Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento

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Corpografias

incursĂŁo em pele imagem escrita pensamento



Corpografias



Maruzia Dultra

Corpografias

incursĂŁo em pele imagem escrita pensamento

SĂŁo Paulo, 2012



Sob os dedos do outro que te percorrem, todas as partes invisĂ­veis do teu corpo se pĂľem a existir Michel Foucault



Um suspeito anônimo é insuspeitável A você, de quem não sei o rosto, exponho recônditos. Neles, conhecerá paragens, tocará em algumas até, amigo improvável. Aliás, quem sabe, em sua escolha por estas páginas, haja algo maior que o compulsório: uma afinidade guardada, uma aproximação desejada; certo afeto, ainda que secreto para si. Eis, pois, por caminhos que também não conheço, nós. Nesse seu agora, estamos em suas mãos: depende de você, nosso encontro. Imagino, neste meu agora, seus contornos, as palpitações que te trouxeram – desejo te adivinhar. Mas é vã qualquer tentativa. Eu, que sempre tive nas cartas a segurança de um leitor conhecido, escolhido, planejado. Melhor dedicarme ao gosto de seu anonimato – saber que vai saber-me mais do que eu a ti. Esta é nossa condição.


Agradecimentos A Branca de Oliveira, orientadora deste trabalho, pelos atravessamentos todos que compõem este corpo A Silvia Laurentiz, pela confiança de ter iniciado comigo esta pesquisa A Christine Greiner, pelo olhar sensível e atento no Exame de Qualificação A Peter Pál Pelbart, pelos assombramentos em lampejo, e pelas indicações à versão primitiva deste trabalho A Luciana Ohira e Isabela Sanches, pela tenacidade com que ajudaram a erguê-lo A Marilu Beer, pela exultante presença Aos colegas do Atelier Paulista, Monica Palazzo, Heloisa Etelvina, Constança Lucas, Fernanda Moraes, Marcelo Peron e Pedro Perez, pelos despertares, em especial a Monica Berto, Flavia Ferreira, Fernando Saiki, Sergio Bonilha, Ana Guimarães, Katia Silvanny, Bruno Ferreira, Karina Takiguti, Silvia Nastari, Estela Vilela e Paula Zacaro, pelas colaborações


A Maria da Graça Pessoa, pelo zelo constante, dedicando-me carinhosas doses de cafeína À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pelo consentimento da bolsa de estudos que possibilitou a realização desta pesquisa A Filipe Ferreira e Giuliano Obici, pela agudeza da escuta Aos colegas do Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP), pelo exercício clínico, em especial a Élida Lima, pelo encontro A Dario Vargas e Diego Ginartes, pela fiel compañía A Patrícia Defilippo, pelos abrigos mínimos e maiores A Tereza Embiruçu, Valentina Cotrim, em especial Maíra Marinho, pelo cuidado obstétrico ao embrião do curso de Mestrado A Camilo Domingues e Hortência Nepomuceno, pelo apoio incondicional A minha querida família, Amana, Emanuel, Joana e Márlon, pelo bálsamo, sutileza também necessária a uma tarefa como esta.



Carta-Prefácio É uma dupla alegria estar presente aqui neste trabalho, já que acompanhei parte de seu trajeto, de suas aflições, de seus interesses, de sua viva inquietação. Você acompanhou muitas das minhas aulas nos últimos semestres, e vi em você uma crescente obsessão em acompanhar o movimento do pensamento, mas não apenas teoricamente, especulativamente. Numa entrevista, Deleuze dizia que numa aula trata-se menos de transmitir qualquer informação ou conhecimento do que colocar em movimento uma matéria, a matéria-pensamento. Não consigo deixar de pensar que essa bela ideia atravessa este trabalho. O que é essa matéria-pensamento posta em movimento? A matéria-pensamento não pode ser algo apenas imaterial ou incorpóreo, é também uma matéria que afeta o corpo, que toca a pele, que dispara eventualmente a escrita ou algum registro expressivo. Há portanto, forçosamente, uma materialidade aí em jogo, uma inscrição, uma corporeidade, que por vezes o próprio pensamento tenta tematizar, mas nem sempre consegue, precisamente por estar ele restrito a esse elemento que é o seu.


Como você não vem da filosofia, mas vem da mais concreta corporeidade, a saber da medicina, dessa disciplina que trata de um corpo com órgãos, funções, hierarquias, me ocorreu, em algum momento, lendo seu trabalho, que você precisou usar um repertório muito engenhoso e insólito para preencher esse abismo, que vai do corpo da medicina ao movimento do pensamento. Precisou montar um dispositivo que passasse pela pele, pelas sensações, pelas imagens, pelo papel, por formas de registro que não deixassem de lado precisamente o movimento, seu rastro, sua respiração, suas hesitações, em suma, que mostrasse como que a encarnação desse pensamento nas mais diversas formas. Mas não se trata apenas de mostrar a encarnação desse pensamento numa matéria, sua corpação, por assim dizer, mas o mais difícil, que já era um desafio desde Zenão até Bergson, a saber, flagrar o pensamento no seu movimento, ou seja, em vias de acontecer, na sua movência. Pois o pensamento não é uma ideia mais uma ideia mais uma ideia, assim como um filme não é um fotograma mais um fotograma mais um fotograma – todo o problema é precisamente a passagem, de uma ideia a outra, de um fotograma a outro. Mas quem, como Bergson, pensa a fundo essa passagem,


entende algo muito mais agudo, que não há passagem de uma ideia a outra, de uma forma a outra, pois tudo é passagem, o pensamento ele mesmo é idêntico ao movimento, daí o título de seu belo livro, O Pensamento e o Movente, onde ele postula que uma ideia, uma forma, é apenas um instantâneo, um recorte, um congelamento desse movimento. Não se trata de reconstituir o movimento a partir de imobilidades, o que é impossível, mas pensar a própria imobilidade, uma ideia, uma forma, como um recorte de um fluxo. Importa, pois, esse fluxo, que não é fácil apreender com nosso pragmatismo que precisa manipular o mundo e congelá-lo em objetos, formas, substâncias, etc... Daí a opção que me parece muito feliz, Maruzia, de tentar apreender o pensamento no seu voo, no seu fluxo, no seu transcurso, na sua passagem... Mas como fazer isso, não é demasiado abstrato? E sua solução, parcial, é cartografar, pesquisar o ato de pesquisar, dar atenção extrema a esse fluxo, com suas paradas, volteios, precipitações, desfalecimentos, pois esse fluxo é tudo menos uma evolução contínua e retilínea, donde a multiplicidade de recursos que você utiliza, os trechos que você pinça dos autores que te afetaram, os pensamentos que eles suscitaram em você, as formas de registro que essa afetação exigiu que você inventasse...


Dou um exemplo: “o mais profundo é a pele”... grande ideia de Valéry... é toda uma concepção que está aí embutida, que Deleuze vai desenvolver, contra a profundidade, contra uma certa concepção do pensamento como a busca do profundo, não, pensamento como deslize na superfície, como exploração desse deslizamento, portanto nem subir nem descer, mas percorrer, atravessar, afetar a epiderme... e você inventa aquela janelinha em papel vegetal*, com essa inscrição... Mas têm as cartas, trocadas com amigos, inclusive com inscrições críticas deles, adorei essa coragem e franqueza, de expor-se ao risco de que o leitor aderisse à crítica formulada por um amigo muito arguto e contundente... Mas têm os diários de bordo, por assim dizer, fragmentos soltos que são o registro de sua perplexidade com tanta coisa – e que frescor há nessa perplexidade, nessa titubeação, como se você não temesse expor sua zonzeira diante de tantas ideias, ou da força dessas ideias, ou da arrebatação provocada por esses ventos conceituais... Os desenhos, a página de metal*, as frases em linha percorrendo várias páginas, as linhas sobrepostas em direções diferentes... Mas há nisso tudo dois traços que me chamam especialmente a atenção. Um deles é o esforço em manter, por assim dizer, o estado de


fluxo, no sentido reverso... Ou seja, aquilo que é da ordem do desfazimento, do apagamento, do desmanchamento, por exemplo, “destexto”, ou “sobreviverá o que se apaga em quem escreveu?” Uma atenção aguda precisamente para essa dimensão em que aquele que pensa, que escreve, que faz, que registra, num certo sentido ele mesmo, no ato mesmo dessas operações, se esvai, desfalece, se retrai, se extingue... Não no sentido de uma morte com m maiúsculo, mas de uma dessubjetivação onde ele perde o controle para que a intensidade daquilo que ele veicula ganhe o proscênio... E é preciso inventar variações gráficas para dar conta disso, pois é uma dessubjetivação, porém que preserva uma intimidade... por exemplo a escrita em alto relevo*, e branco no branco... Ou então esse risco de extinção sempre presente, como diz você, “Quase abortado, mas vivo, afinal, tornando-se”... Mas não se trata do pensamento em geral, em abstrato, mas singular, como você diz, “Há que se ressaltar a caligrafia própria de cada pensamento, pois, como exigir que as palavras sejam encarrilhadas segundo os mesmos ditames, se as ideias não o são?”, “Como um pensamento se mantém ventando no decorrer do tempo?”


[A hipótese que subjaz a isso é que o pensamento não pode acabar-se, não pode tomar-se por acabado, ele é um feixe de virtualidade a desdobrar-se indefinidamente. Nesse sentido a comparação com o ovo é ótima. “Nunca se sabe a existência completa de um embrião antes que ele viva tudo. É como o ovo que se transmuta em forma vivível (...). Assim acontece também com o pensamento, por isso não se alcança a sua ponta. Qualquer inflexão, desvio, e já uma nova rota”. Gosto dessa imagem de uma fita de moebius onde escrever, pensar, devir estão numa relação de continuidade imbricada e reversível.] Outro traço é o da pele... Como se nada disso fosse inofensivo, tudo aqui revira a pele, e você sente um “indesejo” de largar sua derme, e no entanto o faz, como se se entregasse à mais perigosa das aventuras, onde o corpo está implicado inteiramente, como se com ele você cerzisse a escrita, arrancando células – o belo desenho da pele que vira linha que vira escrita, é muito mais radical do que o [filme] Livro de cabeceira, que parece até pueril diante do que você está aí experimentando. Não oferecer a pele como tela, mas desfazê-la, como se desfaz uma tela, para com esse fio mesmo fazer as letras...


E talvez aqui se junte o que assinalei anteriormente, o desmanchamento do pensamento e o do corpo, você fala em “desmemória, em “desescrita”, em “indesejo”... “imagens desistidas”, “linhas de corrosão cotidianas”, em desmoronamentos, em “desexistência”, em despencamentos, “um corpo mais selvagem que o tempo”... E você diz, numa página no Caderno Decurso: “No processo de construção das personagens, cada ator recebeu uma ação. O meu verbo e, com isso, meu objetivo, era: desaparecer.” Há aqui algo curioso, não é desaparecer do mundo, mas aquilo que Foucault assinala no belo texto inédito que eu não conhecia [“O Corpo utópico”]: Ele diz, por um lado, que não escapo ao meu corpo, ele sempre me acompanha. Depois, acrescenta que qualquer utopia é uma luta contra esse corpo. Ao final conclui que o corpo ele mesmo tem a elasticidade, no sentido de que ele vai além dele, assim, o corpo do dançarino é um corpo dilatado, assim como o corpo dos drogados, ou dos possuídos... o mesmo se poderia dizer do corpo do escritor, ou do pensador... com o que ele conclui que o corpo de fato está sempre em outro lugar, está ligado a todos os lugares do mundo – sendo o corpo um ponto zero do mundo, ali onde os caminhos e os espaços se cruzam...


Eu não consigo me furtar à sensação de que isso constitui um fio de seu trabalho inteiro, uma ambição paradoxal, de registrar o movimento, ou melhor, de fazer o movimento, com os elementos que são os seus, mas ao mesmo tempo em nele desaparecer... Algo como um devir-imperceptível – nada de monumentos, nem de tumbas onde tudo pudesse ser guardado e preservado, mas o contrário, como que atingir uma extensão do corpo que abarque o livro, mas nisso, alcançar um estado de leveza, você diz, num sentido duplo: “LEVE a areia do livro!” E você explica: “Foi uma saída risível: nem se afundar, nem estar à margem – carregar os grãos consigo, para fazer o livro. Tempestades do deserto são mortíferas como as tormentas, mas não precisa se afogar. Nem em água, nem em terra. Leve. A leveza de uma gota, de um grão. Deixar o vento levar...” Talvez a pergunta sobre o pensamento é a pergunta sobre o corpo que é a pergunta sobre um possível desaparecimento do corpo em favor de um corpo-livro-pele-imagem, que em última instância seja a pesquisa de uma imagem que possa sentir, com a leveza que daí se requer. Você mesma diz: “A proposta inicial desta pesquisa era realizar um panorama da produção audiovisual no Brasil, através do projeto ‘Vídeo interativo (...)’.


Na tentativa de definir esse tipo de vídeo, esboçou-se a ideia do corpoimagem – espécie de imagem que sente, como a pele. Deste ponto, questões acerca da imagem, do corpo e do pensamento provocaram novas inflexões ao projeto, deslocando o corpus da pesquisa: a pele tomada como imagem, e o pensamento, como corpo resultou, pois, no trabalho aqui apresentado”. Eu concluo dizendo que esse é um trabalho de metamorfose. Não é uma pesquisadora tomando por tarefa debruçar-se sobre um objeto, nem mesmo realizar um projeto, uma obra, uma pesquisa. É colocar-se inteiramente em xeque no ato da pesquisa, expor-se a ela, mas saber que essa pesquisa ela mesma só pode dar-se, na sua radicalidade, caso tenha por matériaprima precisamente essa existência, a metamorfose dessa existência, a pele dessa vivente que nela se empenha... É nesse risco, entrega, metamorfose, transmutação, dessubjetivação, que foi parido esse objeto-livro-pele-pensamento infindo, que é muito difícil finalizar, concluir, fechar... “Como findar isto que é imenso, sem ter nem começo? A pesquisa de uma vida. Inapreensível como aquele sopro – a chama – a chave. A chave perdida. A chave que sequer existe. algo que é impossível procurar,


encontrar e tampouco, talvez, perder. Por isso não se termina. (...) Viver a duração de outros mundos. Dentre todos os ondes, estar em nenhures. Insituável.” Lembra um pouco Kafka, cuja obra sempre foi objeto de uma tentativa de encontrar-lhe a chave, quando um intérprete propõe o seguinte: a obra dele é a desse mundo cuja chave foi perdida, já não temos uma chave que abriria suas portas, que nos revelaria seu sentido... Por isso é curioso ter a chave aí, no diário de corpo do pensamento, a chave que não abre nada nem fecha nada... Sim, mas ao mesmo tempo, malgrado todas essas partículas privativas in, im, des, até mesmo trans, ou essas lacunas, ou todo esse nomadismo operado com grande obstinação e entrega, há algo mais aqui que não pode ser desconsiderado. Que isso ao mesmo tempo é a construção de um território de existência, ou como diria Guattari, um território existencial. Você construiu com sua inventividade, ousadia, maluquice, obstinação, golpes deliciosos (como essa maneira gráfica de apresentar sua bibliografia, adorei!!), você construiu alguma coisa... não sei como chamá-lo... tantas variações, de tom, de escrita, de arranjo... tem aí uma voz que você conseguiu inscrever num objeto-não-voador-não-identificável, estranho, esquisito,


que se abre, que nos abre, que espanta, que exaspera, que maravilha... enfim, é mesmo um experimento, no sentido forte da palavra, e uma pesquisa que não seja um experimento, inclusive consigo mesmo, mas também com todas as áreas e registros que você atravessa, de que serviria? Peter Pál Pelbart São Paulo, 13 de dezembro de 2012

*Referências à primeira forma de apresentação deste trabalho (livro-objeto),

como dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (PPGAV/ ECA/USP), em 2012.


Sumário [1] Corpar Antecedentes. Corpus da pesquisa por vir. Este estudo de corpo.

[2] Cadernos de curso Contexto de pesquisa. O livro como território existencial. Pesquisar: uma movência cartográfica. Estudar o corpo. Pesquisa, pergunta e vontade genética. Forças ativas e reativas na Ciência. Ciência e (in) consciência. Marcas mobilizadas. Palpitações no projeto. Ausculta. Gravura-pesquisa. Pesquisa da vida toda, que não tem tamanho. Vultos cotidianos: entre o sonho e a vigília.

[3] Um corpo ao pensamento [3.1] Corpo e espaço: onde é o onde do corpo? Heterotopologia. As heterotopias: espaços outros. Conferências radiofônicas de Michel Foucault acerca da utopia. Contextos de publicação.


[3.2] Corpos outros: das utopias às heterotopias do corpo As utopias e seus corpos. Corpo-livro. Mákina, palavra-corpo da lei. [3.2.1] Corpo e acontecimento Corpo dilatado. Efetuação e contra-efetuação. Fissura, operador de acontecimentos. Incisão em superfície, espessura, profundidade. [3.2.2] Corpo fissurado: da fissura aos corpos do pensamento Alargamento e vibração da fissura. Plano de composição e corpos poéticos: os corpos do pensamento. Pensar por sensações. Composto de sensação. Dimensão monumental da obra de arte. Encarnação do acontecimento. Condição limítrofe: o risco do corpo fissurado. Queda-livre versus enfrentamento do caos. [3.2.3] O dançar do corpo de escrita Além da quebradura de cada corpo. Um dançarino da escrita. Palavra poética versus linguagem utilitária. O pêndulo poético. Autopoiése e autoposição da criação. Pré-individualidade do corpo do pensamento.


[3.2.4] Um corpo ao pensamento ou Fabricação de corpos poéticos Corpos fabricados na operação poética. Móbiles no caos. Atribuir um corpo ao pensamento. Corpar: ser e não ser encarnável. O corpo do pensamento como acontecimento. Força motriz dos corpos poéticos. O vir a ser do pensamento. O livro de areia: tornar-se infinitamente. [3.2.5] Dermoteca: escrever, apagar, inventar a pele Corpo no amor. Espaços outros, corpos outros: corpo heterotópico. As heterotopias. Acontecimento: duplicidade do corpo heterotópico. Autoimagem na utopia e na heterotopia: o cadáver, o espelho e o amor. Tocar o corpoimagem. Pele apagada pela utopia, pele inventada pela heterotopia.

[4]Textura, uma operação Dispositivo. A questão metodológica: mote conceitual e operador poético. Pesquisa da sensação: texto-imagem e palavra poética. Pesquisa em Artes. Corpografias: zonas de contaminação. Pensar, experimentação filosófica/científica/poética. Desordem do discurso: imaginário em torno dos pensadores. Proposta indisciplinar na


pesquisa: por uma teratologia do saber. Relações entre Ciência, Arte e Filosofia. Recortes do caos: plano de referência, de composição e de imanência. As interferências intrínsecas. Transplanar: o pensamento como heterogênese. As interferências ilocalizáveis. [4.1] Dos experimentos poéticos [4.1.1] Sobre Caderno Decurso Voz dérmica, Corpo sem Órgãos (CsO). Itinerância: as aulas de filosofia. Tatear um corpo de pensamento. Tessitura musical. [4.1.2] Sobre Diário de corpo do pensamento Texto diarístico e o fora-texto. O diário de corpo como categoria. Personas cambiantes: personagens conceituais? Camadas da pele intensiva. Versões a partir de versões. Alfabeto: as horas de Paul Valéry. Hecceidade. Escrita em quadros: páginas-tela. [4.1.3] Cintilações do ENTRE Modos de olhar-tocar a pele. Algo que impele. Janela-espelhotela. Ler com dedos. Palavra-pele: ser e não ser tocável, o toque como questão.


