FASE 1 - Capítulo 15 - O Templário

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Dora - Capítulo 15 – Caça ao Vampiro

A

lice disse:

_Onde você está? Dora? ... Dora?... A voz da vampira foi distanciando... Mais e mais...

se

distanciando,

se

1

Até que já não podia mais ouvi-la. Tudo estava embaçado. Imagens distorcidas e enevoadas. Não eram imagens suas... Foi Nada...

como

acordar

de

um

coma.

Nada

era

familiar.

O seu corpo doía. Doía muito, como se tivesse recebido um impacto muito forte. A respiração estava difícil. O diafragma parecia duro. Seu rosto estava sobre a terra. Mas aquele não era o seu rosto... Sangue escorria sobre o supercílio. Uma ferida ardia sobre a sobrancelha... Então alguém gritou: _Mikael!!! Atrás de você!!! Seu corpo se levantou em um impulso repentino. Mas não era seu corpo... Uma roupa pesada o cobria quase que por completo. Apenas o rosto ficava de fora. A cota de malha, uma camisa feita de pequenos anéis de ferro e presa por um cinto forte, cobria o tórax e descia até os joelhos. Aberta na frente e atrás, facilitou seus movimentos ao se levantar. A cabeça estava protegida por uma coifa, um capuz feito de malha de metal. Nos pés, botas de couro.


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Por cima de tudo estava a túnica branca sobre o corpo. O desenho da cruz vermelha de malta tomava todo o peito. Quando virou-se de costas, viu um homem de pele escura correr na sua direção. Um guerreiro árabe. O lugar era um campo de batalha sangrento. Muitos homens se digladiavam. Na sua mão esquerda, havia uma espada longa e pesada. Quatro quilos e um metro e trinta de metal. No punho, uma cruz de lados iguais cravada em rubis sujos e apagados. Era necessário ter força para empunhá-la. Um impulso rápido com o braço fez a espada girar no ar. O peso da arma se projetou sobre o peito do homem árabe. O sangue espirrou para os lados, manchando o seu rosto e a túnica branca. Outros homens atacaram, mas um a um, foram chutados e atravessados pela lâmina ensanguentada da espada. _Ei, Mikael, você está bem? Um homem montado Parecia amigo...

em

um

cavalo

perguntou

a

você.

Você acenou afirmativamente com a cabeça. O homem se confortou e voltou à batalha. Um cavalo, também coberto por uma cota de malha na cabeça e no dorso, correu na sua direção. _Aqui, garota! – você gritou. O animal reconheceu a sua direção. Você montou a égua.

voz,

e

acelerou

na

sua

Em cima do bicho, podia ver melhor a carnificina. Um pedaço do inferno se materializara naquele campo. A morte era espreitada pelos abutres, voando alto em círculos no céu azul. Ainda sentia muita dor no abdômen. Alguém havia te acertado em cheio. Levou a mão até o local da dor. O sangue sujou a luva... Esporou o cavalo com os calcanhares. A égua disparou e ganhou velocidade.

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Abraçou a barriga do animal bem forte com as pernas, prendeu-se à sela e deslizou o corpo, inclinando-se para o lado esquerdo. A mão direita segurava fortemente a rédea, para manter o equilíbrio. A mão esquerda, livre, balançava a espada em círculos, usando o peso da arma a favor da inércia. O animal correu entre um corredor de homens em luta. A sua espada desmembrou impiedosamente o corpo dos soldados inimigos. Dois foram degolados... Arrumou sua posição sobre o cavalo. Olhou para trás. O inimigo estava derrotado. Muitos fugiram. Outros se rendiam. A maioria estava morta... _Esses infiéis não vão ser mais problema! – o rapaz amigo apareceu. Você apenas observava a pilha de corpos. _Essa não... – seu amigo exclamou, gelado de terror – Alistair... Um homem de uns quarenta anos jazia mortalmente ferido ao chão. Um amigo de batalhas. Vocês correram até ele. Alistair estava agonizando. Cuspia sangue pela boca, e tinha os olhos fixos, perdidos. Uma lança atravessava o peito, perto do coração. A hemorragia ia matá-lo dentro de pouco tempo. _Meu amigo... – você segurou delicadamente a cabeça do homem com as mãos – Não... Alistair tentou erguer o pescoço. Parecia que precisava dizer alguma coisa. Você abaixou-se até perto da boca dele, para tentar ouvir. O homem agonizante sussurrou: _O... O Grão-mes... O grão-mestre... ele... ele vendeu a al-alma ao demônio... não... não confie... E morreu. Você fechou-lhe os olhos e benzeu-lhe a testa. Seu amigo olhou para você. _Alistair... – lamentou palavras dele, Mikael?

