Revista Nossa América - Nº 25

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Nossa

Revista do Memorial da América Latina

Nº 25-Ano 2007

AMERICA EDITORIAL

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Fernando Leça

DEPOIMENTO

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Oscar Niemeyer

ENCONTRO

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Marco do Valle

LINGUAGEM

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Maria Isabel Imbronito

ESTÉTICA

26 GOVERNADOR

JOSÉ SERRA SECRETÁRIO DE ENSINO SUPERIOR

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

REVISTA NOSSA AMÉRICA

Lauro Cavalcanti

PRIVILÉGIO

DIRETOR

FERNANDO LEÇA EDITORA EXECUTIVA /DIREÇÃO DE ARTE

LEONOR AMARANTE

33

Fernando Frank Cabral

COLABORADORA

ANA CÂNDIDA VESPUCCI

FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA CONSELHO CURADOR SECRETÁRIO DE ENSINO SUPERIOR (PRESIDENTE)

JOSÉ ARISTODEMO PINOTTI

CHEFE DE CRIAÇÃO

SERGIO KODAMA

REFERÊNCIA

TRADUÇÃO

CLÁUDIA SCHILLING ASSISTENTE DE EDIÇÃO

MÁRCIA FERRAZ

40

Luis Eduardo Borda

PRODUÇÃO - ESTAGIÁRIA SECRETÁRIO DE CULTURA

JOÃO SAYAD SECRETÁRIO DE DESENVOLVIMENTO

LUCIANA SANDRINI TRATAMENTO DE IMAGENS - ESTAGIÁRIO

JAKSON FONTES

PROPOSTA

ALBERTO GOLDMAN REITORA DA USP

COLABORARAM NESTE NÚMERO

SUELY VILELA SAMPAIO

COORDENADOR

REITOR DA UNICAMP

Castor Fernandez, Dalva Thomaz, Fernando Frank Cabral, Guilherme Wisnik, Lauro Cavalcanti, Luiz Claudio Lacerda, Luis Eduardo Borda, Marco do Valle, Maria Cristina Cabral, Maria Isabel Imbronito, Mário Castello, Nelson Kon, Percival Tirapeli, Rogério Randolph.

JOSÉ TADEU JORGE REITOR DA UNESP

MARCOS MACARI

46

Maria Cristina Cabral

Rodrigo Queiroz

DESAFIO

PRESIDENTE DA FAPESP

CARLOS ALBERTO VOGT ALMINO MONTEIRO ÁLVARES AFFONSO FERNÃO CARLOS BOTELHO BRACHER DIRETORIA EXECUTIVA DA FUNDAÇÃO MEMORIAL DA AMÉRICA LATINA

CONSELHO EDITORIAL

Aníbal Quijano, Bruno Aillon, Carlos Guilherme Mota, Celso Lafer, Davi Arrigucci Jr., Eduardo Chaves, Eduardo Galeano, Luis Alberto Romero, Luis Fernando Alencastro, Luis Fernando Ayerbe, Luiz Gonzaga Belluzzo, Oscar Niemeyer, Renée Zicman, Ricardo Medrano, Roberto Retamar, Roberto Romano, Rubens Barbosa, Ulpiano Bezerra de Menezes.

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Rodrigo Queiroz

LEGADO

DIRETOR PRESIDENTE

FERNANDO LEÇA CHEFE DE GABINETE

JOSÉ OSVALDO CIDIN VÁLIO DIRETOR DO CENTRO BRASILEIRO DE ESTUDOS DA AMÉRICA LATINA

ELIÉZER RIZZO DE OLIVEIRA DIRETOR DE ATIVIDADES CULTURAIS

FERNANDO CALVOZO DIRETOR ADMINISTRATIVO E FINANCEIRO

NOSSA AMÉRICA é uma publicação semestral da Fundação Memorial da América Latina. Redação: Av. Auro Soares de Moura Andrade, 664. CEP 01156 - 001. São Paulo, Brasil. Tel.: (11) 3823-4669. FAX: (11) 38234604. I n t e r n e t : h t t p : / / w w w . m e m o r i a l . s p . g o v . b r. E-mail: editor@memorial.sp.gov.br. Os textos são de inteira responsabilidade dos autores, não refletindo o pensamento da revista. É expressamente proibida a reprodução, por qualquer meio, do conteúdo da revista.

CTP, Impressão e Acabamento

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Percival Tirapeli

PARADIGMA

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Guilherme Wisnik

SÉRGIO JACOMINI capa: FOTO - LUIZ CLAUDIO LACERDA/ ROGÉRIO RANDOLPH / 360o


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EDITORIAL

O

scar Niemeyer reúne as singularidades características dos gênios.Por seu perfil incansável, pode-se dizer que ele está para a arquitetura como Pablo Picasso para as artes plásticas e Herbert von Karajan para a música. Nove meses antes de completar cem anos,o vigor mental ainda lhe permite continuar trabalhando e tentar viabilizar os projetos solicitados por outros países.Afinal todos querem ter em suas cidades a marca Niemeyer. Inventivo e originalíssimo,a ponto de,ainda jovem, impressionar Le Corbusier, reconhecidamente o grande mestre da modernidade, Niemeyer inscreve-se entre os maiores arquitetos do século, sobretudo pela ousadia. É com determinação e entusiasmo que ele conduz a sua vida pessoal e profissional. Esta, aliás, é que sintetiza seu perfil “artístico”: ”É a arquitetura livre e audaciosa que eu amo”.

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Niemeyer faz parte de uma primeira geração de profissionais que interpreta com sutileza as vanguardas européias e legitima a arquitetura brasileira no cenário internacional. Fez a Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro, que não apenas formou vários arquitetos cariocas da mesma época, como também influenciou os demais. A escola paulista se legitima depois, quando aquela já se espalha pelo Brasil e deixa sua marca definitiva na nova capital federal. Na obra A Apologia de Brasília, o arquiteto Farés el-Dahdah, da Universidade de Rice, de Houston, aponta que é justamente no uso das curvas que Niemeyer se revela mais radical e, assim, influencia e atrai uma nova geração de estudantes.A constante presença de Niemeyer no cenário da arquitetura contemporânea internacional, desde 1936 até os dias e hoje, os prêmios recebidos em mais de sete décadas e as


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Corbusier, e o jovem Rodrigo Queiroz desloca seu olhar para a igreja de São Francisco de Assis na Pampulha, segundo ele a primeira experiência efetiva de Niemeyer com a forma livre. Por sua vez, Maria Isabel Imbromito analisa como o arquiteto fecha a equação monumentalidade e programa e Luís Eduardo Borba investiga a interface das obras do arquiteto com a arte moderna. Por fim, o tema de Percival Tirapeli é o papel de Niemeyer como nosso patrimônio no sentido mais lato, no sentido figurado da riqueza moral, cultural e intelectual.

Fernando Leça Presidente da Fundação Memorial da América Latina

FOTO: NELSON KON

edições especiais de revistas de arquitetura que lhe foram dedicadas em diversos países reafirmam sua importância. Por tudo isso,temos o orgulho de dedicar a edição nº 25 da Revista Nossa América a esse grande mestre, cujo depoimento exclusivo abre a publicação que reúne artigos de especialistas em sua obra. Lauro Cavalcanti, diretor do Paço Imperial e curador da mostra Niemeyer 10/100 ainda em cartaz no Rio de Janeiro,aborda alguns projetos que Niemeyer desenvolveu nas duas últimas décadas. Fernando Frank Cabral, que trabalhou com o arquiteto na Argélia,analisa o projeto do Memorial,destacando o Auditório Simón Bolívar como uma das mais completas e bonitas obras de Niemeyer.Maria Cristina Cabral focaliza as propostas para museus e espaços expositivos, enquanto Marco do Valle, escreve sobre o papel do encontro de Niemeyer, Lúcio Costa e Le

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DEPOIMENTO

NIEMEYER

POR ELE MESMO “A VIDA É UM SOPRO, É UM MINUTO” OSCAR NIEMEYER

C

om a desenvoltura e a serenidade de sempre, Niemeyer fala à revista Nossa América sobre os temas de seu interesse. Menciona o papel da tecnologia no desenvolvimento da arquitetura, reafirma sua posição quanto à importância da educação na formação de uma nação sólida e igualitária e defende a luta dos povos latino-americanos por sua soberania. Entre reflexões sobre o passado e projeções para o futuro, Niemeyer revela uma certeza: o que importa é “criar um mundo mais feliz para todos”.

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FOTO: PEDRO RIBEIRO

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“Já se passaram tantos anos,mas confesso que o Memorial da América Latina é uma obra que fiz com muito empenho.Guardo boas lembranças das pessoas com quem trabalhei.O Quércia me chamou e foi muito gentil,me atendeu em tudo que eu pedi para desenvolver o projeto.Eu sugeri a presença do Darcy, Ribeiro, um velho amigo, que também mostrou muita dedicação. Depois apareceu Cecília Sharlach, outra amiga que ajudou muito, com igual interesse.E,hoje,vocês que estão concluindo a obra e adicionando novas idéias.De modo que eu tenho que agradecer a todos. Eu me lembro dos primeiros tempos,do início, foi difícil, uma correria. Lembro da mão que eu fiz lembrando o protesto da América Latina contra o império do Bush.De maneira que este trabalho me deixa boas lembranças.E feliz em saber que o projeto

continua. Uma obra sempre pode ser melhorada, como agora,o Memorial realizando eventos de sucesso,de modo que eu só tenho a agradecer. Já se passou tanto tempo,são tantos os projetos, que guardo uma vaga idéia de como estudei a biblioteca e os demais blocos.Lembro dos que colaboraram comigo, todos gentis, mas estou precisando rever o trabalho feito, não é? Projetei vãos grandes, generosos,mas a passarela tinha uma coluna,então, como eu queria manter o espírito,resolvi tirar a coluna.Mas ela já estava finalizada,e sendo usada,por isso o pessoal da obra dizia:“Vai ser difícil,o Quércia não vai entender,causa uma impressão ruim para o público”.Mas eu falei com ele e ele foi generoso.Disse:“Faz o que você quiser,tira a coluna se for preciso”.Foi uma coisa que nunca aconteceu,que eu me lembre, em uma obra que eu tenha trabalhado.Então

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FOTOS: LUIZ CLAUDIO LACERDA/ ROGÉRIO RANDOLPH / 360o

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Caminho Niemeyer, Niterói

escoramos a passarela,tiramos a coluna e criamos um elemento externo de sustentação. Realmente ficou melhor. E também no que se refere à mão: fiz um texto,expliquei a ele que América Latina sofria ameaças, sofre até hoje, agora mais do que nunca,de modo que deveria haver um elemento de protesto. Fiquei muito contente de poder fazer aquela mão,porque ela representa bem o sangue correndo no punho, a luta da América Latina para se manter soberana neste mundo de ameaças de sangue. APOIO VITAL O Quércia vinha me convocando para pedir o projeto e me lembro com prazer que ele sempre foi muito gentil, sempre dando apoio ao que a gente queria, de maneira que a obra correu sem problemas.Ele é uma pessoa que admiro,por isso foi um trabalho que realizei com prazer,ao lado de pessoas empenhadas em fazer o que é direito,com boa vontade,entusiasmo.E parece que a obra provoca isso que estou observando: interesse, como vocês também, querendo melhorar, acertar, implantar novas idéias,atrair mais gente.Eu agradeço muito a todos. GRANDE PARCEIRO Como eu tinha muito contato com o Darcy, ele vinha sempre ao escritório, era feito um irmão para mim.Ele tinha idéias demais,era preciso contêlo um pouco,mas sua participação foi muito útil;foi muito bom. Ele era tão inteligente, ele pensou em todos elementos que deveriam constituir o projeto.

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RESPOSTA ÀS CRÍTICAS O espaço faz parte da arquitetura,então,no caso do Memorial,eu queria o espaço maior,para as peças aparecerem melhor. Eu acho que era importante isso. Quanto às críticas, acho que o arquiteto deve fazer o que gosta e não o que os outros gostariam que ele fizesse. E à crítica não se responde, tanta bobagem junta, gente que não entende nada de arquitetura. Eu tenho por princípio não criticar colegas, respeito.Cada um tem a sua idéia,faz o que julga melhor.A única maneira de levar adiante um trabalho com interesse é com essa liberdade que o arquiteto precisa. Uma obra pública deve sempre mostrar o progresso da engenharia. Sempre explico bem esse ponto de vista. Explico como a arquitetura evoluiu, como os arquitetos da antigüidade não podiam fazer o que hoje nós fazemos. Lembro que para fazer uma cúpula, eles se limitavam a trinta, quarenta metros; hoje fiz a cúpula do Museu de Brasília com oitenta metros.Menciono até o arquiteto que fez o Palácio dos Dodges querendo fazer um vão maior sem meios.Conto como a arquitetura evoluiu.Quando,por exemplo, começaram a subir os prédios para reduzir as distâncias,o que resolveu o problema foi o elevador. São aspectos que interferem na arquitetura, que disso se apropria para poder caminhar. Falo de como surgiram estes novos centros de arquitetura vertical,a maioria deles péssimos,sem a distância lateral, horizontal de que necessitam. É engraçado que eu justamente lamento que a


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gente tenha que discutir arquitetura e ouvir tanta bobagem,é tão fácil explicar. O PAPEL DO CONCRETO A gente faz uma arquitetura especulando no concreto,e o prédio pronto surpreende.Uma obra de arte tem que provocar surpresa e emoção,caso contrário não representa nada, é repetição. De modo que a gente faz uma arquitetura assim, baseando-se na técnica com muito apuro, mas especulando nas estruturas. No momento, eu estou fazendo um museu para a Espanha.É um museu grande,com sala de exposições, um auditório enorme. Então, a arquitetura que a gente faz se difundiu. Há gente de fora pedindo projetos,agora também estamos fazendo para a Alemanha. ATENÇÃO À AMÉRICA LATINA A América Latina precisa de mais cuidados. Nós estamos em um momento de ameaças e não sabemos até que ponto a coisa chega na América do Sul.De modo que hoje nós temos falado de América Latina com mais freqüência,lembrando daAmazônia, do mundo de invasões que estamos vivendo. Eu acho que hoje, mesmo a palavra patriotismo a gente tem que usar com mais freqüência, a gente tem que crescer e ser patriota,não adianta se especializar em arquitetura, em engenharia ou medicina;é preciso que o jovem participe,estude filosofia,história,enfim,cresça sabendo que ele vai atuar em um mundo tão perverso que o espera. Temos feito durante muito tempo pressão

quanto a isso: adicionar ao ensino superior a noção de pátria,o mundo está muito ruim. EDUCAÇÃO PARA A VIDA Se você falar com um rapaz de Cuba, ele é politizado; mesmo na Europa os jovens têm aulas de literatura, mas também de política. Eles têm a consciência de que precisam defender o país,têm que estar ligados ao povo. Eu acho importante hoje,porque o ser humano é muito frágil,sempre receptivo,e este mundo em que nós vivemos não é nosso, nós apenas fazemos parte dele. Então eu acho que o caminho deve ser o mais simples, o que a gente faz não é tão importante assim, eu sempre digo que a vida é mais importante que a arquitetura.O importante é que no mundo sejam todos iguais,que as pessoas se dêem as mãos,que haja equilíbrio e solidariedade. Que você veja o outro. Não querendo descobrir defeitos, mas achando que todos têm um lado bom.Lenin dizia que “dez por cento de qualidades já é suficiente”. De modo que a educação deve levar o ser humano a compreender que nada é tão importante, o importante é criar um mundo mais feliz para todos.O importante é a vida,é viver. PASSADO E PRESENTE A gente pode voltar ao passado, recuperar referências antigas,mas o vocabulário mais prático hoje é o concreto, é com ele que a gente tem de caminhar.Deus cria todas as possibilidades para o arquiteto, que disso se utiliza para procurar uma arquitetura diferente. Mas, enfim, não critico cole-

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Memorial Juscelino Kubitschek, Brasília


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gas, eu acho que cada um faz o que deve fazer e deve fazer o que gosta. COLEGA PREMIADO Eu digo que Paulo Mendes da Rocha merece,aliás,existem muitos arquitetos bons no Brasil, cada um com sua proposta. O que vale é a modéstia, saber que nada é assim tão importante, a vida é um sopro, é um minuto. Não há razão, por exemplo, para achar que quem está lutando, protestando por um mundo melhor é mais importante do que eu com meu trabalho, porque o meu trabalho eu faço com muito empenho, na prancheta o dia inteiro. SOBERANIA REGIONAL No momento eu vejo que é preciso gente

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com a coragem do Chávez, que quer virar a mesa, fazer da América Latina soberana, sem problemas.O Lula,por exemplo,ele podia estar mais para a esquerda, poderia ser mais radical, mas pelo menos ele não atrapalha, ele concorda que a América Latina precisa de cuidados, que o pobre é pobre, que existe miséria; ele é um operário, de modo que está do lado do povo, isso eu acho importante. ARQUITETURA PARA TODOS São tantos prédios bem feitos, tantas cidades que crescem bem.Acho que falta à arquitetura é o conteúdo humano, ela precisava se dirigir a todos generosamente. Mas não: eu trabalho para quem? Trabalho para os governos,para a classe dominante. Pouca gente tem a oportunidade de fazer obras para


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FOTO: REVISTA ACROPOLE - N0 256

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o povo. Então, um dia a arquitetura será mais simples, será distribuída igualmente a todos. Mas os grandes construtores, de caráter coletivo, por contraste serão maiores, os teatros serão maiores, o povo todo irá participar de uma maneira mais intensa. Agora, a habitação, esta sim será mais simples,mas todos vivendo decentemente;o caminho da arquitetura é esse. Outra questão, é que tudo muda também em função da técnica que aparece, que permite espaços maiores,soluções diferentes, as cidades crescendo de forma controlada. Não é o caso de cidades como Brasília,que é uma cidade símbolo, a capital do país. Mas as cidades modernas vão crescer separadas das demais, e crescer aos poucos, outras vão surgir envolvidas por

Oscar Niemeyer e Lucio Costa

grandes espaços livres. É idéia, e as idéias são difíceis de se realizar.Você faz uma cidade,ela cresce, vai se degradando,a circulação é ruim... CIDADES IDEAIS As cidades menores, eu acho que funcionam melhor,mas caso cresçam têm de obedecer a um limite de densidade.Outras cidades que venham a surgir próximas, não devem crescer indefinidamente, devem garantir a circulação, e implantar seus estacionamentos na periferia. Como já disse,é difícil fazer uma cidade. BRASÍLIA E RIO Brasília apresenta aspectos bastante positivos, as habitações estão próximas das

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escolas, próximas do comércio local, de modo que a vida lá é mais organizada. Sabe: eu gosto é do Rio, desta esculhambação, assalto, tudo isso. Mas se você perguntar para qualquer habitante de Brasília, eles não querem sair, eles querem ficar lá, eles gostam. ARBORIZAR OU NÃO Quando a arquitetura deve ser exibida de uma maneira mais importante, não se pode arborizar a praça. O importante é ver um prédio, e o outro ao lado, afinal eles foram estudados para serem vistos em conjunto. Às vezes, eu me irrito e falo: “Olha quer botar árvore vá para o jardim botânico”.