[5] Conhecer uma pergunta irrespondível Que corpo é esse?

[6] Referências Bibliográficas Outras

Experimentos poéticos Diário de corpo do pensamento Caderno Decurso




Este livro abarca contradições – aquelas que me trouxeram a este percurso e as que insurgiram dele. (Esse caminho sempre corpo, embora ele seja sempre outro, outro corpo). A ideia era produzir conhecimento e, quando vi, estava eviscerada – fora de mim estando mais nele. Já não há (nunca houve) um dentro e um fora. Quanto mais tento dizer sobre este corpo, ele menos o é. Por isso o pensando quase alto – corpo no corpo no corpo. Talvez coubesse um verbo?

Corpar


Antecedentes Demorei em entender que, embora tão distintas, apenas um triz separava as experiências anteriores, realizadas através da Faculdade de Medicina, Faculdade de Comunicação e Escola de Dança, na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Que tais estudos continham a mesma questão latente. Esse caminho sempre corpo. Corpo paciente, que toquei: pele com pele: outra temperatura, outra respiração, outra dor; esquadrinhadas em nome das evidências, formolizadas em peças anatômicas, coração-músculo, rosto seccionado, metade superficial, metade profundo, ossos desmontados, envernizados e pendurados; alguma vida interrompida. Tornada coisa. Alguma vida continuada.


Corpo imagem, que imaginei, apesar do acurado treinamento para relatar fatos (anamneses, história da doença, história pregressa; depois, fontes, entrevistas, matérias...). Pois foi inventando roteiro de sensações que conheci outro modo: escrever com imagens. Ações entregues ao vídeo – e a elas, ele. A lente destacando da pele ainda mais imagem; alguma vida a um só tempo recortada e ampliada. Tornada vídeo. Corpo dançante, que acompanhei e, por videografar com seus passos, também me desloquei. Achava que era só o olhar, a câmera, mas meu corpo estava inteiro lá. Vi-me pele. Entre avatares, cabos, telas, suores, lycras, luzes, palco, cortina, plateia, linóleo, pele, figurino, cenário, sinal, fita crepe, cabos, cabos, cabos, pele, curativo, pele, pele; alguma vida. Tornada risco. Corpo do pensamento, este.


Comecei o curso de Mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da ECA-USP buscando reconhecer um problema: qual seria o objeto desta pesquisa? No trajeto, percebi que o problema é que me perseguia e já fazia tempo – o tempo da vida inteira. Diante do espelho: suspendida. Pela primeira vez estava descolada da carne. – Por que chamavam aquilo (aquele corpo) de Maruzia? (E eu via aquela imagem com os mesmos olhos que avistava nela). Eu objeto e sujeito. Eu coisa

Coisa nominada


Mencionar esse encontro é uma pista para compreender sua cisão – corpo imagem corpo. É mostrar a marca mobilizada por esta pesquisa. Nesse jogo especular, já não há como dizer de objetos, nem de sujeitos, muito menos do eu. Aqui não era para ser um caderno, nem diário – isto é um livro. Mas

uma coisa será a outra


Corpus da pesquisa por vir A proposta inicial desta pesquisa era realizar um panorama da produção audiovisual no Brasil, através do projeto “Vídeo interativo: possibilidades, limites e reapropriações artísticas”. Na tentativa de definir esse tipo de vídeo, esboçou-se a ideia do corpoimagem – espécie de imagem que sente, como a pele. Deste ponto, questões acerca da imagem, do corpo e do pensamento provocaram novas inflexões ao projeto, deslocando o corpus da pesquisa: a pele tomada como imagem, e o pensamento, como corpo resultou, pois, no trabalho aqui apresentado.


Dizer corpo é já perdê-lo E que tarefa é esta, então? Se não cristalizá-lo é da ordem da impossibilidade, o que faço aqui – insisto? Falar de uma incessante transmutação. Isso ainda é um

sim


Este estudo de corpo A proposta intuída e instituída em Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento é de texturas do pensamento: sua busca como método, seu encontro como corpo e seu reconhecimento como grafia. Assim, esta pesquisa suscita a experiência de auscultar o corpo do pensamento. Uma vez que ele é, simultaneamente, fala, visão e escuta, toma-se o desafio de alçá-lo de maneira tal que esse processo não o aliene. Para tanto, este livro realizase sob a forma de diário e de caderno, que cartografam a investigação empreendida. Estas corpografias são camadas que se suplementam, uma vez que podem atuar de forma independente e, quando adensadas, reverberam novas intensidades.


Metamorfosear-me pesquisadora sem corpo? Diante do impasse, a tarefa investida nesta pesquisa foi nĂŁo apenas falar e estudar sobre corpo: fazĂŞ-lo. Por isso o dia a dia de um corpo de pensamento que se pesquisa.

Corpo este estranho ser em mim Corpo este estranho ser Corpo este estranho Corpo este Corpo



CADERNOS DE CURSO


a. pesquis e ial. d o t x existenc o i r Conte ó t i r r e fica. como t artográ c o r a v i i c l n ê O mov ar: uma s i u q s e P o. ética. r o corp tade gen n o v Estuda e nta iência. a, pergu as na C Pesquis v i t a e r ativas e ia. Forças nsciênc o c ) n i ( e Ciência as. obilizad m s a c r Ma ojeto. s no pr e õ ç a t i p Pal a. o. Auscult tamanh isa. m u e t q s e o p ã n a , que lia. Gravur da toda e a vigí i v o a h d n o a s ntre o Pesquis anos: e i d i t o c Vultos


Cadernos de curso Os cadernos tracejados e carregados de um lado a outro, durante o curso de Mestrado, foram reunidos e processados, resultando em Corpografias: incursão em pele imagem escrita pensamento. Suas anotações tiveram como instância primeira o pensar a pesquisa que se fazia sobre o corpo do pensamento. Assim, notas de aula misturadas a ideias incidentais de rua, vozes, encontros, lidos, ouvidos, cotidianos –


tudo foi virando este corpo.


Afinal, qual seria o lugar do corpo do pensamento na investigação que o tem como foco? Qual a fala dele? Quais imagens ele produz? Que sons emite? O que o atravessa? Como? Instigada por essas questões, esta pesquisa apresentase como trabalho poético e reflexivo realizado a fim de abarcar, sob certos aspectos e intensidades, a dinâmica de experimentação do pensamento. Tanto os cadernos de curso quanto o livro extrapolam o papel de suporte para a escrita ou mero veículo. Eles reverberam os diversos espaços de ação deste estudo: as aulas na Universidade de São Paulo (USP), dentro do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais, da Escola de Comunicações e Artes (ECA), e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU); os grupos de pesquisa no Departamento de Artes Plásticas (CAP/ECA/ USP); os cursos de filosofia no Atelier Paulista e a convivência com artistas de lá; além dos encontros no Núcleo de Estudos da Subjetividade (PUC-SP).


Ao olhá-los a certa distância, é possível perceber a conjunção que criam, da qual emerge o território existencial1 que é este trabalho. Aqui, está cartografado o próprio ato de pesquisar, tornando visíveis as paisagens erguidas pelos encontros os mais diversos deste percurso, que teve a liberdade bibliográfica como combustível de conexões improváveis, e a sala de aula como campo de pesquisa, sua experimentação. Assim, este livro expõe como resultado o trajeto de sua realização; ele registra um modo de conhecer e o torna acessível – nisto reside sua dimensão acadêmica. A natureza desse processo invalidou qualquer tentativa de sumarização prévia e planejamento teórico. A única condição constante foi a de estar passível a novos estímulos, como uma criatura movente capaz de fagocitar tudo que (lhe) toca, fazendo o que é externo, dentro, invaginação desafiadora de distâncias. Mesmo a definição do corpus desta pesquisa adveio dessa forma de agir: ele foi delineado no movimento cotidiano do


1

(GUATTARI, 2012, p. 30, 63, 66)


pesquisar2, chegando-se ao corpo do pensamento. Porém

(DELEUZE, 1976, p. 32)

Estas Corpografias foram ensejadas pelo estudo de corpo. Esta é sua vontade3 – aquela que precisa ser conhecida para se saber o que o perguntador quer dizer com a pergunta que fez: qual vontade o levou a perguntar. Identificar a pulsão que levou uma pesquisa a ser empreendida ou um conceito a ser criado, então, seria a única forma de profundamente conhecê-los.


“Já que não é possível definir seu método (nem no sentido de referência teórica, nem no de procedimento técnico), mas, apenas, sua sensibilidade, podemos nos indagar: que espécie de equipamento leva o cartógrafo, quando sai a campo? (...) um critério, um princípio, uma regra e um breve roteiro de preocupações – este, cada cartógrafo vai definindo e redefinindo para si, constantemente. O critério de avaliação do cartógrafo você já conhece: é o do grau de intimidade que cada um se permite, a cada momento, com o caráter de finito ilimitado que o desejo imprime na condição humana desejante e seus medos. É o do valor que se dá para cada um dos movimentos do desejo. Em outras palavras, o critério do cartógrafo é, fundamentalmente, o grau de abertura para a vida que cada um se permite a cada momento. Seu critério tem como pressuposto seu princípio.” (ROLNIK, 1989) 2

3

(DELEUZE, 1976, p. 64)


Encontrar o que leva alguém a pesquisar algo.

Ler isto, por um lado, foi tranquilizador: estava incluída, como pessoa ligada ao estudo do corpo. Por outro, fiquei intrigada: por que pessoas se ligam ao estudo do corpo? O que elas têm em comum? Que quereres compartilham? Qual a vontade de quem estuda O Corpo? O Corpo?


(DELEUZE, 1976, p. 32-33)

A partir da análise das forças ativas4 e reativas que configuram um corpo, Gilles Deleuze (1976) aponta que: “O verdadeiro problema é a descoberta das forças ativas, sem as quais as próprias reações não seriam forças. 4

(DELEUZE, 1976, p. 34-35)


A atividade das forças, necessariamente inconsciente, é o que faz do corpo algo superior a todas as reações, em particular a esta do eu que é chamada de consciência” (DELEUZE, 1976, p. 34). Esta parece uma preciosa contribuição à pesquisa acadêmica. Seria necessário, então, ir além das perguntas conscientemente formuladas na ciência, que tem como base o que é reativo, para se chegar a uma verdadeira pergunta – a qual queremos fazer, mas sequer sabemos como: uma questão. (DELEUZE, 1976, p. 34)

E o que seria uma força ativa, autônoma, que a todo tempo escapa à consciência? Nisso, o pesquisador tem muito o que aprender com a literatura e as artes. Talvez porque lhe seja caro o instinto próprio a

(VALÉRY, 2011, p.141)


“Estou em pé na soleira da porta a ponto de entrar no meu quarto. É uma empresa complicada. Primeiro tenho de lutar contra a atmosfera que pressiona cada centímetro quadrado do meu corpo com uma força de 1 quilograma. Além disso preciso tentar desembarcar numa tábua que voa em torno do sol a uma velocidade de 30 quilômetros por segundo; um atraso só de uma fração de segundo e a tábua já está a milhas de distância. E essa proeza tem de ser realizada enquanto pendo de um planeta esférico com a cabeça voltada para fora, mergulhada no espaço, e um vento de éter sopra por todos os poros do meu corpo sabe Deus com que velocidade. Também a tábua não tem substância firme. Pisar em cima dela significa pisar em cima de um enxame de moscas. Será que não vou cair pelo meio? Não, pois quando ouso e piso nela uma das moscas me aceita e me golpeia para o alto; caio de novo e sou


ndo d o m u ta m e g a tis da “Im do cien Tr e c h o pela física”, 1944), ex2da ofereci dington (188 Benjamin d E er Arthur carta de Walt ris, 12 de a d ( m Pa traído Schole m o h s a Ge r ). e 1938 junho d

atirado para cima por outra mosca e assim vai em frente. Posso, portanto, esperar que o resultado geral será que eu permaneço continuamente mais ou menos na mesma altura. Mas se apesar disso, por infelicidade, eu caísse pelo meio do assoalho ou fosse lançado para o alto com tal violência que voasse até o teto, esse acidente não seria uma violação das leis da natureza, mas só uma coincidência extraordinariamente improvável de acasos... Em verdade é mais fácil um camelo passar pelo fundo de uma agulha do que um físico ultrapassar a soleira de uma porta. Trate-se do portão de entrada de um celeiro ou da torre de uma igreja, talvez fosse mais sábio que ele se resignasse em ser apenas um homem comum e simplesmente entrasse, ao invés de esperar que tenham se resolvido todas as dificuldades ligadas a uma entrada cientificamente irrepreensível”


(UNO, 2012, p. 42-43; 59; 66)


Uma pesquisa deve ser mobilizadora de marcas5, dá-lhes escuta, imagem, corpo. Inscrevê-las. Dizer daquela vontade, desde um lugar irrepetível. Pesquisar, portanto, requer 6

“Se a marca coloca uma exigência de trabalho que consiste na criação de um corpo que a existencialize, o pensamento é para mim uma das práticas onde se dá esta corporificação. O pensamento é uma espécie de cartografia conceitual cuja matéria-prima são as marcas e que funciona como universo de referência dos modos de existência que vamos criando, figuras de um devir.” (ROLNIK, 1993) 5

“Pensar assim concebido e praticado se faz por um misto de acaso, necessidade e improvisação: acaso dos encontros, onde se produzem as diferenças; necessidade de criar um devir-outro que as corporifique; improvisação das figuras deste devir. Assim, neste tipo de trabalho com o pensamento o que vem primeiro é a capacidade de se deixar violentar pelas marcas, o que nada tem a ver com subjetivo ou individual, pois ao contrário, as marcas são os estados vividos em nosso corpo no encontro com outros corpos, a diferença que nos arranca de nós mesmos e nos torna outro.” (ROLNIK, 1993, grifo nosso). 6


. . .

Encontro o corpo utópico7: um texto tão essencial quanto intimamente implicado. É quase impossível reconhecer Foucault nessas linhas... (Ainda que diante de seu autorretrato!) Aquelas poucas páginas reuniam as questões que ainda se esboçavam nesta pesquisa. Lá, juntas, precisas: a irrefutabilidade de ser um corpo físico, suas presentificações e ausências. O corpo e sua imagem: a morte, o espelho, o gozo. Corpo do outro. Corpo outro. Corpo sempre outro. Era, de uma só vez, incisivo e tangente: falava do corpo heterotópico, mas sem nomeá-lo. Aliás: a princípio, chamava-o até por uma palavra que dizia justamente o contrário... Foucault tinha sido mesmo (FOUCAULT, 1970, p. 5)

7 Conferência radiofônica “Le Corps utopique” [“O Corpo utópico”], proferida por Michel Foucault, em 1966.


Por longos dias, meditei sobre o belo jogo de ideias. Não cansava de me deslumbrar com cada nova descoberta – e o pequeno texto não parava de se abrir... Quanta força havia nele. Foi como se esta pesquisa se tornasse desnecessária. Aquele por um triz que a sustentava parecia, já, um equívoco. Não tardou, porém, em se mostrar um presente: “

!


. . . Outra palpitação – a demora merecida:

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 7)


Mas o que é isso que não fiz toda a minha vida! Pensar o pensamento. O projeto de pesquisa mais uma vez dispensável? (Pois, se esta deveria ser a tarefa última de um filósofo, para que este trabalho – filósofa que não era, que não sou!) . . . Como é do encontro-colisão ser contra e a favor, estes, afirmaram o algo que havia a ser dito, mesmo e somente, deste ponto de partida minúsculo, o menor de todos: o único do qual posso falar. . . .


O que quer este trabalho é a tatilidade que há na interseção entre a pesquisa e o pensamento – alçar um corpo de pensamento. Mas seria esta uma questão a ser pesquisada? Possível? Seria mesmo esta uma questão? A imersão, sufocante e igualmente sedutora, ainda parece válida: que há algo a ser dito. Algo a ser escutado. (NIETZSCHE apud DELEUZE, 1976, p. 65)

Escutar com a intensidade da ausculta: “dar ouvidos” a movimentos imperceptíveis, que, no entanto, são indispensáveis. No exame médico, por exemplo, ausculta-se um coração, um feto. Na pesquisa, há que se escutar sua vontade genética. Aquela, amalgamada na pergunta e no perguntador. Como se a enunciação levantada por uma pesquisa fosse potencialmente reveladora de seu motor, muito mais que de respostas – uma provocação ao interrogador.


Gravar é cunhar intimidade, encontro de matéria e sensação8. Supondo que uma substância metálica a ser gravada seja a linguagem: a vontade é o talhe nessa superfície, fazendo dela uma pergunta. Que esta matriz resistente seja prensada contra a maciez da outra superfície, um papel. Nesse processo, do metal sairá algo que não é ele – é a sua marca, a imagem que ele, como objeto metálico, foi capaz de gerar sob dadas condições. Ousaríamos uma fórmula? Uma pergunta comprimida com aquela força de 1 quilograma que empurrava cada centímetro quadrado do corpo de Eddington, ao longo de xis metros quadrados de superfície moldável, resultará numa gravura-pesquisa – nela, está impressa a bela imagem de sua vontade. A marca de sua marca. Imprimir é a ausculta que faz o artista. Ele olha os mesmos objetos que todos, mas cria os seus, vê neles sua marca. Extrai linhas e relações im/possíveis das coisas; antevê formas que a matéria guarda, inventa-as. Mais que revelar, a operação poética9 cria o ainda não visto, nem sentido.


8

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.196-197) 9

(VALÉRY, 2011, p. 213)


Na investigação artística, auscultam-se mundos, vidas – aqueles movimentos imperceptíveis, que, no entanto, são indispensáveis. Seu trabalho não começa aqui ou ali, ele não para; sua pesquisa acontece a cada abrir os olhos, dormindo até – basta-o a condição de estar vivo. Pesquisa da vida toda, que não tem tamanho10.

Entre o dormir e acordar, e o acordar e dormir, vivemse vultos cotidianos: entres que conjugam intensidades: nem relógio, nem nada suficiente para conter. A situação criativa é ultrajante, sinuosa – infiltra-se.