Quais

foram

as

últimas

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A confissão do falecido incomodava a sua consciência. O Grão-mestre era um homem santo acima de quaisquer suspeita. Talvez Alistair estivesse delirante ao morrer... _Alguns delírios... – você confessou ao amigo. A mentira era um pecado que não podia sair da boca de um cavaleiro, no entanto, a omissão dos detalhes davam-lhe certa culpa - ...ele não estava em si. Pobre homem! ***

O

grupo de cavaleiros seguiu caminho para o castelo de Tartous, que ficava em Tripoli, na época uma província da África, hoje Líbia. O ano era 1152. O castelo servia como forte, e havia sido cedido por Hodierna, viúva de Raimundo II de Trípoli, que governava a cidade. Ela o fez em troca de proteção contra as invasões do turco Nur ad-Din, interessado naquelas terras. Era de uma batalha contra os turcos de que você e seu grupo retornavam. Chegaram ao anoitecer. companheiros que ficaram na mortos...

Foram recebidos pelos guarnição. Lamentaram os

No quarto comunitário, você se despiu da malha e da coifa de metal. Usou uma vasilha com água para se lavar. Tirou o sangue do rosto e da barba espessa. Os cabelos dos cavaleiros deviam estar sempre curtos. A barba não podia ser cortada. A imagem que a água da vasilha refletia era a de Michael... Olhou para a ferida. A lâmina do punhal árabe entrara no abdômen, e o corte ainda sangrava. Não atingira nenhum órgão vital, já que ainda estava vivo. Fez um curativo discretamente. Não pretendia chamar atenção no meio dos irmãos, muito menos sentir pena de si mesmo, ou orgulhoso ou merecedor de tratamento especial pela incontinência. Ou vergonha por sentir estas coisas tão proibidas dentro da ordem. A humildade era uma regra clara e preciosa. A dor era só uma consequência... Enrolou uma faixa sobre o ferimento. Depois vestiu o hábito, uma túnica branca feita de lã, com a cruz de malta. Aquela roupa significava voto de obediência, pobreza e castidade. Os homens que usavam o hábito preto normalmente eram casados, e não eram castos. Mas não detinham o mesmo privilégio e nem o ‘status’ daqueles que usavam o hábito

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branco, os considerados caminho do paraíso.

mais

perto

da

santidade

e

do

Por cima da túnica, apertou o cinturão. A ferida doeu. Depois vestiu as botas e deitou-se para dormir. Os cavaleiros dormiam vestidos e calçados. Não era permitido ficarem despidos, ou tirar os sapatos. Se houvesse uma emergência, precisavam estar prontos... Cobriu a cabeça com o capuz, e jogou a manta de lã por cima do corpo. Ficou imóvel. Estava muito frio, e o ferimento doía muito... Todos os outros irmãos também deitaram-se, cada qual em sua cama. Dormiam todos a luz de velas, sempre. Dentro da ordem, não era permitido dormir no escuro. A privacidade era vista como incentivadora de obscenidades e pecados. Ficavam todos em silêncio. As conversas deviam ser travadas por necessidade, nunca por lasciva ou ociosidade. Era ensinado que a língua era a perdição do homem. No silencio, rezou pela alma de Alistair, até ser vencido pelo sono. Na manhã seguinte, dormia quando ouviu seu colega te chamar. _Mikael? Mikael, acorde. Abriu os olhos e viu seus esperando por você. Perdera a hora.

irmãos

todos

_Mikael... – seu par, Valentim, tentou ser quando te chamou a atenção - ...você está atrasado!