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PRESERVAÇÃO DA PAISAGEM O Memorial é assim, se vê o conjunto, não um prédio e depois o outro, mas o conjunto. Eu sempre digo, o espaço faz parte da arquitetura. É engraçado que a arquitetura é tão simples, e a gente escuta tanta bobagem. Tem gente que, às vezes, me pergunta:“Oscar, como você fez o museu de Niterói?” É tão fácil, eu cheguei, havia o terreno, o mar em volta, as montanhas do Rio em frente, era um espetáculo magnífico. Portanto, tinha que se preservar a vista. Então, eu subi o edifício. Aí, tem gente que vai lá ver e depois pergunta: “Por

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Auditório Ibirapuera, São Paulo

que você subiu o edifício?” Não imaginam, não sabem que foi por isso, e é uma questão tão simples. CONVICÇÕES FIRMES Agora o arquiteto tem que ter convicção, medir às vezes uma coisa que ele sabe que é radical de mais, que é difícil fazer. Por exemplo: fui a Havre, na França. O prefeito me mostrou o terreno, queria uma praça, eu olhei a área e disse:“Eu queria afundar a praça quatro metros”. Ele me olhou espantado, nunca ninguém havia pedido para afundar uma praça, e uma praça onde havia um teatro. Mas ele rebaixou, e eu tinha razão, pois ela está à beira-mar e eu queria protege-la dos ventos e

do frio. Então a praça foi tombada, e hoje está muito bonita, é conhecida, e elogiada. De modo que nós temos que ter coragem de pedir, e exigir, não é? Caso contrário, não poderemos fazer. Depoimento prestado a Fernando Leça, presidente do Memorial da América Latina, e Mário Lima, gerente do departamento de Comunicação do Memorial

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ENCONTRO

NIEMEYER LÚCIO COSTA E CORBUSIER EM TEMPOS DE PROFUNDAS MUDANÇAS MARCO DO VALLE

O

encontro de Oscar Niemeyer com a obra e a pessoa de Le Corbusier, em 1936, deu-se em meio a um complexo processo de modernização da arquitetura brasileira, já em curso desde a primeira visita de Le Corbusier ao Brasil. Coincidentemente, nesse mesmo ano de 1929 Oscar Niemeyer matriculava-se na Escola Nacional de Belas Artes, do Rio de Janeiro. Segue-se um período de profundas mudanças:

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Casa sem dono, Lucio Costa. COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995.p.89

Casa Schuwartz, Warchavchik e Lucio Costa COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995. p. 77

com a Revolução de 1930, tomava o poder Getúlio Vargas,criando o Ministério da Educação e Saúde, cujo chefe de gabinete, Rodrigo Mello Franco de Andrade, nomeara em 8 de dezembro de 1930 o arquiteto Lúcio Costa como diretor, com plenos poderes para reformular a Escola Nacional de Belas Artes.A experiência renovadora implantada por Lúcio Costa duraria até setembro de 1931,quando ele foi exonerado do cargo, sob protesto dos estudantes, que iniciaram uma greve.[01] Segawa, p. 79.Ainda em 1931, Lúcio Costa irá associar-se ao arquiteto Gregori Warchavchik, com quem manterá escritório até 1933. Nesse período sabemos que Oscar Niemeyer, a partir do terceiro ano da escola, irá trabalhar no escritórioWarchavchik-Lúcio Costa como desenhista.A sociedade de Warchavchik e Lúcio Costa foi prejudicada pela crise econômica de 1929,como também pela revolução constitucionalista de São Paulo em 1932. Lúcio Costa

então terá um escritório com o arquiteto Carlos Leão,no período de 1933 a 1936.Curiosamente, Oscar Niemeyer mantém eclipsado em suas memórias o período de trabalho no escritório de Warchavchik-Lúcio Costa, referindo-se diretamente ao período em que trabalha no escritório de Lúcio Costa-Carlos Leão. Relata Niemeyer:“E apesar das minhas dificuldades financeiras preferi trabalhar, gratuitamente, no escritório do Lúcio Costa e Carlos Leão,onde esperava encontrar respostas para minhas dúvidas de estudante de arquitetura”.[02] Niemeyer,p.42. Oscar Niemeyer recebeu seu diploma de engenheiro arquiteto na Escola Nacional de Belas Artes em 1934. A partir de 1935, seu primeiro ano de formado,iniciou sua vida profissional,ainda nesse mesmo escritório.No mesmo ano, o anteprojeto dos vencedores do concurso da nova sede do Ministério da Educação e Saúde, Archimedes Memória e Francisque Cuchet, que

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propunham um projeto de ornamentação marajoara, tinha sido preterido por Gustavo Capanema, que, por arbítrio pessoal, decidiu desprezar o resultado do concurso, chamando Lúcio Costa em setembro de 1935 para projetar a nova sede do ministério. “Lúcio Costa não tomou o encargo apenas para si. Convocou os arquitetos que haviam apresentado anteprojetos

modernos no concurso para formarem uma equipe sob sua chefia: Affonso Eduardo Reidy, Carlos Leão e Jorge Moreira.Ernani Vasconcellos reivindicou um lugar por ser assistente de Moreira e Oscar Niemeyer fez o mesmo, pelo lado de Lúcio Costa.Assim organizado o grupo passou a desenvolver o novo projeto.”[03] Segawa, p. 89.Temos hoje a impressão de que o

Casa de Álvaro Osório de ALmeida, Lucio Costa. COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995. p. 103

Clube Esportivo, Oscar Niemeyer. Revista da Diretoria de Engenharia da Prefeitura do Distrito Federal (s/d)

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Ministério da Educação e Saúde foi mais importante do que a Cidade Universitária para o projeto do ministro Gustavo Capanema.No entanto,o principal projeto do Ministério da Cultura e de seu ministro era o projeto da Cidade Universitária, que quase se confundia com o planejamento de seu ministério, segundo Shwartzman. Capanema institui, em 1935, uma comissão e um “escritório do plano da universidade”, ao mesmo tempo em que mantinha a idéia contratar o arquiteto italiano Marcello Piacentini, autor da Cidade Universitária de Roma, orgulho do regime fascista. Piacentini acaba aceitando vir por um curto período, apesar das insistências de Capanema de que necessitaria de mais tempo.“Chega ao Rio de Janeiro em 13 de agosto de 1935,com a passagem paga pelo governo italiano e um pequeno honorário do governo brasileiro. Retorna no dia 24 do mesmo mês, deixando a promessa de voltar no fim do ano com um auxiliar, quando então pretendia executar os planos completos e as maquetes do grande projeto.”[04Shuwartzman,p.97.


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Plano urbanístico do Rio, Le Corbursier. PEREIRA, Margareth Campos da Silva; PEREIRA, Romão Veriano da Silva; SILVA, Vasco Pereira da; SANTOS, Cecília Rodrigues dos. Le Corbusier e o Brasil. São Paulo. Tessela/Projeto, 1987. p.94

A essa altura, contudo, uma pequena tempestade já se armava. Uma carta do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura do Rio de Janeiro ao ministro estranhava o convite ao arquiteto italiano,lembrando o decreto de 1933, que vedava aos estrangeiros o exercício de profissões liberais no país.“Lúcio Costa,consultado a respeito de Piacentini por Capanema, emitiu um parecer contrário à atribuição do projeto ao arquiteto italiano, submetendo à apreciação do ministro o nome de Le Corbusier como contrapartida.Gustavo Capanema acolheu a sugestão e tomou as providências para trazê-lo ao Brasil.O convite a Le Corbusier para uma série de conferências no Rio de Janeiro foi um álibi para que o arquiteto franco-suíço viesse para uma consultoria sobre o projeto da sede do MES e da Cidade Universitária do Brasil (CUB),sem afrontar diretamente a legislação que vedava o exercício profissional de estrangeiros no país.”[05] Segawa,p.90. O encontro físico da equipe brasileira de arquitetos com Le Corbusier, em sua segunda viagem ao Brasil, é relatado por Carlos Leão, em uma entrevista de junho de 1981:“A 13 de julho de 1936, todos os arquitetos do projeto do

Ministério se acotovelavam no hangar do Zeppelin,situado a quarenta e cinco quilômetros do centro do Rio de Janeiro. A péssima aterrissagem do engenho preocupou os arquitetos,mas Le Corbusier foi o primeiro a descer e imediatamente pôs os arquitetos a trabalhar.”[06] Harris, p. 80. Lúcio Costa, neste primeiro encontro com Le Corbusier,tem a missão de informá-lo corretamente sobre seu papel e sobre quem realmente o havia convidado. Niemeyer relata em suas memórias o seu primeiro encontro descrevendo Le Corbusier:“Mas o primeiro contato que tivemos foi em 1936 no Rio, quando, pressionado pelo Lúcio, Gustavo Capanema, ex-ministro da Educação,resolveu convocá-lo para uma série de palestras. Tarefa que, revoltado contra a incompreensão que o cercava profissionalmente,aflito para demonstrar seu talento, Le Corbusier converteu logo em dois novos trabalhos, a sede do Ministério da Educação e Saúde e a Universidade de Mangueira. Naquela época ainda caminhávamos na periferia da sua arquitetura. Tínhamos lido sua obra excepcional como sagrado catecismo,mas ainda não estávamos,como se verificou, integrados nos seus segredos e minúcias” [07]

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MESP. LISSOVSKY, Maurício e MORAES DE SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (19351945). Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/FGV/CPDOC, 1996. p.65

Projeto da Argélia, projeto urbanístico de Le Corbusier. BOESIGER, Willy. Le Corbusier 1910-1965. Barcelona, Gustavo Gili, 1971. p.328

MESP. LISSOVSKY, Maurício e MORAES DE SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (19351945). Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/FGV/CPDOC, 1996. p.112

MESP. LISSOVSKY, Maurício e MORAES DE SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (19351945). Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/FGV/CPDOC, 1996. p.115

LISSOVSKY, Maurício e MORAES DE SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945). Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/FGV/CPDOC, 1996. p.155

Niemeyer, p. 90. É significativo lembrar que este primeiro encontro de Niemeyer com Le Corbusier não foi um encontro direto,mas intermediado por Lúcio Costa. Niemeyer já havia publicado seu primeiro projeto,“Clube Esportivo”, realizado no último ano da Escola Nacional de Belas Artes em 1934, o qual está ligado às experiências modernas de Lúcio Costa, especialmente o projeto da Casa de Osório de Almeida. Quando foi perguntado a Lúcio Costa se Le Corbusier achava Niemeyer um jovem promissor,respondeu afirmando a condição de Oscar Niemeyer como um tímido desenhista talentoso e aprendiz interessado. Havia uma diferença substancial entre a trajetória percorrida por Lúcio e Oscar no período que separa a primeira da segunda visita de Le Corbusier. Lúcio vivia um momento em que, apoiado por sua equipe,tinha amadurecido seus conhecimentos e estudado a arquitetura internacional no período anterior, que denominou de “chômage”. À frente de uma equipe de arquitetos modernos, já havia concluído o projeto do MESP.Esse desenvolvimento pessoal não foi fácil para o arquiteto, mas revelou-se fundamental para os caminhos da arquitetura brasileira,pois o caminho da modernização de nossa arquitetura e a escolha pelo “modernismo” de Le Corbusier e dos CIAMs foram cristalizados a partir deste segundo encontro. Abandonou o “Neocolonial” em 30 por descontentamento e chegou ao segundo encontro, conforme Katinsky:“Eis por que consideramos o encontro do arquiteto Lúcio Costa com a obra e a pessoa de Le Corbusier como a identificação de problemas comuns e

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posturas éticas comuns, encontro de artistas maduros e não de discípulo canhestro e mestre inquestionável,antes descoberta de uma“co-naturalidade”, como dizem os pensadores medievais. E sua defesa intransigente do grande mestre franco-suíço,além de ser uma questão de elementar justiça, não deve obscurecer o fato de que sua aceitação das teorizações de Le Corbusier nunca foi cega.” [08] Katinsky,p.22-23.Das qualidades e do amadurecimento de Lúcio Costa parece ter dependido o sucesso do processo e a forma como os arquitetos brasileiros se encontraram com Le Corbusier e com ele se relacionam a partir de então, dando uma direção ao futuro da arquitetura brasileira.Niemeyer partirá definitivamente para a compreensão da arquitetura corbusiena. Quem era Le Corbusier em sua segunda viagem ao Brasil? - “Os primeiros cinco anos da década de 30 foram de intensa atividade. Com a Ville Savoye já em obras,Le Corbusier partiu para a planificação do Pavilhão Suíço, dos prédios de apartamentos Immeubles em Paris e de duas residências de fim-de-semana. A esse tempo, começava a integrar materiais texturizados à sua arquitetura, contrastando superfícies polidas e brilhantes.” [09] Harris, p. 38. Outra maneira de ver essa produção é considerá-la pequena e não patrocinada pelo Poder Público, comparando-a com o conhecimento teórico do arquiteto.“A Le Corbusier, suíço de nascimento e formado por pequena faculdade em sua região natal, nada mais restava senão pequenas encomendas de amigos intelectuais – residências de veraneio ou ateliers, no campo ou arredores de Paris. Até


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1936, ano de sua vinda para ser o consultor do plano da sede do MESP, Le Corbusier havia construído, além de oito pequenos projetos na Suíça – dos quais cinco em sua pequena cidade natal –, doze residências em Paris e subúrbio parisiense, uma residência e o conjunto de Péssac no interior francês.”[10] Cavalcanti, p.71. O que importava é que até 1936 Le Corbusier já havia produzido todo um sistema arquitetônico e urbanístico.“Depois de 1933, o urbanismo ganhou precedência em Le Corbusier,embora planos e mais planos fossem rejeitados. Os projetos da Argélia ocuparam Le Corbusier de 1931 a 1942,e seus outros planos de renovação urbana tiveram o ponto de partida na reunião do CIAM,em 1933,que produziu a “Carta de Atenas”.[11] Harris, p. 39. Os desdobramentos entre os projetos realizados no período anterior à chegada de Le Corbusier, em sua presença e posteriormente à

MESP. LISSOVSKY, Maurício e MORAES DE SÁ, Paulo Sérgio. Colunas da Educação: a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945). Rio de Janeiro: MinC/IPHAN/FGV/CPDOC, 1996. p.155

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sua partida formam um conjunto de projetos em que fica explícito tanto o aprendizado do repertório corbusieano como as novas questões suscitadas para uma arquitetura moderna brasileira. Foram muitos os projetos desenvolvidos:1.O projeto para o MESP,desenvolvido antes da chegada de Le Corbusier pela equipe brasileira, posteriormente denominado de “Múmia”. 2. O projeto de Le Corbusier do MESP, para a Praia de Santa Luzia. 3. O projeto de Corbusier para o espaço previsto no Castelo. 4. O projeto da equipe brasileira posterior à partida do mestre Corbusier, o qual foi construído. 5. O projeto de Le Corbusier para a Cidade Universitária do Brasil. Por fim, 6. O projeto de Lúcio Costa para a Cidade Universitária do Brasil. Ao analisar detalhadamente, em nosso interesse,cada um dos projetos realizados com a presença de Le Corbusier no Brasil em 1936, as reformulações destes pelas equipes brasileiras, podemos perceber um conjunto de repertórios e procedimentos que estarão presentes nos desdobramentos de cada um desses arquitetos. Salientamos especialmente os repertórios de Lúcio Costa e de Niemeyer, este extremamente marcado pelos procedimentos formais da arquitetura corbusieana:1.O conceito de “leveza de nossa arquitetura”, comparada à de Le Corbusier, determinado pela duplicação do pédireito e por diferentes diâmetros dos pilotis, resultado de parceria entre Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. 2. A incorporação à arquitetura de Niemeyer das pesquisas técnicas sobre o concreto armado, desenvolvido inicialmente junto ao engenheiro Emílio Baumgart, um dos pioneiros brasileiros da vanguarda internacional dessa técnica. 3.A utilização do “pano de vidro”e do brisesoleil. 4. O “volume trapezoidal” do auditório e sua interpenetração com o corpo do salão de exposições do MESP serão um procedimento recorrente na obra de Niemeyer. 5. Os azulejos portugueses serão sempre utilizados em sua obra, como também as referências às “palmeiras”,imperiais ou não.6.As formas cubistas referentes à maquinaria e “transatlânticos”de Le Corbusier estão presentes de maneira ambígua no MESP, pois os volumes do último piso podem ser lidos como transatlânticos “Capanemaru”, mas os do térreo são referências diretas às formas biomórficas de Hans Arp (18881966). 7. A praça da CUB, projetada por Lúcio Costa e desenhada por Niemeyer, formando grandes perspectivas influencia os grandes eixos visuais sobre Niemeyer e os eixos fenomênicos de Lúcio Costa.8.A praça da CUB de Lúcio Costa, com o edifício da reitoria, consideramos uma

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referência indiscutível ao Congresso Nacional de 1958, incluindo a “cúpula do planetário”. 9. O auditório da Aula Magna da CUB de Lúcio Costa será uma referência direta ao Teatro Municipal de Belo Horizonte (1943). 10.A “espiral de ângulos retos” do Museu do Conhecimento (1936) da CUB, de Le Corbusier, não foram incorporados ao repertório de Niemeyer a não ser com “espiral em curvas”na pequena Capela do Palácio do Alvorada (1957). Nestes pontos elencados notamos as diferenças dessa filiação, que se encontram na reinvenção e criação de novas concepções conceituais e formais. No caso de Niemeyer,estão acrescidas de um procedimento de redesenho e invenção formando um repertório próprio. Quando se perguntou a Lúcio Costa se a estadia de Le Corbusier no Brasil teria trazido algum benefício para ele mesmo, respondeu: “Bem,com aquela sensibilidade terrível dele,em qualquer país que fosse,sempre absorvia alguma coisa.A riqueza dele era exatamente essa – era sensível ao regionalismo e era cosmopolita ao mesmo tempo. De modo que era uma pessoa muito rica”.[12] Costa,p.146. Marco do Valle é artista plástico, arquiteto pela FAU/USP, mestre em artes pela ECA/USP, doutor em arquitetura pela FAU/USP com a tese Desenvolvimento da forma e procedimentos de projeto na arquitetura de Oscar Niemeyer (19351998) e professor e pesquisador em artes e arquitetura no Instituto de Artes da Unicamp.

