegiada, decorrente do desaparecimento da igreja da praça principal da vila e consequente elevação da igreja da Misericórdia a matriz. O redireccionar da vida religiosa do concelho para a igreja da Misericórdia foi com certeza aproveitado, mesmo que não conscientemente, para catapultar a imagem da irmandade. Assim, embora enfrentando sérias dificuldades financeiras, foram empreendidas obras de monta no interior e exterior da igreja, com as quais projectou para o exterior o poder e prestígio da instituição.

As obras de engrandecimento da igreja Apesar das crescentes dificuldades sentidas a partir do século XVIII, muitas misericórdias canalizaram esforços e recursos financeiros para a construção de novos edifícios e/ou melhoramento dos já existentes. No caso de Coruche verificaram-se ambas as situações. Para além 43

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 21.02.1781, fl. 37v. Este é o primeiro pedido formal de empréstimo da igreja da Misericórdia por parte da Colegiada. Em 1803 foi reiterado o pedido, mantendo-se a igreja da Misericórdia com a condição de matriz até 1958 (sobre este assunto leia-se Correia, 2012, pp. 208-209).

44

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 09.03.1780, fl. 26v.

45

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 03.03.1782, fl. 55v.

46

AN/TT, Memórias Paroquiais, vol. 11, n.º 396, fl. 2698.

47

Penteado, 1995, p. 44.


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Fachada da igreja da Miseric贸rdia de Coruche [Foto Armindo Cardoso/MMC]


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da construção de um novo hospital,48 a irmandade coruchense procurou enobrecer a sua igreja ao efectuar obras no interior e no exterior, o que conferiu uma imponência maior ao templo e, simultaneamente, uma reafirmação do estatuto local da confraria. A partir da década de 70 do século XVIII a Misericórdia inicia um longo processo de obras na sua igreja. Em Março de 1776 a mesa mandou construir um púlpito em talha,49 em substituição do que já existia com gradeamento de ferro. Tal facto depreende-se da acta da reunião seguinte, onde está firmada a ordem para a venda de quatro castiçais de prata e as grades de ferro do coro e do púlpito para custear as obras que incluíam a realização de uns cantos no fundo da igreja para serventia do coro e ornato da mesma, além da colocação de alizares (ombreiras) de madeira em todas as portas e janelas.50 No mesmo ano foi ajustado com o mestre pintor de Lisboa, Vicente Ribeiro, a pintura e douramento da capela-mor e capelas colaterais, os alizares das portas e janelas, o púlpito, o coro e a frontaria da igreja. A obra importou em 680 mil réis, para cujo pagamento a Misericórdia entregou o foro da herdade das Barbas, ou seja, dois moios e 20 alqueires de trigo, quatro moios e 40 alqueires de centeio e 300 réis de pitança ou, em sua vez, o valor de 84 400 réis.51 Dado o bom trabalho efectuado, que incluía obras não contratualizadas inicialmente, foi dado ao pintor uma molhadura, ou seja, uma gorjeta, de 24 mil réis.52 Além deste, também o carpinteiro António Venâncio foi alvo de uma molhadura, no valor de 5500 réis, pelo trabalho feito na igreja.53 Simultaneamente às obras no edifício, a irmandade foi investindo no enriquecimento da igreja. Refira-se a aquisição de cinco cortinados e sanefas para os altares e para a porta, confeccionados com 30 metros de damasco, pela quantia de 160 mil réis.54 Dava-se preferência a tecidos nobres, tanto para o adorno da igreja mas também para a paramentaria. Assim, além do damasco usado nos cortinados, foram adquiridos um frontal, uma casula, uma estola, um manípulo e uma bolsa de corporais, todos em seda verde passada a fio de prata com ramos de fio de prata e ouro fino.55

Na sessão de 16 de Julho de 1780 foi decidido dividir a sala do despacho, o que permitia fazer uma sala de espera, intenção reafirmada em Outubro do ano seguinte.56 Todavia, catorze anos passados ainda a obra estava por concluir, sendo ajustado o trabalho com o estucador João Nunes, no valor de 28 800 réis.57 Na sessão de 15 de Dezembro de 1793 a mesa administrativa acordou que se fizesse uma cúpula de pedraria em meia laranja na capela-mor da igreja e que se assoalhasse a mesma igreja com madeira da Flandres, ficando o provedor, Manuel Couceiro Neves Facamelo, responsável pelas diligências da dita obra.58 O contrato foi celebrado no início de 1794 com António João, canteiro, e José dos Santos, carpinteiro, ambos de Lisboa. Ao primeiro entenderam pagar 400 mil réis e ao segundo 280 mil réis.59 Recorde-se que por esta altura foi dada ordem para que as celebrações da Semana Santa fossem feitas com moderação e sem pompa. O cofre encontrava-se desprovido de meios tanto para satisfazer as despesas consideradas indispensáveis como para “acudir ás obras que nesta Igreja estaõ principiadas”. Para a resolução do problema a mesa administrativa recorreu a João da Silva, homem de negócios e morador na vila, que emprestou a quantia necessária, “obrigandose esta Meza a preferilo a ele dito Joaõ da Silva para a venda que esta Caza fizer do trigo”.60 Este acordo permitiu não só a prossecução das obras iniciadas mas também o avanço de outros trabalhos no edifício do templo. Assim, ao ajuste com o carpinteiro para assoalhar a igreja foi, na sessão de 25 de Maio de 1794, acrescentada a quantia de 96 mil réis referente a um novo trono para a capela-mor, “por se axar podre o que existe e isto tudo de madeira de Casquinha boa e sem samago e Livre de outra macola”. Quanto ao exterior do edifício, foram os arranjos efectuados no final do século XVIII que lhe conferiram o aspecto actual. A alteração mais significativa foi a construção de uma nova frontaria. A entrada na igreja, que anteriormente se fazia por uma porta lateral, passou para a fachada, no lado oposto ao altar-mor. Assim, na sessão de 8 de Junho de 1794, sob a proposta do irmão tesoureiro, decidiram que


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“se fizesse o que hoje he Alpendre taõ bem parte da Igreja tirando as portadas e ficando com os tresvaõs em arcos abertos, e pondo a porta principal aonde hoje he o arco, e arazando os muros, aonde esta porta do pateo e muro fronteiro a Igreja ficando este terreno todo limpo e dezembarasado e fexando com hum muro aparte do Semeterio aônde ficará huma porta para a Serventia do mesmo e das escadas que vaõ para o Coro e Caza de dispaxo e fazendo no mesmo muro que fexar o Semiterio hum Campanario Com a comodasaõ para dois Sinos”.61

No início de 1795 as obras não estavam ainda terminadas. O facto prendia-se exclusivamente com a incúria dos devedores, muitos deles irmãos, que, apesar das tentativas da Misericórdia, se escusavam ao pagamento. As dívidas eram um problema antigo e não exclusivo de Coruche. Num requerimento datado de 1783, o irmão Manuel dos Santos é peremptório ao responsabilizar “alguns Irmãos desta mesma [Misericórdia, que] retendo o património dos Pobres pellas avultadas dividas com que se vem Onerados [...] faltando talvez estes por esta Cauza para se exercitarem os atos de Caridade, Securrer a indigensias dos Pobres, e ainda augmentar o Templo”.62 Nas actas da segunda metade de 1794 ficaram, por diversas vezes, registadas as intenções da mesa para que se procedesse a execuções a alguns devedores. O sucesso desta medida não passou a escrito. Todavia no início de 1795 foi ajustada com o irmão António Lobo, por 67 200 réis, a empreitada para terminar as obras da frontaria da igreja.63 Como o construtor fez duas torres sineiras em vez dos dois campanários contratados, a Misericórdia pagou mais 7200 réis em relação ao valor acordado.64 Quando terminadas as obras, o edifício ficou, sem dúvida, mais proeminente, sobressaindo, juntamente com o edifício hospitalar adossado, na malha urbana envolvente. No início do século XIX a Misericórdia investiu na grandiosidade das celebrações na sua igreja. Na sessão de tomada de posse da nova mesa administrativa,65 presidida pelo provedor Manuel Couceiro Neves Facamelo, em 3 de Julho de 1801, visto a Santa Casa ter aos seus serviços um organista e para “ficar a mesma Igreja de todo completa se comprase hum orgaõ para se fazerem a (sic) festividades da Caza com maior solenidade”.66 Localizado no coro

alto da igreja, o órgão é um magnífico exemplar assinado pelo organeiro português António Xavier Machado Cerveira.67 É possível que no final de 1803 o órgão estivesse pronto. Além de ser essa a data inscrita junto ao teclado, onde também consta o número 64, embora por mão diferente da assinatura do organeiro, em Dezembro desse ano foi celebrado um novo contrato com o Reverendo Padre Vitorino de Paiva Raposo para tocar o órgão em todas as festividades da Santa Casa, co-adjuvado por António Marques, contratado para levantar os foles do órgão.68 A sonoridade produzida por um instrumento como este conferia, sem dúvida, um maior esplendor e exaltação da palavra divina, envolvendo os fiéis num sentimento de aproximação a Deus, diferente do som emanado pelo cravo que até aí acompanhava as celebrações na igreja da Misericórdia. Na sessão de 23 de Julho de 1846, estando na vila um organeiro, António Luís Fontana, e “tendo em vista o estado de ruina em que o [órgão] se acha[va]”, a mesa administrativa anuiu ao conserto do órgão pelo 48

Correia, 2013, pp. 43-49.

49

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 19.03.1776, fl. 355.

50

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 22.04.1776, fl. 358v.

51

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 05.05.1776, fl. 359.

52

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 29.06.1776, fl. 361v.

53

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 16.06.1776, fl. 361.

54

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 09.06.1739, fl. 84v.

55

ASCMC, Acórdãos, 1732-1778, sessão de 30.11.1777, fl. 383v.

56

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 16.07.1780, fl. 34-34v; sessão de 28.10.1781, fl. 49v.

57

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 20.01.1795, fl. 224.

58

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 15.12.1793, fl. 212.

59

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 13.02.1794, fl. 213v.

60

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 18.05.1794, fl. 215v.

61

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 08.06.1794, fl. 217v.

62

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 01.01.1783, fl. 71v.

63

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 20.01.1795, fl. 224.

64

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 01.07.1795, fl. 228.

65

s eleições realizavam-se no dia 2 de Julho, dia da Visitação e festa A de todas as misericórdias. No dia seguinte a nova mesa tomava posse.

66

ASCMC, Acórdãos, 1778-1802, sessão de 03.07.1801, fl. 266v.

67

ra filho de Manuel Machado, autor do órgão do Mosteiro dos Jerónimos, E e irmão do conhecido escultor Joaquim Machado de Castro.

68

ASCMC, Livro de consertos..., termo de 11.12.1803, fl. 53-53v.


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valor de 100 mil réis.69 Em Maio de 1848 o trabalho estava concluído e o pagamento total efectuado até Setembro.70 Importa salientar que no início de 1803, dada a iminente ruína da igreja matriz da praça, o reitor da Colegiada dirigiu à Misericórdia o pedido de empréstimo da sua igreja. Por esta altura a igreja era a sede de duas instituições com grande poder e influência local: a Misericórdia e a Colegiada de São João Baptista. A partilha do espaço foi muitas vezes motivo de desentendimentos, disputa de forças e procura constante de afirmação social.

Conclusão A associação a celebrações imbuídas de um elevado poder simbólico foi usada pelas misericórdias como forma de promoção exterior, permitindo-lhes granjear inúmeros benefícios para si e para os que delas faziam parte. A acção destas irmandades era ponto de encontro de dois extremos da sociedade local: as elites e os pobres. Entre uns e outros existia uma relação de interdependência, mas em planos distintos. Para os primeiros tratava-se de alcançar a salvação eterna, para os segundos obter os mais elementares meios de sobrevivência. Fica demonstrado que também a Misericórdia de Coruche empreendeu esforços, a vários níveis, para incrementar o seu estatuto local. A construção de uma imagem de grandeza, de opulência, de capacidade de organização e de coesão de grupo exigiu da mesa administrativa uma atenção redobrada relativamente a áreas fundamentais de actuação da irmandade. Agradeço à Doutora Maria Antónia Lopes a leitura prévia do texto.

Órgão existente na igreja da Misericórdia de Coruche, datado de 1803 [Foto Carlos Silva (Fotocine)]

69

ASCMC, Acórdãos, 1843-1865, sessão de 23.07.1846, fl. 27.

70

ASCMC, Acórdãos, 1843-1865, sessão de 19.05.1848, fl. 38.

Interior da igreja da Misericórdia de Coruche [Foto Pedro Martins]


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O trabalho e a festa: de São Miguel a São Miguel ROSÁRIO CAEIRO 1

Até meados do século XX a estrutura económica do país assentava num forte sector agrícola. Uma considerável parte da população portuguesa, subsistindo da agricultura, vivia ainda em estreito contacto com a Natureza. Neste contexto, tão diferente do actual, era outra a vivência do quotidiano. Eram outros os comportamentos e as atitudes. Eram outros os modos de vida. Era outra a relação com o ciclo da Natureza e com o tempo. Estas constatações partem do princípio de que ocorreram enormes mudanças e rupturas e assumem, sobretudo, que tenham permanecido heranças, memórias e testemunhos. Apesar de, também em Coruche, se ter alterado substancialmente esta vivência rural de intensa relação com a Natureza, uma forte ligação com a terra e com modos de produção a ela associados nunca deixou de existir. Coruche continua a ter um sector agrícola forte, com grande produção, sobretudo de arroz e milho A exploração florestal associada ao montado, extracção e transformação de cortiça, é também muito significativa. E é ainda uma certa ruralidade que estrutura a identidade do território. Todavia é no passado e nas memórias dos mais velhos que se descobre e compreende o que mudou e o que permanece ainda. Um enorme desafio, uma vez que grande parte dos factos que fundamentam aquelas memórias não são já observáveis.

Calendário As festas, inscritas no calendário anual, balizam os tempos de trabalho e os tempos de descanso, em íntima relação com os ciclos cósmico e agrícola e o devir das estações do ano. Para melhor compreender esta relação fizemos corresponder às quatro estações do ano, de

acordo com o ciclo cerealífero que estrutura o calendário agrícola, quatro actividades essenciais a ele associadas: no Outono prepara-se a terra e semeia-se, no Inverno aguarda-se a germinação das plantas, na Primavera protegem-se as plantas florescidas e no Verão colhe-se o fruto amadurecido. É em torno das festas que a vida rotineira e monótona de um dia-a-dia laborioso ganha força e energia. E é pelas festas que a comunidade se anima. Em ciclo repetido, “tudo começa numa festa e acaba noutra”.2 O calendário configura assim um corpo normativo e simbólico que se baseia na relação do Homem com a Natureza. Se, por um lado, remete esta relação para o domínio da utilidade, ao esquematizar as actividades rurais, organizando-se a partir do ciclo produtivo dos cereais (a cevada, o centeio e o trigo), que definem claramente os momentos de semear e de colher; por outro lado, simbolicamente reflecte uma religiosidade que subsiste e se expressa ao longo de séculos, em múltiplos rituais festivos. De facto, procedendo da observação e da interpretação dos ritmos do Universo, o calendário constitui-se como um objecto eminentemente social. Ao mesmo tempo que decorre de cálculos matemáticos complexos, resultantes da evolução da ciência, está profundamente ligado a crenças, comportando em si uma dimensão religiosa que o estrutura e fundamenta. Na Europa, durante os primeiros séculos do cristianismo, o calendário assumiu uma importância crucial para a imposição e disseminação da nova religião. Esta veio 1

Antropóloga.

2

Lima, 2000, p. 252.


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Equinócio da Primavera (MARÇO)

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Solstício de Verão

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152 000 000 km

147 000 000 km

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Solstício de Inverno (DEZEMBRO)

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O calendário festivo anual e o ciclo dos trabalhos agrícolas acompanham o ritmo cósmico

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Equinócio de Outono (SETEMBRO)

sobrepor as suas festas às datas festivas já existentes no calendário juliano,3 profundamente associadas ao ciclo cósmico e vegetativo, com destaque para as que ocorriam na altura dos solstícios e dos equinócios. Substituindo referentes simbólicos e imiscuindo-se nos hábitos enraizados, o cristianismo não inventou o ritmo festivo, apropriou-se do que já existia e utilizou-o como elemento envangelizador. Esta atitude valeu-lhe a sua afirmação, forçando a conversão das comunidades pagãs. O tempo, deste modo humanizado, domesticado e ritualizado, inscreve-se no calendário, entrecruzando e sobrepondo constantemente uma dimensão prática e uma dimensão simbólica. Os dias festivos, que celebram Cristo, Nossa Senhora ou qualquer santo, serão assim, na sua essência, dias que celebram a Natureza. E o calendário litúrgico não deixa de acompanhar o ritmo das estações do ano, determinante dos trabalhos rurais. Em Coruche, como na generalidade do país, foi-se perdendo a noção

de que durante todo o ano é uma Natureza humanizada e o tempo cíclico, regido pelo Sol e pela Lua, que se celebram por interposição de uma qualquer entidade divina. Subsistem práticas rituais, mais ou menos discretas, que ainda ocorrem ou que persistem apenas nas recordações dos mais velhos. Surgem, na sua maioria, como manifestações de religiosidade que, assim transfiguradas, servem o propósito de reforçar sentimentos de identidade e de coesão social e de organizarem o quotidiano da comunidade que, dependente do ritmo das estações, vive em solidariedade com o tempo cósmico. Solidariedade que se expressa quer através do trabalho quer através da festa; seja quando a comunidade procura garantir a sua subsistência em harmonia com a Natureza (produzindo e gerindo recursos alimentares) ou quando comemora essa harmonia. São as entidades divinas que intercedem por este equilíbrio e é a elas que a comunidade recorre, dirigindo-lhes os seus pedidos e agradecimentos.


