HyperBooks
Apresentação
Ou... os bastidores de uma livraria através do cotidiano de quem a faz funcionar
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Apresentação
No fim de outubro de 2013, um grupo da
MOOC cuja língua mãe fosse o português.
Universidade de Potsdam, na Alemanha,
Foi lá que o André publicou um post
através da plataforma iversity, lançou um
expressando o desejo de reunir um grupo
MOOC (Massive Online Open Course) sob
para escrever algo em conjunto e publicar
o título The Future of Storytelling. Dezenas
online.
de milhares de pessoas, de todos os cantos do mundo, registraram-se para participar. Como é natural, alguns grupos menores se formaram a partir dessa massa, e, mais natural ainda, a linguagem foi um ponto focal bastante forte. Assim sendo, surgiu um grupo no Facebook destinado a congregar os participantes do
Criou-se, então, o novo grupo; o nosso grupo. O plano era publicar em um blog, ao longo do mês de dezembro, textos diários, alternando-se os autores. O prazo era pequeno – o espaço foi criado em 14 de novembro – e havia muito a planejar. No início, éramos sete. Um desses nunca
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mais se manifestou, e foi excluído. Outro
descobria já existirem, surgiu a Hyper
curtiu um ou outro post, mas não opinou
Books.
e, quando chamado a confirmar seu desejo de participar, calou-se. Foi, esse também, mandado embora. Por fim, um terceiro manifestou-se, permaneceu até o último momento dizendo querer participar. Na hora de começar, desapareceu. Como se para provar o adágio segundo o qual a primeira vez é a mais dolorida, correria para reorganizar o projeto, já com os primeiros textos carregados no blog e agendados para publicação. Enfim, não foi nada tão dramático quanto o Éramos Seis de Maria José Dupré, mas éramos sete, tornamo-nos quatro - os quatro que verdadeiramente queriam tornar o projeto realidade. Quando o grupo formou-se, não havia proposta definida. Sabíamos apenas que queríamos que houvesse um ponto de conexão entre as estórias individuais. Assim, decidimos que todos estariam envolvidos com a mesma empresa. Por termos autores tanto do Brasil quanto de Portugal, a empresa obviamente teria que ser multinacional; mas de que ramo? Sugeriu-se livraria, e pouco mais foi necessário discutir. Próximo passo: o nome. Aqui, sim, houve certo debate. Depois de algumas ideias que ou não soavam suficientemente universais, ou se
A Hyper Books é, portanto, uma livraria multinacional, nascida e ainda sediada em Londres, na Inglaterra, mas presente nos quatro cantos do mundo. As cores que a representam são o amarelo e o vermelho. A Hyper Books vende livros, revistas, CDs, filmes; atende crianças, jovens e adultos; possui lojas físicas e também virtuais. Emprega milhares de pessoas, desde os atendentes de cada loja até os diretores nacionais. Gera ainda sabem-se lá quantos empregos indiretos. E é dessa grande multidão que surgem os personagens cujas trajetórias acompanharemos nas páginas que se seguem. É bem verdade que deixamos algumas vezes transparecer nossa falta de experiência. Não pensamos, por exemplo, na parte visual do projeto, até depois de os primeiros textos estarem publicados. Ainda bem que contamos com a Maurem, que resolveu o problema. Decidimos na última hora se cada texto traria a identificação de seu autor – optamos contra isso, para não prejudicar o processo de imersão. Começamos a anunciar o projeto um ou dois dias antes da data de lançamento. Tudo isso,
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entretanto, apenas colabora para criar o ambiente que desejĂĄvamos emprestar Ă estĂłria: espontaneidade. No fim das contas, esperamos que o leitor, ao encerrar sua leitura, consiga imaginar nossos personagens como pessoas verdadeiras. Se assim for, terĂĄ valido a pena.