de

pé,

gentil

Levantou-se depressa. O sol ainda não despontava no horizonte, e as trevas reinavam pela noite. Deviam ser cerca de cinco horas da manhã... Todos olhavam para você. Foi vergonhoso... O mestre entrou no aposento. Disse: _Está tudo bem, Mikael? _Sim, senhor. Peço desculpas... O mestre, repreender.

um

homem

austero,

não

deixou

de

te

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_A preguiça é um pecado hediondo, meus irmão... – ele discursou em exemplo - Faça uma penitencia pela falta, irmão Mikael. Reze cem pais-nossos. _Sim, senhor. O mestre se foi, e todos o seguiram. Era hora da missa. Valentim, seu amigo, se aproximou e perguntou: _Você está com febre, Mikael. Está bem mesmo? _Estou. Estou... Tinham vergonha de dizer que estava ferido, porque achava que não havia gravidade necessária para lamentar-se com os irmãos. Sabia que cuidariam com respeito e atenção de um enfermo. Mas não queria ser um fraco. Não reclamaria por causa de um arranhão. Rezou os cem pais-nossos depois da missa e da confissão, na capela. Todo mundo teve que esperar você cumprir a penitencia. Só depois, foram para o refeitório. Tudo que se fazia dentro da ordem era feito na frente de todos. Não havia segredos. Se alguém recebia uma carta da família, esta devia ser lida em voz alta. Se alguém precisava ir à vila, não devia ir sozinho. Os templários sempre andavam em pares. Era comum terem algum amigo que os acompanha sempre. Valentim era essa alma gêmea. No refeitório, serviram carne e legumes. Os cavaleiros podiam comer carne três vezes por semana, no máximo. Os que não eram guerreiros, comiam-na apenas uma vez. A carne corrompia o corpo. Mas a falta dela enfraqueceria a saúde para a guerra. Você e Valentim sentaram-se de frente um ao outro, na mesa comprida que era partilhada por todos. Comeram no mesmo prato, e beberam no mesmo cálice, como todos os outros irmãos faziam com seus parceiros. Na ordem, tudo devia ser compartilhado... Valentim era um bom homem. Mas tinha os dentes podres. Você sentia culpa por ter nojo de comer no mesmo prato que ele... Seu amigo terminou primeiro. Você não conseguiu terminar a comida que restara no prato. Sentia-se cansado e enjoado. A ferida ainda doía...

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_Mikael... Você está sentindo alguma coisa? _Não! – você negou. Mas mentiu. Preferiu consertar o erro – Só estou um pouco indisposto por causa da batalha. Mas logo passará... Coma o resto da comida, meu amigo, por favor, não desperdicemos nada, é pecado... Valentim relutou, mas comeu o restante da comida. Entendeu que você não desejava fazer alarde sobre a sua indisposição. O mestre concedeu o dia de folga para os cavaleiros que guerrearam no dia anterior. Você e Valentim estavam incluídos. Mas um dia de folga não significava um dia para si próprio. Antes disso, significava tempo para meditação, e nunca tempo para dormir ou ficar à toa. Os outros normalmente.

irmãos

trabalharam

em

suas

funções

Depois da meditação, você cuidou dos poucos pertences que tinha. Limpou a espada e a malha. Escovou e cuidou de Explendor, a sua égua. À tarde, recebeu uma carta de um mensageiro. Quem escrevia era a sua irmã. O mestre entregou o correio. Você abriu o recado, e o leu em voz alta para os irmãos. Sua irmã dizia: “Meu querido irmão, venho comunicar que nossa mãe se encontra muito doente. Os médicos acreditam que ela não suportará a doença por muito tempo. Ela chama por você. Por favor, Mikael, venha para casa. Com saudades, sua irmã Madelina.” A notícia foi como uma punhalada no coração. Sua mãe estava irrecuperavelmente doente e desejava vê-lo pela última vez. Talvez até já estivesse morta... Os irmãos se sensibilizaram. O mestre autorizou viagem para a sua casa. Valentim foi com você. ***

