Outros Fados - Imagens Musicais

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No ano em que celebramos Lisboa Capital Ibero-americana de Cultura o Fado é o anfitrião de Outros Fados num encontro festivo das culturas que há séculos convivem na Península Ibérica. Percorrendo o diálogo cúmplice entre artes performativas e artes visuais, impunha-se como incontornável esta viagem que nos devolve em imagens a poderosa imanência do Fado e do Flamenco enquanto obras-primas de um colectivo. Ponto de partida e de chegada de tantos lugares como a poesia, a música ou a reflexão crítica, este mosaico de imagens revisita as representações do Fado e do Flamenco na pintura de costumes oitocentista para desaguar, em pleno século XXI, na consagração destas expressões artísticas como Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO). Uma viagem que serviu também de mote para uma revisitação de outros fados que antecederam o icónico Fado de José Malhoa, obra a que não foi alheia toda uma cultura visual ibero-americana. Reunindo um conjunto de obras de grande significado, este olhar sobre as artes visuais que representam as grandes expressões musicais da Península Ibérica, no fulgor das suas metamorfoses e ciclos, devolve-nos também o papel fundamental que a arte tem no nosso olhar sobre nós próprios, na capacidade simultânea de sermos quem somos e de estarmos permanentemente abertos ao mundo.

Catarina Vaz Pinto Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa

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No quadro de Passado e Presente | Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura, o Museu do Fado promove o encontro festivo entre o Fado e o Flamenco, propondo uma viagem pelas artes plásticas que os representaram, desde o século XIX até à actualidade. Exposição da maior relevância desenvolvida e realizada pela EGEAC/ Museu do Fado, Outros Fados - Imagens Musicais vem dar continuidade a uma série de grandes exposições temáticas onde o Fado dialoga abertamente com outras artes. Propondo múltiplas leituras, questionamentos e afinidades, o roteiro desta viagem percorre as representações oitocentistas do Fado e do Flamenco até alcançar as artes plásticas contemporâneas, numa exposição em que distintos olhares, de diferentes gerações de artistas, nos convocam ao diálogo antigo e cúmplice entre as artes performativas e as artes visuais. Obras-primas de um colectivo que souberam conservar vivas as suas raízes, sem abdicar da desconcertante inquietude de quem perscruta o mundo em permanência, Fado e Flamenco são-nos aqui devolvidos em imagens. No silêncio destas imagens reencontramos a inabalável evidência de que o Fado, tal como o Flamenco, assumiu presença gradual como topos incontornável no nosso imaginário, identificando-nos entre nós e perante o outro. Ao longo deste fascinante itinerário desfilam os grandes temas da tradição musical da Península Ibérica, no olhar plural das artes visuais dos séculos XIX-XXI, que continuamente vêm sublimando novas formas de entender e de intervir no mundo.

Conselho de Administração da EGEAC

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OUTROS FADOS IMAGENS MUSICAIS

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Outros Fados Imagens Musicais Sara Pereira

Seguindo o mote do programa Passado e Presente: Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura, o Fado fez-se anfitrião de Outros Fados, num encontro festivo das culturas que há séculos convivem na Península Ibérica. Em Outros Fados Imagens Musicais celebramos a universalidade da canção urbana de Lisboa num itinerário que percorre o diálogo cúmplice entre as artes performativas e as artes visuais, revisitando representações de Flamenco na pintura de costumes andaluza do século XIX para desaguar, em pleno século XXI, na consagração destas expressões artísticas como Património Cultural Imaterial da Humanidade (UNESCO). Um olhar sobre as artes visuais que representaram o Fado e o Flamenco nos séculos XIX-XXI devolve-nos também o papel fundamental que estas expressões musicais têm no nosso olhar sobre nós próprios, e na nossa capacidade simultânea de sermos quem somos e de estarmos permanentemente abertos ao mundo. Porque o Fado encerra múltiplos universos, sugerindo múltiplas leituras e afinidades com outras expressões musicais, consagramos um olhar atento às representações do Flamenco na pintura de costumes andaluza do século XIX aproveitando para revisitar esses outros fados que antecederam o icónico Fado de Malhoa de 1910, obra a que não foi alheia toda uma cultura visual patente na pintura espanhola e latino-americana por onde proliferavam as representações da prática da música, dentro de um mesmo enquadramento narrativo em torno do poder de sedução das cantigas. Constituindo uma constante da cultura visual ibero-americana à qual José Malhoa podia aceder facilmente - nas suas deslocações a Espanha e à América do Sul ou nas múltiplas reproduções estampadas nos periódicos da época - multiplicam-se, na pintura oitocentista, as representações consagradas ao tema da prática da música com instrumentos de corda dedilhada. Percorrendo distintas geografias simbólicas, o mosaico desta viagem construiu-se também com outros olhares sobre o Fado, plasmados nas obras oitocentistas de viajantes estrangeiros, na quimera agridoce dos nossos modernistas, em visões posteriores de profunda rejeição crítica do género ou no olhar contemporâneo de

artistas como João Vieira e Júlio Pomar. Sendo o Fado o anfitrião de Outros Fados da Andaluzia a exposição convoca uma revisitação da representação plural do Fado na arte portuguesa dos séculos XIX-XXI, corpus que constitui o maior núcleo desta mostra e que atesta o profundo enraizamento popular do género desde os alvores da sua história. Transmitido de geração em geração, o património cultural imaterial é, como sabemos, permanentemente recriado pelas comunidades, promovendo um sentimento de identidade e de continuidade1, numa história em permanente devir. Entretecida no quadro de um diálogo estreito com o seu território de origem a história do Fado ou do Flamenco é também a história de todos aqueles que os recriaram nos domínios da criação plástica. Neste sentido, um olhar atento sobre as artes plásticas que representaram estas expressões musicais da Península Ibérica atestará também o seu profundo enraizamento à escala regional e nacional, bem como a transversalidade da sua representação, como objectos de inesgotável citação e recriação pictórica por sucessivas gerações de artistas, no quadro de distintas motivações e constrangimentos estéticos, ideológicos ou simbólicos. Atentando, ainda que sumariamente, nas afinidades dos processos históricos do Fado e do Flamenco, compreendemos que atravessam fases de desenvolvimento similares, desde uma condição vincadamente marginal até ao seu consensual reconhecimento enquanto imagens de marca. À luz da sua representação visual, poderemos destrinçar o seu percurso evolutivo nos diferentes períodos cronológicos que presidiram à sua génese, passando pela sua institucionalização até à sua consagração como Património Cultural Imaterial da Humanidade, em pleno século XXI.  - Convenção para a Salvaguarda do Património Cultural Imaterial da Humanidade, UNESCO, 2003, (art.º 2, alínea 1). 1

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Partindo dos programas culturais e artísticos que presidiram à criação das obras e sua fruição por sucessivas gerações, poderemos contextualizar motivações e constrangimentos de ordem social, ideológica, simbólica, desvendar itinerários de resistência, acompanhar a fixação e estabilização de ícones e o seu tributo na construção simbólica de uma identidade imagética da música, na sua mais lata dimensão memorial. Retomando o pensamento de Richard Leppert2 a representação visual da música, enquanto actividade socializada permitirá iluminar contextos de criação e fruição, nomeadamente no que concerne à percepção, consciente ou inconsciente, que um grupo ou sociedade tem do estatuto cultural da música e dos valores intrínsecos ao seu consumo. No seu pioneiro ensaio Music and Image, Leppert afirma que “a música surge na arte visual não porque o som musical existe, mas sim porque o som musical tem um significado. Como tema central, a música em si é silenciada na arte visual, existindo apenas como recordação de coisas passadas: tudo o que resta da música na imagem é o seu carácter de actividade socializada... Mas geralmente apenas certas formas de actividade musical são representadas na arte visual, nomeadamente aquelas que constituem signos reconhecíveis de modos de comportamento e pensamento socialmente aceites (com maior significado que a própria música) indo ao encontro do que é uma função essencial da imagem: comprovar”. Neste sentido, através da obra de arte, aqui entendida como testemunho aberto e global, dotado de perene contemporaneidade e sempre capaz de suscitar inúmeras dimensões de leitura, poderemos iluminar mentalidades, construções ideológicas elaboradas   - Richard Leppert, Music and Image: Domesticity, Ideology and Socio-cultural Formation in Eighteenth Century England, Cambridge University Press, 1989, pp. 3-4. 2

em torno da música, programas imagéticos, contextos de produção artística, comportamentos de mercado, hábitos de consumo ou mesmo constrangimentos de ordem ideológica, simbólica e estética. Fruto da sua consagração popular, a representação plástica do Fado - como do Flamenco - sucedeu no quadro de uma vincada diversidade de disciplinas artísticas, dimensionando-se num volumoso e multifacetado corpus artístico de representações, integrando obras de fulgor académico, a par de trabalhos de carácter mais periférico ou regional que, ilegitimamente relegadas para o plano de uma menoridade artística, apresentam grande pertinência simbólica ou mesmo documental, atestando a vitalidade destas artes performativas e o seu enraizamento popular. Tais serão, nomeadamente, os casos de representações como as garrafas de licor e de caixas de fósforos com a figuração do fadista, objectos de fabrico artesanal como A Casa da Mariquinhas, de Alfredo Marceneiro, de miniaturas de guitarras de cariz decorativo ou utilitário, das citações anónimas recorrentes de Malhoa ou Stuart na composição de objectos do quotidiano, entre tantos outros testemunhos. No silêncio das imagens que compõem o recenseamento iconográfico da presente exposição – que não se pretende exaustivo - ecoam os testemunhos do património intangível e imaterial do Fado e do Flamenco, expressões essencialmente efémeras, fugazes, incorpóreas, irrepetíveis e, neste sentido, dificilmente se materializando noutro testemunho que não o da memória individual de cada um.

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PAISAGENS MUSICAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA NA VIRAGEM PARA O SÉCULO XIX

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El Cante de la Moza. Escena de Taberna, 1846 Ángel María Cortelini Hernandez Óleo s/ tela 40 x 31 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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PAISAGENS MUSICAIS DA PENÍNSULA IBÉRICA NA VIRAGEM PARA O SÉCULO XIX

Ponhamos isto à viola. A Saudade é viola de cinco. Ponhamos isto à viola. A Saudade é viola de cinco. Ou porque nas cordas do coração soam os zunidos da Saudade, ou porque nos cinco sentidos se percebe o seu toque: a viola de cinco não há quem a não toque e é raro o que a sabe Fr. Francisco Rey A. M. Zefferino, Anatómico Jocoso, Lisboa, 17551

No universo popular das práticas musicais de Lisboa entre os finais do século XVIII e o início do século XIX, a utilização dos cordofones e a sua associação ao canto surge profusamente ilustrada num conjunto significativo de fontes de natureza diversificada que inclui o documentado olhar de artistas e viajantes estrangeiros, a nossa literatura de costumes, a escrita de pendor satírico, a par da documentação da Intendência Geral da Polícia. O olhar exterior assume, neste domínio, particular importância como fonte privilegiada do estudo da vida musical luso-brasileira nos finais do Antigo Regime, desvendando testemunhos iconográficos fundamentais à contextualização dos antecedentes do Fado. A recolha sistemática das descrições sobre Música e Dança contidas nos textos de autores estrangeiros que estiveram em Portugal e/ou no Brasil no período compreendido entre 1750 e 1834 desenvolvida por Rui Vieira Nery2 permite-nos hoje uma visão integrada do contexto das práticas musicais luso-brasileiras na viragem para o século XIX, no quadro de um inequívoco diálogo entre a música brasileira e a música portuguesa, onde as especificidades se desenham sobre o pano de fundo de patrimónios e processos histórico-musicais partilhados e interactivos.3 Entre o último terço do século XVIII e o primeiro do século XIX, a dança do Lundum e as canções das Modinhas, nas suas múltiplas variantes, na versão mais popular ou mais erudita, improvisadas em contexto informal ou escritas por compositores profissionais, dançadas nos terreiros, nos salões ou nos teatros, cantadas na rua   - Fr. Francisco Rey de Abreu Matta ZEFERINO, Anatómico Jocoso, Dado à luz pelo Padre Fr. Francisco Rey de Abreu Matta Zeferino, Tomo Primeiro, Lisboa, Na Officina do Doutor Manöel Alvarez Solano, Com as licenças necessárias e Privilegio Real, Obra VIII- Definição da saudade, 1755, p.90. 1

- Rui Vieira NERY, “O Olhar Exterior: O Relatos dos Viajantes Estrangeiros como Fontes para o Estudo da Vida Musical LusoBrasileira nos Finais do Antigo Regime”, in Rui Vieira NERY (coord) A Música no Brasil Colonial, Colóquio Internacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, Lisboa, 2001, pp. 72-98. 2

- IDEM, ibidem, p. 28.

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ou nos palácios4 constituem, como salienta Rui Vieira Nery, um importante elo de ligação cultural entre a metrópole e a América portuguesa, através deste espaço de fusão por excelência que são o porto de Lisboa e, por extensão, toda a sociedade de uma capital em processo de expansão e diversificação que cada vez mais emite, por sua vez, os modelos de práticas culturais e artísticas para as elites urbanas de todo o País5 Esta vitalidade do porto de Lisboa e o inerente contexto de diálogo e intercâmbio cultural entre Lisboa e o Brasil encontram-se amplamente ilustrados nas gravuras de Albert Dufourq e Alexandre Jean Nöel bem como no sugestivo óleo Cais do Sodré, de Joaquim Marques, eloquentes testemunhos da importância e da dinâmica efervescente da actividade portuária na capital. Palco de comunicação intercultural por excelência, a rota atlântica fomentará a imitação das modas da capital pelas elites do Brasil e de Lisboa, cais aberto ao mundo, que se deixam fascinar pelas novidades das danças e canções afro-brasileiras, que passam a incorporar no contexto doméstico de execução da música. Seria no quadro deste intercâmbio cultural de surpreendente vitalidade entre a metrópole e o império colonial que, em 1807, sob a ameaça da aproximação dos exércitos franceses de Junot, o Príncipe Regente D. João, a Família Real e toda a Corte portuguesa embarcariam para o Brasil. Em voga na segunda metade do século XVIII, o novo género das modinhas, tinha por acompanhamento predominante os instrumentos de corda dedilhados. Estas canções escritas para voz eram acompanhadas à guitarra, à viola, ao cravo, ao pianoforte e mesmo ao alaúde, resultado de uma mestiçagem cultural onde se cruzam a influência brasileira, a tradição lírica de raiz popular e as influências da música europeia nos domínios da ópera, música de câmara ou da dança. No exaustivo estudo desenvolvido a partir do olhar exterior sobre as práticas musicais luso-brasileiras, Rui Vieira Nery preconizou um importante levantamento dos locais onde a execução das modinhas tinha lugar: nos salões da grande aristocracia, nas assembleias familiares de outros grupos sociais, nos conventos, mosteiros ou nos teatros.6 De facto, o apelo sensual generalizado das danças de raiz afrobrasileira – motivo de surpresa indignada do olhar estrangeiro   - IDEM, ibidem, p. 35.

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- IDEM, ibidem, p. 35.

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- Rui Vieira NERY (coord) A Música no Brasil Colonial, Colóquio Internacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, Lisboa, 2001, p. 28. 6

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Cante en la Sobremesa, c. 1855 Manuel Cabral Aguado Bejarano Óleo s/ tela 40 x 35,5 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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mais conservador – justificaria a sua tolerância pelas autoridades eclesiásticas e civis portuguesas, a par da sua gradual consagração nos meios mais populares.7 Na transição para o século XIX a tentação das danças afro-brasileiras – e em particular do lundum - conquistava de facto a sociedade lisboeta, quer na sua versão original, quer com adaptações específicas ao gosto dos grupos sociais que delas se apropriavam. O olhar estrangeiro reencontrou nas modinhas e lunduns o fascínio de canções e danças exóticas, registando a sua circulação em todos os meios sociais. Segundo os mesmos testemunhos a viola e a guitarra também atravessavam todas as classes sociais, sendo que as famílias nobres e burguesas cultivavam sobretudo a prática feminina, aí dominando as modinhas compostas a partir de árias de ópera conhecidas, enquanto nos meios populares talvez imperassem as compostas por pregões de vendedeiras como defendeu Tinop.8 Mas a música instrumental, as cantigas e as danças ouviam-se também nas ruas e no cais de Lisboa, nas tabernas, nas hortas dos arredores, multiplicando-se por toda a constelação de espaços da vida quotidiana das classes populares. Neste sentido a execução instrumental da viola e da guitarra, como ilustrou Maria Alexandre Lousada,9 decorria, à época, em pelo menos dois espaços distintos: num contexto aristocrático e burguês, numa prática essencialmente feminina, na privacidade do contexto doméstico e, por outro lado, num ambiente de carácter vincadamente popular, nos momentos de lazer, na rua, em passeatas ou em espaços lúdicos como as tabernas. De facto segundo o relato de Fr. Francisco Rey de Abreu Matta Zeferino, a viola conhecia grande consagração popular em meados do século XVIII: Toca a viola o barbeiro na tenda, o oficial na loja, o lacaio na estrebaria, o mochila na rua, o pajem na sala, o faceiro na janela, o negro na dança, o aguadeiro na taberna, o pajola na romaria; e, finalmente no serão a dama, no estrado a donzela, na grade a Freira, na galhofa a beata, o estudante no presépio e o mariola diante do palio.10 De facto, nas representações visuais da capital na transição do   - Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Lisboa, Público/ Corda Seca, 2004, pp. 26-27. 7

- Pinto de CARVALHO, Lisboa d’Outros Tempos II - Os Cafés, (1ª ed. 1889) Lisboa, 1991 pp. 73-74. 8

- Maria Alexandre LOUSADA, “Paisagens Musicais em Lisboa no início do século XIX” in Manuel MORAIS (coord) A Guitarra Portuguesa, Actas do Simpósio Internacional, Universidade de Évora, Évora, Estar, 2001, pp. 17-32. 9

- Fr. Francisco Rey de Abreu Matta ZEFERINO, Anatómico Jocoso (…) Dado à luz pelo Padre Fr. Francisco Rey de Abreu Matta Zeferino, Tomo Primeiro, Lisboa, Na Officina do Doutor Manöel Alvarez Solano, Com as licenças necessárias e Privilegio Real,Obra VIII- Definição da saudade, 1755, p.92. 10

século XVIII, onde dominavam paisagens urbanas e cenas da vida quotidiana, é frequente a execução instrumental da viola e da guitarra por populares. Atestando a popularidade dos instrumentos, vários métodos para aprendizagem de viola ou guitarra davam à estampa: Estudo de Guitarra em que se expõe o meio mais fácil para aprender a tocar este instrumento de António da Silva Leite em 1786, A Arte de Viola de Manuel de Paixão Ribeiro, impressa em Coimbra em 1789, ou, da mesma data, a Arte de Tocar Viola e Outros Instrumentos, ou o Compêndio de Música Teórica e Prática do Padre Domingos S. José. Como vimos, o olhar europeu sobre o Portugal setecentista, que nos chegou através de relatos de viajantes espanhóis, italianos, franceses, ingleses e alemães, constitui uma importante fonte escrita e visual sobre o contexto social, económico e político que o país atravessa desde o reinado de D. João V (1706- 1750), passando pelo período do Terramoto de 1755 - que suscitava uma enorme curiosidade a nível europeu - e a viragem para o século XIX, marcada por uma afluência cada vez maior de viajantes.11 Como bem observou Nuno Saldanha, o Século das Luzes trazia à Europa um renovado interesse sobre si própria e as suas especificidades geográficas, políticas, culturais, científicas ou artísticas, curiosidade em grande parte impulsionada pela viagem de Montesquieu, entre 1728 e 1732, que ultrapassara o tradicional Grand Tour a Itália - destino até então privilegiado para os viajantes europeus – e que seria seguido por Rousseau, Hume, Diderot ou Voltaire.12 Neste contexto, a viagem político-militar, científica, filosófica, literária ou artística passava então a dirigir-se aos diferentes Estados europeus, constituindo parte integrante da formação e educação da moderna sociedade ilustrada,13 consubstanciando-se, depois, em cartas de viagem, recolhas científicas, literatura de viagem, cadernos de desenhos e álbuns de gravuras fixando costumes e monumentos. Ao longo do século XVIII acentuar-se-ia na Europa o interesse pela literatura de viagens que assumia, a partir de meados do século, uma dimensão de maior subjectividade, plasmada no fascínio que paisagens exóticas e costumes pitorescos exerciam sobre o olhar dos viajantes. Narrado na primeira pessoa, o relato de viagem do Romantismo substituiria, gradualmente, a pretensa observação rigorosa e distanciada dos relatos da primeira metade do século das Luzes. 11   - Nuno SALDANHA, Memórias de Viagem. Um olhar europeu sobre o Portugal do século XVIII, Lisboa, Festival dos Oceanos, 2000, p. 7.

- IDEM, ibidem, p. 10.

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- IDEM, ibidem, p. 10.

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Un Baile Para el Señor Cura, c. 1890 Juan Garcia Ramos Óleo s/ tela 48 x 69 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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Após o Terramoto de 1755 crescia, por toda a Europa, a curiosidade face a Lisboa, uma cidade em ruínas, num país meridional sujeito a um regime totalitário, dominado pela Inquisição e pela hierarquia eclesiástica católica, acorrendo a Portugal grande número de viajantes, em estadas muitas vezes integradas em viagens à Península Ibérica ou à região Mediterrânica. Entre os numerosos viajantes ingleses que percorreram o nosso país por motivos diversos -diplomáticos, militares, turísticos, culturais, ou artísticos - teremos de destacar o britânico William Beckford (1760-1844), que nos deixou interessantes descrições da vida aristocrática e da sociedade portuguesa no reinado de D. Maria I, assim como James Cavannah Murphy (1727-1805) e o seu célebre Travels in Portugal, datado de 1795, onde registou as impressões colhidas de norte a sul de Portugal, numa viagem realizada entre 1788 e 1790. No contexto social, cultural e político da região de Lisboa no século XVIII, as grandes empreitadas públicas de construção - Palácio e Convento de Mafra, Aqueduto e reconstrução pós-terramoto - terão seguramente transfigurado a cidade de Lisboa e as vias de circulação limítrofes num vasto estaleiro aberto ao mundo, facto que estimamos ter sido, também, decisivo, na génese da canção urbana. Gradualmente, o reinado de D. João V consolidava novos referenciais artísticos e literários a partir de modelos franceses e italianos impulsionando a chegada a Portugal de arquitectos, gravadores e pintores oriundos de países como a Itália, a França e a Holanda. A partir da segunda metade do século XVIII os efeitos nefastos do Terramoto, o processo dos Távora e a expulsão dos Jesuítas suscitavam elevado interesse no quadro internacional, surgindo vasta bibliografia sobre a tragédia de 1755 em Espanha, Alemanha, Holanda, Inglaterra, Itália e França. De facto, ao longo dos séculos XVIII e nas primeiras décadas do século XIX chegavam a Portugal pintores como Pierre Antoine Quillard (1703-1733), Jean Pillement (1728-1808), Alexandre Jean Nöel (1752-1834), Charles Landseer (1799-1879) e Nicolas Delerive (17551818) que consagravam a sua arte ao paisagismo, cruzando as suas vistas com a pintura de costumes, fixando o quotidiano popular. Tratava-se, como bem salientou Nuno Saldanha, da primeira grande apropriação de um universo da realidade rural e popular portuguesa, que constitui em si um importante registo.14 Neste sentido, a viragem para o século XIX assistiu a um dos mais férteis períodos no que concerne à literatura de viagens e à criação de imagens tendo por base a contemplação de paisagens e costumes. Na pintura, seria decisivo o gradual reconhecimento da pintura de género e de paisagem, que gradualmente rompiam com a rígida hierarquia setecentista onde a pintura de história domina14   - Nuno SALDANHA, “Arte Popular, Arte Erudita e Multiculturalidade – Influências, confluências e transculturalidade na arte portuguesa” in Mário Ferreira LAGES e Artur Teodoro de MATOS (Dir.) Portugal, Percursos de Interculturalidade, Vol. III, Lisboa, Observatório da Imigração, Alto Comissariado para a Migração e Diálogo Intercultural, 2009, p. 122.

va. O interesse por Portugal crescia então no estrangeiro, fazendo chegar até nós viajantes, literatos e artistas que faziam as suas descrições detalhadas dos sítios, usos e costumes, através da palavra e da imagem em publicações diversificadas que surgiam por toda a parte.15 Franceses e, mais tarde, ingleses, italianos e alemães consolidaram esta temática na Península Ibérica, tanto na pintura como na gravura ou na ilustração de diversas obras que se publicaram sobre Portugal e Espanha. Na exacta medida da presença britânica em Portugal, sobretudo com o advento das guerras peninsulares contra o exército de Napoleão no início de Oitocentos, acentuava-se a primazia inglesa. De facto, após a fuga da Corte para o Brasil e a ameaça napoleónica, seriam sobretudo os ingleses com os importantes trabalhos descritivos e ilustrados de James Murphy, William Bradford, W.M. Kinsey, William Beckford ou Charles Landseer a documentar a realidade social e cultural portuguesa das primeiras duas décadas de oitocentos. Nas artes da pintura e da gravura, a presença francesa manteve-se dominante com Félix Doumet, Alexandre Nöel, Charles Legrand, Henri L’Evêque e Nicolas Louis Albert Delerive. Foi precisamente este olhar exterior a registar a execução de instrumentos de corda dedilhada do tipo cordofone na viragem para o século XIX. Sempre associada aos momentos de lazer da sociabilidade popular, os instrumentos de corda marcam presença em cenas figurativas de vistas marítimas bem como em ambientes bucólicos de pendor vincadamente rural. A figuração de um cordofone do tipo da guitarra portuguesa em ambiente conotado à boémia e marginalidade surge nas artes visuais nos alvores do século XIX na obra de Nicolas Delerive, designadamente, na popular série das Profissões Lisboetas, das colecções da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva. Nicolas Luis Albert Delerive (1755-1818) fixou-se em Lisboa em 1792 dedicando-se ao retrato - temática onde obteve amplo reconhecimento - e à pintura de género, ilustrando paisagens, costumes e tipos característicos portugueses, assumindo-se como notável retratista da sociedade e dos costumes da vida lisboeta e portuense de finais do século XVIII e inícios do século XIX. Data de 1801 a singela tábua de Delerive que integra o recenseamento iconográfico da presente exposição, onde o artista plasmou, com fina ironia, uma visão crítica da sociedade e seus costumes, numa dura crítica à decadência do clero oitocentista, espécie de   - IDEM, Ibidem, p. 124. Veja-se também Nuno SALDANHA, Memórias de Viagem. Um olhar europeu sobre o Portugal do século XVIII, Lisboa, Festival dos Oceanos, 2000. 15

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Cena de Frades num Bordel, 1801 Nicholas Louis Albert Delerive Óleo s/ madeira 21,9 x 17,2 cm Colecção Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva

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ilustração da sátira anticlerical de Bocage16 que reencontraremos no último quartel do século, num folheto de cantigas intitulado Fado Racionalista,17 visando a hipocrisia das práticas quotidianas da classe, diametralmente opostas à tão apregoada virtude. A narrativa de Delerive compaginava ainda, inequivocamente, com o teor de alguns dos versos anticlericais de Bocage, num tempo em que o clero demonstrava, como vimos, alguma predisposição para o culto de danças populares como o fandango ou o lundum em circuitos marginais associados à prostituição. No quadro Cena de frades num bordel os frades dançam ao som de uma guitarra ou bandurra e namoriscam as meretrizes do bordel. Sugestiva é a representação coreográfica da dança insinuando-se a umbigada, numa inevitável evocação da sensualidade das danças afro-brasileiras. Nicolas Louis Albert Delerive deixou, entre nós, um decisivo contributo para a individualização da pintura de género, fomentando no público uma apetência especial para o seu consumo. Augusto C. Pinto18 deixou-nos a revelação do conjunto da sua obra, crónica visual onde se fixam cenas de rua, registando um extenso friso de tipos e profissões, pontualmente dentro do estilo que convencionou chamar-se pintura de bambochata. 19 Ilustrando a festa popular, por vezes nas suas particularidades de excessos, o burlesco e as curiosidades do quotidiano, a pintura de bambochata constituía o enquadramento narrativo natural para fixar todo o imaginário nocturno do bordel, palco primordial da boémia fadista das primeiras décadas do século XIX. Representações fidedignas dos costumes do seu tempo, as Cenas de Bordel com Frades de Delerive plasmavam o imaginário fadista de Oitocentos e das primeiras décadas do século XIX, profundamente intrincado nos contextos de transgressão social e de marginalidade, que lhe ditariam a mais profunda rejeição pela Geração de 70. Como vimos, na transição para o século XIX a tentação das danças afro-brasileiras – e em particular do lundum - conquistava a sociedade lisboeta, quer na sua versão original, quer com adaptações ao gosto dos grupos sociais que delas se apropriavam. Neste domínio, o clero não constituía excepção, existindo prolífera documentação   - Manuel Maria Barbosa du Bocage (1765-1805)

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- WAN- DICK José Marques Guerreiro: No fundo das sachristias/Em dia de confissão/Ficam muitas desgraçadas/Por causa da devoção in Fado Racionalista, Bonita Colecção de Cantigas oferecidas aos livres pensadores e a todos aqueles que desejam do coração o progresso e civilização da sociedade, Lisboa, 1878. 17

- Augusto C. PINTO, “Breve Notícia acerca de Nicolas Delerive e da sua Obra” in 16ª Exposição Temporária. Obras de Nicolas Delerive (1755-1818) Catálogo, Lisboa, Museu Nacional de Arte Antiga, Junho de 1955, pp. 13-21. 18

19   - Termo derivado do epíteto de Pietr Van Laer Il Bamboccio, artista nórdico que trabalhou na India consagrando-se na pintura de costumes representativa de cenas burlescas.

corroborando a sua predisposição à prática destas danças. No que concerne ao movimento coreográfico, como bem apontou Rui Vieira Nery, a partir do exaustivo levantamento das fontes de relatos dos viajantes estrangeiros que as testemunharam, estas danças contemplavam um jogo coreográfico em que o par de dançarinos ora se aproxima e se toca corpo a corpo, muitas vezes com um golpe de ventre contra ventre, a chamada “umbigada” ora se afasta depois para recomeçar a aproximação tudo isto com movimentos ondulantes dos quadris que no auge da dança se podem tornar verdadeiramente frenéticos e não deixam sombra de dúvidas à imaginação sobre a simbologia assumidamente erótica do baile.20 Sobre as danças populares do século XVIII diz-nos Tinop que se ressentiam do seu carácter extremamente sensual e desenvolto, desfaleciam em langores extenuativos, debatiam-se em morbidezas histéricas, derramavam no sangue o mais devorador dos filtros. Tais eram: a fofa, o oitavado, o fandango, as cheganças às três pancadas, o cumbé, o batuque, a arrepia, a comporta e o lundum que se dançavam acompanhadas da guitarra ou do bandolim.21 Os relatos de viajantes estrangeiros que descrevem a prática do Fado no Brasil nas primeiras décadas do século XIX, antes e depois da independência daquele país, citam-no como dança originária das comunidades afro-brasileiras mas entretanto apropriada pelas classes médias urbanas da sociedade colonial. Rui Vieira Nery inventariou exaustivamente um precioso acervo de fontes escritas que inequivocamente documentam a dança do Fado no contexto do Brasil e no Fado oitocentista português22 e que iluminam a narrativa de Delerive e das gravuras anónimas oitocentistas que aludem à dança do lundum. Na transição para o século XIX as danças afro-brasileiras – e em particular o lundum – conquistavam toda a sociedade lisboeta, quer na sua versão original, quer com adaptações específicas ao   - Para o cabal entendimento dos contextos do fado oitocentistas e, em particular, no que concerne à sua componente dançada, veja-se o fundamental artigo de Rui Vieira NERY, Toco, Canto e Danço: Alguns Aspectos da Prática Performativa do Fado nas Fontes Mudas do Século XIX in Rui Vieira NERY, Salwa CASTELO-BRANCO, Sara PEREIRA, (dir.) Fado: Percursos e Perspectivas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda (no prelo). Vejam-se ainda, do mesmo autor, Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Lisboa, Público/Corda Seca, 2004 e Rui Vieira NERY (coord.) A Música no Brasil Colonial, Colóquio Internacional, Fundação Calouste Gulbenkian, Serviço de Música, Lisboa, 2001. 20

- Pinto de CARVALHO, (Tinop) História do Fado, Colecção Portugal de Perto, Direcção de Joaquim Pais de Brito, Publicações D. Quixote, Lisboa, 1994, p. 24. 21

- Rui Vieira NERY, “Toco, Canto e Danço: Alguns Aspectos da Prática Performativa do Fado nas Fontes Mudas do Século XIX” in Rui Vieira NERY, Salwa CASTELO-BRANCO, Sara PEREIRA (Dir.) Fado: Percursos e Perspectivas, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda (no prelo). 22

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Festa na Aldeia, século XIX Leonel Marques Pereira Óleo s/ madeira 47 x 60,2 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de José Pessoa (DGPC/ADF)

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gosto dos grupos sociais que delas se apropriavam. Levadas à cena nos teatros de Lisboa as coreografias destas danças seriam, provavelmente, limadas nos seus aspectos mais sensuais mas tudo indica que nas ruas e nos terreiros a dança assumia toda a carga erótica inicial, sendo esta mesma forma original a entrar nas tabernas e bordéis de Lisboa, seduzindo pela sua alegria e a sua exuberância carnal os frequentadores desse circuito menos sensível aos pudores das classes médias e das elites.23 Assim as veremos surgir executadas em tabernas, protagonizadas por frades, meretrizes e populares, como a bambochata de Delerive tão bem ilustrou. Datada entre os anos de 1870 e 1875, a sugestiva Festa na Aldeia, de Leonel Marques Pereira (1828-1892), ilustra a execução instrumental da guitarra em ambiente rural festivo, acompanhando um bailarico popular. Pintor português, discípulo de António Manuel da Fonseca, Leonel Marques Pereira foi sobretudo um pintor de costumes populares. Além do óleo representando a Romaria do Senhor Roubado é autor de A Feira pertencente ao Palácio de Queluz, a Romaria nos Saloios da colecção de Pedro Rodrigues da Costa e Festa na Aldeia adquirido pelo Legado Valmor no leilão do Conde de Ameal em 1909 e integrado nas colecções do Museu Nacional de Arte Contemporânea, em 1911. A geração de artistas do Romantismo que captou o imaginário popular, inventariando e documentando tradições de costumes, seguia o apelo preconizado por Almeida Garrett para o registo das tradições nacionais, em 1844, ou as preocupações expressas desde 1870, por Teófilo Braga, Consiglieri Pedroso e Leite de Vasconcelos no domínio da pesquisa e recolha de tradições populares e literatura tradicional. Também a obra de Leonel Marques Pereira demonstra um cuidado no inventário de tradições e sociabilidades, substituindo como bem observou Maria de Aires da Silveira, a invenção do pictural pelo pitoresco e a documentação das práticas populares.24 Natural de Lisboa, concluiu o curso da Academia de Belas Artes, onde foi aluno de António Manuel da Fonseca. Académico de Mérito desde 1874, exerceu o cargo de desenhador na Direcção Geral de Engenharia Militar. Leonel Marques Pereira expôs na Sociedade Promotora de Belas Artes em 1862 e 1863, participou nas Trienais da Academia Real de Belas Artes em 1861 e em 1869, apresentou obras na Exposição Internacional de Madrid (1871), na Exposição Universal de Paris (1872), e foi premiado no Rio de Janeiro e em Londres. A sua tela mais conhecida O Rei D. Fernando no Passeio Público encontra-se actualmente no Palácio da Pena. Praticou a pintura de género ou de costumes, fixando cenas tradicionais e pitorescas com a habilidade técnica que a sua carreira   - IDEM, ibidem.