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Mas a própria festa comporta duas dimensões: a sagrada e a profana. Aparentemente coexistem enquanto dualidade oposta, mas na sua essência complementam-se. É a partir desta dualidade conceptual que se desenvolvem todas as manifestações festivas que ocorrem durante o ano. Sagrado e profano são os “conceitos que se encontram na base do pensamento religioso”.4 Além disso, a festa é também o espaço social das afirmações e ostentações de poder e de ordem, das tensões e conciliações, dos excessos de comportamento e de consumo, de catarse e de convívio social.

Coruche, permanência e mudança Em traços gerais, a década de 50 do século XX surge como uma altura de grandes mudanças em Coruche, à semelhança do que acontecia um pouco por todo o país. Até então era o trigo5 que assumia preponderância na vida rural a sul do Tejo. Com a implementação do plano de regadio do Vale do Sorraia, em 1959, introduzem-se mudanças profundas em todo o contexto socioeconómico do concelho. Estas alterações trazem outro entendimento do mundo. As novas culturas, em Coruche, vêm mudar significativamente a paisagem e uma certa lógica de produção. O ciclo de semear e de colher altera-se. Os campos para o arroz preparam-se em Abril e as colheitas prolongam-se Setembro adentro até Outubro. Este desfasamento temporal faz com que o ciclo festivo perca alguma ligação com o ciclo agrícola, pois as colheitas que se agradecem em Agosto a Nossa Senhora do Castelo decorrem ainda. Também a estrutura social de Coruche, tão característica do sul do país, com acentuada diferenciação entre os grandes proprietários e os assalariados rurais, vai sofrer uma alteração substancial com a afirmação de uma classe média. Com novas possibilidades de gestão dos recursos hídricos, uma boa parte da população teve a oportunidade de investir numa produção agrícola mais rentável, principalmente na de arroz, mas também nas de tomate e milho, arrendando aos grandes proprietários parcelas de terreno na lezíria. Surgiu assim uma classe

de rendeiros que passou a explorar as férteis terras do Sorraia de modo intensivo. Gerando-se riqueza e emprego, a população de Coruche cresceu substancialmente e, na vila, a pequena indústria,6 o comércio e os serviços incrementaram novas dinâmicas no quotidiano da comunidade. A mudança no tecido social fez-se acompanhar de mudanças nos comportamentos e hábitos de consumo e, com tantas alterações, também o paradigma contratual foi mudando: os assalariados passaram a receber ao mês e não ao ano ou à campanha, como antes. A Feira de São Miguel deixou de balizar o ano agrícola e de ser determinante nos prazos contratuais, e deixou de ser a grande referência nos padrões de consumo da população. Importa ainda referir que, ao contrário de considerarmos o ano civil como elemento chave de análise e porque assumimos que é a dimensão prática que sustenta o ciclo festivo e o liga inequivocamente ao trabalho rural, optámos antes por considerar o ano agrícola. Este conhece o seu momento de termo e, simultaneamente, de início no começo do Outono.

OUTONO Na última semana de Setembro o equinócio marca a entrada do Outono, que corresponde, desde tempos remotos, ao final do ano agrícola. Terminam-se as principais colheitas cerealíferas e começam a preparar-se as terras para as primeiras sementeiras.

Feira de São Miguel Em Coruche, a Feira de São Miguel, tida como uma das principais datas festivas, marca este tempo cíclico. Era 3

calendário juliano vigorou até ao século XVI, tendo sido substituído pelo O calendário gregoriano, melhor ajustado ao ciclo solar.

4

Espírito Santo, 1980, p. 221.

5

m sequência da grande valorização do cereal e das campanhas de E produção incrementadas desde o final do século XIX, mas com expressão significativa a partir de 1929, integrando o projecto político saído do Golpe de Estado de 28 de Maio de 1926.

6

e salientar o surgimento de indústrias ligadas à transformação de D produtos alimentares, nomeadamente do tomate e do arroz.


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o momento tido pelos proprietários para o pagamento das soldadas (salários) aos seus trabalhadores e para procederem a acertos contratuais para o ano seguinte. O tempo dos contratos contava-se, então, de São Miguel a São Miguel.7 O que está de acordo com o que se passava em grande parte da Europa feudal, onde o dia de São Miguel era um dos dias catalisadores da organização temporal das comunidades rurais. Considerado o dia de pagamento dos prazos feudais,8 estava associado também aos pagamentos de salários e tributos.

Aspecto da Feira de São Miguel. Coruche, início do século XX [Joaquim R. Telles/MMC]

Muito embora a feira nunca tenha tido expressividade religiosa, a invocação àquele santo, associando-o ao ciclo agrícola da região, é reveladora da sua importância. A hierarquia hagiográfica e festiva cristã atribuiu aos principais santos (São João Baptista, São Pedro, São Paulo e São Miguel) e aos principais momentos da vida de Cristo (Anunciação e Natividade) datas próximas dos momentos mais importantes do ciclo cósmico: os solstícios e os equinócios.9 Ao Arcanjo São Miguel foi-lhe atribuído o equinócio de Outono a 29 de Setembro.


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Sobre a origem da feira em Coruche sabe-se que foi autorizada por D. Pedro II em 1689. À data, conforme o Livro de Chancelaria,10 contando a vila com mais de dois mil fogos, “não havia nella em todo o anno feira alguma, no que padeciam grande detrimento, porque não tinham a conveniencia de comprarem em primeira mão, e acharem o de que necessitavam com abundancia”. Justificava-se, então, a realização de uma feira franca anual por não existir nenhuma num perímetro de cerca de 70km em torno da vila. Ainda, devia a mesma ser realizada no dia de São Miguel, por então começarem os trabalhos de lavoura, a principal ocupação da região, e “em que se podiam buscar moços, e esses acommodarem-se com a conveniencia, que era a razão por que em todas as Cidades e Villas do Reino havia uma e muitas feiras cada anno”. O que dava maior relevância ao evento, muito mais importante do que a sua dimensão festiva e comercial, era o estabelecimento das relações contratuais. A feira constituía assim o lugar onde se transaccionavam bens (mercadorias e gado) e, sobretudo, braços. Facto expresso pelo adágio: Quem se compromete pelo São Miguel não se levanta nem deita quando quer. De salientar que a Feira de São Miguel teve enorme expressão até meados do século XX. Durante muito tempo foi a única oportunidade para a comunidade adquirir bens essenciais, destacando-se as mantas e agasalhos para o Inverno, o porco para a engorda e o ouro com o qual dotavam as filhas. A Feira de São Miguel configurava assim, sem dúvida, uma das principais datas festivas em Coruche. Trazia à vila pessoas de todo o território. De facto, esta era uma das poucas alturas do ano, a par com as Festas em Honra de Nossa Senhora do Castelo (Agosto), em que a comunidade se abria ao exterior. A realização de corridas de touros por ocasião da feira atesta bem a importância festiva da ocasião. Do testemunho de Heraldo Bento registam-se as memórias que melhor captam o evento e a expressão que a feira detinha no quotidiano do território, sobretudo na década de 30 do século XX, até ao início da II Guerra Mundial.

Era pelo São Miguel que chegavam a Coruche feirantes de muitas partes do país, imprimindo um colorido especial à vila. Famosos, os ourives de Montemor-o-Velho vinham em grande quantidade e chegavam a ocupar toda uma rua do recinto da feira, demonstrando bem como era importante, para a comunidade rural, a aquisição de ouro. Uma parte destes, depois de fazerem a ronda das feiras da zona (primeiro Benavente, depois Coruche e, por fim, Ponte de Sor), regressavam e permaneciam algum tempo em casas de pasto da vila,11 esperando que o rigor do Inverno lhes trouxesse ao penhor muitos dos que lhes haviam comprado ouro.12 Célebres eram também, na década de 30, por algum exotismo e pela variedade e qualidade dos produtos, a barraca dos polacos, onde se podiam comprar loiças, talheres, jarrões, etc., e a barraca dos chineses, onde se vendiam malas, cintos, gravatas, entre outros. Além destas havia ainda as barracas das mantas de Minde e lobeiras, das samarras e dos capotes. Não faltavam também os brinquedos, a bijutaria e os comes e bebes. O circo e os carrosséis eram presença obrigatória. Por vezes a sua estada prolongava-se além de São Miguel, aproveitando para rentabilizar uma época que, para eles, terminava com o final das feiras de Verão. 7

L eite de Vasconcelos indica o dia 29 de Setembro (de São Miguel) como referência nas contratações no Ribatejo para o pagamento do último salário (cf. Vasconcelos, vol. V, 1982, p. 655). O mesmo acontecia em regiões tão diversas como Tondela, onde o autor registou o ditado “Quem se aluga pelo São Miguel não é senhor de si quando quer” (Vasconcelos, vol. V, 1982, p. 652), e em Alcácer do Sal (cf. Vasconcelos, vol. V, 1982, p. 656). Sabemos que, no concelho de Mora, São Miguel era também o referente contratual.

8

Le Goff, 2000, p. 225.

9

s restantes correspondências são as seguintes: equinócio de Primavera: A Anunciação de Cristo (25 de Março); solstício de Verão: São João Baptista (24 de Junho), a que se associam São Pedro e São Paulo (29 de Junho); por fim o solstício de Inverno: Nascimento de Cristo (25 de Dezembro).

10

Arquivo Nacional da Torre do Tombo – Chacelaria de D. Pedro II, Livro 48, fl. 312.

11

Heraldo Bento (n. 1927) referiu oralmente três casas de pasto onde os ourives habitualmente ficavam alojados: a do Joaquim dos Petiscos, a do Carlos Oleiro e a do Fortunato.

12

Informação oral de Heraldo Bento.


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Numa das extremidades da feira encontravam-se as barracas de tiro, como que prostíbulos, proporcionando, muitas vezes, uma ocasião iniciática para os jovens rapazes da região. Antecedendo o domingo da feira, no sábado ocorria a designada feira dos porcos, onde se comprava o pequeno leitão que haveria de crescer e engordar durante o Outono e morrer no Inverno. O porco constituía em todo o mundo rural o mais importante recurso alimentar de que a comunidade poderia dispor.

Casamentos Além destes aspectos essenciais que caracterizam a Feira de São Miguel, enquanto balizadora do ano agrícola e referência essencial nos padrões de consumo da população, ela revela ainda uma outra dimensão estruturadora do quotidiano da comunidade rural de Coruche. Esta, aliviada do esforço físico que as colheitas exigiam, escolhia o período de São Miguel ao Natal para casar. Essencialmente por ser a época do ano em que todos dispunham de mais recursos económicos provenientes dos pagamentos dos salários e em que já poderiam perspectivar o ano seguinte, pelos acertos contratuais então realizados. Embora os casamentos configurem uma expressão festiva de carácter privado, surgiam em todo o território de Coruche numa época específica do ano. Referenciá-los e integrá-los no devir sazonal dos trabalhos e das festas faz assim todo o sentido.

Casamento de Joaquim Faria e Marcelina Nazaré da Silva, residentes no Biscainho. Coruche, Igreja da Misericórdia, 11 de Novembro de 1956 [Fundo Fotocine/MMC]

Todos os casamentos obedecem a códigos e práticas rituais que os tornam distintos. Entre a comunidade rural, na primeira metade do século XX, caracterizavam-se por serem cerimónias religiosas simples, a que compareciam os noivos, os padrinhos e os convidados do sexo masculino (as mulheres ficavam em casa a preparar a boda). “Vindos do campo, chegavam em carroças à entrada da vila e faziam a pé o percurso até à igreja. [...] O cortejo nupcial era aberto pelos pais dos noivos, seguidos pela noiva, acompanhada pela madrinha e o noivo logo atrás, ladeado pelos seus dois padrinhos. Os familiares e restantes convidados, chamado acompanhamento, encerravam o desfile.”13 A figura de destaque no cortejo era a noiva, cujo vestido, até finais dos anos 30, era de lã merino com cores discretas: cinza-claro, verde-seco ou cor-de-cana-seca (amarelo-acastanhado). O véu, em tule, um material dispendioso, podia ser alugado e colocado apenas à entrada da igreja.14 “O dia de casamento era, tradicionalmente, sinónimo de festa, mesa farta e baile. Aos pais da noiva cabia oferecer o almoço, por norma cozido à portuguesa, seguido de vários doces, como bolo branco, bolo de ló, bolo de mel e arroz doce. Depois de casados, os noivos e os convidados tinham à sua espera o jantar, este da responsabilidade dos pais do noivo. O repasto era semelhante ao do almoço, seguindo-se o baile animado pelo som de uma concertina.”15 Casar nesta época foi, até meados do século XX, um costume praticamente exclusivo da comunidade rural menos abastada. O significativo crescimento económico e as transformações sociais ocorridas em Coruche a partir de meados do século XX, de que já demos conta, impuseram um quadro de referências cada vez menos rural, ao nível dos hábitos e dos consumos, atenuando entre a comunidade da vila uma identificação com o campo, muito embora dele ainda dependesse. Decorrente destas mudanças, foi também deixando de existir uma altura específica16 para casar. Se a comunidade urbana e a elite social da vila já o faziam durante todo o ano, também entre a comunidade rural os casamentos nesta época foram deixando de ocorrer.


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INVERNO O início da estação, com o solstício, é marcado por celebrações de origem solar como Santa Luzia e o Natal, festas que, na sua essência, invocam o retorno da luz e dos dias que crescem. Mas o Inverno é também um tempo sobre o qual urge intervir para que se abrevie a chegada da Primavera. O Carnaval surge assim como a festa que encerra a estação e abre para um tempo novo.

Santa Luzia Os primeiros cristãos celebravam Santa Luzia17 no solstício de Inverno, prenunciando o renascimento do Sol e o crescendo dos dias, o que lhe conferiu uma dimensão simbólica associada à luz, palavra donde o seu nome deriva. A iconografia representa-a com uma taça ou prato contendo um par de olhos, sendo-lhe por isso atribuída a protecção da visão.18 A partir do século IV a sua devoção difundiu-se muito rapidamente por todo o mundo cristão. Porém, já no século XVI, atendendo a acertos no calendário e dada a substituição do juliano pelo gregoriano, o solstício de Inverno deixa de ser festejado a 13 de Dezembro, passando a celebrar-se próximo do dia 21 de Dezembro. Uma diferença de oito dias que distancia o dia de Santa Luzia do fenómeno solar que o contextualiza. No entanto o seu carácter festivo permanece, com ênfase no seu atributo protector. Em Coruche a capela onde hoje Santa Luzia se venera, situada a poente da área urbana da vila,19 tem como orago Nossa Senhora da Graça, que tinha confraria própria e grandes festejos no dia 8 de Setembro. Desconhece-se o momento ou as circunstâncias em que aqui surgiu e se impôs a veneração a Santa Luzia. Contudo é de salientar que o culto a esta santa se configura como resposta a uma necessidade das pessoas, associada a problemas oftalmológicos. Actualmente, ainda que participada por muita gente, já não apresenta o colorido de uma romaria à capela e missa sucedida de arraial que outrora conheceu grande adesão da comunidade. Como descreve José Luiz Pereira:

“Em tempos iam elementos da banda de música e muita gente da vila. Depois da missa fazia-se um baile no largo da igreja, abrilhantado pelos músicos, que iam lá para participar voluntariamente, a título de passeio.”20 O arraial chegou a decorrer, em dias de chuva, dentro da capela, tapando-se com panos o altar para que as entidades divinas não comungassem das celebrações profanas.21 Além do aspecto religioso, expresso não só na romaria mas também no pagamento de promessas relacionadas com doenças oftalmológicas, a devoção a Santa Luzia tinha ainda uma vertente prática essencial. Junto à capela cresceu, até há bem pouco tempo, a galacrista, uma planta cujas sementes, bastante procuradas, serviam para fins terapêuticos relacionados com os olhos,22 tendo o seu uso como colírio constituído uma expressão de culto distinta e fundamental, de que se desconhece registo para além de Coruche. Outro hábito ritualizado em Coruche, associado ao dia de Santa Luzia, e que também daqui parece ser exclusivo, é o de, ainda hoje, se oferecer à porta da capela, após a missa, um ramo de louro.23 A origem deste costume 13

Correia, “Vestidos de Noiva”, Peça do Bimestre (maio/junho 2013).

14

Cf. Bento, 2003, p. 70.

15

Correia, “Vestidos de Noiva”, Peça do Bimestre (setembro/outubro 2013).

16

Verão é, hoje em dia, e à semelhança do que acontece em todo o país, O a época em que ocorre grande parte dos casamentos.

17

ara a Igreja católica Luzia foi uma jovem siciliana que morreu martirizada, P defendendo a fé cristã, por volta de 304 d.C. Consta que, durante o seu martírio, os olhos lhe foram arrancados e, posteriormente, por milagre, ter-lhe-ão surgido de novo na cara.

18

“ As qualidades que o povo atribui aos santos (advogados ou protectores) foram frequentemente retiradas da significação aparente do nome: o santo faz o que o seu nome significa. Santa Luzia em favor da vista” (Espírito Santo, 2004, p. 245).

19

Segundo informação oral de Gil Malta, a capela terá sido provavelmente fundada por D. Nuno Álvares Pereira no século XIV. A sua existência é mencionada no testamento de Maria Eanes Gravinha, datado de 1394.

20

Pereira, 1983 p. 63.

21

Informação oral recolhida junto da família Gonçalves Ferreira, proprietária do terreno onde se implanta a capela.

22

Segundo informação oral de Gil Malta.