BIBLIOGRAFIA 01.SEGAWA,Hugo.Arquitetura no Brasil 1900-1990.Editora da Universidade de São Paulo:São Paulo,1997,p.79. 02. NIEMEYER, Oscar. As Curvas do Tempo - Memórias/Oscar Niemeyer. Editora Revan: Rio de Janeiro, 1998, p. 42. 03.SEGAWA,Hugo.Idem,ibidem,p.89. 04. SHUWARTZMAN, Simon; BOMNEY, Maria Bousquet; e COSTA, Maria Ribeiro. Idem, ibidem, p. 97. 05.SEGAWA,Hugo.Idem,ibidem,p.90. 06. HARRIS, Elizabeth Davis. 1987. Le Corbusier: Riscos Brasileiros. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa e Antonio de Pádua Danesi. São Paulo, Nobel, p. 80. 07. NIEMEYER, Oscar. As Curvas do Tempo - Memórias/Oscar Niemeyer.Editora Revan;Rio de Janeiro,1998,p.90. 08. KATINSKY, Julio R. In GOROVITZ, Matheus. 1993. Os Riscos do Projeto: Contribuição à Análise do Juízo Estético na Arquitetura. São Paulo/Brasília,Studio Nobel/ Editora Universidade de Brasília,p.22-23. 09. HARRIS, Elizabeth Davis. 1987. Le Corbusier: Riscos Brasileiros. Trad.Gilson César Cardoso de Sousa e Antonio de Pádua Danesi.São Paulo,Nobel,p.38. 10.CAVALCANTI,Lauro.Preocupações do Belo.EditoraTaurus:Rio de Janeiro,1995,p.71. 11. HARRIS, Elizabeth Davis. 1987. Le Corbusier: Riscos Brasileiros. Trad.Gilson César Cardoso de Sousa e Antonio de Pádua Danesi.São Paulo,Nobel,p.39. 12. COSTA, Lúcio. 1987.“Presença de Le Corbusier”, in Lúcio Costa: Registro de Uma Vivência.Ibidem, p.146.


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LINGUAGEM

M

ONUMENTALIDADE &PROGRAMA

SURPRESA, NOVIDADE, INVENÇÃO MARIA ISABEL IMBRONITO

A

arquitetura de Oscar Niemeyer é freqüentemente associada às palavras surpresa, novidade, invenção. O arquiteto comumente confirma a preocupação em desvincular de sua arquitetura características que nos remetem aos edifícios que conhecemos, de romper com a linguagem sedimentada em nossa memória, e propor algo novo. 21


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Congresso Nacional, 1957 - Croqui. Fonte: CORONA, 2001: 751.

Bolsa do Trabalho de Bobigny, 1972 - Croqui. Fonte: Revista Módulo, 1976: 41

Catedral de Brasília, 1959 - Croqui. Fonte: Revista AU, 1987: 48

Sede do Partido Comunista Francês, 1967 - Croqui. Fonte: CORONA, 2001: 125

Centro Cultural Le Havre, 1972-1983 - Croqui. Fonte: NIEMEYER, 1999: 104

Esta característica da obra de Oscar Niemeyer é evidente.Sua consagração advém do pleno acerto do traço, da força calculada da forma,carregada de uma sabedoria que se traduz em algo que chamaríamos de belo. Entretanto, o fato de serem suas obras de tal modo impactantes e belas tende a ofuscar ensinamentos simples e preciosos sobre arquitetura. Muito além da surpresa que possam causar por sua concisão e abstração, Oscar Niemeyer projeta edifícios.Deste ponto de vista,a materialidade da construção está contemplada,bem como a relação entre forma,programa e estrutura. No conjunto arquitetônico da Pampulha, projetado na primeira metade da década de 40, os edifícios em volta da lagoa surgem como uma profusão de formas e combinações de materiais que inundam os sentidos. Esta exuberância permite, ainda neste momento, revelar a materialidade da construção tal como a conhecemos. Ou seja, os materiais utilizados como revestimentos estabelecem uma ligação entre as formas recém apresentadas ao nosso imaginário e o ambiente construído que nos era familiar. De modo não menos importante, participam desta

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percepção elementos do ambiente natural: céu, água, ar, vegetação, e também as obras de arte aplicadas à arquitetura, que guardam certa relação com a figuração. A revisão crítica pela qual passa Oscar Niemeyer a partir da segunda metade dos anos 50 termina por destituir de suas obras os tratamentos superficiais abundantes e a profusão de formas combinadas, na tentativa de evidenciar a idéia fundamental de cada projeto. Conforme escreve em seu texto intitulado Depoimento, de 1958: “(...) passaram a me interressar as soluções compactas, simples, geométricas; os problemas de hierarquia e de caráter arquitetônico; as conveniências de unidade e harmonia entre os edifícios e, ainda, que estes não mais se exprimam por seus elementos secundários, mas pela própria estrutura, devidamente integrada na concepção plástica original.” Se, por um lado, perde-se a exaltação dos sentidos, proporcionada por granitos, cerâmicas, madeiras, e a alegria que estes espaços proporcionam,Oscar Niemeyer passa a buscar em seus projetos a forma concisa,que atenda a dimensão


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FOTO: NELSON KON

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monumental e simbólica que advém do enfrentamento da questão do “caráter” arquitetônico a que o arquiteto se refere. Nos projetos que seguem estas diretrizes,sob a força do traço original, apresenta-se uma estratégia de hierarquia das formas e de acerto dos programas,com disposições que exaltam alguma parte do programa em detrimento de outras, preservando em programas complexos a boa solução das plantas e implantações. Isto pode ocorrer dentro de um mesmo projeto, na complementaridade do embasamento com a forma principal em destaque,mas também na articulação de diferentes volumes que compõem um conjunto arquitetônico maior.É justamente esta hierarquia clara que permite preservar a forma pura e garante a limpeza das plantas, ao mesmo tempo em que o aspecto funcional dos edifícios é atendido de modo muito eficiente. Um exemplo adequado para ilustrar este procedimento é o edifício para o Congresso Nacional de Brasília, de 1958. O edifício está disposto sob uma plataforma,cujo piso é uma praça de onde emergem duas calotas.Contido na base do volume/plataforma, o edifício é implantado

em cota rebaixada com relação às vias laterais e, assim, discretamente eliminado das visuais, graças ao trabalho de terrapleno que estabelece a laje da praça e suas cúpulas em nível com a Esplanada dos Ministérios.A leitura da planta do nível sob a praça revela a articulação entre as Câmaras dos Deputados e Senadores. A planta tem uma gênese muito simples: um hall central, uma Câmara de cada lado, e uma galeria generosa de circulação ao fundo,que conecta tudo.As calotas que emergem da laje, acima, não são assimiladas como algo que possa abrigar um programa, mas como elementos totalmente abstratos e repletos de significados, o que exprime bem a preocupação de Niemeyer com as questões de “caráter arquitetônico” a que o arquiteto se referiu em seu Depoimento. Estas soluções de projeto, nas quais o embasamento permite o funcionamento de edifícios que afloram puros, são aplicadas por Oscar Niemeyer em inúmeras circunstâncias,de objetos arquitetônicos mais simples até programas mais complexos. No Centro Cultural que ocupa uma quadra em Le Havre (1972), o embasamento toma a forma da praça desenhada

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Congresso Nacional


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FOTOS: REVISTA MÓDULO - 1975

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Sede do Partido Comunista Francês

em dois níveis. A parte central rebaixada da quadra permite acesso no nível inferior aos dois troncos de edifícios, que emergem em meio às formas sinuosas da praça,e que abrigam o teatro e auditório em um volume, e a sala polivalente em outro. Questões de acessos secundários, de carga, são resolvidos de modo direto e independente pela simples duplicação do nível de piso da praça. O arquiteto atinge um projeto de pronunciada expressão, que é obtida com pleno domínio da forma associada à simplicidade das organizações em corte e planta, que comovem por sua obviedade e clareza. Nos projetos de Niemeyer caracterizados por um único volume puro e de perfil contínuo, muitas vezes conseqüência da extrusão radial do corte,o forte elemento arquitetônico obtido não é imediatamente assimilado como abrigo de um programa possível. Estes projetos freqüentemente recorrem a um embasamento generoso para conter os usos incompatíveis com o dese-

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nho do objeto uniforme que se pronuncia,e que exercem também o papel de desenhar os percursos de chegada e contemplação e construir o afastamento necessário para a apreensão do objeto arquitetônico na paisagem. Poderíamos mencionar como exemplares notáveis o Museu de Niterói e a própria Catedral de Brasília. Programas mais extensos permitem melhor análise do enfrentamento dos problemas de hierarquia das formas, que passa a ocupar Oscar Niemeyer conforme sua citação em Depoimento. Além da separação e distinção embasamento/objeto aflorado, na qual o embasamento tem papel menor na composição, surge o problema de hierarquia entre elementos distintos. Alguns projetos que trazem esta situação são a Sede do Partido Comunista Francês (1965) e a na Bolsa do Trabalho de Bobigny (1972).Em ambos,nota-se a existência de uma grande área compartimentada para uso de escritórios, além da presença


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Bolsa do Trabalho, Bobigny

de um plenário/auditório, tratado como espaço de exceção. O volume construído que acomoda a área compartimentada do programa assume expressão neutra e funciona como pano de fundo ao elemento escultórico, cujo interior abriga o espaço extraordinário, com grande efeito de contraste. O embasamento continua a exercer o papel fundamental de articulação entre os volumes, construindo a relação entre o edifício e o entorno ou paisagem e definindo os acessos e os itinerários, que podem assumir ar solene ou conduzir a fruição do usuário. Através do redesenho de uma porção do terreno, Oscar Niemeyer promove passeios arquiteturais, construindo tanto a aproximação ao edifício quanto o afastamento necessário à apreensão da própria arquitetura.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: CORONA, Eduardo. Oscar Niemeyer: uma lição de arquitetura.Apontamentos de uma aula que perdura há 60 anos. São Paulo: FUPAM, 2001. NIEMEYER, Oscar. Meu sósia e eu. Rio de Janeiro: Revan, 1999 (2ª ed.). Revista AU.Arquitetura e Urbanismo, n.15, dez 1987 / jan 1988. Revista Módulo n.43, jun/jul/ago 1976.

NOTA NIEMEYER,Oscar.Depoimento.Rio de Janeiro:Módulo,pp.3-6,1958.

Maria Isabel Imbronito, arquiteta, mestre e doutoranda pela FAU-USP.

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ESTÉTICA

ALGUNS PROJETOS DAS DUAS ÚLTIMAS DÉCADAS

PLENO USO DA FORMA LIVRE LAURO CAVALCANTI

Interior da Oca, Ibirapuera, São Paulo

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FOTO: NELSON KON

O

scar Niemeyer pertence à segunda geração moderna do século XX. Nascido em 1907, no Rio de Janeiro, foi o primeiro arquiteto a antever o esgotamento do princípio racionalista de que a forma deveria estar subordinada à função. Nos projetos que realiza para o Conjunto da Pampulha, em 1942 e 1943, introduz curvas e formas escultóricas. A forma livre se transforma no principal elemento de uma obra que amalgama arquitetura, arte, tecnologia e paisagismo, explorando


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o uso ilimitado das potencialidades plásticas e estruturais do concreto armado. O arquiteto brasileiro apontou rumos alternativos à burocracia estética que rondava o modernismo através de uma linguagem pessoal que confrontou o racionalismo do interior do próprio movimento moderno, e demonstrando novas possibilidades de o modernismo lidar com formas provenientes da estreita relação entre arquitetura e estrutura. De 1984 a 2007 ,a importância,qualidade e distribuição geográfica de suas obras notabilizariam qualquer jovem arquiteto que as realizasse. No caso de Niemeyer reforçam a sua brilhante trajetória reafirmando princípios e apostando na ousadia,liberdade e saber tecnológico. Foram 187 projetos concebidos e 65 realizados, entre os quais os Centros Integrados de Educação Popular (CIEPS, Estado do Rio, 1984), o Panteão Tancredo Neves (Brasília, 1984), o Espaço Lucio Costa (Brasília, 1992), o Conjunto do Memorial da América Latina(São Paulo,19881989), o Museu de Arte Contemporânea de Niterói (1993-1996),o Museu de Curitiba (Paraná, 1963-2003) o Centro Administrativo do Governo de Minas (2003) e o Caminho Niemeyer em Niterói (1999-2004). Em 1984 o Brasil fervilhava com a campanha pelas Diretas Já que tomara a rua das principais capitais e terminou em mega-comício na Candelária, Rio de Janeiro, reunindo no palanque impressionante arco de oposicionistas e no asfalto mais de um milhão de pessoas. No ano anterior novos governadores haviam assumido através do voto popular e Niemeyer retornara definitivamente ao país, após longo período de exílio na França, idas e vindas ao Brasil e atividades intensas em vários países da Europa e África do Norte. Em 1983 realiza a primeira grande exposição de seu trabalho no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro e inaugura a Passarela do Samba. Entusiasmado com a nova situação do país e,particularmente, com a ação de seu amigo Darcy Ribeiro, vicegovernador da gestão de Leonel Brizola no Estado do Rio de Janeiro, Niemeyer produz o projeto-símbolo daquele governo: os centros integrados de educação –Cieps-, popularmente conhecidos como “Brizolões”.As escolas de educação integral almejavam apoiar integralmente o aluno. De manhã aulas, à tarde estudo, atividades físicas, culturais e atendimento médico. Era igualmente esperado que o novo espaço introduzisse novos hábitos e aumentasse a autoestima do estudante. O projeto do CIEP foi a primeira experiência do arquiteto em padronização de arquitetura. A questão da reprodutibilidade está intimamente ligada a programas populares e à habitação de

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baixa renda, tomada como um dos objetos principais dos modernistas no sentido de fornecer uma justificativa ética ao movimento que abolira ornamentos não apenas por motivos estéticos mas para permitir resolver, em grande escala, o problema da morada popular.De acordo com Le Corbusier, todos os programas de construções do século vinte estavam nas mãos dos engenheiros,exceto aquele relativo à casa popular. Propunha que os arquitetos a elegessem como o objeto principal e justificativa ética de sua atuação profissional. Comunista, Niemeyer sempre se recusou a adotar o tema da habitação popular como carro-chefe e justificativa do movimento moderno.A casa deveria ser uma só

FOTO: LUIZ CLAUDIO LACERDA/ ROGÉRIO RANDOLPH / 360o

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para ricos e pobres,não devendo a morada popular constituir um programa específico. Pensava, ainda que a justiça devia ser obtida através de lutas sociais e jamais na "simplificação" das formas para obter obras baratas.Argumentava que, desse modo, não se conseguiria resolver o problema estrutural da sociedade capitalista, ao mesmo tempo que se criaria um novo impedimento e limitação para o exercício da inventividade criativa.Niemeyer fazia,contudo, a ressalva que somente em regime socialista se justificaria a adoção de métodos padronizadores.Coerente, acreditando na proposta social de Darcy Ribeiro, concebeu um projeto cujos módulos eram produzidos em usinas que adquiriram a alcunha de

“Fábricas de Escolas”. Naquelas escolas procurou conceber a arquitetura indissociável da estrutura que as caracterizasse, de modo a destacá-las dos prédios vizinhos. Com a palavra Niemeyer:“Construídos também junto a favelas, os CIEPs vieram corrigir o equívoco que sempre existiu entre nós:manter nas construções próximas a essas áreas uma arquitetura mais modesta, como que acompanhando a pobreza que as caracteriza. Lembro os mais reacionários a dizerem que eram caros demais,sem perceber que as crianças nas favelas entravam neles orgulhosas, como se isso constituísse o começo de uma vida melhor”. O Memorial da América Latina se originou do desejo do então governador Orestes Quércia

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Caminho Niemeyer, Niterói


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Museu de Arte Contemporânea, Niterói

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de situar em São Paulo o mais importante centro cultural do continente latino-americano. Darcy Ribeiro foi encarregado de elaborar o programa que consistia de seis prédios espalhados em duas praças unidas por uma passarela: uma biblioteca, restaurante, salão de atos, auditório, pavilhão da criatividade e centro de estudos. Os dois terrenos situavam-se no bairro de Barra Funda,com área total de 90.000 metros quadrados,não distante da estação do metrô.Pretendiase com o projeto fazer uma ilha arquitetônica que, com suas formas alvas e arrojadas, ajudasse a reabilitar a região cinza e triste, com tráfego pesado e desestruturado tecido urbano. O arquiteto,por outro lado, viu ali a primeira oportunidade de aplicar em seu país os avanços tecnológicos utilizados na década anterior no projeto da Universidade de Constantine, em Alger. Em colaboração com o engenheiro José Carlos Sussekind, dotou os edifícios de estruturas ousadas, com destaque para a biblioteca na qual os dois apoios estão fora do prédio, unidos por uma viga de 90 metros e o interior totalmente livre.A unidade do conjunto foi garantida pelo uso de grandes superfícies curvas, pintadas de branco. O auditório com três abóbodas constituía,de certo modo,uma releitura das curvas utilizadas na Igreja da Pampulha.Apenas o pavilhão da criatividade,destinado a exposições, apresentava uma estrutura mais convencional. Enorme praça cívica foi dotada da primeira escultura ao ar livre do arquiteto: mão aberta com sete metros de altura e chaga aberta representando a

América Latina. Infelizmente, a esperada revitalização da região ainda não ocorreu. Este fato, somado ao uso tímido de seus espaços, fez com que o projeto não tenha sido,ainda,aproveitado em toda sua potencialidade. Em 1996 é inaugurado o Museu de Arte Contemporânea de Niterói, situado em promontório elevado com magnífica vista da Baía de Guanabara, das montanhas e da cidade do Rio de Janeiro. Um apoio central libera a construção do solo,que dele brota como um elemento natural, permitindo uma continuidade visual entre arquitetura e paisagem.Rampa escultural conduz à entrada no segundo pavimento, fazendo com que o visitante realize um percurso em espiral no qual se alternam , em todos os ângulos, o museu e a estupenda vista. Obra de afirmação do homem e integração com a natureza, um espelho d´água em sua base ecoa as águas da Baía de Guanabara, enquanto o seu perfil exibe o mesmo ângulo do distante Pão de Açúcar .O Museu se transformou em verdadeiro fenômeno de visitação e suas formas foram adotadas como símbolo da cidade de Niterói.Poucas vezes uma cidade madura se identificou tanto com um arquiteto: encontra-se em vias de conclusão o Caminho Niemeyer. Consiste de uma grande praça junto ao mar,um teatro,um centro de convenções, um memorial, a sede da Fundação Oscar Niemeyer, uma catedral e um templo evangélico. O conjunto se espalha pela margem da Baía de Guanabara, entre o centro de Niterói e o Museu de Arte Contemporânea.