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- Maria de Aires SILVEIRA, em Arte Portuguesa do Século XIX, 1850-1910, Vol. I, Maria de Aires Silveira e Pedro Lapa, (coord.) MNAC – Museu do Chiado, 2011, p. 236. 24

de desenhador na Direcção Geral de Engenharia Militar permitia, com o pormenor de um miniaturista e a intenção documental de um fotógrafo. Em Festa na Aldeia, a guitarra portuguesa anima e acompanha a festa popular que integrava o inventário de temas cantados pelo Fado que Alberto Pimentel, um dos pioneiros da historiografia do Fado, exaustivamente descrevia, nos alvores do século XX. No século XIX também o romantismo espanhol privilegiou a pintura de costumes, pela via de duas escolas fundamentais: a madrilena - com representação de cenas ao sabor do tenebrismo - e a sevilhana, marcada, sobretudo, pelo olhar de viajantes estrangeiros que se deixavam cativar pelas tradições e costumes da região. De facto, também na Andaluzia o olhar exterior fixou a crónica visual de costumes populares, rapidamente consolidando o gosto na Europa pelo folclore andaluz. Manuel Cabral Aguado Bejarano (1827-1891), um dos mais destacados representantes da pintura de costumes andaluza no período do Romantismo, conheceu amplo reconhecimento em Espanha. Com Valeriano Domínguez Bécquer, Manuel Cabral Bejarano legou um extenso corpus de representações de cante e baile na Andaluzia oitocentista, tema de procura crescente pela burguesia sevilhana de então, ávida pelo consumo de imagens decorativas. Filho de António Cabral Bejarano iniciou os seus estudos de pintura com José Domínguez Bécquer e, em 1863 assume funções de académico na Academia de Nobles Artes de Santa Isabel de Sevilla. Pintor honorário da Rainha Isabel II, cedo se consagrou nas Exposições Nacionais de Belas Artes de Cádiz e de Sevilha. No seu legado encontramos as narrativas pontuadas por algum dramatismo a par do pitoresco de cenas populares dentro da estética sevilhana. De grande pertinência documental, o seu olhar sublimou o detalhe e o registo minucioso de trajes, costumes, paisagens e arquitecturas. Trabalhando também o retrato consagrou-se na representação de cenas colectivas, onde a minúcia da representação concorre para uma exaustiva etnografia dos costumes andaluzes, inventário onde desfilam todas as classes sociais do universo sevilhano oitocentista. Integrando uma narrativa que se desdobra por duas composições - ambas alusivas ao tema da conquista amorosa - a cena de Cante en la Sobremesa, (1855) capta o instante vivido no ambiente de uma pequena taberna da Andaluzia onde, após uma pequena refeição, os convivas se preparam para a música. A desenvoltura e a pose descontraída da figura feminina - sugerindo, porventura, alguma frivolidade para a moral oitocentista – atestam o gosto de Bejarano por uma linguagem de maior definição plástica que, se por um lado sublima a sensualidade feminina - como bem observou Carlos J. Navarro25 - atesta também o entendimento do artista relativamente   - Carlos J. NAVARRO, website do Museu Carmen Thyssen Málaga.

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En la Romeria de Torrijos, 1883

Manuel Cabral Aguado Bejarano Óleo s/ tela 69 x 99 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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a uma cultura visual ibero-americana que privilegiava a cantiga como instrumento de sedução. O mesmo tipo de narrativa pode ser encontrado em La Copla, obra coeva do mesmo autor, onde a prática da música no interior de uma taberna se desenrola em torno da sedução de uma jovem que fixa o espectador com o olhar. A romaria de Santo Cristo de Torrijos, a mais importante da comarca de Aljarafe, com origem em 1600, surge representada na obra En la Romería de Torrijos, de 1883. Cena colectiva, multiplicam-se as figuras em cena, distribuídas em torno de dois pares de dançarinos que ocupam o plano central. O olhar minucioso de Manuel Cabral Bejarano transparece no detalhe da representação de panejamentos dos trajes, poses, adereços, instrumentos musicais - viola, pandeireta e castanholas – ou mesmo no chapéu, caído sobre o chão, numa sugestão directa ao costume andaluz de lançar o chapéu aos pés da mulher desafiada a bailar. Ao centro e tal como em La Copla, a figura feminina parece desafiar o espectador com o olhar. O detalhe pictórico perpassa a multiplicidade de figuras, de distintas gerações que integra a romaria e que permite ao observador identificar crianças, jovens, camponeses, mulheres, cavaleiros, guardas, entre outras figuras. Registando etnograficamente trajes e adornos femininos, aqui podemos imediatamente reconhecer os característicos vestidos de flamenco, brincos e adereços para o cabelo, assim como os mantons de Manila, de grande vivacidade cromática, adorno também utilizado pelas fadistas de Lisboa, nas primeiras décadas do século XX. Concluída em 1850 a obra Un borracho en un méson, 26 representa o interior de uma taberna andaluza onde um indivíduo alcoolizado parece interromper o serão, entoando um cântico perante a risada geral dos convivas. Obra concluída quando o pintor tinha apenas vinte e três anos de idade, a composição sugere a perícia de Manuel Cabral Bejarano no planeamento da cenografia, no tratamento da perspectiva e no minucioso detalhe com que caracteriza todas as figuras, independentemente do seu nível de protagonismo na narrativa global. Apesar do carácter burlesco da composição, como salientou José Luís Díez27 percebe-se nesta obra a competência técnica do artista na representação das figuras femininas, aplicando um grande rigor naturalista nos panejamentos de vestidos e mantilhas dentro de uma paleta cromática luminosa, talento que viria a ser decisivo para o seu sucesso junto da corte española. Nascido em Cádiz a 27 de Setembro de 1819, Angel Maria Cortellini Hernandez cedo iniciou a sua formação académica, ingressando na Escola de Belas Artes e, mais tarde, estudando com o pintor Joaquín Domínguez Bécquer (1817-1879). Em 1837 parte para Itália e completa os seus estudos em Génova, Turim e Milão. De regresso a Espanha, estuda na Real Academia de Belas Artes de Sevilha, ali aperfeiçoando as técnicas paisagísticas, enquanto estuda minu  - José Luís DÍEZ, website do Museu Carmen Thyssen Malaga.

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- IDEM, Ibidem.

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ciosamente a obra de Murillo. A sua pintura de costumes, com episódios colhidos ao folclore popular, marcou os primeiros anos da sua obra - na qual, a partir de meados do século XIX, predominaria o retrato, com encomendas sucessivas de retratos oficiais da monarquia espanhola - e conheceu grande êxito junto da burguesia e nobreza espanholas. Em 1846 publicava-se em Londres a obra Gatherings from Spain, uma continuação do livro A Handbook for Travellers in Spain, que Richard Ford publicara no ano anterior e que gozara de ampla difusão. Ali se descreviam, no olhar do viajante inglês, algumas das particularidades dos ambientes de tabernas e albergues que se aproximam do registo de Cortellini em El Cante de la Moza. Escena de taberna, 1846. Paredes quase nuas, solos irregulares de ladrilho, mobiliário escasso, servem de pano de fundo a um dos fenómenos que mais fascinou o viajante inglês no sul de Espanha: o cante Flamenco. Para poder sentir o encanto da guitarra e das canções espanholas temos de escutar uma joven andaluza… elas manejam o instrumento como a mantilha ou o leque. Diz-se que faz parte integrante do seu ser e que tem vida pois realmente tudo aquilo requer uma graça e um abandono que não é fácil de encontrar nas mulheres dos climas do norte.28 Na obra de Cortellini uma figura feminina ocupa o plano central da composição sendo ladeada por duas figuras masculinas enquanto uma anciã parece vigiá-la. Pela janela, avista-se a catedral de Sevilha imediatamente identificável na Giralda, recurso formal e plástico que reitera a identidade andaluza desta obra. A representação da vista de Sevilha por Cortellini parece sugerir um novo quadro dentro do quadro original, inscrevendo-se, simultaneamente, no gosto generalizado que a pintura de costumes andaluza suscitava em pleno século XIX, popularizando-se um pouco por toda a Europa. Nascido da herança plural das culturas que se cruzaram na Andaluzia, o Flamenco tem também raízes remotas nas regiões de Múrcia ou Estremadura. Conjugando música e poesia de raiz popular, o Flamenco desdobra-se no cante, no baile e na execução musical. Folclore elevado à arte, o Flamenco constrói-se e comunica através do corpo: mãos, pés, expressões faciais concorrem para a interpretação do baile, ao longo do qual o executante é convocado a reagir ao som da guitarra ou ao poema que habitualmente canta a dor, o abandono, a paixão, o desejo, a alegria, num inventário de sentimentos que reencontramos no Fado. Em Un baile de gitanos en los Jardines de Alcázar, delante del pabellón de Carlos V, 1851 Alfred Dehodenq (1822-1862) representa um animado baile flamenco junto de um dos pavilhões árabes do Real Alcácer de Sevilha conhecido como Pavilhão de Carlos V. Ao centro   - Richard Ford, Apud. Carlos G. Navarro, website do Museu Carmen-Thyssen Malaga. 28

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Un Baile de Gitanos en los Jardines del Alcázar, Delante del Pabellón de Carlos V, 1851 Alfred Dehodencq Óleo s/ tela 111,5 x 161,5 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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da composição uma cigana baila ao som do cante, da música e das palmas perante o olhar atento do grupo. Atestando o fascínio que os costumes da Andaluzia exerceram sobre os artistas românticos franceses que até ali viajaram em meados do século XIX, esta obra consubstancia um importante testemunho da produção espanhola ao serviço dos duques de Montpensier. Nascido em 1822 em Paris, Dehodenq ali estudou na Escola de Belas Artes e, mais tarde, em Madrid, onde se familiarizou com a pintura de Diego Vélasquez e Francisco Goya. Na sua obra, globalmente pontuada pela crónica de costumes, multiplicam-se as referências directas à Andaluzia e ao Norte de África - locais onde viveu vários anos - e a figura humana protagoniza, invariavelmente, a composição, sendo os cenários remetidos para segundo plano. Também em Un baile de gitanos en los Jardines de Alcázar, delante del pabellón de Carlos V, a bailarina protagoniza a narrativa pontuada pelo ambiente festivo do baile, dimensão lúdica que o cromatismo intenso vem sublinhar naturalmente. O exotismo da dança cativou naturalmente a atenção de Dehodenq que aqui explorou o registo quase etnográfico de tipos populares, o desenho rigoroso das figuras, indumentária e adornos, dentro de um tratamento plástico que sublima a intenção deliberada de fixação do pitoresco andaluz. Dança da paixão e sedução, de técnica complexa, o baile flamenco expressa toda uma série de emoções que vão desde a tristeza à alegria. A execução da guitarra flamenca transcendeu, desde há muito tempo, a sua primitiva função de acompanhamento do cante, que se faz acompanhar também por outros instrumentos como as castanholas mas também por palmas e por um sapateado característico. Signo de identidade de numerosos grupos e comunidades, sobretudo dentro da comunidade étnica cigana, o Flamenco desdobra-se por espaços de sociabilidade, territórios e ambientes muito diversificados, desde o século XIX, que incluem espaços privados de sociabilidade informal, festividades religiosas, cerimónias sacramentais, âmbitos domésticos e festivos, reuniões sociais em torno do cante ou performances populares de carácter público, numa multiplicidade de dinastias de artistas, famílias, peñas flamencas e colectividades que desempenham um papel determinante na preservação e difusão desta arte. Francisco de Paula Escribano Liñán nasceu em Sevilha onde se formou na Academia. O seu percurso artístico desenrola-se maioritariamente na capital andaluza. Interessou-se por pintura histórica, religiosa e também pelo retrato mas é escassa a informação sobre a sua biografia na história da arte andaluza. Carlos G. Navarro29 referencia o seu trabalho enquanto pintor de réplicas no Museu de Sevilha a partir de 1841. Em Un baile en Triana, (1850) o   - Carlos G. Navarro, website do Museu Carmen-Thyssen Malaga.

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convento dos Remédios e o rio Guadalquivir são o pano de fundo do baile protagonizado por um casal que dança ao som da guitarra e das castanholas. No bairro de Triana, o ambiente é festivo. Homens e mulheres conversam animadamente enquanto decorre a música. Ao fundo, o rio, pontuado por pequenas embarcações, parece emoldurar a festa de onde se avistam ainda a Torre de Ouro e a Catedral de Sevilha. Atestando a grande habilidade de Escribano no quadro da pintura de costumes andaluza, Um baile en Triana revela grande rigor no tratamento anatómico e na disposição das múltiplas figuras em torno do par central, que se distribuem livremente pelos planos da composição, em sugestões de diálogos e de olhares entrecruzados. Também o tratamento das indumentárias, numa síntese entre modelos rurais e urbanos dentro de uma linguagem naturalista - que despertava grande interesse na corte e também na Europa oitocentista, como observou Carlos G. Navarro – atesta bem a pertinência documental desta obra no quadro do Romantismo espanhol. Juan García Ramos (1856-1915) estudou na Escola Provincial de Bellas Artes de Sevilha e completou a sua formação no atelier de seu irmão José García Ramos (1852-1912), assimilando-lhe o estilo, cuja linguagem formal e plástica seguiu, ao longo da vida. Adquirido no mercado madrileno como uma obra da autoria de José García Ramos, Un baile para el señor cura, c. 1890 consubstancia um exemplo do mimetismo formal e plástico de seu irmão, Juan García Ramos, imitador fidelíssimo da linguagem estética e dos modelos de José, sob cuja sombra pintou e viveu toda a vida.30 Num pátio Sevilhano, duas jovens bailam, ao som da guitarra e das palmas, assinalando a visita de um clérigo que contempla a cena. Ao gosto naturalista,a composição vai de encontro às pretensões deste tipo de pintura de costumes, quase sempre assinalando uma celebração. A introdução do clérigo, argumento que pontua a produção pictórica de género no século XIX, em cenas populares ou galantes, quase sempre no quadro da sátira anti-clerical, assume nesta obra um tom bastante inocente, sobretudo se comparada com a obra de Delerive.   - José Luis Díez website do Museu Carmen-Thyssen Malaga.

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Un Baile en Triana, 1850 Francisco de Paula Escribano Óleo s/ tela 90 x 135 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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Un Borracho en un Mesón, 1850

Manuel Cabral Aguado Bejarano Óleo s/ tela 60 x 74,5 cm Colecção Museu Carmen Thyssen Málaga

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TOCAR, CANTAR E DANÇAR O FADO

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Guitarrista, século XIX (c. 1887)

Columbano Bordalo Pinheiro Lápis s/ papel 12 x 15,5 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de José Pessoa (DGPC/ADF)

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Dois anos depois da morte de Maria Severa (1820-1846), Alexandre Dumas Filho publicava, em 1848, a Dama das Camélias, narrativa de pleno gosto romântico, centrada no contexto da boémia parisiense oitocentista, apologética da virtude moral da cortesã Marguerite Gautier, que conheceria, como bem observou Rui Vieira Nery, intensa divulgação, um pouco por toda a Europa, quer do ponto de vista literário, quer do ponto de vista teatral ou operático, a partir da sua adaptação por Verdi para a Traviata em 1853. Um pouco por toda a Europa o Romantismo plasmava um gosto pela ideia da mulher perdida que, sucumbindo prematuramente, assim expiava o seu destino trágico de transgressão e desafio à moral dominante. Outros estereótipos românticos da figura feminina, de grande sensibilidade artística, que inevitavelmente se associa a uma morte precoce, destino indissociável desse génio artístico privilegiado, ou atestando a força moral das personagens cuja capacidade de auto-sacrifício não tem limites, abundariam ainda nos festejados romances históricos do escocês Walter Scott, também populares na Ópera italiana. 31 De facto, quer a morte prematura de Maria Severa - com apenas 26 anos de idade - quer o seu célebre romance com o Conde de Vimioso – impregnado dos referenciais oníricos do amor impossível entre uma humilde mulher do povo e um titular da primeira nobreza – vinham somar à sua real identidade histórica, a dimensão romanesca de Dama das Camélias aqui reinterpretada em versão popular. Boa parte das informações conhecidas sobre a vida de Maria Severa, nascida na Madragoa, em 1820,32 foi acrescentada postumamente por via de uma tradição oral que a coloriu com múltiplos episódios de autenticidade questionável. Filha de Manoel de Souza e de Ana Gertrudes Severa, célebre prostituta da Mouraria conhecida pelo epíteto da Barbuda, que Tinop descreve como mulher de faca na liga, cabelinho na venta e língua de prata33 Maria Severa cedo terá ingressado na mesma profissão, aqui se popularizando pelo seu invulgar talento a cantar e a bater o Fado.

batia o Fado como um fadista.34 A tradição oral descreve-lhe vários namoricos mas seria a relação amorosa com o Conde de Vimioso - D. Francisco de Paula Portugal e Castro - a partir dos vinte anos de idade, na época em que cantava e batia o Fado na taberna da Rosária dos óculos que ficava no topo da Rua do Capelão35 que mais consolidaria toda a sua mitologia. De Maria Severa conhecemos ainda o que relataram Luís Augusto Palmeirim, Miguel Queriol, Bulhão Pato, ou Júlio de Sousa e Costa na obra Severa, publicada em 1936, que o autor apresentava como livro de breves notícias e apontamentos coligidos durante largos anos com o objectivo de acarretar subsídios para a crónica ou para o estudo psicológico dessa mulher que teve a popularidade triste que todos conhecem.36 De facto, o que sobra na lenda fadista associada à tradição oral, escasseia nas fontes escritas e iconográficas directamente associadas à sua curta existência de vinte e seis anos. Um ano após a sua morte surgia o Fado da Severa, que Teófilo Braga fez publicar mais tarde no seu Cancioneiro Popular de 1867.37 O seu registo de enterramento descreve-a votada à Valla P. Sem Caixão.38 Melhor sorte teria na lenda alimentada pela tradição oral nas décadas posteriores à sua morte. De facto, para além da ininterrupta produção poética popular sobre o mito da Severa, o tema alimentou acesos debates em torno de alegadas descobertas como a da sua guitarra, de um retrato fotográfico, ou mesmo de um esboço a carvão da autoria de Francisco Metrass.39 Todos estes testemunhos apaixonados sobre o percurso da mítica cantadeira vinham comprovadamente documentar, como observou Rui Vieira Nery, que o crescimento do mito espelhava bem o próprio alargamento da realidade sociocultural em que entretanto se convertia o Fado, na qual a figura da lendária cantadeira se   - Pinto de CARVALHO, História do Fado (4ª edição) Lisboa, Publicações Dom Quixote, P. 67 34

- Pinto de CARVALHO, História do Fado (4ª edição) Lisboa, Publicações Dom Quixote, .p. 78 35

Nascida na Madragoa, terá passado depois pelo Bairro Alto - onde se cruzou com Luís Palmeirim – e conhecedora profunda da Mouraria - onde habitou na loja da R. do Capelão - a Severa cantava e   - Veja-se o capítulo “A Saga Mítica de Maria Severa” do fundamental estudo de Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Publico, Lisboa, 2004, pp. 64-71. 31

- O seu registo de baptismo a 12 de Setembro de 1820, na Paróquia dos Anjos, indica a data de nascimento de Maria Severa Honofriana a 26 de Julho de 1820, filha de Severo Manoel de Souza, natural da freguesia de S. Nicolau, em Santarém, e de Ana Gertrudes, nascida em Portalegre. O casal havia celebrado matrimónio a 27 de Abril de 1815, na Paróquia de Santa Cruz da Prideira de Santarém. 32

33   - Pinto de CARVALHO, História do Fado, (1903), Lisboa, Publicações D. Quixote, 1994, p. 67.

- Júlio de Sousa e COSTA, Severa, ed. Acontecimento 3ª edição, p. 5

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- Teófilo Braga data este Fado de 1848 mas a fazer fé nos versos da primeira e última quadras, o poema teria sido criado em 1847, Chorai fadistas, chorai/Que uma fadista morreu./Hoje mesmo faz um ano/Que a Severa faleceu. 37

- Livro de óbitos da Paróquia de Socorro. Registo de enterramento Livro de Assentos de Finados, Liv. Nº 3 f. 117. 38

- Publicada no jornal irmava ser o retrato de Severa. A Canção do Sul, 1 de Setembro de 1939. Esta imagem era afinal uma reprodução em postal ilustrado de Acácia Reis (Severa) e Rosa d’ Oliveira (Rosa Engeitada), na revista Na ponta da Unha, representada no teatro da Rua dos Condes, em 1902. Outra informação sucessivamente veiculada, seria a da existência de um retrato de Maria Severa, encontrado no espólio artístico do pintor Francisco Metrass (1825-1861). 39

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O Gaspar da Viola, século XIX Columbano Bordalo Pinheiro Lápis s/ papel 11 x 13,2 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de José Pessoa (DGPC/ADF)

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consolidava como um referencial agregador de toda a comunidade artística.40 A escassez de testemunhos documentais directos a par da ausência de registos iconográficos produzidos entre 1820 e 1846 para ilustrar a fisionomia de Maria Severa - perpetuando-a, seguramente, mas impondo inevitavelmente alguma contenção dentro dos limites retratados – reforçou, afinal, a eficácia simbólica da sua mitologia, inspirando a criação literária, a produção de folhetos de cordel, de repertórios, operetas, peças de teatro e filmes, entre outros testemunhos que a consolidaram como ícone central da identidade imagética do Fado, no quadro de uma diversidade de disciplinas artísticas, que se dimensionou, ao longo de todo o século XX, nas ténues fronteiras entre a arte erudita e popular. A primeira aproximação das nossas artes visuais à figura de Maria Severa ficou a dever-se a Columbano Bordalo Pinheiro (1857-1929), num estudo a carvão datado de 1885 e que permaneceu até hoje praticamente desconhecido. Em Estudo para uma Severa41 a cantadeira representa-se de corpo inteiro, xaile estampado ornando os ombros, saia ampla, um dos pés apoiado sobre um banco e tocando viola. O inacabado do desenho é sugerido pelo tratamento de mancha semelhante a outros estudos. Também aqui, a perda de intensidade, no contraste e no traço, se vai diluindo, de cima para baixo, desde o negrume dos cabelos à diluição da linha no desenho dos pés. A mítica cantadeira meretriz consagrar-se-ia nos alvores do século XX com a publicação do romance A Severa de Júlio Dantas, em 1901, logo encenado dramaticamente e apresentado no Teatro D. Amélia. O Fado sou eu!, exclamava a Severa pela pena de Dantas, na voz emprestada de Ângela Pinto. Consolidava-se assim a mitologia da fadista no contexto de recepção crítica da peça, sustentada, a partir de então, pelo universo editorial de suporte à publicação e mediatização de livros, repertórios, operetas e filmes, que impunha, já em pleno século XX, a cristalização imagética do mito. Posteriormente, com o drama adaptado ao cinema em 1931 - festejando a estreia do sonoro em Portugal – e, coincidindo o advento da rádio com o êxito do Novo Fado da Severa de Júlio Dantas, consolidava-se o imagético do mito fundador do género, referencial agregador do universo fadista. Como esclareceu Rui Vieira Nery, até à viragem para o século XIX não encontramos em fontes escritas em Portugal, quer estas sejam musicais quer literárias, ensaísticas, jornalísticas, administrativas ou judiciais, qualquer instância do uso do termo “Fado” para desig-

nar uma realidade de natureza musical, fosse ela popular ou erudita, urbana ou rural, religiosa ou profana. Até então atribuía-se apenas à palavra “Fado” o sentido de “destino”, derivado etimologicamente do fatum latino, e é sempre nessa acepção que a vemos surgir recorrentemente na Poesia portuguesa, de Camões a Bocage.42 De facto, apenas por volta de 1830 surgem nas fontes documentais portuguesas as primeiras utilizações da palavra Fado com um significado musical e, no contexto dos sucessivos dicionários de Português esse novo significado só lhe será atribuído em 1878, na sétima edição do Diccionario da Lingua Portugueza de António Morais e Silva quando o Fado como género poético-musical correspondia já a uma prática artística bem disseminada e documentada na sociedade portuguesa. A primeira incursão da figura do fadista nas artes visuais ficou a dever-se a Rafael Bordalo Pinheiro em 1872, na litografia Typos de Lisboa – Os Fadistas logo reproduzida no jornal El Mundo Cómico43 e depois publicada no álbum A Gravura de Madeira em Portugal, de J. Pedrozo. Nascido em Lisboa em 1846, Rafael foi magno cronista da sua cidade ao longo de mais de trinta anos de actividade profissional, de 1870 até ao final da vida, em Janeiro de 1905. Filho de Manuel Maria Bordalo Pinheiro (1815-1880) pintor amador da geração romântica, funcionário público e especialista na composição de pequenas cenas históricas, e de D. Maria Augusta do Ó Carvalho Prostes, Rafael cedo ganhou o gosto pelas artes. Seu irmão Columbano, onze anos mais novo, diplomou-se na Academia de Belas Artes. Rafael inscreveu-se no Conservatório em 1860 e, posteriormente matriculou-se sucessivamente na Academia de Belas Artes (onde colhe os ensinamentos do desenho de arquitectura civil, do desenho antigo e de modelo vivo), frequenta depois o Curso Superior de Letras e a Escola de Arte Dramática, que abandona pouco depois. Estreou-se no Teatro Garrett e foi amador dramático em pequenas salas de bairro. Embora nunca tenha vindo a fazer carreira como actor, do gosto e da prática do Teatro terá colhido uma extraordinária capacidade cénica revelada, mais tarde, enquanto caricaturista e criador de múltiplos enredos e figurações que, nas páginas de sucessivas publicações, contracenaram, animando a vida quotidiana de Lisboa. Nas dez mil folhas de desenhos por onde passou Portugal inteiro44 Rafael prodigiosamente fixou grandes páginas de composição extraordinária, pequenas vinhetas minuciosamente caracterizadas, portraits-charge de políticos, actores, ou escritores, com um profundo comentário social e psicológico perpassando toda a sua obra, a par de um entendimento muito lúcido do sentido do retrato   - Rui Vieira NERY, Fado, Um Património Vivo/Fado: A Living Heritage, Lisboa, CTT, 2012, p. 25. 42

- Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Publico, Lisboa, 2004, p.71. 40

- Columbano Bordalo Pinheiro, Estudo para uma Severa, 1885, sanguínea s/ papel, 35,2 x 16,7 cm, Col. Museu Nacional Soares dos Reis, Inv. 104. 41

- El Mundo Cómico, 2ª série, nº 48 de 1872.

43

- José Augusto FRANÇA, Malhoa, o Português dos Portugueses e Columbano, o Português sem Portugueses, Lisboa, Bertrand Editora, 1987, p.7. 44

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Estudo Para um Severa, 1885

Columbano Bordalo Pinheiro Sanguinea s/ papel 32,5 x 16,7 cm Colecção Museu Nacional Soares dos Reis

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género.

José-Augusto França viu nele o Português Tal e Qual, bem instalado na própria pele, mesmo que com as melancolias do costume, de amor, bronquite ou idade. Patriota e comilão, romântico e republicano, sentimental e pai de família, cristão e antijesuíta – o Português em suma substantivo comum do século XIX com dívidas ao fim do mês, gostos manuelinos e doçuras de coração até dentro das ceroulas.45

A extensa fortuna crítica de José Malhoa tornou sobejamente conhecidas as peripécias que pontuaram a produção da obra O Fado, que envolveu a colaboração de modelos reais - o fadista Amâncio e a Adelaide da Facada – com quem Malhoa terá discutido particularidades iconográficas e consentimentos de poses47- e que acabariam, ainda que fortuitamente, por participar, com mestre Malhoa, pintor fino e consagrado, na fundação de uma identidade imagética do fado.

Nas páginas d’O Calcanhar d’Aquiles, d’O Binóculo em 1870 ou d’A Berlinda, em 1871 Rafael fundou uma via realista e revolucionária, de grande lucidez crítica e moral, intransigentemente independente de interesses ideológicos ou partidários e que visou insistentemente a política, o teatro, a ópera, a literatura, enfim, os grandes temas da vida portuguesa, vividos a partir do seu microcosmos do Chiado. Aqui se consolidava uma estética que bebia do imediatismo crítico de Ramalho ou da via caricatural de Eça.

A partir da representação de modelos reais encontrados na Mouraria, a que correspondem um fadista de nome Amâncio e a sua companheira Adelaide “da Facada” fundar-se-ia um modelo iconográfico ao qual a canção lisboeta se associaria definitivamente. Citada e manipulada até aos nossos dias, no contexto de diferentes disciplinas artísticas, seria sobretudo a caricatura e o humor gráfico numa primeira fase, a utilizar O Fado como instrumento de vocalização satírica, o que atesta bem a popularidade da obra, à época.

Habilíssimo desenhador, observador atento da Lisboa do seu tempo, dos costumes, da vida e pequenos escândalos citadinos, homem de pacata boémia nocturna, gostosamente informado da vida e dos escândalos citadinos46 Rafael captou costumes que observou de perto, cabendo-lhe inúmeros apontamentos da prática do Fado oitocentista na sua vertente de canto ou enquanto expressão coreográfica dançada.

Se a Geração de 70 manifestou uma certa iconoclastia em relação ao Fado, o contexto artístico das décadas seguintes assistiria à emergência do naturalismo pictórico, que romperia definitivamente com a simbólica convencional de inspiração greco-latina à medida que promovia uma arte para a classe média, facultando, no contexto da sua recepção crítica, uma identificação imediata do significado intrínseco de cada obra. Estendendo-se também ao campo literário, o naturalismo potenciava o efeito de realismo pictórico, consagrando a pintura de género e a composição paisagística de Norte a Sul do País, à semelhança do que sucedia em Inglaterra, França ou Alemanha, num processo que Eric Hobsbawm caracterizou como o da Invenção da Tradição48.

e da caricatura.

Acompanhando um período de gradual consagração do Fado, em círculos sociais cada vez mais diversificados, o legado de Bordalo Pinheiro integraria um assinalável conjunto de representações alusivas ao tema – quer através do retrato naturalista dos fadistas do seu tempo, quer manipulando o género para parodiar diferentes episódios da conturbada vida política nacional. Oscilando entre a representação naturalista e complacente de retiros e fadistas e a apropriação epigramática do género, naquilo que detinha de mais crítico, os desenhos de Bordalo iluminam, inevitavelmente, a prática do Fado oitocentista, nas suas variantes de canto e dança, inequivocamente documentando a sua evolução ao longo do último quartel do século. Na pintura portuguesa, a evocação sublimada e sintetizada do universo do bas-fond lisboeta irromperia, nos alvores do século, no festejado Fado de Malhoa, de 1910. Fixando um modelo iconográfico popular, urbano e marialva José Malhoa consolidava a via mais naturalista de tratamento do tema, com o seu Fado assumindo, desde cedo, um lugar de absoluta centralidade na iconografia do

Para a Geração de 1890 - de onde sairiam os líderes da República - as “ideias modernas” faziam-se acompanhar do pressuposto da existência de uma “realidade portuguesa” uma forma de vida que correspondia exactamente ao modo de ser dos portugueses e que se perdera quando estes começaram a imitar os outros burgueses europeus.49 Paralelamente, e desde a década de 1880, desdobrava-se a atenção consagrada aos Museus Nacionais: o Museu de Belas-Artes e Arqueologia, actual Museu Nacional de Arte Antiga, abria portas em 1884 - depois de alterações estruturais profundas - o Museu   - Raquel Henriques da SILVA, “O Fado em Pintura”, Lion, Maurice, Pallu, Franceses tipicamente Portugueses, Lisboa, Cinemateca Portuguesa - Museu do Cinema, 2003, pp. 145-162. 47

- Veja-se o capítulo “Inventing Tradition” em Eric HOBSBAWM, e Terence RANGER, The Invention of Tradition, Cambridge University Press, 1992, pp. 1-14. 48

-José-Augusto FRANÇA, Malhoa, o Português dos Portugueses e Columbano, o Português sem Portugueses, Lisboa, Bertrand Editora, p. 49. 45

-José-Augusto FRANÇA, Raphael Bordalo Pinheiro, Caricaturista Político, Lisboa, Colecção Arte e Artistas, 1976, p. 10 46

- Rui RAMOS, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes. 49

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O Fado da Política, 1883

Rafael Bordalo Pinheiro António Maria, 5 de Abril de 1883

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Etnográfico em 1893, o Museu Militar em 1895, o Museu de Arte Sacra de S. Roque e o Museu dos Coches Reais em 1905. Anos mais tarde, seria a República a multiplicar os Museus pelo País. Nas artes plásticas, por influência de Silva Porto - o líder do Grupo do Leão, que se deixara contaminar em Paris pela pintura naturalista - crescia o gosto pela pintura paisagística de Norte a Sul do País, que constituía motivo de procura crescente entre a Família Real e a burguesia de Lisboa e do Porto: Em 1893 Silva Porto vende uma grande tela por 700 mil reis. Para o público com menos posses trabalhava formatos médios (35 a 70 mil reis) e pequenos (15 a 30 mil reis) Era uma pequena indústria. Porto repetia as telas mais procuradas, consagradas e celebrizadas pelas reproduções em jornais e revistas.50 A partir da figura tutelar de Silva Porto, impunha-se, então, uma nova ortodoxia pictórica através de instituições como o Grémio Artístico (1891) ou a Sociedade Nacional de Belas Artes (1901). O entendimento imediato das obras, ao nível da sua recepção crítica, proporcionado pelos novos programas artísticos – despojados das referências eruditas da pintura clássica – ditou o seu consumo alargado por toda uma classe média e também pelo universo de amadores que a podiam praticar sobretudo através da aguarela, um meio técnica e financeiramente mais acessível do que o óleo. Esta nova gramática plástica seria ainda largamente propagada, nas décadas seguintes, pelos discípulos de Porto, Reis e Malhoa, agrupados em 1911 no Grupo Ar Livre e em 1927, no Grupo Silva Porto. José Vital Branco Malhoa nasce a 28 de Abril de 1855 na Travessa de S. Sebastião, nas Caldas da Rainha, segundo filho de Ana Clemência e de Joaquim Malhoa. Entre 1870 e 1873 frequenta a Real Academia de Belas Artes, aprendendo designadamente Desenho Antigo com Victor Bastos, Pintura de Paisagem com Tomás de Anunciação e Desenho de Modelo ao Vivo com Miguel Ângelo Lupi. Recusada a sua candidatura a uma bolsa no estrangeiro para Pintura de Paisagem por dois anos consecutivos (1874 e 1875) acabaria por empregar-se como caixeiro na loja de confecções do irmão Joaquim, na Rua Nova do Almada, em Lisboa. Daquele estabelecimento só sairia em 1881, mediante a crítica da clientela que alegava o desperdício do talento do pintor na actividade de caixeiro. José Malhoa passaria desde então, a dedicar-se exclusivamente à criação artística, obtendo amplo reconhecimento com a exposição da obra Seara Invadida, em Madrid. Já em 1879 porém, um dos seus primeiros quadros de costumes - Quer a Sorte? Vendedeira de Cautelas - era premiado com a Medalha de Prata na Exposição Portuguesa no Rio de Janeiro, cedo anunciando um trajecto de consagração.