23

Segundo informação oral da família Gonçalves Ferreira, os ramos de louro são oferecidos à porta da capela, prosseguindo um costume já antigo, herdado de gerações anteriores.


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é desconhecida, bem como o seu significado. Nos dias de hoje o louro é levado apenas para tempero culinário. Esta planta, sagrada para os romanos, foi banida durante o processo de imposição do cristianismo na Idade Média por manter aspectos simbólicos importantes, nomeadamente a crença de proteger contra a trovoada.24

Natal No dia 25 de Dezembro celebra-se o Natal, festa maior do calendário cristão que se sobrepõe a antigas celebrações do solstício de Inverno. Uma data onde a reminiscência a antigos cultos sobrevive na designação da cerimónia religiosa que celebra o nascimento de Jesus: a Missa do Galo. Símbolo solar, o galo anuncia o nascer do Sol. Está, como tal, conotado com o solstício e com o nascimento de Jesus. De salientar que esta missa constitui e permanece, em quase todo o território de Coruche, a única expressão festiva de participação social alargada desta quadra. De facto, o nascimento do Menino Jesus remete para o recato de celebrações intimistas. E à semelhança do que acontece por todo o país, também aqui esta época é pontuada por manifestações festivas de cariz privado e familiar. Com excepção, porém, da zona de foros,25 na periferia da vila, e também em Carapuções ou Branca, meios populacionais muito pequenos onde, até há pouco tempo, ocorriam bailes na noite e no dia de Natal.26

que fez, “entregues que estão, por enquanto, ao ventre da terra e às condições do tempo que fará”. A exigência de uma gestão racional dos recursos alimentares revela-se essencial nesta altura do ano, uma vez que, perante a incerteza sobre o resultado da próxima colheita, o que resta da anterior poderá ter de vir a ser consumido num período dilatado de tempo. Assim, a abstinência e jejum da Quaresma, que se segue à licenciosidade do Carnaval, fundamentam uma necessidade prática legitimada pelos cânones sagrados. Em Coruche eram múltiplas as manifestações rituais com que se celebrava o Carnaval. Tal como na generalidade do país, não são já conscientes (se o foram alguma vez) os fundamentos simbólicos (mágico-religiosos) das práticas carnavalescas, de mediação entre os homens e as entidades protectoras e propiciadoras da regeneração da Natureza. Nem tão pouco os fundamentos práticos que os sustentam, de gestão dos recursos de sobrevivência e reprodução da comunidade. O que subsiste, efectivamente, é uma noção de que o Carnaval permite comportamentos de proximidade e convivialidade, baseados sempre em condutas de respeito, como nos referem inúmeros testemunhos, e que constituía um momento de excepção no quotidiano da comunidade. De facto, estas condutas e regras configuram formas claras de gestão da reprodução social da comunidade, pois regulam a forma como os membros do grupo se relacionam.

Carnaval O Carnaval27 surge no calendário como a festa que marca a transição do Inverno para a Primavera. Este tempo caracteriza-se por uma grande inconstância climatérica.28 Contudo, não podendo o Homem actuar directamente sobre tais condições climatéricas e sobre o resultado das sementeiras, procura, mediante manifestações rituais, interceder para que entidades sagradas, que concebe como protectoras, o façam por si. Num sentido pragmático, tal significa que no final do Inverno a comunidade rural vive a contradição de dispor de parte da colheita do ano anterior, mas ainda não tem o retorno das sementeiras Baile de máscaras no Carnaval de 1930 [Maria José Quintino/MMC]


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Em Coruche o início do Carnaval é marcado pelo estrondo das caqueiradas, que o antecedem em cerca de um mês, como apontam todos os testemunhos. Estas consistiam no arremesso para o interior das casas, através dos postigos e portas habitualmente abertos, de potes de barro cheios de cinza ou terra que, ao quebrarem, espalhavam o seu conteúdo pelo chão. Os potes eram obtidos nas olarias, que guardavam a produção defeituosa para vender nesta época. Ou aproveitava-se a loiça que ao longo do ano, por algum motivo, se inutilizara em casa. O jogo da panela30 foi também uma prática significativa no Carnaval coruchense. Tratava-se de um jogo de roda, em que algumas pessoas se juntavam e atiravam entre si, aleatoriamente, uma peça de barro, até que alguém, não a conseguindo apanhar, a deixava cair e partir no chão. No Bairro Alegre, na parte baixa da vila de Coruche, o castigo para quem perdia era molhar-se-lhe o rabo no rio. Na vila da Erra “quem deixasse partir a panela levava um bate-cu. Era agarrado por baixo dos braços e pelos pés e batiam-lhe com o rabo no chão”.31 De acordo com Margarida Ribeiro, as regras do jogo eram previamente combinadas entre os participantes32 e os resultados da brincadeira “reflectem-se no comportamento jovial de todos e nos seus ditos jocosos, os quais aludem a gastos e destruições. Estes ditos visam sempre os jogadores menos hábeis e, por consequência, aqueles que sofreram mais punições”.33 Segundo Ernesto Veiga de Oliveira estes rituais carnavalescos, que comportam barulho, sujidade, divertimento, afronta, configuram em si uma natureza de purificação e expulsão das forças malignas do Inverno, tendo por objectivo propiciar o renovo da vegetação e o retorno da Primavera. O autor, referindo-se concretamente ao jogo cerimonial do pucarinho, outra designação do jogo da panela, atribui-lhe um significado que se expressa numa virtude benfazeja.34 Também Joaquim Pais de Brito se refere à sonoridade que envolve as intervenções rituais deste período como manifestações de esconjuro e afastamento das entidades maléficas que colocam em perigo o resultado dos trabalhos agrícolas realizados e, por conseguinte, as condições de existência das comunidades. Coloca ainda neste plano o recurso a elementos grotes-

cos e risíveis, reforçando a ideia de que o riso constitui um princípio de fecundidade.35 Outra prática ritual muito significativa em todo o território de Coruche eram os dias das comadres e dos compadres. Nas duas quintas-feiras que antecediam o Carnaval ocorriam, primeiro, a quinta-feira dos compadres e, na semana seguinte, a das comadres. Um pouco por todo o lado, nos bairros de Coruche e nas vilas e aldeias que pontuam o concelho, alguns dias antes da quinta-feira dos compadres, grupos de raparigas juntavam-se e construíam bonecos de palha que vestiam e ataviavam de modo imaginativo, com materiais facilmente inflamáveis (palha e papel). Até quinta-feira os bonecos eram escondidos e, por fim, eram expostos em locais de difícil acesso. Encontrá-los ou, quando expostos, chegar até eles constituía um desafio aos rapazes que os tentavam resgatar para que não fossem imolados, pelas raparigas, nas fogueiras, à noite. Se o conseguissem, ganhavam o desafio. De acordo com alguns testemunhos, “quase sempre acontecia os rapazes roubarem o compadre por qualquer 24

Cf. Espírito Santo, 1980, p. 40.

25

Informação oral de Dionísio Simão Mendes.

26

Informação oral de Fernando Serafim.

27

A origem do Carnaval remete para as Saturnais Romanas, festas dedicadas a Saturno, deus da agricultura e sementeiras. Estas festas correspondiam a “um período de completa liberdade, durante o qual tudo era permitido” (Oliveira, 1984, p. 38) e, muito embora ocorressem entre 17 e 23 de Dezembro, associadas ao solstício, as suas características essenciais permaneceram durante a cristianização do calendário. Alguns aspectos foram mantidos e absorvidos pelas comemorações do Natal, nomeadamente a troca de presentes. Outros, mais conotados com condutas de comportamento libertinas, foram tolerados e codificados pela Igreja e transferidos para o final do Inverno.

28

Cf. Brito, 1996, p. 220.

29

Brito, 1996, p. 220.

30

Este jogo é frequente em muitas partes do país. Está representado num detalhe da obra, do século XVI, “A luta entre o Carnaval e a Quaresma”, do pintor holandês Pieter Brueghel, o Velho, o que sugere que também fosse frequente noutras partes da Europa.

31

Brotas, 2000, p. 88.

32

Cf. Ribeiro, 1972, p. 3.

33

Ribeiro, 1972, p. 4.

34

Cf. Oliveira, 1984, p. 67.

35

Cf. Brito, 1996, p. 223.


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artimanha, às vezes por meio de escadas que usavam para trepar para os telhados, cortando vidraças, etc.”.36 Quando tal acontecia, o boneco era queimado em frente à casa de onde havia sido roubado. O que suscitava tentativas, por parte das raparigas, de reaverem o boneco. Segundo Joaquina Mendanha (n. 1940), durante parte das décadas de 50 e 60 do século passado acontecia, entre o grupo de amigos de que fazia parte, serem sempre as raparigas a conseguirem queimar o boneco que era exposto numa janela alta da Rua de São Francisco, em Coruche. Tal devia-se ao facto de integrar este grupo uma rapariga possante e forte, de nome Dolores, que conseguia suportar o boneco ardendo, espetado numa forquilha, do lado de fora da janela. Enquanto o compadre ardia, as raparigas iam lendo o seu testamento, redigido em quadras.

Grupo de foliões no estúdio da Fotocine no Carnaval de 1955 [Fundo Fotocine/MMC]

Os bonecos, tanto o compadre como a comadre, eram, nalgumas situações, personalizados, caricaturando algumas pessoas de entre o grupo de amigos. Era uma brincadeira. Na semana seguinte os papéis invertiam-se. Então era altura dos rapazes construírem uma boneca, a comadre. Na quinta-feira das comadres os rapazes organizavam uma pequena procissão e levavam a boneca em andor pelas ruas, em atitude provocatória. No percurso iam zombando e brincando, dizendo quadras: Comadre, rica comadre Comadre do meu coração, Lembra-te minha comadre Que vais passar à porta do Sebastião.37


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Ou, enquanto ardia: Comadre que morres queimada Já a fazer as queixas Se tens prendas pra deixar Diz já a quem as deixas. Comadre que morres queimada Que não és das caras mais feias Cá te fica de lembrança Que recebas as minhas meias. Comadre que morres queimada Sabes bem fazer uma peça Cá te fica de lembrança Que recebas minha travessa.38 Mais uma vez estas eram ocasiões de liberdade e de proximidade entre os jovens de ambos os sexos, mas também constituíam momentos de glorificação do género, no seu respectivo dia, em oposição ao género contrário, traduzindo-se em folia e em luta simbólica.39 Nos dias de Carnaval, de domingo a terça-feira, havia por todo o concelho de Coruche o que se designava de rusgas, conjuntos de pessoas mascaradas40 que se juntavam e percorriam as ruas brincando e fazendo barulho. Nestes dias a inversão de género, tão carnavalesca, expressava-se no costume dos homens se mascararem de mulheres. De tal modo este era um hábito bem arreigado que surgiu no jornal O Sorraia, em 1933,41 uma notícia dando conta da sua proibição, a nível nacional, punível com prisão. Entretanto, de modo mais organizado, ocorriam bailes, por todo o lado, tanto na rua como nos terreiros, ou em casas particulares, aqui designados de assaltos, ou ainda em salões de baile. De carácter urbano, na vila de Coruche tinham grande destaque os bailes no café Coruja.42 Traziam muita gente de fora (nomeadamente de Lisboa), o que os dotava de um glamour especial. Com o Enterro do Galo terminava o Carnaval, em Quarta-Feira de Cinzas.43 Uma cerimónia replicada um pouco

por todo o concelho. Na vila fazia-se um cortejo burlesco onde figuravam o padre, acólitos e carpideiras. Este conjunto percorria as ruas do Bairro Novo, transportando um galo numa padiola, em grande algazarra e pantomina. Tudo terminava com o sacrifício do galo, numa refeição partilhada por todos os participantes no cortejo.44

Quaresma O sacrifício do galo e todas as cerimónias de enterro do entrudo marcam o final deste período festivo e inauguram a Quaresma. Esta constitui-se como período charneira, de passagem entre festas, e surge, por um lado, como momento de ruptura, impondo comportamentos devidamente regulados pela Igreja, mas, por outro, permite uma certa continuidade de alguns rituais carnavalescos. Estes eram então assumidos como momentos que preparavam as pessoas para a alegria da Ressurreição de Jesus na Páscoa, prestes a chegar. 36

Pereira, 1983, p. 17.

37

Pereira, 1983, p. 19.

38

Quadras recolhidas no Couço por Nuno Virgílio (n. 1975).

39

Cf. Oliveira, 1984, p. 55.

40

De salientar que as máscaras de Carnaval eram criadas com as roupas e adereços que as pessoas tinham em casa e usavam no dia-a-dia. Mascarar-se significava ir aos roupeiros e baús escolher elementos que se vestiam e combinavam de forma imaginativa e atrapalhada. Não era habitual existirem máscaras temáticas.

41

Jornal O Sorraia, n.º 173, ano IV, de 26.02.1933, p. 1.

42

O café Coruja é descrito e lembrado como o salão de visitas da vila. Foi inaugurado na década de 40 do século XX e encerrou no início dos anos 90. Dispunha de banda residente.

43

A origem da designação deste dia tem a ver com o facto de então se celebrar a missa das cinzas. As cinzas utilizadas neste ritual provêm da queima dos ramos abençoados no Domingo de Ramos do ano anterior e servem para sinalizar uma cruz na fronte de cada fiel. A data coincide com o primeiro dia da Quaresma e marca a mudança de comportamento que a época exige, lembrando a todos que a vida terrena é uma passagem: do pó viemos, ao pó voltaremos.

44

Na organização da festa, que se realizou ainda durante os anos 80, foi incontornável a figura de Mário Padeiro (n. cerca de 1908), elemento muito reconhecido na comunidade coruchense por ser um dos fundadores da Liga dos Panificadores de Coruche, em 1939, e, sobretudo, pelo seu carácter festivo e exuberante.


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Era no ambiente festivo da quadra carnavalesca que se definiam os pares de compadres/comadres que, em toda a Quaresma, protagonizavam o jogo de enganchar. O jogo, que selava o compromisso de mandar rezar,45 consistia em cada par enlaçar entre si os dedos mindinhos, normalmente os da mão direita, verbalizando a quadra seguinte, numa referência evidente à altura da Feira de São Miguel e aos casamentos que então habitualmente ocorriam:46 Enganchar, enganchar pr’amanhã mandar rezar, prá Páscoa dar folar e pró São Miguel casar. O jogo era originalmente uma prática propiciadora de namoros, no entanto o par podia ser constituído por raparigas ou por elementos com grande diferença de idades. No Sábado de Aleluia, após a missa, a Quaresma chegava ao fim,47 ocasião em que os pares comprometidos procuravam encontrar-se. Assim, quem mais rapidamente encontrasse o outro, e o mandasse rezar, ganhava o jogo e recebia o folar, um pequeno presente, podendo ser amêndoas, umas meias, um lenço... Ainda durante a Quaresma, por todo o concelho, em colectividades e associações, organizava-se, e ainda se organiza, o Baile da Pinha. A este baile compareciam pares dançantes que concorriam para serem os Reis da Pinha. Um título muito desejado que era conseguido depois de todos dançarem uma coreografia orientada em torno de uma estrutura de madeira pendurada do tecto (a pinha), da qual pendiam fitas de seda. Por fim, cada par puxava uma fita. Apenas uma ficava presa no mecanismo, abrindo-o e libertando pombas. Os elementos que segurassem aquela que permitia a abertura da pinha eram eleitos os reis do baile. O seu reinado durava um ano. Era ainda usual as fitas serem oferecidas pelos elementos femininos, que as personalizavam com motivos bordados. Todas estas intervenções rituais associadas quer ao Carnaval quer à Quaresma, marcando o final do Inverno, cumpriam entre a comunidade dois propósitos essenciais: simbolicamente, propiciavam a fertilidade e a

Baile da Pinha no Bairro Novo em Coruche. Década de 60 (?) do século XX [Maria José Quintino/MMC]

regeneração da natureza, abreviando a vitória da Primavera sobre o Inverno, augurando bons resultados para as sementeiras feitas; e permitiam, num período longo, uma proximidade entre as pessoas, sobretudo entre os jovens de ambos os sexos, regulando a reprodução e manutenção da comunidade.

PRIMAVERA No devir das estações, a Primavera traz-nos o renascer da natureza, o seu poder cíclico de regeneração e de renascimento.