a

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E

ra uma viagem longa até a Espanha. Você e seu amigo já andavam há cerca de um mês, quando chegaram a Gália, atual França. Ainda sentia o ferimento doer. Embora cuidada, a ferida demorava a cicatrizar, e um cheiro ruim denunciava uma infecção. Sentia-se fraco, mas não sairia do seu caminho. Precisava chegar em casa. Uma noite, você caiu de febre. Delirava... Perdeu a consciência. Quando acordou, se viu em um quarto de paredes de pedra nua, bem iluminado e arejado. Era uma manhã de sol. O teto era de palha, transpassado por vigas de madeira grossa. Era seu antigo quarto. Estava em casa. Você estava deitado sobre uma cama com lençóis limpos, confortável, coberto por uma manta de lã fina. Estava nu. Nunca tinha ficado nu. Isto era algo ultrajante para um cavaleiro. Não sentia mais dor. Olhou para a ferida. No lugar, apenas uma cicatriz. Seu corpo tinha um cheiro leve de flores. Parecia que tinha sido banhado. O rosto estava liso. Haviam cortado a barba. Que espécie de gente faria isto? – pensou – Não sabem que isto não é permitido? Estranhamente se sentia bem. Sentia os pés livres dos sapatos, a barriga sem o peso do cinturão. Conseguia sentir o próprio corpo... Não viu sinal das suas roupas e nem das suas armas. Uma moça entrou no aposento. Vestia um vestido de lã rude e simples. Tinha os cabelos longos e escuros, presos em uma trança que descia por um dos ombros. Os olhos vivos se envergonharam do seu olhar. Era bastante bonita, e trazia roupas nas mãos. As suas roupas...

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A visão da moça nas lembranças que Alice insistia em pôr-lhe na cabeça fizeram as recordações de Michael se dispersarem. Aquela moça... Era você. Você em outra vida. _Dora? – a voz da vampira ecoou na sua cabeça – Não preste atenção nela... É ele que você tem que observar... Dora? De repente a visão mudou. Você estava de pé em frente à cama ocupada por um homem nu, coberto por um fino lençol. Estava se sentindo um pouco envergonhada, porque ele era o patrão. E era bonito... Seu marido Santiago (Tom) tinha ajudado a dar banho no patrão. Você lavara a roupa dele, e ajudara Madelina, a patroa, com os curativos. Ele estivera muito doente. Mas o sangue do vampiro o salvara. Apenas você e a patroa sabiam disso. Manteriam segrego com medo de que as acusassem de se envolverem em coisas demoníacas. Ninguém entendia a religião antiga que praticavam... _Com licença... – você pôs as roupas sobre uma cadeira. Depois se retirou do aposento, discretamente. Ele olhava para você quando fechou a porta. Voltou aos seus afazeres. Já trabalhava na casa dos Castilho há seis meses, desde o seu casamento com Santiago. Eram bons patrões. Você e seu marido moravam nas terras deles. Madelina era viúva. Ainda usava a roupa preta pelo luto do marido. Iria usá-la por mais algum tempo por causa da morte da mãe, há cerca de um mês. E pela morte da mãe, o patrão havia retornado. Apenas ouvira falar dele. Ao que parece, era um monge que lutava pela Igreja. A mãe o elogiava. Madelina reprovava decididamente esta conduta... Mais tarde, serviu o almoço. Madelina observava o irmão comer no mesmo prato que o amigo padre, o tal do Valentim. Ela não gostou, mas não se opôs aos costumes. Você achou aquilo estranho... Madelina e o irmão discutiram. Ele estava inconformado por terem lhe cortado a barba. Ela o repreendia por ter sido tão ausente:

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_Mamãe morreu chamando pelo seu nome! E onde você estava? Lutando por uma causa que não é sua! Estou sozinha agora... Preciso que fique aqui, Mikael! _Você sabe que eu não posso... _Que ótimo! – Madelina se irritou – Você devia ficar na sua casa, se casar, constituir uma família! A guerra não vai te levar a lugar algum! _Luto na guerra para que você tenha uma vida melhor! – ele se exaltou, embora mantivesse a fala mansa – Não quero ver minha casa, o meu país, a minha irmã nas mãos desses malditos infiéis! Faço esse sacrifício por um bem maior... _Vocês estão decepcionada.

todos

loucos!