Em 1881 realizava para a revista O Ocidente uma série de dez desenhos sobre a inundação da Ribeira de Santarém - encomenda consensualmente reconhecida pelos seus biógrafos como o primeiro dos trabalhos remunerados de José Malhoa51. Registando documentalmente o ocorrido, cumpria-se a credibilidade do relato junto do público, na linha das práticas mais correntes da imprensa do século XIX, onde artistas e gravadores procuravam registar com a maior verosimilhança os factos que constituíam a notícia. Membro fundador do Grupo do Leão, Malhoa participaria no mesmo ano com Cristino da Silva, Moura Girão, Cipriano Martins, Henrique Pinto, António Ramalho, Silva Porto, João Vaz e Rodrigues Vieira na Iª Exposição de Quadros Modernos, realizada na Sociedade de Geografia de Lisboa. Inaugurava-se assim um percurso de consagração e consensual reconhecimento da arte de Malhoa, constante ao longo dos diferentes ciclos políticos nacionais, desde o final agonizante do Regime Monárquico, passando pelo eclodir da República, até à afirmação do Estado Novo, como bem salientou Paulo Henriques. Iniciando-se na pintura decorativa de espaços públicos como o Real Conservatório de Lisboa ou o Museu Militar, passando pela arte do retrato - em encomendas sucessivas não só da Casa Real e da nobreza mas também as decorrentes da afirmação de novas classes sociais que emergiram durante a República - fixando os costumes populares numa iconografia do quotidiano, Malhoa consolidaria uma imagética popular numa urgência sentida em Portugal nas últimas décadas do século XIX de definir uma pintura nacional e de criar necessárias e sólidas referências à nossa cultura artística.52 Como anteriormente afirmámos, a obra O Fado é, seguramente, a mais icónica obra da cultura visual do universo fadista e também aquela que maior número de apropriações sofreu ao longo da história da arte portuguesa, desde a caricatura de imprensa do primeiro quartel do séc. XX, aos nossos dias53. Constituindo uma das mais célebres e divulgadas obras de Malhoa parte significativa da sua fortuna crítica focou-se, sobretudo, no tema representado, em leituras apologéticas ou críticas do Fado, como observou Nuno Saldanha.54 Como veremos, desde a Geração de 70 fixavam-se na nossa literatura alguns dos posicionamentos críticos do Fado que se distanciavam estética e moralmente do contexto de marginalidade incómoda que enquadrava a génese da canção urbana. Neste sentido, a recepção crítica de O Fado de Malhoa discorreria também, como veremos, na exacta medida da recepção crítica do Fado, enquanto   - Paulo HENRIQUES (1996) José Malhoa Lisboa, Edições INAPA, 2002, p. 9. 51

- Paulo HENRIQUES, (1996) José Malhoa Lisboa, Edições INAPA, 2002 p. 167. 52

- Sara PEREIRA Ecos do Fado na Arte Portuguesa Seculos XIX-XXI, Lisboa, Egeac/Museu do Fado, 2011, p. 44. 53

- Rui RAMOS, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, Lisboa, pp. 574 e seguintes. 50

- Nuno SALDANHA, José Malhoa, Tradição e Urbanidade, Lisboa, Scribe, 2010, p. 310. 54

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Fadistas, 1873 Rafael Bordalo Pinheiro Gravura, 26 x 21 cm Colecção Museu Rafael Bordalo Pinheiro

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um tríptico – o Tríptico do Alcouce59 - como o atestam os desenhos existentes no Museu José Malhoa nas Caldas da Rainha.

género musical autónomo. Paralelamente e como afirma Nuno Saldanha, O Fado constitui-se como o culminar das experiências sobre o Realismo,55 na obra de Malhoa, bastante diferente de Os Bêbados de 1907 onde se apresenta uma composição estudada, recorrendo a modelos profissionais que na obra O Fado serão abandonados e substituídos por dois habitantes da Mouraria, fadistas reais, fruto da apurada pesquisa que o pintor desenvolveu sobre o tema. Símbolo da vigência em Portugal de um gosto oitocentista – facto bem presente na homenagem que em 1928 é feita ao seu autor, bem como no comportamento do grande público, que tranquilamente consome os restos de um programa naturalista, de fácil digestão – O Fado mereceu grande mediatismo à época e rapidamente suscitou reacção do meio artístico, quer na caricatura de imprensa da época, quer nos artistas do Modernismo. A leitura das diferentes entrevistas do pintor à imprensa permite desvendar o processo de concepção e execução da obra O Fado. Malhoa confessaria que a ideia surgiu a propósito de uma guitarra portuguesa existente no seu atelier, tal como o atesta a fotografia de 1906 tirada no seu atelier de Lisboa, em que o artista figura em pose de tocador. Numa entrevista ao Imparcial de 24 de Fevereiro de 1910, Malhoa relatava ter demorado dois anos a executar a obra. Também na correspondência com José Relvas, o pintor refere ter realizado em Figueiró dos Vinhos, para além de sete pequenos estudos, dois esbocetos para futuros quadros.56 A génese da obra pode rastrear-se até 1908, data de um pioneiro estudo a óleo sobre madeira57, onde pode verificar-se a introdução de uma terceira figura na composição, porventura uma alcoviteira. Sandra Leandro avança com a probabilidade intencional de criação de um fado mais longo: um tríptico passando pelas fases de sedução, alcouce e desenlace.58 Esta hipótese, também avançada por Matilde Tomaz do Couto e Nuno Saldanha encontra-se, aliás, documentada num outro estudo, a tinta-da-china sobre papel, da colecção do Museu José Malhoa, também datado de 1908. De facto, a composição original de O Fado foi originalmente pensada como uma narrativa sobre a vida de uma meretriz na forma de   - IDEM, Ibidem,p.311.

O estudo datado de 24 de Setembro de 190860 revela uma composição de forte pendor narrativo através da qual Malhoa teria primeiramente visado uma sequência dramática incluindo as fases da sedução - espécie de introdução à história trágica da meretriz e do seu amante61- um painel central que constituiria o clímax do enredo - o alcouce onde o faia encanta a sua amada - e uma cena final que terminava com a morte dela, suavizada, mais tarde, com a representação da rameira partindo para o degredo. Depois de reduzida a composição a um único painel, Malhoa ainda introduziu uma terceira figura62 incrementando a intensidade dramática da narrativa. De facto, como bem observou Nuno Saldanha, Malhoa subvertia, na representação original do tríptico os cânones utilizados na arte religiosa nos altares do século XVI e XVII onde se patenteavam as virtudes de Cristo para, em seu lugar, mostrar a perversidade e a existência trágica do homem, ou melhor dizendo, da mulher, marcadas pelo vício e pela imoralidade. E isto era realmente revolucionário.63 O historiador Rui Ramos64 desvendou as peripécias que envolveram a génese do quadro, nas palavras de José Malhoa: por uma tarde parada, como esta, de olhos semicerrados, pensava eu no meu atelier, em planos vagos a realizar. Uma guitarra sobre uma banca, fez-me meditar nisto: quem teria feito o primeiro fado? Embevecido nesse sonho, fazendo passar ante meus olhos todas as Severas, de cigarro na boca e perna traçada, cantando a melancólica canção das perdidas. Feitos os primeiros esboços, Malhoa andou durante quatro meses pelos bairros populares de Alfama, Bairro Alto e Mouraria vendo aquela vida que tão necessária era para o meu trabalho e depois atirei-me ao quadro. Trabalhou ainda com modelos profissionais, porém, como o próprio confessaria: esses modelos não me davam nada do que eu sentia e via no natural. O amigo e fotógrafo Júlio Novais prontificou-se a introduzi-lo na boémia fadista e, na Tendinha do Rossio, entre os cocheiros da Praça, Malhoa   - Assim o intitulou Nuno Saldanha que chama a atenção para a importância da concepção original da obra como um tríptico, facto até então praticamente omisso na vasta fortuna critica da obra. Nuno SALDANHA, José Malhoa, Tradição e Urbanidade, Lisboa, Scribe, 2010, p.338. 59

- José Malhoa O Fado (estudo), Tinta s/ papel, 10,5 x 13,9 cm, Colecção Museu José Malhoa 60

- Nuno SALDANHA, (2010) op. cit., p. 318.

55

61

- Carta de Malhoa a José Relvas, Figueiró dos Vinhos, 4 de Maio de 1908, fol. 2, Apud. Nuno SALDANHA, José Malhoa, Tradição e Urbanidade, Lisboa, Scribe, 2010, p. 331.

62

56

- Estudo para O Fado, 1908, óleo sobre madeira, 22 x 26 cm, col. Carlos Barbosa. 57

- Sandra LEANDRO, “Luz sobre Luz: José Malhoa (1855-1933)” José Malhoa, Lisboa, Arting Editores, 2008, p.86. 58

- Estudo para O Fado, 1908, óleo sobre madeira, 22 x 26 cm, col. Carlos Barbosa.   - Nuno SALDANHA, José Malhoa, Tradição e Urbanidade, Lisboa, Scribe, 2010, p. 319. 63

- Rui RAMOS, op. cit., pp. 574 e seguintes; Tomamos as citações do autor de uma entrevista de José Malhoa ao jornal A Luta, de 20 de Março de 1915. 64

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Estudo para o quadro “O Fado”, 1908

José Malhoa Tinta s/ papel 10,5 x 13,9 cm Colecção Museu José Malhoa

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viria a conhecer um fadista a valer: o Amâncio. Ao fadista Amâncio, confessava Malhoa, em 1915, devo eu o ter pintado o meu quadro. Nuno Saldanha esclarece-nos sobre a identidade de Amâncio, de seu nome completo Amâncio Augusto Esteves, que estivera em Africa e no Brasil antes de vir para Portugal, sem ocupação certa, dedicando-se a vários tipos de comércio e serviços. 65

Findos os primeiros estudos, Amâncio levou Adelaide às Avenidas Novas para ver o primeiro carvão do quadro: Amâncio, aquilo já parece quando a gente estava lá em casa na paródia! Malhoa passou ainda cerca de onze meses a trabalhar na sua casa-atelier das Avenidas Novas, mas ficou satisfeito como confessaria em entrevista: Não há nessa tela apenas um fadista e uma rameira. Há ali uma mulher encantada ao ouvir o seu melhor afecto, que lhe canta ao coração.68

Criticando as primeiras versões trabalhadas com modelos profissionais Amâncio ter-lhe-ia explicado: isso não é um fadista. Nós cá usamos o cabelo cortado à meia-laranja; o atacador é até à bica e quando cantamos, sem olhar para quem, é preciso que disfarçadamente se veja, no bolso da calça da perna esquerda, o cabo da navalha. Depois, arranjou-lhe outro modelo, uma vendedora de cautelas, a Adelaide da Facada assim chamada pela cicatriz que ostentava na face esquerda e o seu gato, cego de um olho, o Escamado, que chegou a figurar numa versão inicial.

No estudo de 190869 percebemos a introdução de uma terceira figura por detrás da figura de Adelaide, que por sua vez ostenta uma pose mais ousada do que na versão final do quadro. Também a figura de Amâncio sofreu alterações uma vez que nesta versão foi representado de cabeça erguida e lábios entreabertos, inquestionavelmente a cantar e a tocar.

Terá sido assim, na companhia de Amâncio, a quem se atribuía o cognome de O Pintor que Malhoa fez as primeiras incursões na Rua do Capelão, rua tão notória que Malhoa, completamente deslocado na paisagem, foi imediatamente interceptado pelo polícia de ronda, a quem teve de explicar que não era o deboche, mas a arte que lá o levava.

Está ainda por cumprir um recenseamento exaustivo dos estudos prévios que presidiram à criação da obra O Fado. Para além dos estudos aqui identificados, há notícia no catálogo das leiloeiras Palácio do Correio Velho e Leiria e Nascimento da licitação de vários estudos das figuras de Amâncio e Adelaide cujo paradeiro permanece desconhecido.

No albergue de Adelaide uma bela mulher, de seio rijo, braços esculturais, rosto interessante, desfeado apenas na face esquerda pelo traço de uma grande facada, da orelha à boca Malhoa trabalhou durante 35 dias examinando detidamente esse interior: a meia cómoda com a sua toalha de ramagem vermelha, e por cima o clássico croché; os santinhos na parede; o vaso de manjerico com o seu cravo de papel; a bola suja de pó de arroz, o pequeno toucador do espelho com a gaveta aberta e sobre ele o pente de alisar, os cigarros, a garrafa de vinho66. Era então apelidado pelas gentes do bairro como o pintor fino em oposição ao fadistão Amâncio, cuja actividade marginal lhe valera o epíteto de o pintor.

No estudo prévio de 1908, Malhoa pintou Adelaide com a alça caída e a saia branca. Todas as versões de 1908 apresentam Adelaide envergando apenas um saiote branco, depois substituído por uma longa saia vermelha.

Amâncio recebia 6 vinténs por sessão, garantindo assim a presença de Adelaide. Outra das contrapartidas exigidas por Amâncio foi a de um retrato seu, de paradeiro desconhecido.67 Não obstante a contrapartida recebida pela figuração, logo que Amâncio e Adelaide se encontravam a sós, os insultos e as agressões sucediam-se culminando, invariavelmente com a detenção dos modelos no Governo Civil obrigando à intervenção de Malhoa para os libertar.   - Nuno SALDANHA, José Malhoa, Tradição e Urbanidade, Lisboa, Scribe, 2010, p. 342, nota rodapé 1109; 65

- Rui RAMOS, “A Segunda Fundação (1890-1926)”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Volume VI, Círculo de Leitores, 1994, pp. 574 e seguintes. 66

67   - De paradeiro desconhecido, o quadro foi reproduzido por António Montês (Montês, 1950: 33) e figurou na 8ª Exposição da SNBA em 1910, identificado apenas como Retrato, reproduzido na Ilustração Portuguesa e em Brasil-Portugal. Cfr. Nuno SALDANHA, op.cit., 2010, p.313.

Inicialmente reproduzida no Diário de Lisboa em 196270 uma versão idêntica da obra datada de 1909 foi vendida num Leilão no Brasil e entrou no mercado nacional em 1962. Chegada a Portugal por meio da família Galvão de Melo, foi proposta a sua aquisição à Fundação Calouste Gulbenkian que declinou e a obra acabaria por ser adquirida em leilão por Vasco Pereira Coutinho à família Ribeiro da Cunha.71 Nas versões de O Fado de 1909 e 1910, o seio de Adelaide cobriu-se e o traje branco foi substituído por uma saia encarnada. Na versão de 1909 verifica-se uma maior vivacidade do pincel de Malhoa – desde logo na figura de Amâncio - bem como uma profusão de elementos pintados, nomeadamente, nos braços de Adelaide - que ostentam várias tatuagens - e nos laçarotes coloridos que compõem a blusa.   - Rui RAMOS, op.cit. pp. 574 e seguintes;

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- Estudo para O Fado, 1908, óleo sobre madeira, 22 x 26 cm, col. Carlos Barbosa. 69

-Diário de Lisboa, 23 de Maio de 1962: Existem duas telas de O Fado de Malhoa – uma no Museu da Cidade de Lisboa datada de 1910 e outra no Rio de Janeiro (onde vai a leilão) pintada no ano de 1909 Diário de Lisboa, Ano 42º, 14617, Lisboa, pp.6-7,9. Veja-se também André MACEDO,“O Fado é a Dobrar”, Focus, 29 de Abril de 2003, nº 185, Lisboa, pp. 28-29. 70

- Nuno SALDANHA, op. cit., p. 317.

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Estudo para o quadro “O Fado”, 1910 José Malhoa Carvão s/ papel 43 x 37 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de José Pessoa (DGPC/ADF)

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Ainda na versão datada de 1909, Adelaide ostenta no braço esquerdo a tatuagem de dois A’s entrelaçados (Adelaide e Amâncio) junto a dois corações e o decote é mais generoso. O exame radiográfico promovido pelo Instituto Português de Conservação e Restauro72 permitiu perceber que este arrojo foi corrigido na conclusão da segunda versão. Em ambas as versões, porém, é possível observar a tatuagem criminal dos cinco pontos na mão direita de Adelaide. As tatuagens constituíam, tal como descreve Tinop, um hábito bastante comum no universo fadista: O fadista usava frequentemente tatuagens ou desenhos impressos na epiderme, que ele ou algum artista antropógrafo traçava nas mãos, entre o indicador e o polegar, nos braços e no peito, iluminuras a carmin que representavam âncoras, navios, guitarras, flores, animais, inscrições diversas, corações trespassados, corações unidos, a cruz, cinco chagas e outros emblemas amorosos, religiosos, metafóricos e fantasias (...) A operação da tatuagem pratica-se por meio de três agulhas fixas a um cabo de madeira ou simplesmente unidas por um fio, e previamente embebidas num líquido corante, que pode ser tinta-da-china, tinta de escrever, carvão triturado, pólvora moída ou azul das engomadeiras. Aplicam-se por meio de picadas dirigidas oblíqua ou perpendicularmente e, para estas serem inapagáveis devem atingir os gânglios linfáticos. Entre nós os tatuadores existem em geral, nas cadeias, nos quartéis e nas populações marítimas. Nem só as classes baixas se tatuam...73 Valerá a pena determo-nos na profusão de elementos decorativos neste instantâneo do albergue de Adelaide: o toucador com o espelho partido – atributo clássico da iconografia representando a virtude perdida – e onde podemos descobrir o reflexo de uma cadeira junto à janela; o napperon de crochet sobre uma toalha de ramagens cobrindo a cómoda; as gravuras na parede, nomeadamente a imagem do Senhor dos Passos da Graça – então venerado em procissão nesta zona da cidade – de S. Lázaro – protegendo da peste, da fome e da guerra – e ainda a imagem de um toureiro, sobreposta a um leque, encimado por duas bandarilhas; o vaso de manjerico com um cravo e uma quadra; o candeeiro a petróleo e outros elementos reiterando a dimensão de intimidade, já sugerida na pose e na languidez de Adelaide: o pente, a borla de pó de arroz, a gaveta do toucador aberta, o lavatório sobre o qual pende uma toalha e finalmente a cortina vermelha levantada deixando antever o quarto de Adelaide. Curiosa é a representação do Senhor dos Passos que Luís Augusto Palmeirim alega ter reconhecido em casa de Maria Severa no livro Os excêntricos do meu tempo: Quando entrei em casa da Severa, modesta habitação do tipo vulgar das que habitam as infelizes suas congéneres, estava ela fumando, recostada num canapé de palhinha,

com chinelas de polimento ponteadas de retrós vermelho, com um lenço de seda de ramagens na cabeça e as mangas do vestido arregaçadas até ao cotovelo. Era uma mulher sobre o trigueiro, magra, nervosa, e notável por uns magníficos olhos peninsulares. Em cima de uma mesa de jogo estava pousada uma guitarra, a companheira inseparável dos seus triunfos; e pendente da parede (sacrilégio vulgar nas casas daquela ordem) uma péssima gravura, representando o Senhor dos Passos da Graça!74 Diz-nos Sandra Leandro que o candeeiro de lata, comprado a Emília Pato, uma vizinha de Adelaide e a cortina vermelha do quarto, que o pintor adquiriu na Rua da Regueira, em Alfama, foram os únicos objectos que não se encontravam no cenário que era a casa e a sina da “mulher desgraçada”.75 Testemunho verista, O Fado ilude-nos na sua planimetria, transportando-nos para o interior do albergue de Adelaide onde a cena se desenrola ao nível do nosso olhar. Em ambas as versões, os eixos, as diagonais e os ortogonais da tela, se cruzam junto ao cotovelo de Adelaide, esquecido sobre a mesa. A luz naturalista que banha o corpo de Adelaide vai escurecendo à medida que nos aproximamos do lado direito da composição, sobretudo na versão de 1910, que denota um maior tratamento fisionómico das figuras. De facto, também o tratamento lumínico vem consolidar, sobretudo na versão de 1910, um realismo de feição mimética - diferença assinalável entre ambas as versões, nomeadamente na representação anatómica ou na figuração da guitarra portuguesa - reiterando o foro de verdade social76aos fados de Amâncio e Adelaide. Quando terminou o quadro, José Malhoa convidou os moradores da Rua do Capelão para o ver no seu atelier Lar-Oficina Pró-Arte para onde se mudara em 1905 na então designada Avenida António Maria Avelar.77 Ali se conjugavam o espaço de habitação no piso térreo e o atelier do artista no primeiro andar, abrindo-se ao exterior num imenso janelão. Embora escandalizando mentalidades à época, o convite dirigido aos habitantes da Mouraria, não terá sido alheio ao consensual reconhecimento d’ O Fado no seio das camadas populares, familiarizadas também com o conjunto de peripécias que envolveu a produção do quadro. Esse terá sido seguramente um factor de mediação decisivo relativamente a um sector importante do público lisboeta entusiasta de O Fado: findo o quadro Mestre Malhoa convidou os amadores da Rua do Capelão para irem ver o quadro à Avenida 5 de Outubro, onde foi apreciado por um verdadeiro cortejo de rameiras e   - Luís Augusto PALMEIRIM, Os Excêntricos do Meu Tempo, [1891], Lisboa, Imprensa Nacional, p. 288 74

- Sandra LEANDRO, “Luz sobre Luz: José Malhoa (1855-1933)” José Malhoa, Lisboa, Arting Editores, 2008, pp. 37-128. 75

- Instituto Português de Conservação e Restauro, Relatório – Estudo Comparativo “Fado” e “CML – Fado”, Lisboa, 2002. 72

73   - Pinto de CARVALHO, História do Fado, Lisboa, (1903), Publicações D. Quixote, 1984, p. 93

- Retomando a expressão de Paulo HENRIQUES, op. cit., p. 167.

76

- Actual Casa Museu Anastácio Gonçalves no nº 6-8 da Avenida 5 de Outubro. 77

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O Fado (estudo prévio), 1908

José Malhoa Óleo s/ tela 33 x 44 cm Colecção Particular

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fadistas. O Fadista tocava guitarra e manejava a navalha como poucos. Era ciumento e brigão. Foi o Amâncio, assim se chamava, quem apresentou ao pintor o outro modelo, a Adelaide. Era conhecida por «Adelaide da Facada» devido a um golpe profundo na face esquerda. Tinha um gato, cego de um olho e mau, o «Escamado», mas que não foi possível obrigar à pose78 Efectivamente, O Fado cedo obteve consagração popular não sendo, porém, abrangido pelo gosto consensual da crítica que se distanciava sobretudo da natureza do tema representado. Com efeito, mais do que qualquer outra obra de Malhoa, O Fado suscitou uma multiplicidade de leituras indissociáveis dos contextos de recepção crítica que o acolheram. José Malhoa terminou a obra nos primeiros meses de 1910. A Ilustração Portuguesa dedica-lhe uma página, com reprodução fotográfica de Benoliel, qualificando-a de obra-prima não só pela execução soberba, mas também pelo seu pitoresco assunto (...) São as baixas camadas sociais tentando o pincel de Malhoa, num período em que o livro e o teatro as desdenha.79 Ainda em 1910, O Fado era apresentado na Exposição Internacional de Arte do Centenário da República da Argentina, em Buenos Aires, com o título Bajo el Encanto, onde arrecadava uma Medalha de Ouro. A primeira referência pública ao Fado surgia precisamente num periódico argentino, o Imparcial,80 ainda antes da inauguração da exposição, a partir de uma visita ao atelier do pintor, que acabara de concluir o quadro e onde se narram as peripécias que envolveram a produção da obra. Uma outra referência à obra surgia ainda nesse ano, no Primeiro de Janeiro,81 numa caricatura intitulada Fado… e Maxixe que aludia à peça de José Baptista Coelho, em cena no Teatro da Rua dos Condes em 1909 e 1910. Em Abril O Fado seria novamente referido no periódico argentino La Nacion e, em Junho, no brasileiro O Paiz.82 No ano seguinte o humor gráfico citava a obra de Malhoa num trabalho para A Capital intitulado O Triste Fado,83 que se apropriava da afamada tela para criticar a lei republicana de Brito Camacho (Amâncio) sobre a questão da panificação (Adelaide), atestando já a franca consagração da obra na cultura visual portuguesa. No início de 1912 O Fado integrava a primeira exposição individual de Malhoa na cidade do Porto organizada pelo seu grande amigo 78   - João SERRA, Variações sobre O Fado in “Revista dedicada ao pintor José Malhoa”, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983, p. 26. 79  - Ilustração Portuguesa, 7 de Março de 1910. Veja-se a propósito a apropriação desta notícia por João Vieira no catálogo Fado Português, Lisboa Galeria Valbom, 2005.

- Imparcial, 20 de Fevereiro de 1910.

80

- Primeiro de Janeiro, 9 de Março de 1910.

81

- Nuno SALDANHA (2010) op. cit., p. 314.

82

- A Capital, Ano 1º, 333, de 13 de Junho de 1911, Lisboa, p. 1

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e discípulo Augusto Gama e que integrou um total de 50 obras do pintor. Retirada antes do termo da exposição – que decorreu durante os meses de Janeiro e Fevereiro – O Fado embarcava para Paris a 7 de Fevereiro.84 No mês de Maio de 1912 O Fado integrava o certame anual da Sociedade dos Artistas Franceses, naquela que seria a sua terceira apresentação pública. Assumindo a designação Sous le Charme a obra granjeou enorme sucesso, como o atesta a correspondência do pintor com o seu amigo José Relvas.85 Em Abril e Maio antes e depois da exposição, a imprensa portuguesa voltava a interessar-se pelo quadro, com referências ao Fado na Ilustração Portuguesa e em O Século. No mesmo ano O Fado seguia para Liverpool, com o título The Native Song integrando a Latin-British Exhibition. Efectivamente a obra O Fado conheceria um sucesso crescente quer no plano nacional quer no exterior. Em 1915 era-lhe atribuído o Grand Prize na Panamá Pacific International Exhibition, evento realizado em S. Francisco (Califórnia). Karl Eugene Neuhaus, que integrava o júri do certame escrevia: Malhoa’s well-painted interior called The Native Song has more of desirable feeling of oneness, which may be due to the fact that it deals with an indoor setting.86 Em Lisboa O Fado seria exposto a 1 de Maio de 1917, no 14º Salão da Sociedade Nacional de Belas Artes, embora usufruísse já de ampla divulgação, como o atestam as referências sistemáticas na imprensa, as ilustrações da brochura alusiva a Malhoa publicada em 1913 por Cruz Magalhães ou a peça homónima de Bento Mântua, publicada em 1915 e levada à cena no S. Carlos. Na sequência da sua exposição na Sociedade Nacional de Belas Artes, a Câmara Municipal de Lisboa adquiria ainda em 1917, O Fado pela quantia de 4.000$00 - verba anualmente destinada à aquisição de estatuária para ornamentação dos jardins da cidade – destinando-o para o Museu Municipal, já criado mas ainda não instalado. A demora nessa instalação levou à sua exposição na sala do Presidente, facto que motivou algumas objecções na imprensa, incidindo na inadequação do tema do quadro face à nobreza do es  - Carta de José Malhoa a Augusto Gama: a 7 de Fevereiro têm o quadro “O Fado” e o retrato da Ministra de embarcarem (no comboio) para Paris. Apud Nuno SALDANHA, op.cit., p.314. 84

- Carta de Malhoa a José Relvas, 2 de Agosto de 1912 onde o mesmo assume Fui muito feliz com O Fado e o retrato da ministra da Argentina no Salon tendo recebido 42 Coupures da critica da Imprensa francesa que muito me animaram. Apud. SALDANHA Nuno, op. cit., p. 315. 85

- Apud. Nuno SALDANHA (2010) op. cit., p.315.

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Estudo para o quadro “O Fado”, s/d

José Malhoa Óleo s/ tela, 49 x 65 cm Colecção particular

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paço87. Também a aquisição pelo Município seria envolta em polémica com um grupo de artistas anónimos acusando a Câmara de um premeditado “arranjinho” sinal dos novos tempos e da moral da República.88 Com efeito, se a Ilustração Portuguesa defendia que Malhoa fez vibrar o público com o seu quadro saído do convencionalismo (...) o pintor não receava tratar a vida portuguesa, mesmo num dos seus mais baixos aspectos89, bem diferente é a opinião expressa por Álvaro Maia90 relativamente a um assunto que não prima, nem pela beleza, nem pela moral ou por Hermano Neves que discorda dos que chamam ao Fado do sr. Malhoa a dignificação e a apoteose do vício. É uma composição realista, chocante mesmo.91 Para Humberto Pelágio, Malhoa terá sido vítima da popularidade de O Fado que fez apagar outros temas dominantes da sua obra, que melhor justificariam a consagração, e atirado ao baixo público sendo um pouco vítima desse quadro que, criando-lhe entre a plebe e a burguesia uma auréola de consagrado intérprete da fatalidade nacional esbateu, ofuscou92 a restante obra, bem mais meritória, no seu entender. Na década de 1960 também Reinaldo dos Santos atribuiria o sucesso da obra a uma época e um meio de deficiente cultura artística.93 Menos reticentes foram Fernando Pamplona, Augusto de Castro ou Egas Moniz, cujo testemunho valerá a pena transcrever: Há quem não goste do Fado por isso talvez critique essa obra-prima do genial Mestre, o mais castiço pintor que teve Portugal. As gerações passam e, digam o que disserem, a canção fica. Nesta hora continua a ser apreciada por nacionais e estrangeiros nas salas que lhes dedicam os entusiastas do Bairro Alto. «O Fado» de Malhoa é documento que perdurará, mesmo que o entusiasmo do presente pela canção popular esmoreça com o rodar dos anos que tudo consome e destrói. Os que repelem a música que a maioria ama e sente, não renegarão a   - João SERRA, “Variações sobre O Fado”, Revista dedicada ao pintor José Malhoa, suplemento da Gazeta das Caldas, Caldas da Rainha, 1983, p. 27. Durante largos anos exposto no salão nobre dos Paços do Concelho O Fado (1910) aí permaneceu até à sua transferência para o Palácio da Mitra, para integrar a exposição permanente do Museu da Cidade, aí instalado entre 1942 e 1979.

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88  - O Dia, 3 de Maio de 1917. A verba de aquisição da obra O Fado provinha dos fundos destinados à aquisição de esculturas para decoração de praças e jardins da capital, denúncia efectuada também anonimamente ao jornal A Capital de 4 de Maio de 1917, por um provável escultor que se mostra indignado pelo facto de o Município não ter prevenido os escultores de que tencionava aplicar a verba na aquisição de pinturas assim evitando as falsas expectativas. “A Exposição Nacional de Belas Artes”, A Capital, Ano 7º, 2413, Lisboa, p. 1.

- Ilustração Portuguesa, 13 e 20 de Junho de 1910.

89

- Álvaro MAIA no Diário Nacional de 4 de Maio de 1917.

90

- A Capital, 5 de Maio de 1917.

91

- Humberto PELÁGIO, José Malhoa (Pintor), Lisboa, 1928.

92

93   - Reinaldo dos SANTOS, Oito Séculos de Arte Portuguesa, História e Espírito, Lisboa, 1963, Vol. I.

obra de Malhoa que é, inegavelmente um dos melhores quadros pela verdade e pela técnica, obra excelsa da pintura portuguesa.94 No Estado Novo, logo em 1928, consagrava-se a obra de Malhoa com homenagens nacionais ao artista e, mais tarde, com a criação do Museu com o seu nome em 1933. Na exposição inaugurada na Sociedade Nacional de Belas Artes a 16 de Junho, em torno da obra O Fado como de Os Bêbados ou de A volta da Romaria, os contempladores eram como moscas atraídas por uma doçura.95 A angustiante permanência deste gosto naturalista rapidamente suscitaria, no ambiente dos artistas do modernismo, a ironia em torno desta obra emblemática. Com efeito, a primeira geração de pintores modernos do séc. XX português, reagiu ao mais mítico dos artistas oitocentistas que, nesse tempo, era um dos símbolos da permanência e o sucesso de uma ordem estética a abater. Para a geração do modernismo português, Malhoa era um bota-de-elástico, presunçoso e antiquado, que vendia tudo quanto produzia, personalidade ilustre e bem admirada, embora se limitasse a pintar sempre o mesmo, um povo boçal, resignado e analfabeto. A sua obra O Fado não foi tanto um acontecimento, mas um fantasma, símbolo de um gosto naturalista e romântico que procurou coarctar a primeira geração do modernismo96. Efectivamente, este afastamento a que se ditaram os artistas do seu tempo ficou, porventura, também a dever-se ao facto de Malhoa ter usufruído sempre, em vida, de amplo reconhecimento oficial, ao contrário dos modernistas do seu tempo, cujas iniciativas inovadoras o gosto instalado sempre confinou. A extensa fortuna crítica da obra O Fado sustentou-se, em boa parte, nas diferentes leituras sobre o tema representado. Como bem observou Nuno Saldanha, O Fado de Malhoa não deve ser visto como um mero retrato pitoresco dos costumes lisboetas e do folclore a ele associado.97 Como vimos anteriormente, a intenção de pintar a narrativa da história trágica de uma meretriz sustentou a génese da obra, sendo os fadistas aqui descritos na sua acepção original da primeira década de oitocentos, indissociavelmente ligados aos contextos de transgressão e marginalidade. Ora, em 1910, o Fado já era presença regular nos palcos do Teatro, presença consagrada numa rede comercial de recintos cada vez mais alargada, granjeava novos públi  - Egas MONIZ, A Folia e a Dor na Obra de José Malhoa, separata do Boletim da Academia das Ciências de Lisboa, Vol. XXVII, Abril-Maio de 1955, pp. 11-12. 94

- Manuel de Sousa PINTO, “Conferência” in Livro da homenagem ao grande pintor José Malhoa realizada com a exposição das suas obras na Sociedade Nacional de Belas Artes em Junho de 1928, Lisboa, 1928. 95

- Raquel Henriques SILVA, João Vieira, Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Galeria Valbom, 2005, p.5. 96

- Nuno SALDANHA (2010), op. cit., p. 319.

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cos como o atestam as gravações discográficas dos êxitos do Fado na revista ou as publicações periódicas que, a partir desse ano, se consagram ao tema. Malhoa quis intencionalmente retratar uma franja social confinada a um circuito marginal, uma realidade social de exclusão, inscrevendo-se o seu Fado numa das vertentes do realismo social de finais de Oitocentos, espécie de provocação temática (…) dando primazia aos efeitos sobre o espectador, despoletando emoções, gerando assim uma dialéctica activa, no diálogo entre o sujeito e o objecto.98 Não seriam sequer as desventuras da mítica Severa, que Dantas já romanceara nos amores com o Conde de Vimioso ou no sustento providenciado às suas companheiras, o objecto do interesse do pintor. Sendo muitíssimo provável que Malhoa tivesse assistido à peça, estreada em Janeiro de 1901 no antigo Teatro D. Amélia99 tudo indica que pretendeu intencionalmente retratar o contexto do Fado de oitocentos indissociavelmente intrincado nos circuitos marginais e onde a fadista/mulher do fado era a mulher da vida e as casas de fado, espaços de prostituição. Esta intenção é reiterada pelos vários estudos da figura de Adelaide com as alças do corpete descaídas que atestam a vontade de acentuar a dimensão de transgressão na composição, como que sintetizando os discursos críticos do Fado que desde a Geração de 70 se vinham consolidando e que tiveram em Eça, Ramalho, Fialho de Almeida ou mesmo em António Arroio, já em 1909, eloquência crítica digna de registo e na qual valerá a pena atentarmos. De facto, desde a Geração de 70, fixavam-se, na nossa literatura, alguns dos posicionamentos críticos do Fado que haveriam de consolidar-se, ao longo da primeira metade do séc. XX, num denominador comum de hostilidade à canção urbana de Lisboa, transversal aos diferentes sectores ideológicos e que a literatura e as artes plásticas tantas vezes partilharam. Dimensionando-se em diferentes momentos da história do Fado, estes discursos críticos estruturaram-se a partir de motivações diversas, quer, formulando, num primeiro momento, um distanciamento crítico da marginalidade associada aos contextos fadistas – posicionamento profusamente ilustrado, entre outros, por Eça de Queiroz, Fialho de Almeida ou Ramalho Ortigão100 – quer por força de constrangimentos de ordem ideológica que se prolon  - Nuno SALDANHA (2010) op. cit., p. 320.

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- No actual São Luiz Teatro Municipal

99

- “Porque se não prendem os fadistas todos?” indagava Ramalho Ortigão em 1878. Veja-se “O fadista”, As Farpas. O País e a Sociedade Portuguesa, Tomo VII; Lisboa, Livraria Clássica, 1948, p. 173. 100

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gam durante todo o séc. XX – dos quais constituem bons exemplos o repto de António Arroio,101 em 1909, as célebres palestras de Luiz Moita difundidas em 1936, na Emissora Nacional e logo compiladas no livro O Fado, Canção de Vencidos ou os posicionamentos críticos mais tardios de António Osório em 1974102. Inscrevendo-se no naturalismo literário de Zola, o Fado de Malhoa, corroborava a ideia de que o comportamento humano se deixava simplesmente condicionar pelo posicionamento social, a hereditariedade ou por meros aspectos biológicos. Por outro lado, não é também de descurar toda uma cultura visual patente na pintura espanhola e latino-americana onde proliferam representações de músicos dedilhando instrumentos de cordas em situação de canto ou execução instrumental. Como salientou Nuno Saldanha, 103 José Malhoa acedia facilmente a esta cultura visual ibero-americana – quer por via das suas deslocações a Espanha ou à América do Sul – quer por via das reproduções que preenchiam os periódicos da época, sendo provável que tenha conhecido as obras de Manuel Cabral Bejarano (1827-1891), de J. Paublo Salinas (1871-1946), de Carlos Verger (1872-1929), de José Maria Rodriguez Acosta (1886-1941), de Raimundo Madrazo (1841-1920) e que nelas tenha, directa ou indirectamente, recebido inspiração para a composição da obra O Fado. Não são ainda de descurar influências da pintura oitocentista consagrada ao tema da prática da música com instrumentos de corda dedilhada como as obras de Manet (O cantor espanhol, 1860) Degas (Lorenzo Pagans e Augusto De Gas, c.1871), Carolus Duran (O Poeta do Mandolim, 1893), onde, como observou Nuno Saldanha, as diferenças são sobretudo marcadas pelas novas músicas da moda, nomeadamente de origem hispano-americana – o flamenco, o tango, a copla, a rembetika, o bolero ou até as canções tradicionais russas.104 Esta cultura visual ibero-americana explica bem o sucesso da obra no exterior – colhendo Medalha de Ouro em Buenos Aires e o Grand Prix em S. Francisco. De facto, como bem salientou Nuno Saldanha O Fado reunia os ingredientes necessários a uma boa re101   - Referimo-nos ao apelo, sobejamente conhecido, “Rapazes, não cantem o fado!” de António Arroio, em 1909; António ARROIO, O Canto Coral e sua Função Social, Coimbra, França Amado, 1909, pp. 58. 102   - António OSÓRIO, A Mitologia Fadista, Livros Horizonte, Lisboa, 1974.