Páscoa Para os cristãos, a Primavera anuncia-se com a Páscoa, um ciclo festivo cujos referentes, da morte e ressurreição de Cristo, consagram o tempo. No entanto, é, uma vez mais, o devir das estações, da chegada e celebração da Primavera, que dá significado a grande parte dos rituais associados à Páscoa e aos que a sucedem, nomeadamente a Quinta-Feira da Ascensão e o Domingo da Santíssima Trindade. A Páscoa cristã tem origem na Páscoa judaica, que celebra o Êxodo dos judeus do Egipto para Israel, que decorre, por sua vez, da apropriação de um culto lunar comum a muitas culturas do Mediterrâneo e da Mesopotâmia.48 Foi


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neste contexto festivo que Jesus Cristo viveu os seus últimos dias: prisão, morte e ressurreição. Por esse motivo os cristãos apropriaram-se da festa e deram-lhe um outro significado. Assim, a Páscoa impôs-se, desde cedo, no calendário cristão como festa principal. É celebrada em múltiplas cerimónias litúrgicas, que recordam os últimos momentos da vida de Cristo, recriando-os ciclicamente. Todo o ciclo festivo da Páscoa soma, ao significado cristão da morte e ressurreição de Jesus, elementos alegóricos de morte e renascimento, como aqueles que são constantes na passagem do Inverno para a Primavera. Simbolicamente todas estas manifestações convergem para a ideia de aceitação da morte como momento de transformação e de renascimento. Quer seja referente a Jesus Cristo ou à Natureza.

simbólicas se terão liquefeito na calda bordalesa53 ou noutros venenos utilizados na monda química, as cruzes de alecrim, benzidas no Domingo de Ramos, permanecem ainda, pontuando a paisagem e impondo um quadro de crenças e de práticas profundamente enraizadas. A evolução tecnológica que trouxe novas perspectivas de percepção e intervenção sobre a Natureza, introduzindo produtos químicos eficazes no combate de maleitas

Em Coruche a organização das cerimónias litúrgicas associadas à Páscoa está, de acordo com o que acontece em todo o país, a cargo da Misericórdia local, cumprindo as normas rituais impostas pela Igreja Católica, cuja dimensão simbólica dos elementos que as integram é o que mais nos interessa expor na presente abordagem. No Domingo de Ramos, antecedendo o Domingo de Páscoa, evoca-se a entrada triunfal de Jesus em Jerusalém, sinalizada por ramos de palma. A palma e o ramo são considerados, universalmente, sinónimos de vitória, ascensão, regeneração e imortalidade. Relacionando-se com Jesus Cristo são prenúncio da sua ressurreição. Também de acordo com este sentido e numa perspectiva etnográfica, ocorre em todo o território rural de Coruche uma prática ritual de carácter mágico-religioso.49 Neste dia as pessoas levavam à igreja, e ainda levam, ramos de alecrim, oliveira e flores para serem benzidos. Ramos que na tarde de Quinta-Feira Santa50 servem para enfeitar cruzes feitas de canas, as quais, na manhã do dia seguinte, são colocadas em hortas e searas.51 Acredita-se que esta é uma forma de se abençoarem as plantas que despontam, prometedoras de colheitas fartas.52 Trata-se, sem dúvida, de uma intervenção ritual cujo fim é o de proteger e salvaguardar as culturas de doenças e pragas. Conceptualiza-se, mais uma vez, uma noção de risco e de incerteza que se revela necessário esconjurar. E se muitas práticas

Protecção do olival com utilização de sulfatador. 2.ª metade do século XX [Fundo Fotocine/MMC] 45

Em cada dia da Quaresma o elemento do par que primeiro visse o outro gritava-lhe que rezasse.

46

O jogo da reza é recorrente em todo o país, expressando-se normalmente apenas nos dois primeiros versos da quadra transcrita.

47

Momento sonoramente assinalado por grupos de rapazinhos que, empunhando campainhas, corriam pelas ruas.

48

Espírito Santo, 2004, p. 114.

49

Cf. Oliveira, 1984, p. 69.

50

Na Vila Nova da Erra, conforme Maria Adélia Brotas (n. 1928), estas cruzes eram colocadas nos campos na Quinta-Feira Santa (cf. Brotas, 2000, p. 123).

51

Informação oral de António Neves.

52

Informação oral de Nuno Virgílio. No Couço acreditava-se que na Quinta-Feira Santa os campos eram abençoados.

53

Fungicida agrícola.


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várias, não erradicou, apesar de tudo, uma necessidade de mediação divina, ilustrada pela cruz. Protecção divina e química coexistem e cooperam para um único fim. O calendário de trabalho cumpria dois meios-dias de interdições de ordem prática e simbólica. Não se podia trabalhar nem mexer na terra desde o meio-dia de Quinta-Feira Santa até à mesma hora do dia seguinte. Este período corresponde aos últimos momentos da vida de Cristo, o qual se revela imperioso respeitar. Estes meios-dias livres de obrigações permitiram que se tivesse instituído o hábito de ir à pesca na Sexta-Feira Santa. Pescava-se, de acordo com a proximidade, no rio Sorraia ou nas ribeiras adjacentes, bem como nas represas das grandes propriedades, nomeadamente na Agolada e na Quinta Grande que, nesses dias, eram abertas à comunidade. Todas as interdições que atravessam a Quaresma são suspensas no Sábado de Aleluia, véspera do Domingo de Páscoa. É o momento de se acender o círio pascal,54 a partir do qual os fiéis acendem as suas velas. A bênção do Lume Novo55 marca, deste modo, o início da celebração da ressurreição, dia de alegria e de luz, anunciando o retorno à vida. Em todo o território de Coruche era também um dia sonoramente marcado por grupos de rapazes que se juntavam às portas das igrejas onde decorriam as cerimónias litúrgicas. No final das mesmas corriam pelas ruas, tocando chocalhos e campainhas, anunciando a chegada da Aleluia.56 Era também o último dia do jogo de enganchar, que se iniciara no começo da Quaresma. O Domingo de Páscoa, a mais importante celebração cristã, ritualiza na Eucaristia a ressurreição de Cristo, recriando-a na transubstanciação do pão e do vinho em corpo e sangue de Jesus Cristo. Dois alimentos cujas referências simbólicas são inúmeras e transversais a muitas culturas. Acima de tudo representam o domínio da Humanidade sobre a Natureza, mediante a prática agrícola, e a capacidade de transformação do cereal e da uva em outros alimentos.57

Após o longo período de privações da Quaresma, a Páscoa surge marcada por um consumo alimentar festivo carregado de significado, associando assim determinados alimentos ao próprio sentido da celebração. Coruche não é excepção. Desde logo o cordeiro (ou borrego) assume evidente destaque. É consumido na generalidade das casas no Domingo de Páscoa, sem que haja alguma receita característica. O cordeiro revela-se como uma manifestação sagrada da Primavera constante em todas as civilizações mediterrânicas.58 Ele encarna o triunfo da renovação, da vitória da vida sobre a morte. Vítima propiciatória, representa aquilo que é necessário sacrificar para garantir a salvação. Para os cristãos simboliza Jesus Cristo. A amêndoa é outro dos alimentos associados à Páscoa. Também em Coruche as pessoas oferecem entre si, de acordo com as suas relações familiares e afectivas, amêndoas no Domingo de Páscoa. Fruto da amendoeira, que é das primeiras árvores a florescer (ainda em Fevereiro), dando os primeiros sinais da Primavera, representa mais uma vez o renascimento da Natureza e, para os cristãos, a ressurreição de Jesus Cristo, cuja natureza divina se esconde sob a sua natureza humana, tal como o miolo da amêndoa se esconde sob a casca.59

Quinta-Feira da Ascensão Quarenta dias após a Páscoa a Quinta-Feira da Ascensão consagra a subida de Jesus Cristo ao Céu. Contudo, este dia é marcado por uma expressão ritual deslocada do seu contexto de celebração cristã. É o dia da espiga. Em Coruche, à semelhança do que acontece em grande parte do sul do país, celebra-se, mais do que a ascensão de Cristo, o amadurecimento das searas, a floração dos campos, enfim, a Primavera. Respeitando a interdição de trabalhar,60 algumas pessoas deslocam-se ao campo para colherem a espiga, que integra um raminho composto por vários elementos, cada um com o seu significado: a espiga de trigo representa a abundância de pão; as papoilas, amor; a oliveira, paz; o alecrim ou o rosmaninho, saúde; e os malmequeres


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(brancos e amarelos), riqueza. O conjunto assim composto é guardado em casa, atrás de uma porta, até ser substituído no ano seguinte. Revestindo-se de um carácter propiciatório e de virtude benfazeja, o raminho configura, de facto, mais uma expressão de celebração da Natureza.61 O ritual de apanhar a espiga associava-se a passeios organizados ao campo, sendo, entre a comunidade da vila de Coruche, mais uma oportunidade de convívio. As famílias e amigos juntavam-se em grupos e aproveitavam o dia para merendar, dançar e pescar, tendo os seus lugares de eleição informalmente assinalados. Todos sabiam quais os locais correspondentes a esta ou àquela família, a este ou àquele grupo. Quem não tinha meios de transporte próprios deslocava-se a pé ou, se podiam, chegavam a alugar carroças ou camionetas.62

Quinta-Feira da Ascensão na Quinta Grande. Coruche, 26 de Maio de 1949 [Maria José Quintino/MMC]

Quinta-Feira da Ascensão. 1939 [Maria José Quintino/MMC]

Existia ainda outra expressão ritual que marcava esta data na Vila Nova da Erra. Quem tivesse vacas, cabras ou ovelhas oferecia o leite desse dia às crianças, que o iam buscar com as suas leiteirinhas.63 Segundo Ernesto Veiga de Oliveira este é um aspecto ritual, raro em Portugal, de carácter igualmente propiciatório, relacionado com 54

círio simboliza Cristo vivo e ressuscitado, a luz que ilumina a vida do O cristão. Expressão material das palavras de Jesus quando disse: “Eu sou a luz do mundo” e “Eu sou o princípio e o fim” (que a inscrição das letras alfa e ómega – a primeira e a última letras do alfabeto grego – no círio traduzem).

55

Braga, 1986, p. 197.

56

o Couço, segundo Alberto Garcia, no “sábado de Aleluia a garotada N espera alvoroçada, no adro da igreja, o toque alegre da Ressurreição. Soada a primeira badalada, chocalhos e campainhas presas aos pescoços dos rapazes de todas as idades agitam-se, em correria doida, e percorrendo as ruas entram nos quintais a solicitar o acompanhamento da alegria com amêndoas, pinhões e castanhas” (Garcia, 1948, p. 256).

57

e os cristãos acreditam que estes alimentos representam em Cristo S a pureza e a imortalidade, já os gregos os tinham elevado ao panteão, com Deméter e Dionísio, e os judeus instituído como alimentos sagrados.

58

ão será coincidência o símbolo zodiacal correspondente ao equinócio N da Primavera ser o carneiro.

59

Chevalier e Gheerbrant, 1997, p. 61.

60

importância deste dia no quotidiano de Coruche ainda hoje se mantém. A A Câmara Municipal dá aos seus funcionários a tarde de folga para a apanha da espiga.

61

Cf. Oliveira, 1984, p. 113.

62

Segundo informação oral de Maria Isabel Vieira Pereira (n. 1927).

63

Segundo informação oral de Adélia Brotas.


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o significado mágico-religioso do leite,64 que surge associado à vida, ao crescimento, à eternidade e ao conhecimento. Símbolo lunar, feminino, está profundamente ligado ao renovo primaveril.65

Trindades Mas se a Primavera impõe que se celebrem e protejam as plantas florescidas, também os animais são merecedores de atenções propiciatórias. No Domingo da Santíssima Trindade,66 encerrando o ciclo festivo pascal, ocorriam em Santana do Mato e em São Torcato cerimónias de bênção do gado. Estas festas, também de carácter móvel, têm como referente temporal chave a Páscoa. Contudo surge um outro referente temporal significativo, recorrentemente citado oralmente por alguns informantes: as cerejas. Era nesta altura, no tempo das cerejas, em finais de Maio e inícios de Junho, que se comiam os primeiros

frutos, trazidos da Beira Baixa e vendidos durante os festejos que marcam este dia. Em São Torcato, pequena localidade a sul de Coruche, a cerimónia da bênção do gado decorria na imediação da igreja. Eram instaladas baias de protecção ao longo do caminho, por detrás das quais as pessoas se acomodavam à passagem dos animais. O padre posicionava-se num pequeno palanque sobrelevado para proceder à bênção dos animais que diante de si passavam. O gado caprino, ovino, mas sobretudo suíno e bovino, era trazido pelos lavradores e conduzido por pastores e campinos. A cerimónia era ainda precedida de uma procissão. Havia também quem, mais humildemente, levasse a benzer a sua ovelha ou o seu porco, elementos essenciais da economia doméstica. Após a bênção dos animais, as pessoas merendavam e conviviam nos terrenos circundantes à igreja, onde decorria o arraial, animado pela actuação de artistas contratados.

Procissão da bênção do gado em São Torcato (Coruche), 1.ª metade do século XX [Augusta Calção/MMC]


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Todavia, segundo Florindo Brites (n. 1941), natural de São Torcato, a chamada de muitos rapazes para a guerra do Ultramar, nas décadas de 60 e 70 do século XX, contribuiu para que as festas deixassem de se realizar. Cinquenta anos passados, e por iniciativa do padre João Luís Silva, a festa da bênção do gado foi retomada em 2012.

1 de Maio à noite de Valpurgis.68 Noite povoada de bruxas invisíveis, espíritos nocivos do Inverno e da Morte que, segundo crenças pagãs, andavam no ar a praticar o mal. A sua origem remonta a antiquíssimos cultos agrários, propiciatórios de fertilidade e abundância, transversais a toda a Europa.69

Na localidade de Santana do Mato, Adelina Sofia (n. 1924) recorda a chegada à igreja do gado primorosamente enfeitado para ser benzido. Depois era acomodado à sombra, nos terrenos adjacentes. Também aqui as pessoas se juntavam para merendarem a sua galinha ou galo e dançarem até ao final da tarde, momento de regresso às suas casas.

Já na vila de Coruche este dia era assinalado, até meados do século XX,70 de modo substancialmente diferente. As professoras levavam as suas alunas ao campo. Durante a manhã colhiam malmequeres para fazerem coroas e cintos que usavam com vestido branco. Assim arranjadas iam em grupo pedir às portas. O dinheiro obtido revertia, na tarde desse dia, para um bodo oferecido aos pobres. A noite encerrava com um baile organizado pelo Grémio Artístico e Comercial de Coruche.71

1 de Maio Fora do ciclo da Páscoa, o dia 1 de Maio interpõe-se no calendário festivo. Ana de Castro Osório, referida por Leite Vasconcelos, afirma tratar-se de uma festa que anda “na alma popular como restos de antigas crenças, relíquias truncadas da primitiva religiosidade naturalista dos nossos antepassados”.67 Na vila do Couço era costume, na madrugada deste dia, as crianças irem ao campo apanhar ramos de giesta para colocar nas fechaduras das portas que ainda estivessem fechadas depois do nascer do Sol. Esta prática fazia-se acompanhar do grito: Já te entrou o Maio pelo cu adentro! Considerava-se, assim, que quem neste dia não acordasse antes do amanhecer era preguiçoso o ano inteiro. Crença igualmente comum entre as pessoas da Erra, embora não haja nesta localidade memória que ateste o hábito de colocar giesta nas portas. Ainda no Couço, podiam usar-se rosas em vez de giestas, flores da época associadas a Nossa Senhora, a quem a Igreja consagrou o mês de Maio. De facto, por uma questão meramente prática, as rosas estavam mais acessíveis nos canteiros e quintais, evitando a deslocação ao campo para colher giesta. Segundo Ernesto Veiga de Oliveira, o “Maio” representa uma entidade nociva que a colocação das flores nas portas denuncia e esconjura. O autor faz corresponder o dia

Com o passar do tempo, o dia 1 de Maio ganhou outros referentes simbólicos, sobrepondo à celebração da Natureza uma conotação política que é, ainda hoje, dominante. O Couço é disso exemplo. Coexistindo com o costume de colocar giestas nas portas, conforme descrito, este dia foi ganhando contornos políticos muito vincados. Em finais dos anos 50 do século XX, aproveitando o momento de convívio que o dia de pausa nos trabalhos do campo e a tradição proporcionavam, as gentes do Couço, em grande parte afectas ao Partido Comunista Português, por militância ou por simpatia, juntavam-se num piquenique comunitário. Associavam-se à luta operária, em conformidade com movimentações internacionais que já haviam consagrado este dia à sua causa.72 64

O autor refere que em Arronches esta data é designada como o Dia do Leite (cf. Oliveira, 1984, p. 115).

65

Cf. Chevalier e Geerbrant, 1997, p. 404.

66

Dezassete dias depois da Quinta-Feira da Ascensão (57 dias após a Páscoa).

67

Vasconcelos, vol. VIII, 1982, pp. 260-261.

68

De origem medieval germânica.

69

Cf. Oliveira, 1984, pp. 109-111.

De acordo com informação oral de Heraldo Bento e Maria Isabel Vieira Pereira, desconhecendo-se o momento de origem do costume.

70

71

Associação local de artífices, operários, comerciantes e empregados comerciais.

72

Godinho, 2000, p. 137.


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VERÃO Os dias grandes trazem o Verão. Um tempo que se associa ao calor e à luz. Ao amadurecimento dos frutos e cereais. Às colheitas e às festas. Era nesta altura do ano que as comunidades rurais mais se abriam ao exterior, recebendo, celebrando e partilhando. Esta época era marcada pela grande quantidade e dureza de trabalho que as colheitas e a tiragem da cortiça exigiam. Para isso chegavam ao território de Coruche ranchos de trabalhadores de outras partes do país, nomeadamente do Alentejo e das Beiras. De acordo com os seus locais de origem, assim lhes eram atribuídas alcunhas: barrões, galegos, béus, ratinhos, etc. Urgentes de braços, os longos, quentes e fastidiosos dias de Verão pediam também momentos de descanso. Em Coruche o dia de São João era dado pelo patrão,73 significando ser este um dos momentos do ano guardado para pausa nos trabalhos agrícolas.