Marcelo Elias Dillenburg
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Autores AR Fonseca é belenense (PA), ao norte do
Alguém Mais Bela do Que Eu!?", que
Brasil. Psicólogo pela Universidade
integrou o Festival de Peças de Um
Federal do Pará e Mestre em Psicologia
M i n u t o – Ve r s ã o P o r t u g u e s a d o s
pela mesma universidade. Psicoterapeuta
brasileiros Parlapatões estando em cena
e Professor Universitário em Rondônia, no
em Lisboa e em São Paulo, o vídeo
Brasil. Aspirante a escritor de fantasia e
publicitário “O Presépio” para a ANDP –
ficção-científica, escreveu alguns contos;
Associação Nacional Desempregados
esforça-se agora na escrita de temas
Portugueses e o cabaret circo "A Passos
cotidianos e esta em sua primeira
Seguro(s) da Fama" encenado por Jorge
participação numa série literária. Mantém
Freitas. Visite o seu website em André
um blog com resenhas e críticas de livros
Rodrigues!
André Rodrigues vive e é natural de Leça do Balio, nos arredores da cidade do Porto, em Portugal. É licenciado em Cinema e Audiovisual pela Escola Superior Artística do Porto (ESAP) desde 2011. Trabalha nas áreas da realização, encenação, produção, interpretação, escrita e edição para teatro, cinema e audiovisual (televisão, publicidade e vídeo). Em 2013, ao nível da escrita, destacam-se a dramaturgia de "Há
Marcelo Elias Dillenburg é natural de Pelotas, no sul do Brasil. Formou-se engenheiro civil pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul em 2004 e obteve mestrado em engenharia pela Universidade de São Paulo em 2006. Já tendo morado em várias partes do Brasil e em Sydney, na Austrália, adotou Porto Alegre como sua casa. Mantém um blog
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onde compartilha opiniões sobre arte,
Para ler os textos em sua publicação
sociedade, política e outros assuntos.
original - em forma de blog – e para deixar
Participa pela primeira vez de uma série
comentários, acesse a Hyper Books.
literária de ficção. Visite o blog Prós e Contras
Para assistir aos vídeos elaborados por cada autor falando sobre o projeto, acesse ao canal Hyper Books no Youtube.
Maurem Kayna é engenheira e escritora
Acompanhe ainda as contas da
(talvez um dia a ordem se altere), baila
HyperBooks no Facebook e no Twitter.
flamenco e já publicou textos em coletâneas, revistas e portais de literatura na web, além de apostar na publicação em e-book desde 2010. A seleção de contos finalista do Prêmio SESC de Literatura 2009 – Pedaços de Possibilidade, foi o primeiro e-book; depois por puro exercício e incapacidade para o ócio, vieram outras experiências de autopublicação, testando várias ferramentas e plataformas para publicação independente. Mantém um site que reúne informações sobre essas experiências e pretende ajudar outros autores que estejam trilhando caminhos similares. Visite www.mauremkayna.com
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Licença Creative Commons
Hyper Books de AR Fonseca / André Rodrigues / Marcelo Dillenburg / Maurem Kayna está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-SemDerivações 4.0 Internacional. Baseado no trabalho disponível em http://livrariahyperbooks.blogspot.pt.
Edição: André Rodrigues, Marcelo Elias Dillenburg, Maurem Kayna. Apresentação: Marcelo Elias Dillenburg. Projeto Gráfico e Editoração: Maurem Kayna. Fotos e Imagens: Maurem Kayna
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1 Maquinações e resultados de um Gerente de RH Domingo, 1 de Dezembro de 2013 Hora: 07:00 Local: Brasília - DF, Brasil
específicas que as façam sentir as emoções e não em um personagem na televisão, já delineado para parecer forte. Apenas parecer. Só quem leu os livros sabe o quanto a protagonista e narradora
As repetitivas notícias da semana agora
Katniss luta para se controlar ao máximo e
eram comentadas pelo noticiário da TV a
dar um espetáculo ao público como forma
cabo da sala, que eu ouvia como um
de protesto. Mas ok, o livro também não é
mantra da cozinha, enquanto colocava a
lá muito adulto ou complexo para defesas
cafeteira elétrica para trabalhar, o forno do
veementes da minha parte.