- Nuno SALDANHA (2010), op. cit.,p. 322.

103

- IDEM, Ibidem, p. 322.

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cepção crítica no exterior, não sendo por acaso que se destinou ao público argentino em primeiro lugar, e que circulou por diversas mostras estrangeiras quase durante uma década.105 Como vimos, o mercado e o público estrangeiro, designadamente os públicos ibero-americanos mostravam, naturalmente, maior apetência para este tipo de representações e a versão de 1909 – pela iluminação, pelo cromatismo mais aberto, pelo maior destaque dado ao leque e, sobretudo pela figura de Adelaide – coberta de lacinhos e de tatuagens – onde Nuno Saldanha apontou uma eventual alusão a uma das variantes do tango intitulada tatuage - poderia adaptar-se mais facilmente àquele mercado. Aqui residirá, porventura, o motivo pelo qual existiu um período de sete anos entre a conclusão da obra e a sua primeira exposição em Lisboa. Por outro lado, a revolução republicana de Outubro de 1910 e os conturbados meses que se lhe seguiram poderão ter desencadeado no artista algum receio de eventuais interpretações políticas. Sabemos que na implantação da República e até cerca de 1914, inúmeros repertórios cantados no Fado propagaram o ideal republicano e progressista106 e certo é que em 1917, após a aquisição da obra pela Câmara Municipal, uma das críticas, como vimos, indicava esta aquisição como um sinal dos novos tempos e da nova moral republicana107 Mais de um século corrido sobre a conclusão da obra, O Fado, continua a ser alvo de apropriações diversificadas pelas artes plásticas portuguesas, que assim perpetuam a sua inscrição num conjunto de provocações risíveis. Com efeito, a paródia em torno do quadro de Malhoa tem-se assumido, na arte portuguesa, como um ritual de rememoriações em cadeia,108 iniciado pelo traço humorístico da época e com continuidade até aos nossos dias. A partir de O Fado de Malhoa se inspiraram renovadas criações artísticas, na caricatura, na pintura, no teatro e no cinema ou mesmo nos repertórios   - Como verificou Nuno Saldanha, cerca de 70% das exposições da obra O Fado até à sua aquisição pela Câmara Municipal de Lisboa em 1917, são no exterior. Nuno SALDANHA (2010) op. cit. p. 324. 105

- Veja-se sobre este tema, o fundamental livro de Rui Vieira NERY, Fados para a República, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda Museu do Fado, 2012. 106

107

- O Dia, 3 de Maio de 1917.

- Raquel Henriques da SILVA, in João Vieira, Fado Portuguez, Catálogo da Exposição, Galeria Valbom, 2005, p. 5. 108

fadistas. Neste sentido, parece ténue a fronteira entre o destino de O Fado de Malhoa e o próprio destino da canção urbana. De facto, os seus contextos de recepção parecem coincidir, tal como os públicos, sociologicamente considerados, que neles se reconheciam. De facto, se a atitude dos públicos de Malhoa se dividia entre a tranquila redenção de uma ortodoxia pictórica e a sua recusa - ao reconhecer nesta pintura a perpetuação de um gosto naturalista que coarctava qualquer afirmação de modernidade -também os públicos do fado se dividiram, entre a apologia frenética e o aviltamento crítico face a uma mitologia que se dimensionara a partir do século XIX e que O Fado de Malhoa sintetizava. Muitos houve, entusiastas da restante obra do artista, que não aceitaram esta sua incursão num domínio que uma certa moral burguesa preferia ignorar.109 Curiosamente numa conferência proferida na Sociedade Nacional de Belas Artes, a propósito de Malhoa e o Grupo do Leão, um dos mais paradigmáticos representantes do modernismo em Portugal, José de Almada Negreiros, haveria de referir-se a ele com reverência: Ele tem de pintar por toda a gente! Ele tem de dizer a pintar o que não sabem dizer aqueles que ele pinta! Já não é só de pintura que se trata (...) É uma linguagem que existe dentro daqueles que não sabem dizê-las! Talvez que a isso se chame arte. Mas porque não teriam pensado nisto há mais tempo? (...) Malhoa é o conspirador da Grande Conspiração para pôr a Arte a servir, a servir quem deve, a servir os vivos. (...) Por cima da pintura de Malhoa, por cima da sua própria vida de homem, o destino escolheu-o para meter mãos à obra de ligar outros destinos desencontrados da vida e da Arte. O seu caso na vida portuguesa e na Arte ultrapassa os factos e entra na verdadeira Poesia da História.110 De facto, a consagração de O Fado sucedeu mais eficazmente no universo de admiradores da canção urbana e não tardaríamos a encontrar reproduções da obra na imprensa consagrada ao universo fadista, que vem a lume a partir de 1910, citações na caricatura de imprensa, integrando as decorações de recintos profissionais, ou mesmo inspirando repertórios fadistas como o célebre Fado Malhoa, em 1947, para a série de curtas-metragens que Amália Rodrigues protagonizou com realização de Augusto Fraga.   - Sara PEREIRA, Ecos do Fado na Arte Portuguesa, Seculos XIXXXI, Lisboa, Egeac/Museu do Fado, p. 44. 109

- Almada NEGREIROS, Malhoa e o Grupo do Leão, Letras e Artes, 20 de Julho de 1941.

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O Fado, 1909 José Malhoa Óleo s/ tela 86 x 107 cm Colecção Particular

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O Fado, 1910

José Malhoa Óleo s/ tela 151 x 186 cm Depósito Colecção Museu de Lisboa

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NO PEITO DE UM MARINHEIRO QUE ESTANDO TRISTE, CANTAVA: CONSTANTINO FERNANDES E A IMAGÉTICA DA MELANCOLIA E DA SAUDADE

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O Marinheiro, 1913 Constantino Fernandes Óleo s/ tela 146 x 145 cm (painel central) 146 x 84 cm (painéis laterais) Colecção MNAC - Museu do Chiado (DGPC/ADF)

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Estudo para O Marinheiro, s/d

Constantino Fernandes Carvão s/ papel 59 x 39 cm Colecção particular

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Filho de Eduardo José Fernandes e Emília Domingos Sobral Fernandes, Constantino Álvaro Sobral Fernandes (1878- 1920) nasceu a 29 de Setembro de 1878 no nº 94 da Rua das Trinas, freguesia da Lapa. Seu pai manifestara em jovem o gosto pelas artes chegando a matricular-se na Academia que teria de abandonar mais tarde, para se empregar no comércio onde colhia mais imediato sustento. Esta mesma paixão pelas artes do desenho e da pintura terá sido seguramente passada a seu filho, Constantino, que, aos 14 anos de idade se matriculava na Escola de Belas Artes de Lisboa, onde seria aluno laureado de Simões de Almeida, no desenho, e de Veloso Salgado na pintura. Em 1897, com apenas 19 anos de idade, Constantino Fernandes expunha o primeiro trabalho na Exposição Anual do Grémio Artístico - obtendo Menção Honrosa com o retrato do pintor e cenógrafo algarvio Joaquim António Viegas - e, em 1901 participava na primeira exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, nascida da fusão do Grémio Artístico com a antiga Sociedade Promotora de Belas Artes. Laureado desde muito jovem, em 1898 obtinha a medalha de terceira classe no Grémio Artístico. Expondo no Salon, em Madrid e no Rio de Janeiro, a sua célebre tela, Abandonadas, valer-lhe-ia a primeira medalha em 1909. Angariando inúmeros prémios e distinções ao longo da vida, o reconhecimento de Constantino Fernandes adivinhava-se logo ao tempo da frequência do Curso Geral de Belas Artes, nas aulas de Desenho Antigo e de Modelo Vivo com Simões de Almeida, tal como testemunhava Lyster Franco: a breve trecho, aprendido o manejo do esfumilho e as graduações subtis do claro-escuro, Constantino começou a ouvir do Mestre as mais elogiosas referências, os mais calorosos elogios (…) Assim terminou brilhantemente o seu Curso Geral. As suas provas foram todas premiadas, iniciando desta forma o ciclo dos seus trunfos artísticos que culminaram através de todo o seu curso de Pintura Histórica em que distintamente se formou.111 Estes primeiros anos de Constantino nas Belas Artes seriam assim relembrados por Veloso Salgado, seu Mestre na disciplina de Pintura: Tendo feito o curso de pintura na minha aula logo conquistou a minha simpatia, pois ao mesmo tempo que as suas faculdades de artista se iam revelando de maneira pouco vulgar, manifestava já a bondade, perseverança e seriedade que sempre o caracterizaram e que nunca desmentiu.112 Em 1902, aproveitando a abertura de concurso na Escola de Belas Artes do Porto para bolsas de estudo em Paris, Constantino Fernandes daria início a uma estadia de três anos naquela capital, colhendo ensinamentos artísticos de Marcel Baschet (1862-1941), 111   - Lyster FRANCO O Pintor Constantino Fernandes, ed. Correio do Sul, Faro, 1950, p. 85.

- AAVV. Exposição Retrospectiva das Obras de Constantino Fernandes, Sociedade Nacional de Belas Artes, 1950, p. 4.

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François Schommer (1850-1935), Jean-Paul Laurens (1838-1921) e Fernand Cormon (1845-1924). De Paris partia para Roma, em 1905, dali iniciando um périplo pelas cidades de Nápoles, Veneza, Milão e Florença, seguindo mais tarde para a Bélgica, Holanda e Espanha, onde complementou a sua educação artística. Nos grandes museus europeus praticou réplicas das festejadas pinturas de Rafael, Rubens ou Velasquez, que trouxe consigo. Da aprendizagem no estrangeiro trazia, no seu regresso a Portugal em 1908, uma sólida educação artística, os dotes de habilíssimo desenhador, total domínio na aplicação da paleta cromática e grande acuidade no tratamento de luz e sombra, capacidades que haveriam de conferir rigorosa e consistente objetividade à sua obra plástica, cuja fortuna crítica permanece ainda hoje por cumprir. Dotado de elevada segurança técnica, profundo estudioso dos temas que plasticamente recriava, Constantino Fernandes destacou-se também no domínio da pintura histórica, nos temas de arquitectura e sobretudo no retrato, exercendo também a actividade de gravador - em especial a água-forte – e executando algumas decorações para os palácios do Marquês de Vale-Flor e de Henrique de Mendonça. Notável artista plástico, Constantino Fernandes revelar-se-ia ainda como um diletante da ciência, apaixonado pelos domínios da física e da mecânica, da óptica ou da engenharia naval, entusiasmo presente nos inúmeros trabalhos desenvolvido de caracter experimental. O interesse pelos domínios da ciência e a cuidada observação do real espelhar-se-iam na sua obra plástica, onde avulta uma notável galeria de retratos de execução magistral, com modelos copiados do natural, traduzindo o estudo cuidado de panejamentos, anatomia humana, dispositivos, instrumentos e equipamentos de natureza diversificada, sempre com grande exactidão de aplicação cromática. Também o pintor Alves Cardoso (1883-1930) que, com Constantino, estudara no atelier de Laurens (1838-1921) e Cormon (1845-1924), reiterava as qualidades da apurada investigação desenvolvida pelo amigo no contexto de execução de cada obra: Os seus quadros eram estudados profundissimamente, antes e durante a sua execução, tanto na parte técnica como nos assuntos que pensava: o seu desenho era rigoroso e meticulosamente observado e a sua pincelada calculada a primor e depois colocada com infalível certeza. E tudo isto, que é colossal, era exteriorizado com uma simplicidade e com uma ingenuidade que desconcertavam ou faziam acreditar aos ingénuos e aos ignorantes numa facilidade que não existe em arte.113 113   - Alves CARDOSO in AAVV. Exposição Retrospectiva das Obras de Constantino Fernandes, Sociedade Nacional de Belas Artes, 1950.

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Marujo, 1846 E. J. Maia Tinta-da-china e aguarela s/ papel 32 x 22,7 cm Colecção Museu de Lisboa

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Em Abandonadas,114 como na mais tardia Melancolia, de 1916, plasmavam-se os atributos do realismo de Constantino, assente num profundo conhecimento da expressão humana. No vasto legado de retratos de senhora fixou um universo imagético onde sobressaem a graça e a fragilidade das figuras, sempre subtilmente analisadas e registadas na sua naturalidade, sem artifícios ou requintes rebuscados. Assinalando com exactidão a fisionomia do modelo, Constantino fixava um retrato psicológico da figura, entretecido através de uma constante sobriedade de cor que por vezes se ilumina, como no retrato de Mulher Espanhola. Neste singelo retrato a pastel, Constantino convoca a cultura visual ibero-americana, flagrante no colorido Mantoon que a retratada exibe, nos enfeites de cabelo relembrando algumas representações da prodigiosa Severa, num contexto onde inevitavelmente adivinhamos a narrativa centrada no fascínio da execução musical.115 A maioria dos seus retratos seria, porém, predominantemente austera, impregnada de um vago ascetismo, fixando a melancolia da Lisboa popular de que foi exímio intérprete. Não obstante o consensual reconhecimento que as homenagens de 1921 e 1950 plasmavam, certo é que permanece por cumprir um recenseamento exaustivo da obra plástica de Constantino Fernandes. Três anos corridos sobre a conclusão da obra de Malhoa, Constantino consolidava o universo imagético do Fado no tríptico O Marinheiro, um dos expoentes da representação do tema nas artes plásticas nacionais. O Marinheiro valer-lhe-ia a medalha de honra na 10ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes em 1913, sendo então adquirido pela comissão executiva do conselho de arte e arqueologia para o museu d’arte moderna (verba do legado Valmor) pela quantia de 2.100$00.116 Exposição muito noticiada à época, como das melhores que se tem realizado em Lisboa a obra de Constantino destacava-se, de entre o acervo em exposição, como um tríptico de valor117 sendo ainda assinalado pela crítica como um dos melhores trabalhos que figura na exposição.118 114   - Constantino Fernandes, Abandonadas, 1909, óleo sobre tela, 167 x 177,5 cm. Restaurada em 2008. Colecção Casa dos Patudos em Alpiarça. 115   - Constantino Fernandes, Mulher Espanhola, 1902, Pastel sobre cartão, 39, 5 x 19,5 cm, p.d. Assinado com dedicatória: Ao seu bom primo Alfredo Mendes off. Constantino/20/04/1902 reproduzido em Berta DUARTE e Joana BARATA Um percurso pela pintura portuguesa colecção Telo de Morais catálogo da exposição patente no Museu de Grão Vasco de 3 de Novembro de 2011 a 15 de Janeiro de 2012, Porto, Instituto dos Museus e da Conservação, 2012, p.39.

-Diário de Notícias, 16 de Maio de 1913.

116

-Diário de Notícias 15 de Maio de 1913.

117

-Diário de Notícias, 18 de Maio de 1913.

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Neste tríptico Constantino Fernandes fixou três momentos da vida no mar: um trecho do navio em plena viagem, uma cena de partida ou chegada que nos é afectivamente sugerida, e um momento de acostagem do navio num porto distante, onde um marinheiro vergado pela saudade avivada pela carta que acaba de receber, masca o seu cachimbo enquanto escuta a toada da guitarra portuguesa. Composição de sólida urdidura119 é como que cinematográfica a implantação das figuras na tela.120 De facto e como bem observou Raquel Henriques da Silva trata-se de um discurso de narratividade sincopada sem articulação directa em termos de discursividade.121A partida ou chegada é-nos afectivamente sugerida, e o momento de lazer dos marinheiros vive autonomamente, assim como o desenrolar da vela, objectivamente documentado na cena da esquerda. A profunda investigação a que se submetia Constantino na génese do processo criativo plasmava-se também no tríptico O Marinheiro, tal como sublinhou Costa Metello: Cada vez que abordava um assunto, para lhe dar estrutura, cor e forma, estudava-o de tal arte, entrava tanto no seu âmago, que fazia a admiração dos homens de métier. Ao pintar o tríptico O Marinheiro que está no Museu de Arte Contemporânea, meteu-se tão dentro da profissão, que conhecia como poucos marinheiros, toda a técnica náutica, armação, velame, mastreação, cabos, dos veleiros mais complicados.122 Na notável composição do tríptico Constantino fez destacar as figuras sobre o emaranhado de mastros, velas, cordas e cabos náuticos, impressionando o grande rigor no desenho anatómico, na minúcia descritiva do equipamento naval, na figuração da guitarra portuguesa, no realismo dos semblantes e anatomias ou na gradação suave dos panejamentos. Há notícia de vários estudos a carvão para O Marinheiro, entre elas o esboço para o quadro central - no catálogo de um Leilão do Palácio do Correio Velho123 - e três outros estudos publicados no catálogo da exposição organizada pela Sociedade Nacional de Belas Artes em 1950. 124 Convocando o mito da origem marítima do Fado que Tinop defendera nos alvores do século XX e José Régio fixaria no célebre Fado   - Raquel Henriques da SILVA, Arte Portuguesa do Século XIX, Lisboa, MNAC, p. 132

119

- IDEM, ibidem.

120

- IDEM, ibidem.

121

- Costa METELLO, Exposição Retrospectiva das Obras de Constantino Fernandes, Sociedade Nacional de Belas Artes, 1950. 122

123   - Palácio do Correio Velho, Leilão de Antiguidades, Lisboa, Junho de 2008, p. 154. Muito agradecemos ao arquitecto Miguel Costa a informação sobre a existência deste esquiço. 124  - Exposição Retrospectiva das Obras de Constantino Fernandes, Sociedade Nacional de Belas Artes, 1950

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Marinheiro tocando guitarra, 1923

José de Almada Negreiros Lápis s/ papel 32,5 x 25 cm Colecção particular

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Português,125 também O Marinheiro, de Constantino Fernandes, pela inevitável citação da saudade e da melancolia que a partida ou o reencontro sugerem como pela figura do guitarrista constitui notável citação do género no contexto das artes plásticas nacionais. Uma outra aproximação ao Fado deixou Constantino na sanguínea da mais aclamada fadista do seu tempo, essa pobre rapariga com alma de guitarra, que foi a comovente Maria Vitória.126 Obra de paradeiro desconhecido, alguns autores viram naquele retrato o testemunho de que o fado, a nossa sentimental e típica melopeia encontrou no seu melancolismo um fervente admirador (…) Em tempos a Maria Vitória mereceu-lhe especial e desinteressada atenção e tantos encantos lhe achou que fez uma interessante sanguínea daquela cabeça de chula, com o trejeito especial de boca, marcando o rictus brejeiro com que sublinhava lascivamente fados gingões127 Tema caro da iconografia fadista, profusamente ilustrados nos repertórios poéticos desde o século XIX à actualidade e sucessivamente evocado e reinterpretado nas artes plásticas nacionais por artistas como Joubert, E. J. Maia, Constantino Fernandes, Almada Negreiros ou Júlio Pomar, seria, no domínio da poesia, José Régio a cristalizar a mítica origem do Fado Português: O fado nasceu um dia|Quando o vento mal bulia|E o céu o mar prolongava|Na amurada dum veleiro|No peito dum marinheiro|Que estando triste cantava.128 Na mitologia da canção urbana, o mar figura como o tema mais festejado nos repertórios poéticos e nas imagens do género, assim preconizado por Tinop, autor da seminal História do Fado de 1903: Para nós o fado tem uma origem marítima, origem que se vislumbra no seu ritmo onduloso como os movimentos cadenciados da vaga, balanceante como o jogar de bombordo a estibordo nos navios (…) O fado nasceu a bordo, aos ritmos infindos do mar, nas convulsões dessa alma do mundo, na embriaguez murmurante dessa eternidade de água.129 125   - Gravado por Amália Rodrigues Amália em 1965, com música de Alain Oulman: O Fado nasceu num dia/Em que o vento mal bulia/ E o céu o mar prolongava/ Na amurada de um veleiro/ No peito de um marinheiro/ Que estando triste cantava.

- Manoel de Sousa PINTO, op. cit., p. 11

126

- Costa METELLO in AAVV. Constantino Fernandes: in Memoriam: 1878-1920, Lisboa, B.N., 1925 127

128   - Letra de José Régio, música de Alain Oulman, interpretado por Amália Rodrigues. 129   - Pinto de CARVALHO, (Tinop) História do Fado, (1ª edição 1903) Col. Portugal de Perto, Lisboa, Publicações D. Quixote, 1994, p. 42.

Como alegoria com estatutos de fundação do género ou simplesmente como referência inelutável de uma vocação atlântica, expressão paradigmática da tradição histórica de um povo que se aventurou, durante séculos, na imensidão gigantesca do oceano, o mar e a parafernália de temas que lhe são inerentes assumem um lugar central nos discursos poéticos de representação do Fado, bem como na sua imagética. Cantando a viagem marítima, os repertórios poéticos fadistas cantam a esperança e a ansiedade de marujos, os naufrágios, a tragédia do pescador, a barca que não regressou, o desejo de viagem e de mundo, a saudade dos que para trás ficaram na praia das lágrimas e dos que partem, entre inúmeras outras modulações do tema. Esta tradição literária, popular e erudita, relacionada com o afastamento suscitado pela viagem marítima confere centralidade à presença do mar nos repertórios de Fado, entroncando numa filiação cultural que sucessivamente evoca a distância, o sofrimento, a perda, a ausência, o esquecimento ou a saudade, que ecoam nos Lusíadas como no Mar salgado de Pessoa. Metamorfoseando-se ao longo da História, a identidade de Portugal parece ter preservado a essência do País-Saudade, o Portugal-Saudade que não tem outro destino que o da busca de si mesmo, com passado glorioso mas eternamente buscando um seu destino messiânico ou, na expressão de Eduardo Lourenço, Portugal como destino. Porque quando nada resta de nada, fica ainda o tudo desse nada. É isto que vivemos como saudade, unindo numa só intuição as visões, no fundo semelhantes, dos nossos maiores poetas, de Camões a Garrett, de Pascoais a Pessoa. Mas talvez só a música impregnada do peso e da lembrança do tempo (…) confira a um sentimento que julgamos único a sua real e indizível universalidade.130 130   - Eduardo LOURENÇO, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade, (1ª edição 1999) Lisboa, Gradiva, 2001, p.117.

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ENTRE A CUMPLICIDADE E A CRÍTICA: O MODERNISMO E O FADO

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S/ Título, 1928

José de Almada Negreiros Lápis s/ papel 62,5 x 40,5 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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A Arte não vive sem a Pátria do artista, aprendi eu isto para sempre no estrangeiro Almada Negreiros, 1926 131

O contexto artístico europeu dos alvores do século XX constituiu um momento de reflexão e sondagem, a um tempo lúcida e inquieta, pelo aparecimento de vanguardas estéticas que se manifestaram por impulsos de ruptura face às perspectivas académicas institucionais. Promovendo-se uma dinâmica de autonomia crescente da arte pelo exercício individual das energias criadoras, presidiram a estes novos movimentos os valores associados a uma ética de experimentalismo formal e plástico, numa aventura heurística de redescoberta do mundo através de uma renovada linguagem estética. A geografia destas vanguardas artísticas organizou-se a partir de Paris, cidade onde se ensaiavam as grandes linhas de reflexão no domínio da criação e dos critérios subjacentes à recepção crítica da obra de arte. Em 1911, a guitarra portuguesa figurava numa das obras de um dos pioneiros do cubismo, Georges Braque. Atentando numa fotografia do seu estúdio132 publicada por Anne Gantefuhrer-Trier, podemos observar uma guitarra portuguesa com cravelhame em madeira fixada na parede, ladeando um violino e outros objectos. Efectivamente, o artista trouxera já à tela a temática dos instrumentos musicais dentro do figurino cubista133 e na senda de Picasso134. Porém, em O Português, de Braque, o instrumento concorre aparentemente para a identidade do protagonista, reiterada no título: O Português. Atestando a consagração do Fado como referencial identitário de Portugal, esta obra remete-nos para o estatuto de ícone pátrio que a guitarra vinha ganhando. Em Portugal, os ecos do modernismo eram então timidamente introduzidos pela geração congregada em torno da revista Orpheu (1915) que integrava as figuras de Almada Negreiros (1893-1970), Fernando Pessoa (1988-1935), Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), Santa-Rita (1889-1918) e Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918). Em Lisboa, ainda em 1928, a cristalização do imagético de oitocentos, constituía um receituário de fácil digestão pelo grande público. Com efeito, a vida artística oficiosa não ofereceu, ao longo da década de 20, hipótese de permeabilidade aos novos modernistas,   - Almada NEGREIROS, Conferência de encerramento do II Salão do Outono na Sociedade nacional de Belas Artes, Novembro de 1926.

131

- Fotografia a preto e branco, s/d, Paris, Arquivos Charmet publicada em Cubismo, Anne Gantefuhrer-Trier, Taschen, 2004. 132

- Vejam-se, a título de exemplo, Instrumentos Musicais, 1908 ou Jarro e violino, 1910.

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134

- O Guitarrista, 1910 e Menina com Bandolim 1910.

anões modernos aos ombros de gigantes antigos135aos quais cerravam portas o Museu de Arte Contemporânea – então dirigido por Columbano – e a Sociedade Nacional de Belas Artes – que, em 1921, excluía Eduardo Viana do Salão. Face às restrições do mercado, restava a criação de espaços de exposição alternativos,136 como A Brasileira – que a partir de 1925 expunha alguns trabalhos de Viana, Almada, Bernardo Marques, António Soares, Jorge Barradas e Stuart de Carvalhais – ou o Bristol-Club que, no ano seguinte, adquiria obras de Almada, Viana, Stuart, Soares e Barradas. A geração de criadores que introduziram o modernismo em Portugal, na década de 10 do séc. XX, caracterizou-se, nas palavras de Rui Mário Gonçalves, por várias atitudes automarginalizantes, entre as quais podemos salientar duas: a obsessão pela originalidade e a passagem do humor fútil aos actos provocatórios futuristas.137 Figura central desta geração, Almada Negreiros (1893-1970), preconizou o ideário do modernismo português nos domínios da literatura, das artes visuais, da dança e do teatro. Convivendo assiduamente com Santa-Rita138 - que se proclamava encarregado pessoalmente por Marinetti de difundir em Portugal os manifestos do futurismo – ambos alargariam o espectro das revistas Orpheu (1915) e Portugal Futurista (1917) a outros domínios artísticos, para além do campo das letras. No restrito círculo intelectual, artístico e bóemio da Baixa lisboeta, haveriam de se cruzar artistas e escritores em busca de renovados voos estéticos. Almada Negreiros haveria de encontrar Fernando pessoa, crítico da sua primeira exposição individual, escritor e poeta que vinha rompendo com as convenções literárias em voga desdobrando-se em múltiplos heterónimos, ou o seu amigo Mário de Sá-Carneiro, radicado em Paris, também em busca do novo. Com as ameaças deflagradas pela Grande Guerra chegavam também a Lisboa Amadeo de Souza-Cardoso, já desenvolvendo forte ofensiva pictórica,139 Guilherme Santa-Rita, promovendo um espírito de ruptura, Eduardo Viana, que trazia influências de Cézanne e de Picasso e José Pacheko com múltiplas intervenções em iniciativas modernistas. 135   - Retomando a expressão de Matei CALINESCU, em Five Faces of Modernity, Duke University Press, 1977. 136   - Raquel Henriques da SILVA, Sinais de Ruptura, Livres e Humoristas in “História da Arte Portuguesa”, dir. Paulo Pereira, Vol. III, Círculo de Leitores, 1995. 137   - Rui Mário GONÇALVES, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

- Em consequência da guerra de 1914-1918.

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139   - Joaquim VIEIRA, Almada Negreiros, Fotobiografias do Século XX, Colecção Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, p. 47.

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Marcha Nocturna, 1934

José de José de Almada Negreiros Tinta-da-china s/ papel 24,7 x 18,3 cm Colecção Museu de Lisboa

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Marcha Nocturna, 1934

José de José de Almada Negreiros Tinta-da-china s/ papel 24,7 x 18,3 cm Colecção Museu de Lisboa


A concentração em Portugal deste grupo, que não se revia nas publicações tradicionais, teria estimulado a edição de uma nova revista artístico-literária diferente, de nome Orpheu, talvez inspirado pelo termo Órfico aplicado pouco antes por Apollinaire à pintura proto-cubista do francês Robert Delaunay refugiado em Portugal com sua mulher, Sonia. Em 1915 o nome do Português sem Mestre140 aparece associado à polémica com o consagrado escritor Júlio Dantas (1876-1962) médico, dramaturgo, cronista, poeta, figura central da vida literária e cultural do seu tempo – autor, nomeadamente, de A Severa (1901) consagrada à saga mítica da cantadeira meretriz - nome ligado ao aparelho do poder antes e depois do 5 de Outubro, respeitado pela burguesia e a grande imprensa, reconhecido oficialmente, e, como tal, personificando tudo o que os modernistas combatiam.141 Diz-nos Rui Mário Gonçalves que o segundo número da revista Orpheu provocou as reacções mais diversas: Um jornalista interrogou três médicos para que se pronunciassem sobre a sanidade mental dos colaboradores da revista.142 Júlio Dantas sublinhou, em crónica na imprensa, a extravagância e a incoerência de algumas, senão de todas as composições suspeitando da alienação mental que pesa sobre os seus autores, loucos perigosos de encerrar – como afirmará mais tarde em resposta a um inquérito jornalístico – e classificando de loucos quem os lê, quem os discute e quem os compra.143 Almada contra-atacou violentamente, redigindo o fulgurante Manifesto Anti-Dantas com veemência verbal pontuada pela frase imperativa: Morra o Dantas, morra! Pim! (….) Basta pum basta!!! Uma geração que consente deixar – se representar por um Dantas é uma geração que nunca o foi. É um coio d’indigentes, d’indignos e de cegos! É uma resma de charlatães e de vendidos, e só pode parir abaixo de zero! Abaixo a geração! Morra o Dantas, morra! Pim! Uma geração com um Dantas a cavalo é um burro impotente!   - Retomando a expressão de José Augusto FRANÇA, Amadeo de Souza Cardoso, o português à força & Almada Negreiros, o português sem mestre, Venda Nova, Bertrand, 1986. 140

- Joaquim VIEIRA, Almada Negreiros, Fotobiografias do Século XX, Colecção Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, p. 48. 141

- Rui Mário GONÇALVES, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.5.

Uma geração com um Dantas ao leme é uma canoa em seco! O Dantas é um cigano! (…) O Dantas é a vergonha da intelectualidade portugueza! O Dantas é a meta da decadência mental! (...) E há ainda quem lhe estenda a mão! E quem tenha dó do Dantas! Morra o Dantas! Morra! Pim! (…) Camões mudada em Praça Dr. Júlio Dantas, e com festas da cidade p’los aniversários, e sabonetes em conta “Júlio Dantas” e pasta Dantas prós dentes, e graxa Dantas prás botas e Niveína Dantas, e comprimidos Dantas, e autoclismos Dantas e Dantas, Dantas, Dantas, Dantas... E limonadas Dantas Magnésia. E fique sabendo o Dantas que se um dia houver justiça em Portugal todo o mundo saberá que o autor de Os Lusíadas é o Dantas que num rasgo memorável de modéstia só consentiu a glória do seu pseudónimo Camões. E fique sabendo o Dantas que se todos fossem como eu, haveria tais munições de manguitos que levariam dois séculos a gastar. (…) Portugal inteiro há-de abrir os olhos um dia se é que a sua cegueira não é incurável e então gritará comigo, a meu lado, a necessidade que Portugal tem de ser qualquer coisa de asseado! Morra o Dantas, morra! Pim!144 Visando ruidosamente a estagnação da cultura portuguesa, o Manifesto Anti-Dantas centrava-se numa das figuras mais proeminentes na vida cultural do seu tempo, e, curiosamente, um dos mais mediáticos cultores da canção urbana que, logo em 1901, redigira a peça teatral A Severa - festejada na grande tela em 1931,com o primeiro filme sonoro português, dirigido por Leitão de Barros – instrumento fundamental no processo de legitimação do Fado, com um lugar central na construção da mitologia da cantadeira e na folclorização do género enquanto canção nacional. Embora centrado na figura de Júlio Dantas não escapavam no Manifesto, os nomes de outros cultores do Fado como Bento Mântua, autor da peça O Fado Episódio em 1 Acto, Alberto de Sousa – a quem Almada apelida o Dantas do desenho e que consolidaria a imagética de Maria Severa, ou Júlio de Sousa Costa que publicaria, em 1936, uma obra consagrada à memória da mítica cantadeira. Lido ao grupo modernista no Café Martinho, ao Rossio,145 o Manifesto seria impresso em 1916, acabando o visado por adquirir boa parte da edição, na tentativa de impedir a sua circulação. Visando a estagnação cultural do país, o Manifesto Anti-Dantas ilustrava, ain-

142

- Apud. Joaquim VIEIRA, Almada Negreiros, Fotobiografias do Século XX, Colecção Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, p. 48.

143

144   - “Manifesto Anti- Dantas e por extenso por José de Almada Negreiros, poeta d’Orpheu futurista e tudo” in José de Almada NEGREIROS, Manifestos e Conferências, Lisboa, Assírio e Alvim, 2006, pp. 9-16 145   - Joaquim VIEIRA, Almada Negreiros, Fotobiografias do Século XX, Colecção Temas e Debates, Círculo de Leitores, Lisboa, 2010, p. 55.