Madelina

finalizou,

Após terminar o serviço, você foi dispensada cedo. A patroa sabia que hoje o dia era especial.

mais

Correu para casa. Seu marido saíra para caçar com outros homens. Você teria tempo para ver o seu amante... Correu para a floresta. O sol se punha no horizonte. As outras bruxas deviam estar se reunindo. Você iria até lá. Mas antes precisava vê-lo. Andou no meio das árvores, olhando para o alto. Observava a copa, na esperança de encontrá-lo. Ele estava no mesmo lugar, deitado sobre um galho grosso. O vampiro abriu os olhos quando você se aproximou. Ele desceu até você. David. _Estava esperando por você, meu bem... – ele tocou suavemente o seu rosto - Sabia que ia voltar!

_Dora? – Alice interveio novamente – Dora... se concentre no Michael, é nele que está o que quero que veja!

De repente, tudo mudou de novo. Agora, você estava no quarto, confuso, tentando absorver os últimos acontecimentos. Alguma coisa perturbava a sua cabeça... Sua mãe morrera sem vê-lo. Chegara tarde demais. Sua irmã, Madelina, acusava-o de ser omisso. Você não achava tal acusação justa. A ordem sustentaria a ela e aos filhos

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por quanto vivessem. Seu amigo, Valentim, levara-o para casa e salvara lhe vida. Você ficara a beira da morte por vários dias. Alguém cuidara de você. A criada nova que Madelina arranjara. Ela era tão bonita... Não se lembrava dos momentos de agonia. Apenas vagamente, se recordava do toque dela. O toque de uma mulher. Tão doce... Era abominável pensar em tais perversidades. Precisava purificar a mente e desintoxicar a carne. A febre alterara seu estado de espírito... Pegou o rosário e rezou o terço. Pediu perdão. Então, a porta do quarto se abriu e Valentim entrou abruptamente. Estava ofegante. _O que foi, meu amigo? _Mikael... É melhor vir comigo! Valentim levou-o até a casa de um dos criados da fazenda. Uma casa simples, de um cômodo só. Já era noite. Ao entrar, deparou-se com ela: a criada de Madelina. A moça estava ofegante sobre a cama, como se possuída por alguma força sobrenatural. Ela gemia, e não era de dor. Havia um sorriso pecaminoso sobre os lábios dela. Estava completamente fora de si, enlouquecida... Havia mordidas no pescoço. Duas presas deixaram marcas na pele. A boca da moça estava suja de sangue, como se ela o tivesse bebido. O marido chorava, desesperado. Um estavam na casa, amigo da família, disse:

dos

homens

que

_Nós a encontramos no bosque. Um demônio a possuiu! – o homem falava assustado, como testemunha de algo horrível – Nós o vimos em cima dela, ele estava fornicando com esta adúltera! Bebeu o sangue dela! O marido chorou ainda mais com as palavras do homem. Ele continuou: _Nós saímos para caçar os lobos que estavam atacando os nossos animais. Então nós vimos... Acertamos o demônio com nossas flechas! O veneno que preparamos para os lobos o atingiu e ele desfaleceu. O jogamos no desfiladeiro... Acho que o matamos!

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_Não seja tolo, homem! – Valentim interferiu na conversa – Espíritos malignos não podem ser atingidos por flechas ou veneno! _Aquele prontamente.

podia,

senhor!

o

homem

respondeu

_Veneno? Com que o envenenaram? – você perguntou. _Matalobos. _Acônito... – você sussurrou para si. O marido, sem saber o que fazer, correu até você e se ajoelhou aos seus pés. Pediu pela esposa: _Por favor, senhor, eu imploro... – ele chorava ...salve a minha esposa! Salve ela senhor! Você sentiu pena do marido. Sentia também. Ela tinha sido tão atenciosa...