A cena a seguir encarna a pesquisa infinita (Trecho extraĂ­do do livro PapelmĂĄquina, de Jacques Derrida, 2004, p. 246): 10



12

VALÉRY, 2009, p. 13

(VALÉRY, 2009, p. 9. Trecho da letra A do Alfabeto de Paul Valéry)

O que distingue esses dois intervalos – o sonho e a vigília – é o tipo de vontade que sobre eles opera. O primeiro, zona indeterminada, é regido por vontades involuntárias – no sonho11reina a impotência de uma terra que se reconhece, mas somente como 12 expropriação. Este atribui ao sonho uma qualidade criativa, insubmissa a qualquer tipo de exigência ou correspondência. 11

(GUATTARI, 2011, p. 14)


(VALÉRY, 2011, p. 95)


(VALÉRY, 2009, p. 11-13. Trechos das letras A e B do Alfabeto de Paul Valéry)


No outro lado, está a vigília, quando se desenrola a pragmática diária. Ela é a zona na qual se pretende determinações; está sob a égide da vontade consciente. Esta, por sua vez, sendo de cunho reativo, embarga a criação. Porém, no estado vigilante, há ainda outro tipo de vontade – que não é a onírica, nem a ordinária. É desta vontade, pois, que usufruem artistas, pesquisadores, pensadores. Dela dependem suas atuações.

(VALÉRY, 2009, p.13)


“É com um corpo que nós encontramos no estudo: um corpo traz encarnada em conceitos uma série de marcas que ao nos afetarem podem provocar em nós o aparecimento de uma ou de várias marcas inusitadas ou também reavivar alguma marca que já estava ali a nos desassossegar, sem que pudéssemos ouvi-la e/ou responder à sua exigência. Quando uma marca é assim criada ou reatualizada no estudo, somos atraídos por sua reverberação e lançados a uma exigência de inventar um corpo conceitual [e/ou poético] que a encarne”. (ROLNIK, 1993)


ร com um corpo que nรณs encontramos.




UM CORPO AO PENSAMENTO


Um corpo ao pensamento Corpo e espaço: onde é o onde do corpo? Heterotopologia. As heterotopias: espaços outros. Conferências radiofônicas de Michel Foucault acerca da utopia. Contextos de publicação.

Corpos outros: das utopias às heterotopias do corpo As utopias e seus corpos. Corpo-livro. Mákina, palavra-corpo da lei. Corpo e acontecimento Corpo dilatado. Efetuação e contra-efetuação. Fissura, operador de acontecimentos. Incisão em superfície, espessura, profundidade. Corpo fissurado: da fissura aos corpos do pensamento Alargamento e vibração da fissura. Plano de composição e corpos poéticos: os corpos do pensamento. Pensar por sensações. Composto de sensação. Dimensão monumental da obra de arte. Encarnação do acontecimento. Condição limítrofe: o risco do corpo fissurado. Queda-livre versus enfrentamento do caos.


O dançar do corpo de escrita Além da quebradura de cada corpo. Um dançarino da escrita. Palavra poética versus linguagem utilitária. O pêndulo poético. Autopoiése e autoposição da criação. Pré-individualidade do corpo do pensamento. Um corpo ao pensamento ou Fabricação de corpos poéticos Corpos fabricados na operação poética. Móbiles no caos. Atribuir um corpo ao pensamento. Corpar: ser e não ser encarnável. O corpo do pensamento como acontecimento. Força motriz dos corpos poéticos. O vir a ser do pensamento. O livro de areia: tornar-se infinitamente. Dermoteca: escrever, apagar, inventar a pele Corpo no amor. Espaços outros, corpos outros: corpo heterotópico. As heterotopias. Acontecimento: duplicidade do corpo heterotópico. Autoimagem na utopia e na heterotopia: o cadáver, o espelho e o amor. Tocar o corpoimagem. Pele apagada pela utopia, pele inventada pela heterotopia.



Um corpo ao pensamento Corpo e espaço: onde é o onde do corpo? Em 1966, Michel Foucault propõe uma nova ciência para estudar o espaço – a heterotopologia1, cujo objeto é a heterotopia. Em seguida, atravessando a perspectiva heterotópica do espaço, o autor realiza um estudo do corpo utópico. Com este compõe um agudo espectro das relações entre corpo e espaço, do qual desponta a questão: onde é o onde do corpo? 1 A heterotopologia seria uma especialidade da topologia, que, por sua vez, pode ser definida como “ciência que pensa as formas geométricas como fenômenos que, tendo um desenvolvimento no tempo, definem o devir, não mais o ser do espaço.” (ARGAN, 1992 apud SPERLING, 2003, p. 33). Nesse sentido, Foucault (1967) aponta como elemento diferenciador dos diversos tipos de heterotopia a relação que eles apresentam com o tempo (as heterocronias). No tópico Dermoteca: escrever, apagar, inventar a pele, as heterotopias são apresentadas em detalhe e discutidas.


Tais colocações integraram as conferências radiofônicas “Les Utopies réelles: lieux et autres lieux” (“As Utopias reais: lugares e outros lugares”) e “Le Corps utopique” (“O Corpo utópico”), pronunciadas por Foucault em 7 e 21 de dezembro de 1966, como segunda e quarta emissões da série “L’utopie et la littérature. Littérature sur l’utopie”, da France-Culture. O áudio dessas conferências foi editado e publicado, sob o título Utopies et hétérotopies [Utopias e heterotopias], pelo Centre Michel Foucault/ Institut Mémoires de l’édition contemporaine (IMEC-Caen), e reeditado pelo Institut National Audiovisuel (INA), em 2004, como CD da série Mémoires vives. A publicação impressa dos dois textos originais foi realizada apenas 43 anos depois, no livro Le corps utopique, les hétérotopies (Paris: Lignes, 2009), com apresentação de Daniel Defert. No Brasil, o material permanece inédito. A versão em português aqui utilizada foi a tradução feita pelo Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores (Cepat/ Instituto Humanitas/ Unisinos) e disponibilizada no respectivo site em novembro de 2010. Uma versão castellana do mesmo texto foi publicada na revista Fractal (n. 48, p. 125, jan-mar. 2008), com tradução de Rodrígo García;


ela encontra-se também na edição argentina El cuerpo utopico, las heterotopias (Buenos Aires: Ed. Nueva Vision, 2010). A noção de heterotopia é retomada por Foucault na conferência “Des espaces autres” (“De outros espaços”), proferida no Cercle d’études architecturales de Tunis, em 14 de março de 1967. Sua primeira aparição completa como texto escrito acontece em 1984, na exposição “Ideia, Processo, Resultados”, na Martin Gropius Bau (Berlin). De acordo com Daniel Defert (2009), Esta exposição foi a principal das dezessete manifestações com as quais a International Bauausstellung (IBA) apresentou ao mundo o balanço de suas atividades de reconstrução e renovação de Berlim. Ela imaginou a reunificação da cidade-capital, que parecia estranhamente ilustrar os ‘espaços outros’ do texto de Foucault de 1967. Ao autorizar sua publicação, pouco antes de sua morte, ocorrida em 25 de junho de 1984, o filósofo o tinha feito entrar in extremis no corpus de seus escritos autorizados.2 2 “Cette exposition était la principale des dix-sept manifestations par quoi l’International Bauausstellung (IBA) présentait au monde le bilan de ses activités de reconstruction et de rénovation de Berlin. Elle imaginait la reúnification de


Em seguida, “Des espaces autres” foi publicado também na revista Architecture, mouvement, continuité (n. 5, out. 1984, p. 46-49) e recolhido em Dits et écrits (IV, Paris: Gallimard, 1984). Este e os outros trabalhos de Foucault anteriormente mencionados estão referidos, neste livro, pelo ano de realização das conferências, considerando-as como publicação primeira de tais produções.

la ville-capitale, laquelle semblait illustrer étrangement les ‘espaces autres’ du texte de Foucault de 1967. En autorisant as publication, peu avant sa mort, survenue le 25 juin 1984, le philosophe l’avait fait entrer in extremis dans le corpus de ses écrits autorisés.” (DEFERT, 2009 in FOUCAULT, 2009, p. 38, tradução nossa)


Corpos outros: das utopias às heterotopias do corpo O encontro com “O Corpo utópico” (FOUCAULT, 1966) faz variar os sentidos do significante corpo, entre o físico, o utópico e o heterotópico. Tal alternância conduz a uma digressão nas discussões sobre o corpo do pensamento, senão para voltar a ele e aprofundá-lo. Assim sendo, a seguir estão apresentadas perspectivas que contribuem para a compreensão de diferentes tipos de experiência corporal. Ao contrastar a irrefutável presença física do corpo com suas diversas transmutações, Foucault (1966) destaca a susceptibilidade à utopia como fator balizador dessas variações. Nelas, a “utopia profunda e soberana” propriamente corporal estaria em graus de esvanecimento ou acentuação. O autor define a utopia como “lugar fora de todos os lugares”, “lugar sem-lugar”, estando, portanto, além de qualquer demarcação geográfica.


As utopias são lugares sem lugar real. São lugares que têm uma relação analógica direta ou invertida com o espaço real da Sociedade. Apresentam a sociedade numa forma aperfeiçoada, ou totalmente virada ao contrário. Seja como for, as utopias são espaços fundamentalmente irreais. (FOUCAULT, 1967)

Segundo Foucault (1966), o grau zero da relação corpo/utopia é a pura fisicalidade corporal, que estabelece uma vinculação tópica através da ocupação de determinado sítio – “um aqui irremediável”. No outro limite, está a saturação dessa relação: o corpo-imagem especular e o corpo-coisa cadavérico. Ambos são expoentes do corpo utópico e revelam, respectivamente, a utopia do espelho e a do cadáver. Apesar deles reivindicarem um espaço ao corpo, este é sempre “um invencível outro lugar”. Assim, tanto o espelho quanto o cadáver engendram espaços inacessíveis, que ratificam certa condição insituável do corpo. Na língua japonesa, existe uma expressão significativa: “não saber onde colocar o corpo”. É verdade que nós somos todos lançados neste mundo tendo só o corpo isolado. Este corpo é isolado do mundo e, ao mesmo tempo, vinculado ao mundo, invadido pelo mundo. Este corpo está entre


outras coisas e outros corpos, possuindo uma distância dos outros e medindo sem cessar essa distância. Mas a distância não cessa de variar no espaço que constitui o mundo com sua profundeza imperceptível. A forma, a grandeza, a qualidade, tudo que é mensurável sai somente desta profundeza. (UNO, 2012, p. 62)

Entre os dois extremos apontados – o corpo físico e os corpos utópicos máximos –, espraiam-se outros tipos de utopia, aos quais correspondem corpos específicos. Alguns deles são residentes perpétuos de mundos utópicos: o corpo místico dos seres mágicos, decorrente da “utopia de um corpo incorpóreo”; o corpomorto-vivo das múmias, advindo da “utopia do corpo negado e transfigurado”; e o corpo mítico da alma, que escapa às limitações impostas pela estrutura física corporal, sobressaltando-a. Há, ainda, as utopias nas quais o corpo é projetado ao universo da imaginação, do desejo ou do sagrado. Na busca pela conexão com tais instâncias, entram em cena “as utopias seladas no corpo”: lendas e operações ritualísticas, como o uso de máscaras, tatuagens e maquiagem. Segundo Foucault (1966), elas levam a crer que “o corpo humano é o ator principal de todas as utopias”.


Olhos fechados não podem ler

Coçar para ler Arranhar para entender

Uma mão não pode se escrever

A busca nunca é completa O LIVRO DOS SEGREDOS

CORPO-LIVRO Frames do filme The Pillow Book


Seriam desta ordem, pois, as intervenções feitas pela escritorapersonagem Nagiko Kiohara, para a realização do novo Livro de cabeceira? No aniversário de mil anos da primeira versão publicada do livro-diário Makura no sōshi (996-1021), da escritora japonesa Sei Shōnagon, Peter Greenaway cria o filme The Pillow Book (1996), cujo enredo inventa um modo peculiar de fazer livro: o corpo-livro. O livro de Shōnagon não somente motivou a elaboração do roteiro cinematográfico de Greenaway; ele está inserido como elemento narrativo da ficção fílmica. Traduzido para o português como Livro de cabeceira, o título japonês aproxima-se de ‘Notas do travesseiro’ (sōshi, caderno em branco; makura, travesseiro). “Essa denominação provém do tradicional travesseiro oco usado no Japão, feito de madeira, em cujo interior se guardavam apontamentos ou diários.” (RAFFAELLI, 2010, p. 330). Do ponto de vista da criação literária, a obra de Shōnagon destaca-se por contribuições singulares: “Escrevendo em hiragana, o silabário japonês próximo da palavra falada, Shōnagon abriu caminho para uma nova literatura, na qual as mulheres foram as expoentes. Shōnagon também criou uma forma literária própria, a zuihitsu, literalmente ‘pela linha do pincel’ (MASON, 2005, p. 111), mas que poderia ser traduzida como ‘escritos casuais’ ou ‘notas ao acaso’.” (RAFFAELLI, 2010, p. 338) [Fonte complementar: The Japanese Literature Home Page <http://www. jlit.net/authors_works/premodern/makura_no_soshi.html>]


Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus para movimentos geológicos. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação. (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 18)


No ritual de entrega da pele à escrita, a tinta toca o papel-película, que assume a condição passageira de página, a ser apagada pelo banho. As palavras assim cunhadas convergem os atributos de máscara, tatuagem e maquiagem, invocando simultaneamente o lendário, o sensual e o sagrado – “uma mistura de sensualidade e religião, sem a qual a carne, talvez, não ficaria de pé sozinha” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 211). Ela diz toque-me, mas já não mais está inteiramente lá. Desse modo, o corpo-livro estaria elevado a uma dimensão utópica. No entanto, ele é constituído por uma presença física que não é casual, nem gratuita; que torna sua escritura tão mais contundente porque nele está esposada. “Olhos fechados não podem ler”, são as pálpebras do corpo-livro que se fecham para dar a ver a frase. Assim, a exploração de suas páginas desdobra relações entre o extensivo e o intensivo, impelindo encontros insólitos.


MÁKINA, palavra-corpo da lei

Mecanismo semelhante ao ritual do corpo-livro constitui a máquina inventada por Franz Kafka, em Na colônia penal, escrito de 1914 publicado em 1919. Com o notório diferencial da violência exercida por um sistema judiciário bárbaro, essa mákina grava, literalmente, a lei infringida pelo condenado em seu corpo, até levá-lo à morte. A execução da sentença (realização) equivale à execução do infrator (morte), numa engenhosidade tal que leva ao limite as relações palavra/ação, pena/punição, fazendoas corresponder através da carne. A lei assim consumada finca sua força no corpo – através de um, alcança todos. A palavra que desaparece na superfície ensanguentada está, então, dita da maneira mais audível e vista da forma mais visível, tanto para quem assiste a cerimônia de tortura, quanto para aquele que a encarna – “estes suspiros que agem com uma voz colectiva” (GIL, 1997, p. 106). A soberania dessa Justiça impregna, de modo incalculavelmente eficaz, a metamorfose do corpo punido; seus


artigos são lembrados e reafirmados, letra a letra, pelo castigo da gravação: “o interior da dor é reabsorvido, transformado em transparência para todos que a veem” (GIL, 1997, p. 123). Alcança-se, com isto, a correspondência entre escrita e sentido, através do corpo transfigurado; a mákina realiza uma “produção da presença do sentido” (GIL, 1997, p. 118). A lei, propriamente escrita, é a pena de morte.

(GIL, 1997, p. 116)


(KAFKA apud GIL, 1997, p. 104-105)


Sobre a mákina, por José Gil: “o modo de revelação de presença não é, em definitivo, individual, mas colectivo (...). A sua experiência é assim transmissível – porque a sua incomunicabilidade constitui o laço essencial da nova comunidade dos fiéis (do comandante, inventor da máquina, novo Messias). Sabemos de um saber esotérico: não o poder dizer (não saber dizer ou o que dizer), e fazer neste silêncio, falar o corpo (...). A nova superfície de inscrição, o novo corpo colectivo mantém-se nesta distância e este jogo de retorno e de espelhos, (...) neste movimento que faz de um corpo singular o descanso de um outro corpo – na repetição das execuções, dos gestos do ritual público (...). A máquina põe a escrita em relação com o corpo de tal modo que o sentido (da sentença) se revela num êxtase corporal, e não numa leitura mental: ao rasgar a pele e as carnes para nelas inscrever a fórmula, a grade desencadeará a revelação do sentido à maneira extática, através de uma presença absoluta, incarnada neste mesmo corpo que sofria. (...) só ela [a máquina] sabe traduzir este sentido (da grafia das palavras) numa nova escrita e num novo sentido que o condenado poderá finalmente ler com o seu corpo. (...) A palavra constituía simultaneamente uma coisa, um signo e um sentido, isto é, um acto e um símbolo intimamente ligados. (...) não se escreve a lei impunemente: fará unir, graças à sua máquina, as duas faces do signo escrito. Quando faz coincidir a escrita e a representação, o significante e o sentido, volta a dar aos movimentos desta articulação a dignidade de actos [acontecimentos]” (GIL, 1997, p. 105-106; 108; 117-118)


Corpo e acontecimento (...) em alguns casos, em seu ponto limite, é o próprio corpo que volta contra si seu poder utópico e faz entrar todo o espaço do religioso e do sagrado, todo o espaço do outro mundo, todo o espaço do contra-mundo, no interior mesmo do espaço que lhe está reservado. Então, o corpo, em sua materialidade, em sua carne, seria como o produto de suas próprias fantasias. Depois de tudo, acaso o corpo de um dançarino não é justamente um corpo dilatado segundo todo um espaço que lhe é interior e exterior ao mesmo tempo? (FOUCAULT, 1966)

Uma grande contribuição para o entendimento desse corpo dilatado encontra-se no acontecimento. De acordo com Gilles Deleuze (2011), há que se diferenciar aquilo que acontece (o acidente) do puro expresso no que acontece (o acontecimento puro)3. Assim, ao acontecimento correspondem duas faces: a 3 “Dos dois pensadores que mais penetraram no acontecimento, Péguy e Blanchot, um diz que é preciso distinguir, por um lado, o estado de coisas, realizado ou em potência de realização, em relação pelo menos potencial com meu corpo, comigo mesmo e, por outro lado, o acontecimento, que sua realidade mesma não pode realizar, o interminável que não acaba nem começa,


efetuação (encarnação, fato, ato, estado de coisa); e a contraefetuação (o incorpóreo, fração irrealizável do acontecimento, liberação do estado de coisa). A efetuação é a inscrição do acontecimento na carne; a contra-efetuação, sua duplicação, que a limita, representa e transfigura. Certamente o acontecimento não é nem substância nem acidente, nem qualidade, nem processo; o acontecimento não é da ordem dos corpos4. Entretanto, ele não é imaterial; é sempre no âmbito da materialidade que ele se efetiva, que é efeito; ele possui seu lugar e consiste na relação, coexistência, dispersão, recorte, acumulação, seleção de elementos materiais; não é o ato nem a propriedade de um que não termina nem acontece, que permanece em relação comigo, como meu corpo com ele, o movimento infinito – e o outro diz, por um lado, o estado de coisas ao longo do qual passamos, nós mesmos e nosso corpo e, por outro lado, o acontecimento no qual mergulhamos ou ascendemos, o que recomeça sem jamais ter começado nem acabado, o interno imanente.”* (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 186) [*Nota dos autores: Charles Péguy, Clio, Paris, Gallimard, 1932, pp. 230 e 265. Maurice Blanchot, L’Espace littéraire, Paris, Gallimard, 1955, pp. 104, 155 e 160.] 4 Nesta passagem, a “ordem dos corpos” referida por Foucault (1970) corresponde à fisicalidade do mundo.


corpo; produz-se como efeito de e em uma dispersão material. Digamos que a filosofia do acontecimento deveria avançar na direção paradoxal, à primeira vista, de um materialismo do incorporal. (FOUCAULT, 1970, p. 57-58)

Nas imagens oferecidas por Deleuze: a familiaridade da porcelana e a escala cósmica de um vulcão – uma relação de implicação, e não de oposição. A proporção vulcânica que sugere o autor indica a força tamanha da contra-efetuação; ela extrai o infinitivo dos acontecimentos (o morrer que há no fato da morte, por exemplo). A contra-efetuação é impessoal, acontecimento puro: “singular e por isso coletivo e privado ao mesmo tempo, particular e geral, nem individual nem universal” (DELEUZE, 2011, p. 155). De sua impessoalidade, advém a equivalência “morre é como chove”. Nesse contexto, Deleuze (2011) propõe a fissura como potente operador de acontecimentos: “Nunca pensamos a não ser por ela e sobre suas bordas” (DELEUZE, 2011, p. 164). A fissura é uma estância à espreita, presente de forma imperceptível na superfície, mas capaz de adentrar tanto na profundidade quanto na espessura do corpo.