FOTO: ACERVO RODRIGO QUEIROZ

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gela construção temporária em Kensington Gardens, uma extensão do Hide Park. Niemeyer concebeu uma rampa que propiciava um passeio arquitetônico e conduzia ao prédio em estrutura metálica branca, suspenso um metro do solo para obter mais leveza. A cobertura, a um só tempo simples e engenhosa, cobria e definia os espaços, com uma liberdade plástica que assinala a marca do arquiteto. O espaço interno apresentava, abaixo do nível do chão, uma caixa de concreto e vidro destinada a exposições. O minimalismo e leveza da estrutura obedeciam aos princípios de Niemeyer de que todo projeto deve poder ser resumido em pequeno “croquis” e que, uma vez terminada o esqueleto de apoio, a sua arquitetura deva estar pronta. Foi enorme a repercussão do projeto e o arquiteto brasileiro foi saudado pela imprensa londrina como o “Picasso da Arquitetura”. Um auditório para 850 pessoas completou em 2005 o conjunto original do Ibirapuera, originalmente concebido nos anos 1950. O palco foi disposto na extremidade da construção, de modo a também servir para espetáculos ao ar livre e decuplicar o número de espectadores. A sua elegante forma piramidal provoca um interessante contraste com a cúpula da Oca e a curva da grande marquise do parque.Lástima o serviço de patrimônio paulista haver se oposto à edificação de um caminho coberto que integraria os prédios da Oca e do Auditório ao sinuoso caminho coberto. Se realizada, essa extensão

FOTO: MÁRIO CASTELLO

Apesar de entrecortado por prédios já existentes de grande escala, o conjunto se impõe na trama urbana pela unidade,alvura,leveza e radicalidade de suas estruturas. A catedral é a preferida de Niemeyer:“A minha idéia era criar uma grande cúpula de concreto,solta no ar,com diâmetro de 40 metros. Embaixo seria a nave. E fiquei a imaginar como deveria mantê-la na posição desejada.A solução que encontrei é tão simples e arrojada –três apoios apenas- que com ela, desculpem-me a imodéstia,transformei uma cúpula na mais bela e original cateral que desenhei.” Merece destaque, ainda, em Niterói, a recéminaugurada Estação de Barcas no bairro de Charitas. Elegante ponte coberta conduz os passageiros à estação circular sob a proteção de delgada marquise curva. Em 2002 foi inaugurado, em Curitiba, o Museu Oscar Niemeyer. Era um prédio de sua autoria, construído há 40 anos, com vãos de 30 e 60 metros, fachadas cegas e iluminação zenital. Niemeyer adicionou um grande salão, de forma elíptica, solto no ar, com 70 metros de comprimento e 30 metros de largura. Ancora-se em base de concreto que abriga os elevadores e escadas internas. Rampas suaves de acesso, ao ar livre, completam a composição, dentro do vocabulário inconfundível do criador de Brasília. O pavilhão da Serpentine Gallery foi executado em 2003 no bojo de um programa da instituição que,desde 2000,a cada verão,convida um grande arquiteto para realizar uma sin-

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Museu Oscar Niemeyer, Curitiba


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FOTO: MÁRIO CASTELLO

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Museu Oscar Niemeyer, Curitiba

da marquise preservaria a unidade do conjunto e a concepção original do projeto de 1951. O eixo monumental de Brasilia estava incompleto. A capital não possuía um museu nacional. Em 1999 Niemeyer projetou seu complemento: o Setor Cultural. Do lado sul, o museu e a biblioteca ligados por galeria subterrânea ao centro musical, cinemas e planetário, situados na face norte. Foram inaugurados em dezembro de 2006 o Museu e a sede brasiliense da Biblioteca Nacional. O vão de 80 metros da cúpula do museu, a circulação através de rampas externas e o sinuoso mezanino sustentado por cabos que pendem da abóboda, reafirmam a possibilidade de ousadia estrutural e capacidade de inovação tecnológica e formal no Brasil. Oscar Niemeyer trabalhou,no início de sua carreira, durante dois anos no Instituto do Patrimônio.No que toca à sua arquitetura,contudo, a tradição é um ponto de partida,jamais um objetivo ou ponto de chegada. O compromisso do arquiteto sempre foi o da construção de uma identidade cosmopolita brasileira. Prefere usar a história como filiação à sua linha evolutiva,ao invés de absorvê-la como compromisso limitador.Niemeyer busca fazer hoje o passado de amanhã. Fiel a seus princípios materialistas-dialéticos, a sua preocupação fundamental é com a técnica enquanto elemento da ciência para conduzir ao progresso . Busca, todavia, associá-la a uma visão poética e não-mecanicista do homem. Nesse sentido, a arquitetura é a criação de um momento único que deve surpreen-

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der e emocionar. Como possibilidade poética a arquitetura inaugura o momento e reinstala a humanidade na percepção de cada um . A obra de Oscar Niemeyer é uma celebração do saber tecnológico humano que propicia gestos de transcendência do cotidiano. Não lhe bastariam soluções corretas e racionais pois elas não sensibilizariam o usuário.A emoção visual é,ao lado do testemunho criativo do tempo presente, a maior função de sua arquitetura que instaura,hoje,a tradição de amanhã. Lauro Cavalcanti é arquiteto e doutor em Antropologia Social. Autor de vários livros e artigos sobre o Modernismo na Arte, na Arquitetura e na sociedade. Professor da Escola Superior em Desenho Industrial da UERJ e diretor do Paço Imperial/ IPHAN. BIBLIOGRAFIA CORBUSIER, Le – La Maison des Hommes. Paris. Éditions Gonthier, 1942 CAVALCANTI, Lauro- Quando o Brasil era Moderno: Guia de Arquitetura 1928-1960Rio de Jjaneiro,Editora Aeroplano,2001. Niemeyer,Oscar - Oscar Niemeyer:Minha Arquitetura 1937-2004.


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PRIVILÉGIO

AUDITÓRIO SIMÓN BOLÍVAR

A BELEZA NA SÍNTESE “Poucos temas me deram tanta alegria ao projetá-los como o Memorial da América Latina.Primeiro pelo sentido político que representava.Reunir os povos deste continente para juntos discutirem seus problemas, trocando experiências, lutando pelos direitos desta América Latina tão explorada e ofendida.Depois, porque se tratava de um conjunto de prédios que, bem projetados, poderiam criar o que em arquitetura chamamos de o espetáculo arquitetural”. Oscar Niemeyer

SOLUÇÕES COMPLEXAS E MARCANTES FERNANDO FRANK CABRAL

FOTOS: DALVA THOMAZ

S

ão Paulo tem o privilégio de ser, talvez, depois de Brasília, a cidade com maior número de obras do arquiteto Oscar Niemeyer. O Edifício Copan e o Parque do Ibirapuera com a marquise e os edifícios como a Bienal e a Oca tornaram-se símbolos da cidade. Outras obras são menos conhecidas, ou menos reconhecidas, como a Galeria Califórnia e os edifícios Triângulo, Montreal e Eiffel. 33


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Desta série de obras importantes da arquitetura brasileira, o conjunto de seis edifícios iniciais do Memorial da América Latina inaugurados em 1989, configura um dos conjuntos arquitetônicos mais marcantes não só da cidade como da obra de Oscar Niemeyer. E o Auditório Simon Bolívar é talvez um dos de seus projetos mais completos e bonitos. O Memorial da América Latina está implantado na Barra Funda, em terreno com lençol freático raso, o que dificultou, pelo custo elevado, o rebaixamento da avenida que o corta no sentido longitudinal. Assim, o conjunto ficou dividido em duas partes: de um lado, com acesso direto à estação de metrô, estão a Biblioteca, o antigo Restaurante (atual Galeria Marta Traba) e o Salão de Atos, que formam a Praça Cívica, com piso inteiramente pavimentado, sem árvores e sem jardins, destinada às manifestações populares. Do outro lado da avenida, ligados por meio de uma passarela elevada estão os edifícios da Administração, o Pavilhão da Criatividade e o Auditório. Posteriormente foi acrescentado o edifício do Parlamento Latino Americano, também projeto de Oscar Niemeyer. A volumetria dos principais edifícios do Memorial da América Latina é resolvida basicamente por meio de grandes superfícies de concreto e vidro com contrapontos verticais bem marcados. É uma arquitetura sem filigranas, econômica de desenho, com uma cor para o vidro, uma cor para as estruturas de concreto e uma cor para a praça pavimentada, que não tem desenho no piso para não somar nenhuma linha ao conjunto construído. Os edifícios, quando vistos à média distância não apresentam nenhum detalhe. Como todo artista, Oscar Niemeyer, no decorrer de sua carreira, desenvolveu várias linguagens. Algumas delas foram por ele retomadas em diversas ocasiões, reelaboradas em função de novas necessidades, técnicas e contextos urbanos. Alguns edifícios do Memorial da América Latina são exemplos destas retomadas, recorrentes na sua obra. No Salão de Atos, na Biblioteca e no Auditório Simon Bolívar, Oscar Niemeyer volta ao partido espacial da Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha de 1940, já anteriormente retomado, em 1968, no edifício do auditório da Universidade de Constantini na Argélia: abóbadas de con-

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creto que, a partir do solo, criam os espaços que o programa requer. O Salão de Atos tem uma só abóbada: com um programa simples, um espaço para atos políticos e culturais, que também abriga o painel Tiradentes de Candido Portinari. É o foco da Praça Cívica. Sua entrada é marcada pelas altas colunas interligadas pela grande viga e o parlatório colocado no espelho dágua. A Biblioteca é formada por duas abóbadas apoiadas em uma viga central. É também um edifício com programa relativamente simples, resolvido com a mesma leveza e graça da Igreja da Pampulha. O Auditório Simon Bolívar é o maior e o mais complexo edifício do conjunto. Primeiro, pelos grandes espaços necessários para abrigar as diversas atividades previstas no programa. Depois, pela complexidade dos acessos e das circulações inter nas decorrentes dessa diversidade. O edifício tem duas platéias, com 1600 poltronas, para apresentação de música, de dança e para realização de congressos e convenções. Seus espaços principais – foyer, platéias e palco – são criados por meio de três abóbadas sucessivas de concreto, duas delas apoiadas numa grande viga, também de concreto. Sem possibilidade de rebaixar o palco, solução adotada por Oscar Niemeyer no Teatro Nacional de Brasília, por exemplo, a solução espacial e ao mesmo tempo estrutural das abóbadas sucessivas permitiu a criação de um amplo espaço interno sem aumentar a altura do edifício, o que comprometeria a escala do conjunto na esplanada. Resolvidos os grandes espaços para foyer, platéias e palco no corpo principal do edifício, duas áreas de apoio específicas para artistas e para congressistas foram desenhadas como anexos: dois volumes, paralelepípedos neutros, semi- enterrados, soltos, visualmente isolados, um em cada lado do Auditório. Embora a volumetria das abóbadas sucessivas nos remeta à Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha, desenhada quase 50 anos antes, os dois edifícios são diferentes: o programa e os espaços do Auditório são maiores e suas circulações mais complexas. A solução das abóbadas precisou, portanto, ser redesenhada para que respondesse adequadamente às novas necessidades.


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Na Igreja da Pampulha o espaço principal - nave e altar - é criado pela junção de duas abóbadas interligadas longitudinalmente. No Auditório há uma inversão do sentido da planta: os espaços principais – foyer, platéias e palco - são criados pela junção das abóbadas colocadas lado a lado, duas delas apoiadas numa grande viga de concreto, que ultrapassando os limites do espaço interno, tem seus apoios no exterior do edifício. Os acessos do público, tanto na Igreja como no Auditório são resolvidos de maneira singela, no mesmo nível da esplanada, indicados pelas marquises, sem nenhum elemento arquitetônico espetacular. Não têm a longa passarela que atravessa o lago como na Editora Mondadori em Milão ou no Palácio dos Arcos em Brasília. Não tem a rampa sinuosa ascendente como a do Museu de Arte Contemporânea de Niterói.

No Auditório, o passeio arquitetônico acontece no interior do edifício: a chegada surpreendente, a partir do pequeno “túnel”, ao foyer duplicado pelos espelhos, a subida pela rampa ou pelas escadas de acesso às platéias. No foyer, os espelhos e os vidros dos caixilhos ampliam, de maneira quase mágica, os espaços externos e internos do edifício. Os vidros escuros refletem, externamente, a paisagem durante o dia. À noite, internamente, refletem o foyer iluminado. Além disso, no foyer, o efeito da reflexão do espelho que ocupa toda a parede que o separa da platéia é surpreendente. Com a “eliminação” da parede e a reflexão do ambiente, o resultado é o rebatimento do espaço de 1400 m2, duplicado com todos os seus elementos arquitetônicos. Quando o foyer está repleto, cheio de gente caminhando pelas escadas e rampa, o resultado é ainda mais impressionante.

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Acessos resolvidos de maneira singela


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Foyer: visão impactante das escadas de acesso ao auditório

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Os complexos problemas de circulação do Auditório - duas platéias, foyer e anexos de artistas e de congressistas foram resolvidos de maneira simples e sintética. A partir do foyer o público se divide: quem vai para platéia maior sobe a rampa central chegando ao seu nível mais alto, descendo em seguida em direção ao palco pelos corredores entre poltronas. Quem vai para a platéia menor, posterior, do outro lado do palco, sobe pelas escadas helicoidais laterais alcançando as duas galerias que circundam o edifício, uma de cada lado, também no seu nível mais alto. Essas galerias se desenvolvem paralelas

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aos caixilhos, entre os vidros e as paredes internas do auditório. Desenhados como volumes independentes, uma passarela e um bloco de escadas de concreto conectam-se à abóbada posterior, resolvendo a saída de emergência sem quebrar a unidade formal do edifício. Tanto artistas como congressistas têm acessos externos aos respectivos anexos, que se comunicam internamente com o palco, que está levemente elevado em relação à esplanada, através de um túnel levemente rebaixado, que os interliga. No túnel também estão


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Arquitetura definida pelas estruturas

localizados o fosso da orquestra e outros espaços destinados a serviços técnicos. Oscar Niemeyer costuma dizer que a partir de Brasília sua arquitetura passou a ser definida pela estrutura. Antes mesmo de Brasília encontramos edifícios projetados por ele em que a arquitetura está definida pela estrutura: a Igreja de São Francisco na Pampulha é, sem dúvida, um deles. No projeto do Auditório Simon Bolívar esta característica se repete: o espaço do edifício está claramente definido pela estrutura formada pelas três abóbadas de concreto. Os ambientes

são completados pelas paredes laterais das platéias e pelos caixilhos das galerias e do foyer. Os espaços criados pelas abóbadas apoiadas no solo são por natureza muito fluidos na medida em que integram, numa única superfície, as paredes e o teto. Nas abóbadas sucessivas do Auditório essa fluidez é ainda maior porque as cascas se multiplicam criando espaços inesperados, como se estivessem apoiadas umas nas outras, em equilíbrio aparentemente instável. Nas platéias duplas essa fluidez é ressaltada pelas abóbadas pintadas internamente de preto e pelas paredes laterais

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Galerias laterais ligam as duas platĂŠias

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Espaços principais criados por meio de três abóbodas

revestidas com carpete azul escuro. O resultado é um amplo espaço, mais intuído que visto. Como já observamos, ao retomar partidos e linguagens elaboradas e desenvolvidas anteriormente, Oscar Niemeyer não os repete. As soluções são renovadas, reinventadas, demonstrando seu excepcional controle dos programas complexos, dos espaços, dos percursos e das perspectivas. Sempre experimentando e criando o novo com sua capacidade de invenção aparentemente inesgotável. No Auditório Simon Bolívar, Oscar Niemeyer consegue, mais uma vez, a síntese característica e recorrente na sua

obra: resolver os problemas técnicos e funcionais de programa, espaço e estrutura por meio de uma solução formal que cria a beleza e, com ela, a emoção indispensável na arquitetura. Fernando Frank Cabral é arquiteto, mestre pela FAU-USP e professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUCCampinas. Fez parte da equipe de projeto de Oscar Niemeyer na Argélia.

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REFERÊNCIA

VÍNCULO DA FORMA INVESTIGAÇÃO SOBRE A INTERFACE DA OBRA DE NIEMEYER COM A ARTE MODERNA

AS ORIGENS DAS LINHAS SINGULARES LUIS EDUARDO BORDA

A

Arte Moderna sempre constituiu, é minha hipótese, uma referência importante para as formas de Oscar Niemeyer. Isso já havia sido observado, aliás, pelo artista plástico Max Bill, quando de sua visita ao Brasil em 1953. Referindo-se à linha ondulada e aos planos com contorno sinuoso (“formas livres”) que vira em sua arquitetura, Bill apontara: “Na arte de hoje (esta forma livre) foi introduzida primeiramente por Kandinsky 40

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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nos seus quadros,em 1910 aproximadamente.Na sua forma contemporânea,ela é a expressão típica de Hans Arp, que após dezenas de anos ainda a pratica nas suas esculturas e relevos (...) harmoniosos.A aplicação dessas formas na decoração,no têxtil, na publicidade, nos stands de exposições (...), é um fato que se encontra a todo instante na Europa”.(Bill,1953,p.14). A observação de Bill não era contudo elogiosa.Tratava-se, antes, de uma crítica dura ao uso de tais formas na arquitetura,uso considerado pelo artista construtivista algo “decorativo”, gratuito e que nada tinha a ver com uma “arquitetura séria”. (Idem).

Não obstante o caráter duro da crítica, a observação de Bill era certeira:as formas de Niemeyer podiam ser compreendidas a partir de seu vínculo com determinada vertente da arte abstrata, sendo os planos sinuosos de Kandinsky, Matisse ou Hans Arp referências importantes para o entendimento do desenho do arquiteto. A meu ver, a observação de Bill foi importante também porque a partir disso ampliaramse as possibilidades de entendimento da obra de Niemeyer. Ou seja, a a arquitetura de Le Corbusier ou de Mies van der Rohe deixou de constituir a única possibilidade de compreensão de sua obra. É interessante observar, por outro lado, que, se até 1953 (ano da crítica de Bill) a aproximação de Niemeyer caracterizou-se pelo vínculo com determinadas expressões da arte moderna,depois disso sua arquitetura passou a tomar um direciona-

mento preciso: a partir desse período determinada vertente da escultura moderna começou a comparecer na concepção de suas formas, escultura aliás vinculada àquela mesma vertente da pintura que serviu de base para a arquitetura que realizara até então. Em meu trabalho de Doutorado,intitulado O Nexo da Forma.Oscar Niemeyer:da Arte Moderna ao Debate Contemporâneo,discuti os vínculos da obra de Niemeyer com a arte moderna, precisando tais pontos de contato, inclusive, a partir do contraste com determinadas questões da arte contemporânea.

