Catálogo texto proposições País Imaginário.

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País Imaginário

Milla Jung


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Deixe que eu lhe diga, meu amor, tudo o que sonhei para nós, nesta terra que amanhece e que finalmente servirá de chão para a nossa felicidade. Começamos nossa relação aqui: neste momento em que o olho, e que você me olha, mas provavelmente você já tem muito, muito mais idade. Da vida que no ano de 54 era seu futuro e do meu pequeno passado hoje, nada importa. Esse é o nosso segredo: que todo o tempo esteja ligado só a esta fotografia, você aí encostado nas caixas de peixes que brilham, chegado do mar, distraído. E eu aqui do outro lado do universo olhando para você. Assim é, seus colegas vivem a vida... você sonha. E eu sonho seu futuro comigo na casa que teremos. Onde no fim do dia sentaremos à mesa com a toalha que bordarei com as nossas iniciais. O vinho ficará reservado aos dias de exceção. A luz cai. E a noite finalmente toma este país que engatinha, país imaginado, país imaginário. Sábado sairemos ainda antes do sol, caminharemos pela... cruzaremos as montanhas de... até alcançar... de lá tomaremos o trem para percorrer o pequeno trecho à margem do... você me chamará de miúda e eu beijarei delicadamente seus cabelos escuros. O suco sujará nossa roupa limpa. E no deserto...


Quando encontrarmos o mar... Nossos pés... Na volta... O silêncio, as janelas, os outros... Eu e você... neste país que engatinha. Todo o meu futuro contido numa única fotografia, transbordando nesta paisagem imaginada.

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Uma pessoa sorri desconfiada: hummm. Silêncio. Mais silêncio até uma risada tímida: há, hããã... Outra vez vai silenciando. Então, escapa um não tímido e incrédulo.


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Que tipo de amor é capaz de protegê-las? Porque, veja isto, elas estão de máscaras. E posam inadvertidamente. Sorriem. É um retrato amoroso, mediado pela fantasia. Nada de reciprocidades, as máscaras impedem uma linha imaginária. Mas alguém existe. E alguém se despe. Só não tenho certeza de quem está sendo protegido. Porque é difícil olhar esta fotografia. Quem, realmente? Só com amor esta foto pode ter sido feita. E Lacan diz amar é dar o que não se tem...


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Something is missing here But I see everything, with sufficient precision So, how can it be that it misses when everything is full One unique substance that tells the universe Here we are reduced to this single cell With no past, no future, no present Only space Where the absence becames its identity Maybe a new way of accessing our ordinary truth: producing it The unreal Really forged So true I bet we believe in what we see‌ in this picture


Alguma coisa está faltando aqui Mas eu vejo tudo, com suficiente precisão Então, como pode ser que falte quando tudo está preenchido Uma única substância que diz o universo Aqui estamos reduzidos a esta única célula Sem passado, sem futuro, sem presente Somente espaço Onde a ausência torna-se sua identidade Talvez um novo modo de acessar nossa verdade ordinária: produzindo-a Irrealidade Realmente forjada Tão verdadeira Eu aposto que nós acreditamos no que vemos… nesta fotografia

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A primeira coisa que me vem à mente quando olho essa foto é imensidão. Estou me referindo ao mar atrás do casal, mas não é só por eles estarem no mar. Imensidão vem também do movimento dos braços: os dela esvoaçantes, como um rodopio de bailarina e os dele juntos desse jeito de um lado só do corpo. Você me entende? Você vê isso também? Esses braços que querem voar? Imensidão... Oceânico... Oceânico vem de mar e traz a referência da cor azul... numa foto em preto e branco. Mas sim, posso ver oceânico. Também dá para pensar que o casal está muito embriagado, entregue ao mar de roupa e tudo. Bom, a embriaguez é sempre algo imenso. A embriaguez constrói um ritmo, e as ondas, o jogo dos corpos, até os barcos lá atrás parecem seguir uma sequência. Você conhece aquela música? Aquela que vem subindo num crescendo... (entrada de frase musical cigana em clarineta) Uma foto audiovisual de um casal de ciganos dançando na praia. Ciganos? Olha as roupas anacrônicas que eles vestem. A saia xadrez da mulher amarrada com um lenço na cintura, a blusa também amarrada na cintura com tanta sensualidade, e o chapéu masculino que ela veste com propriedade. A foto nem mostra a sua cara mas já imagino uma mulher linda, sorridente, exótica. E ele, mesmo com essa barriga imensa, também é um cara sensual assim sem camisa, de calça preta no meio do mar.