(...) A verdadeira diferença não é entre interior e exterior. A fissura não é nem interior nem exterior, ela se acha na fronteira, insensível, incorporal, ideal. Assim, ela tem com o que acontece no exterior e no interior relações complexas de interferência e de cruzamento, junção saltitante, um passo para um, um passo para o outro, em dois ritmos diferentes (...). Até o momento em que os dois (...) se esposam estreitamente, continuamente, no desmantelamento e na explosão do fim que significam agora que todo o jogo da fissura se encarnou na profundidade do corpo, ao mesmo tempo em que o trabalho do interior e do exterior lhe distendeu as bordas. (DELEUZE, 2011, p. 158)

A fissura, portanto, finca-se também no corpo físico – senão a partir dele. “Sim, sempre, os dois aspectos”, diz Deleuze, buscando alçar os âmbitos corpóreo e incorpóreo do acontecimento. Neste sentido, o autor vislumbra a íntima dependência na relação efetuação/contra-efetuação e, ao impasse que coloca, responde: Será possível manter a insistência da fissura incorporal, evitando, ao mesmo tempo, fazê-la existir, encarná-la na profundidade do corpo? Mais precisamente, será possível


ater-se à contra-efetuação de um acontecimento, (...) evitando ao mesmo tempo a plena efetuação que caracteriza a vítima ou o verdadeiro paciente? Todas essas questões acusam o ridículo do pensador: sim, sempre, os dois aspectos, os dois processos diferem em natureza. (DELEUZE, 2011, p. 160)


Corpo fissurado: da fissura aos corpos do pensamento “A fissura continua sendo apenas uma palavra enquanto o corpo não estiver comprometido” (DELEUZE, 2011, p. 164) Ela quer ter um filho, uma reencarnação minha, pois tem medo que eu morra cedo. Acha que sou louco – ela tem essa ideia porque pensa muito. Eu penso pouco e portanto entendo tudo o que sinto. Estou sentindo através da carne e não do intelecto. Eu sou a carne. Eu sou o sentimento. Eu sou Deus em carne e sentimento. Sou um homem e não Deus. Eu sou simples. Preciso não pensar. Devo me fazer sentir e entender através dos sentimentos. Os cientistas pensam sobre mim e quebram suas cabeças, mas seus pensamentos não trarão resultado algum. Eles são burros. Falo simplesmente, sem truque algum. (...) Sou feliz porque sou o amor. Amo Deus e por isso sorrio para mim mesmo. As pessoas pensam que ficarei louco e perderei a razão. Nietzsche perdeu a razão porque pensava muito. Eu não penso e portanto não posso ficar louco. (...) Posso escrever e pensar em outra coisa ao mesmo tempo. Sou Deus no homem. Sinto o que Cristo sentiu. Sou como Buda. Sou o Deus budista e toda espécie


de Deus. Conheço cada um deles. Encontrei-os todos. Finjo estar louco de propósito, para meus próprios objetivos. Sei que se todos pensarem que sou louco inofensivo, não terão medo de mim. Não gosto das pessoas que pensam que sou um perigoso lunático. Sou um louco que ama a humanidade. Minha loucura é o meu amor pela humanidade. (NIJINSKY, 1985, p. 21-22; 27)

Os escritos do dançarino Vaslav Nijinsky, em seu diário dos anos de 1918-1919, testemunham uma passagem que pode ser dita como a constatação da fissura simultaneamente a seu alargamento. Assim, a eclosão que a condição secreta da fissura guardava ascende no cálamo. Nijinsky se pergunta constantemente se ele se tornou verdadeiramente louco, ele aposta. O sujeito que se pergunta se é louco não pode ser classificado nem na loucura, nem na razão. Uma escrita deste tipo está numa topologia do espírito5 que não se pode doravante localizar. Desde logo, como a escrita é a própria intensidade, medir a intensidade do espírito é designar o espírito que não pode ser agarrado, a não ser 5 O que Kuniichi Uno (2012) aqui designa como “espírito”, no contexto deste livro, é entendido como pensamento.


como intensidade. Assistimos aqui a uma formação que não é dos vestígios de desabamento do espírito, mas a de um plano sólido que resiste ao próprio desabamento. Aparece aqui uma zona de transição, fronteira entre a loucura e a razão, substrato invisível à imagem, insituável, sem densidade, que não admite as categorias da loucura e da razão, e que não poderia ser representada através de uma linha de demarcação. (UNO, 2012, p. 27)6

6 A partir de uma aproximação da filosofia com a dança e o teatro, Uno (2012) reúne e analisa experiências como as de Vaslav Nijinsky, Antonin Artaud e Tatsumi Hijikata. Uma parte desses estudos aparece oportunamente neste trabalho, no ensejo de circunscrever a questão do corpo do pensamento. Não há, no entanto, a pretensão de se investigar o modus operandi ou a produção desses ou outros artistas. Os casos aqui apropriados buscam contribuir com a cartografia das singularidades que não pertencem a exemplo algum, senão a todos. Neste sentido, além de O diário de Nijinsky, dialogamos diretamente com: a obra metalinguística Água Viva, de Clarice Lispector (1973), composta como um diário do próprio ato de escrever; as reflexões de Paul Valéry (2011) sobre a escrita, como crítico e poeta, a partir do livro Variedades; a transmissão radiofônica “Para acabar com o julgamento de Deus” (1947), de Artaud; e o texto “A propósito do teatro de marionetes”, de Henrich Von Kleist.


Tal zona de transição decorre da vibração da fissura que estava oculta até então, prestes a deflagrar algo que só se conhece quando acontece. Esse é o modo de atuação dela, sua penetração corrosiva: abrir mão do escritor, por exemplo, em favor de suas escrituras. Assim, o alargamento da fissura gera um movimento que extrai do corpo corpos outros, não como restituição, mas sim, invenção. A fissura penetra e desintegra, erguendo novos corpos. Uma vez que essa vibração entra no plano de composição7, esses corpos outros configuram corpos poéticos – considerados, neste 7 “Pensar é pensar por conceitos, ou então por funções, ou ainda por sensações, e um desses pensamentos não é melhor que um outro, ou mais plenamente, mais completamente, mais sinteticamente ‘pensado’. (...) O que define o pensamento, as três grandes formas do pensamento, a arte, a ciência e a filosofia, é sempre enfrentar o caos, traçar um plano, esboçar um plano sobre o caos. Mas a filosofia quer salvar o infinito, dando-lhe consistência: ela traça um plano de imanência, que leva até o infinito acontecimentos ou conceitos consistentes, sob a ação de personagens conceituais. A ciência, ao contrário, renuncia ao infinito para ganhar a referência: ela traça um plano de coordenadas somente indefinidas, sob a ação de observadores parciais. A arte quer criar um finito que restitua o infinito: traça um plano de composição que carrega por sua vez monumentos ou sensações compostas, sob a ação de figuras estéticas.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233)


trabalho, corpos do pensamento8. Neles, o pensamento corresponde à força da sensação – e não à forma do conceito ou à função do conhecimento (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 255). Disso advém a diferenciação entre o corpo do pensamento aqui investigado – um corpo sensível –, e os outros dois tipos, a saber: o corpo conceitual do pensamento filosófico, e o corpo funcional do pensamento científico. Sendo assim considerado, ele é um composto de sensação revelado pela carne, que, por sua vez, corresponde ao material do plano técnico manejado no plano de composição para que a obra se realize. Nessa revelação, a carne encontra-se imiscuída a forças cósmicas e devires não humanos; enquanto faz aparecer algo, ela mesma desaparece. A criação poética, portanto, equivale a erigir um ser do sensível, que é: (...) a sensação composta finita, mas se abre sobre o plano de composição que nos devolve o infinito, = ∞. (...) A arte 8 É necessário destacar que, a partir deste ponto, mais uma variação de sentido se inclui ao significante corpo: além do corpo físico e do corpo utópico, retomamos a noção de corpo do pensamento, a fim de prosseguir com o desafio de seu esboço.


luta efetivamente com o caos, mas para fazer surgir nela uma visão que o ilumina por um instante, uma Sensação. (...) A arte não é o caos, mas um composto do caos, que dá a visão ou sensação, de modo que constitui um caosmos, (...) um composto de caos – não previsto nem preconcebido. A arte transforma a variabilidade caótica em variedade caoide. (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 233; 240-241)

Nesse contexto, os acontecimentos puros estão encarnados como monumentos9. Porém nem sempre a fissura vibra o suficiente para compor seres da sensação, de escala monumental, o que diferencia ateliês e oficinas de terapêutica ocupacional, por exemplo. Podemos também admirar os desenhos de crianças, ou antes comovermo-nos com eles; é raro que se mantenham de pé (...). As pinturas dos loucos, ao contrário, sustentam-se quase sempre, mas sob a condição de serem saturadas e de não deixarem subsistir vazio. Todavia, os blocos [de sensação] precisam de bolsões de ar e de vazio, pois mesmo o vazio é 9 “(...) O monumento não atualiza o acontecimento virtual, mas o incorpora ou o encarna: dá-lhe um corpo, uma vida, um universo. Estes universos não são nem virtuais, nem atuais, são possíveis (...), enquanto que os acontecimentos são a realidade do virtual, formas de um pensamento-Natureza que sobrevoam todos os universos possíveis.” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 209-210)


uma sensação, toda sensação se compõe com o vazio (...). (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 195)

Mas por que nem toda fissura resulta nesse tipo de trabalho do pensamento – obra de arte, por assim dizer? Há, nisso, uma diferença entre ruínas: nem todas se tornam corpo de pensamento porque não é preciso apenas que se fenda o corpo, desmantele-o e já um corpo outro. O arranque tem que ser violento o bastante para que o descolamento aconteça, mas é necessário também preservar a sutileza do viver por um triz, pairando sobre a borda sem o cuidado milimétrico do equilibrista – como atravessar todos os dias (e todas as noites) o precipício sobre um fio com a mesma distração de quem passeia num campo de centeio. Intrigado com a maneira como corpos do pensamento vinculam-se à dimensão física do fissurado, Deleuze (2011) busca apreender a natureza desses corpos outros engendrados na/ pela fissura. Para tanto, o autor analisa os processos criativo e biográfico de escritores, que, segundo ele, “efetuaram a fissura no corpo”:


Cada qual arriscava alguma coisa, foi o mais longe neste risco e tira daí um direito imprescritível. Que resta ao pensador abstrato quando dá conselhos de sabedoria e de distinção? Então falar sempre do fermento de Bousquet, do alcoolismo de Fitzgerald e de Lowry, da loucura de Nietzsche e de Artaud, ficando à margem? Transformarse no profissional destas conversações? (...) Ou então irmos nós mesmos provar um pouco, sermos um pouco alcoólatras, um pouco loucos, um pouco suicidas, um pouco guerrilheiros, apenas o bastante para aumentar a fissura, mas não para aprofundá-la irremediavelmente? (...) como ficar na superfície sem permanecer à margem? (DELEUZE, 2011, p. 160-161)

Ou: como mergulhar na fissura sem afogar-se, já que a condição limítrofe gerada por sua vibração é o que há de mais fundo? A indagação de Paul Valéry (2011) aponta uma pista: “Como uma obra notável sairia desse caos se o caos que tudo contém não contivesse também algumas ocasiões sérias de conhecer-se e de escolher em si o que merece ser retirado do próprio instante e cuidadosamente empregado?” (VALÉRY, 2011, p. 224). Tais ocasiões configuram, neste caso, o plano de composição.


Sobre o necessário manejo do caos, o autor relata de sua rotina como poeta10: “meu trabalho exigia de mim não apenas aquela presença do universo poético (...), mas também uma quantidade de reflexões, de decisões, de escolhas e de combinações” (VALÉRY, 2011, p. 225). Quanto ao papel do impulso inspirador no ato de criação, ele ironiza dizendo que “esse não era um privilégio da poesia, e que todo mundo sabia que, para se construir uma locomotiva, é indispensável que o construtor tome a velocidade de oitenta milhas por hora para executar seu trabalho” (VALÉRY, 2011, p. 225-226). 10 “Seria absurdo negar, é claro, a existência do indivíduo que escreve e inventa. Mas penso que – ao menos desde uma certa época – o indivíduo que se põe a escrever um texto no horizonte do qual paira uma obra possível retoma por sua conta a função do autor: aquilo que ele escreve e o que não escreve, aquilo que desenha, mesmo a título provisório, como esboço da obra, e o que deixa, vai cair como conversas cotidianas. (...) será a partir de uma nova posição do autor que recortará, em tudo o que poderia ter dito, em tudo o que diz todos os dias, a todo momento, o perfil ainda trêmulo de sua obra.” (FOUCAULT, 1970, p. 28-29) “(...) os ensaios, os arrependimentos, as desilusões, os sacrifícios, os empréstimos, os subterfúgios, os anos e, finalmente, as circunstâncias favoráveis – tudo quanto desaparece, tudo o que está mascarado, dissipado, reabsorvido, calado e negado” (VALÉRY, 2011).


O dançar do corpo de escrita “Que estou fazendo ao te escrever? Estou tentando fotografar o perfume” (LISPECTOR, 1973, p. 65)

“o que aconteceria se descêssemos no corpo colocando uma escada até a sua profundeza?” (HIJIKATA, 1998, p. 11 apud UNO, 2012, p.61), desafio do dançarino a que o filósofo responde: “A dança é uma tentativa de medir esta profundeza sem medida, esta flutuação permanente que nós não podemos medir sem perguntar o que é a qualidade ou a forma.” (UNO, 2012, p. 63). Então o único risco que estaria à altura da indagação de Hijikata vem do próprio corpo dançante: é a dimensão impessoal que se extrai do ato da dança. (...) duplicar a efetuação com uma contra-efetuação, a identificação com uma distância, tal o ator verdadeiro ou o dançarino, é dar à verdade do acontecimento a chance única de não se confundir com sua inevitável efetuação, à fissura a chance de sobrevoar seu campo de superfície incorporal sem se deter na quebradura de cada corpo e a nós de irmos mais longe do que teríamos acreditado poder. (DELEUZE, 2011, p. 164)


Nesse sentido, Uno (2012) vislumbra uma espécie de dançarino presente em todos os corpos, que poderia ser dito também como a potência imensurável de um corpo, de afetar e ser afetado: “não se sabe o que o corpo pode” (ESPINOZA apud DELEUZE, 1976, p. 32). Fora dos limites visíveis determinados pela cena e pelo cenário, há limites invisíveis, imperceptíveis neste espaço tecido pelo corpo do dançarino que duplica o espaço visível. Existe ar, corrente de ar, luz e sombra, a respiração e o olhar, as densidades, as torções, as distâncias e as profundezas, e as sensações, e as memórias, e as trocas, e as circulações entre tudo isso. O dançarino escava, sonda o espaço e aí encontra os limites entre os elementos do espaço. Ele também traça limites desconhecidos e não cessa de transpô-los. (...) Não há dança sem transposição destes limites, sem deslocamento de todos esses limites, atravessando todos os elementos heterogêneos. E essa dança, às vezes, inaugura limites ou demarcações de uma maneira quase imperceptível, mas, pouco a pouco, singularmente sensível. Nós vemos aí limites múltiplos entre o perceptível e o imperceptível. Nós descobrimos, no interior de nosso corpo, o dançarino que trabalha nosso corpo. (UNO, 2012, p. 69)


Nessa via, encontra-se também a escrita poética: a palavra assim cunhada é um salto que realiza o dançarino que nos habita. Tal modo de escrever aproxima-se da dança ainda por outro caminho; ambos conjugam de maneira peculiar os recursos de que dispõem: “por mais diferente que seja a dança do andar e dos movimentos utilitários, notem esta observação infinitamente simples, a de que ela se serve dos mesmos órgãos, dos mesmos ossos, dos mesmos músculos, diferentemente coordenados e excitados” (VALÉRY, 2011, p. 221). Analogamente, a escrita poética usufrui dos mesmos elementos que a discursiva (morfologia, sintaxe e grafia – no limite, o uso de palavras), no entanto se diferencia do emprego funcional deles. A palavra poética emerge do movimento de torná-la outra: “uma linguagem dentro de uma linguagem” (VALÉRY, 2011, p. 216). Fundar uma língua ainda sem povo, que clame povos por vir: “a linguagem das sensações ou a língua estrangeira na língua” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 208).