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Pintura, c. 1917

Amadeo de Souza-Cardoso Óleo s/ tela 93,5 x 93,5 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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K4 Quadrado Azul, 1916

Eduardo Viana Óleo s/ tela 47,5 x 56 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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Guitarra Minhota, 1943 Eduardo Viana Óleo s/ tela 164 x 124 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de Vítor Branco (DGPC/ADF)

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da que indirectamente, a controvérsia em torno da canção urbana, desde sempre associada, no seio das elites artísticas mais progressistas, a uma atitude generalizada de conformismo e passividade acrítica, motivo pelo qual terá sido sobretudo o sentido alegórico da guitarra a fixá-la nas telas de Eduardo Viana, Amadeo ou do casal Delaunay que ali encontram motivo de inspiração formal. Em K4 Quadrado Azul (1916) Eduardo Viana tomava como título a novela futurista redigida por Almada, prestando tributo às obras modernistas e futuristas de pintores e escritores como Santa-Rita, Amadeo de Souza-Cardoso, Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro. Tratando-se de uma natureza morta realizada dentro do gosto da primeira fase do movimento cubista, também aqui a presença da guitarra e da viola nos remetem para a alegoria da portugalidade que encontramos nas obras de Amadeo de Souza-Cardoso, recorrendo a um elemento central do imagético oficioso, tão criticado por artistas como Viana a quem, ainda na década de 20, eram vedadas as portas da Sociedade Nacional de Belas Artes. Amadeo de Souza-Cardoso, primeiro, depois os Delaunay e Eduardo Viana viram na guitarra motivo de inspiração formal, ícone pátrio, com evidente carga de urbanidade. Terá sido sobretudo este sentido alegórico a promover a guitarra, mais do que propriamente a canção, como imagem na pintura do século XX. Regressado de Paris em consequência da guerra, Amadeo refugiara-se em Manhufe, Amarante e realizaria em Lisboa uma exposição na Liga Naval, entusiasticamente apoiada por novo manifesto de Almada: Amadeo de Souza-Cardoso é a primeira descoberta de Portugal na Europa do séc. XX146 A curta existência de Amadeo de Souza-Cardoso (1887-1918) foi suficientemente rica do ponto de vista criativo para o consagrar como um dos mais importantes artistas portugueses do século XX. Desenvolvendo uma obra recheada de constante experimentação, em parte motivada pela sua ida para Paris em 1906 - onde conviveu com artistas como Modigliani e o casal Sonia e Robert Delaunay, observando de perto as novas tendências que se viviam naquele que era o grande centro artístico europeu – soube integrar, de modo altamente personalizado, os conceitos do cubismo e do expressionismo, como se aliasse a importância da cor para o expressionismo - desenvolvido essencialmente na Alemanha - e o delineamento espacial da forma - predominante no movimento cubista – juntando-os segundo as suas próprias regras.147 Concluídas perto do final da sua vida, as obras Entrada e Pintura recorrem à figuração da guitarra não para evocar necessariamente   - Rui Mário GONÇALVES, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.8. 146

- Rui Mário GONÇALVES, Almada Negreiros, O Menino de Olhos de Gigante, Caminhos da Arte Portuguesa, Lisboa, Caminho, Edimpresa, Lisboa, 2006, p.8. 147

o Fado, mas seguramente aludindo a uma representação simbólica da nacionalidade, em composições de evidente energia criativa. O recurso à guitarra como elemento de inspiração formal será uma constante na obra de Amadeo, simbolicamente evocativa da portugalidade, imagem musical de um país fechado sobre si próprio. Em Pintura (1917) a guitarra chega mesmo a sangrar, face à estagnação cultural em que mergulhara o país. Concluída em 1917, no mesmo ano em que o oficioso Malhoa expunha o Fado na 14ª Exposição da Sociedade Nacional de Belas Artes, a obra Pintura de Amadeo atestava bem a profunda rejeição do modernismo português pela presença tardia, entre nós, do gosto pelo receituário oitocentista, enfim, a reprovação reiterada de um ideário cultural que o Fado integrava e animava, enquanto imagem musical portuguesa. No mesmo ano, Almada apresentava no Teatro República a Conferência Ultimatum Futurista às gerações portuguesas do século XX e publicava a novela K4. O Quadrado Azul. Não obstante, também os modernistas aproveitaram os temas e objectos populares introduzidos no contexto do “reaportuguesamento de Portugal”,148 e mesmo o autor do fulgurante Manifesto Anti-Dantas não deixou de produzir interessantíssimos testemunhos pictóricos de grande carga onírica evocando o universo do Fado e da guitarra portuguesa, quer em alguns desenhos realizados nas estadias em Biarritz, Paris ou Madrid, quer no domínio de uma estética utilitária que serviu a indústria da música e do cinema, onde encontramos interessantes testemunhos em partituras ou cartazes de filmes. De facto, se na obra Fadistas149 sobressai a ironia subjacente ao traço caricatural, nos desenhos Homem tocando Guitarra150 (Biarritz, 1919), Marinheiro tocando Guitarra,151 (Paris, 1923), Marinheiro e Rapariga152 (Madrid, 1928) a representação da guitarra portuguesa faz-se associar à faina marítima, temática que de resto já pontuara, como vimos, as representações oitocentistas de Jorge Bekerster Joubert, E.J. Maia bem como o célebre Marinheiro de Constantino Fernandes. O próprio Almada afirmaria na sua Histoire du Portugal par Coeur em 1919: Tejo, lombada do meu poema aberto em páginas de Sol... 148   - Rui RAMOS,”A Segunda Fundação 1890-1926”, História de Portugal (Direcção de José Mattoso), Vol. VI, Círculo de Leitores, 1994, pp. 574 e seguintes. 149   - José de Almada Negreiros, Fadistas, s/d, lápis, 40,5 x 62, 5 cm, colecção particular; 150   - José de Almada Negreiros, Homem Tocando Guitarra, Biarritz, 1919, lápis s/ papel 36 x 26 cm, colecção particular; 151   - José de Almada Negreiros, Marinheiro Tocando Guitarra, 1923, lápis s/ papel 32,5 x 25 cm, colecção particular 152   - José de Almada Negreiros, Marinheiro e Rapariga, 1928, lápis s/ papel, 62, 5 x 40,5 cm, Colecção Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão/Fundação Calouste Gulbenkian

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Varina, 1946 José de Almada Negreiros Lápis s/ papel 69 x 46 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado (DGPC/ADF) Fotografia de Arnaldo Soares (DGPC/ADF)

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Portugal é o último coração europeu antes do Mar. Nós temos todos os rios de que tínhamos necessidade. O Tejo é o maior; nasce em Espanha, como outros, mas não quis ficar lá (...) Nós também temos varinas que vão pelas ruas como barcos sobre o Mar. Têm o gosto do sal. Nas canastras transportam o Mar. Nos vários desenhos onde evocou o Fado e a guitarra portuguesa, a pena de Almada parece evoluir, transmutando-se em função da intenção do autor, oscilando entre a economia do traço de Homem Tocando Guitarra (1919) e Marinheiro Tocando Guitarra (1923), a intenção caricatural vincada em Fadistas (s/d) ou a apurada técnica de claro-escuro - característica dos desenhos de Madrid - em Marinheiro e Rapariga (1928) criando formas através de jogos de luz e sombra. Num outro conjunto de trabalhos, os desenhos Marcha Nocturna I e Marcha Nocturna II153, o imaginário do fado reincidirá na obra de Almada, desta feita intrinsecamente ligado à festa urbana de Lisboa. Consistindo na primeira encomenda recebida após o seu casamento com Sara Afonso, Almada aceitá-la-ia de imediato, concebendo um conjunto de 23 desenhos para ilustração do Programa das Festas da Cidade de 1934. Respondendo ao repto da Câmara Municipal de Lisboa, Almada fazia figurar a guitarra portuguesa em três dos desenhos. No primeiro conjunto intitulado Marcha Nocturna, o grupo de seis pares de marchantes envergando trajes festivos, seguram arcos enfeitados por guitarras portuguesas e num segundo,154 reproduzindo um bailarico popular num pequeno coreto, a guitarra portuguesa integra a formação musical do conjunto. A sua ligação ao grafismo publicitário avolumar-se-ia na década de 1930, época em que se multiplicam as encomendas de natureza oficial ou oficiosa, de carácter festivo, comemorativo ou histórico. Variando o estilo, Almada aplicaria diferentes registos a diferentes mensagens, com a preocupação em introduzir elementos modernistas como denominador comum. Essa preocupação é corroborada nos sugestivos cartazes retratando Vasco Santana ou Beatriz Costa que realizou para o filme Canção de Lisboa (1933) de Cottineli Telmo, a primeira longa-metragem sonora inteiramente realizada em Portugal. Também aqui a síntese plasmada na economia de traço, a par da exuberância da cor conferiam vincado carácter de modernidade à campanha publicitária idealizada por Almada. A presença da guitarra no ambiente boémio do atelier, parece ter tido alguma constância nas primeiras décadas do século XX, como

o atesta a surpreendente Peccata Nostra (1920),155de José Malhoa, onde a guitarra portuguesa pontua uma composição luxuriante de cor. Temática pouco comum na produção do artista, a figuração do nú feminino não deixou de o cativar, fosse através de modelo, fosse pela influência de outras obras, como é o caso da célebre fotografia de Louis Bonnard, Retrato de Rapariga (1881) que, inspirando o óleo, homónimo, de Charles Chaplin, (1882) influenciaria depois artistas portugueses como Sousa Pinto, Ventura Machado ou mesmo Emília dos Santos Braga, discípula de Malhoa. Também o facto de Emília dos Santos Braga se dedicar a esta temática poderá porventura ter influenciado o pintor nas suas pontuais incursões pelo mesmo. Em Peccatta Nostra Malhoa retrata Deborah Paiva, a modelo que mais considerava, segundo o próprio pintor, e que também posou para dois outros quadros do pintor, À Beira Mar/Praia das Maçãs e Rainha Dona Leonor.156 Bebendo inspiração formal ao Descanso do Modelo (1919), de Francisco Santos, exposto nesse mesmo ano na Sociedade Nacional de Belas Artes, Malhoa recria a composição tradicional pelo recurso a um modelo vivo, de sensualidade provocante e deixando-se naturalmente contaminar pela pintura de género. Em Peccata Nostra, a sensualidade provocante do modelo - bem distinta dos cânones tradicionais, com a habitual pose de estúdio presente em variadíssimos Descansos de Modelo de artistas distintos - o cromatismo intenso da composição e o tratamento lumínico sobre o desenho anatómico da figura, convocam globalmente os sentidos do observador. Aqui a discreta presença da guitarra portuguesa e do xaile como que transfiguram Deborah Paiva numa “Adelaide em versão classe média”,157como bem salientou Nuno Saldanha. Constituindo-se como o mais célebre trabalho de Malhoa consagrado à temática do nu feminino - para além do constante de A Ilha   - José Malhoa, Pecatta Nostra, 1920, pastel, 39 x 60 cm, Embaixada do Brasil, Lisboa. 155

153

- José de Almada Negreiros, Marcha Nocturna I, tinta-da-china sobre papel, 24 x 18 cm, e Marcha Nocturna II, tinta-da-china sobre papel 23 x 17, 1934, Colecção Museu da Cidade, CM

156

- Reproduzido em Joaquim VIEIRA, Almada Negreiros, Fotobiografias do Século XX, Lisboa, Colecção Temas e Debates, Círculo de Leitores, 2010, p.144, colecção particular.

157

154

- Nuno SALDANHA José Malhoa, Tradição e Modernidade, Lisboa, Scribe, 2010, p.343. O autor diz-nos que Deborah Paiva foi ainda retratada num outro trabalho de Malhoa, a pastel, datado de 1928.   - Nuno SALDANHA José Malhoa, Tradição e Modernidade, Lisboa, Scribe, 2010, p. 334. Veja-se ainda José-Augusto FRANÇA, O nu e a arte Lisboa, Estudios Cor, 1975.

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No Meu Atelier em Paris, 1913 Armando Basto Óleo s/ tela 64 x 81 cm Colecção MNAC - Museu do Chiado Fotografia de Arnaldo Soares (DGPC/ADF)

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dos Amores - Peccata Nostra espelhava também a ousadia trazida pelas novas temáticas na figuração do nú: mulheres, idosos e jovens passavam, desde os finais de Oitocentos, a integrar o receituário académico deste tipo de desenho convivendo com a tradição classicista do modelo nu masculino. Em 1894 Malhoa havia já apresentado, na Quarta Exposição do Grémio Artístico, as suas primeiras pinturas de nu, intituladas Antes da Sessão e Descanso, composições ao gosto da época, recebendo, porém, críticas genericamente pouco entusiastas, como a de Caetano Alberto: Os nus do sr. Malhoa se não são de uma correcção e execução irrepreensíveis, revelam contudo progresso n’um género, em que as nossas exposições teem sido uma completa miséria.158 A presença da guitarra no ambiente boémio do atelier, é ainda corroborada por testemunhos de Amadeo, Viana, Armando Basto, Rolando Sá Nogueira ou Nikias Skapinakis em pleno século XXI. A célebre Guitarra Minhota de Eduardo Viana, No Meu Atelier em Paris, de Armando Basto (1913)159 ou mesmo a fotografia em pose fadista de Amadeo - que inspiraria uma renovada dimensão onírica num trabalho de Júlio Pomar, realizado na década de 1980 como oferta ao galerista Manuel de Brito, pelo seu aniversário - inequivocamente documentam a presença da guitarra no contexto do atelier.160 158   - Caetano ALBERTO, Xylographo, 1 de Junho de 1984, Apud. Nuno SALDANHA (2010) op. cit., p. 333.

Também Rolando Sá Nogueira (1921-2002), no seu Retrato de Maria Alice Manta (1949) faz figurar um instrumento – que adivinhamos ser uma guitarra com cravelhas em madeira – nas mãos da companheira do seu amigo, João Abel Manta, numa representação que nos remete para a figuração da guitarra no ambiente dos ateliers nas primeiras décadas do século XX. A guitarra portuguesa assumirá renovado protagonismo no Retrato de Manuel Bentes, que Francis Smith executa em 1909, retratando o amigo e pintor Manuel Bentes (1885-1961) que, na companhia de Emmerico Nunes e Eduardo Viana, acompanharia Smith num périplo por Inglaterra, Holanda e Bélgica, em 1910. Documentando a presença da guitarra portuguesa no ambiente boémio do atelier, o retrato de Bentes necessariamente evoca a Peccata Nostra de José Malhoa de 1920 ou o afamado retrato de Amadeo em pose fadista e, naturalmente, a presença da guitarra no atelier de Bentes em Paris, captada em registo fotográfico, onde o artista se representa de guitarra portuguesa em punho. Já na primeira década do século XXI seria Nikias Skapinakis a evocar esta ligação do instrumento a um nome maior do Modernismo português - Sousa-Cardozo -integrando-a nos escassos adereços que integram a composição da sua tela intitulada Quarto de Amadeo na série Quartos Imaginários161.

159   - Armando BASTO, No Meu Atelier em Paris, Museu Nacional de Arte Contemporânea, Inv. 7547. 160   - Julio POMAR, s/ título, s/d (1980). Esta obra foi realizada pelo artista como oferta a Manuel de Brito e encontra-se em exposição no Museu do Fado.

- Nikias SKAPINAKIS, Quartos Imaginários, Lisboa, Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, 2006. 161

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Amadeo de Souza-Cardoso Atelier da Cité Falguière em Paris, 1908-1909 Reproduzida em Amadeo de Souza-Cardoso, Fotobiografia Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2007

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Retrato de Manuel Bentes, s/d

Francis Smith Carvão s/ papel 60,8 x 46,7 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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Pecatta Nostra, 1920

José Malhoa Pastel s/ papel 39 x 60 cm Colecção Embaixada do Brasil em Lisboa

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SOU DO FADO: O UNIVERSO EDITORIAL E A EMERGÊNCIA DE UMA GRAMÁTICA PLÁSTICA LEGITIMADORA

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Fado Paris, 1927

Ilustração de Stuart Carvalhais Sassetti & Cª, 1927 34 x 27 cm Colecção particular

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Vários factores contribuíram para a reconfiguração dos contextos performativos do Fado, ao longo do século XX, transmutando definitivamente a imagem do género. A instauração da Ditadura Militar em 28 de Maio de 1926, seguida da imposição da censura prévia, reconfigurou toda a rede de recintos e, necessariamente, o contexto performativo do Fado, em particular. Pela mesma época, começava a construir-se uma gramática plástica legitimadora do género, reabilitando a figura tradicional da fadista que se procurava dissociar da marginalidade associada aos contextos de origem. Tendo por suporte o universo editorial emergente desde a década de 1910, este novo programa estético do Fado - em consonância com os postulados de António Ferro para a Lisboa reinventada alimentou a indústria discográfica, a imprensa escrita, o teatro e o cinema, através da energia criativa de artistas como Stuart Carvalhais, Almada Negreiros, Carlos Botelho, Jorge Barradas, Pinto de Campos, entre outros. Regulamentando globalmente as actividades de espectáculo através de um extenso clausulado, a legislação de 1927 preconizava uma fiscalização superior de todas as casas e recintos de espectáculos ou divertimentos públicos (…) exercida pelo Ministério da Instrução Pública, por intermédio da Inspecção Geral dos Teatros e seus delegados. Este novo quadro jurídico teria efeitos marcantes sobre a prática do Fado que sofreria, inevitavelmente, profundas transformações, com a regulação da concessão de licenças aos promotores de espectáculos, um novo enquadramento para direitos de autor, a obrigatoriedade de visionamento prévio dos repertórios cantados, a exigência de porte de Carteira Profissional emitida pela Inspecção Geral dos Teatros como condição de apresentação pública remunerada, entre outros aspectos. Impunham-se, assim, significativas mudanças no âmbito dos espaços performativos, extensíveis, ainda, ao modo de apresentação dos intérpretes, que passavam a adoptar um traje de cerimónia, actuando em recintos diversificados para um público cada vez mais alargado.

cómoda, vingariam as tendências revivalistas dos aspectos ditos “típicos” que apontavam para um reencontro da tradição popular, reinventando-se os elementos iconográficos que atestassem a vertente genuína e pitoresca do universo do Fado. Este contexto de cristalização dos ambientes performativos do género foi, naturalmente acompanhado pela indústria emergente da discografia, do Teatro ou do Cinema - que consagrava o primeiro filme sonoro à figura mítica da fundação do género com A Severa, de Leitão de Barros, em 1931 – que gradualmente promoviam a estabilização de um novo programa estético para o Fado. Jornais, revistas, magazines, cartazes, livros e partituras musicais ofereciam renovadas oportunidades de trabalho a um conjunto de artistas plásticos e ilustradores, das mais variadas tendências, na ausência de contrapartidas profissionais mais sólidas. Palcos privilegiados desta nova linguagem estética foram as capas de revistas, desde a ABC (1920-1932), a Ilustração Portuguesa (19121922), a Contemporânea (1922-1926) o Magazine Bertrand (19271933) e a Civilização (1928-1936). Este intenso movimento editorial correspondia, ainda, aos anseios de uma burguesia urbana, ávida de imagens representativas de novos padrões de comportamento construídos à escala das grandes cidades europeias. Nas capas dos magazines tinha lugar um diálogo entre artista e público, criador e consumidor, no quadro de uma auscultação dos gostos, fundamental à sobrevivência financeira destes periódicos. Sob a direcção de António Ferro, a Ilustração Portuguesa seria paradigmática desta tentativa de construção da realidade que agora se vestia, qual manequim, e se induzia à modernidade. O próprio António Ferro em entrevista a Reinaldo Ferreira em 1921, dava nota do grande desígnio: Se for preciso a Ilustração Portuguesa inventará Lisboa … Conseguida essa obra ela não pedirá direitos de autor.163

Gradualmente, tenderia a ritualizar-se a audição de fados nas casas de fados, locais que iriam, sobretudo, concentrar-se nos bairros históricos da cidade, com maior incidência no Bairro Alto, sobretudo a partir dos anos 30.162 Estas transformações na produção do Fado afastavam-no, necessariamente, do campo do improviso, perdendo-se alguma da diversidade dos seus contextos performativos de origem e obrigando a uma especialização de intérpretes, autores e músicos. Paralelamente, as gravações discográficas e radiofónicas propunham uma triagem de vozes e práticas interpretativas que se impunham como modelos a seguir, limitando o domínio do improviso.

No plano desta urbanidade que se procurava reinventar, a figura feminina assumia lugar de absoluta centralidade, desfilando num inventário exaustivo de poses extraídas de um quotidiano que agora se redimensionava, para construir o perfil da lisboeta. Com efeito, estas figuras de semblante idealizado, em recorte de corpo estreito e alongado, apresentavam uma nova proposta de sensualidade, insinuando-se como suporte da moda e, induzindo, necessariamente, a uma reflexão criativa na esfera da própria representação e identidade da lisboeta. Pela via de um evidente mimetismo, as capas de magazines – muitas vezes em registo de total descontinuidade face ao seu interior – induziam ao fascínio dos objectos que, representados plasticamente, iam cumprindo o despertar de novos hábitos de consumo.

Depois de criado o Secretariado de Propaganda Nacional e, já no final da década de 30, ultrapassada a questão da depuração do Fado que o dissociava, definitivamente, de uma marginalidade in-

Nas capas, a cidade constituía o cenário insistentemente reinventado, num discurso plástico herdeiro do humorismo – no qual Rafael Bordalo Pinheiro introduzira já Os Fadistas, em 1872 – e que

- Veja-se Rui Vieira NERY, Para Uma História do Fado, INCMEGEAC/Museu do Fado, Lisboa, 2012, pp.228-246.

163

162

- António RODRIGUES, António Ferro na Idade do Jazz-Band, Lisboa, Livros Horizonte, 1995, p. 82.

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Fado Hespanhol, 1927

Ilustração de Stuart Carvalhais Sassetti & Cª, 1927 34 x 27 cm Colecção particular

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agora se pautava por uma economia de linhas e ampla liberdade da cor. Seria, então, nas capas de partituras, livros e magazines, que ganharia corpo uma nova linguagem plástica, recorrendo à estilização do traço para sintetizar a narrativa. Toda a dinâmica de crescente vitalidade do Fado, entretanto reconfigurado pela via da profissionalização dos artistas, da sua introdução em novos palcos – no Teatro, nas casas de fado, cervejarias e salões que passam a integrar o Fado na sua programação - e do advento de meios tecnológicos como a gravação discográfica, a rádio, o cinema, seria então profusamente ilustrada pelo universo editorial, num processo que consolidaria uma gramática plástica legitimadora do género. Nos periódicos da especialidade, nas capas de discos, livros ou pautas impressas, o Fado constituía o cenário insistentemente reinventado, num discurso plástico herdeiro do humorismo e que se pautava agora por uma economia de linhas e ampla liberdade da cor. Nestes lugares de figuração intensamente colorida, ganhava corpo uma nova linguagem estética, recorrendo à estilização do traço para sintetizar o discurso plástico, também ele legitimador da arte performativa e em plena sintonia com o conteúdo editorial. Paralelamente, consagrava-se, em definitivo, a articulação entre fotografia e desenho, artifício técnico também propício ao estreitamento da cumplicidade entre objecto e consumidor, cidade real e fado sonhado. Seria, efectivamente, o domínio editorial, o principal suporte das narrativas do discurso plástico de autores como Stuart Carvalhais, Bernardo Marques, Carlos Botelho, Américo Amarelhe, Almada Negreiros, Armindo, Júlio de Sousa, Telles Machado, entre outros, cujos trabalhos de ilustração de periódicos, partituras de fado, discos e livros, integram parte significativa do corpus de representação do tema nas artes visuais portuguesas da primeira metade do século XX, consolidando definitivamente um receituário icnográfico de legitimação do género. Palcos privilegiados do diálogo entre criadores e público, os periódicos actuavam, necessariamente, ao nível da recepção crítica dos trabalhos publicados e a obra desses artistas foi, nessa perspectiva, projectada no próprio público que representou e que a consumiu, num jogo de reconversão de dados, assumindo-se na dupla condição do seu espelho e da sua consciência. E se o humor gráfico do último quartel do século XIX recorria ao Fado para veicular duras críticas ao quotidiano social e político – utilizando de forma recorrente o popular Zé Povinho de Bordalo – a partir de 1920, com a profissionalização dos intérpretes e a progressiva divulgação do género através do Teatro de Revista, da gravação em disco, da Rádio, do Cinema e da Televisão, a caricatura e o humor gráfico passam a parodiar o próprio Fado, a mediatização do seu expoente máximo – Amália Rodrigues – e, sobretudo, a construção de um estatuto oficioso de canção nacional.

Quiseram os fados que o conjunto dos trabalhos que Stuart Carvalhais (1887-1961) – ilustrador, desenhador, caricaturista, cenógrafo – consagrou à canção de Lisboa viesse a ocupar um lugar central no plano da iconografia do Fado, autêntico paradigma do mimetismo e da citação, a par do oficioso Malhoa, ambos referências modelares no domínio da representação visual do tema. 164 Muitos dos originais que viriam a afirmar a relevância do conjunto da obra de Stuart, sucumbiram ao imediatismo de um quotidiano vivido nas redacções de jornais, nas gráficas, na efemeridade do universo publicitário ou na construção cenográfica das produções teatrais, sempre transitórias. O autor de centenas de ilustrações consagradas ao Fado foi, durante longos anos, aquele a quem ninguém associava o nome à pessoa165 fatalidade denunciada por Reinaldo Ferreira, em 1923. De facto, a sua popularidade nos ambientes lúdicos e espaços de convivialidade dos bairros de Lisboa, onde todos ignoravam a sua profissão e a sua arte166 não lhe advinha, paradoxalmente, do seu génio artístico. Não acompanhando as políticas do Estado Novo e do Secretariado de Propaganda Nacional de António Ferro, Stuart distanciara-se, também, dos modernistas que, na senda de Cristiano Cruz, apostavam na afirmação das artes ditas nobres, não subscrevendo a dependência ideológica dos artistas face ao mercado editorial. A isto acrescia o facto de os exercícios da vanguarda estética do modernismo e a inevitável assimilação de arquétipos, em tudo distantes da vivência do lisboeta comum, não exercerem grande fascínio sobre a personalidade artística de um Stuart, cronista dos tipos e costumes de Lisboa que, ainda na década de 40, afirmava fazer bonecos para distrair a fome.167 Diversos estudos têm vindo a resgatar, para um plano central da arte portuguesa, a vida e a obra de Stuart Carvalhais, autor de vigorosa produção artística, do quotidiano de de Lisboa, durante aproximadamente meio século. Nos alvores da década de 1920, a Sassetti editora (1921) e a Valentim de Carvalho (1922) firmavam contrato com vários artistas que para elas executariam múltiplas ilustrações de capas de partituras ou de discos, concebendo ainda os suportes publicitários. O portuense Américo Amarelhe (1892-1946) cedo se destacou no meio teatral de Lisboa, quer como como cenógrafo de algumas das mais bem sucedidas produções das primeiras décadas do século XX, quer pela via do retrato caricatural de inúmeros artistas   - Sara PEREIRA (Dir.) O Fado por Stuart de Carvalhais, EGEAC, Museu do Fado, 2005. 164

- José PACHECO, Stuart e o Modernismo em Portugal, Lisboa, Vega, colecção Artes/Ilustradores, s/d., p.17. 165

- Idem, ibidem, p.17.

166

- José PACHECO, Stuart, O Desenho Gráfico e a Imprensa, Lisboa, Associação Portuguesa das Indústrias Gráficas e Transformadoras do Papel, 2000, p.211. 167

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Fado la Goya, 1923

Ilustração de Américo Amarelhe Sassetti & Cª, 1927 35 x 27 cm Colecção particular

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Fado de la Goya, 1923 Ilustração de Américo Amarelhe Valentim de Carvalho, 1923 33 x 27 cm Colecção particular

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Café da Severa, 1924 Alberto de Sousa Tinta-da-china e aguarela s/ papel 29 x 36 cm Colecção Museu de Lisboa

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e autores seus contemporâneos. Colaborando em diversas publicações periódicas, como é o caso do suplemento humorístico O Século Cómico - notável caricaturista, Amarelhe colaborou intensamente com a indústria do Teatro, retratando pela via do humor, a plêiade de actores, músicos, empresários, técnicos, dramaturgos e fadistas. Importante cronista gráfico da vida cultural lisboeta das décadas de 20 e 30, o seu traço extremamente original fixou, individualmente ou em grupo - nos seus célebres frisos, onde eram retratadas companhias inteiras ou grupos de actores da mesma geração artística – um importante conjunto documental das artes do palco, onde o Fado, como sabemos, ganhava lugar de destaque. Pertencem-lhe algumas das mais exuberantes capas de partituras que integram o recenseamento imagético do presente estudo. Nas duas ilustrações de Fado la Goya, afirma-se um traço vigoroso, de cromatismo intenso com alguma economia de linhas, ao tom do modernismo. Amarelhe ilustrou ainda inúmeras capas de A Guitarra de Portugal, regra geral representando as glórias de fadistas como Ercília Costa, Berta Cardoso, Estêvão Amarante, Beatriz Costa, Aldina de Sousa ou Avelino de Sousa, autor de Bairro Alto e de O Fado e os seus Censores.168 Dotado de um habilíssimo lápis, o seu retrato caricatural deixa transparecer a carga afectiva entre retratista e retratado. Próximo do universo do Fado, Amarelhe colaborou activamente na sua defesa intransigente, nos periódicos da especialidade, colocando o seu génio de retratista e caricaturista ao serviço da legitimação estética do género. E se o humor gráfico seguiu e documentou amplamente a trajectória do Fado nas primeiras décadas do século XX também Amarelhe parodiava os êxitos gravados da fadista Ercília Costa, pioneira da internacionalização do Fado no Brasil na década de 20 - como Stuart e Botelho fariam com Amália na década seguinte - representando-a de meio corpo, de guitarra portuguesa na mão, com um gigantesco disco da Odeon em fundo. Somando à linguagem gráfica a anotação humorística, também aqui Amarelhe introduzirá a sugestão de duplo sentido: A insinuante cantadeira Ercília Costa cantando o fado….Sem Pernas evocando simultaneamente a melodia do fado tradicional gravado pela artista - o Fado sem Pernas - e a pose, a meio-corpo, do retrato. 169 Espelho dos diferentes contextos performativos do Fado, as publicações consagradas ao tema constituíram, também, um instrumento de reconversão de dados, lugar privilegiado ao debate sobre as boas e más práticas dentro deste universo. Inscrevendo-se no contexto da narrativa que iluminavam, também as ilustrações de Amarelhe participaram da eloquência do discurso de legitimação do Fado e seus praticantes ou dos debates sobre as boas praticas tão em voga na imprensa especializada. Encontramos um

dos inúmeros exemplos deste debate - que se prolongou durante boa parte do século XX - numa edição da Guitarra de Portugal que atestava o desagrado de uma facção de cultores do género face às opções estéticas do bailarino Francis, na sua estilização do Fado Português, apresentada no Teatro Politeama no Outono de 1932, enredo para o qual Amarelhe desenhava, muito sugestivamente, a figura estilizada do bailarino. 170 Dedicando-se, quase em exclusivo, a retratar e caricaturar o meio teatral, em retratos individuais ou nos seus célebres frisos, onde eram retratadas companhias inteiras ou grupos de actores da mesma geração artística - actores, músicos, empresários, técnicos, dramaturgos, fadistas - o seu traço, extremamente original, oscilava entre a caricatura e o retrato, tendo assinado ainda, como vimos anteriormente, inúmeras capas de folhas de música, ilustrações e caricaturas para os periódicos especializados de Fado. E se nas ilustrações das partituras de Fado la Goya, Amarelhe apresenta um traço vigoroso, com alguma economia de linhas preenchido por cromatismo intenso, bem ao gosto do modernismo, nas páginas de A Guitarra de Portugal fez plasmar, em registo caricatural, os feitos de artistas como Ercília Costa, Berta Cardoso, Estêvão Amarante, Beatriz Costa ou Aldina de Sousa. Com uma obra organizada em torno de dois caminhos fundamentais – o comentário social de feição humorista e a obra plástica autónoma – Carlos Botelho (1899-1982) firmou notáveis crónicas da vida lisboeta, por vezes protagonizadas pelo Fado, na exacta medida em que novos públicos se rendiam à canção urbana, cuja consagração popular era já uma evidência, assinando, ainda, algumas composições para as capas de partituras de fados da Sassetti e da Valentim de Carvalho. Iniciando a sua actividade numa fábrica de cerâmica, dedicar-seia, mais tarde, às artes gráficas, executando sobretudo cartazes e ilustrações. Nas extraordinárias composições que realizou para o ABC - zinho, entre 1926 e 1929, participou na fundação da banda desenhada em Portugal, autor quase integral da primeira e da última página de cada número, a cores, produzindo aí a maior parte das suas mais de 400 pranchas que fez para a revista.171 Entre 1928 e 1950 colabora semanalmente no jornal Sempre Fixe, deixando um legado central para o entendimento do quotidiano lisboeta durante este período nas páginas Ecos da Semana. A Lisboa das décadas de 20, 30 e 40 constituiu aliás, o pano de fundo, do casario ao rio, para a sua incessante busca de personagens e de estruturas narrativas.  - Guitarra de Portugal, 31 de Outubro de 1932.

170

- João Paulo Paiva BOLÉO e Carlos Bandeiras PINHEIRO, Das Conferências do Casino à Filosofia de Ponta: Percurso histórico da banda desenhada portuguesa. Lisboa, Câmara Municipal de Lisboa, Bedeteca, s/d., p. 44. 171

168

- Guitarra de Portugal de 31 de Janeiro de 1928.

169

- Guitarra de Portugal de 12 de Abril de 1930.

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Figura (Fadista), s/d Bernardo Marques Tinta estilográfica s/ papel 28,4 x 22,7 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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Nos alvores da década de 1930 Botelho iniciava um período de actividade profissional no estrangeiro integrando a representação portuguesa em grandes mostras internacionais, designadamente na Exposição Internacional e Colonial de Vincennes, Paris, em 1930-31 e na Feira Internacional de Lyon, em 1935. A partir de 1937 integraria, juntamente com Bernardo Marques, Tom, Fred Kradolfer e José Rocha, a equipa de decoradores do S.P.N. responsáveis pela concepção plástica dos pavilhões de Portugal nas exposições de Paris, Nova Iorque e S. Francisco em 1939. Em 1928 inicia a colaboração semanal no Sempre Fixe, com uma página de comentário e crítica social intitulada Ecos da Semana, colaboração que manteve até ao dia 8 de Dezembro de 1950, num discurso continuado sem intervalo ou férias.172 A partir do ano de 1929 e até ao ano da sua morte desenvolveu notável obra plástica multifacetada que se materializou em centenas de desenhos, pinturas, projectos de tapeçarias, etc. Durante mais de duas décadas consecutivas os Ecos constituem o suporte onde a sua visão da vida nos é revelada, rindo de tudo e de todos sem crueldade, desde as trivialidades do quotidiano lisboeta aos grandes temas da actualidade internacional. No conjunto de trabalhos que compõem o seu diário do não dito (...) documento precioso e aflitivo de como se vivia, ou podia viver em Portugal de 1928 a 1950173 Botelho introduz as primeiras referências ao Fado em 1930, desde logo censuradas como o atestava o desabafo do Piu: com esta não en Fado mais. 174 A fina ironia de Botelho parece ter eco na visão do escritor José Gomes Ferreira que, em 1931, descrevia assim uma ida aos fados com um amigo inglês, de visita à capital: O meu amigo inglês estava fatigadíssimo. Ouvi-o confessar, com uma sinceridade impressionante: - Tenho viajado muito! Sei de cor os Museus, as Casas e os Bicos de todas as cidades (...) Mas agora basta! Mostre-me qualquer coisa de diferente que não se encontre em outro país. Não há? Meditei um segundo e respondi, cheio de convicção: - Há sim senhor. Há “cabarets”.... O estrangeiro trejeitou desdém. Mas eu continuei, imperturbável: - Há “cabarets” estranhos, “cabarets” ao contrário, sem “jazzband”, sem pretos, sem mulheres fatais, sem alegria nem cham172   - José Augusto FRANÇA, Ecos da Semana de Botelho, 1928-1950. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1989. 173   - José-Augusto FRANÇA, Ecos da Semana, Botelho, 1928-1950, Lisboa, FCG/CAM, 1989, p.3.

- “A Canção Nacional” in Ecos da Semana de 6 de Agosto de 1930.

174

pagne! Verdadeiras “casas de sofrer”, com mesas, cadeiras e bebidas, tristíssimas, frequentadas por quem quer chorar em público, sem medo do ridículo. Venha comigo e verá... Profundamente informado do quotidiano de Lisboa, escarnecendo dos hábitos provincianos da capital, o Fado já captara o olhar satírico de Botelho que, rindo de tudo e de todos, registara já, na Guitarra de Portugal175, o ambiente de tertúlia fadista de Uma noite na Travessa da Palha, ilustração humorística que se dimensionava na harmonia entre linguagem gráfica e anotação escrita, reunindo: uma frequentadora elegante, o Manoel Maria fazendo impropérios, o Chico maluco, um cantador de juízo, o António Praça, o Correeiro, um que não dá ponto sem nó. Partilhada ludicamente, a sua mensagem era (é) também extraordinariamente acessível, mesmo se a complexidade da imagem obrigava ao esforço de descodificação ou se os cortes da censura, permanentemente evocada nos Ecos pela figura do mocho Piu, remetiam para as entrelinhas, para o que ficou por dizer. Legado visual de inequívoco interesse gráfico e documental, o conjunto de desenhos que Botelho consagrou ao Fado, nos festejados “Ecos da Semana” do Sempre-Fixe (1928-1950), permite-nos iluminar a gradual consagração do género neste período, através de instrumentos de mediatização como a gravação discográfica, a emissão radiofónica, ou o cinema, popularidade que se afigurava directamente proporcional aos esgares cada vez mais impiedosos de Botelho. Logo em 1930, data em que o Fado conhecia uma crescente grande consagração popular, desabafava sobre A Canção Nacional:176 E logo ao romper do dia oiço o fado à Maria…Já não há uma revista onde não cante um fadista…Deixou de ser grafonola para ser grafadola…Já não há um restaurante sem um fado soluçante…Se vou ao Jardim Zoológico ouço fado, não é lógico … Vou beber p’ra Avenida dão-me fado por bebida … Chego ao rocio que bodega mais um fado pra socéga… De repouso faço cura com o fado da loucura … à noite a telefonia com tanto fado arrelia177 Também a fina ironia de Bernardo Marques (1899- 1962) olhou para o Fado, plasmando-se demoradamente nas “casas de sofrer” onde a Canção de Vencidos ecoava as agonias de uma capital amorfa e cinzenta, ainda avessa à modernidade que tanto o fascinara em Berlim e em Paris. Oriundo de Silves, Bernardo Loureiro Marques chegava a Lisboa com 18 anos de idade para estudar Românicas na Faculdade de Letras. Assim se faria a iniciação na vida cultural lisboeta de um 175   - Guitarra de Portugal de 12 de Novembro de 1928, Ano VII, nº 154.