fogão para pré-aquecer e me voltava para a mesa de mármore da cozinha para dividir o pão e cortar as frutas. Era um café elaborado – para os padrões normais – que tinha como intuito preparar meu estômago para o dia de treino, leitura,
Enfim, entre as divagações, o silêncio da cafeteira elétrica indica preguiçosamente que o processo foi finalizado. Ao que dirijo meu olhar para a temperatura indicada pelo fogão, já aquecido. Levo ao forno as
corrida e atualizações.
fatias de pão em quadrados com uma leve
Retorno a atenção às notícias quando
de tomate. Dou-me ao luxo disto hoje, já
ouço o sucesso da saga “The Hunger
que estou a semana inteira me dedicando
Games”. Sinto piedade das pessoas que
à dieta intermitente que tento manter com
se animam com o filme tão simplório e não
idas à academia e corridas de 5km a cada
se presenteiam com a aventura da leitura.
três dias. Não é lá muito saudável, mas é
Da apropriação de detalhes e minúcias tão
meu presente pelo esforço no trabalho
camada de queijo e um pouco de molho
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que, jovem, me tornou gerente tão cedo, temido e respeitado, com episódios de amizade com funcionários para manter o controle e pequenas alegrias que humanos simples adoram: contato físico e sorrisos. Já estou de calça jeans e sapatos sociais. Sem camisa, caso derramasse algo, eu observo pelo reflexo do microondas que meu ardor pela leitura tem me diminuído os músculos. Prometo a mim mesmo refletir sobre isto e ponderar nos horários. Chamo-me Victor Eras. Solteiro, com casos furtivos e frívolos com clientes e funcionárias das lojas que administro os Recursos Humanos (R.H.) da internacional Hyper Books. 26 anos, administrador, pós-graduação em Gestão de RH e uma média de 41 livros por ano lidos. Em papel. Como uma correlação que causaria um medo apavorante em qualquer pessoa inculta, o apresentador do jornal imediatamente começa a falar sobre o levantamento feito com jovens-adultos sobre aquisição de produtos como livros, CDS e jogos. Ao que a maioria responde preferir o livro físico, papel. Informa ainda que é uma questão de status também. A estante pode induzir ao julgamento da quantidade de leitura. Os e-Readers não. Caminho para a sala com o prato com as torradas quentes esquentando os dedos da minha mão esquerda, enquanto levo o café na mão direita. Seria muito mais fácil e menos doloroso levar numa bandeja, mas não daria serventia direta para aquela branca mesa de centro que custou caro e geralmente não uso... Este meu hábito de organizar o ambiente para outras pessoas me cansa e custa, mas vale o contato. Ninguém sabe que sou muito mais prático e menos cerimonioso no dia a dia. Sou assim mesmo. Descrevo o que faço para mim. Reflito e reajo ao que penso. Planejo. Percebo que levemente sorrio ao me lembrar da seleção que fiz na semana passada. Dois indivíduos competindo para a vaga de supervisor de seção. Um homem e uma mulher. Naquele dia quero bancar o amigável. Do tipo que abraço e dou o "bote". Faço-os sentar um de frente para o outro e me centro no meio, voltado para a porta – odeio ser interrompido pela vista do terceiro andar do prédio da Hyper Books, planejado 9
para encontrar os prédios cinza e mortos, enquanto a área oposta, o café, era banhada pela visão do jardim que era miraculosamente mantido vivo da ausência de umidade típica de Brasília-DF. Ambos sentados, sorrio ainda de pé e dou-lhes boa tarde enquanto sento. Eles respondem um tanto embasbacados. Provavelmente nunca viram uma entrevista dupla, ou seja lá qual nome teórico poderia haver neste pequeno teatro que montei, cuja máscara, à moda grega, eu usava do “selecionador-amigo”. - Claudio e Inara – recosto-me na poltrona e cruzo a perna direita sobre a esquerda – vocês estão conosco há mais de três anos. Os dois. Ambos fazem relatórios mensais sobre as leituras e impressões dos livros. Tem demonstrado conhecer as seções que lhes foram entregues aos cuidados. Estamos muito animados com a avaliação de seus colegas – eles ficam surpresos – Não sabiam? Lembram daquela pergunta sobre ‘quem vocês indicariam para seu superior imediato’? Ela serve para isto. Uma medida