Unidade Tripartida, de Max Bill

Neste breve artigo a intenção é apontar algumas das conclusões desta pesquisa, desenvolvida entre 1999 e 2003 na Escola de Comunicação e Artes da USP. Como apontara Max Bill, a arquitetura que Niemeyer vinha realizando até os anos 50 se caracterizava pelo vínculo com determinada vertente da arte moderna,não com o Construtivismo,corrente da arte defendida por Bill.A posição do artista suíço inseria-se na polêmica travada desde os anos 30 entre concretistas e abstracionistas. (Seuphor, 1957. Cocchiarelli, 1987). A discussão, começada por Theo van Doesburg e retomada por Bill colocava em evidência diferenças básicas entre uma concepção estética e outra: de um lado (Concretismo) o veto radical às referências figurativas (natureza).Para essa corrente o único ponto de partida deveria ser a imaginação ou as formas cri-

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Metamorphosis, Jean Arp

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adas pelo espírito humano. Associava-se a isso a busca de integração entre arte e indústria, a valorização da técnica,bem como a utilização da superfície (plano) e não do volume enquanto elemento definidor da plástica. (Doesburg, 1925). Para os abstracionistas,ao invés,não haveria restrição alguma em tomar a natureza como ponto de partida da criação.A abstração,neste caso,consistiria em verter tais formas através de um procedimento in-telectual onde a forma, longe da mimese, afirmar-se-ia como produto da imaginação. Ora, era isso exatamente o que vinha caracterizando a arquitetura de Oscar Niemeyer: um desejo deliberado de tomar a natureza (seja a silhueta das montanhas ou o corpo da mulher) enquanto ponto de partida da criação.Veja-se por exemplo a igrejinha da Pampulha (Belo Horizonte,1943),as curvas da cobertura a evocar o perfil das montanhas de Minas; o desenho do piso: uma forma sinuosa referida à lagoa da Pampulha, algo semelhante aos planos sinuosos de Hans Arp ou aos recortes de Matisse;e,ainda,o próprio painel azul e branco de Portinari, com toda a representação figurativa referente à vida de São Francisco de Assis. Outro exemplo é a residência do arquiteto à Estrada das Canoas (Rio de Janeiro, 1953). Neste projeto,embora a referência seja o raciocínio espacial construtivista, a referência à natureza ou o modo como se configuram os planos estão longe da abstração radical que se vê, por exemplo, no desenho de Mies van der Rohe para o Pavilhão de Barcelona. A subversão à lógica construtivista está, primeiramente, no desenho sinuoso da laje de cobertura ou no contorno ondulante da piscina, ambos a evocar as formas naturais. Mas está também no desejo deliberado de assegurar a leitura integrada da forma e do espaço. Os planos que determinam as varandas são vazados e sua altura jamais alcança a laje de cobertura. Isso possibilita que se persiga com o olhar a linha sinuosa que define a cobertura, ao mesmo tempo em que se tem uma visão integrada do espaço. Tampouco o fragmento de rocha, presente na composição, bloqueia o olhar. Comparece como um elemento que emerge do solo, mas não o suficiente para obstruir a visão e impedir uma leitura unitária do todo. Assim, embora o plano seja a diretriz espacial, o que demonstra o entendimento de Niemeyer a respeito da lógica construtivista, o resultado espacial e formal é singular. Niemeyer utiliza o plano e concebe o espaço não exatamente do mesmo modo como o fizera Mies van der Rohe (certamente o desenho do Pavilhão é uma referência para o desenho de tal residência) ou como o fizera Vladimir Tatlin em seu Corner Relief (1915), por exemplo. Enquanto

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nestes o espaço surgia como surpresa, Niemeyer procurava quase sempre garantir uma apreensão unitária do objeto e do espaço. Mais que isso: afastava-se do rigor geométrico dos construtivistas, bem como do veto radical à natureza ao tomar as próprias formas naturais enquanto base da criação. Ora, era isso o que provocava a reação de Max Bill.A afinidade de Niemeyer não era com a radicalidade construtivista, mas sim com os Pós-cubismo[1] e com aquela vertente abstrata (Arp, Matisse, etc). A partir do início dos anos 50 a arquitetura de Niemeyer começa a tomar um direcionamento preciso. Ao invés da permeabilidade interior/exterior que caracterizou seus projetos até então,Niemeyer passa a centrar-se em formas compactas:volumes brancos,densos,depurados, a marcar uma nítida ruptura entre interior e exterior.Ora,o caráter evidentemente escultórico de tais formas pode ser facilmente encontrado no Purismo (referência importante para Niemeyer) e em determinada vertente da escultura moderna, não por acaso escultura vinculada àqueles mesmos artistas que serviram de base formal para a arquitetura que realizara até então (Arp, Matisse,entre outros). O Purismo e a escultura abstrata me parecem fundamentais para o esclarecimento desta nova fase da arquitetura de Niemeyer. Se as relações de Niemeyer com o Purismo (Le Corbusier) já foram suficientemente apontadas por alguns autores,vale aqui esclarecer as relações de Niemeyer com a escultura abstrata,especialmente com aquela linha que deriva das figuras capitais de Constantin Brancusi e Hans Arp. Produção de grande importância no panorama da escultura do início do século XX,a obra desses artistas caracterizou-se por volumes densos, brancos, despojados, que vieram a informar posteriormente a arquitetura de Oscar Niemeyer. A obra Maiastra (Brancusi,1912) é um exemplo que pode esclarecer a proximidade de Niemeyer a essa vertente da escultura. Trata-se da representação de uma ave mística, integrante do folclore romeno.Evitando a mimese, Brancusi estiliza a forma.Reduz a figura a seus elementos essenciais, eliminando qualquer traço ou informação que possa dificultar a apreensão da imagem no que tem de mais elementar. Tal operação formal só é possível a partir do sentido de autonomia que a forma adquire na modernidade. De qualquer modo, não obstante esse caráter conceitualmente moderno, Brancusi mantém-se atrelado ainda a determinadas questões clássicas:o uso de um material tradicional como o mármore, a utilização de um procedimento acadêmico como o desbaste da pedra, a manutenção da luminosidade clássica; e, ainda, e


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sobretudo, a alusão à natureza. Desta referência, aliás, deriva a simetria da forma. O corpo, em seu caráter simétrico,sempre constitui (vale lembrar) o modelo de integridade e coerência da forma ao longo de toda a história da escultura. É em virtude da simetria, também, que a imagem da Maiastra é facilmente apreendida: o objeto escultórico oferece-se inteiro ao olhar, sem implicar a complexidade espacial que iremos encontrar em esculturas construtivistas como Corner Relief (Tatlin,1915),por exemplo. Finalmente, outro aspecto importante da obra de Brancusi é o modo como comparece a base. Menos evidente em a Maiastra, isso aparece de modo marcante em obras onde Brancusi destaca o objeto a partir de um suporte contrastante ou, como no caso de Leda (Brancusi,1923),determina uma área ampla em volta da peça de modo a destacá-la no ambiente da exposição. Ora,Niemeyer partilha com Brancusi e com a vertente da escultura que procede desse artista várias questões conceituais:a referência ao corpo, o tratamento abstratizante da figura,a axialidade da forma, a luminosidade clássica e também, no caso mais específico de Brancusi,a relação entre o objeto e o espaço em que se insere. O desenho de Niemeyer para a sede da CESP (São Paulo, 1979) é exemplo desse raciocínio formal.O conjunto é determinado por três formas concisas, despojadas, articuladas através de um plano sinuoso (restaurante e foyer do auditório). Note-se que são três formas concisas,despojadas,ao mesmo tempo simétricas, organizadas todavia através de uma composição não simétrica. É o caso também do conhecido exemplo do conjunto do Congresso Nacional (Brasília,1957).As cúpulas,de forte sentido escultórico,são tão simétricas quanto ‘as torres dos gabinetes ou mesmo quanto o corpo retangular que embasa o conjunto.Não obstante a simetria das formas,a articulação é dinâmica e assimétrica. Observe-se que se tratam de formas independentes, embora ligadas umas às outras pelo embasamento: formas facilmente apreensíveis em virtude de seu caráter compacto e simetria.A característica de Niemeyer é sempre trabalhar com essas formas independentes,algo que se faz marcar de modo bastante forte em seus vários desenhos urbanísticos. (Cidade Vertical. Israel, 1964; Centro Administrativo do Recife. Pernambuco, 1978; Parque do Tietê.São Paulo,1986,entre outros). A referência ao corpo ou à figura é,a meu ver, o que primeiramente explica a unidade de tais formas (quase sempre simétricas, aliás) e a relação espacial que determinam.Seus edifícios,tal qual as figuras femininas que representa em serigrafias dos anos 80 (Reencontro. 1987: Praia Com Quatro Mulheres.1987;entre outros),são do mesmo modo elementos independentes, corpos que se situam em determinado ponto do espaço.

É certo que o urbanismo modernista, ao eliminar a malha tradicional, rompe com a coesão entre os elementos construídos e determina formas independentes: elementos isolados em meio ao verde.Não mais configurando o desenho das ruas e das praças, o edifício torna-se uma figura no espaço urbano. De qualquer modo,isso não é suficiente para explicar a relação espacial estabelecida pelas formas de Oscar Niemeyer. É preciso considerar,primeiramente,que o caráter compacto e o sentido de integridade de seus volumes geram uma separação clara entre o objeto e o ambiente. Interior e exterior tornam-se aí duas categorias distintas, sem que nenhuma ambigüidade venha confundir o domínio de um e de outro. A essa primeira distinção entre objeto e espaço ? definida pelo caráter cerrado da forma ? acrescenta-se o desejo de prover um ambiente adequado para a fruição da obra. É aí que entram os espaços amplos, sempre pavimentados, os quais passam a assegurar a integridade das figuras e destacá-las visualmente. O solo adquire, neste momento, uma função similar àquela desempenhada pelas bases de Brancusi: torna-se uma intermediação entre o espectador e a obra,assegurando a fruição estética. É claro que o espaço externo,transformado em extensa área pavimentada,deixa em segundo plano neste instante o sentido funcional. Destacar a integridade do volume passa a ser sua destinação primordial. Finalmente,um outro aspecto que vale salientar nesse confronto entre as formas de Niemeyer e a vertente da escultura moderna representada por Brancusi é o uso do material ou mesmo o trata-

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Nu Recostado, Henri Matisse

A Dança, de Henri Matisse


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Bird in Space, de Brancusi

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mento dado a matéria.Eis o que marca um ponto de diferenciação com Niemeyer. É certo que Brancusi,por exemplo,privilegiará materiais tradicionais da escultura como o mármore e o bronze, porém os utilizará como se fora pela primeira vez. Ou seja,assumirá o material enquanto tal,suas qualidades estruturais,textura,cor,reação à luz,obtendo dessas características específicas a própria expressividade da forma. No caso de Niemeyer, embora utilize de modo coerente as potencialidades estruturais do concreto (o principal material por ele utilizado, aliás), raras vezes assumirá as qualidades plásticas deste elemento construtivo: sua cor ou as marcas da fôrma,por exemplo.Não por acaso pintará freqüentemente o concreto de branco. Mais do que isso:no caso de edifícios que possuam caráter mais nobre revestirá a superfície com placas de mármore sempre que a forma o permita.Confronte-se, por exemplo,as cúpulas do Congresso com os volumes do Panteão à Liberdade. O corte seco do Panteão possibilita o revestimento com placas de mármore.Isso já seria de difícil execução nas cúpulas do Congresso Nacional. A meu ver, tanto a recorrência aos volumes brancos quanto o revestimento em mármore (algo bastante freqüente nas obras de Niemeyer) não se dá por acaso. Isso reafirma, a meu ver, a alusão à luminosidade clássica e o sentido escultórico da forma,marcado pelo recurso a um material nobre da escultura. A produção escultórica de Hans Arp é outra referência que nos permite compreender o vínculo de Niemeyer com a arte moderna. Fortemente influenciado por Brancusi, produziu do mesmo modo volumes densos, brancos, compactos. A diferença são as curvas sinuosas que definem o contorno de suas formas.É também um direcionamento mais preciso para a liberdade plástica. A natureza,embora seja um ponto de partida para as suas formas, comparece tão só como um “élan vital”, um sopro de vida ou uma força cósmica a imprimir vitalidade ao elemento inerte (a pedra). Assim são suas Concreções Humanas (1935), formas que transitam entre o orgânico e o mineral, elementos que significam a passagem de um estado a outro,“coagulação de que resultam a terra e os astros”.(Arp,Hans apud Jianou,1973,8). Se produziu peças graciosamente sinuosas,ao mesmo tempo densas e compactas,Arp também realizou esculturas de corte seco, geométrico. Por vezes isso se dava num mesmo objeto escultórico: Rebento sobre Forma (1960),por exemplo. Impossível abordar os volumes sinuosos de Niemeyer ou aqueles com corte mais geométrico sem nos lembrarmos das formas de Arp.Pense-se, por exemplo, no auditório da Bolsa do Trabalho (Paris, 1972) ou no Panteão à Liberdade e à Democracia (Brasília,1985).No caso deste último,

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a alusão a uma figura alada é explícita.Porém,não se trata de mimese,e sim de uma abstração a evocar um elemento da natureza. Se a referência à determinada vertente da escultura européia apresenta-se a meu ver de modo evidente, vale à pena apontar, ainda que brevemente, alguns vínculos de Niemeyer com o contexto brasileiro. É preciso considerar primeiro que, fortemente marcadas pela arte européia, as expressões artísticas brasileiras mantiveram-se ancoradas na produção do continente europeu (berço da arte moderna). De modo que foi a própria arte européia a base comum entre Niemeyer e os artistas brasileiros de sua geração. Isso acontece em relação a Sérgio Camargo, um artista cuja produção mantém flagrante vínculo com as formas de Oscar Niemeyer.A afinidade notória entre as formas de Niemeyer e os volumes elegantes e depurados de Camargo (especialmente aqueles realizados em mármore branco ou negro-belga) não se dá por acaso,portanto.Ambos têm em Brancusi uma referência comum,sendo os pontos de contato: a recorrência ao volume, o caráter abstratizante da forma e também o sentido de despojamento da imagem. Conforme apontara anteriormente, na fase pré-Brasília não era contudo a escultura de Arp ou Brancusi a principal referência para Niemeyer. O ponto de partida eram os planos sinuosos de Kandinsky,Arp e Matisse.Era também o pós-cubismo europeu, que aqui comparecia fortemente na obra de Tarsila do Amaral, Portinari e Burle Marx, entre outros artistas dessa geração. O caráter pós-cubista da pintura de Tarsila aparece de modo claro, por exemplo, numa tela como A Negra (1923). Nesta obra, o volume escultórico da mulher articula-se a um fundo planar, o qual, diferente da figura representada, não está todavia em perspectiva. Isso acontece também em muitas telas de Portinari e Burle Marx.[2] Vale ressaltar que, diferente do construtivismo,o pós-cubismo reunia artistas que mantiveram a referência à natureza e à perspectiva,ao mesmo tempo em que incorporaram inovações como a estilização das figuras e a organização do espaço pictórico através de planos. Os construtivistas, ao invés,mantiveram-se radicalmente avessos à representação naturalista, optaram pelas formas geométricas, sustentaram a noção do plano enquanto diretriz do espaço e ainda defenderam a aliança entre arte e indústria. Ora,no caso de Niemeyer a aproximação era evidentemente com o pós-cubismo, não com a radicalidade construtivista.A aproximação era com o ambiente brasileiro,pós-cubista,onde a alusão à natureza implicava inclusive razões regionalistas (o que constituía, aliás, uma heresia para os artistas construtivos). O próprio Niemeyer já havia declarado que


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foi seu afastamento em relação a certo radicalismo europeu o que permitiu a curva sinuosa,ou, nas palavras de Lúcio Costa, a “graça” de sua arquitetura. A meu ver, o pós-cubismo europeu (fortemente presente no ambiente brasileiro) bem como determinadas expressões européias (entre elas Arp e Matisse) são, portanto,o que explica,na primeira fase de sua obra, a presença dos planos sinuosos e a liberdade em tomar a natureza como ponto de partida da criação arquitetônica. Se, depois dos anos 50, sua obra passa a aproximar-se da escultura abstrata (Arp,Brancusi), isso se dá na esteira daquela influência inicial.Pois, do mesmo modo,não se trata de optar pelos preceitos da vertente construtiva, e sim de conceber formas que, longe de serem reprodutíveis ou formuladas segundo a lógica construtivista,articulamse a questões que também pertencem ao PósCubismo (como a referência à natureza e a idéia do volume enquanto valor inseparável da forma).[3] Se esta leitura for correta, a singularidade da obra de Oscar Niemeyer consiste em ter vertido para a arquitetura o raciocínio pós-cubista e os princípios escultóricos da arte abstrata, acrescentando a tudo isso questões espaciais construtivistas e diretrizes do urbanismo modernista. Talvez nisso consista, também, a originalidade e o frescor de sua obra, para além das qualidades espaciais que sempre caracterizaram suas propostas.

Dorso , de Arp

Luis Eduardo Borda, arquiteto, doutor em Artes pela ECA/USP, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Uberlândia, MG. BIBLIOGRAFIA: Bill,Max – O Arquiteto,a Arquitetura,a Sociedade.Conferência proferida na FAU/USP em 09.06.1953.Publicada na Revista Habitat,n.14,jan/fev.1954. Borda, Luis E. - O Nexo da Forma. Oscar Niemeyer: da Arte Moderna ao Debate Contemporâneo.Tese de Doutorado.ECA/USP,2003. Brito,Ronaldo – Sérgio Camargo.Cosac & Naif Edições.São Paulo,2000. Cocchiarale,Fernando;GEIGER,Anna Bella – Abstracionismo Geométrico e Informal.A Vanguarda Brasileira nos anos Cinqüenta. FUNARTE. Rio de Janeiro.1987. Doesburg, Theo van – Arte Concreta. In: AMARAL, Aracy - Projeto Construtivo Brasileiro na Arte: 1950 - 1962. Rio de Janeiro. Museu de Arte Moderna.São Paulo.Pinacoteca.1977. ___Os Dezessete Pontos da Arquitetura Neoplástica. (1925). In: FUSCO, Renato – La Idea de Arquitectura – Historia de la Crítica desde Viollet-Le-Duc a Pérsico.Gustavo Gili.Barcelona.1976,p.122. Jianou,Ionel – Brancusi.Adam Books.London,1963. ___ JeanArp.Arted,Editions d’Art.Paris,1973. Néret,Gilles – Henri Matisse.Cut-outs.Benedikt Taschen.Köln.1994. Niemeyer,O.– A Forma na Arquitetura.Avenir Editora.Rio de Janeiro,1978. Seuphor,Michel – Dictionnaire de la PintureAbstraite.Fernand Hazan.Paris.1957. Zílio,Carlos – A Querela do Brasil.MEC/FUNARTE.Rio de Janeiro.1982

---------------------------------[1] Comentarei adiante o vínculo de Niemeyer com o Pós-cubismo. [2] Veja-se por exemplo o painel azul e branco de Portinari, na igrejinha da Pampulha.A imagem de São Francisco de Assis e as demais figuras que compõem o painel partilham o espaço com os planos sinuosos e com as linhas curvas que definem a composição.Situação semelhante comparece nas telas de Burle Marx, como o painel que realizou para o Iate Clube da Pampulha. [3] Neste sentido,aliás,a trajetória de Hans Arp é em certa medida semelhante à de Niemeyer,ao mesmo tempo que anterior.Como Niemeyer,esse escultor transitou dos planos sinuosos (“formas livres”,como dizia Max Bill) para os sensuais volumes brancos,a evocar princípios de crescimento das formas naturais.

