Voo Solo ...continuando a cuidar de quem cuidou

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Tem pessoas que passam pelas nossas vidas e deixam saudade; outras, além disto, deixam um legado. Não importa o que enxergamos e sim o que semeamos no caminho das pessoas.

A Tullo De Biaggi Netto ... continua sendo inspiração e a agulha na costura de minha vida....

©Valéria Maria Sant’Anna 2024

Editora

Carminha Fortuna

Produção Editorial e Capa

Literando & A ns

literando@literando.com.br

Imagens

Valéria Maria Sant’Anna

Arquivo Pessoal

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG)

Sant’Anna, Valéria Maria.

S231v Voo Solo ...continuando a cuidar de quem cuidou/ Valéria Maria Sant’Anna. – Bauru, SP: Literando & A ns, 2024.

Formato: PDF

Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader

Modo de acesso: World Wide Web

ISBN 978-865-86599-14-5

1. Autoconhecimento. 2. Superação. 3. Técnicas de autoajuda. I. Título.

CDD 158.1

Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

A��e��ntaçã�

Acordei pensando em escrever sobre saudade...

Sentimento tão presente no nosso cotidiano, ao mesmo tempo tão temido, por ser associado a solidão, a sofrimento e ao medo de car só.

Será?.... Sempre faço essa indagação quando meus pacientes trazem essa temática na sessão de Terapia. Ou será apego? Ou egoísmo? Ou, simplesmente, não aceitar que é hora de deixar ir?

Aceitar que não se tem controle sobre nada, buscar novas perspectivas para respeitar e acolher os acontecimentos são primordiais para viver com tranquilidade. Nada é para sempre.

Entender que tudo tem seu tempo: inicia, desenvolve e nda.

Mergulhada nessas re exões recebo o convite da Valéria Sant’Anna para apresentar um de seus livros. Valéria, Escritora que passou a fazer parte de minha história pela sua capacidade de evolução e transformação do conhecimento. Juntas trouxemos ensaios para temas polêmicos, dando-lhes outro foco, mas... faz parte de nós o “questionar”!

Honrada, comecei a leitura dos escritos. Deparo-me com a temática da saudade...surpresa? não, conexão.

Minha amiga traz, no texto, a saudade em sua essência. Reconhecendo a impotência diante da nitude, a importância de reviver os bons momentos compartilhados, a prática do desapego das memórias físicas e ciência de que o tempo deve ser respeitado.

Em outra percepção, Valéria expõe os sentimentos de quem está passando pelo processo com clareza e sabedoria de que o m também é o começo.

Gratidão!

Carmen Sisnando Belém-PA, outubro de 2023

In�ro�uçã�

Caso você tenha lido a obra “Cuidar de quem cuida” já informo que este opúsculo não é a sua “continuação”; até porque cada dia é um novo dia, e não a continuação do dia anterior.

Assim como o dia seguinte da formatura não é a “continuação” da formatura, mas o início o cial da “vida do trabalho” (que envolve talvez um período de desemprego), assim também é o dia seguinte ao Natal, o dia seguinte a um funeral, etc.

“Voo Solo” é “Voo Solo”, uma pequena obra em tamanho, mas com identidade própria, escrita pela mesma autora de “Cuidar de quem cuida” ??? Hummm... desculpem o equívoco.... sim... mesmo nome, mesmo RG, mesmo endereço, mas.... um novo “perfume”... nem melhor, nem pior que o anterior, mas simplesmente “diferente”.

Outro bom motivo para minha a rmação de que “Voo Solo” não é uma continuação mesmo dando sequência temporal a “Cuidar de quem cuida”, é que foi escrito durante uma experiência “pas de deux”, onde este que vos escreve foi “partner” da autora em um dueto com ela neste trecho do grande balé da vida.

Assim, quando recebi o convite para compor esta introdução, entendi necessárias as explicações acima, preparando você para uma nova narrativa, nem melhor... nem pior, mas apenas diferente... na perspectiva de um “Voo Solo”.

Edvaldo José Sant´Anna Bauu-SP, outubro de 2023

Tempo para re exão...

Experenciar a doença e a morte de alguém com quem convivemos de perto e, principalmente, que amamos verdadeiramente é algo inexplicável...

Neste momento em que começo a colocar no papel essa fase de minha vida, nal de agosto de 2023, faz exatamente dez meses que meu marido morreu.