Colheitas nos campos de Coruche. 1931 [Artur Lopes/MMC]

Extracção de cortiça. São Torcato, Coruche, década de 40 do século XX [Angélica Caçador/MMC]


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Santos populares São João Baptista consagra a chegada do Verão. Figura principal na hagiografia cristã, pontua o calendário a 24 de Junho, muito próximo do solstício.74 A ele juntam-se, cinco dias depois, São Pedro e São Paulo, outros santos principais para o cristianismo. Mas se a devoção popular subtraiu São Paulo das festas e comemorações que abrem o Verão, acrescentou, a partir do século XIII, Santo António, comemorado no dia 13 de Junho. A cristianização da Europa foi, como já vimos, resultado de uma apropriação e reinterpretação de antigos cultos e crenças. A variedade de aspectos e significados que se associam sobretudo a São João Baptista e, por sincretismo, a Santo António e um pouco também a São Pedro, remetem para celebrações relacionadas com o solstício, associadas aos dois elementos principais que as protagonizam: o fogo e a água, a que se juntam algumas plantas (nomeadamente o alecrim, o rosmaninho e a alcachofra). Estes elementos assumem, na noite mais curta do ano (simbolicamente a noite de 24 de Junho), propriedades virtuosas e propiciatórias relacionadas com a saúde e o amor. Em Coruche a devoção a estes santos está bem patente, quer no conjunto de igrejas existentes a eles consagradas75 quer no facto de surgirem como oragos de diferentes lugares e freguesias: São João Baptista é orago de Coruche, Santo António patrono da Fajarda e da vila do Couço e São Pedro padroeiro do Rebocho. As festas de Junho mobilizavam as comunidades de todo o território. Caracterizavam-se por serem, normalmente, organizadas pelas colectividades locais e compreendiam bailes e arraiais, presididos, invariavelmente, pelas fogueiras. Acender fogueiras nesta altura do ano era prática comum na generalidade dos países europeus. Todavia a interpretação sobre aquelas é controversa: se por um lado parecem reproduzir o Sol e o seu poder criador, favorecendo o crescimento das plantas, por outro lado elas podem ser também elementos de purificação, como um desinfectante mítico contra as ameaças de mal ou de morte.76 O acto

de saltar a fogueira configura, sem dúvida, uma prática profiláctica simbólica, tendo por objectivos alcançar saúde, amor, felicidade. Também os rituais divinatórios associados às fogueiras e à água remetem para uma dimensão simbólica: queimando-se uma alcachofra, que significa renascimento, acredita-se poder adivinhar sobre o amor, pois se ela reflorescer o prognóstico é favorável. Na Erra as raparigas tinham o costume de se verem ao cravo. Tal consistia em colocarem junto a uma fogueira uma bacia com água, no chão, e, “de joelhos, com um cravo vermelho na boca, olhavam para dentro da bacia”.77 Se vissem o seu rosto e o cravo reflectidos na água, era certo que casariam. Moisés Espírito Santo refere a importância que este dia comportava para estes augúrios, porque nele existe como que uma brecha no tempo, onde o futuro se revela no presente.78 A água surge, associada a São João, dotada de características mágicas. “A água, na ideia do povo, dorme todas as noites, mas na de São João ela é benta, e tem o poder de curar doenças [...] de dar beleza aos jovens e rejuvenescer ou infundir vigor aos velhos, favorecer amores e negócios e operar ainda outros prodígios benéficos.”79 Neste sentido, na noite de São João, no Couço, Santana do Mato, São José da Lamarosa e também na Vila Nova da Erra, caiavam-se e enfeitavam-se as fontes com flores. 73

Informação oral de António Neves (n. 1930), referindo a folga deste dia como um assunto acertado nos contratos de trabalho.

74

A ocorrência do solstício de Verão não equivale exactamente ao dia consagrado a São João Baptista. Tal como acontece nas restantes datas festivas próximas dos solstícios e equinócios, a correspondência entre os fenómenos solares e os referentes cristãos é mais simbólica do que real.

75

Na vila de Coruche cada um dos três santos tem consagrada uma igreja. Aquela que é atribuída a Santo António, segundo José Falcão, desde o século XVII, era, originalmente, consagrada a São Miguel (cf. Falcão, 2003, p. 92.). Facto atestado por documento de 1306 existente no Cartório do Convento de Avis, referido por Margarida Ribeiro (cf. Ribeiro, 2009, p. 116.).

76

Oliveira, 1984, p. 132.

77

Brotas, 2000, p. 127.

78

Espírito Santo, 2004, p. 292.

79

Oliveira, 1984, p. 137.


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Segundo Adélia Brotas, na Vila Nova da Erra as mesmas eram ainda decoradas com arcos de murta. Tal atitude configura um acto votivo que celebra a água como um recurso vital.

A operação era repetida nove vezes. Depois despiam a criança, rasgavam-lhe a camisa em tiras, com as quais atavam a árvore. Se passado algum tempo a árvore se unisse, a criança ficava curada.

A partir da década de 40 do século XX, com a construção de chafarizes públicos pelo Estado Novo, segundo uma “política de melhoramentos rurais”, este costume ganhou na Erra e na Lamarosa uma nova dinâmica. Estas aldeias passaram a dispor de vários pontos de fornecimento de água e as pessoas puderam tê-la mais próxima das suas casas. Assim, por ocasião da noite de São João, também estes passaram a ser enfeitados, tal como já o eram as antigas fontes públicas. As decorações tornaram-se motivo de competição festiva entre vizinhos, por vezes em segredo. Os residentes de cada rua tentavam que o seu chafariz fosse o mais bonito.

A noite de São João é considerada como “um momento aberto [...], uma data mágica por excelência e uma ocasião única para efeitos exclusivamente bons, sem perigos e sem medos de espécie alguma. [...] A natureza abria-se generosamente ao Homem”,83 oferecendo-se em prodígios.

Até à década de 60, na Erra, as fontes decoravam-se com um mastro de piteira e treliças feitas com canas preenchidas com verdura e flores.80 Antes do Sol nascer era costume as mulheres, e sobretudo crianças, irem às fontes buscar água, acreditando que esta estava benzida. Além do âmbito festivo, há ainda um outro aspecto do culto a São João que era comum praticar-se na Vila Nova da Erra.81 Trata-se de um costume relacionado com a cura de crianças quebradas (com hérnias). À meia-noite da noite de São João fazia-se passar a criança quebrada por um rasgo vertical feito num tronco de carvalho ou sobreiro. A acompanhar a criança iam os pais e outras duas crianças mais velhas: um rapaz que se chamasse Manuel e uma rapariga que se chamasse Maria. Eram estes que, posicionados com a árvore entre si, procediam à passagem da criança quebrada. Enquanto o faziam iam dizendo:

O culto a São João, muito fértil da perspectiva simbólica e muito expressivo em todo o território nacional, veio a ser sobreposto pelo culto a Santo António.84 Coruche não foi excepção a esta tendência. Durante alguns anos, nas décadas de 50 e 60 do século XX, realizaram-se, na vila de Coruche, marchas populares em honra de Santo António. Certamente sob influência das que ocorrem, tal como se dão a conhecer desde 1932, em Lisboa. Aquelas vieram imprimir uma feição mais urbana e diferente aos festejos ancestrais. Assumiam então destaque as marchas que se realizavam no Bairro Alegre, conhecendo grande adesão da população da vila, que se juntava para as ver e para participar no arraial em frente à Igreja de Santo António. A ocorrência das marchas foi, ao longo dos anos, muito irregular, tendo havido alguns períodos em que não se realizaram. Foram retomadas há poucos anos pela Associação de Apoio ao Doente Oncológico de Coruche Encostatamim.

“– Manel! – Maria! – Em louvor de São João, toma lá este menino quebrado e passa para cá um são.”82 Par da marcha do Bairro Alegre. Coruche, 1952 [Heraldo Bento/MMC]


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Os poemas que se transcrevem, embora não estando datados, fizeram parte das marchas no Bairro Alegre na noite do dia de Santo António. Bairro Alegre das cantigas Corações a palpitar Na alma das raparigas Que cantam cantigas, Versos d’encantar. Bairro Alegre, Bairro Alegre, Nesta marcha até parece, Que trazes, meu Bairro Alegre, Na luz dos balões Corações em prece.85 Este dia é ainda celebrado com uma missa sucedida de pequena procissão e um arraial. Eventos cuja ocorrência, ao contrário das marchas, foi regular, permanecendo ainda hoje.

Importa, antes de mais, perceber brevemente as origens e os contextos do culto a Nossa Senhora para melhor compreender a dimensão que tem em Coruche. Segundo Moisés Espírito Santo os primeiros indícios da devoção à Virgem remetem para o século II na Síria.88 Aí terá substituído o culto da Deusa Síria ou criadora. Segundo o mesmo autor a doutrina católica estabeleceu a santidade de Nossa Senhora em Éfeso no ano 431. Exactamente no mesmo local onde até então existiu um templo em honra de Artemísia ou Diana, celebrada no dia 14 de Agosto. Este facto decorre da proibição definitiva das religiões pagãs em 380 instituída pelo Édito de Tessalónica. Desde então os locais, cultos e atributos da mãe dos deuses passaram para a Virgem. 80

Segundo informação oral de Isabel Gonçalves (n. 1969).

81

Segundo Ernesto Veiga de Oliveira, esta era uma prática muito generalizada em todo o país (cf. Oliveira, 1984, p. 164).

82

Brotas, 2000, p. 73.

83

Espírito Santo, 2004, p. 292.

84

Segundo um artigo de Leite Vasconcelos, publicado n’O Século, a 13 de Junho de 1895, sob o título “O Santo António nas tradições populares”, este refere que a “sympathia vivissima e a particular devoção que em todo o paiz se lhe dedica, confundem-se muito com as que se consagram ao seu percursor Baptista, de que parecem ser uma irradiação; aqui se está vendo como o catholicismo se soube habilmente aproveitar das festas solsticiaes, tão celebradas pelos antigos povos, em favor dos santos que a imaginação ingenua dos primeiros christãos ia creando, proporcionando-lhes assim ensejo para os folguedos e as expansões, a que a boa alma popular, seguindo os seus instinctos naturaes, se não poderia furtar” (Vasconcelos, vol. VIII, 1982, pp. 368-369).

85

Pereira, 1995, p. 39.

86

Na Branca, Nossa Senhora da Conceição é celebrada no último fim-de-semana de Agosto, em vez de no dia 8 de Dezembro, e, na Azervadinha, Nossa Senhora da Graça a 27 de Setembro, em vez de 27 de Novembro. Nestes locais as festas dedicadas a Nossa Senhora não comportam expressão simbólica a salientar. Tratam-se de manifestações relativamente recentes, tal como o são aquelas comunidades, que surgiram após os processos de aforamento (na Branca apenas em 1922).

87

Além destas referências, o culto mariano expressava-se ainda por todo o território de Coruche noutras invocações, nomeadamente Nossa Senhora da Graça, com capela e confraria em Coruche, Nossa Senhora do Rosário e Nossa Senhora da Vitória, veneradas na igreja matriz, e Nossa Senhora da Visitação e Nossa Senhora da Purificação, na Igreja da Misericórdia, e Nossa Senhora da Conceição. As duas últimas tinham confrarias próprias que vieram a ser incorporadas pela Misericórdia em 1579 (cf. Falcão, 2003, p. 96).

88

Cf. Espírito Santo, 2004, p. 91.

Culto mariano É também no Verão que surge no calendário festivo de Coruche, impondo-se com grande expressão, o culto mariano, manifestando-se em múltiplas invocações um pouco por todo o território. Por princípio, grande parte das festas dedicadas a Nossa Senhora coincidem normalmente com os principais eventos da sua vida, no entanto a religiosidade popular acabou por deslocalizá-las para o Verão.86 O que se deve, essencialmente, a questões de ordem prática como a grandeza dos dias e as boas condições climatéricas, propiciadoras de convívio e festas. Mas também a questões de ordem simbólica. Tempo de colheitas, o Verão é igualmente tempo de celebração e agradecimento pela prosperidade e fertilidade. Desde sempre ocorrendo no Verão, as festas da Erra, onde se invoca como padroeira Nossa Senhora do Vale, no último fim-de-semana de Julho, e as de Coruche, dedicadas a Nossa Senhora do Castelo, no dia 15 de Agosto, surgem como as mais celebradas e as que melhor expressam a devoção da comunidade. Todavia é com Nossa Senhora do Castelo que o culto mariano ganha maior destaque.87


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Até ao século XII o culto a Nossa Senhora era incipiente. Designada como Santa Maria, era equiparada aos outros santos. A partir de então, resultado da importância que as imagens vieram a ter na divulgação e comunicação da religião junto das comunidades, veio a afirmar-se como culto dominante. Instituíram-se as suas invocações ligadas aos principais momentos da sua vida, assinalando-os com dias de festa, como consta nos calendários medievais: Conceição, Anunciação, Purificação, Assunção e Expectação.89 A estas invocações acrescentam-se também como significativas as relacionadas com os locais onde era venerada ou onde terá aparecido, como é o caso, no território de Coruche, a referência ao Castelo e, eventualmente, ao Vale. Neste período, embora o culto dos santos fosse muito intenso, o crescimento da devoção à Virgem sobrepôs-se à de outros santos patronos, o que veio a acontecer quer em Coruche, logo no século XVI, cujo orago original é São João Baptista,90 quer na Vila Nova da Erra, cujo orago é São Mateus. O culto a Maria foi ainda, sem dúvida, decisivo na afirmação da identidade de Portugal. Durante o período da Reconquista atribuíram-se-lhe muitas vitórias. Também nos momentos decisivos em que Portugal perdeu soberania foi atribuído à Virgem o mérito na afirmação da independência em Aljubarrota em 1385,91 e ainda em 1640 com a Restauração da Independência face ao domínio espanhol. Nossa Senhora, sob invocação de Conceição, foi nomeada por D. João IV, em 1646, Padroeira de Portugal.92 De todas as festas e invocações de Maria, a Assunção (morte e subida ao Céu) surge como festa principal. Celebrada, a princípio, em meados de Janeiro, foi fixada pelo imperador Maurício (582-594) a 15 de Agosto,93 o que reforça o sincretismo com a deusa Diana, cujas festividades ocorriam próximas desta data. Em Portugal foi após a vitória em Aljubarrota, a 14 de Agosto de 1385, que a festa da Assunção ganhou maior relevância, com a implementação de solene vigília e procissões.

Nossa Senhora do Vale Sobre Nossa Senhora do Vale sabe-se que em 1582, na Vila Nova da Erra, foi fundado um convento pela Terceira Ordem de São Francisco, confiado à sua protecção.94 A razão desta invocação no local é popularmente sustentada por uma lenda. Esta refere a aparição de Nossa Senhora, num vale próximo da vila, em data indeterminada, a uma mulher que andaria a recolher lenha. A aparição foi ainda testemunhada por inúmeras pessoas. A partir de então o vale ter-se-á passado a designar Vale de Santa Maria.95 Contudo, a invocação de Nossa Senhora do Vale é recorrente em várias partes do país, sendo comum estar associada a lendas semelhantes a esta. Frei Agostinho de Santa Maria interpreta aquele título como uma alegoria para o vale de lágrimas em que Maria terá sucumbido depois da morte do filho. E refere ainda os vales como os lugares mais humildes e inferiores do mundo, onde se encontram, submissos, os pecadores arrependidos.96 Não se sabe se, à data da fundação do convento, já existia algum tipo de devoção a Nossa Senhora do Vale, associando-a efectivamente àquela lenda, ou se terá sido trazida pelos frades franciscanos, em concordância com a tendência de louvar a Virgem, dominante na época. Deste culto subsiste ainda a festa em honra de Nossa Senhora do Vale, que assumia características populares muito específicas e diferenciadoras das restantes festas do concelho. Como todas as festas, comporta em simultâneo um carácter religioso e profano, intercalando celebrações religiosas, como rezar o terço em público e a procissão, com celebrações profanas como o arraial, o bazar, o fogo-de-artifício e a banda de música. Mas o que mais distinguia esta festa era o costume de recitar em público as Décimas e a realização de cavalhadas. Após rezarem o terço, em conjunto, as pessoas deslocavam-se ao Largo do Convento para assistirem ao recitar das Décimas. Aí encontrava-se um grupo de homens, alguns deles embrulhados em chita decorada com ramagens encarnadas, caricaturando trajes nobres de brocado. Estes, montados em burros ou mulas enfeitados a preceito com fitas coloridas, dispunham-se em fila


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indiana e cada um dizia alguns versos, como os que aqui se transcrevem: Anjos e alcanjos97 Santos e parafins98 É em beleza que tudo se encerra. Por vossos filhos aqui vim Visitar o povo da Erra.99

zavam-se as cavalhadas, às quais comparecia a elite de Coruche, que chegava a cavalo. Tal como a cerimónia de recitar décimas sugere uma origem medieval, também as cavalhadas nos chegam dessa época. De facto, parecem nascer dos torneios medievais onde os nobres cavaleiros tinham oportunidade de mostrar e disputar publicamente, em jogos diversos, a sua destreza, valentia e ainda charme e galhardia. Constituía essencialmente um exercício militar. Os resquícios destes jogos chegaram até à década de 60, na Erra, como uma brincadeira, conforme sugere a descrição de Adélia Brotas: “As cavalhadas eram feitas do seguinte modo: havia um cordel grosso atado a dois paus das bandeiras, [...] no qual enfiavam uma pequena argola de ferro com uma abertura. [...] Os cavaleiros partiam a galope do princípio da rua com um pauzinho na mão que enfiavam na argola e a tiravam do cordel, o que nem sempre era conseguido. Cada vez que o conseguiam lançavam um foguete e ganhavam um frango vivo.”100 Parecem assim configurar uma paródia, como se percebe pelo prémio atribuído a quem conseguisse superar a prova. Segundo Artur Lopes (n. 1931) chegava a ser uma tarefa inglória, uma vez que era comum as pessoas da Erra não permitirem que os prémios fossem ganhos. Com frequência sabotavam o desfecho de cada prova, puxando o cordel à aproximação do cavaleiro e fazendo com que a posição do alvo fosse alterada.

Procissão de Nossa Senhora do Vale. Erra, década de 50 do século XX [Lourenço Morais/MMC]

Este costume parece remeter para os jograis medievais que rivalizavam com a Igreja o protagonismo na comunicação com as comunidades, ainda que as mensagens fossem radicalmente diferentes. A festa na Erra terminava, na segunda-feira, durante a manhã, com os festeiros a entregar a bandeira da festa aos festeiros do ano seguinte. Após esta cerimónia reali-

89

Costa, 1957, p. 33.