- Ecos da Semana de 8 de Agosto de 1930.

176

- Ecos da Semana de 6 de Agosto de 1930.

177

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Fado, s/d Bernardo Marques Tinta-da-china e grafite s/ papel 34,3 x 50 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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dos nomes grandes da segunda geração do modernismo português. O sucesso da sua primeira apresentação na 3ª Exposição dos Humoristas, em 1920 – onde figurava ao lado de Almada Negreiros, Emmerico Nunes ou Christiano Cruz – ditar-lhe-ia a dedicação em exclusividade às artes, mais especificamente ao desenho, uma vez que a pintura a óleo, por alergia aos materiais,178 lhe estava vedada. Desenvolvendo uma obra inicialmente marcada por Christiano Cruz, Bernardo Marques colaboraria activamente como ilustrador nas páginas do ABC (de 1920 a 1922), do ABC A RIR (de 1921 a 1922) e d’O Século, onde assinou a Página de Domingo (1921), passando ainda pela Contemporânea (1922) pela Revista Portuguesa (1923) pelo Sempre Fixe (1927), pela Presença (1933) ou, mais tarde, pela Revista de Portugal (1939). Teve presença assídua na Europa (1924), no Diário de Notícias, assinando a crónica “Os Domingos de Lisboa” (entre 1925 e 1929), no Notícias Ilustrado (de 1929 a 1931) na Ilustração (de 1926 a 1934) e na Civilização (de 1928 a 1930). Também as publicações consagradas ao cinema mereceram a atenção do seu traço, concebendo ilustrações para a Imagem (1ª série em 1928 e 2ª série entre 1930 e 1934), Kino (1930-1931) e Girassol (1930-1931). Na revista Panorama, edição do Secretariado de Propaganda Nacional veiculando a política de espírito de António Ferro, Bernardo Marques assumiria a direcção artística entre 1941 e 1949, o mesmo sucedendo nas revistas Litoral (entre 1944 e 1945) e Colóquio (de 1959 até à sua morte em 1962).179 Em Berlim conhecera já a obra de Grosz (1929) influência que se revelaria determinante no tom de crítica social e política que imprimiu ao seu traço, de fina ironia, por vezes mordaz e impiedoso. A partir de 1937 integraria com Botelho, Kradolfer, José Rocha e Tom, a equipa de decoradores do Secretariado de Propaganda Nacional encarregues da realização dos pavilhões de Portugal nas exposições de Paris, Nova Iorque e S. Francisco. Autor de vastíssima obra, estruturada ao longo de cerca de quarenta anos de produção, desde 1920 até 1962, ano da sua morte, foi através das suas ilustrações que o País chegou a boa parte do País. Com um entendimento profundo do papel da ilustração em face do suporte narrativo que lhe dá origem e significado, cedo compreendeu que o ilustrador é forçado, naturalmente, a distinguir entre estilos literários e artísticos: Nunca poderá ilustrar com as mesmas intenções, com a mesma visão crítica e até com os mesmos processos técnicos o D. Quixote e O Primo Basílio. Deverá até saber distinguir, o que já é um poucochinho mais fino, Maupassant de Gide (…) O desenhador culto esforça-se sempre por se adaptar aos estilos, às épocas

e às individualidades (…) A falta de Cultura do ilustrador indu-lo em muitos erros e grosserias empobrecendo-lhe também a expressão artística.180 Concebendo as edições com extraordinária preocupação de equilíbrio e harmonia entre a natureza do papel, as dimensões, tipos de letra, paginação, articulação de imagens com o texto, Bernardo Marques exaustivamente procurava o livro que ao conhecedor artístico dá uma sensação voluptuosa e ao leitor ordinário não perturba, antes educa graciosamente.181 De entre as dezenas de livros que ilustrou, contam-se Os Maias de Eça, ou Mundo Novo de António Ferro, bem como aquele que seria um dos expoentes máximos da rejeição do género, dentro da sua esparsa bibliografia no século XX: O Fado, Canção de Vencidos, de Luís Moita. A partir de meados da década de 1930, a Emissora Nacional consagrava um espaço cada vez mais alargado à propaganda doutrinária do Estado Novo. Seriam, neste contexto, publicadas as oito palestras de Luiz Moita emitidas em 1935 sob o título O Fado, Canção de Vencidos182 ao longo das quais o seu autor promovia um conjunto de duras críticas ao Fado, questionando a sua legitimidade histórica e estética. Como vimos, o debate em torno da legitimidade do género perpassaria boa parte do século, organizando-se a produção bibliográfica sobre o Fado, em versões que oscilam entre a mais liminar rejeição, herdeira dos discursos críticos da Geração de 70 e que prossegue ao longo das três primeiras décadas do século XX, com a hostilidade dos sectores intelectuais eruditos – visível nos posicionamentos de António Arroio, Albino Forjaz Sampaio, Armando Leça, Freitas Branco, entre outros – e a defesa intransigente do género, pela comunidade fadista – com Avelino de Sousa, Artur Arriegas, Artur Inês e, em particular, a imprensa periódica especializada, com destaque para A Guitarra de Portugal e A Canção do Sul. O posicionamento de absoluta hostilidade relativamente ao Fado que Luiz Moita apresentara aos microfones da Emissora Nacional no ano de 1935 e que seria publicado em O Fado, Canção de Vencidos, constituiria, aliás, a posição ideológica mais intrinsecamente característica do pensamento salazarista para com o género, estruturado numa rejeição moralizante de todo o universo fadista. Em O Fado, Canção de Vencidos, o tom de aviltante rejeição de Luiz Moita é, como que suavizado nas ilustrações de Bernardo Marques. Nos seus desenhos, uma fina ironia confere eloquência ao não dito, numa complacência triste que sugere alguma complacência para   - Bernardo Marques, “O Livro Artístico” citado por Irene LISBOA, Inquérito ao Livro em Portugal, Lisboa, Seara Nova, 1946, pp. 84-85. 180

- Emília FERREIRA, Bernardo Marques. In A.A.V.V. Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão: Roteiro da Coleção, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 40. 178

179   - Veja-se Marina Bairrão RUIVO, Bernardo Marques, 1898-1962. Lisboa: Editorial Presença, 1993, p.17.

- Irene LISBOA, Inquérito ao Livro em Portugal, Lisboa, Seara Nova, 1946, p.82. 181

- Luiz MOITA O Fado Canção de Vencidos, Lisboa, Empresa do Anuário Comercial, 1936. 182

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Fado Turístico, s/d

Bernardo Marques Tinta estilográfica s/ papel 24 x 31 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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com os habitantes destes cabarets ao contrário, de que falava José Gomes Ferreira, cinco anos antes. Embora despojado da violência discursiva do suporte narrativo, o seu traço, simultaneamente gracioso e triste, pode vitimar mais que o excesso das palavras de Luís Moita. O seu distanciamento irónico da realidade lisboeta - tão desencontrada das imagens dos seus magazines como dos ares modernos que respirara na Europa - não o impediu, porém, de um profundo entendimento do povo, rural ou urbano, que sempre retratou com um misto de ternura e ironia. Antes de tudo e intimamente um desenhador, Bernardo Marques prosseguiu uma apurada investigação gráfica, dotando-se de um traço anguloso que sempre preferiu o preto e branco para ali organizar volumes e valores de luz e sombra. Lisboa com as suas ânsias modernas e mundanas, a sua idealização e pose - tantas vezes confrontadas com a realidade mais provinciana - foi o pano de fundo de uma crónica penetrante do quotidiano, dos seus costumes e personagens. No seu traço conciso e elegante sublimando a imagem de modernidade que se impunha, revisitamos o microcosmos do Chiado, os arredores do Rossio à Avenida, salões de chá, dancings e night-clubs, os ambientes do Teatro e, claro, o Cinema, ditando modelos de cosmopolitismo. Instantâneos de modernidade em constante desacerto com a realidade lisboeta, estas imagens da cidade sonhada por si, tal como por Almada, Cristiano Cruz, Barradas, Soares, Emmerico, Botelho ou Stuart, sempre conviveram de perto com as imagens de uma outra Lisboa, a cidade real, conservadora e provinciana, convidando ao inventário satírico dos seus tiques pequeno-burgueses. Nas imagens d’O Fado Canção de Vencidos, oscilamos entre uma visão desencantada e amarga e a mais fina ironia, o humor mordaz, variantes que se substituem, em função do tema representado. De facto, a distanciação contemplativa de Bernardo Marques conferiu-lhe também um profundo entendimento do outro, numa figuração por vezes dotada de extraordinária compaixão, como no desenho de músicos de rua, onde inevitavelmente transparece a simpatia pelos que sofrem. Fazendo uma observação demorada dos contextos performativos do Fado, por ali soube inventariar as poses, os tiques e as fragilidades dos protagonistas deste universo que, no seu olhar, por vezes trocista, por vezes intimista e compassivo, nos são devolvidos. Vários trabalhos do aguarelista Alberto Sousa (1880-1961) participaram na construção imagética de Maria Severa, para ilustrar publicações coevas que, a partir do início do século XX,183 espelhavam as   - Vejam-se Alberto de SOUZA, Mulher do Fado, (1907), duas ilustrações de capa do romance A Severa de Júlio Dantas, ilustração de O Fado de Bento Mântua, Livrarias Aillaud e Bertrand, s/d ou a obra O Café da Severa (1924), tinta-da-china e aguarela s/ papel, 29 x 36 cm, Colecção Museu de Lisboa. 183

possibilidades técnicas da utilização das cores directas na tipografia, apresentando um grafismo de cromatismo rico, de maior eficácia no diálogo com o seu eventual público consumidor. Dese-nhos de figuração simples, preenchidos por uma vibrante paleta de cores, fixaram a iconografia da cantadeira de Fados nas aguarelas de Alberto Souza e noutros que se lhe seguiram, espelhando a ostentação cromática tão ao gosto das modas da época, impregnada dos padrões da festa rural, e da influência espanhola e andaluza. De facto, até à introdução do trágico xaile negro com Amália Rodrigues, o manton florido espanhol constituía um adereço de eleição entre as fadistas, símbolo de popularidade e de protecções financeiras184 que permitissem a sua aquisição. Influências similares do país vizinho estendiam-se aos enfeites coloridos nos cabelos. Tinop descrevera assim as modas contemporâneas das fadistolatras: usavam umas saias de grande roda, sobre o curto, muito engomadas e fazendo extraordinário ruge-ruge, saias que se pegavam a um roupão (como elas o denominavam) abotoado adiante. Para as saias preferiam a chita cor-de-rosa. Usavam tamancos do Porto, sapatos de entrada abaixo ou sapatos de salto baixo e com fitas cruzadas nas pernas. O penteado era em bandós, com as tranças enroladas, sobre as quais espetavam um alto pente de tartaruga ordinária. As mais puxadas à substância, as mais tafulas, traziam capote e lenço de cambraia. Na quaresma, porém, todas indistintamente usavam capote. As que o não tinham alugavam-no.185 Esta alusão ao capote tem particular interesse se atentarmos nas mulheres que figuram no desenho aguarelado de Alberto Sousa, pertencente às colecções do Museu da Cidade da Câmara Municipal de Lisboa intitulado Café da Severa (1924),186 que muito provavelmente referencia uma das tabernas frequentadas pela artista, a taberna da Rosária dos Óculos ou a Taberna do Manhoso.187 Em contexto urbano ou rural, os cafés e as tabernas ocupam, desde a viragem para o século XX, um lugar central na sociabilidade popular, espaços lúdicos privilegiados da execução e fruição do Fado ou da guitarra portuguesa, como o atesta o sugestivo Interior de uma Taberna de Aldeia, de Eduardo Moura, de 1909.188   - Ruben de CARVALHO, Um Século de Fado, Lisboa, Ediclube, 1998, no Extratexto Século XIX, VII. 184

- Pinto de CARVALHO de, op. cit., p. 71.

185

- Alberto de SOUSA, Café da Severa, 1924, aguarela s/ papel, MC DES 0223 186

- Pinto de CARVALHO de, op. cit., p. 78.

187

- Eduardo MOURA, Interior de uma Taberna de Aldeia, 1909, Óleo s/ madeira, 34 x 28, 6 cm, Colecção Museu Nacional Soares dos Reis. Veja-se sobre Eduardo Moura: L. G. F., Eduardo Celestino Alves de Moura, escholástico da C. de J.,S. J.C. B. [s.n.], 1906. 188

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A Severa, de Júlio Dantas.

Ilustrações de Alberto Sousa Domingos Barreira Editor, 1942; Sociedade Editora Portugal Brasil, 1931

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Na ilustração de obras consagradas à mítica cantadeira plasmavam-se as possibilidades técnicas da utilização das cores directas na tipografia, apresentando um grafismo de um cromatismo intenso, potenciando o diálogo com um eventual público consumidor. Notável aguarelista e ilustrador, cronista de costumes e paisagens, Alberto de Souza legou um extenso acervo onde captou, em instantâneos de aguarela, os testemunhos de uma etnografia visual, plasmada em monumentos nacionais, capelas, solares, pórticos, cruzeiros, claustros, fontes, muralhas, trajes e embarcações, costumes e tipos populares, de norte a sul do país. Discípulo de Nicola Bigaglia e Manuel de Macedo, com estudos na Escola de Belas Artes de Lisboa e nas Escolas Industriais do Príncipe Real, Rodrigues Sampaio e Machado de Castro, realizou as suas primeiras aguarelas, de paisagem, entre os anos de 1898 e 1901, data em que apresenta a aguarela Lavadeira, Ribeira do Jamor na Sociedade Nacional de Belas Artes conquistando a Menção Honrosa. Presença assídua em várias exposições, em Portugal e no estrangeiro, Alberto de Sousa colheu, em vida, variadíssimos prémios e distinções. Autor das ilustrações de variadíssimas publicações assumiu a direcção artística da Ilustração Portuguesa em 1903, colaborando activamente em diversos jornais diários, revistas ilustradas e editoras, foi conservador artístico na Inspecção das Bibliotecas e Arquivos Nacionais (1914), fundador da revista de Etnografia e Arqueologia Artística, Terra Portuguesa (1916), autor de obras como o Traje Popular em Portugal nos séculos XVIII e XIX (1924), Traje Popular em Portugal nos séculos XVI e XVII (1926) e Portas Brasonadas de Lisboa (1933), tendo ainda assumido a organização da documentação artística de inúmeras obras. Nas várias aguarelas concebidas para ilustrar as sucessivas edições do romance de Júlio Dantas, nas décadas de 1920 e 1940, Alberto de Souza recriou a figura da mítica cantadeira segundo os cânones de uma iconografia formalizada com as primeiras descrições de Tinop e já, entretanto, processada pelo universo do Teatro. Com ou sem guitarra, por vezes ostentando capote – como de resto, na

figuração da aguarela Café da Severa, de 1924 – a Severa protagoniza composições apelativas e vibrantes de cor, atestando bem as potencialidades da aplicação de cor directa na tipografia no quadro de uma estratégia de angariação de novos leitores. Este imagético figurativo da Severa consolidar-se-ia, como veremos, ao longo das primeiras décadas do século XX, com frequentes citações nos domínios do desenho e da aguarela, em paródias pelo humor gráfico, na ilustração de partituras e cartazes, em folhetos de literatura de cordel, em operetas, no teatro e no cinema. De facto, a primeira aparição da mítica Severa na grande tela dáse em 1927 ainda ao tempo do cinema mudo, num dos seus mais produtivos anos, com Diabo em Lisboa, de Rino Lupo. Filmado na Mouraria, o filme integrou as gentes locais ao lado de artistas contratados e contou com o ingrediente de sucesso do filme trazido pela música de Frederico de Freitas para os temas Fado da Espera de Toiros, Novo Fado da Severa, Fado da Taberna, Velho Fado da Severa, repertórios que inscreveram na história do Fado e cuja audiência extravasou em muito a já larguíssima audiência do filme, à época. Pouco depois, com o festejado filme de Leitão de Barros, cuja rodagem foi acompanhada de ampla divulgação, deslocando multidões nas várias cenas de exterior e promovendo Dina Tereza no papel da mítica Severa, este imaginário cristalizava-se definitivamente no contexto mediático da filmagem e estreia do primeiro fonofilme português. Pelo seu aparato, a cena da tourada, filmada na Praça de Algés constituiu, à época, uma acontecimento, registado na imprensa pela pena de Stuart Carvalhais ou Bernardo Marques, entre outros.

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ENTRE A ARTE ERUDITA E A ARTE POPULAR: ENRAIZAMENTO E CONSAGRAÇÃO POPULAR DO FADO NAS PRIMEIRAS DÉCADAS DO SÉCULO XX

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Interior de Uma Taberna na Aldeia, 1909 Eduardo Moura Óleo s/ madeira 34 x 28,6 cm Colecção Museu Nacional Soares dos Reis (DGPC/ADF) Carlos Monteiro

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Nas artes plásticas portuguesas da primeira metade do século XX encontramos várias representações documentando inequivocamente o enraizamento do culto do Fado e a sua gradual consagração à escala nacional. De facto, o culto do Fado surge aqui documentado em ambientes diversificados, desde os cafés, tabernas e botequins – como nas obras de Eduardo Moura ou Alberto de Souza– como prática quotidiana ou em ambientes urbanos – como nas obras de Roque Gameiro, Dominguez Alvarez, Emmerico Nunes, Mario Eloy, Francis Smith – em ambientes rurais e bucólicos como nos trabalhos de Raquel Roque Gameiro ou Carlos Reis. Também Alfredo Roque Gameiro (1864-1935) haveria de consagrar particular atenção à figura mítica de Maria Severa, numa gravura publicada na História do Fado de Tinop e cujo desenho, segundo este autor, terá seguido indicações ministradas por contemporâneos da Severa. Na representação de Roque Gameiro que Alexandre Fonseca replicará para a Canção do Sul, vemo-la de cabelo em bandós, lenço de ramagens ao peito, saia rodada e chinela no pé. Nascido em Minde, Alfredo Roque Gameiro estudou na Academia de Belas Artes de Lisboa frequentando mais tarde a Escola de Artes e Ofícios de Leipzig como bolseiro do governo português. De regresso a Portugal, em 1886, dirigiu a Companhia Nacional Editora e em 1894 seria nomeado professor na Escola Industrial do Príncipe Real. Naturalista, nome central dos aguarelistas portugueses, Roque Gameiro desenvolveu também activa colaboração artística em diversas publicações periódicas, tendo ilustrado, entre muitas outras obras, e juntamente com Manuel de Macedo (1839-1915), a Grande edição de Os Lusíadas, publicada em Lisboa, pela Empreza da História de Portugal, em 1900. De entre as várias obras ilustradas que deixou, Lisboa Velha (1926), com prólogo de Afonso Lopes Vieira, apresenta várias representações sugestivas de execução da guitarra portuguesa, nos bairros históricos de Alfama – Rua de S. Miguel - e Mouraria – Largo da Achada. Em Rua de S. Miguel em Alfama, a verticalidade do casario acentua a estreiteza da rua, banhada, ao fundo, por uma luminosidade intensa que ilumina a torre sineira da Igreja de S. Miguel. A riqueza de pormenores acentua a objectividade da narrativa, ao longo da qual podemos deter o olhar na profusão de elementos captados ao quotidiano deste bairro histórico. Aos transeuntes passeando na rua, cumprindo a azáfama do dia, somou-se o registo naturalista da representação do casario sinuoso, com as suas varandas em ferro forjado, uma gaiola com um pássaro à janela, estendais de roupa esvoaçando, numa profusão de detalhes que reitera o tom fotográfico da obra, como se de um instantâneo de Alfama se tratasse.

Registando visualmente a Lisboa do seu tempo, as imagens de Roque Gameiro adquirem pertinência maior, comprovadamente demonstrando a execução da guitarra em ambiente de exterior, nos alvores do século XX, em contraponto àquela que seria a norma a partir da regulação imposta pelo Decreto-Lei de 16 de Maio de 1927. A execução da guitarra portuguesa encontra-se também documentada numa curiosa obra de Raquel Roque Gameiro, (1889-1970), filha e discípula de Alfredo Roque Gameiro, talentosa aguarelista e ilustradora que incansavelmente representou costumes e tipos populares, figuras de pescadores e camponeses, surpreendidos na sua faina diária, saloios dos arredores de Lisboa, interiores rústicos ou paisagens rurais. Em Minho, Raquel Roque Gameiro documenta a execução da guitarra portuguesa nesta região do norte do país, momento lúdico de pausa partilhado por um casal de minhotos, inquestionavelmente caracterizados no traje que envergam. Sentados num degrau à porta da habitação de granito, as suas figuras compõem uma diagonal que atravessa a composição, ela sentada com as mãos sobre os joelhos, ele sentado de pernas cruzadas e esticadas, tocando guitarra. Toda a indumentária das figuras reitera a sua proveniência geográfica como a filigrana dos brincos do tipo arrecadas de Viana, os colares ostentando o popular coração opado da região, a camisa branca com o bordado de Viana do Castelo, ou as vestes do traje masculino. Curiosamente o instrumento é um modelo de Lisboa, como o anuncia a característica voluta em forma de caracol. De descendência inglesa mas nascido em Lisboa, Francis Smith (1881-1961) foi um peculiar intérprete de temas portugueses, apesar de radicado em Paris durante mais de cinquenta anos. Percursor do modernismo, no seu vasto legado reencontramos memórias de Lisboa, cenas pitorescas e populares dos bairros típicos, representações singulares evocando lembranças afectivas da cidade que deixou em 1907 para se fixar em Paris. Inicialmente predestinado à carreira militar,189 as sua aptidões artísticas seriam enaltecidas pelos primeiros mestres, José Ribeiro Júnior e Constantino Fernandes, que o aconselham ao estudo em Paris. Ali conheceu Eduardo Viana, Emmerico Nunes, Amadeo de Souza-Cardoso, Manuel Bentes, entre outros artistas, integrando-se rapidamente no círculo de Montparnasse, contraindo matrimónio com a escultora francesa Yvonne Mortier em 1911.   - Seu pai e seu avô eram oficiais da Marinha.

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Lisboa- O Fado, s/d Francis Smith Guache s/ cartão 65 x 54,5 cm Colecção Museu de Lisboa

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Adoptando a nacionalidade francesa, raras vezes tornou ao país natal, embora este povoe parte significativa da sua obra, pontuada pelas recordações da cidade onde nasceu. A sua obra, de expressão modernista, encontra-se povoada de memórias de Lisboa. Num comovente tributo afectivo Francis Smith faz representar a figura do pai em inúmeras obras. Testemunho da gratidão do artista pelo apoio financeiro paterno, que lhe permitiu dedicar-se em exclusivo à sua arte em Paris, a obra de Francis encontra-se polvilhada de referências do seu pai, que desfila, em distintos ambientes, sempre envergando fato preto, camisa branca e chapéu. À efervescência artística parisiense Francis Smith contrapunha uma fantasia calma e idílica que repetidamente colou à imagem de Lisboa, num expressionismo naturalmente pontuado pelas influências da Escola de Paris, mas sempre fiel ao universo do lirismo português, evocando os bairros típicos da capital do seu país, aldeias e paisagens em ambientes moderadamente festivos, quotidiano feito de doçura e serenidade. Através de uma cuidada simplificação de formas, às quais aplicava paleta viva e luminosa, de cores puras, entre o impressionismo e o fauvismo, Smith fez desfilar um inventário de memórias afectivas da cidade que deixou, rumo a Paris, em 1907, e que nas suas telas fez transparecer de modo idílico, espécie de visão lírica perdida no tempo e num espaço sentimental190. Nesta imagética de recordações de Lisboa, o Fado pontua os ambientes em cenas extraídas ao quotidiano onde a guitarra portuguesa figura nas mãos de anónimos tocadores ou, noutro registo, nas mãos do colega e amigo, Manuel Bentes, também radicado em Paris. A nostalgia de Smith por Lisboa revelar-se-ia de modo serial em múltiplas evocações dos bairros populares, contrariando a ausência do seu país em registos idílicos do quotidiano alfacinha que evocaria com saudade, a partir de Paris. A guitarra portuguesa pontua o quotidiano, seja no recato intimista do crepúsculo ou no ambiente festivo domingueiro, com personagens estilizadas em pinceladas breves, miniaturas sem rosto, animando uma cenografia arquitectónica que repetidamente se ergue em anfiteatro. A guitarra portuguesa assumirá renovado protagonismo no Retrato de Manuel Bentes, que Francis Smith executa em 1909. Desenho a carvão, ali se retrata o amigo e pintor Manuel Bentes (1885-1961) que, na companhia de Emmerico Nunes e Eduardo Viana, acompanharia Smith num périplo por Inglaterra, Holanda e Bélgica, em 1910. No ano seguinte, os quatro amigos participariam na exposição de Arte Livre do Salão Bobone, em Lisboa, organizada pelo próprio Manuel Bentes, então presente na capital portuguesa. No   - Maria de Aires SILVEIRA, “Francis Smith” in Pedro LAPA e Emília TAVARES (Coordenação) Arte Portuguesa do Século XX, MNAC-Museu do Chiado, 1910-1960, p. 339. 190

retrato de Manuel Bentes transparece a qualidade técnica do trabalho de Smith no estudo da luz, no tratamento das mãos, ou no olhar do retratado, perscrutando o espectador. Documentando a presença da guitarra portuguesa no ambiente boémio do atelier, o retrato de Bentes necessariamente evoca obras como a Peccata Nostra de José Malhoa de 1920, O Meu Atelier em Paris, de Armando Basto de 1913, a célebre Guitarra Minhota de Eduardo Viana ou o afamado retrato de Amadeo em pose fadista. A par de Mário Eloy, também o portuense José Cândido Dominguez Alvarez (1906-1942) nascido na freguesia de Campanhã, em 23 de Fevereiro 1906, traçou nos anos 30 uma carreira breve e relativamente marginal. Artista de vocação inesperada,191 Alvarez não pertencia a um meio onde a vocação artística fosse cultivada como aconteceu com os seus contemporâneos e não chegou a conhecer os grandes polos dinamizadores da arte. Nunca visitou Lisboa e muito menos Paris ou Berlim. Os primeiros trabalhos de Alvarez, aguarelas e desenhos à pena e a lápis, datam de 1924, tinha ele 18 anos. Em 1926, com 20 anos, matriculou-se no curso Preparatório de Arquitectura da Escola de Belas Artes do Porto que veio a trocar pelo de Pintura, em 1928, e que só terminaria em 1940, aos 34 anos de idade, com a classificação de vinte valores, através da obra Paisagem com Animais. Entre 1940 e 1942 foi bolseiro do Instituto de Alta Cultura, sendo então nomeado professor da Escola Industrial Infante D. Henrique, no Porto, falecendo a 16 de Abril de 1942, vítima de tuberculose. Apesar da brevidade da sua carreira, praticamente coincidente com a sua formação académica e por consecutivos períodos de doença interrompida, Dominguez Alvarez deixou centenas de obras. Na Escola de Belas Artes destacou-se imediatamente pela posição de ruptura publicando, em 1929 o manifesto do grupo Mais Além que criticava o paisagismo tradicional português e defendia a modernidade vanguardista. No grupo Mais Além angariou o reconhecimento e a simpatia dos seus pares, participando em Novembro numa primeira exposição colectiva no Salão Silva Porto. Embora apreciada pelo grupo da Presença a sua obra conheceu divulgação muito restrita e quase marginal ao circuito oficial da época. 192 De facto, tendo participado em várias exposições colectivas, realizou uma única exposição individual no Salão Silva Porto, em 1936. Os seus artistas de referência foram os espanhóis Gutiérrez-Solana e, sobretudo, El Greco. Ali bebeu inspiração que recriou dentro de um   - Idalina CONDE, “Alvarez: ambiguidades na biografia de um pintor”, Sociologia, Problemas e Práticas, 9, pp. 207-225. 191

- Laura CASTRO, Dominguez Alvarez. Lisboa: Caminho, 2005. p. 11

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Casa das Violas, s/d

Domingos Alvarez Óleo s/ tela 22,5 x 26,5 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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sistema plástico muito pessoal, alheio à aprendizagem da «boa pintura» académica e naturalista, alheia também às heranças eruditas do modernismo 193 Em A Casa das Violas, numa composição desnivelada, pautada por elementos de força contraditórios, num cenário vincado pelo artifício e pela sombra, Alvarez documenta visualmente um estabelecimento existente à época, no Porto, atestando a consagração popular de guitarras e violas e sua comercialização, de norte a sul do País, nos meados da década de 1930. Aqui reencontramos os contornos expressionistas da sua pintura do quotidiano, com a tensão que lhe é característica, em ambiente urbano soturno, com as montras desalinhadas e as usuais figuras a negro, por vezes ondulantes, traduzindo uma inquietude que perpassa o tratamento de paisagem da sua obra neste período. Arnaldo Louro de Almeida (1926-2008), nasceu em Lisboa, freguesia de Arroios, no dia 1 de Agosto de 1926, no seio de uma família de tradição antifascista. Formado na Escola de Artes Decorativas António Arroio (19391944) apresentou os seus primeiros trabalhos nas Exposições Gerais de Artes Plásticas. Entre 1948 e 1949 exerce actividade docente na Escola António Arroio e frequenta a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, concluindo o curso de Pintura em 1952. Nesse ano apresenta a sua primeira exposição individual na Sociedade Nacional de Belas Artes, reunindo trabalhos de pintura a óleo, têmpera, aguarela, desenho e gravura. Participou nas Exposições Gerais de Artes Plásticas entre 1946 e 1955. Em 1947, ano em que conclui a obra que integra o presente recenseamento de imagens, Arnaldo seria um dos onze artistas que viu um dos seus quadros apreendidos pela PIDE na 2ª Exposição Geral de Artes Plásticas. Tinha apenas 20 anos de idade e era o mais novo dos artistas expositores. Pertenceu aos corpos directivos da Sociedade Nacional de Belas Artes de 1950 a 1959, seguindo-se dez anos na Madeira, onde desenvolveu intensa actividade pedagógica. De regresso a Lisboa, sucedeu a Lino António na direcção da Escola António Arroio, reformando-se em 1993. A sua actividade pedagógica afastou-o do convívio dos cenáculos artísticos deixando, no entanto, obra considerável de pintura a fresco e têmpera, vitral, mosaico, cerâmica e laca. Mantendo-se desconhecida do público até Outubro de 2008, data em que passou a integrar o circuito expositivo permanente do Museu do Fado, por doação do artista, a presente obra de Louro de Almeida, de carácter vincadamente neo-realista, evoca a temática do quotidiano do proletariado, num ritual familiar valorizado através   - Raquel Henriques da SILVA, “Alvarez, o teatro do absurdo”. In: A.A.V.V. Panorama da Arte Portuguesa no Século XX., Porto, Fundação de Serralves, Campo de Letras, 1999, p. 105. 193

de um dramático claro-escuro. O tratamento anatómico das figuras evoca intencionalmente a exploração social. À parca refeição, miséria que a chegada de um jovem descalço vem agravar, assiste a imagem de Nossa Senhora de Fátima. Uma guitarra portuguesa abandonou-se a um canto. Com óbvias características neo-realistas, a composição de Louro de Almeida deixa adivinhar duras críticas ao regime, espécie de prenúncio do proclamado slogan oposicionista dos três F’s194 popularizado, como veremos, nos anos 60. Fruto da consagração popular do Fado, a representação plástica do tema sucedeu no quadro de uma vincada diversidade de disciplinas artísticas, dimensionando-se num volumoso e multifacetado corpus artístico de representações de cariz popular, onde se incluem obras como a emblemática Casa da Mariquinhas de Alfredo Duarte Marceneiro, peças decorativas em cerâmica, obras de produção artesanal local, entalhamentos de volutas de guitarras portuguesas, em suma testemunhos artísticos, elaborados no quadro de distintas disciplinas e de proveniência geográfica muito diversificada, que transversalmente documentam o elogio ou a evocação memorial do Fado. Em simultâneo, revela-se todo um programa estético de pendor utilitário que integra o quotidiano da cidade onde o Fado ocupa lugar central e que reúne testemunhos tão distintos como as colecções de caixas de fósforos com representações da figura do fadista, as garrafas de licor de perfil antropomórfico, copos, pratos, cinzeiros, enfim, uma multiplicidade de testemunhos que atestam bem o profundo enraizamento do género na cidade de Lisboa. Construída por Alfredo Duarte Marceneiro a partir do poema homónimo, da autoria de Silva Tavares, a Casa da Mariquinhas195 evoca um imaginário sucessivamente retomado nos textos cantados e na representação iconográfica do género, desde a pintura de bambochata de Nicolas Delerive de 1901, passando pelo grafismo da literatura de cordel e mesmo por algumas aguarelas e gravuras explicitamente evocativas, como vimos, dos circuitos de prostituição associados ao Fado no século XIX. Figura consensualmente reconhecida no universo fadista, em particular desde o pós-guerra, os seus ensinamentos eram recebidos com veneração no circuito das casas de fado por onde circulava, colhendo a admiração das gerações mais jovens que nele reconheciam um oráculo da tradição fadista, generoso quando gostava do   - Leia-se Fado, Futebol e Fátima, slogan preconizado pela Oposição democrática para caracterizar a manipulação da consciência cívica dos portugueses pelo regime de Salazar, através da exaltação do culto destes três fenómenos. 194

- Poema original da autoria de Silva Tavares, 1913.

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Sem Título, 1953 Augusto Gomes Tinta-da-china e grafite s/ papel 33 x 23 cm Colecção Museu Calouste Gulbenkian

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que ouvia, implacável quando não lhe agradava.196 Para a história do Fado ficariam as suas afamadas improvisações melódicas partindo por vezes dos grandes fados estróficos mais tradicionais – o Menor e o Mouraria – dando origem a reconfigurações estilísticas que, por sua vez, se convertiam em novos fados.197 Património central na história da criação musical portuguesa do século XX, no seu extenso legado encontram-se os fados Marcha do Alfredo Marceneiro, o Fado Laranjeira, Lembro-me de ti, Fado Bailado, Fado Bailarico, Fado Balada, Fado do Cabaré, Fado Cravo, Fado CUF, Fado O Louco, Fado Mocita dos Caracóis, Fado Pagem, Fado Pierrot, Bêbado Pintor, o Fado Aida ou o Fado Viela, entre muitos outros.

Caixas de Fósforos Severa, s/d Sociedade Nacional de Phosphoros, Lisboa Colecção particular

Considerado como um dos ex-libris das criações fadistas de Alfredo Duarte Marceneiro, a Casa da Mariquinhas,198 consolidou uma temática matricial do género, sucessivamente evocada nos repertórios poéticos, ao longo de várias gerações. A sua criação enquanto objecto artístico, para além de consolidar uma das mais claras vias de transfiguração do património imaterial num testemunho material, constitui um relevante testemunho da consolidação da iconografia do Fado pela mão dos seus criadores e executantes. Representando um contexto central na génese da canção urbana, a imagética do bordel encontrava-se, de resto e como vimos anteriormente, plasmada na pintura de bambochata de Delerive, em algumas gravuras anónimas do século XIX, nos trabalhos a aguarela de Alberto de Souza, no célebre Cancioneiro do Bairro Alto e em repertórios poéticos coevos, entre tantos outros testemunhos. Figura mítica sucessivamente evocada pelos criadores de Fado, tema profundamente acarinhado no universo dos poetas populares do fado tradicional, a Mariquinhas e a sua casa, conheceram diferentes rumos, desde a segunda metade do século XX até aos nossos dias.   - Rui Vieira NERY, Pensar Amália, Lisboa, Tugaland, 2009, p.123.