Para mim muito tempo sem conseguir verbalizar ou tomar alguma atitude, mas creio seja o período incubatório para o amadurecimento e vivenciar outras experiências similares.

Vive-se tão intensa e exaustivamente quando se está cuidando de alguém que o foco da vida muda. Só pensamentos em cuidar, e dar carinho, em deixar menos árido o caminho daquela pessoa que está passando pela doença...

Nesses tempos, importante cuidar de nós mesmos...

Mas, mesmo cuidando-nos é diferente porque ainda temos alguém que de nós depende.

Chega o momento da partida do ente querido, não temos opção além da deixa-lo ir com tranquilidade, querer mantê-lo conosco é puro egoísmo.

Luto

Estar em luto é algo muito pessoal...

Há tantos estudos sobre isso, tantos livros, declarações...

A Psicologia até coloca fases e alguns tempo de duração... Uns dizem que são pelo menos seis meses, outros que pode durar até dois anos...

Mas nada alivia nosso sentimento.

E vai de cada um o tempo, as fases... E também a forma como lidar com a perda.

São tantas as situações....

O pai (ou a mãe) que morre de repente... Deixa lhos, marido ou esposa, toda uma estrutura familiar se rompe em um segundo... Não houve tempo para nada.

Um lho que se vai (para nós) precocemente... Por uma doença ou também de forma trágica e rápida. Como deve car o coração desses pais que tinham a esperança de ver seu rebento crescer e lhes dar orgulho de uma vida bem sucedida? Por que tão pouco tempo?

A partida de um idoso... Dependendo das circunstâncias é um alívio para todos. Convenhamos: a sociedade não foi preparada para cuidar de seus idosos. Quando os pais envelhecem os lhos estão no auge de suas vidas e não têm tempo para cuidar de seus idosos... Raros os casos em que alguém da família pode car ao lado de seu ente mais velho.

Interessante, no meu caso, depois da minha experiência pessoal, a forma como passei a ver a doença, a morte e o luto dos outros:

Já vi pessoas aceitando e permanecendo em paz.

Mas também vi pessoas rejeitando a possível perda do outro de tal forma que até mesmo o remédio recomendado para aliviar dor deixa de administrar. Não por maldade, mas por não aceitar a doença do outro.

E se observa o sofrimento do paciente e do cuidador que se consome junto.

Quando existe doença que se prolonga, penso que o luto já começa no momento em que se reconhece que não existe volta. Se aceitarmos que o tempo do outro se nda – é difícil, muito difícil porque estamos na iminência de alterar nossa vida confortável, tudo vai mudar mais ainda do que já mudou – aí começam as tais fases do luto que os Psicólogos tanto falam e tentam auxiliar as pessoas que os procuram.

Não somos deuses.... Não somos insuperáveis.... Não temos o poder sobre a vida...

Sim... tudo vai mudar mais ainda... Mas sobreviveremos a isso, de uma forma ou de outra.

Então, aceitar os fatos da vida é o primeiro ponto.

Nascemos e morreremos sozinhos...

Ouvi pela primeira vez essas palavras de um Psiquiatra em uma sessão de terapia com meus cerca de 26 anos de idade.

Sinceramente não gostei, naquele momento, de ouvir isso... Porém, sempre me recordo dessa frase em momentos impactantes de minha vida.

Não importa raça, situação econômica ou local. No momento do nascimento cabe única e exclusivamente à criança respirar e assim nascer com vida. Todos os aparatos e pessoas envolvidas não conseguirão interferir nisso... Nascemos sozinhos e por nós mesmos...

E como morreremos?

...Só. ...

Pessoa alguma poderá tomar nosso lugar ou fazer qualquer interferência nesse momento tão sublime de nossas vidas como o dia do nosso nascimento.

Com o amadurecimento, e presenciando partidas de nossos entes queridos, constatamos a veracidade dessa máxima: nascemos e morreremos sozinhos...

Quando a hora da morte chega para o outro

Sempre ouvi dizer que a pessoa sabe a hora da sua morte. Alguns se despedem, outros se revoltam, outros simplesmente “apagam”.

Presenciar essa partida é algo indescritível e irreversível.

É interessante. Sabemos que todos morremos, mas sempre nos deparamos com a comoção geral em um velório.

Por quê?

Se sabemos que a única coisa certa em nossa vida é a nossa morte, por que não deixa-la acontecer?