Ao escrever não posso fabricar como na pintura, quando fabrico artesanalmente uma cor. Mas estou tentando escreverte com o corpo todo, enviando uma seta que se finca no ponto tenro e nevrálgico da palavra. Meu corpo incógnito te diz: dinossauros, ictiossauros, plessiossauros, com sentido apenas auditivo, sem que por isso se tornem palha seca, e sim úmida. Não pinto ideias, pinto o mais inatingível ‘para sempre’. Ou ‘para nunca’, é o mesmo. E antes de mais nada te escrevo dura escritura. Quero como poder pegar com a mão a palavra. A palavra é objeto? (LISPECTOR, 1973, p. 13)

A linguagem utilitária “não se conserva; não sobrevive à compreensão; desfaz-se na clareza; agiu; desempenhou sua função; provocou a compreensão; viveu.” (VALÉRY, 2011, p. 217). Ela distingue-se da apropriação poética quanto à capacidade de durar, embora ambas possuam uma “existência transitória destinada a se apagar sem dúvida, mas segundo uma duração que não nos pertence” (FOUCAULT, 1970, p. 8). Enquanto no discurso funcional “o efeito devora a causa, o fim absorveu o meio; e qualquer que tenha sido o ato, permanece apenas o resultado. (...) O poema, ao contrário, não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e


vir a ser indefinidamente” (VALÉRY, 2011, p. 221). Assim, a escrita poética dura, como é próprio à obra de arte, natureza monumental. Sua existência emerge de uma urgência que não é de tempo, mas sim de vontade, e nele persiste. Coisa estranha: o som e como que a imagem de sua pequena frase reaparecem em mim, repetem-se em mim, como se estivessem se divertindo em mim; e eu gosto de me escutar repetindo-a, repetindo essa pequena frase que quase perdeu o sentido, que deixou de servir e, no entanto, quer viver ainda, mas uma vida totalmente diferente. Ela adquiriu um valor; e adquiriu-o em detrimento de seu significado finito. Criou a necessidade de ser ouvida ainda... (VALÉRY, 2011, p. 216)

Atravessando o átimo rumo à duração, a palavra poética11 salta do 11 “(...) cesuras que rompem o instante e dispersam o sujeito em uma pluralidade de posições e de funções possíveis. Tal descontinuidade golpeia e invalida as menores unidades tradicionalmente reconhecidas ou as mais facilmente contestadas: o instante e o sujeito. E, por debaixo deles, independentemente deles, é preciso conceber entre essas séries descontínuas relações que não são da ordem da sucessão (ou da simultaneidade) em uma (ou várias) consciência; é preciso elaborar – fora das filosofias do sujeito e do tempo – uma teoria das sistematicidades descontínuas. (...) É preciso aceitar introduzir a casualidade como categoria na produção dos acontecimentos.


caos como uma pequena amostra dele, mas suficientemente capaz de promover um retorno à imensidão caótica. Este movimento, que se realiza no plano de composição, restitui o infinito a partir de uma composição finita. A esta dupla transitividade da criação poética, correspondem também as relações entre matéria e sensação, expressão e impressão: “entre a Presença e a Ausência oscila o pêndulo poético” (VALÉRY, 2011, p. 222). É, pois, na penumbra desses limiares12 que se constitui o corpo do pensamento, daí sua tão difícil apreensão.

(...) tratar, não das representações que pode haver por trás dos discursos, mas dos discursos como séries regulares e distintas de acontecimentos, (...) engrenagem que permite introduzir na raiz mesma do pensamento o acaso, o descontínuo e a materialidade.” (FOUCAULT, 1970, p. 58-59) 12 “Entre as coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire a velocidade do meio.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 49)


O que te escrevo não tem começo: é uma continuação. Das palavras deste canto, canto que é meu e teu, evola-se um halo que transcende as frases, você sente? Minha experiência vem de que eu consegui pintar o halo das coisas. O halo é mais importante que as coisas e as palavras. O halo é vertiginoso. Finco a palavra no vazio descampado: é uma palavra como fino bloco monolítico que projeta sombra. E é trombeta que anuncia. O halo é o it13. (LISPECTOR, 1973, p. 57) 13 It, pronome pessoal de sujeito da terceira pessoa do singular na língua inglesa, não apresenta um correspondente gramatical preciso no português. Lispector (1973) apropria-se do termo inglês para nomear este ser impessoal com o qual realiza a escrita de Água viva. Por uma aproximação de sentido (mas sem equivalência sintática), no português, podemos referi-lo como si. Vale destacar ainda: “(...) o indefinido da terceira pessoa IL, ILS, em francês, não implica qualquer indeterminação desse ponto de vista, e remete o enunciado não mais a um sujeito de enunciação, mas a um agenciamento coletivo como condição. Blanchot tem razão em dizer que o ON (se) e o IL (em francês) – on meurt (morre-se), il est malheureux (é triste) – não tomam absolutamente o lugar do sujeito, mas destituem todo sujeito em proveito de um agenciamento do tipo hecceidade, que abriga ou libera o acontecimento naquilo que ele tem de não formado, e de não efetuável por pessoas. (...) O IL não representa um sujeito, mas diagramatiza um agenciamento.” (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 55-56)


Na turbidez gerada pela oscilação do pêndulo poético, é possível avistar a tessitura de certa impessoalidade. Dela, surgem seres com capacidade de autopoiése e autoposição: criações que se produzem e, ao mesmo tempo, testemunham sua produção. “canto que eu murmurava, ou melhor, que se murmurava através de mim” (VALÉRY, 2011, p. 214), diz o poeta sobre um poema. Essa dimensão da escrita gera nela uma existência autônoma – borrando a noção de autoria, desbancando qualquer sentido de propriedade sobre ela e esfacelando o eu como uma voz pessoal: “uma ideia de algum eu maravilhosamente superior a Mim” (VALÉRY, 2011, p. 227). Por isso um corpo de pensamento não possui como referencial ente criador algum; ele é pré-individual, singular impessoal. O mar calmo. Mas à espreita e em suspeita. Como se tal calma não pudesse durar. Algo está sempre por acontecer. O imprevisto improvisado e fatal me fascina. Já entrei contigo em comunicação tão forte que deixei de existir sendo. Você tornou-se um eu. É tão difícil falar e dizer coisas que não podem ser ditas. É tão silencioso. Como traduzir o silêncio do encontro real entre nós dois? Dificílimo contar: olhei para você fixamente por uns instantes. Tais momentos


são meu segredo. Houve o que se chama de comunhão perfeita. Eu chamo isso de estado agudo de felicidade. Estou terrivelmente lúcida e parece que alcanço um plano mais alto de humanidade. Ou desumanidade – o it. (LISPECTOR, 1973, p. 65)


Um corpo ao pensamento ou Fabricação de corpos poéticos (...) a linguagem não é apenas um instrumento ou um sistema de signos para o pensamento. A linguagem é o corpo do pensamento14, a parte quase material do pensamento. O pensamento faz uso da linguagem, mas a linguagem bloqueia e paralisa o pensamento. A linguagem é o corpo do pensamento, mas, em relação ao corpo orgânico, ela pertence ao incorpóreo. Para Artaud, ela está, portanto, sempre localizada no limiar entre o corpóreo e o incorpóreo. Sua escrita poética constitui uma operação difícil sobre este limiar, no qual o corpo e a linguagem são, ao mesmo tempo, colocados em risco. (UNO, 2012, p. 37) 14 O corpo do pensamento, tal como é abordado por este livro, não coincide com a afirmação de Uno (2012) de que “A linguagem é o corpo do pensamento”. A opção por mantê-la expressamente como citação objetiva tensionar a problematização articulada. Aqui, a linguagem corresponde ao que designamos como carne, fração do composto de sensação que é o corpo do pensamento: “a palavra grega sárx, que equivale a ‘carne’, como no latim caro, pertence ao campo semântico de keíro, que quer dizer ‘cortar’”. (PERNIOLA, 2012, p. 274). “(...) a carne engendra uma ‘dúvida’: ela é próxima demais do caos; donde a necessidade de uma complementaridade entre o ‘encarnado’ e a ‘extensão’” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 212).


Quando Nijinsky escreve, essa escrita é também uma dança: frases de movimento reincidem com novas colorações e ele cambiase entre vozes. A palavra exercida sob este regime é livre de um quem, realizando sua própria dança – aquele dançarino de nosso corpo, afinal, não tem o estatuto de pessoa. Tudo acontece como a coreografia de um corpo de baile infinito: passos e gestos que estão por se fazer, indefinidamente. Ou como uma grande orquestração que não tem maestro, nem partitura: liberação da tessitura musical. Esta apresentação de dança, que se desenvolverá ao se deixar ver o corpo, excluirá de sua superfície toda dança como movimento dado pelo exterior. Esta apresentação de dança reduz o corpo a sua pura existência, se bem que quando o endereço e o nome de um indivíduo lhe são arrancados, o corpo terá naturalmente seu lugar. Pouco importa o que você faz. Importa somente o que você se deixa fazer; então se pode dizer que é o mundo que se lança no corpo. [...] Pequenas placas de metal se metamorfoseiam b r u s c a m e n t e e m t e l a s . A s i m a g e n s p ro j e t a d a s l á embaixo não são cadáveres de uma ação. Fragmentado através destas telas, vocês terão pela primeira vez


o corpo decomposto e unificado de uma só vez. 15 (HIJIKATA, 1990, p. 65-66 apud UNO, 2012, p. 48)

Mais que por corpos a dançar, a dança os fabrica: fabricação de corpos poéticos. Esse processo não lhe é exclusivo; ocorre também na escrita e em outras operações poéticas. Corpos assim fabricados – de escrita, pintura, música, dança, etc – são corpos do pensamento: fragmentações flutuantes de um continuum paradoxalmente constituído, recortes do caos. Móbiles, que existem por causa e efeito do entre, sustentação e movimento, queda evitada que não para de querer o chão, empuxo de trapezista. Mil platôs orbitam à inimaginável velocidade da luz: “um material de pensamento” (PELBART in DELEUZE; GUATTARI, 2012b).

15 “notas que Hijikata escreveu para fazer os estudantes dançarem” (UNO, 2012, p. 48).


verão meu corpo atual voar em pedaços e se juntar sob dez mil aspectos notórios um novo corpo no qual nunca mais poderão me esquecer. (ARTAUD, 1947)


Cada movimento (...) tinha um centro de gravidade; (...) cada vez que o centro de gravidade se deslocava em linha reta, os membros descreviam curvas (...). Essa linha, no entanto, era algo de muito misterioso. Porque ela não era diferente do caminho da alma do bailarino; e ele duvidava que o operador pudesse encontrá-la de outra forma senão colocando-se no centro de gravidade da marionete, o que, em outras palavras, significa “dançando”. (...) os movimentos de seus dedos se comportam de modo bastante artificial em relação ao movimento dos bonecos amarrados, quase como os números em relação aos seus logaritmos ou a assíntota em relação à hipérbole. (...) Além disso, os bonecos são antigravitacionais (...). Não sabem nada a respeito da inércia da matéria, de todas a característica mais contrária à dança: porque a força que os eleva ao ar é maior que aquela que os prende ao solo. (...) os bonecos só precisam do chão para tocálo e reanimar o impulso dos seus membros com uma parada instantânea; nós precisamos dele para repousar e nos recuperarmos do esforço da dança: um momento que evidentemente não é dança e com o qual não se pode fazer nada, a não ser tentar fazer com que desapareça o mais brevemente possível.” (KLEIST, 2011, p. 2-3; 6-7)


A necessidade de fazer um corpo, aqui está o que libera as pretensões da inexistência ao não ser e que permite saber como do corpo sem espírito se passa ao corpo porque a questão não se coloca de espessar ao mais espesso do mais espesso sem transferência.” (ARTAUD, 1946 apud UNO, 2012, p. 42)


Atribuir um corpo ao pensamento é considerar que as dimensões incorpórea e encarnada estão imbricadas. Por isso corpar: tentativa de nomear o modo complexo de constituição desse corpo do pensamento, através de um verbo que incide diretamente sobre seu paradoxo – ser e não ser encarnável. Que música belíssima ouço no profundo de mim. É feita de traços geométricos se entrecruzando no ar. É música de câmara. Música de câmara é sem melodia. É modo de expressar o silêncio. O que te escrevo é de câmara. E isto que tento escrever é maneira de me debater. Estou apavorada. Por que nesta Terra houve dinossauros? Como se extingue uma raça? Verifico que estou escrevendo como se estivesse entre o sono e a vigília. Eis que de repente vejo que há muito tempo não estou entendendo. O gume de minha faca está ficando cego? Parece-me que o mais provável é que não entendo porque o que vejo agora é difícil: estou entrando sorrateiramente em contato com uma realidade nova para mim que ainda não tem pensamentos correspondentes e muito menos alguma palavra que a signifique: é uma sensação atrás do pensamento. (LISPECTOR, 1973, p. 57)


Uma contribuição à compreensão da proposta de corpar é encontrada no contraste com o corporizar. Corporização seria a tomada de consciência corporal, na qual as partes dispersas do corpo passam a ser percebidas como unidade organizada. Tal transição perceptiva, que era realizada pelos gregos somente diante do corpo-coisa do cadáver, ainda o é pelas crianças, através do corpo-imagem formado no espelho (FOUCAULT, 1966). Ao corpo que vê a autoimagem no espelho e recebe de volta seu próprio olhar, é como se a espessura mínima especular e sua superfície reflexiva (que configura uma profundidade infinita) processassem, nele, uma transmutação em incorporal encarnado: “corporizado”. Já corpar, designaria a composição de um corpo em sua dimensão intensiva – que é impalpável, porém não destituída de certa condição corpórea. Se, na corporização, o corpo está atrelado a elementos como forma, contorno, espessura e peso, tudo isso ocupando um lugar como estado de coisa no espaço, no corpar o que importa são as relações de força e intensidade nas quais se engendra um corpo, tornando indiscerníveis o interno e o entorno. Neste sentido, corpar é, por excelência, o verbo do corpo


do pensamento; nele está cunhada sua maquinação. “Trata-se de fazer vibrar o corpo além de seus limites orgânicos, social e historicamente organizados. (...) o corpo se inventa” (UNO, 2012, p. 40). Tendo em vista o acontecimento e seu desdobramento em efetuação e contra-efetuação, avançamos no sentido do corpo do pensamento como acontecimento: “ele se atualiza num estado de coisas, num corpo, num vivido, mas ele tem uma parte sombria e secreta que não para de se subtrair ou de se acrescentar na sua atualização” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 185-186). Se no passo do dançarino, algo, além dele, desloca-se, é a contraefetuação que advém da efetuação. Do mesmo modo, ao escrever, vozes outras se descolam do escritor, fazendo dessa escrita algo que transborda o ato que poderia continuar reservado a uma sala, uma mesa, um papel: “é o mundo que se lança no corpo”, como na dança que Hijikata propõe a seus alunos. É o pensamento que se lança na escrita que se lança no pensamento; engendram-se. Considerado desse modo, o pensamento é o acontecimento puro que há no corpo do pensamento.


(...) esta parte do acontecimento que é preciso chamar de inefetuável, precisamente porque é pensamento, não pode ser realizado a não ser por ele e não se realiza senão nele. (...) Esplendor incorporal do acontecimento como entidade que se dirige ao pensamento e que somente ele pode investir, Extra-ser. (...) é o isolamento da entidade não existente para cada estado de coisas, o infinitivo para cada corpo e qualidade, cada sujeito e predicado, cada ação e paixão. (...) É aí somente que morrer e matar, castrar e ser castrado, reparar e fazer vir, ferir e retirar, devorar e ser devorado, introjetar e projetar, tornam-se acontecimentos puros, sobre a superfície metafísica que os transforma, onde seu infinitivo se extrai. E todos os acontecimentos, todos os verbos, todos estes inexprimíveis-atributos comunicam em um nesta extração, para uma mesma linguagem que os exprime, sob um mesmo ‘ser’ em que são pensados. (DELEUZE, 2011, p. 228-229)

O corpo do pensamento, então, é uma conjunção entre pensamento e estado de coisas, não sendo possível apontá-lo apenas em um ou no outro: “(...) o acontecimento não se inscreve bem na carne, nos corpos, com a vontade e a liberdade que convêm ao paciente pensador senão em virtude da parte incorporal que


contém o seu segredo, isto é, o princípio, a verdade e finalidade, a quase-causa” (DELEUZE, 2011, p. 228-229). O pensamento é, portanto, o motor dos corpos poeticamente fabricados – mais precisamente: a força motriz, visível somente através daquilo que resulta de sua ação. Porém também “Os acontecimentos puros são resultados, mas resultados de segundo grau” (DELEUZE, 2011, p. 228), que deslizam por uma espécie de “superfície metafísica”. Ser supostamente uma dose, uma pausa, uma espécie de síncope mortal que defina a natureza, ordene em natureza e qualidade, diferencie a qualidade, o valor, entre valor e qualidade ordene o homem a fim de lhe impregnar o suficiente para desencorajá-lo a se aborrecer, resmungar, vomitar e protestar, para desencorajá-lo de qualquer coisa que não seja um estado ou uma coisa, mas que seja o fato de que ele não é uma coisa, mas um corpo, que é acima de tudo e unicamente um corpo...” (ARTAUD apud UNO, 2012, p. 42)


(...) Artaud jamais desiste de seguir seu trabalho singular sobre o apocalipse do corpo. Seu trabalho sobre o corpo continua até o fim, onde o corpo trabalha o ser para que o corpo exista realmente. (...) É preciso que o corpo se revele sobre a linguagem sem intermediários, e que a linguagem se abra ao corpo no vai e vem entre o cheio e o vazio, para esvaziar o corpo das instituições ou das organizações e para preenchê-lo apenas do que está entre ou fora das instituições e das organizações. O Estado, a sociedade, o exército, a escola, a medicina, a cultura são inimigos do corpo. Artaud foi longe demais, ao ponto de chegar a uma imagem de um corpo irrealizável, esvaziado de todas as possibilidades reais (...). (UNO, 2012, p. 42)

Abrir o corpo à palavra e a palavra ao corpo é propiciar que a escrita engrene velocidade e trajeto próprios, o que não significa completa falta de controle. Ocorre que o que verdadeiramente rege esse processo não tem rosto, sequer contorno. A criação engendra-se, “numa língua que não é mais a das palavras, numa matéria que não é mais a das formas, numa afectibilidade que não é mais a dos sujeitos” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 46). Uma composição assim alcançada reverbera as discussões sobre o corpo do pensamento.