90

Cf. Falcão, 2003, p. 93.

91

Cf. Costa, 1957, p. 35.

92

Costa, 1957, p. 38.

93

Costa, 1957, p. 28.

94

Cf. Falcão, 2003, p. 97.

95

Brotas, 2000, p. 95.

96

Santa Maria, 1718, tomo um, p. 186.

97

Corruptela de arcanjos.

98

Corruptela de querubins.

99

Brotas, 2000, p. 92.

100

Brotas, 2000, p. 93. Um ritual semelhante acontecia no Rosmaninhal (Castelo Branco), durante os festejos de São João Baptista, tal como descrito por Ernesto Veiga de Oliveira (cf. Oliveira, 1984, p. 163).


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De salientar que estes aspectos festivos, que tanto distinguiram outrora a festa da Erra, remetem para características muito populares, envolvendo, ainda hoje, toda a comunidade. Comporta uma grande componente profana, muito embora a manifestação de fé que a comunidade dedica à sua Nossa Senhora seja intensa.

Nossa Senhora do Castelo É com Nossa Senhora do Castelo que o culto mariano no território de Coruche ganha maior dimensão. Ao contrário da festa da Erra, de características populares, as festas em honra de Nossa Senhora do Castelo são fortemente institucionalizadas, decretadas e regulamentadas. Segundo José Falcão: “A ermida de Santa Maria – depois Nossa Senhora – do Castelo, situada no alto de um monte que domina a vila e os campos de Coruche, em ponto muito propício à hierofania, deriva, ao que tudo indica, da cristianização de um antigo local de culto101 que recebeu diversos usos ao longo dos tempos, evidenciando a importância estratégica da dita colina para o domínio do vale do Sorraia.”102 O culto a Nossa Senhora naquele local indicia ser muito antigo. Em 1516, fazendo cumprir o disposto em carta de D. Manuel I, D. Jorge de Lencastre, Mestre da Ordem de Avis e de Santiago, determina que se faça uma procissão em louvor de Nossa Senhora “o mais solemne mente que ser possa”, a realizar no dia 2 de Julho, dia da Visitação. Na mesma carta, D. Manuel I exige que se “chamarão todo o pouo pera ir em na dita pissisão pera todos lhe dar graças e louuores por tantos bems e merçes como todos della por seus rogos reçebemos e uos encomendamos”.103 A Virgem, que certamente já ali seria venerada, passa a ser invocada por ocasião da Visitação. Mas a referência ao Castelo impõe-se e, em 1657,104 é instituída, sob alçado real, a Irmandade de Nossa Senhora do Castelo, que assume a gestão e a promoção do culto. Nessa mesma ocasião determina-se que a festa em honra de Nossa Senhora passe a celebrar-se a 15 de Agosto, dia da Assunção. Com a criação da irmandade e a mudança da data das festividades para o dia de maior devoção a

Maria, Nossa Senhora do Castelo veio a ganhar destaque, impondo-se definitivamente como culto de importância fundamental não só no território de Coruche como nas suas circunvizinhanças.105 Durante o século XVIII o culto vem a consolidar-se ainda mais, “mercê do impulso da piedade mariológica da época”106 decorrente do movimento de contra-reforma (século XVI) responsável, em Portugal, “pela afirmação de práticas e ritos tradicionais, de um corpus de tradições religiosas de arreigado arcaísmo”.107 É neste contexto que se incrementam, por regulamentação e decreto, os cultos marianos. É também no século XVIII que João Lopes Correa, cirurgião do Hospital de Todos os Santos em Lisboa, dedica a Nossa Senhora do Castelo dois volumes, sob o título genérico Castello Forte, publicados em 1723 e em 1726. O autor, nascido em Coruche, considera a Virgem como uma metáfora para o castelo que protege quem nele se refugia. Refere-A como protectora de quem Nela procura, com devoção e fé, amparo e segurança. A esta analogia acrescenta a sua própria obra, que considera ser também um castelo. E pede que interceda para “que no Castello deste livro achem todos a saude temporal, que sempre desejaõ, e que no Castello de vosso patrocinio achem todos a saude eterna, que he a salvaçaõ, a que sempre aspiraõ e sempre esperaõ”.108 Desejando que ele próprio possa valer ao corpo de quem o procura, tal como Ela vale pelas almas daqueles que A invocam. A representação de Nossa Senhora do Castelo, que ainda hoje se venera, remonta, pelo menos, ao século XVII. Iconograficamente assume características muito específicas que a tornam única. É representada tendo ao seu lado direito, de pé, um Menino Jesus já crescido. Corresponde a um Menino Jesus Salvador do Mundo, segurando o globo na mão esquerda e fazendo o gesto da bênção com a mão direita. A relação desproporcional entre as duas figuras é referida por Frei Agostinho de Santa Maria109 e pelo Padre Luís António Leite Pitta, nas Memórias Paroquiais de 1758.110 A explicação dada por ambos atribui esta desproporção à crença popular de que o Menino, originalmente nos braços de Nossa Senhora, terá crescido tanto que teve que ser colocado ao lado de Sua


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mãe. Justificando o milagroso crescimento, o primeiro autor diz ter visto fatos do Menino de dimensão reduzida. No entanto, o que parece ressaltar é o facto de, ao longo dos séculos, Nossa Senhora do Castelo ter talvez assumido, em Coruche, várias invocações, como sugerem as diferentes datas atribuídas ao culto. Nossa Senhora, quer seja referente à Visitação ou à Assunção, é representada sem o Menino nos braços. Apesar disso, a imagem actual não tem qualquer referência iconográfica a nenhuma daquelas invocações. Provavelmente, a partir de altura indeterminada e por razão igualmente indeterminada, terá passado a ser representada com o Menino Jesus ao seu lado, como se ali tivesse sido acrescentado, conferindo a Nossa Senhora do Castelo uma identidade própria e um carácter único. Relativamente à existência de fatos de reduzidas dimensões, tal pode ser explicado, conforme Ana Correia, pelo facto de terem sido oferecidos por pagamento de promessas.111 A devoção a Nossa Senhora do Castelo assume manifestações muito diversas, marcando forte presença no quotidiano de Coruche. Tal é ilustrado pelo facto de ser frequente baptizar meninas com o nome de Maria do Castelo. Tendência que teve o seu ponto alto durante os anos 50 do século XX.112 Ou ainda por muitas pessoas terem Nossa Senhora do Castelo como madrinha de baptismo. Também os ex-votos representam um importante aspecto do culto a Nossa Senhora do Castelo. Resultam de uma devoção popular e surgem da invocação em momentos de aflição. Durante os séculos XVIII e XIX, antes da generalização da fotografia, eram encomendados pelos crentes a pintores desconhecidos (provavelmente locais), que registavam o agradecimento das graças concedidas. Na ermida do Castelo existem alguns exemplares. Todavia, de entre os ex-votos, aqueles que mais impressionam, sobretudo por estarem ainda muito presentes na memória da comunidade, são os que constituem um grande conjunto de fotografias de soldados do Ultramar. São fotografias emolduradas (preenchendo completamente duas paredes) de soldados que terão pedido protecção a Nossa Senhora do Castelo. É crença generalizada que todos os que partiram para a Guerra Colonial sob protecção da Virgem, ali representados, terão regressado a salvo.

Sacristia da ermida de Nossa Senhora do Castelo em Coruche [Arquivo Fotográfico MMC]

O culto a Nossa Senhora assume ainda características muito particulares, sobretudo no âmbito doméstico, onde a intimidade permite uma devoção mais próxima. Neste sentido importa referir a história associada a uma imagem de roca (do século XVIII ou XIX), cuja identidade é difícil de esclarecer. Tendo sido cultuada tanto na Erra como em Coruche, apresenta-se sem o Menino Jesus, sugerindo por isso ser uma representação de Nossa Senhora do Vale. No entanto, a existência de uma vaga informação oral de que teria existido junto a si um Menino levanta a possibilidade de ser Nossa Senhora do Castelo. 101

A ocupação do sítio do castelo de Coruche pode ser atestada pela quantidade de achados arqueológicos ali encontrados, referentes a épocas históricas remotas: da Pré-História à Idade Média. Muitos deles recolhidos por Margarida Ribeiro e depositados no Museu Nacional de Arqueologia. Um capitel e uma base de coluna, encontrados mais recentemente, sugerem, com consistência, ter ali existido um local de culto (ver Vasco Gil Mantas, artigo nesta monografia).

102

Falcão, 2003, p. 103.

103

Ribeiro, 2009, pp. 290-291.

104

Louro, 1974, p. 35.

105

Falcão, 2003, p. 93.

106

Falcão, 2003, p. 103.

107

Almeida, 1979, p. 160.

108

Correa, 1726.

109

Santa Maria, 1718, tomo sexto, pp. 336-337.

110

Ribeiro, 2009, p. 298.

111

Correia, 2011, p. 7.

112

Silva, 2013, p. 40.


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A incerteza levanta questões essenciais sobre a natureza do objecto sagrado que, assumindo uma identidade cambiante, não deixa, por isso, de ser sagrado. De facto, uma imagem de roca, desprovida de vestes e atributos, poderá ser qualquer personalidade. O que pode ser determinado apenas pela conveniência da devoção a ela dedicada. Segundo Margarida Vidigal Pais (n. 1937), no início do século XX a imagem existia em casa do seu avô, Joaquim Vidigal Pais, na Erra. Este, por essa altura, terá prometido a dois dos seus filhos, crianças, um potro. Os meninos esperavam ansiosamente pelo cumprimento da promessa e rezavam a Nossa Senhora para que por eles intercedesse e abreviasse tanta espera. A promessa nunca foi cumprida. E as crianças, revoltadas, decidiram cortar uma das orelhas da imagem, castigando-a por não ter ouvido as suas preces.

Festas religiosas É por ocasião das festas em honra de Nossa Senhora do Castelo que o Seu culto surge com maior expressão e solenidade. A novena113 dá início às festas no dia 6 de Agosto. Uma cerimónia pública que ocorre durante nove dias e onde a comunidade se reúne junto à ermida do Castelo para rezar. No dia 14 de Agosto celebra-se uma missa de Acção de Graças pela vitória na Batalha de Aljubarrota, conforme costume instituído por decreto de D. João I, que atribuiu o sucesso daquela batalha à intervenção de Nossa Senhora. Este dia termina com um espectáculo de fogo-de-artifício nas margens do rio Sorraia. No conjunto das festas é a procissão que se impõe como momento de destaque e importância. Realiza-se no dia 15, congregando toda a gente da vila e trazendo, de toda a vizinhança, um conjunto considerável de pessoas. Contudo, a afluência e participação não se compadece com as mudanças sociais que o tempo trouxe. Por isso, mais uma vez, é no passado que se encontram as referências que melhor descrevem a ocasião.

Nos anos 20 do século passado Francisco Câncio testemunhou e descreveu a procissão nas seguintes palavras: “Ao fundo da rua apareceu, depois, a cruz alta e doirada do começo da procissão, ladeada pelos ciriais, que avançava lentamente entre o povo respeitoso e devoto. Seguia se uma interminável fila de homens com opas e com velas ou bordões nas mãos calosas pelo trabalho, acompanhando outros que levavam crianças vestidas de anjo ou de São João, estas quase nuas, com o cordeirinho no braço. […] À passagem da imagem o povo ajoelhava. Ao andor seguia-se um grande grupo de amortalhados, envoltos em lençóis, no cumprimento de promessas realizadas em horas de aflição.”114 Já pouco desta descrição corresponde à actualidade. Não é já interminável a fila de homens com opas, são poucos os anjinhos e anjões (pessoas adultas vestidas de santos e santas da sua devoção) e quase nenhum São João. Os amortalhados desapareceram completamente. No entanto o cortejo mantém a sua estrutura: abre com duas filas de devotos, a que se juntam, em pagamento de promessas, os anjinhos (crianças vestidas de anjos).115 E ainda hoje, mantendo costumes antigos, é possível ver na “compacta mancha humana que se estende pelas ruas [...] inúmeras pessoas que fazem todo o trajecto descalças, outras transportando velas de grandes dimensões, estudantes de traje académico, pessoas acompanhadas de crianças de tenra idade”.116 Até à década de 80 do século XX os anjinhos constituíam parte fundamental da procissão. Chegavam a ser centenas: “de todos os cantos da província, a maioria de saias curtas, roxos, azuis, amarelos, de peito repleto de cordões de ouro e medalhas, entoucados de plumas e dourados”.117 Surgiam, em pagamento de promessas, acompanhados pelos seus pais. Alimentavam também uma economia local, fazendo-se retratar nos fotógrafos da vila e alugando os fatos.118 Os anjinhos de Almeirim distinguiam-se dos demais, segundo inúmeros testemunhos, pelas saias curtas e toucados vistosos. Entre os cordões seguem representantes das paróquias do concelho, levando os respectivos estandartes, e ainda


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Aspecto geral da procissão de Nossa Senhora do Castelo. Coruche, início do século XX [Joaquim R. Telles/MMC]

o grupo feminino da Irmandade de Nossa Senhora do Castelo. As Irmãs distinguem-se por usarem, ao pescoço, uma medalha de Nossa Senhora, que pende de uma fita azul e branca. Terminando os cordões, surge o andor de Nossa Senhora do Castelo, transportado durante todo o percurso por elementos masculinos da Irmandade. É antecedido pelo juiz da Irmandade, empunhando o bastão de prata. Logo atrás do andor seguem os restantes Irmãos, que se destacam pelas opas brancas e azuis. A terminar este conjunto segue a banda de música, marcando o compasso. Vem depois o pálio, sob o qual se podem ver os oficiantes religiosos e, por fim, um conjunto de pessoas que, por alguma razão, não quiseram participar nos cordões.

Integram ainda o cortejo as organizações locais, nomeadamente os Escuteiros e a Misericórdia e, ainda, a GNR e os Bombeiros. 113

A origem deste costume remete para o intervalo de tempo entre a Ascensão de Jesus Cristo ao Céu e a descida do Espírito Santo. A comunidade cristã, constituída então, essencialmente, pelos apóstolos e por Maria, ficou reunida durante esses nove dias.

114

Câncio, 1959, p. 144.

115

Actualmente a presença de anjinhos na procissão é muito residual, reflexo de uma outra relação que as comunidades estabelecem com o sagrado.

116

Correia, 2011, p. 10.

117

Ribeiro, 2009, p. 204.

118

Havia pessoas, normalmente costureiras ou senhoras da elite de Coruche, que detinham uma colecção de fatos de anjinhos que alugavam ou emprestavam a quem deles precisasse.


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199

Até à década de 70 do século XX encerrava a procissão um conjunto de animais domésticos: “vacas de hastes garridamente enfeitadas de flores e fitas de seda; mulas encabrestadas de cores e enfeites; ovelhas e cabras conduzidas por uma corda de flores”.119 Devidamente acompanhados pelos seus donos, compareciam na procissão em pagamento de promessas pelo restabelecimento de alguma doença ou acidente. No final da procissão os animais concentravam-se junto à ermida e aí faziam-nos dar voltas sucessivas à porta da capela, de acordo com a promessa feita. Margarida Ribeiro nota neste costume uma sobrevivência de rituais pagãos.120 A configuração do cortejo religioso, à semelhança do que acontece em todo o lado, seguindo padrões normativos expressos em regulamentos e decretos, obedece a uma hierarquia muito bem definida, espelho da estratificação social do concelho. Embora todos integrem a procissão com grande devoção, o modo como cada um nela participa é diferenciado e diferenciador. O cortejo configura, sem dúvida, uma afirmação pública da ordem social, evidenciada na maior ou menor proximidade que os indivíduos estabelecem relativamente ao objecto sagrado.121 Para todos a posição em que participam na procissão é importante, reconhecida e aceite. Desde sempre a procissão desce do castelo e atravessa a vila. Segundo Margarida Ribeiro, as ruas eram “vistosamente decoradas com arcos e mastros pintados de cores variegadas,122 lembrando, na sua policromia de cores, de bandeiras e outros adereços, os arcos e os mastros minhotos. As janelas são engalanadas com os melhores damascos e sedas e as ruas são atapetadas com ramos de alfazema, de alecrim ou rosmaninho”.123 Actualmente apenas se mantém o costume antigo de vestir as janelas de sedas e damascos. O cortejo religioso, decorridas algumas horas, regressa à ermida no castelo, onde termina com a cerimónia da bênção dos campos. Para o efeito a imagem de Nossa Senhora é conduzida à extremidade da esplanada e, na Sua presença, o padre, segurando a custódia, abençoa Anjinhos na procissão de Nossa Senhora do Castelo. Coruche, década de 50 do século XX [Fundo Fotocine/MMC]

a vila e todo o vale que dali se avista. Findas as colheitas,124 é então tempo de agradecer e de celebrar a fertilidade e a abundância, numa cerimónia que, revestida de solenidade, assume máxima importância para uma população cujo quotidiano permanece, em muito, ligado à agricultura. Exprimindo essa importância está a crença de que a “terra que seja apanhada pelo manto de Nossa Senhora do Castelo vinga”,125 ou seja, toda a terra que a vista alcança, a partir da ermida do Castelo, está protegida. A fertilidade dos campos é assim confiada à intercessão da Virgem, sugerindo uma reminiscência de rituais antigos, de índole naturalista e agrária, que subsistem nos nossos dias pela mão da Igreja.