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PROPOSTA

ESPAÇOS

EXPOSITIVOS

E A EMERGÊNCIA DO NOVO

JOGO DE MASSAS E DE VAZIOS MARIA CRISTINA CABRAL

A

poética de Oscar Niemeyer inscreve-se na modernidade pela emergência de um novo, cujo valor é atribuído à invenção da forma fluida, autoral e irreprodutível. Sua poética é estranha aos parâmetros do movimento moderno europeu dos anos de 1920, que buscava aplicar a produção serial na arquitetura, em benefício da sociedade. Paradigmas produzidos por este movimento foram debatidos e aplicados na arquitetura 46

FOTOS: NELSON KON

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Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba

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dos museus e dos espaços expositivos ao longo do século XX. A obra de Oscar Niemeyer tornou-se uma referência importante na arquitetura moderna, e questiono se seus espaços expositivos também exerceram grande influência, e se produziram alguma proposição paradigmática. Qual a origem e quais as transformações desta possível proposição, ao longo dos quase oitenta anos de prática profissional do arquiteto? Como sua obra tão autoral se inscreve na tradição moderna do expor? Na modernidade, a transformação dos espaços arquitetônicos está relacionada à nova concepções de espaço e tempo,e se tornou possível graças à aplicação de tecnologias industriais. A idéia moderna de espaço expositivo amplo, flexível e transparente remonta aos pavilhões de exposições do século XIX, sendo o exemplo mais marcante o Palácio de Cristal de Londres (1851). Mudanças na natureza da arte, no início do século XX, afetaram as relações entre sujeito e objeto. Os artistas foram os primeiros a explorarem as relações entre seus trabalhos e suas inserções no espaço físico, e a recusarem a idéia de museu como caixa de tesouros.Ao optarem pela livre fruição,as vanguardas históricas procuraram definir o papel da arte e sua função social através de uma produção ativa e vigorosa na crítica e na construção de uma nova sociedade. Embora os artistas modernos tivessem conceitos bastante distintos, eles tinham em comum um novo entendimento espaço-temporal. Na percepção do espaço como fenômeno, muitos artistas buscaram então a síntese espacial.Entre a primeira geração de arquitetos modernos, três mestres propuseram novas soluções para espaços expositivos que se tornaram paradigmáticas, Le Corbusier, Mies van der Rohe e Frank Lloyd Wright. Le Corbusier concebeu muitos projetos para museus,galerias e pavilhões de exposições. Seu projeto exemplar foi o Museu do Crescimento Ilimitado (MCI), rascunhado em 1930 e retomado em diversas ocasiões, não tendo sido jamais executado integralmente. A espacialidade é proposta em estruturas modulares organizadas sucessivamente em planta em forma de espiral,e elevadas por pilotis a três metros do solo, agrupadas em torno de uma área central de grande altura. A iluminação interna combina luz natural zenital com artificial. O percurso interno é definido pelo visitante,e a circulação é livre dentro de um edifício em espiral progressiva composta de planos ortogonais. No ideário corbusiano, são pensados as viabilidades econômica e construtiva, as questões museológica e museográfica,e o valor cultural do conteúdo exposto.A proposta cor-

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busiana engloba uma nova tipologia arquitetônica do expor,e um novo entendimento do conceito de museu, diferenciando-se das propostas dos outros dois arquitetos. Nas propostas de Mies van der Rohe,destacam-se o Pavilhão de Barcelona (1929),o projeto do Museu para cidade pequena (1942) e a Neue National Galerie de Berlim (1962).A concepção espacial do arquiteto exerceu forte influência sobre a arquitetura mundial, após os anos de 1950.A planta livre e a cobertura plana horizontal sustentada por pilares esbeltos caracterizam sua obra.O espaço universal que integra interior e exterior em um ato contínuo tornou-se referência para a arquitetura moderna, e para o caso específico dos museus. No Brasil, o MAM no Rio de Janeiro, de Affonso Reidy, e o MASP em São Paulo, de Lina Bo Bardi, são exemplos da aplicação dessa concepção. A terceira proposta moderna paradigmática foi idealizada por Frank Lloyd Wright no Museu Guggenheim (1943) em Nova York.Nesse projeto,o arquiteto trata o espaço vazio central envolvendo-o por um cinturão e iluminando-o zenitalmente por uma cúpula central. O volume externo do edifício é um tronco de cone invertido que rompe com a escala do entorno.O princípio de circulação é inusitado: o visitante atinge o topo do espaço por elevador e desce por uma rampa helicoidal contínua,que abriga as funções de circulação e de exposição. O espaço arquitetônico interno impõe-se perante os objetos inseridos,expondo-se também. A duas proposições espaciais presentes nos espaços expositivos de Niemeyer, a planta livre miesiana e o espaço plástico wrightiano, foram amplamente criticadas pelos curadores e críticos, por não apresentarem condições satisfatórias para exposição de obras de arte.Esta crítica também é atribuída aos espaços expositivos de Oscar Niemeyer. A extensão da obra de Oscar Niemeyer dificulta a enumeração dos projetos destinados exclusivamente a espaços expositivos. Entre estes,inscrevem-se os museus da Terra (1974),do Mar (1974), do Cosmos (1974), do Homem (1978) e do Índio (1982); os pavilhões do Brasil (1939), na Feira de Nova York, em parceria com Lucio Costa, do parque Ibirapuera (1951-54) e o recente Summer Pavilion (2003), a convite da Serpentine Gallery, em Londres. Além desses exemplos, outros tiveram suas funções originais modificadas, como o Pavilhão da Bienal de São Paulo e o Museu de Arte Moderna de São Paulo, ambos no Parque Ibirapuera;ou o antigo Cassino (1942),atual Museu de Arte da Pampulha. Dois projetos paradigmáticos da concepção niemeyeriana para espaços expositivos são os museus de Arte Moderna de Caracas


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(1954-55) e o de Arte Contemporânea, MAC, de Niterói (1993). O primeiro, ainda que não tenha sido construído, tornou-se uma referência, pela ousadia tecnológica e pelo significado simbólico desta edificação monumental. Trata-se de um tronco de pirâmide reta de base quadrada invertido, implantado em uma encosta rochosa dominando a cidade,em local de destaque. Niemeyer inaugura com este projeto a escolha formal que reproduziu no MAC, uma forma original, marcante e autoral, cuja implantação em destaque reforça suas qualidades e cria a idéia de lugar, interferindo e completando a paisagem. Em Caracas,a cobertura translúcida enfatiza a idéia de contraste entre o exterior negado e a espacialidade interna banhada de luz natural, reforçada pela instabilidade sugerida na forma invertida do edifício. Internamente, a forma livre do mezanino possibilita uma sucessão de ângulos de visão que dinamizam o espaço pelos olhares sucessivos. Na poética niemeyeriana, o museu de Caracas marca um distanciamento da combinação de elementos arquitetônicos própria de suas obras anteriores, em prol da forma única,essencialmente plástica. Concebido no início dos anos 1990,o MAC faz parte de um período no qual o museu assume um papel de catalisador nos projetos de regeneração urbana.O novo papel do museu foi atribuído inicialmente por James Stirling, na Staatsgalerie de Sttugart (1979), e seguido por outros como no bem sucedido projeto de Frank O.Gehry para o Guggenheim de Bilbao (1991). Se, por um lado, a arquitetura impressionante do MAC serve bem aos propósitos turísticos, há que se avaliar criteriosamente seu impacto direto sobre a vida da cidade, como o aumento fluxo de automóveis e de turistas, ou como a população se relaciona com a instituição, e o que ela implica no desenvolvimento cultural e artístico de Niterói. Por outro lado, o MAC distancia-se dos museus contemporâneos, na medida em que o projeto ignora as exigências técnicas, cada vez mais complexas da arquitetura de museus. Como aspecto positivo, valoriza-se a plástica do edifício. Destacam-se no MAC, os ângulos de visão sucessivos e diferentes que se iniciam na rampa externa de acesso,contrapondo o volume com a paisagem. Internamente, a dinâmica mantém-se na curvatura do núcleo central de grande altura, nas frestas das paredes da circulação lateral, e nos diversos artifícios criados como, por exemplo, o banco de concreto que afasta o observador do fechamento de vidro. Em todo o percurso, o olhar do visitante é conduzido pelas paredes encurvadas, através dos vazios, sendo aproximado e afastado da paisagem distante.

Niemeyer produz uma dinâmica espacial interna, centrada na visão, mas também na experiência do corpo,da escala,protagonizada pela arquitetura. As obras de arte são expostas segundo uma disposição submetida à força dos espaços internos sempre dominantes, o que os torna alvo de crítica desfavorável de curadores e de artistas. A idéia de um volume sustentado por um apoio central com as laterais em balanço foi utilizada por Niemeyer em outros projetos como nos museus da Terra,e do Mar,em Brasília;e mais recentemente no Museu Oscar Niemeyer, em Curitiba (2002). No entanto, não é possível afirmar que este partido se constitua em um paradigma do programa na obra do arquiteto. Como nos mestres da primeira geração do

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Oca, Parque do Ibirapuera, São Paulo


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Interior do Museu Oscar Niemeyer, Curitiba

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movimento moderno internacional e como em muitos artistas modernos,a poética de Niemeyer circunscreve um número determinado de formas que fazem parte de um repertório finito. Entretanto, em Niemeyer, as possibilidades de emprego tornam-se infinitas, na medida que elas são definidas nas circunstâncias da ação,tanto no gesto projetual, como na fruição subjetiva do espectador,fenômenos que não se repetem nem no tempo e nem no espaço. Os espaços expositivos de Niemeyer seguem também a mesma premissa, espaços internos fluidos, tais como no movimento moderno, embora não transparentes. Neles, o jogo de massas e de vazios cria um novo lugar que se relaciona com o exterior,sempre segundo as condições do sítio, e nunca a priori, portanto longe de se configurar como um modelo a ser seguido.Na dinâmica das formas da poéti-

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ca niemeyeriana, a visão é com certeza o sentido privilegiado, e através dela, o observador constrói o novo entendimento do espaço e das obras nele inseridas. Maria Cristina Cabral é arquiteta, doutora em História, pesquisadora de História e Teoria da Arquitetura e professora da PUC-RIO.


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DESAFIO

IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS NA PAMPULHA

O TRAÇO MODERNO COMO ABRIGO DA FÉ SÍNTESE ENTRE VANGUARDA E TRADIÇÃO RODRIGO QUEIROZ

O

episódio que envolve o projeto e a construção da sede do Ministério da Educação e Saúde (MES-1935/1945), além de indicar a emancipação da linguagem da arquitetura moderna brasileira, rumo a síntese entre as influências das vanguardas e o compromisso com uma tradição local, pode ser compreendido como o experimento embrionário que revelará Oscar Niemeyer. No projeto do MES, Niemeyer, ao transpor para o terreno definitivo o 51


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Ministério da Educação e Saúde (1936) Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Cassino da Pampulha (1940) Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Golfe Clube da Pampulha (atual administração do zoológico de Belo Horizonte 1940) Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

partido de um estudo de Le Corbusier para um terreno à beira-mar, executa uma interpretação nacional dos postulados corbusianos, encontrando o nexo entre forma,superfície,desenho e paisagem a partir da adoção de uma arquitetura vazada,aérea, contínua e aberta que antevê,em diversos momentos, as soluções aplicadas em projetos como o Pavilhão do Brasil em Nova Iorque (1938/1939) e o próprio conjunto da Pampulha (1940). E será nesse instante que, segundo Lucio Costa,“aflora”o gênio de Niemeyer. Reconhecendo patente sensibilidade de Niemeyer,Lucio Costa abre mão de realizar sozinho o projeto para o Pavilhão do Brasil na Feira Internacional de Nova Iorque de 1939,cujo concurso de projeto foi vencido pelo próprio Lucio Costa,e prefere convidar Oscar Niemeyer - segundo colocado no concurso – para realizar um novo projeto em parceria. Com essa estratégia,Lucio Costa encontra a maneira ideal de projetar o gênio criativo de Niemeyer e a arquitetura moderna brasileira em dimensão internacional. A postura de Costa surte efeito.Em 1943,é aberta no Museu de Arte Moderna de Nova York a exposição Brazil Builds – Architecture New and Old – 1652 – 1942.Grande parte do interesse em se organizar a exposição vinha do efeito positivo gerado pelo projeto do Pavilhão do Brasil do panorama da Feira de Nova Iorque, além da declarada intenção política, onde os americanos se esforçavam para estabelecer vínculos de afeição com os “países aliados”. Em 1938, Oscar Niemeyer e Lucio Costa se estabelecem em Nova Iorque, por ocasião do

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C Fo

Hotel Resort da Pampulha – não construído (1940) Fonte: PAPADAKI, 1950:104

desenvolvimento do projeto para o Pavilhão. Durante o período de elaboração do projeto, Niemeyer é convocado pelo próprio Lucio a voltar para o Brasil. Costa indica Niemeyer para realizar aquele que seria o primeiro exemplar da arquitetura moderna no estado de Minas Gerais: o Grande Hotel de Ouro Preto. Definitivamente,o projeto não era apenas de uma construção moderna.Tratava-se de uma delicada intervenção em um contexto e uma ambientação coloniais. Niemeyer, em Ouro Preto, funde a modernidade do prisma suspenso sobre pilotis e plataforma, ao telhado de uma água e aos elementos vazados em treliça de madeira presentes nos peitoris dos terraços dos apartamentos. Passados dois anos, em 1940, Benedito Valadares, governador mineiro que já havia encomendado o Grande Hotel de Ouro Preto, convida Niemeyer para realizar o projeto de um Cassino na cidade de Belo Horizonte. Nesse instante, nascia a obra seminal da arquitetura moderna brasileira: o conjunto arquitetônico da Pampulha, cujo projeto teve prosseguimento na gestão do prefeito de Belo Horizonte, Juscelino Kubitschek de Oliveira. Após o Cassino, vieram os estudos da Casa de Baile,do Iate Clube,do Golfe Clube,do Hotel Resort, da Igreja de São Francisco de Assis e da residência de fim-de-semana de Juscelino Kubitschek. O Cassino, primeiro projeto do conjunto apesar do caráter expressivo do salão de baile e da


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Casa de Baile – Pampulha (1940) Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Iate Clube da Pampulha (1940) Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – 1940 – croqui Fonte: UNDERWOOD. 2002:55

Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – 1940 – vista posterior Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

profusão radiante de diversos materiais e da espacialidade do interior do salão de jogos – ainda mantém um vínculo literal com o legado de Le Corbusier, principalmente com as casas brancas puristas da década de 1920. No Cassino, ao mesmo tempo em que Niemeyer preserva a membrana purista suspensa, exterioriza a forma livre que se apresenta ainda conectada a forma pura. Na Casa de Baile, a separação entre os volumes iniciada no Cassino atinge maior índice de fluidez, com a planta circular do salão do restaurante e da pista de dança que se espraia em marquise sinuosa até encontrar um pequenino volume oblongo que abriga o vestiário. No Iate Clube,telhado “borboleta”e versão agigantada e transparente da casa Errazuris de Le Corbusier (1930), Niemeyer alastra a abertura ao limite físico da fachada. Não há rasgo, a janela atinge as bordas do piso, da cobertura inclinada e das empenas laterais. O espaço purista e pictórico de Le Corbusier é colocado em cheque na transparência do Iate, esbelta moldura da Lagoa da Pampulha. No projeto do Golfe Clube, Niemeyer aproveita o partido formal da casa projetada para Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral em 1938, dilata ligeiramente a escala e distende horizontalmente o objeto composto pela justaposição de abóbada e telhado invertido. O Hotel Resort,bloco em curva,reminiscência diminuta da fita ondulante proposta por Le Corbusier para o Rio em 1929,suspende-se sobre laje sinuosa que abriga as áreas de estar coletivo.

IGREJA DE SÃO FRANCISCO DE ASSIS

É no projeto da Igreja de São Francisco de Assis,entretanto,que Niemeyer concebe um objeto que transcende a regra das lajes estruturadas por retículas de pilares e inaugura sua primeira experiência efetiva com a forma livre. Não há a diferenciação entre cobertura e fechamento.Tudo é uma coisa só: a linha que emerge do chão em diagonal,encurva-se em abóbadas sucessivas. Na vista posterior da Igreja, observamos apenas a seqüência de quatro abóbadas, sendo que somente as extremas tocam,em plano inclinado,o solo.A abóbada que abriga o altar sobressai-se às cascas da sacristia e da sala do padre.Assim como nos demais edifícios do conjunto,nota-se a presença da cerâmica pintada, mas agora desprovida do significado vinculado a tradição luso-brasileira contida no motivo pintado nos fechamentos em cerâmica presentes nos demais edifícios do conjunto. A cerâmica que reveste o fechamento posterior da Igreja ocupa toda a fachada que recebe um imenso painel de Candido Portinari que retrata cenas da vida de São Francisco de Assis.Niemeyer mantém o plano vertical que recebe o mural sutilmente recuado da projeção das abóbadas. Essa solução é suficiente para evidenciar o sentido gráfico e bidimensional do plano inclinado que vira cobertura em cascas sucessivas. Com esse sutil deslocamento, o arquiteto exterioriza apenas a espessura das abóbadas e desmembra a idéia de volume.A borda das abóbadas revestida em pedra apicoada imprime o contraste necessário com a extensa parede vitrificada em plano recuado. Com a exímia precisão na disposição do

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Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – 1940 – adro Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

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plano vertical e do perfil envoltório em arco, Niemeyer faz com que a construção assuma a qualidade gráfica do desenho e o que apreendemos é um mero contorno que se destaca do fechamento, como um traço que sai do chão, suspende-se em seqüência aérea e retorna - em plano concordante aos arcos das abóbadas extremas - ao chão. A maior abóbada do conjunto,que abriga a nave, o nártex, o coro e o batistério, possui seu fechamento em vidro transparente e recebe uma superfície de brises verticais que parte do alinhamento com o piso do coro e preenche toda a porção encurvada da abóbada. O acesso principal é protegido por marquise inclinada sustentada por pilar em “V” encurvado, interpretação lírica do mesmo conjunto de marquise inclinada e pilar em “V”presente na entrada o projeto de Le Corbusier para o Exército da Salvação (1929).A extremidade mais alta da marquise inclinada intercepta o campanário em forma de tronco de pirâmide invertido de pronunciada proporção vertical que sensivelmente aumenta de secção conforme se eleva. A treliça de madeira do campanário possui tessitura irregular que se afrouxa na medida em que ascende verticalmente. Com esse artifício quase gráfico, Niemeyer enfatiza o sentido de expansão vertical do campanário. A abóbada que abriga a nave diminui de secção conforme se aproxima do retábulo.Sua extremidade menor abriga-se sob o pequeno trecho da abóbada do altar que se projeta sobre a abóbada da nave. Do encontro das extremidades internas de ambas as abóbadas (nave e altar) que sobrepõemse mas não se tocam, resta uma fresta, é o rasgo necessário para banhar de luz o retábulo de São Franscisco de Assis.Ambas as abóbadas afunilamse na medida em que se aproximam uma da outra. Com essa solução,Niemeyer concebe uma versão em abóbada da cobertura em telhado invertido. Aos moldes da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, projetada por Antônio Francisco Lisboa,o Aleijadinho,em 1766,no exemplar de Oscar Niemeyer,a nave é coberta por um forro de madeira em ripa de sentido longitudinal. O revestimento de madeira não avança na abóbada do altar,restringe-se à nave.