(...) é o pensamento enquanto tal que se põe a ter ríctus, rangidos, gaguejos, glossolalias, gritos que o levam a criar, ou a ensaiar. E se o pensamento procura, é menos à maneira de um homem que disporia de um método, que à maneira de um cão que pula desordenadamente... (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 68)


Sussurrar pode ser um descanso do rumoroso mundo das palavras

O Livro do SilĂŞncio (Frame do filme The Pillow Book)


Escrevo-te este fac-símile de livro, o livro de quem não sabe escrever; mas é que no domínio mais leve da fala quase não sei falar. Sobretudo falar-te por escrito, eu que me habituei a que fosses a audiência, embora distraída, de minha voz. (LISPECTOR, 1973, p. 65)

Em tais aberturas, que evidenciam o balbucio do pensamento, o caos é tensionado pelo plano de composição. Por isso elas são potencialmente deflagradoras da criação, como fissuras. Nelas, encontra-se “um pensamento que ainda não pensa” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 69), “pensamento não-pensante” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 257). Este impensado relaciona-se diretamente com a dimensão criadora porque é o vir a ser do pensamento. Assim se desdobram os corpos poéticos. Mais que revelar camadas impensadas, a operação poética inventa-as, não para de inventálas, o que faz dos corpos poéticos também por vires – como quis Jorge Luis Borges, com O livro de areia16, cuja escrita nunca é 16 Conto de Borges que nomeia sua última coletânea publicada: O livro de areia (1975) [São Paulo: Companhia das Letras, 2009. Trad. Davi Arrigucci Jr.].


inteiramente apreensível, nem está completamente realizada. Ou: que já foi e ainda não foi, simultaneamente. Escrever grão a grão as incontáveis páginas de um livro infinito... “Nenhuma é a primeira, nenhuma, a última” (BORGES, 2009, p. 102). Desafio de escalas que desatina qualquer equação entre velocidade e lentidão, movimento e repouso. Dissolver o livro para que ele o seja ainda mais – agenciador de intensidades. Soprá-lo, fazendo-o a cada vez outro (embora letras cravadas em pedra não impeçam as movimentações próprias da escrita). Escritura sempre inédita desse objeto inconcebível: “um volume de folhas incalculáveis” (BORGES, 2009, p. 108). “Elas não se definem pelo número, porque andam sempre por infinidades” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 40). Escrever, apagar, inventar... Como aquela outra estranha arte de fazer livros, que toma o corpo humano como matéria e sensação. Corpo-livro. Deslizando o pincel na superfície sensível, dá carne ao livro, palavra à carne. A fisicalidade corporal como suporte e linguagem de escrita coloca em jogo não somente a feitura do livro e sua leitura, mas também aquele que está livro – e respira por pulmões, é movente, voluntarioso, capaz de resistir e reagir. “A questão de saber se a


carne é adequada à arte pode se enunciar assim: é ela capaz de carregar o percepto e o afecto, de constituir o ser de sensação, ou então é ela mesma que deve ser carregada, e ingressar em outras potências de vida?” (DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 211). Tornar-se corpo poético. Não há diferença entre aquilo de que fala um livro e a maneira como é feito. Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer, significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro, perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou não faz passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu. Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de amor, uma máquina revolucionária etc. – e com uma máquina abstrata que as arrasta. (DELEUZE; GUATTARI, 2012a, p. 18)


No corpo poético, sensação e matéria embrenham-se mutuamente, numa relação que é convocadora de forças. Elas correspondem, respectivamente, à latitude e longitude do corpo espinoziano: “a latitude é feita de partes intensivas sob uma capacidade [grau de potência], como a longitude, de partes extensivas sob uma relação” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 44). Assim é o corpo-livro. Seu modo de escrever na pele inventa um corpo; encontra na matéria o infinitivo, mas sem dela sair completamente – corpar é esta relação. Um corpo, e não apenas a quebradura de cada um. “Um corpo não se define pela forma, nem como uma substância ou sujeito determinados, nem pelos órgãos que possui ou pelas funções que exerce” (DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 49). Tem também a força do cosmos, a proporção de vulcão, as potencialidades do vir a ser... Se o ritual parecia conduzir o corpo-livro a certo apagamento, tal um corpo utópico, seria preciso olhá-lo uma vez mais, tocá-lo. Este corpo-livro é acontecimento – invenção que se faz corpo do pensamento.


Dermoteca: escrever, apagar, inventar a pele

Para além dos matizes de presentificação e ausência corporais apresentados por Foucault (1966), em “O Corpo utópico”, há o corpo que se encontra no amor. É através do outro, sob seu toque e olhar, que se pode finalmente estar fora de toda utopia: “no amor, o corpo está aqui” (FOUCAULT, 1966) – “um ponto tornado presente em uma relação assinalável comigo” (DELEUZE, 2011, p. 154), o que possibilita dizer: chovo. Pois, se “cada acontecimento é como a morte, duplo e impessoal em seu duplo” – por isso “morre é como chove” –, no amor, o corpo é presença, mesmo que por um átimo. Quero capturar o presente que pela sua própria natureza me é interdito: o presente me foge, a atualidade me escapa, a atualidade sou eu sempre no já. Só no ato do amor – pela límpida abstração de estrela do que sente – capta-se a incógnita do instante que é duramente cristalina e vibrante no ar e a vida é esse instante incontável, maior que o acontecimento em si: no amor o instante de pessoal jóia refulge no ar, glória estranha de corpo, matéria sensibilizada pelo arrepio dos instantes – e o que se sente é ao mesmo tempo que imaterial tão objetivo que acontece como fora do corpo, faiscante no


alto, alegria, alegria é matéria de tempo e é por excelência o instante. E no instante está o é dele mesmo. (LISPECTOR, 1973, p. 10)

Com o corpo do outro, chovo. Amo, morro. “a morte como acontecimento, inseparável do passado e do futuro nos quais ela se divide, nunca presente” (DELEUZE, 2011, p. 159); no entanto, no amor, morro. Amo, chovo. Qualquer distância inaproximável que alguma utopia pudesse impor torna-se a mais profunda intimidade – que faz do corpo, aqui, e de amar, não somente um impessoal que ama. Este corpo, que efetua o ato do amor, é o duplo do inefetuável que há no acontecimento de amar. A carne assim afirmada abre-se a surpreendentes novos espaços. Sob a distância ínfima de seus dedos, descubro uma construção no exato momento de seu erguimento. O toque engendra um corpo no corpo, que se faz, desfaz e refaz17. Assim, “(...) o paradoxo de ter 17 A artista plástica Louise Bourgeois ressalta este movimento no campo da escultura: “três torres arquitetônicas em aço intituladas I Do, I Undo, I Redo [1999-2000] são equipadas com escadas e espelhos, e incorporam esculturas de tecido e de mármore em seu interior.” (LARRATT-SMITH, 2011, p. 286). Um procedimento semelhante ao da artista é aplicado às ciências médicas,


que estar em outro lugar para tomar corpo encontra uma resposta nos prazeres do amor: quando fazemos amor, nosso corpo, que descobrimos graças ao outro, está aqui”18 Nesse avizinhamento profundo com o alheio, adentramos o além de todos os limites que nosso corpo já estava acostumado a frequentar. Tal movimento distende ao máximo a “utopia profunda e soberana” propriamente corporal, de modo que o fora mais longínquo se torna dentro, fazendo do corpo uma utopia realizada: heterotopia. Espaços outros despontam na carne; o corpo “heterotopisa”. Através do corpo do outro, encontro no meu novos espaços, que são reais, e não utópicos. Assim, são alcançados, simultaneamente, o estado de coisa e sua liberação. Dupla constituição heterotópica: corpórea e impalpável. no filme La piel qui habito (A pele que habito, 2011), de Pedro Almodóvar. Nessa ficção, adaptação cinematográfica do livro Tarántula (2005), de Thierry Jonquet, o protagonista faz uma pele sintética, desfaz um órgão genital alheio e o refaz. 18 “(...) ce paradoxe de devoir être ailleurs pour prendre corps trouve une réponse dans les plaisirs de l’amour: quand nous faisons l’amour, notre corps, que nous découvrons grâce à l’autre, est ici.” (RAMBEAUD, 2006, p. 36, tradução nossa)


(...) o amor permite dar lugar ao hiato em si implicado pela natureza corporal de nossa existência, produzi-lo efetivamente, experimentá-lo. Tomar corpo seria, de uma forma ou de outra, encontrar uma conduta, criar o espaço de uma relação pela qual o sem-lugar pode se produzir, se efetuar.19

Conforme propõe Foucault (1967), as heterotopias são espaços criados pelas relações sociais e subjetivas, a partir dos espaços físicos. Dessa forma, elas participam da configuração de uma sociedade, ao mesmo tempo em que são moduladas por esta. Esses espaços outros coexistem com os espaços reais e são deles distinguíveis; espaços da contra-ação, descolados da ordem concreta do real, sem, no entanto, serem utópicos. O autor define as heterotopias como: (...) espaços que existem e que são formados na própria fundação da sociedade – que são algo como contra-lugares, 19 “l’amour permet de donner lieu à l’écart d’avec soi impliqué par la nature corporelle de notre existence, de le produire effectivement, de l’expérimenter. Prendre corps ce serait, d’une façon ou d’une autre, trouver un procédé, créer l’espace d’une relation par lesquels du hors-lieu peut se produire, s’effectuer.” (RAMBEAUD, 2006, p. 37, tradução nossa)


espécies de utopias realizadas nas quais todos os outros lugares reais dessa dada cultura podem ser encontrados, e nas quais são, simultaneamente, representados, contestados e invertidos. Este tipo de lugares está fora de todos os lugares, apesar de se poder obviamente apontar a sua posição geográfica na realidade. Devido a estes lugares serem totalmente diferentes de quaisquer outros lugares, que eles refletem e discutem, chamá-los-ei, por contraste às utopias, heterotopias. (FOUCAULT, 1967)

“O que é dito aqui da relação entre os ‘espaços outros’ e os outros lugares efetivos também se aplica à maneira como eu tomo corpo inventando um corpo outro, experimentando meu corpo de diferentes formas em uma série de relações”20. Neste sentido, o corpo heterotópico não é apenas tópico; ele ultrapassa a pura fisicalidade sem desconectar-se dela. Além disso, opõe-se ao corpo utópico, não sendo ideal, nem imaginário. Uma vez que é uma heterotopia, ele é real, e se distingue da realidade 20 “Ce qui est dit ici du rapport entre les ‘espaces autres’ et les autres emplacements effectifs vaut aussi pour la manière dont je prends corps en inventant un corps autre, en expérimentant mon corps autrement dans un certain nombre de relations.” (RAMBEAUD, 2006, p. 38, tradução nossa)


ordinariamente estabelecida: espécie de mundos outrados que convivem simultaneamente numa mesma dimensão física. Enquanto o corpo utópico precisa estar nas inalcançáveis paragens das utopias para que possa ser outro, o corpo heterotópico responde ao insaciável desejo do corpo de sair de seus limites estando ainda nele. Desse modo, a heterotopia abarca o paradoxo corporal: ser outros no mesmo tópos (corpo físico). Corpo que se faz outro em si mesmo: “O corpo não estava em outro lugar, mas era um espaço outro (heterotopia). Ele era mesmo a condição de viver o si no corpo entre peles e entre outros corpos. (...) o corpo sendo devolvido ao corpo (LE BRETON, 2008 [1998]) por alguns instantes.” (POCAHY, 2011, p. 159). (...) para Foucault os espaços sociais, as condutas de vida e as práticas sexuais são indissociáveis. A sexualidade é intrinsecamente histórica e social: os corpos e seus prazeres são territórios políticos. É por isso que os prazeres do amor operam sobre o corpo, e sobre sua vida relacional, como as criações de heterotopias nos espaços sociais. Fazer amor é fazer de seu corpo uma heterotopia.21 21 “(...) pour Foucault les espaces sociaux, les conduites de vie et les pratiques sexuelles sont indissociables. La sexualité est intrinsèquement historique et


Retomando a noção de acontecimento, é possível dizer que o corpo heterotópico constitui-se como tal, pois opera uma duplicidade equivalente à efetuação/contra-efetuação. Nele, um estado encarnado (o corpo inscrito no amor, por exemplo) “libera uma linha abstrata e não guarda do acontecimento senão o contorno ou o esplendor” (DELEUZE, 2011, p. 153), a heterotopia. Esta é real (utopia realizada), sendo, portanto, uma realidade do virtual – enquanto a utopia é a pura virtualidade. A diferença entre heterotopia e utopia pode ser assinalada, ainda, em três tipos de autoimagem. Em se tratando do corpo cadavérico, por exemplo, a autoimagem restringe-se à imaginação do ser humano, embora esta condição guarde um grau de certeza: todo ser vivo, um dia, estará morto. Quando ocupar este lugar, no entanto, sem consciência, não mais será capaz de se aperceber dele, nem de se avistar cadáver. sociale: les corps et leurs plaisirs sont des territoires politiques. C’est pourquoi les plaisirs de l’amour fonctionnent sur le corps, et sur sa vie relationnelle, comme des créations d’hétérotopies dans les espaces sociaux. Faire l’amour, c’est faire de son corps une hétérotopie.” (RAMBEAUD, 2006, p. 38, tradução nossa)


Assim, o confronto com a imagem cadavérica é possível somente através do corpo morto do outro, sobre o qual se estende a inevitável comparação: “O rosto impassível, o corpo petrificado. (...) sua pele endurecida” (DELEUZE apud PELBART, 2009, p. 151) versus a carne quente, movente, desejante de outrora. “Félix, por que você não me responde? Eu estou invisível? Você não me entende? Não há mais nada a se dizer? Você quer que eu fale uma outra língua? Eu recomeço tudo, aliás eu jamais termino de recomeçar.”22 O corpo do cadáver está alhures, inacessível ao próprio morto. É o ser sem estar do corpo utópico: “o que é fundado em mim, mas também é sem relação comigo (...), o que não é fundado senão em si mesmo” (DELEUZE, 2011, p. 154). É neste ponto que se encontra o infinitivo da morte: “Ela é o abismo do presente, o tempo sem presente com o qual eu não tenho relação, aquilo em direção ao qual não posso me lançar, pois nela eu não morro, sou 22 “Félix, pourquoi tu ne me réponds pas? Est-ce que je suis invisible? Tu m’entends pas? Est-ce q’on n’a plus rien à se dire? Veux-tu que je parle une autre langue? Je recommence tout, d’ailleurs je ne finis jamais de recommencer.” (DELEUZE apud PELBART, 2009, p. 151, tradução nossa)


destituído do poder de morrer, nela a gente morre, não se cessa e não se acaba mais de morrer” (BLANCHOT, 1955, p. 160 apud DELEUZE, 2011, p. 154). Assim, do acontecimento puro que há no morrer, inconjugável, ascende tal imagem incompossível – a autoimagem do cadáver.

(...) no mundo orgânico, por mais que a reflexão enfraqueça e obscureça, a graça surge luminosa e dominante. Mas, assim como a intersecção de duas linhas de um lado de um ponto, depois de atravessarem o infinito, voltam, de repente, a alcançar o outro lado, ou a imagem do espelho côncavo depois de se distanciar no infinito, retorna a nós compacta, também a graça retorna, quando a consciência supostamente atravessou um infinito; de modo que aparece sob sua forma mais pura nessa anatomia que não tem nenhuma consciência, ou que tem uma consciência infinita (...). (KLEIST, 2011, p. 11)


E o que é a consciência? Não o sabemos com certeza. É o nada. Um nada que usamos para designar quando não sabemos alguma coisa e de que forma não o sabemos e então dizemos consciência, do lado da consciência quando há cem mil outros lados. (ARTAUD, 1947)

Já a autoimagem produzida pelo espelho deflagra o processo de retomada do corpo ao lugar real onde ele está – fora do espelho. Nesta corporização, a mesma ausência corporal, afirmada tão logo o corpo se constata como imagem fora de si, recobra-o uma autoposição. De acordo com a análise desenvolvida por Foucault (1967), este modo de funcionamento faz do espelho tanto uma utopia quanto uma heterotopia.


No espelho, vejo-me ali onde não estou, num espaço irreal, virtual, que está aberto do lado de lá da superfície; estou além, ali onde não estou, sou uma sombra que me dá visibilidade de mim mesmo, que me permite ver-me ali onde sou ausente. Assim é a utopia do espelho. Mas é também uma heterotopia, uma vez que o espelho existe na realidade, e exerce um tipo de contra-ação à posição que eu ocupo. Do lugar em que me encontro no espelho apercebo-me da ausência no lugar onde estou, uma vez que eu posso ver-me ali. A partir deste olhar dirigido a mim próprio, da base desse espaço virtual que se encontra do outro lado do espelho, eu volto a mim mesmo: dirijo o olhar a mim mesmo e começo a reconstituir-me a mim próprio ali onde estou. O espelho funciona como uma heterotopia neste momentum: transforma este lugar, o que ocupo no momento em que me vejo no espelho, num espaço a um só tempo absolutamente real, associado a todo o espaço que o circunda, e absolutamente irreal, uma vez que para nos apercebermos desse espaço real, tem de se atravessar esse ponto virtual que está do lado de lá. (FOUCAULT, 1967)


Também no amor, o corpo volta-se para si através de uma autoimagem, que, neste caso, coincide com a superfície tocada pelo outro. A pele, então tomada como imagem e presença, é uma autoimagem finalmente tocável: corpoimagem. É através dele, pois, que a nudez se alcança no amor. É com um corpo que nós encontramos. eram palavras inventadas para definir coisas que existiam ou não existiam diante da premente urgência de uma necessidade: suprimir a ideia, a ideia e seu mito e no seu lugar instaurar a manifestação tonante dessa necessidade explosiva:


dilatar o corpo da minha noite interior, do nada interior do meu eu que é noite, nada, irreflexão, mas que é explosiva afirmação de que há alguma coisa para dar lugar: meu corpo. (ARTAUD, 1947)

Numa outra via, o corpo utópico suplanta a extensão dérmica, subtraindo a visibilidade suprema que era por ela determinada. A pele é, assim, apagada: “Meu corpo, de fato, está sempre em outro lugar. (...) esse pequeno núcleo utópico (...) não tem lugar, mas é de lá que se irradiam todos os lugares possíveis, reais ou utópicos” (FOUCAULT, 1966). Ele “É uma promessa, um passo que não encontra pé. (...) O corpo pleno, veloz, dinâmico é ainda o corpo da utopia biopolítica, que é um corpo que não existe e que não chega a ser alcançado. É um corpo ‘planejado’” (POCAHY, 2011, p. 158).


Toda a impossibilidade utópica, no entanto, está silenciada no grito que urge a carne e inaugura o corpo heterotópico. As heterotopias são como peles inventadas – infinitas camadas tecidas por corpos que se transfiguram incessantemente, páginas do livro de areia. Elas resultam da inestimável potência de afetar e ser afetado – afinal, o que pode o corpo? As heterotopias ressoam alto e agudamente a questão. Desde que o homem sai do ventre da mãe não tem mais como medir sua altura e seu peso. Ele não pode medir a altura de seu corpo. Ele está com tudo aquilo que não pode mais medir, a despeito de tudo, ele quer se aproximar do que é mensurável e se livrar inteiramente daquela qualquer coisa, e sem dúvida é por isso que se faz amor. (HIJIKATA apud UNO, 2012, p. 6)




TEXTURA, UMA OPERAÇÃO


Textura, uma operação Dispositivo. A questão metodológica: mote conceitual e operador poético. Pesquisa da sensação: texto-imagem e palavra poética. Pesquisa em Artes. Corpografias: zonas de contaminação. Pensar, experimentação filosófica/ científica/poética. Desordem do discurso: imaginário em torno dos pensadores. Proposta indisciplinar na pesquisa: por uma teratologia do saber. Relações entre Ciência, Arte e Filosofia. Recortes do caos: plano de referência, de composição e de imanência. As interferências intrínsecas. Transplanar: o pensamento como heterogênese. As interferências ilocalizáveis.


Dos experimentos poéticos Sobre Caderno Decurso Voz dérmica, Corpo sem Órgãos (CsO). Itinerância: as aulas de filosofia. Tatear um corpo de pensamento. Tessitura musical.

Sobre Diário de corpo do pensamento Texto diarístico e o fora-texto. O diário de corpo como categoria. Personas cambiantes: personagens conceituais? Camadas da pele intensiva. Versões a partir de versões. Alfabeto: as horas de Paul Valéry. Hecceidade. Escrita em quadros: páginas-tela.

Cintilações do ENTRE Modos de olhar-tocar a pele. Algo que impele. Janela-espelho-tela. Ler com dedos. Palavra-pele: ser e não ser tocável, o toque como questão.