formal para avaliar como andam as relações entre os funcionários e ainda coletar votos. Silêncio. O efeito que eu desejava se alastrava tenso na sala. Eles não fazem ideia do jogo. - Então, os dois tiveram quantidades aproximadas de votos e tenho pesquisado seus relatórios de leitura. Claudio gosta de livros de autoajuda – que piegas e previsível para um senhor de 49 anos recém-divorciado – e Inara gosta de investigação e romances históricos – sempre a facilmente observável morena e curiosamente cheia de curvas. Como ela lê aproximadamente o mesmo número de livros de diferentes tipos e ainda pode ir à academia, jantar comigo algumas vezes por mês e passar horas em meu apartamento sem tocar em página alguma? Ela era uma incógnita que eu deveria investigar mais. Ou seja, eu deveria ajudar sua promoção para me aproveitar do sexo – ela me deveria muito dele, claro – e para conhecer sua agenda ou planos. Ela poderia ser uma boa aliada na minha ascensão até um cargo internacional na empresa. Mortalmente atraente financeiramente e com acesso ilimitado a pessoas, países, culturas, enfim, a todo tipo de conhecimento que eu prezo.
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Claudio me olha tentando disfarçar algo. Inara mantém o meio sorriso. - Esta é uma entrevista para que eu possa conhecê-los melhor e escolher quem ficará com o cargo de supervisor de literatura fantástica. Vamos começar pelos relatos da Inara quanto à empresa, como tem se sentido com os colegas, com a chefia e quais suas atribuições para o cargo. Obviamente eu já a tinha escolhido antes de preencher a agenda requisitando a presença de ambos. Mas ele precisava estar lá para ver, sentir-se mínimo em sua leitura ridícula e sem conteúdo, sem cabedal para disputar com ela, uma jovem com belas curvas e não muito sorridente para um cargo que ele poderia facilmente alcançar em pequenas livrarias pelo conhecimento. Aqui o que conta, como nos livros, é adquirir conhecimentos importantes sobre pessoas, detalhes e ações. Não é a reflexão que o livro traz, mas é o caminho que nos faz passar que nos leva irremediavelmente – palavra que eu adoro – a saber que vendemos uma fantasia, um diferencial, e não uma pretensa reflexão simplista com passos para a felicidade. Livros, como a vida, tratam de dor e métodos de superação em direção a um objetivo. Mas era domingo, o constante jornal que me fazia companhia com seu mantra continua falando, agora sobre futebol e estas atrocidades das massas lépidas que se dedicam a torcer por algo que não podem mudar. É risível como as pessoas acham que gritar afeta os jogadores. Eles provavelmente não ouvem. Se ouvem, não distinguem. Se distinguem isto não afeta a velocidade deles. Não é o público que interessa no campo. São os resultados. Termino meu café. Observo que preciso de mais café, contudo é apenas o hábito do escritório que me faz continuar bebendo, mesmo ao final de semana. Levanto-me, então, para a prateleira de livros-que-merecem-releitura – segunda prateleira de baixo para cima – e escolho “People, Places and Things”, de Stephen King. Adoro o conto “The Hotel at the End of the Road”. O Museu Vivo é uma ideia excelente. Selecionar espécimes distintas
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que me sirvam de propósitos diferentes continua meu objetivo diariamente. Observar, etiquetar para futuro uso. Amanhã é segunda. Hoje tenho o dia inteiro para reler o livro escolhido, treinar meu personagem de amanhã na seleção de candidatos à vaga de vendedor que ficou vaga devido a escolha de Inara. Provavelmente são candidatos jovens, desesperados por uma vaga. Com uma educação deficiente e que não leem mais de três livros por ano. Mas posso me surpreender, apesar de ser improvável tal ocorrência. Ou seja, eu poderia causar temor e alarde passando-me pelo oculto - já que eles provavelmente são ignorantes e religiosos. Serei sinistro e misterioso questionador de formas, cores e animais. Atitude que não tem comprovação científica alguma e serve para ludibriar incautos, mas que funciona bem para deixar uma misteriosa impressão no ar. Novos funcionários. Padrão de controle a ser mantido: rigor.