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O púlpito lateral ao altar,revestido de cerâmica,recebe a pintura em motivo sacro de Portinari e assume destaque na perspectiva do altar que abriga apenas as volumetrias do púlpito e do ambão caracterizado por uma simples bancada sustentada por dois apoios.Assim como no exemplar da Pampulha, os púlpitos em pedra-sabão esculpidos por Aleijadinho também se destacam nas composições barrocas. São como uma saliência em pedra que salta da parede caiada. Os púlpitos de Aleijadinho são o registro de sua exímia habilidade sobre a técnica da talha em pedra-sabão.As inscrições litúrgicas em alto relevo sobre a superfície irregular e arqueada do púlpito demonstram o domínio da técnica da talha. Ao fundo do altar-mor,Portinari executa mural em têmpera que ocupa toda a parede, intitulada “São Francisco se despojando das vestes”.Trata-se de uma versão moderna de um retábulo que perde a efusiva materialidade barroca e se restringe a simples pintura. Os pequenos altares laterais, presentes nas igrejas barrocas, inexistem no exemplar de Niemeyer. A própria concepção elementar da abóbada que toca o chão em plano diagonal - que caracteriza a nave - impossibilitaria o arranjo dos altares laterais. A solução encontrada foi a introdução de dois degraus laterais, um de cada lado, que percorrem toda a extensão da nave. Sobre esses degraus, fixados no plano inclinado da abóbada encontram-se dezesseis gravuras de Portinari, oito de cada lado, que ilustram a Via Sacra, mesmo tema pintado por Manuel Gonçalves Neves em suas pinturas parietais presentes na Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis em Ouro Preto. Os atributos barrocos, em Niemeyer e Portinari, perdem sua presença material. Não há uma reminiscência sequer das “folhas de acanto” ou das “colunas salomônicas”. O diálogo com a arquitetura religiosa do Brasil-Colônia reside em uma interpretação de seus atributos simbólicos e não de seus elementos ornamentais. A Igreja da Pampulha,por sua esbeltez gráfico-pictórica,esvazia a alegoria barroca,reduzindoa a uma peça em casca que abriga desenhos em suas superfícies exteriores e interiores. A luz natural que invade a nave é difusa,não atinge com intensidade o forro em madeira.Tanto o brise como a laje do coro impedem,propositalmente,que a luz natural invada deliberadamente a nave e,mesmo a luz que chega à nave,é delicadamente absorvida pela opacidade da madeira natural que reveste a face inferior da casca. Por pleno contraste e oposição à retidão da oração do ambiente na nave, o altar é iluminado por uma luz que vem de cima, da fresta entre as abóbadas.A luz indireta que banha o altar é refletida na alvura da face inferior da abóbada. Quem


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está na nave,olhando em direção ao altar,contempla uma suave coroa de luz que nasce no exato instante em que a nave termina e começa o altar. Trata-se de um arco-cruzeiro imaterial, é apenas luz, a luz misteriosa e arrebatadora presente nas igrejas barrocas:sabe-se que ela existe,mas não se sabe de onde ela vem. De todos os edifícios do Conjunto da Pampulha, considerando suas individualidades, o único que atinge o sentido de monumento é a Igreja de São Francisco de Assis.A idéia de monumento,definitivamente,não se refere à escala,mas ao conjunto de significados e aos valores simbólicos e estéticos que conferem ao edifício a condição de obra de arte. A experiência precursora de Niemeyer traduz, com estilemas modernos, os atributos litúrgicos de uma construção religiosa típica do período colonial.Ao sintetizar, em forma e superfície, as alegorias e a ambiência do lugar da oração, Niemeyer confere o sentido moderno a um programa ainda pouco explorado pela arquitetura do período. O exemplo da Igreja da Pampulha não se reduz a mera aplicação moderna dos motivos eclesiásticos. Niemeyer, ao interpretar o imaginário barroco,confere à arquitetura moderna o sentido lúdico e simbólico do lugar de fé e oração,que não provém da forma moderna,mas da forma sensível que se constitui moderna em sua essencialidade, em sua capacidade de sintetizar, em um único traço contínuo, a tensão do excesso e do êxtase das volutas e contra-volutas do Barroco Mineiro. Compreendemos que a mensagem contida das curvas da Igreja da Pampulha é oposta a aquelas presentes nas experiências de Aleijadinho. Ambos os arquitetos detém o domínio da curva a serviço de uma lógica individual. Enquanto Aleijadinho concebe a curva como instância particular que multiplica-se em profusão radiante, Niemeyer age de maneira diametralmente inversa, distendendo em gesto parabólico a racionalidade moderna. As autoridades clericais mineiras não veriam com bons olhos a arte moderna como suporte para a fé. Dado o futuro incerto da Igreja de São Francisco de Assis, devido a resistência em consagrá-la,em dezembro de 1947 foi aprovada a proposta de tombamento preventivo do templo, baseada em quatro justificativas: 1.“Estado de ruína precoce (...) devido a certos defeitos de construção e ao abandono ao que foi relegado esse edifício pelas as autoridades municipais e eclesiásticas”; 2.“abandono irresponsável ou utilização,em outras igrejas,de modo inconveniente,porque em desacordo com seu estilo peculiar, de numerosas peças do edifício (altar,órgão,bancos e via-sacra)”;

3.“louvor unânime suscitado pelo conjunto do exterior”; 4.“valor excepcional do monumento” Durante anos acirram-se os conflitos entre: as autoridades clericais, contrárias a consagração; as diversas gestões que passaram por Belo Horizonte,de posicionamento variável;e a opinião pública, favorável ao projeto. Somente em 11 de abril de 1959,a Igreja de São Francisco de Assis da Pampulha é consagrada. E será durante o período que envolve as discussões sobre a consagração da Igreja da Pampulha, que um outro exemplar moderno da arquitetura religiosa será concebido:o projeto de Le Corbusier para a Capela de Notre-Dame du Haut, em Ronchamp,no sudeste da França,em 1950. O projeto de Le Corbusier para a Capela em Ronchamp sintetiza a inclinação ao arcaico, ao vernáculo primitivo,de um arquiteto descrente da perspectiva de uma arquitetura que, para afirmarse como moderna, deveria assumir as condições estéticas e técnicas da sociedade industrial. Le Corbusier em Ronchamp, também especula a possibilidade de estabelecer um diálogo entre os espaços sacros e a conduta moderna. A substituição dos elementos e da ambiência religiosa tradicional por uma intenção plástica dinâmica que intenta traduzir a atmosfera litúrgica em um gesto contínuo e curvo, aproxima as experiências de Le Corbusier e Oscar Niemeyer. Entendemos que a proximidade entre a Igreja da Pampulha e a Capela de Ronchamp reside muito mais na intenção plástica do que na suposta semelhança literal entre os elementos formais comuns aos projetos. Ambos os arquitetos possuem um problema comum:desenvolver o projeto de um templo que represente a afirmação da fé de uma comunidade condicionada aos valores religiosos enraizados no lugar e sedimentados com o passar dos séculos:o lugar de meditação dos peregrinos na Borgonha de Le Corbusier e a casa da religiosidade mineira de Niemeyer. Os pontos em comum presentes na Igreja de São Francisco e na Capela de Ronchamp não

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Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – 1940 – vista lateral Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – “São Francisco se despojando das vestes” - mural em têmpera sobre parede de Cândido Portinari – 7,5m x 10,60m, 1948. Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha – 1940 – coro Fonte: acervo Rodrigo Queiroz


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residem apenas no problema encontrado, mas, principalmente, na maneira como os arquitetos irão enfrentar a forma do abrigo que envolve a fé: espaço moderno que promoverá momentos de oração e contemplação. A adoção da forma livre é característica comum entre as soluções de Le Corbusier e Oscar Niemeyer, que enfrentam o problema do templo a partir da flexibilização da linguagem moderna que, nesse caso, se presta como invólucro de um programa simbólico,ritualístico,oposto a perspectiva pragmática do funcionalismo utilitário que formaliza-se a partir de especulações puristas.

13: Capela de Notre Dame du Haut – Ronchamp – Le Corbusier – 1950 Fonte: BOESIGER, 1971:263

Dentro das experiências de Le Corbusier onde figuram esquemas organizacionais hierarquizadores da intensidade da linguagem,a Capela de Ronchamp surge como um exemplar que comprova a predileção do arquiteto por soluções expressivas para abrigar programas de dimensão coletiva que evoquem o alimento ao espírito, tais como museus,assembléias e templos. Essa inclinação de Le Corbusier não aproxima apenas a Capela de Ronchamp à Igreja da Pampulha,mas também indica as direções parecidas que tomam as obras de ambos os arquitetos. A Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha funde em um traço contínuo,a superfície material barroca ao desenho dos arcos encaixados presentes nos projetos do atelier de Le Corbusier de 1929 e - por que não? - no hangar de Freyssinet em Orly. A igreja da Pampulha, obra-prima de Oscar Niemeyer,sintetiza no traço e na matéria o maior desafio enfrentado pela arquitetura moderna brasileira:legitimar seu valor e seu sentido através

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de um diálogo bi-lateral com a cultura nacional e com a vanguarda,fundindo em um único arranjo construtivo-pictórico essencial, os conceitos de modernidade e lugar. Rodrigo Queiroz é arquiteto, professor da FAU-USP, com pesquisas de mestrado e doutorado sobre a obra de Oscar Niemeyer. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOESIGER, Willy. Le Corbusier 1910-1965. Barcelona, Gustavo Gili, 1971. BORDA, Luis Eduardo Borda. O nexo da forma: Oscar Niemeyer: da arte moderna ao debate contemporaneo. Dissertação de mestrado ECA-USP.2003 BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 2. ed., 1991. COSTA, Lucio. Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995. CAVALCANTI, Lauro. As preocupações do belo. Rio de Janeiro. Taurus, 1995. __. Modernistas na repartição. Rio de Janeiro UFRJ / Paço Imperial / Tempo Brasileiro. Apoio Fundação Universitária José Bonifácio, Banespa, 1993. __. Moderno e Brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-1960). Rio de Janeiro. Jorge Zahar, 2006 CABRAL, Fernando Frank. A procura da beleza: aprendendo com Oscar Niemeyer. Dissertação de mestrado, FAUUSP, 2002 COLQUOUN, Allan. Modernidade e Tradição Clássica: ensaios sobre arquitetura. São Paulo. Cosac Naify. 2004. FABRIS, Annateresa. Fragmentos urbanos: representações culturais. São Paulo, Studio Nobel, 2000. FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo. Martins Fontes, 1997. GOODWIN, Philip L. Brazil bulds: architecture new and old, 1652-1942. New York. The Museum of Modern Art, 1943. HARRIS, Elizabeth. Le Corbusier: Riscos Brasileiros. São Paulo, Nobel, 1997. LISSOVSKY, Mauricio, SÁ, Paulo Sérgio Moraes de. Colunas da Educação a construção do Ministério da Educação e Saúde (1935-1945). Rio de Janeiro: MINC/IPHAN, FGV/CPDOC, 1996. MINDLIN, Henrique E. Arquitetura moderna no Brasil. Rio de Janeiro, Aeroplano, 1999. NIEMEYER, Oscar. As Curvas do Tempo - Memórias/Oscar Niemeyer. Editora Revan: Rio de Janeiro, 1998. PAPADAKI, Stamo. The work of Oscar Niemeyer. New York, Rheinhold Publishing Co. 1950. __. Oscar Niemeyer: works in progress. New York, Rheinhold Publishing Co. 1955. TIRAPELI, Percival. Arte colonial: barroco e rococó – do século XVI ao XVII – Coleção Arte Brasileira. São Paulo, Companhia Editora Nacional, 2006. UNDERWOOD, David. Oscar Niemeyer e o modernismo de formas livres no Brasil. São Paulo, Cosac Naify, 2002. VALLE, Marco Antonio Alves do. Desenvolvimento da forma e procedimentos de projeto na arquitetura de Oscar Niemeyer (1935-1998). Tese de Doutorado. FAU-USP. 2000.

NOTAS COSTA, 1995:136 “(...) foi durante esse curto, mas assíduo convívio de quatro semanas que o gênio incubado de Oscar Niemeyer aflorou.” Exposição organizada por Philip Goodwin, com fotografias de G. E. Kidder Smith. A exposição Brazil Builds percorre diversos museus americanos até o ano de 1947. O catálogo da exposição transforma-se na primeira publicação panorâmica sobre a arquitetura moderna brasileira. Apesar de todo o alarde gerado pela exposição e pelo catálogo, vale lembrar que a Igreja de São Francisco de Assis na Pampulha - projeto que definitivamente promove a arquitetura moderna brasileira no cenário internacional – não integrava nem a exposição e nem o catálogo. Após a conclusão das obras da Pampulha, Philip Goodwin realiza um outro catálogo, bem menor, apenas com os edifícios da Pampulha. Cf.: CAVALCANTI, 2006: 165-171 Cf.: CAVALCANTI, 2001: 254-257 De todos os projetos para o conjunto da Pampulha, apenas o Hotel Resort não foi construído. O edifício do Golfe Clube abriga hoje a sede administrativa do Zoológico Municipal de Belo Horizonte. BOESIGER, 1994:48 TIRAPELI, 2006:78-81 Na planta da Igreja de São Francisco de Assis, observamos dois púlpitos, um de cada lado do altar, porém, apenas o púlpito do lado esquerdo foi executado. Em carta do Diretor da DET ao Diretor Geral sobre tombamento da igreja da Pampulha (07 out. 1947) apud FABRIS, 2001:187-188.


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LEGADO

NIEMEYER

E O PATRIMÔNIO RIQUEZA MORAL, CULTURAL E INTELECTUAL PERCIVAL TIRAPELI

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iemeyer merece homenagens. É nosso patrimônio no sentido mais lato. As imagens arquitetônicas criadas por gênio incansável e inventivo dificilmente podem ser transformadas em palavras. Sentir o mestre como um patrimônio – no sentido figurado da riqueza moral, cultural e intelectual – me alivia da árdua tarefa quase infindável de elencar seus projetos e sua obra que ganhou o mundo. Mesmo escrevendo sob o ponto de vista de que sua obra é 57


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Eixo Monumental de Brasília – vista da torre de televisão Fonte: acervo Percival Tirapeli

Palácio do Planalto - 1957 Fonte: acervo Percival Tirapeli

patrimônio da cultura brasileira,é difícil a síntese, que requereria uma profundidade certamente impossível neste pequeno artigo. Falar do arquiteto sem elencar sua arquitetura é tentar encontrar um elo entre todas as suas obras. Por vezes a escolha do local da obra não é vontade do arquiteto. Quando isto ocorre com o mestre carioca a escolha é sem dúvida iluminada por um pensamento/traço, daquele que reconstrói uma obra em sintonia com a paisagem. Assim é Brasília (1957), patrimônio da humanidade, ereta sobre o traçado simbólico do amigo e companheiro Lúcio Costa. A funcionalidade do Plano Piloto expressa nas linhas horizontais do urbanista permitiram construir uma paisagem cultural dispondo volumes arquitetônicos, verticais simbólicas, arcos inimagináveis na praça dos Três Poderes e o enraizamento de diversos edifícios nos desníveis propositadamente construídos.

Mesquita na Argélia – 1968 - maquete Fonte: acervo Percival Tirapeli

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PATRIMÔNIOS NATURAL E CONSTRUÍDO

Niemeyer parece não sentir o peso da materialidade. Se em Brasília criou a volumetria do nada ao redor, com a água fez o mesmo na Argélia (1968) erguendo uma mesquita como espuma das ondas, criando uma surpresa para nós,que associamos a África às areias desérticas. Em Niterói, no Museu de Arte Contemporânea (1991), homenageou a luz que inunda a Baía da Guanabara. Entre o céu e a terra dispôs uma forma perfeita na paisagem lítica e aquosa. No projeto do Museu de Arte Moderna de Caracas (1954), desafiou sua musa, sem compasso criou um bloco piramidal invertido - desafiador da invenção do sagrado Imotep.Em Curitiba,o povo apelidou o Museu Oscar Niemeyer (2002) de Olho .Acerto de ambas as partes: a extensão do olhar do criador sobre a arte e aquele do povo que quer compreender a criação. Este poder de interferir nos patrimônios naturais como as águas das praias fluminenses,


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nos perfis das montanhas de Caracas, na tranqüilidade da perspectiva infinita, animada apenas por nuvens em Brasília, é missão de um Prometeu. Este brilho em poder construir novos fatos para a humanidade é sem dúvida o da criação de novos patrimônios culturais. Em todas as ações há acertos ou erros, como no do mestre modernista Le Corbusier ao esboçar uma solução urbanística para a cidade de São Paulo nos anos 29. Os edifícios sustentariam duas imensas autopistas, nivelando a rugosidade do terreno, privilegiando os carros e condenando seus habitantes a moradias sob as vias expressas. Niemeyer, ao contrário, tão sabiamente utiliza a paisagem construída, dura e verticalizada da capital - e no seu quarto centenário (1951), cria um monumento ondulante no centro da cidade.O edifício Copan, uma cidade dentro da outra como pretendia o mestre franco-suíço, quebra a sisudez arquitetônica e cria no entorno uma

Museu de Arte de Caracas - 1954 Fonte: PAPADAKI, Stamo. Oscar Niemeyer works in progress. Reinhold, 1955, p.83

ambiência para a criação de edifícios elíptico (edifício Itália) e cilíndrico (Hotel Hilton). Os livros cumprem o dever de expor a obra do mestre de forma cronológica. O que aqui busco é o perene em sua obra e tantas vezes por ele mesmo enfatizado, a liberdade e inventividade das curvas.Seus edifícios têm estruturas baseadas na simplicidade absoluta que evocam a solução perfeita sem o mínimo de ornamento.