Textura, uma operação

Este livro apresenta-se como um dispositivo1 que expõe seu 1 “Mas o que é um dispositivo? É antes de mais nada um emaranhado, um conjunto multilinear. Ele é composto de linhas de natureza diferente. E estas linhas do dispositivo não cercam ou não delimitam sistemas homogêneos, o objeto, o sujeito, a língua, etc., mas seguem direções, traçam processos sempre em desequilíbrio, às vezes se aproximam, às vezes se afastam umas das outras. Cada linha é quebrada, submetida a variações de direção, bifurcante e engalhada, submetida a derivações. Os objetos visíveis, os enunciados formuláveis, as forças em exercício, os sujeitos em posição são como vetores ou tensores. (...) A novidade de um dispositivo em relação aos precedentes pode ser chamada de sua atualidade, nossa atualidade. O novo é o atual. O atual não é o que somos, mas antes o que nós nos tornamos, aquilo que estamos nos tornando, isto é o Outro, nosso tornar-se outro. Em todo dispositivo, é preciso distinguir aquilo que nós somos (aquilo que nós já não somos mais) e aquilo que nós estamos nos tornando: a parte da


constituir-se através do corpo sensível que engendra. Portanto falamos em pesquisa ao mesmo tempo em que falamos em pesquisa da pesquisa, reflexões que atravessam todo tipo de pesquisar. A imbricação entre método e objeto de pesquisa torna a questão metodológica mote conceitual e operador poético do trabalho. Trata-se de uma perscrutação tanto de processo quanto de formato, que leva ao limite a noção de modelo na pesquisa acadêmica, inventando um modo que não é reproduzível, nem dotado de variáveis mensuráveis. A criação é o método da criação.

Nesse sentido, a fração dos registros de campo que poderia ser considerada excessiva ou inadequada à publicação está, aqui, exposta – uma operação que verte diário e caderno em livro e história, e a parte do atual. A história é o arquivo, o desenho daquilo que nós somos e que paramos de ser, enquanto que o atual é o esboço daquilo que nós nos tornamos. De modo que a história ou o arquivo é o que nos separa ainda de nós mesmos enquanto que o atual é este Outro com o qual nós já coincidimos.” (DELEUZE, 1988)


vice-versa. Assim, as notas processuais são substrato, instrumento e resultado, distendendo os moldes científicos tradicionais a ponto de torná-los incabíveis. O procedimento da colagem faz incrustar, também, fragmentos textuais vindos das fontes bibliográficas diversas. Tal operação é denominada, nesta pesquisa, como “textar”: (BARTHES, 1990, p. 137 apud FABRIS, 2005, p. 180)

Textar é conhecer, imaginar, desejar texturas. Inscrevê-las, visibilizá-las, inventá-las. Experimentar paragens, intuir geografias, querê-las. Tatear2. Por isso a convergência chamada 2


texto-imagem: para que se mostre o traçado de uma ideia, cada inusitado encontro de palavras no dia a dia, como este – Toda frase tem um desenho. Que deslumbrante conjunção:

heurística ευρισιχω heuriskein “encontrar”, “descobrir” εϋρηκα heúrēka eureka!

Então um livro poderia ser tido como um magnífico compêndio gráfico, independentemente da área do conhecimento em

(FLUSSER, 2008, p. 31-32)


que é realizado. Haveria de ser considerada, no entanto, a vantagem que teriam os poetas – não os desenhistas, nem arquitetos! Também os matemáticos e físicos, que experimentam a beleza de linguagens milimetricamente calculáveis, capazes de conter todo o infinito, tão custoso a nossa imaginação, num único e singelo ∞

No texto-imagem, a palavra se faz presente visual e plasticamente. Há um pacto com a sensação que atravessa o que está escrito – é também com nuances de luz e cor, pois, que tal escritura diz o que diz. O gesto que desenhou cada letra está aí sustentado – rastros do toque que a caneta um dia fez no papel, dando a impressão de uma textura. A textura é composta por volumes, reentrâncias, zonas de atrito, graus de porosidade, dureza e tensão, entre outros aspectos. Ela é um plano em movimento, entre a profundidade e a superfície, como a pele: envolve, troca, dobra. Já a impressão de ser uma textura é alcançada por sua tradução gráfica numa caligrafia correspondente. Esta, por sua vez, possui uma visualidade que


invoca certa plasticidade, a partir de relevos forjados pela relação sombra/luz, embora seja, ainda, superfície inteiramente plana. A partir dessas noções do grafismo, é possível associar a caligrafia da escrita (cujo gesto é o pensamento) à textura do corpo do pensamento. Dito deste modo, a matéria a compor sensação é a escritura em si, através da palavra poética.

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 196). A palavra poética atua sobre a plasticidade da própria língua, ultraja seus estados familiares. Sintaxes outras tecem o pensamento pelo qual são, elas mesmas, arrastadas. Pensamento e escrita imiscuem-se de modo a serem indiscerníveis – corpo do pensamento. Um sem fim, nem começo.

“ ”


A pesquisa da sensação3 assim realizada estende limiares, propondo um esgarçar entre: a matéria e a palavra; o texto e a imagem; o sensível e o inteligível. Este híbrido resultante é um trabalho metalinguístico, pois trata da metodologia de criação fazendo-a acontecer enquanto processo criativo4, ser de sensação e pesquisa acadêmica. 3

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.197-198) 4


Relações im/possíveis? 5

(LAURENTIZ, 1991, p.17) 5

(LANCRI, 2002, p.25 apud FABRIS, 2005, p. 178)


(VALÉRY, 2011, p. 168) 6 *Nota do autor: 13. Clerk Maxwell. 6 Em 1894, Paul Valéry escreve o texto “Introdução ao método de Leonardo Da Vinci” (publicado em La Nouvelle Revue, em 1895); trinta e seis anos depois, ele produz um metatexto relativo a tal ensaio, no qual revê algumas de suas posturas, hesitações que permearam a primeira escrita, imprecisões nas escolhas de linguagem, além de situar suas ideias no novo contexto, de 1930. É com este movimento de produção/avaliação constantes que Valéry traça sua trajetória. Assim, investe-se, simultaneamente, na atividade de poeta e estudo da poética, chegando inclusive a exercer a docência. “Para mim é uma


sensação muito estranha e muito emocionante subir nesta tribuna e começar uma carreira totalmente nova em uma idade em que tudo nos aconselha a abandonar a ação e a renunciar ao trabalho” (VALÉRY, 2011, p. 195), inicia ele sua aula inaugural no Collége de France, em 1937, sete anos antes de sua morte. Segundo João Alexandre Barbosa, na apresentação do livro Variedades (primeira coletânea de escritos em prosa de Valéry que se publica no Brasil), o autor busca

(BARBORA, 2011 in VALÉRY, 2011, p. 12)


Apesar dos cientistas também serem intuitivos, a relação que estabelecem com a dúvida é estreitamente ligada à certeza; seus insights devem resultar em algo reproduzível, por isso precisam contar sempre com certo grau de previsibilidade. Para tanto, elencam respostas que atendam a suas hipóteses com coerência, em nome da vontade de verdade7, enquanto a intuição inicial do pesquisador em Artes o fará encontrar a pergunta do trabalho – Assim, este não só expressa, como também carrega a questão; é seu corpo sensível. 7


(FOUCAULT, 1970, p. 16-17; 20)


A pesquisa em Artes não equivale, necessariamente, à pesquisa artística. Esta é realizada pelo artista na concepção de uma obra e execução do respectivo projeto. Já a primeira, é uma pesquisa acadêmica desenvolvida na área de conhecimento das Artes; ela pode ser dita como uma licença poética da Ciência, pois faz encontrar o modo científico com o campo da Arte, através de modulações inéditas e/ou inesperadas –

(LANCRI, 2002, p.26 apud FABRIS, 2005, p. 179)

Sua forma de percorrer a pergunta não objetiva chegar a qualquer resolução; a própria interrogação escavada e suspendida é a necessidade do trabalho. Disso decorre a liberdade em realizar incursões diversas (por textos científicos, filosóficos, literários, críticos, etc), sem constrangimentos, a fim de abarcar as demandas que se impõem ao estudo. Tal modo de agenciamento cria zonas de contaminação que aqui chamamos de corpografias.


Em estudos realizados sob o ponto de vista da dança, Paola Jacques (2008) define corpografia como uma “cartografia corporal”: “resultados das mais diferentes experiências urbanas vividas por cada um”. A autora “parte da hipótese de que a experiência urbana fica inscrita, em diversas escalas de temporalidade, no próprio corpo daquele que a experimenta, e dessa forma também o define, mesmo que involuntariamente” (JACQUES, 2008). Nas “corpografias urbanas” desenvolvidas em seus trabalhos, interessa investigar a inscrição das práticas de vida no corpo, que imprimem, nele, uma disponibilidade física singular (JACQUES, 2008). Desse modo, elas seriam uma espécie de repertório corporal, expresso pelos movimentos e gestos do corpo – “padrões corporais de ação”. Para circunscrever a noção de corpografia, Jacques (2008) a diferencia da cartografia e da coreografia. Segundo a autora, “Uma cartografia já é um tipo de atualização do projeto urbano, ou seja, uma cartografia urbana descreve um mapa da cidade construída e assim muitas vezes já apropriada e modificada por seus usuários. Uma coreografia pode ser vista como um projeto de movimentação


corporal, ou seja, um projeto para o corpo (ou conjunto de corpos) realizar, o que implica, como no projeto urbano, em desenho (ou notação), composição (ou roteiro) etc. (...) os corpos dos bailarinos também atualizam o projeto” (JACQUES, 2008). Na apropriação do termo, aqui empreendida sob a perspectiva das Poéticas Visuais, há que se distinguir a noção de corpo a que se remetem estas corpografias: não se trata do corpo humano, mas sim de um corpo poético. Além disso, este ser sensível decorrente da pesquisa é também seu método, o que faz destas Corpografias não apenas resultado, mas seu próprio meio. Elas reúnem gravações e impressões, compondo este corpo do pensamento – um livro que é pele, feito de texturas do pensamento.

O corpo poético assim constituído é prenhe de um corpo dissertativo – um se extrai do outro, em permutações entre a composição e a organização. Como nas peças teatrais, é o trânsito


(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p.133)

entre o discurso objetivo (indicações de atuação para os atores) e a dimensão poética do roteiro (diálogo dos personagens) que possibilita transformá-lo numa obra cênica. No caso deste dispositivo, os diferentes grafismos deslizam entre as duas instâncias. Traços desenhados e escritos se agregam como imagens verbais e visuais, metamorfoseando as páginas da bibliografia convocada – são feitas de sensações para ainda mais suscitá-las. Nada representam, nem demandam provar.

É também científica E poética.


“- O que é? - O Quaresma está doido. - Mas... o quê? Quem foi que te disse? - Aquele homem do violão. Já está na casa de saúde... - Eu logo vi, disse Albernaz, aquele requerimento era de doido. - Mas não é só, general, acrescentou Genelício. Fez um ofício em tupi e mandou ao ministro. - É o que eu dizia, fez Albernaz. - Quem é? perguntou Florêncio. - Aquele vizinho, empregado do Arsenal; não conhece? - Um baixo, de pince-nez? - Este mesmo, confirmou Caldas. - Nem se podia esperar outra cousa, disse o Doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura... - Pra que ele lia tanto? indagou Caldas. - Telha de menos, disse Florêncio. Genelício atalhou com autoridade: - Ele não era formado, para que meter-se em livros? - É verdade, fez Florêncio. - Isto de livros é bom para os sábios, para os doutores, observou Segismundo.


- Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título “acadêmico” ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?” [Trecho do livro Triste fim de Policarpo Quaresma (1915), de Lima Barreto]

[Trecho do conto “Sobre os símiles”, de Franz Kafka, coletânea Narrativas do espólio (KAFKA, 2002, p. 210)]


“–Mas falo pelos cotovelos, como elas. Só pela boca. E falo bem. Sei dizer coisas engraçadas e até filosóficas. Inda há pouco Dona Benta declarou que eu tenho coisas de um verdadeiro filósofo. Sabe o que é um filósofo, Visconde? O Visconde sabia, mas fingiu não saber. A boneca explicou: – É um bichinho sujinho, caspento, que diz coisas elevadas que os outros julgam que entendem e ficam de olho parado, pensando, pensando. Cada vez que digo uma coisa filosófica, o olho de Dona Benta fica parado e ela pensa, pensa… – Ficam pensando o quê, Emília? – Pensando que entenderam. O Visconde enrugou a testinha e quedou-se uns instantes de olho parado, pensando, pensando. Aquela explicação era positivamente filosófica.” [Trecho do livro Memórias da Emília (1936), de Monteiro Lobato]


[Trechos do conto “O pião”, de Franz Kafka, coletânea Narrativas do espólio (KAFKA, 2002, p. 136-137)]


[Trechos da “Nota autobiográfica em torno da performance filosófica” – Pérolas aos porcos, performance para suínos em torno de O Anti-Édipo, realizada por Ondina de Castilho e Peter Pál Pelbart, em 2001-2002 (PELBART, 2009, p. 163-164; 166)]




[Trecho do conto “Fragmentos de Um relatório para uma academia”, de Franz Kafka, coletânea Descrição de uma luta (KAFKA, 1985, p. 161-164)]


Este imaginário brevemente esboçado, acerca da figura do pensador, tensiona a análise da produção discursiva na Filosofia, na Ciência e na Arte. A partir dessa provocação, o estatuto do trabalho que se instala num gênero híbrido é circunscrito e discutido, a seguir.

(FOUCAULT, 1970, p. 8-9)


(FOUCAULT, 1970, p. 7)

Em “A ordem do discurso”8, Michel Foucault (1970) delineia as leis que regem tal ordenação, propondo formas de subversão das mesmas. Segundo o autor, o controle do discurso é exercido através de procedimentos de exclusão, coerção e 8 Tal como ocorre em outras seções deste livro, esse texto é referido pelo ano de realização da conferência a que corresponde.


sujeição, que podem ser internos ou externos a ele, e resultam na elisão de sua realidade porque submetem o acontecimento e o acaso do discurso às leis da ordem discursiva. Como modos de autocontrole são apontados: o comentário; a reivindicação individual da autoria; e o enquadramento em disciplinas9. Já no domínio externo dos poderes, estão as interdição, separação e/ou rejeição do locutor, além da busca da verdade. Neste embate, Foucault (1970) destaca medidas que devolveriam ao discurso um verdadeiro risco. Assim, propõe alguns 9 “(...) uma disciplina se define por um domínio de objetos, um conjunto de métodos, um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos (...). uma disciplina não é a soma de tudo o que pode ser dito de verdadeiro sobre alguma coisa; não é nem mesmo o conjunto de tudo o que pode ser aceito, a propósito de um mesmo dado, em virtude de um princípio de coerência ou de sistematicidade. (...) são feitas tanto de erros como de verdades, erros que não são resíduos ou corpos estranhos, mas que têm funções positivas, uma eficácia histórica, um papel muitas vezes indissociável daquele das verdades.” (FOUCAULT, 1970, p. 30-31)


princípios de desordem10: a inversão (trocar o papel positivo do autor, da disciplina e da verdade, pelo negativo do recorte e rarefação do discurso); a descontinuidade (o discurso como práticas descontínuas); a especificidade (opção por expressões específicas, que violentem as coisas ao invés de acomodá-las); e a exterioridade (propiciar ao discurso condições externas de possibilidade). Há, em tais princípios, uma aposta na abertura do discurso ao acaso, à descontinuidade e à materialidade que lhes são próprias, devolvendo-lhe a dimensão de acontecimento.

10 “Os discursos devem ser tratados como práticas descontínuas, que se cruzam por vezes, mas também se ignoram ou se excluem. (...) ele não é cúmplice de nosso conhecimento; não há providência pré-discursiva que o disponha a nosso favor. Deve-se conceber o discurso como uma violência que fazemos às coisas, como uma prática que lhes impomos em todo o caso; e é nesta prática que os acontecimentos do discurso encontram o princípio de sua regularidade. (...) a partir do próprio discurso, de sua aparição e de sua regularidade, passar às condições externas de possibilidade, àquilo que dá lugar à série aleatória desses acontecimentos e fixa suas fronteiras.” (FOUCAULT, 1970, p. 52-53)


No reposicionamento do modo de produção do discurso, faz-se necessário, também, repensar as formas de organização do saber11, na pesquisa e no ensino, que têm como base o sistema disciplinar. “A disciplina é um princípio de controle da produção do discurso. Ela lhe fixa os limites pelo jogo de uma identidade que tem a forma de uma reatualização permanente das regras” (FOUCAULT, 1970, p. 36). Para distender a questão

11 “Todo sistema de educação é uma maneira política de manter ou modificar a apropriação dos discursos, com os saberes e os poderes que eles trazem consigo. (...) O que é afinal um sistema de ensino senão uma ritualização da palavra; senão uma qualificação e uma fixação dos papéis para os sujeitos que falam; senão a constituição de um grupo doutrinário ao menos difuso; senão uma distribuição e uma apropriação do discurso com seus poderes e seus saberes? (...) sob esta aparente veneração do discurso, sob essa aparente logofilia, esconde-se uma espécie de temor. (...) uma profunda logofobia, uma espécie de temor surdo desses acontecimentos, dessa massa de coisas ditas, do surgir de todos esses enunciados, de tudo o que possa haver aí de violento, de descontínuo, de combativo, de desordem, também, e de perigoso, desse grande zumbido incessante e desordenado do discurso.” (FOUCAULT, 1970, p. 44-45; 50)


disciplinar (e mesmo a transdisciplinar12), é preciso atingir seu ponto nevrálgico:

(FOUCAULT, 1970, p. 33) O termo teratologia, tomado emprestado da medicina, refere-se ao estudo das anomalias e malformações ligadas a uma perturbação do desenvolvimento embrionário ou fetal; em sua origem, remete ao estudo de monstruosidades (HOUAISS, 2012).

12 “A transdisciplinaridade é complementar à aproximação disciplinar: faz emergir da confrontação das disciplinas dados novos que as articulam entre si; oferece-nos uma nova visão da natureza e da realidade. A transdisciplinaridade não procura o domínio sobre as várias outras disciplinas, mas a abertura de todas elas àquilo que as atravessa e as ultrapassa.” (FREITAS; MORIN; NICOLESCU, 1994) [Artigo 3 da Carta da transdisciplinaridade, redigida no Primeiro Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, em Portugal]


No contexto aqui discutido, o saber indisciplinar13 seria o monstro transbordante – ou melhor, “extrabordas” – a insurgir da condição além de qualquer disciplina: (FOUCAULT, 1970, p. 35)

Como aconteceu na biologia, diante da genética mendeliana: (FOUCAULT, 1970, p. 35)

A descoberta que ele empreendeu no campo do conhecimento era inconcebível para o estado da arte da biologia de sua época; isso tornava impossível seu enquadrado como verdadeiro ou falso tal qual a ciência de então teria capacidade e meios para julgar. 13

(GREINER, 2006, p. 11)


“Acho filosofia e poesia dois empreendimentos igualmente extremos – mas opostos – do espírito humano. Eu mesmo ora sou aprendiz de poeta, ora aprendiz de filósofo, nunca os dois ao mesmo tempo. (...). Concordo, portanto, com Goethe, Guimarães Rosa e João Cabral, entre outros que dizem que a filosofia atrapalha a poesia. Nietzsche, que quis ser poeta e filósofo ao mesmo tempo, enlouqueceu, e não se sabe o que veio antes: a tentativa de ser as duas coisas ao mesmo tempo ou a loucura. (...) Embora tenha grandes intuições, Nietzsche frequentemente se contradiz, pois é um híbrido de poeta e filósofo.” [Fragmento da entrevista “Feito de opostos”, concedida por Antonio Cícero e publicada na revista Filosofia (CÍCERO, 2008)]

– E que mal há nisso? – Não servir para a filosofia, nem para a literatura. (Nem mesmo para a ciência) – Há de ser útil em alguma esfera de inutilidades...