196

- Como por exemplo A Marcha de Alfredo Marceneiro, uma melodia de sextilhas sobre um Corrido lento em ritmo de marcha ou o Fado Bailarico, uma variante do velho Fado Dois Tons. 197

- A partir do poema de Silva Tavares e da música de Marceneiro no fado corrido (popular). 198

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Rua de S. Miguel em Alfama, s/d Alfredo Roque Gameiro Aguarela s/ papel, 65 x 41 cm Colecção Museu de Lisboa

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Da Madragoa à Ajuda pela Pampulha, 1947 Emmerico Nunes Aguarela s/ papel 48 x 63 cm Colecção Museu de Lisboa

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ANTI-FADISMO: O CULMINAR DA REJEIÇÃO CRÍTICA

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Lisboeta, 1952 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela 92,5 x 62 cm Depósito Colecção Museu de Lisboa

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Anti-Fadismo O fadismo das misérias Covardias e decadências Que apagas quantos e quantas Ao teu mau fascínio cedem: Pára, pára de cantar! - São os melhores que t’o pedem!

Pára, pára de cantar! São os melhores que t’o pedem!199

Autor de extensa produção pictórica sobre a temática fadista, Cândido da Costa Pinto (1911-1977) fez figurar a guitarra portuguesa em aproximadamente dezanove obras, algumas com referências directas ao Fado. Depois de cumprir os estudos liceais em Coimbra, onde fundou o Grupo dos Divergentes, Cândido da Costa Pinto apresentou-se ao público lisboeta em 1941, como caricaturista e publicitário, na primeira exposição individual no Secretariado de Propaganda Nacional. Aderindo, em 1942, a uma poética surrealista, embora extremamente individualista e isolado, contribuiu para o movimento com uma obra irregular, estabelecendo contactos, em 1947, com o grupo de André Breton, autor do Manifesto Surrealista de 1924. Impulsionando o grupo de Lisboa, dele seria excluído por exigências éticas. Com efeito, a participação numa das exposições do SNI, com a obra Em Lisboa Há Bacalhau (1947), conduziria à cisão definitiva com os seus camaradas surrealistas que defendiam a não participação nas exposições oficiosas do regime de Salazar. Isolado a partir de então, a sua pintura entrou definitivamente no campo da abstracção. Em 1963 partiria para o Brasil, afastamento que terá ditado o conhecimento relativamente tardio da sua obra, lacuna que uma exposição retrospectiva em 1995 veio ultrapassar.200 Inteiramente pintada em S. Paulo, pouco depois de Cândido da Costa Pinto ali se ter instalado, a obra Anti-Fadismo ocupa um lugar central na produção do artista, traduzindo um ajuste de contas muito pessoal face à estagnação da realidade portuguesa. Luís de Moura Sobral desvendou as notas que Costa Pinto redigiu no contexto de produção da obra: 199

- Cândido da Costa Pinto, Anti-Fadismo, 1963.

- Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Museu Municipal Dr. Santos Rocha, Figueira da Foz, 28 de Março a 30 de Junho de 1995 e Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, 20 de Julho a 30 de Setembro de 1995.

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A Grande Vida da Hora Desce do Alto e a Prumo E marca aqui e agora O Anti-Fadismo leal Que dá bom rumo à Missão Do Povo de Portugal 201

Corporizando a consciência popular contra o espírito de resignação e conformismo acrítico do povo português, subjugado passivamente ao fatalismo social e humano que o Fado, no entendimento de Costa Pinto, cantava e descrevia, Anti-fadismo assumia-se como um grito eloquente, visando a passividade acrítica que o Fado em seu entender promovia: Acho apenas que os maus estímulos deviam ser eliminados e considero o Fado (concretização virulenta do referido espírito) um mau estímulo – embora possa servir de motivo de curiosidade (não de respeito nem de admiração) para atrair turistas. Aliás, parece que o Fado não é de origem portuguesa.202 Cena desenrolada na zona ribeirinha de Lisboa, vislumbrando-se a colina até ao Castelo, um indivíduo destruindo ruidosamente uma guitarra portuguesa, capta imediatamente a atenção do espectador. Ao centro, a presença de uma esganiçada fadista, de pescoço desmesurado, sublima a subjugação da cidade de Lisboa à triste melopeia do Fado. Personagens sorumbáticas observam resignadamente a cena, acentuando o registo de uma passividade acrítica   - Versos do autor a propósito de Anti-Fadismo, cfr. Luís de Moura Sobral in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995.

201

- Luís de Moura SOBRAL, in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995, pp.45-159. 202

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Anti-Fadismo, 1963 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela 132 x 285 cm Colecção Fundação Portuguesa das Comunicações / Museu das Comunicações

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S/Título, 1945 Cândido da Costa Pinto Óleo s/ tela 65 x 46 cm Colecção Carlos do Carmo

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face a um destino inelutável. Dois jovens contemplam o cenário, de semblante condescendente. No canto superior direito, uma figura espreita por uma janela com gradeamento, clausura já sugerida em obras anteriores, sistematicamente reiterando o hermetismo da realidade cultural portuguesa contemporânea do artista. Podemos rastrear a génese de Anti-Fadismo até cerca de 1946, data de um estudo para a figura da direita, um esgazeado, famélico e esfarrapado rapaz que despedaça com alucinado ódio uma guitarra.203 Em Anti-Fadismo o jogo em torno dos formalismos de escala e proporção evidencia-se, ainda, na representação anatómica, na figura da fadista de pescoço desproporcionalmente alongado - voz de Lisboa subjugando e transcendendo a cidade – ou noutros elementos de dimensão deliberadamente desmesurada como o vinho, o manjerico, o estendal, a mão que pede esmola, enquanto ostenta uma guitarra. No primeiro plano, a destruição enérgica e furiosa da guitarra numa manifestação óbvia de aviltamento e crítica face à estagnação cultural de Lisboa. Numa outra obra datada de 1945,204 uma gigantesca guitarra portuguesa com o braço torcido fez-se amarrar ao cais por duas cordas, suportando um estendal de roupa. Um casal passeando, parece indiferente a uma faca cravada no chão, mais adiante, perto de um corpo estendido. Eis o argumento de narrativa trágico-urbana da obra datada de 1945, onde a guitarra se transforma no tema principal do quadro assumindo um carácter assumidamente público, segundo a premissa de Morris.205 Costa Pinto agigantou desmesuradamente a escala e a proporção da guitarra que aqui fixa a imagem de uma Lisboa subjugada ao conformismo do Fado, destino angustiante e inultrapassável. Como salienta Luís de Moura Sobral: objecto de fascinação e de raiva, tudo isso, sincreticamente, era a guitarra portuguesa para Costa Pinto, que continuará a representá-la obsessivamente até ao fim da sua vida de voluntário exilado paulista.206 A amplificação da guitarra portuguesa faz-se à custa da escala da própria cidade, insistentemente apagada e diluída no cenário sombrio e angustiante do Fado. Também em Lisboeta (1952), a guitarra portuguesa compõe a fisionomia da protagonista, num tom agonizante face ao hermetismo cultural da capital. Elementos colhidos ao imaginário lisboeta – o estendal de roupa, o manjerico, a garrafa de vinho – compõem o retrato da figura feminina, de semblante complacente, cristalizando Lisboa como a mais resignada, sombria e triste das cidades.   - Luís de Moura SOBRAL, in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995, p.210 203

- Cândido da Costa Pinto, Sem Título, c. 1945, Óleo s/ tela, 65 x 46 cm, Colecção Carlos do Carmo.

204

205

- R. MORRIS, Notas sobre Escultura, p. 94.

- Cfr. SOBRAL, Luís de Moura in Cândido da Costa Pinto, Retrospectiva, 1911-1977, Fundação Calouste Gulbenkian, Centro de Arte Moderna José de Azeredo Perdigão, Lisboa, 1995. 206

Esta rejeição do Fado por alguns sectores artísticos e intelectuais a partir de meados do século XX deverá naturalmente entender-se à luz do posicionamento estratégico do Estado Novo que, como observou Rui Vieira Nery, vai gradualmente invertendo a sua distanciação ideológica inicial em relação ao Fado para procurar agora, pelo contrário, incorporar o género numa estratégia de imagem populista que se estende a todos os domínios da indústria cultural de massas – da Rádio e Televisão, à Revista e ao Cinema (…) tal como se procurará colar, no plano internacional, à imagem de prestígio crescente de Amália Rodrigues, também no plano interno o regime multiplicará e apadrinhará agora as oportunidades de exposição pública do Fado, assegurando-lhe uma presença relevante nos Serões para Trabalhadores da FNAT, nas festas de impacto popular promovidas ou apoiadas pelo SNI e pelas autarquias, na Rádio e na Televisão estatais, na cinematografia oficiosa.207 Nas vésperas da revolução de Abril, o circuito fadista em Lisboa atestava uma dinâmica significativa, fruto de um processo evolutivo de várias décadas ao longo das quais o Fado transitou dos ambientes mais informais para um contexto de profissionalização plena. Simultaneamente, enquanto a canção de intervenção ganhava corpo nas vozes de José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, José Mário Branco, ou Sérgio Godinho, aprofundavam-se gradualmente as divergências ideológicas face ao universo do Fado. Restabelecida a Democracia em 25 de Abril de 1974, o Fado defrontar-se-ia com um contexto de rasgada hostilidade. Aos argumentos críticos que o conotavam com o salazarismo e a própria estratégia de sustentação política do regime deposto, somavam-se, para além da publicação da Mitologia Fadista de António Osório,208 uma atitude generalizada de franca rejeição pelos sectores políticos mais radicais no período revolucionário de 1974-75, durante o qual o Fado seria praticamente banido da Radio e Televisão estatais em Junho do mesmo ano. Mesmo uma tradição popular profundamente enraizada como a Grande Noite do Fado é interrompida durante dois anos. A própria Amália – mesmo prosseguindo uma intensa carreira internacional e de em sua defesa se erguer a insuspeita voz de Vinicius de Moraes em visita a Portugal - seria alvo de violentíssimos ataques na praça pública, acusada de colaboracionismo por vários sectores da Comunicação Social e, como explica Rui Vieira Nery: acusada de dever a sua carreira à protecção do regime ou mesmo – testemunho já de pura esquizofrenia política – de pertencer à própria PIDE.209 Na sua Mitologia Fadista, publicada em Junho de 1974, António Osório observava: O Fado entrega-se à resignação comprazendo207   - Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Publico/Corda Seca, Lisboa, 2004, pp. 238-240. 208   - António OSÓRIO, A Mitologia Fadista, Lisboa, Livros Horizonte, 1974. 209   - Rui Vieira NERY, Para Uma História do Fado, Lisboa, PÚBLICO, Corda Seca, 2004, p. 256.

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Camões, Marialva, Miguel, Folclore, 1976/77 João Abel Manta Caricaturas Portuguesas do Tempo de Salazar Guache s/ papel 28,3 x 36 cm Colecção Museu de Lisboa

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se com a própria dor, faz gala no seu pessimismo lúgubre. Agonia consigo mesma satisfeita, conformismo levado ao extremo, apatia, renúncia totais, eis os traços dominantes da moral que supura no Fado. O que este revela, em ponto grande, é uma frustração arrepiante. (…) O fatalismo fadista, embora descoroçoante, oferece a vantagem decisiva de não exigir coisa alguma. Numa palavra, assenta na destruição da razão, na irrelevância da vontade, na inutilidade da acção. O seu conformismo é o resultado dessa atitude de renúncia que se generalizou a todas as classes.210 Em 1977 João Abel Manta publicava um conjunto de caricaturas ilustrando os anos do salazarismo, justificando: Há uma estética dos regimes (..) e o salazarismo também tinha a sua. Até nas cores, até nos fadistas ranhosos ou nos bailarinos do Verde-gaio. E foi também essa estética que eu procurei transmitir neste álbum.211 Constituindo um ajuste de contas pessoal face a tudo quanto teve de suportar durante o reinado de Salazar, as Caricaturas Portuguesas dos Anos de Salazar, apresentavam um regime fascista mesquinho na sua paranóia, virando contra ele o humor. E se em Folclore (1976/77) Abel Manta evocava a célebre pintura de Amadeo datada de 1917, com a sua guitarra sangrando - em Camões (1976/77) associava-o à comunidade estudantil de Coimbra e, finalmente em Marialva (1976/77) ou Miguel (1976/77) plasmava uma visão decadente e sombria do Fado. De facto, boa parte dos repertórios populares do género apontariam para esta resignação. Vejamos, a título meramente exemplificativo uma quadra do poema O Triste Fado Corrido, de Azinhal Abelho, que associava o Fado a um fatalismo acrítico inultrapassável:

Desesperos e reveses Cabem no fado à vontade Na vida dos portugueses O fado é fatalidade212

Integrando naturalmente o Fado e esses fadistas ranhosos213, ora associados ao marialvismo, ora a prostitutas, em registos pautados pela transversal visão de uma canção urbana decadente e ridícula, João Abel Manta encerrava nas artes plásticas portuguesas do pós25 de Abril o debate em torno da legitimidade estética e ideológica do Fado, tal como António Osório fizera ao publicar a sua Mitologia Fadista, ainda que já dois meses corridos sobre a restauração do regime democrático em Portugal. À semelhança de António Osório também para Abel Manta o fado serve à maravilha de droga ideológica: é realmente a canção que nos adormenta.214 Permitindo distintas leituras, em distintos sentidos, as Caricaturas assumem-se, no seu conjunto, como uma ilustração dos anos de Salazar, aí se encaixando o ridículo e a tragédia daquele período, em instantâneos da guerra colonial, liberalismo e miguelismo, conluios com Hitler e Mussolini, revolta e submissão popular, agentes de tortura e propaganda fascista, degradando ensino, teatro, cinema, pintura, enfim, como sintetizou Mário Dionísio: Trata-se de um espelho! (…) E dos que não enganam. Até ao mais ínfimo pormenor. A caricatura com que João Abel Manta no-lo põe diante dos olhos é uma monstruosidadezinha recuperada, uma fala do Salvador da Nação, colhida num seu biógrafo: - Mãe, sabe? Querem que eu vá para Lisboa para ministro das Finanças. Mas custa-me deixá-la assim. Não sei o que faça. Que o sabia muito bem (…) mostra-o de sobra esta obra excepcional. Do princípio ao fim ou do fim para o princípio.215

210

- António OSÓRIO, A Mitologia Fadista, Lisboa, Livros Horizonte, 1974, pp.104-105.

213   - Jornal de Letras, João Abel Manta -Retratos do Salazarismo, 18 de Novembro de 1998.

211   - Jornal de Letras, João Abel Manta -Retratos do Salazarismo, 18 de Novembro de 1998.

214   - António OSÓRIO, A Mitologia Fadista, Lisboa, Livros Horizonte, 1974, p. 106.

212

- Azinhal ABELHO, Os Anjos Cantam o Fado, p. 14

- Mário DIONÌSIO, in O Jornal de 29 de Dezembro de 1978.

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SE NÃO TENHO OUTRA VOZ: O RECONHECIMENTO DE UMA DIMENSÃO IDENTITÁRIA DO FADO

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Lusitânia No Bairro Latino, 1985 Júlio Pomar Acrílico s/tela, 158,5 x 154 cm Colecção Museu Gulbenkian

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Se não tenho outra voz que me desdobre Em ecos doutros sons este silêncio, É falar, ir falando, até que sobre A palavra escondida do que penso José Saramago216

Com a Revolução de Abril de 1974 tinha lugar a instauração de um Estado democrático em Portugal. Paulatinamente, ao longo das décadas seguintes, far-se-iam sentir as influências de uma cultura de massas, próprias de uma sociedade da era da globalização, contexto que modificaria a relação do Fado com o mercado português, que se concentrava agora na música popular de carácter interventivo absorvendo, simultaneamente, muitas das formas musicais criadas no estrangeiro. Acarretando consigo um agudizar da polémica ideológica em torno do Fado que se entendia intrinsecamente ligado ao regime deposto, o período revolucionário de 1974-75 traduzir-se-ia numa atitude de rejeição frontal do género pelos sectores políticos mais radicais. A célebre canção de luta A Cantiga é uma Arma - do Grupo de Acção Cultural (GAC) agrupamento musical próximo da extrema-esquerda marxista-leninista – atestava bem a profunda hostilidade ao Fado ao cantar: O faduncho choradinho/ de tabernas e salões/ semeia só desalento/ misticimo e ilusões./ Canto mole em letra dura/ nunca fez revoluções.217 Assim se compreendem, nos anos imediatamente seguintes à revolução, a interrupção, por dois anos, do concurso da Grande Noite do Fado, os violentos ataques à figura de Amália Rodrigues – injustamente acusada de colaboracionismo - ou a diminuição radical da presença do Fado em emissões radiofónicas e televisivas, atestavam bem o contexto de efervescente hostilidade ao Fado. De facto e como salientou Rui Vieira Nery: para o perfil ideológico e cultural de maioria da nova classe política oriunda da antiga Oposição Democrática, o fado integrara a estratégia de sustentação do regime deposto pelo que a hostilidade em relação ao fado se faz sentir, num período vincadamente conturbado pelo extremar de posições ideológicas.218 A partir de 1976, a reafirmação do quadro constitucional e a estabilização do regime democrático devolveria ao Fado o seu espaço próprio no conjunto da vida cultural portuguesa. Reencontrando o Fado o seu espaço central no conjunto da vida cultural  - Se Não Tenho Outra Voz, (letra de José Saramago, música de António Vitorino de Almeida) por Maria João Pires e Carlos do Carmo, Universal, 2012.

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portuguesa, logo em 1976 Amália realizava no Teatro Municipal São Luiz um apoteótico concerto, sendo reeditadas as suas gravações ao vivo dos anos 50 no Café Luso, e apresentando, no ano seguinte um novo álbum de originais, Cantigas numa Língua Antiga. No Festival da Canção RTP de 1976, Carlos do Carmo seria escolhido como único intérprete das canções apresentadas a concurso. Em 1977, com o seu álbum Um Homem na Cidade, com repertórios poéticos de José Carlos Ary dos Santos, consagrado autor e militante comunista, encetavam-se os primeiros passos para uma reconciliação com o Fado pela parte de alguns círculos intelectuais tradicionalmente ligados à Oposição Democrática. Fundada numa longeva capacidade de inovação, a biografia artística de Carlos do Carmo - para além de continuadamente nos surpreender, deitando por terra qualquer estereótipo em torno de um alegado fado novo - é, sobretudo, a história de um grande amor por Lisboa e pela Arte que abraçou e sublimou a um tom Maior. Como em regra sucede com os grandes amores, o seu amor por Lisboa e pelo Fado é profundamente exigente e insatisfeito: traz consigo a inquietude de quem perscruta o mundo e o outro em permanência. Distanciando-se do pathos mais melancólico do Fado, na sua relação ambígua com uma certa acepção de sina ou destino, Carlos do Carmo preferiu, desde muito cedo, celebrar uma Lisboa luminosa, sempre ciente – como ainda hoje afirma –de que o melhor está para vir. Na sua voz, sonda de incessante renovação poética e musical, reencontramos a celebração dos grandes temas matriciais do Fado, num tom inevitavelmente insubmisso ao fatalismo das tristezas cor de chumbo219 que, a partir da nossa literatura, nos seus testemunhos mais populares ou eruditos, a mitologia fadista haveria de cristalizar. Altivo e livre da imagem resignada do negro fado brutal, Carlos preferiu sempre a imagem positivista do verso em branco à espera do futuro.220

217

- Rui Vieira NERY, Fado: Um Património Vivo/Fado: A Living Heritage, Lisboa, CTT, 2012, p. 83.

219   - Do poema “Males de Anto” de António Nobre, autor confesso do livro mais triste de Portugal. Veja-se Só, Porto, Aillaud & Lello, 1913.

- Rui Vieira NERY, Para uma História do Fado, Lisboa, Publico/ Corda Seca, 2004, p.257

220  - No teu poema, José Luís Tinoco. Carlos do Carmo, Uma Canção Para a Europa, Movieplay- RTP, 1976

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Carlos do Carmo, 2007

Júlio Pomar Acrílico, carvão e pastel s/ tela 100x 70 cm Colecção Fundação Júlio Pomar / Acervo Atelier-Museu

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Integrando ontologicamente a cidade, a voz de Carlos transmutou-se há muito numa alegoria de Lisboa, celebrada, nas últimas quatro décadas, nos palcos mais prestigiados de todo o Mundo. Filho de Lucília do Carmo, no centro de uma linhagem tradicional, Carlos cresceu no circuito privilegiado de ligação à tradição fadista mais legítima, rodeado das grandes figuras de referência, de Britinho a Marceneiro ou Martinho d’Assunção. Do convívio quotidiano com os grandes pilares do Fado das primeiras décadas do século XX, Carlos colheria um conhecimento, tão sólido, quanto profundo, da matriz tradicional. Só esse entendimento - transbordante de respeito e gratidão pela herança materna - permitiria, aliás, o extraordinário equilíbrio entre a assunção das raízes mais tradicionais e uma permanente sede de descoberta de novos rumos poéticos e musicais, num itinerário pessoal desde cedo marcado por uma assombrosa originalidade. Do talento raro de saber escutar - que o acompanha até hoje – decorria toda uma experiência meditativa e contemplativa onde o passado foi e é, sobretudo, impulso de futuro e de renovação. Nos alvores de um itinerário artístico de cinquenta anos, Carlos do Carmo trazia já consigo uma mundividência cosmopolita estruturada numa formação cultural bastante eclética – polvilhada, ao nível musical, de referências exteriores ao Fado - a par da graduação em gestão hoteleira na Suíça e do domínio fluente de várias línguas. Durante cerca de duas décadas, acumularia a gestão da casa de fados com a vida artística, actuando diariamente ao lado da mãe, factor que consolidaria O Faia como a sala de visitas da cidade, referência incontornável da sua oferta cultural e turística. Incondicional admirador de Brel, Sinatra, Elis Regina, Zeca Afonso, Chico Buarque, Luís Gonzaga ou Dorival Caymmi – estes últimos escutados ainda na meninice, nos discos que a mãe trazia das digressões ao Brasil –nunca hesitou em celebrar as suas referências musicais, cultivando-as em concertos e gravações que pontuam regularmente toda esta geografia temporal de meio século. E se sucessivamente revisitou as raízes da tradição fadista, a sua obra estruturou-se no diálogo aberto com poetas, compositores e músicos, numa intransigente e criteriosa procura de um repertório poético de qualidade, inovando num domínio ainda subjugado a alguns arquétipos que o confinavam no seu pathos mais escuro e melancólico. Da intensa colaboração artística com José Carlos Ary dos Santos resultaria a edição do fundamental álbum Um Homem na Cidade, em 1977, com músicas de José Luís Tinoco, Paulo de Carvalho, António Vitorino de Almeida, Fernando Tordo, Martinho d’Assunção, Frederico de Brito, Joaquim Luís Gomes e Moniz Pereira, emoldurando os poemas de Ary.

Operando uma ruptura fundamental no repertório do Fado, Carlos do Carmo distanciava-se de quaisquer reminiscências da mitologia da saudade que o romantismo promovera, sacudindo, em definitivo, toda a letargia da tristeza resignada que se cristalizara nos repertórios produzidos sob a égide da depuração censória do Estado Novo. Valorizando uma nova liberdade expressiva, a sugestão poética de Ary anunciava uma reconciliação com a cidade, Flor de Lisboa, bem amada/ Que mal me quis, que me quer bem.221 Dialogando abertamente com músicos oriundos de outras áreas musicais, a sua influência foi determinante para aproximar do Fado uma plêiade de criadores que se reviam num posicionamento de franca hostilidade ao género e que com ele desbravaram novos rumos poéticos e musicais. Foi também Carlos do Carmo a aproximar do Fado a figura do proeminente compositor, crítico e ensaísta Fernando Lopes Graça, um dos mais lúcidos pensadores da problemática da música portuguesa no século XX, cuja postura de rejeição do Fado havia promovido, até então, o distanciamento crítico da nossa Academia. Ainda em 1976 era retomada a Grande Noite do Fado – concurso organizado pela Casa da Imprensa cuja primeira edição remontava a 1953 – num Coliseu esgotado pelo público oriundo do circuito das colectividades bairristas que ali enviavam os seus concorrentes. Retomando as palavras de Rui Vieira Nery, a partir de 1976: Nas vertentes ideológicas mais díspares, e tanto no âmbito mais popular como no da sua ligação aos circuitos intelectuais mais sofisticados, o Fado reemerge com uma energia inusitada.222 Amália e Carlos do Carmo pontificam no universo do Fado da década de 80, a primeira lançando álbuns de originais como Gostava de ser quem era (1980) e Lágrima (1983), triunfando num apoteótico concerto no Coliseu em 1985 e prosseguindo num ritmo intenso as suas digressões por toda a Europa, Estados Unidos, América Latina e Japão, onde colheu variadíssimas distinções e homenagens. Ingressando no circuito de primeiro plano europeu, Carlos do Carmo promoveria concertos nos prestigiados palcos do Olympia de Paris (1980) e da Ópera de Frankfurt (1982), prosseguindo uma edição discográfica regular e significativa. O circuito das casas de fado era animado por artistas como Teresa Silva Carvalho, Teresa Tarouca, Fernanda Maria, Beatriz da Conceição, António Rocha, Maria Amélia Proença, António Pinto Basto, Nuno da Câmara Pereira, Argentina Santos – na Parreirinha 221  - Um Homem na Cidade, letra de José Carlos Ary dos Santos e música de José Luís Tinoco. Carlos do Carmo, Um Homem na Cidade, Trova, 1977. 222   - Rui Vieira NERY, Fado: Um Património Vivo/Fado: A Living Heritage, Lisboa, CTT, 2012, p. 84.

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Fado, 1995 Paula Rego Serigrafia, 36,5 x 40, 5 cm Colecção Museu do Fado

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de Alfama – ou Maria da Fé – no emblemático Senhor Vinho, casa fundada em 1975 e que assumiu, até hoje, um determinante papel na formação de novos valores do Fado. E se na Academia, com Joaquim Pais de Brito, se lançava, no início da década de 80, um importante conjunto de estudos sobre o tema, no plano internacional emergia um renovado interesse pelas culturas locais musicais, através dos seus expoentes mais reconhecidos, nos circuitos do disco, dos media e dos espectáculos ao vivo domínio no qual Amália Rodrigues e Carlos do Carmo assumiram protagonismo absoluto. A partir de 1990 e ao longo de vinte anos Mísia acompanharia a entrada do Fado nos circuitos da World Music, no seu caso com estreita ligação ao mercado francês e desenhando uma importante carreira internacional em países como Espanha, Japão, França, Argentina ou Inglaterra. Paralelamente, outros intérpretes portugueses se destacariam neste circuito assumindo algumas influências do Fado, designadamente do seu repertório, como Dulce Pontes, ou o hieratismo da postura em palco e a técnica vocal, como Teresa Salgueiro, solista do grupo Madredeus. No quadro musical português crescia gradualmente o consenso em torno da importância do Fado, que conquistava um renovado interesse pela indústria discográfica e integrava a programação das festas populares no circuito nacional. Gradualmente, aproximavam-se do género cantores e músicos vindos de outras áreas, como José Mário Branco, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo – por influência de Carlos do Carmo - ou António Variações. Paulatinamente, a partir do final da década de 90, consolidar-se-ia uma nova geração de intérpretes que crescera já em pleno regime democrático, distante das polémicas ideológicas que tinham afastado do Fado as gerações formadas nos anos 60 e 70 na tradição cultural da Oposição Democrática. Em 1985, a guitarra portuguesa irrompe na pintura pela mão de um nome maior das artes plásticas portuguesas: Júlio Pomar (n. 1926). Em Lusitânia no Bairro Latino, a guitarra protagoniza o plano onde Mário de Sá-Carneiro, Santa-Rita Pintor e Amadeo de Souza-Cardoso, captados enquanto emigrantes em Paris. Atestando o profícuo diálogo com a literatura que perpassa a pintura de Pomar durante os anos 80, Lusitânia no Bairro Latino foi uma das sete telas concebidas para ilustrar uma edição da Mensagem de Fernando Pessoa em 1985. Ali adivinhamos a penumbra da noite parisiense sublimando a solidão de Sá Carneiro e Santa-Rita Pintor - junto à Torre Eifell - e de Amadeo de Souza-Cardoso com uma enorme guitarra portuguesa, em diálogo com o aeroplano dos irmãos Right, que voava em Paris quando os futuristas portugueses por lá andavam.

De Amadeo, em pé, podemos distinguir o corpo, de mãos à cintura, numa pose imponente, afirmativa e promissora com que ficou numa conhecida fotografia e relembrando inevitavelmente uma outra fotografia onde posa com guitarra. Esboçando outros elementos reconhecíveis - uma mesa de café, o avião do início do século, dos irmãos Right, a torre Eiffel – Pomar confere amplo protagonismo à guitarra portuguesa. A fotografia de Amadeo haveria de inspirar a produção de um outro guitarrista, oferecido por Pomar a Manuel de Brito, pelo seu aniversário, obra que se encontra em exposição no Museu do Fado. Imagem nostálgica e desencantada, Lusitânia no Bairro Latino deixa-nos a sugestão de uma leitura simbólica em torno da ideia de um inelutável fado português impelindo o génio criativo para fora do país. Radicado em Paris desde 1963, é também inevitável a sugestão do paralelo entre a história de vida do pintor e dos expoentes do modernismo português. Em 1990, Graça Morais (n.1948) evocava o universo do Fado e da guitarra portuguesa em Mouraria, narrativa centrada em torno do instrumento e da relação entre uma figura feminina, envergando xaile vermelho, e um anónimo habitante do bairro. Convocando definitivamente o Fado e inspirando-se em modelos reais residentes no bairro da Mouraria, esta obra pontifica na representação do género, dentro do universo artístico de Graça Morais, que no mesmo ano realizara uma série de trabalhos onde a guitarra surgia fragmentada, em testemunhos visuais onde se apresentam pedaços dos seus componentes ou decoupages da sua forma, assinalando um território mítico.223 E se em 1994, a exposição Fado, Vozes e Sombras, dirigida por Joaquim Pais de Brito, no Museu Nacional de Etnologia, encetava os primeiros passos no sentido do reconhecimento do Fado como património musealizável, legitimando-o necessariamente enquanto objecto de estudos de investigação científica, no ano seguinte seria a vez de Paula Rego retomar o tema em Fado, sugestiva composição protagonizada por uma figura feminina executando uma gigantesca viola, secundada pelas apagadas figuras de dois músicos. A expressividade vincada das figuras identifica imediatamente o traço da artista que se confessa ouvinte regular de Fado em Londres, onde reside. Paula Rego haveria de retomar o tema no ano de 2001, através de encomenda do promotor Corda Seca, no quadro do projecto Os Azulejos e o Fado. Nesta colecção recriaria duas versões distintas do tema: a primeira traduzindo um lugar  - Pedro Caldeira CABRAL, Guitarra Portuguesa, Ediclube, 1999, p.285. 223

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Amália Negra, 1997 Leonel Moura Impressão s/ tela 49,5 x 35 cm Colecção Bruno de Almeida

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comum do universo fadista, com o protagonismo da intérprete e o acompanhamento do guitarrista - numa composição a sépia que, embora sugerindo semelhanças naturais com outras criações gráficas da autora, aparenta um traço bastante menos complexo - e, a segunda, sugerindo um pouco o grotesco da narrativa característica da sua obra. Sobre um melancólico fundo azul, a protagonista executa a guitarra, dominado todo o plano como que sintetizando essência e identidade portuguesas. Datam de 1987 os primeiros trabalhos da série Identidade de Leonel Moura, realizados no quadro das comemorações do cinquentenário da carreira artística de Amália Rodrigues na Valentim de Carvalho em 1990. Nestas imagens, Leonel Moura sobrepôs a palavra Portugal ao rosto de Amália num gesto de reconhecimento identitário do expoente máximo do Fado na cultura portuguesa. Imagens positivas – que a palavra Sim, aposta sobre o rosto de Amália vem, por vezes reiterar – estas obras testemunhavam uma celebração do lugar central do Fado na identidade lusa, no sentido de criar imagens de identidade. Primeiro as de Portugal, depois as da Europa e mais além as da própria identidade humana e civilizacional: a ideia do bem, o valor do pensamento, a cultura como ética.224 Celebrando o lugar com tudo o que isso implica de cometimento cultural225 o rosto de Amália, imagem de Portugal, seria sucessivamente reproduzido em técnicas, suportes e dimensões distintas, ganhando foros de imagem simbólica capaz de tudo dizer, enquanto objecto visual e conceptual, sintetizando um complexo sentimento de identidade. Imagem de Portugal, a sóbria tristeza do rosto de Amália revelava, aos olhos de Moura um carisma que supera qualquer reducionismo conjuntural. É como se sempre tivesse existido e se preparasse para tocar a eternidade. Evocando o poder dos media através da proliferação de imagens, a impressão do rosto de Amália acontecia nos mais variados suportes, celebração de si própria e da identidade colectiva. Três anos corridos sobre Lisboa, Capital Europeia da Cultura, apresentava a série 50 Retratos de Personalidades do Século XX Português. Almada Negreiros, Amadeo de Souza-Cardoso, Fernando Pessoa, José Saramago, José Régio, entre tantos outros, figuravam ao lado de Carlos Paredes, Amália Rodrigues e Alfredo Marceneiro, numa panóplia que, nas palavras do autor desenha vivências essencialmente positivas. Recorrendo a fotografias extraídas dos media, Leonel Moura apropriava-se das imagens para as reproduzir, com pormenores luxuriantes de cor, celebrando ícones da cultura tradicional portuguesa   - Leonel MOURA, in Identidade, catálogo da exposição temporária Lisboa, Galeria Valentim de Carvalho, 1990.

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- IDEM, ibidem.

– de que os casos de Amália Rodrigues, Alfredo Marceneiro ou Carlos Paredes são um excelente exemplo – para os celebrar, numa perspectiva de reconciliação com a modernidade. Através da fotografia e da filmografia de Amália percebemos que a sua imagem foi cumprindo sucessivas etapas de depuração e sofisticação, fundamentais para ultrapassar uma imagem de miserabilismo que a pintura de Malhoa fixara na imagética fadista, acentuando-lhe os traços de miséria material e social historicamente associados ao género. Inscrevendo-se na iconografia do Fado a iconografia pessoal de Amália parece paradoxalmente ter-se construído sobretudo a partir do discurso jornalístico, da fotografia e do cinema. Apesar de algumas obras retratísticas como as de Eduardo Malta, Maluda,,Joaquim Valente, ou Leopoldo de Almeida, da abundante produção que o desenho humorístico lhe consagra nas décadas de 40 e 50, da dedicatória que Cândido da Costa Pinto lhe consagra na obra Diluição Fadista em 1952, sem esquecer o retrato, mais tardio, do pintor Luís Pinto Coelho, certo é que para a consolidação da imagem de Amália contribuiu mais a necessidade de alimentar a indústria dos media, através da elaboração de portfolios fotográficos de excepcional qualidade, do que as artes plásticas nacionais, que muito tardiamente a redescobrem. Da década de 40, período de crescente afirmação internacional da artista, subsiste uma representação escultórica do seu rosto na obra do escultor Leopoldo de Almeida, As Mulheres Portuguesas Gratas a Salazar, de 1947 – ano do festejado filme Fado, História de uma Cantadeira de Perdigão Queiroga - e dois retratos do pintor Eduardo Malta, de 1949. A escultura original As mulheres portuguesas gratas a Salazar de 1947226, foi, à época, implantada no antigo Jardim da Imprensa em S. Bento, junto à Assembleia da República. Deslocada, após a revolução de Abril de 1974, para o depósito de estatuária do município, o modelo em gesso natural encontra-se no Museu de Lisboa. Obra de encomenda pública, com nítida intenção programática e integrada no quadro da estratégia de propaganda do Estado Novo, a escultura simboliza o agradecimento das mulheres e mães 226   - Leopoldo de Almeida As mulheres portuguesas gratas a Salazar, 1947, Gesso natural. 250 cm x77 cm x 95 cm, Colecção Museu da Cidade, MC.ESC.209.