pena

da

-

moça

Você olhou para Valentim. _Ah, não! Não, Mikael! Você sabe que nós não podemos exorcizar ninguém! É contra as regras e seria muito, muito perigoso! – seu amigo respondeu. Valentim estava certo. Como homens de guerra, nenhum cavaleiro podia rezar a missa. Isso incluía a realização de qualquer outro sacramento da Igreja. E um exorcismo necessitava ser feito por alguém puro de coração e de corpo. Alguém que não tivesse as mãos manchadas de sangue ou comesse carne. Do contrário, seria igualmente possuído pelo espírito invasor... Mas era necessário tentar. _Valentim, procure o padre da vila. Ele pode executar o exorcismo! Nós daremos as coordenadas... O padre veio com um ajudante. Madelina não quis permitir a entrada dos dois na fazenda, mas também como dono das terras, você os levou até o casebre dos criados. O padre estava assustado. Ele mal conseguiu rezar um Pai-nosso do começo ao fim. A moça ria e debochava do ritual. Uma hora, ela deslizou sobre a cama, enrolou as pernas na sua coxa, e o tocou. Começou a dizer blasfêmias:

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_Deite-se aqui comigo, Mikael! – ela começou arrancar a roupa – Venha, aqui... e me faça sua mulher!

a

Ela agia como se estivesse muito embriagada. A visão daquela mulher quase nua, tocando-se e tocando-o fez você desejá-la. _Venha... eu quero que você me toque... quero sentir você! Uma onda de luxúria invadiu seus pensamentos mais castos. Era o demônio tentando a sua sanidade. Valentim puxou-o para longe dali. O exorcismo não funcionou. E pior. O ajudante do padre encontrou objetos de rituais pagãos escondidos na casa. _Esta mulher é uma bruxa! Aqui está a prova! _Terei que comunicar o Santo Ofício, meu jovem! – o padre disse a você. O Santo Ofício. O tribunal da Igreja. Você sabia o que significava. Condenada por bruxaria, a moça seria queimada viva em praça pública. _NÃO!!! – o marido gritava – Minha mulher não tem culpa! Ela é vítima, uma vítima!!! Salvem-na, SALVEM-na, eu imploro!!! Muitos homens precisaram segurá-lo. Levaram-no de lá, para que não assistisse à execução, e para que não fosse igualmente condenado por suas palavras de revolta. A moça foi amarrada no meio de madeira e palha, junto a um tronco fincado ao chão. Ela chorava muito, de medo. Parecia que tinha recobrado a consciência, não estava mais agindo como uma louca, embora estivesse muito machucada por causa da tortura sofrida nos calabouços do Santo Ofício. Eles faziam qualquer um confessar o que tinha feito e o que não tinha feito. Sentia pena dela, mas sabia que o martírio lhe purificaria e lhe salvaria a alma. Nada mais, além disso, poderia ser feito. O auxiliar do Ofício proclamou a condenação: _És condenada pela heresia de prática de bruxaria, de ocultismo e pacto com o demônio. Arrepende-te de teus pecados, mulher?

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A moça permaneceu calada, chorando. _Que Deus tenha piedade da sua alma! Você estremeceu. Estava revivendo um trauma, há muito esquecido. _Dora? – Alice interveio mais uma vez – Não, Dora! Concentre-se no Mikael, concentre-se nele! O auxiliar ordenou que ascendessem a fogueira. Você preferiu se retirar. Nunca suportou ver esse tipo de execução. Sinceramente, não concordava com tais exageros. Mas a Igreja sabia o que era melhor para os seus fiéis. Se tinha que ser assim, então, que se fizesse. Mas não era só a execução que te incomodava. Era a morte da moça. Queria ter podido fazer alguma coisa. Queria ter podido tocar nela... Não! Isso era um pensamento pecaminoso! Montou Explendor e saiu de lá. De longe, via a fumaça negra levantar-se até o céu. ***

N

aquela noite, após a execução, você e Madelina discutiram feio. Ela não aceitou o ocorrido. O acusou de ser omisso e irresponsável. Você se defendeu, dizendo que o Santo Ofício fizera o necessário pela pobre alma da moça, embora sentisse muito por ela. De fato sentia. Madelina acertou um tapa no seu rosto, e pediu para que você e Valentim fossem embora o quanto antes. Não queria mais vêlo. Você saiu da casa entristecido. Amava sua irmã, e sentia-se magoado por ter se desentendido com ela. Talvez, nunca mais a visse. Você e Valentim arrumaram a montaria. Um dos caçadores, amigo do marido da moça, aproximouse. Trazia um pequeno embrulho nas mãos. Disse a você, em voz baixa: _Um dia, um cavaleiro, assim como o senhor, apareceu aqui na vila. Estava muito ferido, e nós o acolhemos e cuidamos. Mas ele não resistiu. Antes de morrer, me disse que ele viera da terra dos Saxões, e que trouxera isto com ele...