Trabalhar o pensamento requer movimentaçþes de enfrentamento do caos14. Para tratar deste risco, Deleuze e Guattari (2010) 14


o assumem realizando o livro-pergunta O que é a filosofia?. O desafio de tal definição impele aos autores um percurso que perpassa o pensamento filosófico, mas demanda também a compreensão de outros dois tipos: o pensamento científico e o poético. Eles resultam do recorte do caos feito pelos planos de imanência, referência e composição, dos quais ascendem as respectivas caoides: a Filosofia, a Ciência e a Arte. O íntimo como ativador do espaço da confiança contrasta-se com as atividades do filósofo (que deve desconfiar dos conceitos

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 238-239)


que não criou) e do cientista (que tudo precisa comprovar). A abertura por ele promovida possibilita recusar a coerência completa; espécie de afirmação das contradições inconciliáveis. Insistir nesse método é, sobretudo, não desconfiar dele, usufruindo-o extensamente. Não ser científico, nem filosófico – ou: experimentar ser outro. Quando nos interrogamos qual é o corpo que pensa e produzimos esta pergunta (e não sua resposta) com um corpo poético, em que domínio nos situamos? Pois, embora seja um trabalho elaborado na esfera da Ciência – a pesquisa em Artes –, seu plano de referência é transpassado pelo da composição e da imanência, num trajeto cambiante. Segundo Deleuze e Guattari (2010), tais interferências15 15


são intrínsecas aos planos: deslizamentos sutis de um a outro que encadeiam uma complexidade tal difícil de enquadrar. Esses encontros (e confrontos) dos âmbitos poético, científico e filosófico tornam cada parte indiscernível; desta modulação, que chamaremos de transplanar, resulta um trabalho insituável entre os domínios.

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 234-235)


Avançando nesse sentido, os autores indicam as interferências ilocalizáveis16 na Arte, na Ciência e na Filosofia, com as quais concluem o mencionado livro. Portanto, após a extensa e detalhada diferenciação das caoides, o que Deleuze e Guattari (2010) ressaltam é o ponto comum a elas: o vir a ser do pensamento17. 16

17

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 256)


Dele advém a imprescindível relação que cada caoide tem com seu negativo correspondente.

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 257)

(UNO, 2012, p. 36-37)


Esses três Não apresentam a mesma relação com o caos: estão sempre a clamar um povo por vir. Tal como reivindica Foucault (1970), eles são o A ‘fala’ do “pensamento não-pensante que se esconde nos três [Não]”, pura invenção.

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 257)




Dos experimentos poéticos Nos cadernos de curso, a tarefa empreendida foi a de inscrever texturas do pensamento, e, depois, destacá-las como textoimagem. Desse procedimento, desdobram-se o Caderno Decurso e o Diário de corpo do pensamento. Tais experimentos apresentam os encontros que compõem esta pele, que se estende e toca tudo. Um toque que extrapola o domínio das mãos, perfaz-se; um corpo que toca e é tocado. “A memória neste plano é memória de marcas (...). Uma memória que se faz em nosso corpo, não em seu estado visível e orgânico, mas sim em seu estado invisível, onde o corpo integra aquela textura de que também falei no início, que se compõe das misturas dos mais variados fluxos, e onde se produzem as diferenças que engendram os devires, devires da própria textura.” (ROLNIK, 1993, grifo nosso)


Sobre Caderno Decurso

(UNO, 2012, p. 61)

Tocar a voz com ouvidos e superfícies cutâneas além da mão, até perceber que eles haviam virado a própria voz, uma pele imensa estendida, englobando-nos. Não era mais a voz de um ou de outro, nem mesmo dos companheiros teóricos convocados: havia um adensamento, que era também profuso.

(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 12; 15)


Uma voz dérmica, esculpida como corpo, no qual era incapaz de reconhecer limites. De quem eram suas palavras? Minhas? Deles? Deleuze? Deleuzes? Não seria possível apontar.

(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 18)

(FOUCAULT, 1970, p. 6)


Logo, o plano de transcrição das aulas mostrou-se (simples e tamanha) transfiguração. Não haveriam de ser registros: acompanhar as aulas e discussões, itinerando lá e acolá1, foi a forma de tatear um corpo de pensamento. Nem meu, nem seu, tampouco nosso. Um corpo. Textá-lo.

(UNO, 2012, p. 55-56) 1 A ideia de criar o Caderno Decurso surgiu no curso de filosofia “O tempo em Bergson”, ministrado pelo Prof. Peter Pál Pelbart, no Atelier Paulista, em 2011.2. A esse contexto, somaram-se suas aulas na Pós-graduação da PUC-SP, durante o mesmo período, além do curso “Kafka e o desparafusamento do mundo” (2012.1).


(FOUCAULT, 1970, p. 5-6)


(VALÉRY, 2009, p. 79)


Conhecer texturas apresentadas através de tantos – Bergson, Kafka, Deleuze, suas linhas, seus planos, seus verbos... Tudo isto me fez entender que uma textura é composta por aspectos muitos deles invisíveis – talvez apenas os cegos, libertados da visão, sejam capazes de apreender inteiramente tamanha grandeza.


“O mais profundo é a pele”

(DELEUZE, 2010, p. 113)


Textar. Alcançar uma textura a ser sentida por todo o corpo, que fosse ela também um corpo: com proeminências, valas, pontos embaralhados de fuga, sombras minúsculas, ranhuras inesperadas... Palpáveis, mas de um modo distinto: (UNO, 2012, p. 49)

Como fazer essa textura impregnar o papel sem destituí-la da flutuação...? A música oferece uma contribuição valiosa sobre a tessitura: ela seria a disposição das notas para se acomodarem a uma determinada voz ou a um dado instrumento (HOUAISS, 2012). Do mesmo modo, a voz dérmica ascende de tal conjunção do pensamento, tecendo-se – é o corpo do pensamento que se engendra nesta fala. Assim, os diversos conceitos ressoam, como notas musicais esposadas numa voz; eles espalhamse nas páginas, de uma a outra, dos livros, dos cadernos... uma grande pele envolvendo todos, que já são a própria tessitura.


(DELEUZE, 2010, p. 112)

(...) uma aula não tem como objetivo ser entendida totalmente. Uma aula é uma espécie de matéria em movimento. É por isso que é musical. Numa aula, cada grupo ou cada estudante pega o que lhe convém. Uma aula ruim é a que não convém a ninguém. Não podemos dizer que tudo convém a todos. As pessoas têm de esperar. Obviamente, tem alguém meio adormecido. Por que ele acorda misteriosamente no momento que lhe diz respeito? Não há uma lei que diz o que diz respeito a alguém. O assunto de seu interesse é outra coisa. Uma aula é emoção. É tanto emoção quanto inteligência. Sem emoção, não há nada, não há interesse algum. Não é uma questão de entender e ouvir tudo, mas de acordar em tempo de captar o que lhe convém pessoalmente. É por isso que um público variado é muito importante. Sentimos o deslocamento dos centros de interesse, que pulam de um para outro. Isso forma uma espécie de tecido esplêndido, uma espécie de textura. (DELEUZE, 1988-1989. Fragmento da entrevista “O Abecedário de Gilles Deleuze”, seção “P de Professor”)


Sobre Diário de corpo do pensamento

A escrita cotidiana de um diário relaciona-se não só com o âmbito confessional da intimidade, mas também com atividades como a náutica e aeronáutica – através do diário de bordo –, e a científica, na figura do diário de campo. Na ciência, o texto diarístico1 desponta como uma necessidade de registrar os meandros das atividades de cientistas durante o processo de descolonização, no início do século XIX. A esses pesquisadores, cabia sair de seus laboratórios e investigar o ‘estrangeiro’. Chegando em terra alheia, eles viam-se como intrusos, demandando, assim, um espaço em que pudessem dizer à 1

(BARROS; PASSOS, 2009, p.175)


vontade o que lhes ocorria. Desse regime de escrita, emerge o foratexto2 do campo científico, que põe à prova os ditames tradicionais de publicação da experiência científica, ultrapassando a linguagem distanciada e imparcial da divulgação de dados investigativos. O diário deste dispositivo versa o pensamento, percorrendo o engendramento de seu corpo. Dele emerge uma nova categoria no formato diarístico: o diário de corpo, tal como existem os diários de campo, de bordo, de viagem, clínico, etc. Esta variedade de escrita faz elidir certa ordem do discurso, mas não sua realidade:

(FOUCAULT, 1970, p. 70) 2

(BARROS; PASSOS, 2009, p.174)


O experimento é grafado com personagens (conceituais?)3 que se interpõem, formando um emaranhado narrativo caracterizado por digressões que se cruzam, desencontram e muitas vezes colidem. Em tal miríade de personas, é possível apontar vozes como a pesquisa, a pesquisadora, a página, a escrita, o pensamento 3

(DELEUZE; GUATTARI, 2010, p. 78)


e a pele. Suas falas são intercambiáveis, não havendo marcação ou legenda que indique uma correspondência fixa nesta polifonia. As vozes do diário são camadas daquela pele de natureza intensiva4.

“O mais profundo é a pele”

Não é a (falta de) equivalência com personagens que importa, mas sim aquilo que de seus movimentos surge. Invenções infinitas dos zumbidos e balbucios que ascendem dessa tessitura: versões a partir de versões a partir de versões a partir de versões... Espécie de propriedade ficcional.


4

(DELEUZE; GUATTARI, 2008, p. 10; 13)


(Paul Valéry, sobre a criação do livro Alfabeto)


5

Esse diário de corpo reverbera uma atmosfera que transborda o calendário letivo, incrusta-se em todas as esferas, faz ressoar ideias mantricamente, estica-as, transmuta-as... depois: páginas. Aquela voz dérmica, que se expande e engolfa, na aula. a-voz-dérmica-é-a-aula.


5

(DELEUZE; GUATTARI, 2012b, p. 49; 52)


Através de uma escrita telegráfica, temas e expressões reincidem continuamente no diário, abrindo-lhe, a cada vez, novas camadas; esta constituição fragmentada do texto compõe uma escrita em quadros. Para encarná-la, a página é tomada como tela, fazendo transitar a palavra e o desenho por meios diversos: do traçado manuscrito à digitalização e tratamento como imagem, impressão digital, gravação química e impressão mecânica. Uma vez que as técnicas utilizadas produzem diferentes tipos de relevo numa mesma superfície, a página-gravura 6produzida acentua o aspecto tátil no experimento, potencializando as questões mobilizadas por esta pesquisa.

6 A primeira forma de apresentação do “Diário de corpo do pensamento” foi como um conjunto de gravuras em metal feitas a partir de fac-símile do texto manuscrito, impressas sobre papel filtrante preparado com imagem digitalizada (desenhos de Branca de Oliveira). Dimensões: 14 cm x 14 cm. Técnica: Serigrafia/ Água-forte. Tiragem: 12 impressões de cada original. Ano: 2012. Produção: Atelier Paulista. Apoio: Departamento de Artes Plásticas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (CAP/ECA/USP).


Cintilações do ENTRE

Algo que impele Impelir é “fazer avançar à força, empurrar, impulsionar; é arremessar com força, atirar, lançar; é dar incentivo, incitar, estimular; é obrigar (alguém) a fazer ou não alguma coisa, coagir, constranger.” (HOUAISS, 2012). Neste trabalho, impelir subsume as definições anteriores com a de vir a ser pele. Ora o inimaginável de tão perto, ora o inalcançável da mais remota distância; ora corpo, ora imagem. Flusser imaginou... 1

(FLUSSER, 2008, p. 39; 42. Trechos do capítulo “Imaginar”)


(UNO, 2012, p. 77)

Cintilações do ENTRE

Através das aproximações e recuos de um incessante zoom in/out, forma-se um vulto, o ENTRE. Vir a ser pele é estar-se nele, ser ele – “um redemoinho não se distingue do líquido em que se forma” (PERNIOLA, 2010, p. 274). Viver o toque da profundeza na superfície. Encontro, algo que impele.


Cintilações do ENTRE

Janela-espelho-tela

Pele, esse triz que distingue e estreita, estranha propriedade do ENTRE. Ela é um através, o que não invalida

– desta condição advém sua

estranheza. Por ser superfície de conexão, de reconhecimento e de acontecimento, a pele pode ser relacionada aos limiares da janela, do espelho e da tela. Estes são espaços de espaços – expressões do através que articulam atravessamentos variados. Espelhos, janelas e telas, cada um a seu modo, reverberam e produzem imagens, coisas, mundos.


Cintilações do ENTRE

A janela é abertura, a intermediação transparente. Como lugar de passagem, ela é um portal que comunica cenas e estados de diferentes dimensões. A seu grau de abertura, corresponde um grau de seleção, já que, ao enquadrar, a janela recorta e define bordas. A janela é tanto moldura como desenho do vazio – capaz de emoldurar qualquer conteúdo, no entanto, ela mesma é sempre por onde algo passa, preenchendo seu antes e seu depois, nunca sua tênue existência de trânsito.


Cintilações do ENTRE

O espelho é superfície fronteiriça que reflete a luz sobre ela incidida, localizando-se no encontro de dois meios ópticos distintos. O espelho apresenta a singular propriedade de, no presente contínuo e dentro de seu campo de alcance, duplicar, tal e qual, aquilo que o cerca. Fora desse limite, no entanto, nada é reproduzível; sua potência de presentificar, pois, depende do objeto real. Este, por sua vez, aparece já manifesto numa imagem, isto é, o objeto real só é acessível por meio da imagem em que está expresso na realidade. Caso o espelho não seja confrontado com a coisa-a-ser-refletida, a duplicação não acontece. E, quando confrontado com ele mesmo, o espelho é um potencializador de imagens, já que as reproduz ao infinito.


Cintilações do ENTRE

A tela é suporte, base física – opaca, quando ampara qualquer projeção, e luminescente, quando as emite; é nela onde os signos se inscrevem. A tela é interface entre sensações; ela media realidades e, nessa vinculação, dispara a experiência de ver no instante efêmero da exibição. Assim, a tela é o aparato que abre à imagem sua existência, somente na medida em que a resguarda. No sutil movimento de guardar e mostrar ao mesmo tempo, a tela detém e revela a imagem, visibiliza-a, possibilitando que a imagem apareça. Como superfície de fluxo, a tela é onde a imagem acontece. Esta, por sua vez, é um composto de sensações que existe numa superfície como pura exterioridade; a imagem não pode ser escavada, nem aninha um atrás de si. Ainda assim, pondo-se continuamente como fora, engendra volumes – dobras, redobras e desdobras nas quais a composição se faz, desfaz e refaz.


Cintilações do ENTRE

Ler com dedos O sistema braille é um código universal de leitura tátil e de escrita, desenvolvido pelo francês Louis Braille. A partir da invenção do sistema, em 1825, ele desenvolveu estudos que resultaram, em 1837, na estrutura básica do código, ainda hoje utilizada mundialmente. | Louis Braille nasceu em 1809. Aos três anos de idade, perdeu a visão, o que o levou a, quatro anos depois, ingressar no Instituto de Cegos de Paris, de onde veio a se tornar, mais tarde, professor. A ideia de criar um alfabeto específico para deficientes visuais surgiu da notícia de que existia um sistema de pontos, inventado com fins militares pelo oficial Charles Barbier, que permitia a leitura de mensagens durante a noite, em lugares onde seria perigoso acender a luz. A partir de adaptações nesse sistema, Louis Braille publicou seu método, adotado oficialmente na Europa e na América em 1852, ano de morte do inventor. | Formalmente, o braille é um alfabeto convencional cujos caracteres são indicados por pontos em alto relevo. A partir da


(Fontes: Projeto Braille Virtual da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP)/ Wikipedia)

Cintilações do ENTRE

combinação dos seis pontos dispostos em duas colunas, são gerados 63 símbolos diferentes; eles podem representar letras simples e acentuadas, pontuações, números, sinais matemáticos e notas musicais. O código é usado em literatura nos diversos idiomas, na simbologia matemática e científica, na música e até mesmo na informática. | O braille aproveita-se do sistema epicrítico do ser humano, relacionado ao tato e à percepção de alterações discretas da temperatura. Esta sensibilidade dita “fina” é responsável pela sensação do toque e da vibração; através dela é possível distinguir, por exemplo, as pequenas diferenças de posicionamento entre dois pontos, conforme exige o braille. No sistema somatossensorial humano, contrasta-se a esse tipo de percepção, a sensibilidade protopática – que é difusa, responsável por impressões dificilmente localizáveis. Ela responde aos estímulos cutâneos dolorosos, além dos graus extremos de temperatura.


Cintilações do ENTRE Palavra-pele: ser e não ser tocável, o toque como questão


Cintilações do ENTRE



CONHECER UMA PERGUNTA IRRESPONDÍVEL


1

1 CHAVES, 2011, p. 57. (Trecho do livro de artista Pois é, de Anésia Pacheco e Chaves)


Como findar isto que é imenso, sem ter nem começo? A pesquisa de uma vida. Inapreensível como aquele sopro – a chama – a chave. A chave perdida. A chave que sequer existe. algo que é impossível procurar, encontrar e tampouco, talvez, perder.2 Por isso não se termina. Que a conclusão verse infinitamente como novas hipóteses. Que suspenda a previsão, para que esta mude: diante de todas as possibilidades, ocupar o lugar de outra. Ser sempre outra. Pretérito mais-que-imperfeito: seria, se fosse, mas não era. Viver a duração de outros mundos. Dentre todos os ondes, estar em nenhures. Insituável.

Que corpo é esse?1

2 NIETZSCHE apud DELEUZE, 1976, p. 64.




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Numa entrevista, Deleuze dizia que numa aula trata-se menos de transmitir qualquer informação ou conhecimento do que colocar em movimento uma matéria, a matéria-pensamento. Não consigo deixar de pensar que essa bela ideia atravessa este trabalho. O que é essa matéria-pensamento posta em movimento? A matériapensamento não pode ser algo apenas imaterial ou incorpóreo, é também uma matéria que afeta o corpo, que toca a pele, que dispara eventualmente a escrita ou algum registro expressivo. Há portanto, forçosamente, uma materialidade aí em jogo, uma inscrição, uma corporeidade, que por vezes o próprio pensamento tenta tematizar, mas nem sempre consegue, precisamente por estar ele restrito a esse elemento que é o seu. Peter Pál Pelbart

filósofo, ensaísta, tradutor e professor da PUC-SP


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