As pessoas sabem quando vão partir.... E nós que cuidamos também podemos participar desse momento se respeitarmos o tempo do outro.

Tullo estava doente, literalmente lutava contra o câncer incurável, desejava vencê-lo. O tempo da doença foi uma experiência maravilhosa para nós dois e principalmente para ele que pôde se reconectar aos seus ancestrais e signicar sua estadia aqui conosco da forma como veio – de ciente visual.

E foi muito interessante a nossa última conversa (sim, conversávamos muito e sempre sobre tudo) quando ele compreendeu que possivelmente as pessoas que não o trataram com decência apenas podiam estar com medo dele.

Era 12 de outubro de 2022.... A partir daquele instante, até o dia 26 daquele mesmo mês o corpo de Tullo foi se desligando naturalmente, conforme ia retirando de si as preocupações com o trabalho, com seus sentimentos...

Talvez ele ainda estivesse ligado e preocupado comigo. Recordo-me dos últimos dois dias, seu corpo inerte na cama, mas continuávamos a conversar pelo coração. Conseguia ouvi-lo plenamente me perguntando “e você? Como cará?”

Ele sabia que eu sofria por sua partida embora eu tentasse ser forte ao seu lado.

Foram intensos os últimos dias. Fiquei ao seu lado todos os instantes, cuidei do seu conforto corporal com muito cuidado e carinho e continuei a conversar com ele de forma amena e delicada.

Alguns momentos antes dele partir, segurei sua mão, rezei com ele e pedi para que fosse com tranquilidade, observando que fora do seu corpo ele poderia enxergar, caminhar livremente e não ter dores; e que eu caria bem.

Fazia alguns dias que eu não dormia. Umedeci seus lábios (fazia isso constantemente para não ressecarem) e deixei-o por alguns instantes; fui me recostar na sala e adormeci.

Acordei algum tempo depois sob o silêncio da casa... Tullo havia partido....

Sozinho...

E... Como camos?

Era madrugada.

Chamei meu irmão, avisei o médico.

Comuniquei a funerária.

Enquanto esperávamos eu e meu irmão trocamos Tullo. Colocamos a roupa que ele mais gostava. Edvaldo improvisou uma faixa com um lençol, fechando sua boca, para manter sua mandíbula alinhada.

Últimos tratos corporais com decência e carinho.

Duas amigas que, na época, estiveram bem presentes nesse último caminhar de Tullo também vieram bem cedo, por si só....

Até pareceu que Tullo as havia avisado para não me deixar sozinha...

São momentos em que não se tem tempo para sentir, apenas agir...

Os primeiros momentos na prática

Nos primeiros instantes pós morte de um ente querido, se cabe a nós os preparativos para o funeral e enterro, temos muitas coisas para fazer: acertar com a funerária, escolher o caixão, as ores, o salão, veri car o atestado médico para obter autorização de abertura de túmulo....

Esperar a parte administrativa do cemitério abrir para as providências ne-

Enquanto isso, amigos, colegas, conhecidos, parentes, vão sendo avisados.... Uma verdadeira corrente se faz...

Ali nos damos conta o quanto nosso ente ou nós, somos queridos.

Pessoas aparecem por ele ou por nós.... Alguns cam para nos fazer companhia, outros passam para um abraço... Não dá tempo para nada... Apenas esperar o momento do enterro chegar no aconchego de quem pôde estar lá. cessárias... faz...

panhia, outros passam para um abraço... Não dá tempo para nada... Apenas

Outras providências

Não é fácil retornar à nossa casa e não mais encontrar nosso companheiro....

Não é fácil decidir dormir na mesma cama em que ele cou seus últimos dias....

Não é fácil olhar para sua bancada de trabalho e ver todos seus equipamentos ali....

Não é fácil olhar para seus pertences pessoais...

Não... não é nada fácil...

Mas temos opções em nossas vidas. Prometi que caria bem e deveria fazer de tudo para que isso acontecesse.

As primeiras providências foram com suas roupas e sapatos. Enquanto esperava o escritório do cemitério abrir, voltei para casa com uma das amigas e retiramos todos seus pertences do quarto, inclusive roupas de cama, travesseiros, toalhas...