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Fado História de uma Cantadeira, 1947

Postal promocional do filme de Perdigão Queiroga Colecção Nuno Siqueira

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portuguesas a Salazar, remetendo directamente para a política de neutralidade adoptada por Portugal na II Guerra Mundial. Representando uma mulher que segura junto ao peito um ramo de rosas, a figura impõe-se com natural serenidade. Apresentando notórias semelhanças com o semblante de Amália Rodrigues, que aqui personificava a gratidão da mulher portuguesa, a obra inevitavelmente convoca toda a polémica em torno de um eventual compromisso de Amália com o regime, ruído que, como veremos, ensombrará a artista no período imediatamente posterior ao 25 de Abril. Aluno da Escola de Belas Artes do Porto, laureado em 1936 com o Prémio Columbano e, no ano seguinte, com a medalha de ouro da Exposição Internacional de Paris, Eduardo Malta (1900-1967) assumiu a direcção do Museu Nacional de Arte Contemporânea, em Lisboa, de 1959 a 1967, ano da sua morte. Notabilizando-se sobretudo no retrato, Malta fixou uma extensa galeria de políticos, figuras da alta sociedade, das elites culturais e artísticas de países como Portugal, Espanha e Brasil. A polémica nomeação para a Direcção do Museu de Arte Contemporânea, a par dos bons ofícios e da simpatia que colhia dos círculos do regime, valer-lhe-iam o epíteto de retratista do regime. O seu legado reúne os afamados retratos de Salazar, Craveiro Lopes, do Cardeal Cerejeira, de Teixeira de Pascoaes, Aquilino Ribeiro, Augusto de Castro, Ricardo do Espírito Santo Silva, do ditador espanhol General Primo de Rivera, do Presidente Brasileiro Getúlio Vargas e, naturalmente de Amália, a quem consagra dois retratos, em 1949. Ainda no panorama do retrato, também Luís Pinto Coelho (19422001) consagraria a Amália um gigantesco retrato, concluído no final da década de 80 onde fixou toda a carga aurática da diva.227 Imagem dominante do Fado, referência musical capaz de seduzir uma plêiade de poetas como David Mourão Ferreira, José Régio, Pedro Homem de Mello, Alexandre O’Neill, Manuel Alegre, José Carlos Ary dos Santos entre tantos outros, Amália consolidou desde os anos 60 uma renovada imagem textual do Fado desencontrando-se, paradoxalmente, das artes plásticas modernas suas contemporâneas. Um olhar diacrónico sobre os retratos fotográficos que fixaram Amália Rodrigues ajudará a deslindar a construção da imagem da artista, desde a jovem intérprete, à gradual consolidação de uma   - Colecção da Fundação Amália Rodrigues.

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aura de diva. Cada retrato remetendo para um tempo e um contexto singulares, evocando inevitavelmente a voz ausente e convocando o observador para uma dimensão imaterial e intangível, desvendando em fragmentos um outro diálogo, sempre renovado e redescoberto, entre o Fado e a sua imagem, através do qual podemos, também, redescobrir muito do nosso olhar sobre nós próprios.

Nas fotografias de Amália apreendemos a transfiguração desde a jovem modelo inexperiente, até à artista trágica que impõe o silêncio contido da grande arte. Sem estratégia de marketing delineada mas consciente da sua importância num processo de gradual consagração internacional, Amália construiu a sua imagem intuitivamente, com os agentes que com ela se cruzaram: realizadores e produtores cinematográficos, fotógrafos, editores discográficos, agentes internacionais, figurinistas, estilistas e costureiras. A evidente fotogenia de Amália foi, naturalmente, determinante na construção da sua imagem. Mantendo relações de cumplicidade com alguns dos fotógrafos que a captaram, Amália decidiu sempre sobre o resultado final das suas reportagens fotográficas. Silva Nogueira e Augusto Cabrita foram os fotógrafos nacionais que mais marcaram a sua imagem nas décadas de 1940 e 1960-1970, respectivamente. A nível internacional, a fotogenia de Amália atraiu Irving Penn, Bruno Bernard, Sabine Weiss, Thurston Hopkins, Charles Ichai ou o Studio Harcourt, como de resto demonstrou, comprovadamente, a exposição que o Museu Colecção Berardo lhe consagrou em 2009. Dotada de uma superior intuição perante a câmara, Amália reuniu um portfolio fotográfico de excepcional qualidade nas distintas fases do seu percurso artístico. Como a própria confessaria a Vítor Pavão dos Santos: Fui sempre muito desigual, a cantar, a acordar. Acordo com uma cara, outro dia acordo com outra, no mesmo momento tenho dez caras.228 Nos seus retratos percebemos que Amália se construiu. Os fotógrafos fixar-lhe-iam a aura de vedeta internacional que se consolidava a partir dos anos 50. Desde os primeiros retratos de 1939, do atelier Grandela Aires229 - captando a jovem inexperiente - às fotografias   - Vítor Pavão dos SANTOS, Amália, Uma Biografia, Lisboa, Contexto, 1987, p. 62. 228

- Grandela Aires, 1939. Colecção Fundação Amália Rodrigues.

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Amália Traída, 2004

Francesco Vezzoli Vídeo (DVD) 9’40’’ Colecção Fundação de Serralves – Museu de Arte Contemporânea, Porto. Aquisição em 2005

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de Silva Nogueira230 - ao longo das quais desvendamos a construção do mito - passando pelos retratos pintados de Mendoza – potenciando a fotogenia de Amália - pelas fotografias do Grossinger’s Studio ou de Thurston Hopkins– em pose muito descontraída e informal – pelos retratos intimistas de Irvin Penn e de Jean-Louis Rancurel- até aos retratos de Emerico, Bruno of Hollywood, Sabine Weiss, Charles Ichaïde J. Babout ou do atelier Studio Harcourt,231 que a consagraram definitivamente enquanto ícone das artes do espectáculo internacional -a fotogenia e a expressividade da artista constituíram objecto de fascínio para diferentes gerações de fotógrafos nacionais e internacionais. Em Portugal, depois de Silva Nogueira, também Eduardo Gageiro, Carlos Gil, António Homem Cardoso ou Augusto Cabrita fixaram a iconografia de Amália, que se plasmava nas capas de magazines, discos, cartazes, reportagens fotográficas ou livros, indo de encontro à avidez de um público cada vez mais atento e disposto ao consumo da informação alusiva à vida das vedetas. Reclamando uma feminilidade em permanente afirmação, a aura de Amália construiu-se no quadro dos mecanismos de mass media internacionais, avesso aos modelos retrógrados da cultura do salazarismo. Toda a cultura do star system reiterava a sua imagem de diva, estrela e ícone, espelhando as estratégias promocionais próprias do mundo do espectáculo internacional, na nossa imprensa escrita. Desde a década de 1960, proliferavam as reportagens sobre Amália captando-a na sua residência em S. Bento ou de férias no Brejão, alimentando as expectativas de um universo de leitores cada vez mais alargado. Amália deixava-se fotografar em fato de banho e óculos escuros, em pose de estrela de cinema. Esta proximidade encenada para os leitores, alegadamente desvendando alguns aspectos da vida íntima da artista - fosse revelando pormenores do interior da casa ou mesmo encenando lides domésticas - reiterava a simpatia do público de Amália, que aqui se revia num ideal de proximidade.232 Como salientou Rui Vieira Nery, o sucesso de Amália a nível internacional foi, sobretudo, um triunfo pessoal do génio de Amália mais   - Veja-se Amália Rodrigues - Retratos de Silva Nogueira, Instituto de Museus e Conservação, Museu Nacional do Teatro, Lisboa, 1999. 230

- Veja-se o extenso portfolio fotográfico de Amália Rodrigues em Amália, Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, Fundação EDP, Fundação Amália Rodrigues, 2009.

do que directamente uma vitória do fado, por si mesmo.233 Corpus ilustrativo de interpretações de Amália, também a sua filmografia concorreu amplamente para a mitologia da artista. Amália exerceu um fascínio absoluto sobre os realizadores que a dirigiram e a sua filmografia regista-a interpretando, ao longo de quase vinte anos, muitos dos fados que pontificam no seu repertório. Datam da primeira década do século XXI as grandes evocações celebrativas de Amália, pelas artes plásticas nacionais. São, na sua maioria reinterpretações do mito, elaboradas a posteriori e que evocam sobretudo o poder simbólico de uma imagem e o modo como a sua mitologia se inscreve no presente, reelaborada por autores que dela conheceram o seu legado musical e imagético – fotográfico ou fílmico – e que aqui o reinterpretam numa afirmação consensual de contemporaneidade de Amália. Obras de apropriação, citação ou evocação de Amália onde a sugestão musical e literária do seu legado é evidente, muitos destes trabalhos decorrem de contextos programáticos específicos ou de encomendas oficiosas por ocasião dos dez anos da sua morte e da realização da exposição Amália Coração Independente234 e do núcleo expositivo Amália Nossa, com curadoria de Rui Vieira Nery que convocou doze jovens artistas a interpretar plasticamente o legado de Amália Rodrigues. Como bem salientou João Pinharanda: Os autores destas últimas obras não contribuíram para esse facto nem nele participaram; receberam-no já constituído, perceberam-lhe os efeitos históricos e tentaram nele intervir quando a cantora, ainda viva, era já referência identitária indiscutível ou quando, uma vez morta, consolidou esse estatuto num nível superior. 235 Desde a década de 1950, Amália alcançava um estatuto de diva, de celebridade universal, vedeta em França como em Itália ou no Japão. Como vimos, a iconografia fotográfica de Amália foi capaz de criar um constante fluxo de reinvenção imagética, tão singular quanto moderno, inscrevendo-a no contexto de uma cultura de massas específica do star system. Sobrevivendo à efemeridade do jornalismo, a iconografia fotográfica de Amália oferece uma impressionante galeria de retratos que inequivocamente contribuiu, como vimos, para a construção e consolidação do mito.

231

- Veja-se O Século Ilustrado, nº 1209 de 4 de Março de 1961 ou Revista de Rádio nº 624 de 2 de Setembro (Brasil) ou ainda a revista Flama, nº 1064 de 26 de Julho de 1969. Veja-se, a este respeito de Rui Afonso SANTOS, “O Traje, as Jóias e a Moda” in Amália, Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, Fundação EDP, Fundação Amália Rodrigues, 2009. 232

233   - Rui Vieira NERY, “Amália, O Fado no Mundo e o Mundo no Fado” in Amália no Mundo, o Mundo de Amália, IGESPAR, Panteão Nacional, Lisboa, 2009, p. 27. 234  - Amália Coração Independente Museu Colecção Berardo, Fundação da Electricidade, Fundação Amália, Lisboa, 2009. 235   - João PINHARANDA,“À Procura de um Rosto”, in Amália Coração Independente, Lisboa, Museu Colecção Berardo, 2009, p.303.

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O Mais Português dos Quadros a Óleo, 2005 João Vieira Painel Lenticular 300 x 365 cm Colecção Museu de Lisboa

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Leonel Moura constitui caso único, nas artes plásticas nacionais, de celebração da dimensão identitária de Amália, em 1987, ainda em vida da artista. Dentro das obras que comentam Amália, a posteriori, somam-se aos olhares exteriores de Arman, Francesco Vezzoli, Vik Muniz, as evocações mais tardias de João Pedro Vale e Joana Vasconcelos, ou o reconhecimento que lhe consagram, em 2009 artistas como Adriana Molder, Ana Rito, Catarina Saraiva, Isabel Simões, Pedro Gomes, Rita GT, João Onofre, Gabriel Abrantes, Pedro Barateiro, Bruno Pacheco e Sofia Leitão. Integrando uma exposição especificamente concebida para a Fundação de Serralves em 2004, a instalação videográfica Amália Traída de Francesco Vezzoli explora o ruído dos media em torno da figura de Amália, desde a sua pretensa associação ao regime de Salazar, a algumas informações veiculadas na comunicação social sobre a gestão do seu património.

parodiam-se os elementos da iconografia popular ou do Fadismo - aqui inscrito entre a Desonestidade e a Fraude – e em Leque Pedro Proença satiriza os símbolos nacionais, com uma minúscula bandeira nacional em cima de um leque ao lado do qual figura uma corda entrelaçada em jeito de forca. Versão conceptual do ícone representado na obra original, o Espelho Quebrado de Brito alude ao tradicional atributo de um destino desafortunado, aqui praticamente imperceptível, para o desconhecedor da obra de Malhoa. Nem mesmo o título escapa ao risível, garantindo tratar-se de O Mais Português dos Quadros a Óleo para parafrasear os versos de José Galhardo para a música de Frederico Valério.

Desenvolvendo uma ficção em torno de Amália, a personagem da diva é interpretada por Sónia Braga, sendo o argumento apresentado por Lauren Bacall, aqui vestindo a pele de uma locutora de televisão sul-americana.

Assumindo o ajuste de contas perante o oficioso Malhoa237, em nome da primeira geração do modernismo português, João Vieira avisara, logo na abertura do catálogo: Pelo caminho, dou uma boa rabecada no Fado do Malhoa. Que está cada vez mais caro.

Explorando o paradoxo do estatuto de diva, Vezzoli forjou um conjunto de episódios em estilo novelístico, centrando-se em aspectos passionais, sociais e políticos para contextualizar a vida e a obra de Amália entre o Regime salazarista e a Revolução, período em que foi – injustamente - acusada de colaboracionismo. Explorando a incerteza e a dúvida entre real e ficção, Amália Traída oscila entre a visão da tragédia e da ironia, sugerindo a multiplicidade de interpretações que sobre o mito se podem construir.

Um pastiche de um dos números da Ilustração Portugueza de 1910, celebrativo do êxito da obra original de Malhoa amplifica o risível da citação. Mimetizando escrupulosamente o figurino do original, João Vieira introduz a fotografia da obra Fado Vieira, para parodiar o texto original alusivo à obra de Malhoa - cujo nome é naturalmente substituído pelo seu - replicando o teor do artigo e acrescentando a legenda: O quadro de Vieira foi enviado ao Salon onde receberá sem dúvida a consagração bem devida a essa obra-prima do ilustre pintor portuguez.238

Em 2005, João Vieira opera uma das mais interessantes reflexões sobre a imagética fadista, na exposição Fado Portuguez236, centrada em torno do Fado de Malhoa e dos seus ecos, junto da primeira geração do modernismo português. Em O Mais Português dos Quadros a Óleo, (2005) lemos uma paródia colectiva ao original de Malhoa. Com a colaboração dos Homeostéticos, Vieira apropria-se de O Fado de Malhoa para o reinventar, através de uma desfocagem quadricular, exuberante de cor e de luz, numa narrativa plástica plena de humor e para a qual concorre a cumplicidade dos artistas Manuel Vieira - em Mamalhoas - Pedro Portugal - Luz Explicadista - Pedro Proença - Leque - e Fernando Brito - com Espelho Quebrado. A paródia amplifica-se ainda nos pormenores: se em Mamalhoas o detalhe dos seios da figura feminina se associa ao registo humorístico em torno do nome de Malhoa, em Luz Explicadista

Com Fado Vieira, continua a explorar-se o risível - desta vez celebrando os modernistas, através da inscrição dos nomes de SantaRita Pintor, Almada, Amadeo Souza-Cardoso e Eduardo Viana, na moldura simulada do quadro - numa figuração tendendo à estilização dos pormenores iconográficos que se amplificará mais ainda em Fado Vadio. Aqui as figuras de Amâncio e Adelaide posam nuas, sobre o leito, a composição ganha foros de erotismo, somando-se-lhe um novo pormenor - a paleta do pintor – que sugestivamente interroga a identidade da figura masculina de Amâncio, porventura transmutado em Malhoa ou no próprio Vieira. A citação do Fado e do fado dos modernistas, em particular, prosseguiria ao longo da série de trabalhos da colecção Fado Portuguez,   - Veja-se o texto introdutório de Raquel Henriques da SILVA, em Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005. 237

236   - Raquel Henriques da SILVA, Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

- João VIEIRA, O Fado Portuguez, Lisboa, Galeria Valbom, 2005.

238

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Fado Vieira, 2005

João Vieira Óleo s/ tela 180 x 200 cm Colecção Galeria Valbom, Lisboa

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seja operando pastiches das obras de Almada239 e de Amadeo240 aqui transmutados em Fado Almada241 e Fado Cardoso242 ou evocando pormenores de outras obras como Fernando Pessoa e os Heterónimos de Almada Negreiros em 1957, aqui citado em Malhas que o Império Tece.243 Ao longo de um percurso de grande longevidade criativa, Júlio Pomar tem convocado os grandes temas da literatura ocidental, da cultura portuguesa e da iconografia de Lisboa, continuamente sublimando novas formas de olhar, de entender e de intervir no mundo. A sua extraordinária capacidade de rever e actualizar os grandes mitos na imagem do presente, de estilhaçar fronteiras entre erudito e popular, de reunir referências da literatura, da arte, da mitologia ou do vernáculo reorganizando-as numa gramática plástica e poética em constante renovação, revela-se hoje, como nas últimas sete décadas, num território insistentemente aberto que há muito libertou a sua obra de todas as amarras possíveis da História da Arte. No espaço de inquietude onde vive o seu legado, pintura, poesia, ensaio e reflexão crítica participam da vontade lúcida e profundamente consciente – bravura que poucos possuem – de conseguir fazer de cada chegada um novo ponto de partida. É justamente nesse segundo eterno em que o artista faz corpo com o ar,244 que Pomar faz persistir, a cada momento, uma deliberada intenção de redefinir as regras do jogo, de assumir riscos, de perscrutar novos temas, novas linguagens, distanciando-se criticamente dos cânones e liminarmente recusando o conforto da cristalização que as fórmulas rotineiras proporcionam. Este é o seu fado. Assim o ditam o seu olhar e a mão que vê e pensa, profundamente conhecedores da história da Pintura. Só essa familiaridade lhe permite, aliás, revisitar esse património para dele extrair as raízes que lhe dão identidade. Só esse conhecimento acompanha a clarividência que acrescenta, constrói e sublima. A sina do Pintor dita-lhe, a cada instante, o sobressalto do rasgo e da imaginação prodigiosa, da experiência meditativa onde tem lugar a alquimia capaz de transmutar uma incursão no passado num impulso de futuro. E se na altivez de um percurso ímpar poderia repousar, é sua sina a reinvenção, como sonda de incessante pesquisa plástica e poética, inscrevendo sulcos de futuro em temas mais ou menos antigos – da 239

- Almada Negreiros, Fadistas, s/d.

240

- Amadeo Souza- Cardoso, Cavaquinho, 1915.

- João Vieira, Fado Almada, 2005 Óleo s/ tela, 130 x 97cm colecção particular. 241

- João Vieira, Fado Cardoso, 2005 Oleo s/ tela, 80 x 80 cm, colecção particular. 242

- João Vieira Malhas que o Império Tece 2005, óleo s/ tela, 97 x 130 cm, colecção particular. 243

244

- António Lobo Antunes, ibidem, p. 179.

mitologia à Literatura ou ao Fado – que nos são devolvidos em imagens, sempre sugestivas de renovadas dimensões de leitura. Na sua obra, a guitarra portuguesa parece ter ecoado num mural do Cinema Batalha, no Porto (1946-1947), fresco que a cobardia do regime apagou em 1948. O tom festivo da composição que a presença da guitarra, da viola e do acordeão reiteravam, não ocultava o realismo social que caracterizou a produção de Pomar neste período e que aqui se deixava antever. Pontuando o ambiente da saudade na afamada Lusitânia no Bairro Latino, insinuando a iconografia de Lisboa na narrativa mitológica de Homero, integrando a Cartilha do Marialva, com seus feitiços e manhas, por vezes executada por burros tocadores que desfilam num vastíssimo bestiário onde se espelha a comédia humana, a guitarra de Júlio Pomar distancia-se da imagem resignada do negro fado brutal que a mitologia fadista cristalizou. Numa obra luxuriante de cor, de energia visual, ritmo e movimento, sempre apelando aos sentidos, revisitamos alguns dos temas matriciais do Fado num tom necessariamente distante e distinto do teatro da melancolia que José Gomes Ferreira encontrava nas casas de sofrer, com mesas, cadeiras e bebidas, tristíssimas, frequentadas por quem quer chorar em público, sem medo do ridículo.245 Sugerindo Lisboa na Lusitânia parisiense ou na Odisseia de Ulisses, cultivado por burros tocadores de guitarra, sublimado nos retratos de Carlos do Carmo, Mariza, Cristina Branco e Carlos Paredes, ou na proposta de uma imagem-síntese da sua identidade interartística em Alfredo Marceneiro e Fernando Pessoa, o Fado celebra-se sem capricho ou presunção, como sempre foi e sempre será, ars populis que nos identifica porque continuamente nos remete para um espaço comum de emoção partilhada. Descontada a pasmaceira do inferno do normal,246 a canção desfila por entre incautos marinheiros, sereias cintilantes, marialvas, burros, poetas e fadistas, mitos antigos e modernos, num festim de temas e personagens, actualizadas no «programa da nação» que a sua fina ironia vai revendo e sempre sublimando, nas imagens, a eloquência do não dito. Nos retratos de Carlos do Carmo, Cristina Branco, Mariza ou Carlos Paredes redescobrimos a alegoria e o mito que se dimensionam no contínuo diálogo entre o pintor e a obra que lhe permite reencontrar-se a si mesmo. Nos retratos é a si que representa e cheganos intacto, através do que os homens lhe são.247   - José Gomes Ferreira, “Notícias Ilustrado – Comentários” suplemento do Diário de Notícias, Lisboa, ano IV, Serie II, nº 174, de 11 de Outubro de 1931. 245

- «Fado do 112», (letra de Júlio Pomar, música de Armando Freire), Carlos do Carmo, à Noite, Universal, 2007. 246

- António Lobo ANTUNES, Júlio Pomar. Les Joies de Vivre. Paris: Éditions de la Différence, 1997, p. 81. 247

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Ulisses e as Sereias com Guitarra Portuguesa, 1985 Júlio Pomar Acrílico, carvão e pastel s/ tela 232 x 349 cm Colecção Galeria Valbom, Lisboa

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Tal como na pintura, também na poesia o humor parece apaziguar a avassaladora visão da actualidade, em tudo semelhante ao sorriso do pintor, quando sob os óculos se abrem rugas de garoto de Lisboa, contente de navegar barquinhos de papel na chuva das valetas.248 Também por isso os seus fados são quase anti-fados, escritos no avesso da choraminguice da lágrima ao canto do olho, 249 lugar onde a mesma urgência do Fado do 112 avisa: Pá o amor é urgente / Não dêem cabo da gente.250 Em Ulisses e as Sereias com Guitarra Portuguesa (1997) reencontramos o diálogo estreito entre a pintura e os grandes temas da literatura ocidental que perpassa a vastíssima obra de Júlio Pomar. Aqui, a guitarra portuguesa anima a grande narrativa de Homero, conferindo «cor lusíada» à odisseia de Ulisses, o herói dos mil ardis.251 Apropriando-se do texto literário como ponto de partida para uma aventura heurística capaz de lhe diluir todas as fronteiras, Júlio Pomar guarda total distância do objecto literário, reinterpretando livremente a sua mitologia, para nela inscrever e sobrepor a sua narrativa: Quando me sirvo de um texto não me sinto obrigado a ser-lhe fiel, tentando a sua reconstituição histórica ou ilustração. Pego nele, cozinho-o, divirto-me. Situo o tema no meu imaginário, maltrato-o.252 A génese da obra pode rastrear-se até ao ano de 1996, na Grécia, nas Calcídicas, onde surgiram os primeiros desenhos a lápis de cor:253 Como quem conta um conto sempre lhe acrescenta um ponto, Ulisses, herói navegador por fatalidade, apareceu-me primeiro nuzinho, atado a um mastro da sua nave. Depois o veria, mas são já outras histórias, em farda de marinheiro igual a dos muitos que, dos bares do Cais do Sodré saíram para o guarda-roupa dos mitos, em desenhos do Zé Almada ou na garra fadista da Hermínia Silva.254

pressão atlântica mais vasta – no contexto de uma filiação cultural que sucessivamente evoca a distância, a ausência ou a saudade, que ecoa nos Lusíadas como no Mar Salgado de Pessoa – o mar e a viagem marítima assumem centralidade plena nos repertórios fadistas e na representação visual do tema, desde o século XIX aos nossos dias. Para a cristalização desta iconografia concorreu ainda a expressão de um certo pathos melancólico, ontologicamente interiorizado, que passou a entender-se como característica da condição saudosa, espécie de paradigma do pessimismo nacional-sentimental onde todos nós vamos beber lancinantemente quando é preciso.255 Distanciando-se do tom nostálgico que pontua o corpus de marujos tocadores de guitarra que desfilam na história da arte portuguesa, Júlio Pomar inscreve os temas matriciais do Fado numa obra plena de energia visual, luxuriante de cor, de abertura aos sentidos, revendo, reinterpretando e actualizando todo o receituário proveniente da literatura erudita e popular, num programa estético que incessante e inevitavelmente se renova e reinventa, suscitando múltiplas dimensões de leitura. Composição de grandes dimensões, formato onde tem ar suficiente para respirar 256 este terá sido também o suporte mais adequado para inscrever o seu porto – que fala da partida para um lá fora mais do que duma melancólica saudade de pedra à Fernando Pessoa257 – um porto cuja exuberância cromática parece reiterar a velha premissa de Almada, quando afirmava que a alegria é a coisa mais séria da vida.

- Júlio Pomar, «Júlio Pomar – Autobiografia» Jornal de Letras, Artes e Ideias (26 de Maio a 8 de Junho de 2004), p. 11.

Desdobrando-se em dois polípticos, Pomar conclui em 1997 duas versões do tema: na primeira as sereias mais parecem artistas de circo, enquanto focas, não focas, morsas, rodeiam a nave que leva o capitão amarrado ao mastro. Na segunda, Ulisses está fardado à maruja, pegou a farda que numa das primeiras versões era a do narrador, personagem que eu introduzi acompanhando-se à guitarra – para dar cor lusíada. Ou então o que tem de acontecer tem muita força. Este narrador tornou-se primeira figura: a narração, a história que se conta é quase apenas um acidente na paisagem (…) o narrador, marujo fadista parece ter aberto banca no atelier. Como é corrente na arte a que se dedica: a espécie a que pertence deixou descendência também neste porto.258

- «Canto Três», (letra de Júlio Pomar, música de António Vitorino de Almeida), Maria João Pires / Carlos do Carmo, Lisboa, Universal, 2012.

As sereias, maldosos seres enfeitiçando com os seus cânticos os marinheiros que se aproximavam da ilha, são aqui representa-

Como alegoria da fundação do Fado – defendida pelos primeiros historiadores da canção – ou como mera referência de uma ex248

- Idem, Ibidem, p. 77.

249

250

- Júlio Pomar, «Ulisses & Sereias», edição de serigrafias. Lisboa: Fidelidade, 2007.

251

252

- Júlio Pomar, Então e a Pintura? Lisboa: D. Quixote, 2002, p. 95.

- Júlio Pomar, «Ulisses & Sereias» edição de serigrafias. Fidelidade, Lisboa, 2007.

253

- Júlio Pomar, «Ulisses & Sereias» edição de serigrafias. Fidelidade, Lisboa, 2007.

254

255   - Vasco Graça Moura, Amália: dos Poetas Populares aos Poetas Cultivados. Lisboa:Tugaland, 2010, p. 16.

- Júlio Pomar, Então e a Pintura? Lisboa, D. Quixote, 2002, p. 23.

256

-Júlio Pomar, Então e a Pintura? Lisboa, D. Quixote, 2002, pp. 108-111. 257

- Idem, Ibidem, p. 108.

258

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Fernando Pessoa e Alfredo Marceneiro, 2011 Júlio Pomar Acrílico e pastel s/ tela 87,2 x 78,2 cm Colecção Fundação Júlio Pomar / Acervo Atelier-Museu

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das como semi-pássaros,259 uma primeira tocando lira, uma outra castanholas e uma terceira, a maior de todas, fechando o quadro do lado direito, traz às costas uma guitarra e toca gaita-de-foles. Descendência fadista ancorada no porto da pintura de Pomar, Ulisses e as Sereias regressariam à obra do pintor em 2001, em variações ulteriores do tema, nas quais um sugestivo conjunto de alinhavos, apontamentos e traços luminosos parecem insinuar novos inícios e recomeços de uma narrativa sempre (voluntariamente) incompleta. Tendo na pintura e no desenho os domínios privilegiados da sua obra, Pomar tem também trabalhado objectos tridimensionais, tendo iniciado as assemblages no final da década de 1960. Em Cascata, de 2007, o artista socorre-se de uma viola, para dela fazer emergir um conjunto de animais – um tigre, um urso, um porco, um cavalo, um hipopótamo, um camelo, uma cabra e uma cobra – bestiário que jorra da boca da viola em cascata e se faz acompanhar de outros objectos que evocam o som – uma sineta em metal – ou as artes plásticas – uma espátula e um pincel. Convocando som e imagem, Pomar sublima a relação entre a obra e a sua base ou plinto – a viola – referenciando, como salientou Sara Antónia Matos um problema de «enquadramento, estatuto e moldura» convocado pelo modernismo para a história da representação e que não mais abandonaria as artes plásticas.260 Partindo da icónica imagem fotográfica de Carlos Paredes tocando guitarra portuguesa, Júlio Pomar estuda-lhe o retrato em vários desenhos de 2012. Admirador incondicional da música de Paredes, sobre ele escreveu: o país em diminutivo (…) achava normalzinho que um dos maiores músicos de Portugal (o país nunca deu muitos) se apagasse em modesto funcionário de não sei que repartição e desse à sua guitarra apenas as migalhas sobrantes do ganha-pão. Estou a falar do Carlos Paredes (…). O país onde Carlos Paredes fez a sua música vivia numa nuvem de merda com algodão em rama por fora.261 Em Estudo para Retrato de Carlos Paredes, de 2002, Pomar deixa antever a alquimia da guitarra nas mãos de Paredes, gigante 259   - «Ou seja: na parte superior delas era em jeito de mulher com muita beleza e arte nos cantares com que se davam à prática da cítara e de outros instrumentos (e no meio destes estava a avozinha da nossa reverenciada guitarra portuguesa, já lá vamos); e da cintura para baixo iguais a perdizes e ao restante das aves.» in Júlio Pomar, Então e a Pintura? Lisboa: D. Quixote, 2002, pp. 108-111.

debruçado sobre o instrumento, fundidos ambos num único corpo, ofegante na respiração, com o coração nas mãos e os dedos puxando um novo mundo de dentro da guitarra. Reiterando as palavras de Eduardo Lourenço ao sublimar uma espécie de fusão, de confusão íntima entre o artista e a sua guitarra como se ele emanasse dela ou ela, sobrenaturalmente, se transformasse nele,262 Pomar parece inscrever na sua página a captação do instantâneo íntimo, que se dimensiona no confronto e na cumplicidade entre a arte do músico e o seu instrumento. Pomar inscreveu o nome do músico no silêncio da sua página, sublimando-lhe ritmo, energia visual, vibração e movimento. Pontuando ambientes em Malhoa, Viana ou Amadeo, marcando o percurso da poesia e da saudade com Almada, Júlio, Francis Smith e Pomar – na afamada Lusitânia no Bairro Latino –evocando tradições rurais com Leonel Marques Pereira ou Carlos Reis, iluminando o breu da noite na pena de Stuart, animando a fina ironia de Bernardo Marques, ou explorada até à exaustão como o mais marcante símbolo de um presente abafado pela História, como no nacional surrealismo de Cândido da Costa Pinto, a guitarra portuguesa consolidar-se-ia enquanto alegoria de portugalidade, nas artes plásticas nacionais, ao longo do século XX. Sobre a alegada fronteira entre arte erudita e arte popular é Pomar quem afirma: é uma falsa contradição. Um engano, porque, no fundo, o popular é resultado de uma cristalização e sintetização de saberes. Acho que o que se chama de popular são objectos ou construções depuradas pelo tempo. De uma maneira geral são formas extremamente eruditas.263 Em Alfredo Marceneiro e Fernando Pessoa,264 síntese celebrativa entre arte erudita e arte popular, Pomar celebra a identidade interartística que o Fado, como a sua representação plástica comprovadamente documenta, há muito personificou. 262   - Eduardo Lourenço, «Carlos Paredes. O Dom dos Anjos», in Movimentos Perpétuos – Textos para Carlos Paredes. Lisboa, Oficina do Livro, 2003, p. 24.

260   - Sara Antónia MATOS e Sara PEREIRA (dir.) Sem Capricho ou Presunção, O Fado por Júlio Pomar & Novas Doações, Museu do Fado e Atelier Museu Júlio Pomar, p. 62.

263  - Júlio Pomar: O Artista Fala… Conversas com Sara Antónia Matos e Pedro Faro, Lisboa: Documenta/ Cadernos do Atelier-Museu Júlio Pomar, 2014, p. 94.

- Júlio Pomar, «Lagarto, lagarto!» in Jornal de Letras, Artes e Ideias, Lisboa (19 de Fevereiro, 2003), p. 16.

- Fernando Pessoa e Alfredo Marceneiro, 2011, acrílico e pastel s/ tela, 87,2 x 78,2 cm, Colecção Fundação Júlio Pomar.

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Burro Tocando Guitarra, 2011

Júlio Pomar Carvão s/ cartão de embalagem 129 x 89 cm Colecção Fundação Júlio Pomar / Acervo Atelier-Museu

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Cascata, 2007

Júlio Pomar Brinquedos de plástico e peluche, sineta, escova de limpeza, caixa de jóias, fragmento de osso, berlindes de vidro, maçã de plástico, fragmento de máquina de lavar roupa, pedaço de pincel, pedra e leque em folha de madeira sobre guitarra de madeira. 60 x 35 x 44 cm Colecção Fundação Júlio Pomar / Acervo Atelier-Museu

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Cartilha do Marialva (Abécédaire du Marialva), 2005-2012 Júlio Pomar Acrílico, carvão e pastel s/ tela 146 x 230 cm Colecção Fundação Júlio Pomar / Acervo Atelier-Museu

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PROJECTO MUSEOGRร FICO Antรณnio Viana 153


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OUTROS FADOS IMAGENS MUSICAIS

Produção EGEAC|MUSEU DO FADO Comissariado Científico Sara Pereira Comissariado Técnico António Viana Produção Executiva Andreia de Brito, Cristina Duarte, Ricardo Bóia Textos: Sara Pereira Catalogação |Tabelas Andreia de Brito, Ricardo Bóia Comunicação Rita Oliveira Projecto Luminotecnia Vítor Vajão Assistente de realização Nuno Magalhães Seguros Hiscox e AON Risk Solutions – Fine Art Speciality Transportes FEIREXPO, Iterartis, V.S. Grupo Design Catálogo Luís Carvalhal Serviço Educativo Arlindo Santos, Cláudia Oliveira, Inês Santos, Márcia Martins, Patrícia Parrado, Ricardo Almeida, Susana Fouto, Vanessa Sousa Dias Loja Agostinha Sousa (coord.), Márcia Martins Impressão RPO ISBN 978-989-8763-06-8 Depósito Legal DL 433749/17 Agradecimentos Anabela Nunes, Ana Paula Machado, António Pinto, Carlos Barbosa Carlos Coutinho, Clara Ruiz, Cláudia Lino, Conceição Amaral, Fátima Santos Marques, Helena Abreu, Henrique Carvalho, Isabel Vicente, Joana Sousa Monteiro, Juan Alberto Solere Leal, Júlio Pomar, Lourenço Soares, Luís Andrade, Luís Ramos, Manuel João Vieira, Manuela Vespeira de Almeida, Maria de Aires Silveira, Maria João Vasconcelos, Nuno Siqueira, Patrícia Rosas, Rita Ferreira, Sara Antónia Matos, Suzanne Cotter, Vasco Pereira Coutinho.

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Uma iniciativa da UCCI e da Câmara Municipal de Lisboa (Direcção Municipal de Cultura e EGEAC) Presidente da Câmara Municipal de Lisboa Fernando Medina Vereadora da Cultura da Câmara Municipal de Lisboa Catarina Vaz Pinto Director Municipal de Cultura Manuel Veiga Conselho de Administração da EGEAC Joana Gomes Cardoso, Lucinda Lopes Coordenação Geral da Programação António Pinto Ribeiro

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Imagem da capa O Marinheiro (pormenor), 1913

Constantino Fernandes Óleo s/ tela 146 x 145 cm (painel central) 146 x 84 cm (painéis laterais) Colecção MNAC - Museu do Chiado (DGPC/ADF)

MUSEU DO FADO Largo do Chafariz de Dentro, 1 1100-139 Lisboa T+351 218823470 facebook.com/museudofado www.museudofado.pt




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