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Então o caçador abriu o embrulho. Era um pergaminho manuscrito em um dialeto árabe. Por sorte, você compreendeu alguma coisa do que estava escrito ali. Parecia um mapa que levava a um esconderijo onde havia-se guardado uma relíquia. Você não conseguiu ler detalhadamente, mas o mapa dizia que aquele caminho levava ao sangue de Cristo. O caçador continuou: _O cavaleiro disse que alguém estava atrás disso. Disse ainda que o ‘grão-mestre’ era um traidor, e que ele fugira às pressas para salvar esse manuscrito. Antes de morrer, implorou para que ele fosse integre a um cavaleiro de bom coração. Sei que o senhor é um cavaleiro e um homem bom. Por isso, vou entregar o manuscrito a você... E o caçador o pôs em suas mãos. Depois se afastou. Você achou melhor não dizer nada a Valentim, até poder traduzi-lo. Ficou intrigado com a estória que o homem contou. Depois de tudo arrumado, você e Valentim se despediram do vilarejo. Seguiram viagem pela estrada, sem esperar pelo amanhecer. ***

M

_ ikael... – Valentim chamou. Aproximou o cavalo até você – Tem alguma coisa estranha... Acho que temos companhia! _Como? – você voltou a si. Até então, estava absorto nos seus pensamentos tristes – Acha que estão nos seguindo? _Talvez. Escutei outro cavalo trotar uma ou duas vezes... Quem sabe seja algum viajante solitário, ou... algum infiel? _Também ouvi... – você confessou. Tinha escutado, ou achou que tinha escutado o trote de outro animal – Acho que não devemos nos preocupar. Os infiéis não costumam fazer viagens solitárias, e nem atacam sozinhos. Não acredito que seja algum deles... Não costumam andar por esta região! Mas de qualquer jeito, melhor manter os ouvidos e os olhos atentos! A lua nova estava alta no céu. As nuvens escuras a encobriam. O tempo estava mudando. O vento frio anunciava a chuva que estava por vir.

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Continuaram pelo caminho deserto. Passavam por uma estrada a beira de um pequeno precipício. Ao lado e acima dela, uma pequena colina se elevava. Então, alguns pedregulhos deslizaram da colina, e atingiram você e Valentim, que instintivamente, olharam para cima. Foi então que viram a ‘coisa’ andando montada pelo topo do morro. _Deus nos proteja! – Valentim se estarreceu de terror. Era uma visão assustadora. Na escuridão, via-se apenas a silhueta de um cavalo e seu cavaleiro. O homem e o animal possuíam olhos demoníacos, que cintilavam no escuro feito olhos de lobo. O cavalo gruía como um cão raivoso. Era alto e andava lentamente. Cada passo fazia a terra deslizar abaixo, diretamente em vocês. O cavaleiro puxou a rédea do animal e o fez empinar. O cavalo relinchou pavorosamente. Depois caiu com as patas dianteiras sobre algumas pedras grandes e alguns troncos mortos caídos à beira do morro. O lixo da floresta despencou violentamente em cima de vocês. Com sorte e com a agilidade de Explendor, você conseguiu desviar das pedras e dos troncos. Mas ouviu Valentim gritar: _MIKAEL!!! _NÃOOO!!! – você berrou. Não ouve tempo para ajudá-lo. A montaria de Valentim se desequilibrou com a enxurrada de terra, pedra e madeira. Assustado, o cavalo do seu amigo empinou, e Valentim caiu para trás, mergulhando diretamente no abismo. _VALENTIM!!! NÃOOO!!! No alto da colina, a coisa gargalhou. Depois encarou-o com os olhos de fogo frio. _DESGRAÇADO!!! A aparição não se intimidou. Ordenou que o cavalo descesse o morro. As patas da montaria apoiavam-se tranquilamente sobre o terreno muito inclinado. Um animal normal jamais conseguiria fazer aquilo...