Após o enterro tive de passar em uma loja para comprar um jogo de roupa de cama e um travesseiro... Em seguida, com meu irmão, já colocamos todos os pertences no carro e levamos a um centro distribuidor a maioria das roupas usadas. As roupas novas e de pouco uso meu irmão distribuiu entre ele e sobrinho.

E, nesse momento, temos de ser fortes.... Amigos ofereceram seus lares para eu dormir a primeira noite fora de casa.... Mas.... minha casa continua ali.... e não tenho para onde ir.... seria melhor “enfrentar” meu voo-solo já nesse primeiro dia....

Dia seguinte foi o momento de descaracterizar a bancada de trabalho dele, o armário com suas coisas...

Confesso que ainda não assumi um de seus computadores que deixei para utilizar, mas com o tempo conseguirei...

Continuo minhas atividades no meu lugar em nosso escritório, ou CPD como Tullo brincava (Centro de Pirataria Desenfreada ao invés de Centro de Processamento de Dados).

Descaracterizei também a sala da casa, onde Tullo passou sua maior parte dos últimos dias de vida.

Pronto.... Respira e segue...

Burocracias

Fora todos os sentimentos que nos envolvem nesse momento tem a parte burocrática: atestado de óbito, rescisão contrato de trabalho do marido, pensão, inventário...

O quanto antes zermos, antes vamos delineando nossa nova vida....

Contas em nome do marido, telefones a serem desligados/transferidos, Internet, contas bancárias, tanta coisa....

Tentar não deixar nada de lado.... Tentar fazer o mais rápido possível....

Ele se foi.... Quanto menos pendência melhor...

Agora é voo solo....

Vida que segue...

Então os dias passam e cada um daqueles que estiveram mais perto vai cuidar da sua vida e voltamos à solidão.

Pouco se consegue fazer... Embora com o coração tranquilo dúvidas surgem, um vazio ca...

Sempre estamos planejando algo com aqueles com que estamos...

De repente tudo “desplanejado” por Deus...

Que fazer? Como fazer? Onde motivar? Por que, ou para quê atiçar novas coisas?

Ao mesmo tempo dúvidas surgem:

Será mesmo que zemos de tudo?

Por que para ele foi um tipo de tratamento e vemos outros para outras pessoas?

Não poderia ser daqui a dez anos?

Por que agora?

As questões do passado podemos tentar perguntar para os médicos que cuidaram de nosso ente querido... Mas as para o futuro só cabe a nós decidir e efetivar o movimento.

Procurar coisas para fazer, manter-se em atividade, entendo que é importante.

Ainda penso: “não posso paralisar”.

Em particular, após o falecimento de Tullo, dediquei-me a cuidar de minha mãe. (Estava dividindo os horários enquanto Tullo se mantinha, quando já

necessitava integralmente de mim, nos últimos dias meu irmão, além de me ajudar, cou sozinho com a mãe; outro irmão veio por alguns dias para car com ela... En m... Cada momento temos de nos ajeitar).

Meio que voltou a rotina: acordar, ir para a casa da mãe até irmão voltar do trabalho. Procurava atividades na casa e estar ao lado da mãe, já com 94 anos, que há seis meses havia cado internada com Covid e estava restabelecendo sua memória.

Exatamente 30 dias após Tullo partir, foi a vez de mamãe. E também foi muito interessante porque, embora ela fosse uma pessoa muito fechada, pouco falava de si e seus sentimentos. Três dias antes de falecer estava eu retirando a roupa da máquina e colocando no varal e ela veio, cou me olhando e disse ter raiva por não poder mais fazer aquele serviço.

Com muito carinho, parei o que estava fazendo, olhei para ela e disse que eu estava agradecendo por poder ajuda-la, que tanto fez por mim e pelos meus irmãos. Voltei a estender as roupas e continuei falando. Entendia que ela deveria também agradecer por poder estar ali, de pé, ainda caminhando sozinha, mesmo que de andador. Agradecer por ter podido trabalhar tantos anos e que agora era o momento dela descansar.

Não mais falou comigo sobre si. Mas dali em diante iniciou seu “desligamento” diminuindo seu apetite, não se interessando nem por jogar baralho (que ela tanto gostava). Mas ainda manteve sua “teimosia”. Teve um incidente no banheiro e quebrou a tíbia, próximo ao pé. Foi levada ao hospital, foi operada no dia seguinte logo cedo, retornou ao quarto, estava com dois dos

meus irmãos, conversando, perguntou de todos como sempre, pediu para ver a missa pela TV e adormeceu.