O sol na pele deles, que hora será que a foto foi feita? Porque é um sol forte mas ao mesmo tempo as sombras não estão acentuadas. Tem algo de nômade nessa foto, algo de transgressor, acho que é por isso que fico com a sensação de que são mesmo ciganos. Em "Saint Maries de La Mer". Você conhece este lugar? “Saint Maries de La Mer” é no sul da França, um balneário tipo península com areia por todos os lados. Nunca fui, parece que é importante, mas é também uma ficção, fora do tempo e do espaço. Um lugar imaginário. Exílio. É, exílio, realmente eles não parecem pertencer. E o verão sempre acaba, é preciso aproveitar. Mas o mar continua lá mesmo no inverno. Sempre se pode voltar. A cada volta, uma nova experiência. Vejo essa foto que é a mesma há anos e ela a cada vez me parece diferente...

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Foto 01 Natureza apreendida como paisagem, paisagem apreendida como visão, visão apreendida em seu limite, que é finalmente imagem. Uma imagem que, em si, contém a pergunta de ser imagem. O que é uma imagem? O que é uma fotografia? No lugar do confronto direto com a paisagem, uma moldura intermedia a cena fazendo ver um lugar de dentro que mira o de fora. Por sua vez, a atmosfera de fora também contamina a de dentro. Esta é uma fotografia que apaga a noção de espaço, instigando imagens indesejadas, rompendo parâmetros do simbólico e do imaginário e confundindo o real e o ficcional. Foto 02 Um poste de luz ou uma madeira jamais voltarão a ser simples dados do mundo. Nesta fotografia estão abstraídos a natureza dos objetos e também os objetos da natureza. Quando recolhidos no olhar criam um jogo do ver e do rever, no qual o algo que era, é outro. Foto 03 Como fazer ver o infinito senão por sua própria negação? Trata-se de uma linha que só existe para os olhos, uma planície que é pura abstração e só pode ser apropriada pela técnica. Pois, se à medida em que se avança, a linha do horizonte se afasta, é esta fotografia sua medida do visível. Metalinguagem que faz ver a paisagem como fotografia e a fotografia como Texto: paisagem multiplicável, paisagem enquanto conceito.


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É só uma foto e se constrói um país... Uma vez encontra um disco com a Internacional Socialista, escuta sem parar para decorar a letra. Seu pai e sua mãe vivem na reunião do partido e de noite colam cartazes pelas ruas. Colocam uma placa vermelha em cima do carro com o nome do candidato do partido. Um dia ele canta o hino. Eles acham graça, e se espantam, porque nem sabiam que tinham aquele disco perdido no meio dos outros. Com quinze anos viaja para uma área de conflito de terras com o pai, que tem uma reunião com um líder camponês. O clima é tenso. Um bando de fazendeiros ricos estão prontos para um bang bang. Ele conversa com um camponês da sua idade que conta que está de partida para uma escola de formação política no sul. Se fala muito sobre a revolução e sobre o mundo insatisfatório. Quando ele viajou fazia um sol de matar no México. Ele seria estrangeiro em qualquer lugar, mas poderia cantar o hino da Internacional Socialista junto com os camponeses. Tinha um casal de amigos seus que morava por lá. Eles tinham sido muito perseguidos. Um camponês vestia um sombreiro para se proteger do sol e ele vestiu um também. O sombreiro do camponês do México é enfeitado com bordados. Quando entra no laboratório faz testes e testes antes de tirar a cópia. Olha as anotações e as tabelas de tempo de revelação antes de colocar o filme no tanque. Ele não para de revelar filmes e copiar fotos. Faz fotos na rua, fotos de seus amigos, de coisas bonitas e também de temas sociais. A primeira cópia fica uma merda, mas as outras são melhores. Ele vai até o bairro. Faz um calor abafado e céu de brigadeiro. No estúdio tudo é escuro. Ele só vê uma mesa com um sombreiro em cima. Tem uma mulher que pega alguns cartuchos de espingarda e uma foice para colocar sobre o chapéu. Ela queria colocar o martelo. Mas disse a ele que não tinha muitos martelos no México, e que melhor seria o milho e o violão. Ele traz o martelo. Os olhos dela eram agitados porque ele [ops ela, ato falho] não aceitava. Ele [ato falho novamente]... Ela faz a foto enquanto ele canta o hino da Internacional. *texto original de João Castelo Branco