Edifício Copan – São Paulo - 1951 Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Museu de Arte Contemporânea de Niterói – 1991 Fonte: acervo Percival Tirapeli

Museu Oscar Niemeyer – Curitiba, 2002 Fonte: acervo Percival Tirapeli


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Arriscaria dizer que o arquiteto percebe ser a obra ornamento na paisagem. Não sobrecarrega a estrutura que flui como primo pensiero. A geometria na ponta dos dedos segue o raciocínio claro da mente criativa que sabe interferir na paisagem criada pela natureza ou pelo homem. EVOCAÇÃO DAS ÁGUAS

Igreja de São Francisco de Assis – Belo Horizonte - 1940 Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Salão de Atos – Memorial da América Latina – São Paulo - 1986 Fonte: acervo Rodrigo Queiroz

Parque Ibirapuera – São Paulo - 1951 Fonte: acervo Percival Tirapeli

A capela da Pampulha (1942) em Belo Horizonte foi o primeiro alerta criativo do arquiteto com quem o mundo logo se acostumaria a conviver. Curvas, ondas, concreto, água, brilhos e transparências fazem da capela francisca um atentado à inteligência eclesiástica conservadora. A Igreja recusou sua consagração. Foi antes de tudo motivada pela incompreensão do novo, ante o painel de Portinari representado São Francisco. Quase meio século depois criou o Memorial da América Latina (1986) na capital paulista. Não seria heresia transportar a mesma seqüência de abóbadas horizontais. Transposição essa mais facilmente percebida no auditório – composto por uma seqüência de abóbadas,e não no Salão de Atos, composto apenas por uma abóbada. Aquela pequena torre na capital mineira que lembra as sineiras das capelas rurais se agiganta nos imensos obeliscos (evocam as chaminés das indústrias paulistas ) que suportam a viga sobre a qual repousa a casca de concreto. Voltando para Belo Horizonte,a capela tem vistas privilegiadas. Repousa horizontalmente à margem da lagoa, refletida nas águas. Em sua parte posterior, voltada para a rua, brilham azulejos – patrimônio cultural colonial. Em São Paulo, o Salão de Atos tem sua visibilidade dirigida à parte anterior e a curva truncada continua no espelho d’água, transformando-a em voluta. Ciente ou não, o artista confirma o nome geográfico do lugar: Barra Funda. Ali as águas do Tietê se espraiavam ante a depressão formada pelo ribeirão que nascia lá pelos lados do estádio do Pacaembu.O arquiteto retoma as águas, recoloca-as em seu lugar original e restitui um patrimônio natural – agora alegórico perdido no atropelo do progresso. Mesmo assim, nós paulistanos reclamamos da falta das árvores que nunca existiram naquele local. Por fim,no interior do Salão de Atos,aquele que poderia ter sido a alma gêmea de Niemeyer, o pintor Cândido Portinari, com o painel Tiradentes que foi comprado pelo governo paulista de uma escola – o “Colégio para meninos”,também de autoria de Niemeyer (1946),na cidade mineira de Cataguazes. Exatos 40 anos depois, por destino ou não, repete-se a genial parceria. O painel de Portinari dialoga com projetos de Niemeyer de fases distintas: a escola de pastilhas e elementos vazados no interior


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Le Havre – França - 1972 Fonte: acervo Percival Tirapeli

mineiro – produto da experimentação de uma linguagem que flerta com a tradição construtiva nacional - e o traço contundente e cru do Memorial. Completa-se assim um ciclo: Pampulha,Cataguazes,São Paulo. A evocação das águas está na solução horizontal desafiante da verticalidade circundante do edifício das Nações Unidas em Nova Iorque (1947) e seu reflexo agitado pelos barcos nas águas da baía do rio Hudson. Diferente é no Olho, Museu Oscar Niemeyer em Curitiba, no qual nos convida a entrar no edifício por rampas e corredores subterrâneos.O reflexo no espelho d’água tem a mesma amplitude que o volume lançado no espaço com o recurso do terreno em desnível.A fluidez das águas – naturais ou artificiais – está presente na maioria de seus projetos. EVOCAÇÃO DA TERRA

A relação dos arquitetos com a terra, por vezes é apenas de posse.Base natural para a criação e sustentação do volume. Por vezes, o atravancamento da paisagem, ou seja, destruição do patrimônio natural. No Parque do Ibirapuera em São Paulo está a Oca (1951). Obra de menor tamanho se comparada à monumentalidade do parque, mas de reconhecimento público tanto quanto o monumental edifício Copan. Em um

parque com nome indígena, a Oca passa desapercebida como uma homenagem à fundação de São Paulo, da mesma maneira que o Copan. Soluções tão diferentes para mesma ocasião.A Oca dos índigenas e as curvas do edifício suavizam a rigidez da modernidade nascida na capital nos anos 22.Patrimônio moral para um povo receptivo? A evocação da terra é apenas uma licença poética, pois em arquitetura seria a utilização dos níveis e desníveis. Mas a Oca, mesmo não completa,é uma penetração na Gaia. Há dois momentos distintos nas obras que utilizam o rebaixamento da terra: no plano e no desnível.O primeiro,mais comum,como na Oca, na Catedral de Brasília e no aproveitamento dos terrenos - como a parte do subsolo dos museus de Curitiba e Niterói. Na França, em Paris, o auditório diante do edifício do Partido Comunista (1965); no porto de Le Havre (1972) o desnível é simbólico, para mencionar aqueles que conheço. A Oca se completou com a construção do Museu da República ao lado da biblioteca em Brasília. O museu evoca a Oca, mas a completa, pois penetra a terra ao mesmo tempo em que circunda a calota com leve rampa externa. Realiza a ascensão do usuário que usufrui ao mesmo tempo do interior e exterior, das sensações da concavidade e convexidade,

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das sensações de proteção e liberdade que a arquitetura niemeyeriana nos oferta. Na cidade portuária francesa Le Havre,elevada a patrimônio da humanidade, o rebaixamento do terreno é sem dúvida simbólico. A cidade arrasada pelos horrores da segunda guerra criou um centro cultural ao longo de ampla avenida, conjugando de um lado os novos edifícios da modernidade que evocam a reconstrução da França e o porto tendo ao centro um monumento às glórias francesas. Respeitosamente Niemeyer criou uma trincheira e de lá erigiu o que popularmente se denomina de vulcões. Imensas formas cônicas são interligadas por uma praça rebaixada e rampas ascendentes e descendentes, ao nível das vias.Uma homenagem à resistência do povo aos horrores da guerra. Estava criado um patrimônio cultural, dentro de uma paisagem desolada e reconstituída com a pujança que hoje se vê a seu redor. O monumento, feito nos moldes ecléticos, em nada foi ferido, visto que esta é uma herança da arte francesa que se difundiu pelo mundo no final do século XIX e início do XX.Ao longo das autopistas que levam à cidade,a arquitetura de Niemeyer é tema para a sinalização, lembrando sua proximidade. PATRIMÔNIOS CULTURAL E IMATERIAL

Há momentos de percepção da obra de Niemeyer que determinam um consenso geral de sua genialidade e, reconhecidamente, foram aclamados como patrimônio cultural da humanidade pela Unesco; outros o foram como imateriais expressões que são da cultura brasileira. Esta sensação nos perpassa a o ver tanto a paisagem construída de Brasília como plano inaugural, como o não previsto, caso do Memorial JK - inserido no Eixo Monumental como mais uma obra de arte. Contra as regras da arte tumular, o volume arquitetônico pousa sobre o leve declive do terreno. Levantada a possibilidade de ser aclamada como patrimônio da humanidade, a cidade moderna com todos os seus palácios teve a adesão da intelectualidade mundial. Sem dúvida o pensamento de uma cidade ideal, onde o povo seria convidado a entrar nos palácios pelas rampas, é utopia que não se realizou. Porém, o pensamento de uma política transparente e justa está imbuído na gênese da nova capital. A isto se pode chamar de patrimônio imaterial, desejo nunca realizado do sofrido povo brasileiro sempre maltratado pelos ditadores em sua época e políticos eleitos - que roubam neste início do século XXI até a esperança do povo. A catedral, por sua vez, expressa a espiritualidade em sua leveza arquitetônica.Disposta em

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um grande platô, pode ser vista pelo povo por cima da via da antiga rodoviária, ao mesmo tempo em que não atrapalha a visualidade do poder laico. Se vista a partir do nível da terra é a união dos experimentos estéticos e simbólicos:evocação da terra (catacumbas),das águas (do batismo) e da luz (espiritualidade), unidos como um patrimônio imaterial religioso. Sem dúvida é a mais inventiva forma arquitetônica, concebida com originalidade depois de dois mil anos de tradição formal eclesiástica. Ali perto, após uma seqüência de blocos arquitetônicos dos ministérios, apenas para refazer a admiração o arquiteto corporifica o ideal da política brasileira: o edifício do Itamaraty. Pelo nome, é transposto da antiga capital o patrimônio imaterial da política imperial e transformado na capital republicana como sede de nossas relações exteriores. É o Brasil voltado para o mundo, assim como o edifício é implantado em meio aos espelhos d’água.Inspirado nos edifícios neoclássicos que circundam o espelho d’água da construção carioca, o arquiteto inverte a posição do edifício brasiliense que - livre sobre as águas - pode ser admirado por todos os lados. Os arcos em toda a volta criam uma volumetria ímpar, longe da concepção das fachadas anterior, posterior e laterais para criar um bloco que abriga o que deveria ser nosso patrimônio cultural e imaterial – o relacionamento,o congraçamento da cultura brasileira com o mundo. Percival Tirapeli, professor doutor do Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista, UNESP, é diretor de projetos especiais do ICOMOS – Comitê Internacional de Monumentos e Sítios, órgão vinculado à UNESCO.É autor de, entre outros, Patrimônios da Humanidade no Brasil/ World Heritage in Brazil (2001), Coleção Arte Brasileira (cinco volumes, 2006) e São Paulo Artes e Etnias (2007). BIBLIOGRAFIA Dossiê IPHAN – UNESCO.Série Inventário – Caixa 0093.IPHAN – DID. Arquivo Noronha Santos,Rio de Janeiro. NIEMEYER, Oscar. Minha experiência em Brasília. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,1960. -----Textes et dessins.Paris:Forces Vives,1965. ----A forma na arquitetura.Rio de Janeiro :Avenir Editora,1978. ----Em defesa de Brasília.In:Correio Braziliense.Brasília,05/11/2000.p.6-10. --- Conversa de amigos:correspondência entre Oscar Niemeyer e José Carlos Sussekind.Rio de Janeiro:Revan,2002.256 p. TIRAPELI, Percival. Patrimônios da Humanidade no Brasil/World Heritage in Brazil.São Paulo:Metalivros,2004.


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Memorial Juscelino Kubitschek – Brasília - 1981 Fonte: acervo Percival Tirapeli

Catedral Metropolitana de Brasília - 1959 Fonte: acervo Percival Tirapeli

Palácio do Itamaraty – Brasília - 1962 Fonte: acervo Percival Tirapeli

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PARADIGMA

COPAN

UMA CIDADE EM SÃO PAULO INUSITADA ONDA NA METRÓPOLE GUILHERME WISNIK

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Copan é, sem dúvida, um dos mais importantes símbolos de São Paulo. Tanto por sua localização, na confluência das Avenidas Consolação, Ipiranga e São Luíz, quanto pela sua escala monumental e por sua belíssima forma, uma inusitada onda na metrópole tão desprovida de “graça”. O Copan é o paradigma do edifício moderno e sua inserção na cidade: vertical, permitindo grande

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FOTO: CASTOR FERNANDEZ

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densidade de ocupação, franco e aberto no plano da rua, animado pela vida efervescente da circulação à pé no centro urbano. É hoje uma miragem numa cidade superpovoada de shopping centers, condomínios e edifícios cercados. Mas esse símbolo, quase uma onda de auto-estima na cidade (“é a nossa praia”),passou por um período de maus tratos, rotulado por muitos de cortiço.Além disso, seu cinema se transformou em uma Igreja Evangélica. Outro aspecto que fere o tímido orgulho paulistano, acentuando o estigma de sua “deselegância discreta”, é o fato de o Copan ser uma obra renegada por Oscar Niemeyer, devido à atribulada história de sua construção,que resultou em amputações inaceitáveis no projeto. Aliás, o conjunto do Parque Ibirapuera é outra obra paulistana que ficou muito tempo inconclusa,fato que o arquiteto carioca não cansa de lamentar. É que São Paulo é mesmo, em grande medida, o avesso do “projeto”, uma cidade inacabada em sua raiz, cuja transformação contínua impede a plena realização da obra de arte, com o grau de acabamento que ela requer. “Aqui tudo parece que é ainda construção e já é ruína”. O verso de Caetano Veloso fala de um Brasil bem paulista,acostumado com o aspecto mutante e muitas vezes chocante das coisas. Nesse sentido, o Copan “ruinoso” de hoje, descaracterizado desde a origem pela desorga-

nização especulativa da classe empreendedora da cidade, fala muito sobre sua própria realidade,ganhando interesses outros que não só os de uma beldade arquitetônica. O seu projeto é de 1951, mas o edifício foi inaugurado apenas em 1966. Concebido num momento em que São Paulo passava por um surto de verticalização,o Copan viria a ocupar o terreno onde estava a Vila Normanda. Formada por um conjunto de sobrados preparados para enfrentar a neve, a Vila era a representação grotesca de um momento que ficava pra trás, a época nostálgica em que São Paulo era a “Londres das neblinas finas”.Mais afim ao espírito da nova metrópole cosmopolita, o Copan foi idealizado como um empreendimento misto, com hotel, habitação, escritórios e comércio, a cargo da Companhia Panamericana de Hotéis e Turismo, que lhe empresta as iniciais. A Companhia, que pertencia ao Banco Nacional Imobiliário, passou por uma intervenção do governo em 1954,paralisando as obras.Na década seguinte, quando foi inaugurado, o Copan já não tinha mais o setor de hotéis,mas manteve-se dividido em 6 blocos, contando com 20 elevadores,82 lojas,e 1.160 unidades habitacionais, que variam de quitinetes até apartamentos com 3 quartos.Essa grande diversidade de usos faz do Copan um lugar extremamente interessante, aglutinador de diferenças em muitos níveis

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Edifício Copan, São Paulo


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(social, cultural, profissional), tornando-o, de fato, um poderoso emblema da cidade. Um emblema com capacidade de alterar seu conteúdo ao longo do tempo. A ausência, em São Paulo, de contornos definidos e relevos naturais salientes, impossibilitando a apreensão da cidade em sua dimensão sensível,faz com que ela se reconheça em ícones edificados, como o Copan. Este, torna-se seu símbolo, mas não apenas porque é um contraponto de leveza à cidade embrutecida. Ele também tem a brutalidade que São Paulo identifica como sua, tanto na gigantesca proporção (possui 32 andares com 10.572 m2 cada), como na aparência severa do concreto armado. Quando esteve no Brasil em 1929, Le Corbusier idealizou megaintervenções urbanas no Rio de Janeiro e em São Paulo,em que o partido adotado era o mesmo: construir circuitos contínuos de edifícios quilométricos suspensos sobre pilotis, que comportassem uma autopista para automóveis na sua cobertura. Seriam “edifícios-cidade” (prenúncio das megaestruturas dos anos 1960), ou “terrenos artificiais”, como diz Lucio Costa. Diante da paisagem menos exuberante da capital paulista, adotou uma forma de implantação mais rígida do que no Rio: a cruz (dois grandes edifícios se cruzando). Porém a beleza poética de sua idéia é sutil, e está na percepção topográfica da cidade, feita de colinas. Os edifícios alinhariam a cidade por cima, criando duas grandes plataformas horizontais a partir de suas cotas mais altas, os espigões. Hoje, a vista 360o que se tem desde a cobertura do Copan, implantado em um vale, dá uma dimensão palpável do que poderia ser essa cidade visionária. O Copan pode, portanto, ser visto como um fragmento real desse grande edifício corbusiano que só existe no plano da fantasia, com o acréscimo, é claro, das curvas. Por essa filiação, o Copan é radicalmente diferente do Edifício Itália e do Hilton Hotel, seus vizinhos. Enquanto estes são apenas torres, o Copan é uma cidade vertical. Implantado em forma de “S”, tem uma extensão contínua preenchida com galerias de comércio no térreo e um jardim suspenso, numa cota intermediária. São lições herdadas da matriz corbusiana, concretizadas na Unidade de Habitação de Marselha, de 1947, aqui reinterpretadas magnificamente. O edifício não é belo nem feio em si, pois não é auto-referente. Ele não resulta das normas restritivas da legislação, não se acomoda a elas. É um equipamento urbano, pois interage com a cidade. Sinal disso é a topografia movimentada do seu térreo. O piso da calçada interna nas galerias comerciais não

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é “fabricado”, nivelado, como de um shopping center ou de qualquer espaço que se adentra tendo-se já “saído” simbolicamente da cidade. Os desníveis desse piso acompanham a topografia do terreno,que se acomoda entre as alturas dos lotes vizinhos e das ruas. A forma prismática e torcida do edifício, por sua vez, altera a percepção da cidade, como se uma peça gigante de Richard Serra tivesse sido implantada no centro de São Paulo, desequilibrando o ritmo monótono de seus prédios. No caso, a vertigem não é só da altura, pois ocorre tanto no olhar de cima pra baixo quanto de baixo para cima. Analogamente, a relação ativa que estabelece com a cidade não se dá apenas de fora para dentro – o volume no espaço –, mas também em sentido inverso. Uma simples quitinete do Copan, tem 18 m2 de janela para a cidade.As aberturas são plenas, de piso a teto, emoldurando São Paulo como um fragmento enorme em diversas alturas. Seus grandes quebra-sóis servem também como uma curiosa varanda em abismo, um sofá-mirante da cidade. O projeto, assim, dissolve a visão burguesa da “casinha arrumada”, propondo uma moradia que está em relação imediata e obrigatória com a metrópole. Há quem veja nessa superexposição forçada uma forma de opressão. É claro que os labirintos da vida privada são infinitos, e também no Copan o lar burguês pode ser recomposto, tornando-se um apartamento qualquer de Moema, Santana ou Morumbi. Decodificar essas transformações é também uma maneira rica de aproximar-se do edifício. O fato é que o Copan é múltiplo,pois concentra a diversidade, e por isso resiste. Se São Paulo seguiu o modelo urbano norte-americano de periferização e degradação progressiva do seu centro, este, tornou-se desvalorizado, sujo, abandonado. Mas, nesse movimento, não deixou de ser um microcosmo do Brasil, com suas pulsações vivas. O Copan é também um símbolo dessa diversidade possível, enriquecedora, pois a generosidade de sua concepção convida a uma experiência coletiva verdadeiramente urbana, resistente à postura blasé de uma elite ilustrada que pretende “reconquistar” o glamour do centro de sua cidade. O Copan ensina a enfrentar os contrastes,e gozar os incômodos e a liberdade da vida moderna. Guilherme Wisnik é arquiteto, autor de Lucio Costa (Cosac Naify, 2001), e colunista da Folha de S.Paulo.Publicado originalmente em Big no. 39 – Utopia. Big Magazine: New York, 2001. Cf. “Presença de Le Corbusier”, em Lucio Costa: registro de uma vivência. São Paulo: Empresa das Artes, 1995, pp. 144-154.


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