Novamente todos os procedimentos. Confesso que até foi mais fácil.

Uma segunda perda em trinta dias... Nem sei se senti ou não... Parecia estar anestesiada.

Nos dias seguintes a rotina foi de esvaziar o apartamento em que ela morava com meu irmão mais novo e acolhê-lo em casa (mais o gato) até que se restabelecesse para dar novo rumo à sua vida, pois desde que meu pai faleceu (em 2001) Edvaldo cou com minha mãe em dedicação exclusiva.

Ver e ouvir os sinais do universo

Num primeiro momento, logo após o falecimento de Tullo, não me senti com segurança para cuidar dos afazeres pro ssionais, transferindo para colegas tais responsabilidades.

Não estava dando conta de mim, quiçá de outrem...

RESPEITAR -SE é muito importante.

DAR-SE um tempo, também.

Tirei “férias” de tudo e de todos. Passei a fazer somente o essencial e o que me dá prazer em fazer. Agora não tenho mais pessoas que dependam de mim. Não preciso mais me “violentar” intimamente para estar presente em eventos, reuniões, etc.

É momento de re exão, de me auto olhar e buscar o melhor para mim.

O que quero? O que gosto? O que não quero? O que não gosto?

Numa tarde, no nal de janeiro de 2023, na casa de uma amiga, sob densa chuva apareceu um cachorro na área. Estava assustado. Em determinado momento se aproximou da porta da sala (que estava aberta) colocou as patas dianteiras na soleira e com a cabeça colada ao chão olhou para mim como que pedindo ajuda.

Irresistível...

O irmão de Clarice (a amiga) colocou-o numa caixa, onde permaneceu quieto. Levamos a uma clínica veterinária. Tinha um enorme tumor na barriga. Lá veri cou-se tratar-se de uma cadela, e não cão... Ficou internada para hidratação e tratamento. Estava com câncer... Foi operada e depois recebeu quimioterapia. Candy recuperou-se e está aqui conosco. Ela, Fischer (o gato) eu e meu irmão...

São duas alegrias em nossas vidas. Principalmente para Edvaldo, Candy está sendo essencial.

Foram alguns meses para reavaliar a vida nanceira, acertar coisas, enxugar outras...

Aos poucos também fui me recuperando, já conseguindo raciocinar e dar andamento a alguns trabalhos. Mas o ritmo é outro, o foco é outro.

Daqui para frente será do meu jeito.... Não tenho mais para quem compartilhar dúvidas, esperar sugestões, apoio...

Chorar faz parte.... Chorar de saudade.... Saudade boa...

Desencontros e encontros

Já tinha ouvido falar que quando uma mulher enviúva muitas amigas casadas “somem”.

Nunca fez sentido isso na minha cabeça.

Mas... é verdade... Em parte...

O fato é que um acontecimento de morte de alguém que está muito próximo nos modi ca. Passamos a enxergar o mundo de outra forma, coisas que faziam sentido não mais nos motivam e, com isso, pessoas que compartilhavam parte de nossas vidas continuam suas caminhadas e, em verdade, também somos nós quem nos enveredamos por outros caminhos.

Seremos sempre órfãos e viúvos. São marcas modi cadoras e que motivam pessoas a irem embora e outras a se aproximarem.

Mas essas marcas não podem nos paralisar. Faz parte da vida e devemos nelas nos inspirar para continuar a procurar nosso lugar.

“Cicatrizes” e “plásticas”

Verdade seja dita: em qualquer interação que fazemos com alguém retornamos para casa diferentes.

Qualquer relacionamento que seja uma pessoa transmite a outra parte de si e vice-versa...

Imagine uma convivência de muitos anos... Qualquer que seja: pai elho(a) (mãe e lho (a)), irmãos, tios, sobrinhos, primos, namorados, marido e mulher...

Sempre há uma troca; portanto quando saímos de um relacionamento, não somos mais os mesmos ... a mudança é constante...

E, após tantos anos... cam as cicatrizes e plásticas adquiridas da pessoa com quem partilhamos nossas vidas...

Cicatrizes porque está claro que nosso comportamento atual foi in uenciado pelo outro, adquirimos novos pensamentos e condutas.

Plásticas porque, embora fossem de nossa essência muitas coisas, o outro também nos in uenciou a melhorá-las, mantê-las ou fazê-las desaparecer...