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Com a mão esquerda sobre a bainha da espada, você estremeceu. Estava cara a cara com o diabo. Sabia que uma espada não poderia defendê-lo... A coisa não tinha pressa alguma. Estava se divertindo com o seu medo. _Eu vim te buscar, Mikael! – a assombração vociferou – Vou me deliciar com o seu sangue imundo, e depois vou trancafiá-lo no inferno! O pânico tomou conta de você. Esporou Explendor e a fez galopara para longe, o mais rápido possível. Precisava salvar a sua vida... A égua correu. A aparição foi se distanciando cada vez mais. Quando o monstro tocou o chão da estrada, o diabo fez o animal correr atrás de você. Foi tudo muito rápido. A montaria demoníaca ganhou velocidade instantaneamente. Bastaram dez segundo para que ela ultrapassasse Explendor. O cavalo bufava e você sentiu o cheiro pobre que ele exalava pela boca. Quando o cavalo e a égua estavam páreo a páreo, o diabo pulou em cima de você. O impacto forte dele sobre Explendor fez a égua desequilibrar-se e cair, derrubando você e ele no chão. A égua caiu sobre você, relinchando de dor. Um ‘crack’ estrondou no seu ouvido. Uma dor aguda percorreu a sua espinha. Perdeu alguns sentidos. Ficou deitado sobre o chão. Não conseguia respirar direito. Não conseguia se mexer... A sua coluna estava partida ao meio. O diabo apareceu frente a você. Tirou o capuz do manto negro que usava. Você pode ver a face dele. David. De pé, ele puxou lentamente a sua espada da bainha, e admirou a arma. Depois, encarando-o, atravessou a lâmina no seu pulmão direito, até fincá-la na terra. Você sentiu muita dor. Então, ele arrancou a espada do seu peito com um puxão forte. O sangue inundou a sua garganta, e você cuspiu o líquido vermelho para fora.

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Dora - Capítulo 15 – Caça ao Vampiro

A coisa ficou deliciar com aquilo.

olhando

a

sua

agonia.

Parecia

se

Você implorou que Deus o ajudasse. O diabo se abaixou e se inclinou sobre o seu corpo, atraído pelo cheiro do seu sangue. O terror que você sentia era imenso. Sentiu-se absolutamente abandonado e sozinho. A coisa lambeu o sangue que você cuspia, e tomou o resto dele que tentava fugir pela laringe através de um beijo longo e profano. Rezou para que a sua consciência o abandona-se depressa... _Você vai morrer hoje, Mikael... – o diabo sussurrou no seu ouvido – Vai morrer, mas não vai entrar no reino dos mortos! Você é mau, e não pode ser aceito no paraíso... e nem no inferno! Vai vagar pela eternidade sobre essa terra miserável, atrás de sangue, como sempre fez durante toda a sua desgraçada existência humana! Vai se tornar naquilo que você mais abominou nos seus semelhantes. Vai pagar cada centavo pela morte da moça que você deixou queimar viva durante toda a tarde... EU TE ODEIO, SEU DESGRAÇADO!!! Que você sofra pela eternidade! O demônio estava raivoso. O pânico aumentava a cada palavra e era pior que a agonia da dor física. _Você está sentindo? – a coisa continuou – A hemorragia vai matá-lo daqui a pouco tempo... Mas isso não vai ser um alívio para você. Muito pelo contrário, vai ser o começo do seu castigo! E, se você tiver decência, tome coragem e peça a alguns dos seus amigos que o queimem em uma fogueira maior que a da menina que cuidou de você! Quem sabe assim, o fogo não te purifique e Deus te perdoe... Então, o diabo esperou até você começar a desfalecer. Quando já não sentia quase nada, uma enxurrada de sangue desceu por sua garganta abaixo. Não era o seu sangue. Vinda do lado de fora... Desmaiou. Sentiu dor. Sentiu paralisia. Sentiu medo...

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Dora - Capítulo 15 – Caça ao Vampiro

Despertou sozinho e imundo dos próprios dejetos. Podia se levantar e andar normalmente. Não sentia mais dor. Não sentia mais a sua alma... Era dia. E nem sinal do demônio. Explendor estava morta. Os manuscritos desapareceram. Era impossível acontecendo...

aceitar

que

aquilo

estava

***

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