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A palavra corta a fotografia No entre... Entre o que se pode ver e o que se pode dizer E o que se pode ver? O que se pode dizer? Que esta foto é uma homenagem de um pai para uma filha... entra Waiting and falling do Wandula (4:57) I’m waiting here at my place on my own planet a little bit out of space I’m waiting here desperating for sure take it the time the time it takes hell the time it takes until the fruit will ripe and fall and when you are falling don’t be afraid you’re not alone I’m falling too and when you are falling don’t be afraid I’m on your side In case you’ll ever fall in love I’m here to guide you straight into the Garden where we both would like to live


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O preto vai fechando o fotograma até desaparecer com parte da imagem. Restam: uma figura de sobretudo preto (talvez uma senhora), dois postes, algumas árvores secas, um edifício (possivelmente na Europa) e uma curva da rua. “Eu quero ver o que tem aí! Desejo imediato. Subam as cortinas, pois isto está me ferindo, os olhos doem e já estou doente! Doente de não ver, doente de ver este abismo absoluto que se impõe no que eu deveria estar olhando, faça o favor, não posso ficar assim, estou mal, a ansiedade me toma, não quero ficar com os restos, ok, o fotógrafo diz que felizmente existem os restos, pois que fique com eles e me devolva a fotografia inteira, ouviu? i n t e i r a. Porque eu não sou rato de laboratório, e não quero ser testado por ninguém, só estou querendo o meu direito de cidadão, básico: uma fotografia que mostre, sem esconder, daquelas que mostram mostrando, não que mostram escondendo, traga já aquilo que era visível porque eu sou um cara de coisas palpáveis, faça o favor! Devolva-me o olhar, tenho olhos para ver, não olhos para imaginar, ora pois, cada segundo a mais e este negrume me enche de imagens na mente, estou velho e não quero ficar com a cabeça ocupada, quero exercer meramente minha fisiologia, não banque o engraçadinho, cadê a foto que estava aqui? Merda! Devolva-me, eu quero ver, agora!”


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rprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprprpr Passos flamencos acelerados e em forma sequencial, lembrando uma engrenagem industrial ininterrupta.


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País Imaginário País Imaginário é uma proposição de Milla Jung sobre a potência das imagens contemporâneas no campo da arte. Partindo da pergunta de como se apreende uma fotografia, a artista cria um território para o espectador experimentar o sem-fim de possibilidades sobre a escuta das imagens. Uma fotografia que é acordada por uma narrativa que por sua vez também acorda novas imagens, numa via de mão única na qual a experiência primeira se perde em nome do multiplicável. Composta de dez textos em forma de áudios e uma biblioteca de livros de fotografia, a exposição/instalação foi especialmente produzida para o Museu da Fotografia Cidade de Curitiba, instituição que ocupa, no seio da cidade, um papel articulador de um sistema onde a visualidade é pensada como um processo de construção cultural, e que pode desse modo validar novos paradigmas sobre as concepções de realidade, reprodução e representação.

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ISBN 978-85-913286-0-4

9 788591 328604

Museu da Fotografia Cidade de Curitiba


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