Festas profanas Ao carácter religioso das festas em honra de Nossa Senhora do Castelo junta-se a sua componente profana que, antes de ser também ela formalmente organizada, assumia características eminentemente populares e muito espontâneas. Até aos anos 50/60 do século passado, antes da generalização do uso do automóvel, chegavam à vila em romaria, a pé, de carroça, a cavalo ou ainda de comboio, gente de todos os arredores. Normalmente vinham na véspera e dispunham-se em acampamento nas imediações da ermida de Nossa Senhora do Castelo. Aí permaneciam, comendo o farnel que trouxessem e fazendo os seus próprios arraiais, aos quais comparecia muita gente da vila, sobretudo os rapazes desejosos de 119

Ribeiro, 2009, p. 205.

120

Ribeiro, 2009, p. 41.

121

Sanchis, 1983, p. 120.

122

Este tipo de decoração, tão característico da festa, levava a que as pessoas a designassem como a festa do pau caiado.

123

Ribeiro, 2009, p. 204.

124

A referência é, como já foi dito, o trigo, cujas colheitas estão nesta altura do ano concluídas. Importa salientar que embora as culturas introduzidas recentemente, como o arroz e o milho, subvertam esta lógica, uma vez que as respectivas colheitas, em Agosto, ainda estarão para acontecer, as referências simbólicas que estruturam o calendário mantêm-se.

125

Informação oral de Maria da Graça Ribeiro da Cunha (n. 1942) referindo-se ao que lhe dizia o seareiro da Quinta Grande.


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encetar conhecimento com as raparigas forasteiras. Mas a determinada altura o costume de ali pernoitar foi proibido e os arraiais deixaram de se fazer. Em 1945 os grandes proprietários de Coruche pretenderam associar à festa religiosa uma homenagem ao campino, figura que nas lezírias ribatejanas surge associada à masculinidade, coragem e bravura que a exigente condução de gado bravo requer. Com a criação formal da província do Ribatejo pela reforma administrativa de 1936, impôs-se a construção de uma identidade própria. Para isso muito concorreu a figura do campino que permanece, ainda hoje, no imaginário português como símbolo da região, resultado de um eficaz programa de política cultural do Estado Novo. E é, inequivocamente, uma referência essencial nas festas de Coruche, sendo o feriado municipal, no dia 17 de Agosto, a ele dedicado.126 Nos anos 40 do século passado António Feliciano Branco Teixeira, grande proprietário de Coruche, de passeio a Viana do Castelo, durante a romaria de Nossa Senhora da Saúde, terá presenciado um cortejo alegórico e etnográfico que muito o impressionou, levando-o a importar o conceito para Coruche.127 O primeiro cortejo realizou-se em 1947. Era inicialmente organizado pela Irmandade, pela mão dos grandes lavradores que aproveitavam assim a ocasião para expor a riqueza das suas casas. Era ainda ocasião para se enfeitarem janelas e varandas, já não com os damascos e sedas com que se vestem à passagem da procissão, mas “com mantas regionais, barretes, cintas, amuletos, cambolhadas, apetrechos ligados à criação de gado taurino e à faina agrícola”.128 As principais casas agrícolas faziam então desfilar “artísticos e garridos carros alegóricos”,129 ocupados e circundados por grupos de trabalhadores, trajados de acordo com a actividade representada. Patrões e empregados surgiam juntos. Além das casas de lavoura participavam também “o comércio e as indústrias, muitas delas artesanais: olaria, correaria, cestaria, louçaria, sem falar nos chocalheiros, nos carpinteiros de carros e de construção e, mais antigamente, nos calafates que reparavam os barcos que aqui chegavam para carregar e descarregar”.130

Assistindo ao Cortejo Etnográfico. Coruche, 1959 [Fundo Fotocine/MMC]

Tauromaquia Ainda no âmbito profano das festas, os touros impõem-se como elementos de destaque. Quer sejam largados nas ruas de Coruche ou toureados na praça, constituem, sem dúvida, um aspecto importante na identidade do território. Até à década de 50 do século passado Coruche não tinha uma praça de touros permanente. A actual só foi formalmente inaugurada em 1966, embora nela, ainda inacabada, ocorressem corridas de touros desde 1957. Durante muito tempo era em praças desmontáveis em madeira que as corridas se realizavam. Até ao final da década de 40 eram construídas na margem do Sorraia oposta à vila e, posteriormente, na zona do Rossio.131 Leite de Vasconcelos refere-se à praça que, por “ocasião da festa da Senhora do Castelo, os lavradores” constroem em madeira, “pomposamente”.132 E então, “terminadas as festas religiosas (13, 14 e 15 de Agosto: arraial, missa cantada, procissão, etc.), começam as corridas, que se repetem vários dias. De manhã vão ao campo buscar os toiros, fazendo nessa altura, em cada dia, as picarias, que consistem em conduzi-los com varas até à praça. Só em Coruche fazem isto”.133


201

A citação indicia que a realização de picarias no leito do Sorraia, seco no Verão, tinha um carácter excepcional e, certamente, um impacto espectacular. “Além de cumprirem a sua função – deslocação do gado – satisfaziam a curiosidade e aficion dos coruchenses que podiam assistir a partir da ponte ou da margem esquerda do rio.”134 Esta realidade veio a alterar-se com a construção do canal de rega que, paralelo ao rio, além de cortar todo o vale, introduziu culturas de regadio (nesta altura do ano ainda por colher). Dois factores que dificultaram o acesso ao leito do rio “e tornaram impossível a condução do gado por aí”.135 O aspecto prático da condução de gado para as corridas, outrora em picarias no leito do rio ou, mais recentemente, em largadas nas ruas, assume, em Coruche, características festivas marcantes.

126

Neste dia o campino é celebrado com um grande almoço que outrora se realizava no mercado de Coruche.

127

Segundo informação oral de João Alpuim Botelho (chefe da divisão de museus da Câmara Municipal de Viana do Castelo), em Viana do Castelo, desde 1909 realizavam-se paradas agrícolas. Sem regularidade anual, surgiam esporadicamente. Ao longo dos anos foram ganhando uma feição mais folclórica e etnográfica e a partir 1948 passaram a organizar-se anualmente, com solenidade e grandiosidade.

128

Pinto, 1987, p. 126.

129

Pinto, 1987, p. 126.

130

Pinto, 1987, p. 126.

131

Cf. Carrapato, 2010, pp. 22-23.

132

Vasconcelos, 1985, p. 571.

133

Vasconcelos, 1985, p. 571.

134

Carrapato, 2010, p. 21.

135

Carrapato, 2010, p. 21.

Picaria no leito do rio Sorraia e praça de touros desmontável. Coruche, 1.ª metade do século XX [Joaquim R. Telles/MMC]


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Picaria no leito do rio, Festas de Nossa Senhora do Castelo. Coruche, década de 50 do século XX [Heraldo Bento/MMC]

As realização de corridas no âmbito das festividades públicas generalizou-se a partir do século XV, evoluindo e chegando aos nossos dias devidamente codificadas e ritualizadas. Hoje em dia é o seu sentido estético e espectacular que domina. Apesar desta dimensão lúdica, a tauromaquia comporta ainda uma dimensão simbólica que não deve ser ignorada. Num combate de vida e morte, entre homem e touro, no confronto com a natureza bruta, consagra e celebra sempre a virilidade masculina. O combate ganha contornos rituais e estéticos que o aproximam de um sentido sagrado. De certa forma, pela tauromaquia vive-se intensamente uma religiosidade que em Coruche se liga a Nossa Senhora do Castelo. A natureza do confronto com a morte a que o homem se sujeita e o temor que isso acarreta leva-o a procurar abrigo e protecção nas entidades divinas.

A consciência da religião está associada à consciência do medo e do que se desconhece, traduzindo-se na devoção (imbuída de muita superstição) dos actores da festa tauromáquica. A manifestação desta religiosidade é vivida de forma discreta e íntima, porém intensa, que se revela em comportamentos diversos. É muito comum toureiros e forcados, antes de uma corrida, dirigirem-se à ermida para pedir protecção à Virgem. Estes pedidos dirigidos a Nossa Senhora são, muitas vezes, mediados pelo seu manto. Tocá-lo apenas tem um significado simbólico importante: o manto protege. Também é costume toureiros e forcados terem sempre consigo a imagem de Nossa Senhora do Castelo, em medalhas, pequenas pagelas, registos ou pequenos oratórios portáteis. Estes objectos surgem como amuletos revestidos de um carácter mágico-religioso que proporcionam sorte e protecção.


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Mas o touro é também um recurso económico fundamental. Se outrora, amansado, trabalhava a terra puxando arados e charruas, implicando um processo de domesticação complexo, hoje limita-se a ser criado exclusivamente para a festa e mantido bravo. Muitas vezes o touro que se lidava nas festas de Verão era o boi que no Outono lavrava as terras. Com a mecanização da agricultura o boi perdeu protagonismo no quotidiano rural das comunidade. Mas, por seu lado, o touro manteve a sua importância económica, sustento das ganadarias, toureiros e de todos os intervenientes da festa brava. Em suma, o animal, simultaneamente, doméstico e selvagem, marcava presença no ciclo de trabalho rural e no ciclo festivo de Coruche,136 configurando-se quer como um recurso económico quer como um elemento simbólico. No presente é ainda sinónimo da riqueza de uma casa agrícola. E continua a ser um símbolo da força bruta e selvagem que o homem afronta superando os seus medos e encontrando os limites do seu poder.

Conclusão Como vimos, o ciclo festivo em Coruche, à semelhança do que acontece em todo o país, compreende referências simbólicas e práticas rituais cujas origens já se perderam no tempo. A interpretação deste ciclo e a sua articulação com os calendários religioso e agrícola revelou-nos um universo imenso de informação e de memórias que não se esgotam nem neste texto nem na exposição. As práticas festivas ligadas à Natureza e aos trabalhos no campo fundamentavam um calendário assente numa concepção do mundo que não conhecia conceitos de férias nem de fins-de-semana. Os dias laboriosos corriam, ao longo do ano, intercalados com dias festivos, feriados. Na sua maioria dias santos. Hoje é cada vez menos esta concepção do tempo que organiza o quotidiano das pessoas. E embora o calendário ainda se vá cadenciando por alguns referentes ancestrais, destacando-se, em Coruche, Nossa Senhora do Castelo, muitos outros foram caindo no esquecimento. A Feira de São Miguel já não representa um grande momento festivo nem ocasião de negócio. São João há muito que deixou de se celebrar acendendo fogueiras ou buscando água nas fontes, ressalvando, no entanto, as iniciativas de recuperar a tradição que começam, pontualmente, a fazer-se sentir. Outras percepções do mundo impuseram outros modos de relacionamento com a Natureza, e os ciclos do trabalho e da festa parecem já não existir entretecidos. No entanto, surgem no calendário novas festas. E, por vezes, esta dissociação entre os ciclos festivo e do trabalho é contrariada. A Feira Internacional da Cortiça, em Maio, coincide com o início da campanha de tirada. Celebra-se assim um dos mais importantes recursos do território com uma nova festa que prescinde de qualquer referente simbólico e projecta a comunidade para o futuro. 136

Largada de touros nas ruas da vila. Coruche, 1957 [Fundo Fotocine/MMC]

Presente em muitos programas festivos da vila. Realizavam-se corridas de touros pela Feira de São Miguel, pelas Festas de Nossa Senhora da Graça e no Domingo de Páscoa.


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[Arquivo Fotogrรกfico MMC]

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O homem, o montado de sobro e a cortiça: a singularidade de uma relação complexa NUNO CALADO 1

Introdução

que está directa ou indirectamente relacionado com o sobreiro é, de forma inequívoca, singular.

A cortiça constitui uma civilização, um mundo que abarca muitas outras coisas, um sistema ecológico e uma série de manifestações culturais que não se deviam deixar perder.

Os sons do montado, incluindo aqui o inesquecível efeito sonoro da extracção da cortiça, as suas texturas e a evolução do gradiente de cores que existe nos troncos dos sobreiros são marcas indeléveis que ficam na memória de quem, nem que seja uma única vez, “sente” o montado de sobro.

Josep Pla – El meu país, vol. 7, obra completa

A relação existente entre o homem, o montado de sobro e a cortiça é, por diversas razões, uma relação singular. Razões históricas, económicas, sociais, ambientais, culturais, artísticas e muitas outras, fundamentam essa singularidade. Sendo um ecossistema de natureza antrópica, criado e dependente da intervenção humana, o montado é, actualmente, considerado um exemplo extraordinário de sustentabilidade, já que, quando adequadamente gerido, concilia actividade económica com níveis de biodiversidade elevados e importantes serviços dos ecossistemas, como a regulação do ciclo da água ou o sequestro de carbono, entre outros. A principal actividade económica que lhe está subjacente, a produção de cortiça, tem também características muito particulares: quem, nos dias de hoje, investe com expectativas de obter a primeira receita cerca de 40 anos depois? Quem investe para a sua (futura) segunda e terceira geração? Esta singularidade estende-se também ao principal produto que é extraído do montado de sobro, a cortiça, referida como “dádiva de Deus, milagre da Natureza”. Desde o ritual de extracção, que não implica o corte da árvore, às suas características e às inúmeras, históricas e crescentes aplicações desta extraordinária matéria-prima, tudo o

Do passado até aos dias de hoje Os sobreiros têm sido componentes notáveis das paisagens mediterrânicas durante séculos. Isso é resultado não só da longevidade e tamanho das árvores, mas também da sua utilidade para os seres humanos: desde a cortiça e da lenha até ao facto de constituírem uma estrutura para sistemas agro-florestais e silvo-pastoris.2 J. Aronson, J.S. Pereira, J.G. Pausas As primeiras árvores identificadas como sobreiros datam de há milhões de anos. Desde então ocorreram vários episódios de alteração climática que afectaram a vegetação. Particularmente interessante é o período que teve início há cerca de 1,8 milhões de anos – Plistocénio – que se caracterizou por uma alternância de épocas glaciais de frio extremo com estados interglaciários mais quentes. Estes acontecimentos influenciaram decisivamente a distribuição geográfica e a diversidade genética do sobreiro. O frio obrigou-o a refugiar-se em áreas de clima mais benigno, enquanto a amenidade interglaciária permitiu 1

UNAC - União da Floresta Mediterrânica. Fotografias do autor.

2

In Aronson, et al., 2009.


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a expansão territorial do sobreiro. O final do último período glaciar, há cerca de 10 mil anos, permitiu ao sobreiro colonizar a sua área de distribuição presente.3 O sobreiro encontra-se actualmente distribuído pela região mediterrânica, tendo expressão em sete países, onde ocupa cerca de 2,1 milhões de hectares. Portugal é o país com maior área de sobreiro, cerca de 34% da área mundial, seguindo-se a Espanha e Marrocos. De acordo com os resultados preliminares do 6.º Inventário Florestal Nacional,4 o sobreiro é actualmente a segunda espécie florestal portuguesa, ocupando 23% da área de povoamentos florestais (737 000 hectares) e possuindo uma excelente adaptação ecológica a vastas zonas do nosso país. Os resultados do 5.º Inventário Florestal Nacional5 indicam que a área de sobreiro em Portugal está concentrada maioritariamente em quatro regiões NUT III (Lezíria do Tejo, Alto Alentejo, Alentejo Central e Alentejo Litoral), onde está localizada cerca de 73% da sua área. É também de salientar o facto de Coruche ser, a nível nacional, o concelho com maior área de sobreiro (49 719 hectares, 6,9% do total nacional), o que é elucidativo quanto à importância que esta espécie possui a nível local. Enquanto sistema de uso múltiplo, o montado de sobro, onde se destaca a produção de cortiça como actividade principal, inclui também uma variedade de outras actividades complementares – pecuária, cinegética, produção de cogumelos e plantas aromáticas. A cortiça é o principal produto da exploração económica deste sistema e aquele que, pelo valor da sua produção, pode assegurar a sua sustentabilidade, permitindo o reduzido grau de intensidade de exploração do sob coberto, salvaguardando a sua biodiversidade e o seu elevado valor ambiental. Actualmente Portugal é o primeiro produtor, transformador e exportador de cortiça, com cerca de 50% da produção mundial e 65% das exportações mundiais de cortiça. Ao nível do comércio externo a cortiça representa 1,9%

das exportações portuguesas (845 milhões de euros em 2012)6 e 23,4% das exportações totais do sector florestal. Mais relevante ainda é o facto da União Europeia, através da cortiça, ser o líder mundial na produção de vedantes para vinho, possuindo, através das rolhas de cortiça, 70% do mercado internacional, e produzindo e transformando uma matéria-prima com um valor das exportações globais (2012) de cerca de 1307 milhões de euros. Não obstante os inúmeros produtos e aplicações existentes a partir da matéria-prima cortiça, a rolha é o principal produto resultante da sua transformação industrial e aquele que mais valor incorpora no sistema – as rolhas de cortiça são o principal produto exportado, representando, com 578 milhões de euros em 2012, 68% do total. Dentro do segmento rolhas (onde se incluem rolhas de cortiça natural, rolhas técnicas, rolhas de champanhe, etc.) as de cortiça natural assumem particular destaque no âmbito das exportações, representando, com 359 milhões de euros, 62% do valor total. Por essa razão, desempenham um papel vital na manutenção da sustentabilidade da cortiça e dos montados. Por todos estes factores, a evolução deste sistema, o seu aproveitamento económico e a sua contribuição social nestas regiões rurais, sem muitas alternativas culturais e de emprego, é assinalável. Em Portugal, para além de 12 000 postos de trabalho fabris directos, o montado de sobro gera 6500 postos de trabalho na área da exploração florestal e milhares de outros postos de trabalho indirectos relacionados com outros produtos do montado.