E agora o voo é solo.... Mas não somos o que éramos...

É um recomeçar paradoxalmente com tanta bagagem de vida...

Não é fácil...

Mas não é impossível...

...Ainda há algo por fazer...

Enquanto não chega a nossa vez...

No começo destas re exões mencionei o “amor verdadeiro”. Creio que, para minha felicidade, tenha vivido um amor verdadeiro com meu marido.

“Doutor” Google nos traz o signi cado da palavra AMOR: “sentimento de carinho e demonstração de afeto que se desenvolve entre seres que possuem a capacidade de o demonstrar.”

Mas, o “amor verdadeiro”, para mim, vai além.

A de nição erudita de amor está dividida em três: Amor Eros, Amor Philos e Amor Ágape.

Em síntese, as de nições para os dois primeiros amores são:

Amor Eros é a paixão, que transmite o sentido de sensualidade e desejo entre duas pessoas que se atraem.

Philos é o amor de afeição por alguém, aquele que proporciona prazer e satisfação em fazer coisas agradáveis. É o amor em forma de amizade onde impera o respeito.

Entre um casal esses dois amores convivem simultaneamente e muito bem. Há um início pela atração, mas a convivência vai ampliando o carinho; a afeição e o respeito prevalecem entre os dois além de aparecer a cumplicidade.

Dizem que quando a chama de Eros se apaga, um casal se mantém junto por causa do amor Philos.

Conosco não foi assim. O Eros esteve presente até o início da doença de Tullo porque o Philos foi sendo cultivado e ampliado por toda a nossa existência.

Costumava dizer a Tullo que o amo muito mais agora do que na época em que nos conhecemos. E é verdade. Em nossa caminhada juntos pudemos nos doar um para o outro, nos conhecer e nos aceitar como somos, sempre. Nunca teve o meu e o seu, mas sempre o nosso. Tudo conversávamos, tudo combinávamos. Nada era escondido um do outro.

Era muito bom estarmos juntos e era muito tranquilo e bom, também, quando não estávamos juntos. Nunca houve discussão entre nós. Apenas conversas e nunca deixamos para o dia seguinte qualquer dúvida que surgisse. Nossas últimas palavras da noite: “boa noite, eu te amo”; nossas primeiras palavras da manhã: “bom dia, eu te amo”.

Foi uma vida perfeita? Creio que sim mesmo às vezes tendo de ceder para atender os gostos de Tullo. Mas por outras vezes ele também cedia para atender aos meus. E vê-lo bem e feliz me deixava feliz.

Então chegamos na de nição do Amor Ágape:

Na Bíblia, em 1 Coríntios 13:4-8 há descrição detalhada do que é o amor ágape: “O amor é sofredor, é benigno; o amor não é invejoso; o amor não trata com leviandade, não se ensoberbece, não se porta com indecência, não busca os seus interesses, não se irrita, não suspeita mal. Não folga com a injustiça; mas folga com a verdade; tudo sofre, tudo crê, tudo espera, tudo suporta.”

Quando duas pessoas, em qualquer grau de relacionamento (familiar, amizade, casal), olharem-se (um para o outro) com o coração aberto, elas vivenciarão o Amor Ágape.

Só discordo do verbo “sofredor” na descrição bíblica... Para mim não houve sofrimento ao olhar Tullo com bondade, sem inveja, com seriedade e respeito, tendo a humildade de ouvir o que ele sempre teve a dizer, ponderar e reconhecer que ele estava certo (e geralmente, quando ele discordava de mim, sempre estava com a razão). Aprendi a ouvi-lo sem irritação e acreditando sempre que ele queria o meu bem. E, é uma verdade: o amor se folga com a verdade, sempre, tudo cré, tudo espera, tudo suporta e para mim nunca houve sofrimento.

Caminhamos juntos até os últimos instantes de Tullo e agora tenho saudade. Saudade boa e gratidão por ter tido a honra de ser a escolhida para conviver com aquele ser iluminado, educado, inteligente, carinhoso, totalmente despojado de si.

Chego a uma única conclusão: que bom que não tive medo.

Que bom que me abri completamente e pude viver plenamente com Tullo.

Um aprendizado que deixou cicatrizes e plásticas.

Agora?

Continuar praticando o amor Ágape em “voo solo”.

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