Cortiça, matéria-prima sagrada Esperemos que, num futuro próximo, nós, portugueses, sejamos capazes de arrancar ao nosso sobreiro alguns segredos importantes que é muito possível que ele ainda guarde. Talvez ele um dia revele se a sua cortiça – dádiva de Deus, milagre da Natureza – pode ainda servir para algo ainda mais importante do que as rolhas e do aproveitamento do quanto deriva da sua fabricação e, se assim for, oxalá que sejam portugueses a descobrir-lo.7 Carlos Peres


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A particularidade mais interessante do sobreiro é a produção de uma casca exterior homogénea, formada por um tecido elástico, impermeável e bom isolante térmico – a cortiça. Esta é constituída por células mortas de paredes impermeabilizadas por um composto químico denominado suberina. Todas as árvores produzem camadas de células suberizadas como forma de protecção, mas apenas o sobreiro é capaz de “construir” a sua casca exterior adicionando anéis anuais de cortiça a partir da actividade de um conjunto de células mãe – o felogénio. A homogeneidade da cortiça resulta de o felogénio do sobreiro se manter em actividade durante toda a vida da árvore. Isto contrasta com as outras árvores, onde cada felogénio dura pouco tempo. A extracção da cortiça, sem

danificar a árvore, é outra originalidade que resulta da anatomia e funcionamento da periderme do sobreiro. Quando se extrai cortiça, no fim da Primavera e durante o Verão, é fundamental que as células que a produzem (felogénio) estejam activas e se continuem a dividir. É nessas condições que a cortiça pode ser retirada da árvore sem que esta seja danificada.8 3

Pereira, et al., 2008.

4

Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas, 2013.

5

Inventário Florestal Nacional.

6

Dados do INE.

7

Peres, 1988, p. 75.

8

Pereira, et al., 2008.


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Existem inúmeros registos e referências históricas à cortiça que são provas inequívocas que esta matéria-prima está intimamente associada a uma “cultura técnica” da humanidade. Em épocas anteriores ao nascimento de Cristo a cortiça já era utilizada em bóias para as artes da pesca e em sapatos, aplicações que de algum modo ainda hoje se mantêm. Em 3000 a.C. na China utilizava-se a cortiça para aparelhos de pesca, tal como os egípcios, babilónios, assírios, fenícios e persas. No Egipto foram encontradas ânforas com tampões de cortiça em sarcófagos milenares, inícios da aplicação como vedante. Ainda relacionado com a capacidade de flutuação, e segundo Plutarco, foram utilizados pedaços de cortiça para atravessar o rio Tibre quando Roma foi sitiada pelos gauleses em 400 a.C. Existem diversos registos referentes a Itália (400-300 a.C. a 1 d.C.) que destacam o uso da cortiça em inúmeras aplicações como bóias, batoques para tonéis, calçado feminino de Inverno, cobertura de habitações e propriedades medicinais. Tal como foram encontradas nas escavações de Pompeia ânforas de vinho vedadas com cortiça, ou como Horácio (65-8 a.C.) alude nas suas Odes o uso de cortiça com resina para fechar as ânforas e barris de vinho, tal como Catão, Homero e Vergílio (70-19 a.C.) referem o uso de cortiça como isolante térmico aplicada como capacete para proteger a cabeça. Plínio, o Velho (23-79 d.C.), o naturalista romano que escreveu “Naturalis Historia”, fez uma descrição detalhada do sobreiro e do uso da cortiça. Ainda Varrão (século 11 a.C.) e Columela (século 1 d.C.) recomendam o uso de cortiça para as abelhas (o cortiço), dado ser má condutora de calor. Tal como se verificou, foram os romanos que mais diversificaram o uso da cortiça. Através da Idade Média a cortiça foi empregue numa gama alargada de objectos utilitários, nomeadamente recipientes para líquidos, cestos para carne e pão, medidas de cereais. Todavia é através da sua relação com o vinho que a cortiça obteve maior notoriedade enquanto matéria-prima. Desde que o homem passou a produzir e a consumir

vinho que a cortiça surge como o material mais perfeito para vedar os recipientes utilizados na sua conservação (ânforas, barris, garrafas). Porém, o aproveitamento industrial da cortiça em grande escala só começou a desenhar-se no último quartel do século XVIII, estimulado pelo uso crescente dos recipientes de vidro no fraccionamento dos vinhos.9 Efectivamente, foi no século XVII que se conjugaram várias circunstâncias que trouxeram a rolha de cortiça para o primeiro plano. Em Inglaterra novas técnicas vidraceiras popularizaram a garrafa de vidro, pequena, singularizada, adaptável a mesas e móveis vários. Era um vidro mais sólido, fundido em fornos de carvão, por imposição do Rei de Inglaterra, a quem preocupava o uso e abuso da madeira e a desflorestação do reino. Com a produção de garrafas em grande escala tornava-se possível a fermentação de vinho nas próprias garrafas, ideal para o champanhe borbulhoso que os franceses, por influência inglesa, produziam. Selado com tampões de madeira, envoltos em cânhamo embebido em óleo, o champanhe, contudo, soprava tais vedantes com grande facilidade e com consequências desastrosas. (...) O que não é lenda é que Dom Pérignon era um afamado conhecedor da produção de vinho espumante da região de Champanhe. Ora, segundo consta, influenciado pelos vedantes que os peregrinos a Compostela traziam nas marmitas, Dom Pérignon deu em aplicar a mesma matéria, a cortiça, às garrafas de champanhe. E assim foi. Seguras, fáceis de manusear e capazes de manter todas as qualidades do líquido, as rolhas corticeiras depressa forçaram as grandes casas produtoras, como os Ruinart ou a Möet et Chandon, a adoptarem tão importante inovação.10 Os elementos vinho, garrafa e rolha de cortiça estão assim, desde o século XVII, intimamente associados. Já William Shakespeare, na sua obra As you like it, publicada em 1598, faz referência às rolhas de cortiça (“I prithee, take the cork out of thy mouth that I may drink thy tidings”). No campo de aplicação da cortiça contra o frio e a humidade refira-se a sua utilização nas celas de alguns conventos, que ainda hoje pode ser observada, como


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nos casos conhecidos do Convento dos Capuchos em Sintra (mandado construir em 1560 por D. João de Castro) e do Convento dos Carmelitas no Buçaco.11 A nível decorativo é de destacar o Chalet da Condessa d’Edla, erigido pelo Rei D. Fernando II e pela sua segunda mulher, Elise Hensler, Condessa d’Edla, entre 1864 e 1869, na zona ocidental do Parque da Pena em Sintra. Construído segundo o modelo dos chalets alpinos muito em voga na Europa, é um edifício com uma forte carga cénica (segundo o espírito Romântico da época), caracterizado pelo uso exaustivo da cortiça como elemento decorativo.12

As características principais desta extraordinária matéria-prima – flutuabilidade, flexibilidade/compressibilidade, elasticidade, vedante, isolamento, leveza, imputrescibilidade, inodora, hipoalergénica, durabilidade, biodegradável, reciclável e renovável – e as novas e surpreendentes utilizações que estão a surgir permitem concluir que apresenta ilimitadas potencialidades de futuro.

A arte e a arquitectura contemporânea possuem hoje diversos exemplos de utilização desta extraordinária matéria-prima, de que são exemplos: • Pavilhão Centro de Portugal, em Coimbra, dos Arquitectos Álvaro Siza e Eduardo Soto Moura; • Observatório do Sobreiro e da Cortiça, em Coruche, do Arquitecto Manuel Couceiro; • Adega da Logowines, em São Miguel de Machede, Évora, dos Arquitectos Leonor Duarte Ferreira e Miguel Passos de Almeida, da PMC Arquitectos; • Colégio Pedro Arrupe, em Lisboa, dos Arquitectos Gonçalo Rangel de Lima, Jorge Matos Alves e Pedro Neto Ferreira; • Pavilhão Português da Expo 2010, em Xangai, China, do Arquitecto Carlos Couto; • Pavilhão 2012 da Serpentine Gallery, desenhado por Herzog & de Meuron e Ai Weiwei; • Ecorkhotel, Évora Suites & SPA, em Évora, do Arquitecto José Carlos Cruz. Actualmente a cortiça é utilizada no design, na decoração, na moda, etc., sendo utilizada por marcas de prestígio internacional, como Yves Saint Laurent, Prada, Stella McCartney, Dior, Dolce & Gabbana e Gucci. As novas utilizações sucedem-se em áreas tão distintas como a construção, aplicações industriais, transportes, aeronáutica, grandes infra-estruturas, entre outras.

9

Manual técnico rolhas, 2011.

10

Santos, 2000.

11

Mestre, et al., 2006.

12

Chalet da Condessa d’Edla.


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Ambiente e serviços do ecossistema do montado de sobro No mundo, onde as externalidades, especialmente as ambientais, não são totalmente contabilizadas na economia, pode parecer que esta forma ‘antiquada’ de coexistência de ecossistema-negócio não é mais rentável, mas isto seria uma visão muito limitada. O problema está parcialmente dividido entre bens públicos e privados, serviços e benefícios, num lado, e a relação serviços/custos, no outro. Felizmente as pessoas à volta do montado estão conscientes disso.13 Ladislav Miko

O montado, como um dos grandes sistemas agro-silvo -pastoris no Sul da Europa e em paralelo com a Dehesa em Espanha, é considerado como um sistema de elevado valor natural. Este conceito corresponde a High Nature Value (HNV) farming systems, de acordo com a classificação proposta pela Agência Europeia do Ambiente, para sistemas agrícolas e silvo-pastoris que, pela sua natureza extensiva ou pela sua diversidade, desempenham um papel fundamental na conservação da natureza.14

A importância do sobreiro para a biodiversidade e para a conservação da natureza foi assim reconhecida, no âmbito da Rede Natura 2000 (rede ecológica para o espaço Comunitário da União Europeia resultante da aplicação das Directivas n.º 79/409/CEE – Directiva Aves – e n.º 92/43/CEE – Directiva Habitats), pela classificação de dois habitats: • Habitat 6310 – Montados de Quercus spp., de folha perene (não é exclusivo do sobreiro); • Habitat 9330 – Florestas de Quercus suber. O montado de sobro constitui um dos melhores exemplos da inter-relação existente entre biodiversidade e serviços dos ecossistemas. Possui elevados níveis de biodiversidade – assegura a protecção e a conservação de espécies e habitats de elevado valor – e, simultaneamente, fornece um conjunto extenso de serviços dos ecossistemas, nomeadamente sequestro de carbono, conservação do solo, combate à desertificação, regularização do ciclo hidrológico, entre outros.15


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De acordo com a avaliação para Portugal do Millenium Ecosystem Assessment, a biodiversidade e os ecossistemas são conceitos estritamente relacionados. A biodiversidade não constitui em si um serviço do ecossistema mas sustenta a oferta de serviços dos ecossistemas. Os serviços dos ecossistemas são os benefícios que as pessoas obtêm dos ecossistemas, o que inclui:

ráveis à permanência de comunidades estáveis e diversas. Mais de 130 espécies de vertebrados frequentam, embora não exclusivamente, os habitats de montado, tornando-o um dos ecossistemas terrestres mais ricos do país. Esta elevada riqueza específica é também explicada pela extensa área de distribuição dos montados e pela sua continuidade.16

• Serviços de produção – produtos obtidos a partir dos ecossistemas (cortiça, alimentos, água potável, combustível, produtos lenhosos, fibras, etc.);

São também relevantes ao nível da conservação e protecção do solo, estabilizando-o contra os processos de erosão. Ao aumentar os níveis de matéria orgânica dos solos, os montados contribuem para uma melhor retenção de água, facilitam a sua infiltração no solo e diminuem as perdas por escoamento superficial, regulando o ciclo hidrológico. Este serviço é particularmente relevante em áreas com maior valor de escoamento superficial e mais sensíveis à desertificação.17

• Serviços de regulação – benefícios obtidos através da regulação dos processos dos ecossistemas (regulação do clima, regulação da água, controlo da erosão, purificação da água, controlo de doenças); • Serviços culturais – benefícios não materiais obtidos a partir dos ecossistemas (espirituais e religiosos, recreio e ecoturismo, educacionais, herança cultural, etc.); • Serviços de suporte – serviços necessários para a produção de todos os outros serviços dos ecossistemas (formação do solo, ciclo dos nutrientes e produção primária).

Estes serviços dos ecossistemas prestados pelo montado possuem uma particularidade: são serviços sem valor de mercado, isto é, não obstante a sua relevância, não remuneram financeiramente os seus proprietários e gestores.

Alterações nestes serviços afectam o bem-estar humano através de impactos na segurança, nos recursos materiais básicos para uma vida com qualidade, na saúde e nas relações sociais e culturais. Os montados, embora geridos numa perspectiva de produção de bens de mercado, constituem sistemas agro-florestais de elevada importância para a biodiversidade. Dominantes a Sul do Tejo, os ecossistemas de montado suportam comunidades biodiversas, desde os níveis tróficos mais baixos, com comunidades de invertebrados ricas e características, até aos níveis tróficos mais altos, sendo habitats importantes para a conservação de várias espécies de aves de rapina e mamíferos carnívoros. Destacam-se algumas das espécies mais ameaçadas no mundo como o lince ibérico (Lynx pardinus) e a águia imperial ibérica (Aquila adalberti). O modelo de gestão extensiva dos montados, dirigido à manutenção de funções agro-silvo-pastoris, contribui para a formação de habitats estruturalmente diversos e de grande longevidade, favo-

13

Miko, 2011.

14

Pinto-Correia, 2012.

15

Estudo de caracterização sectorial, 2011.

16

Pereira et al., 2009.

17

WWF/CEABN, 2008.


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Nota final Sabe o que é o mistério do montado? É a gente entrar, não conhecer os caminhos, e só ver troncos à frente. Tudo pode surgir e tudo acontece sem parar. No montado temos sempre pela frente o mistério. Também assim é a eternidade.18 Gonçalo Ribeiro Telles

O montado de sobro é um factor distintivo tão antigo e tão forte que pode ser considerado, muito provavelmente, uma das maiores marcas territoriais da paisagem portuguesa. Pela sua origem e dependência antropogénica, a paisagem suberícola, embora sofra, como a generalidade das zonas rurais, de forte êxodo de pessoas e de actividades económicas, é uma paisagem humanizada, construída, gerida e utilizada, onde as dimensões sagradas e espirituais do montado são experimentadas individualmente, mas também colectivamente.


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A actividade suberícola é, por isso, um vector estrutural para uma parte muito significativa do território nacional, assegurando, para além de um valor económico muito relevante em termos nacionais, componentes extraordinárias mas sempre negligenciadas e não valorizadas: economia e emprego em meios rurais e a biodiversidade e serviços dos ecossistemas. Efectivamente, o combate à desertificação, a regulação do ciclo da água e dos nutrientes, sumidouro de carbono e protecção e conservação de um conjunto de espécies e habitats de elevado valor, são vertentes deste mesmo sistema, assente e dependente da cortiça, o catalisador do desenvolvimento económico. É, por isso, essencial contrariar tendências que afectam directamente o valor económico da cortiça e dos montados e que têm implicações sérias na rentabilidade das explorações, colocando em causa a sua sustentabilidade e a biodiversidade e os valores ambientais destes importantes espaços naturais.

Dadas as características únicas e extraordinárias da cortiça enquanto matéria-prima, é complexo e difícil percepcionar as suas infinitas potencialidades, muito provavelmente apenas condicionadas pela evolução da tecnologia e da capacidade criativa do Homem. No entanto, a evolução ocorrida nos últimos dez anos em novas aplicações para a indústria e para a sociedade perspectiva, a par da análise e utilização integrada dessas mesmas características, uma tendência de reforço de novas descobertas à base de cortiça. Sendo a cultura suberícola uma cultura que tem uma origem ancestral, de natureza antropogénica, é também uma cultura para a eternidade, dependente do princípio intergeracional. É este o seu mistério e é este o seu desafio. 18

In Revista n.º 2112, Expresso de 20 de Abril de 2013.

Bibliografia Aronson, James; Pereira, João S.; Pausas, Juli G. – Cork oak woodlands on the edge: ecology, adaptive management and restoration, Washington: Island Press, 2009. Estudo de caracterização sectorial 2011, Santa Maria de Lamas: APCOR – Associação Portuguesa de Cortiça, 2011. Chalet da Condessa d’Edla, ficha técnica, Sintra: Parques de Sintra – Monte da Lua, S.A. Manual técnico rolhas, Santa Maria de Lamas: APCOR – Associação Portuguesa de Cortiça, 2011. Mestre, Ana; Campelo, Maria da Graça; Silva, Marta; Velhinho, Ricardo (concepção) – Design Cork, for future, innovation and sustainability, Dossier Info Cortiça: Sector e materiais de cortiça, Susdesign, 2006. Miko, Ladislav – “O montado de sobro”, in Anuário 2011, Santa Maria de Lamas: APCOR - Associação Portuguesa de Cortiça, 2011.

Pereira, Henrique Miguel; Domingos, Tiago; Vicente, Luís; Proença, Vânia (orgs.) – Ecossistemas e bem-estar humano: avaliação para Portugal do Millennium Ecosystem Assessment. Lisboa: Escolar Editora, 2009. Pereira, J.S.; Bugalho, M.N.; Caldeira, M.C. – Do sobreiro à cortiça: um sistema sustentável, Santa Maria de Lamas: APCOR – Associação Portuguesa de Cortiça, 2008. Peres, Carlos – “Reminiscências de há 50 anos”, in Boletim Cortiça, suplemento do n.º 600, Lisboa: Instituto dos Produtos Florestais, 1988. Pinto-Correia, Teresa – O montado, um sistema de elevado valor natural, XIII Feira do Montado, Portel: Câmara Municipal, 2012. Santos, Carlos Oliveira – O livro da cortiça, Lisboa: ed. Autor, 2000.




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Edição

Financiamento

Mecenato


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