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2 Olá a todos! Sejam bem-bindos! :) Segunda-feira, 2 de Dezembro de 2013
empresas, ainda têm a lata de justificar o
Hora: 19:30
não com a desculpa do jovem ser
Local: Porto, Portugal
inexperiente. Estas empresas já repararam se não apostarem nestes jovens, eles nunca ganharão experiência!?
Para quem me desconhece, sou o José Maria, um jovem portuense de 23 anos de idade e infelizmente, como maior parte dos jovens deste país, estou desempregado a cerca de 5 meses depois de me licenciar em Línguas, Literaturas e Culturas na FLUP. A culpa não é minha! É da crise! Está complicado arranjar emprego neste país mas é preciso é pensar positivo. Positivo não tem sido nada o meu dia de hoje. Pelo contrário, hoje, eu estou sob a Lei de Murphy. De manhã, despedi-me de um amigo meu no aeroporto porque ele foi obrigado a emigrar para o Reino Unido. Já é o sétimo amigo que vejo a emigrar. É o país que temos! Não tem capacidade para
Mas eu continuarei a lutar em Portugal! Emigrar não está nos meus planos. Eu todos os dias tenho um ritual. É o que me faz levantar da cama! E só por motivos de força maior, eu não pratico. Mal acordo, vou a Internet consultar as ofertas de emprego fresquinhas e depois, eu respondo por e-mail tudo que me interessa. A pescaria está péssima! Todos os dias encontro ofertas, mais ofertas e mais ofertas para a área comercial e cal center. Isto não me interessa! Depois, tomo o pequeno-almoço e de seguida volto ao computador para enviar candidaturas espontâneas por e-mail e imprimir mais um currículos Europass para enviar por correio. E de tarde, eu aguardo
absorver tantos jovens. Algumas
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receber boas notícias por telemóvel ou por e-mail. Voltando a minha segunda-feira negra, hoje de tarde, eu fui a mais um interrogatório de emprego. Ou se preferir, entrevista de emprego. Já são vários e até agora nada! Apesar da área comercial não estar nas minhas opções, eu aceitei responder a uma oferta porque era para vendedor de loja na fantástica Hyper Books num shopping aqui no Grande Porto. Os livros são a minha paixão! Mas este interrogatório foi mau de mais para ser verdade. O recrutador parecia o Jack Torrance do “Shinning” de Stephen King e começou para lá fazer umas perguntas esquisitas. Não sei se era para ludibriar, como disse ontem o Victor Eras, porque pensado agora aquelas perguntas podem trazer água no bico. Ups! Por exemplo, se fosse um animal qual seria e eu respondi preguiça. Agora estou a ver a justificação! É porque gosto de dormir e sou peludo. Outra pergunta, foi se uma personagem qual seria e eu respondi que seria o Grilo Falante. Faz todo sentido! Sou uma pessoa bem-humorada e sábia ao nível de literatura. Durante este interrogatório, eu estava cheio de medo. Sou tímido e estava a mentir. Foi a primeira vez que retirei a minha licenciatura do currículo porque aquela oferta de emprego só pedia o 12º Ano. Fogo! Cheira a queimado! Hoje, eu tenho que ficar por aqui. Deve ser o arroz que está a torrar. Porquê que meti-me a fazer o jantar!? Os meus pais não deviam ter ido às compras a esta hora. Iam depois de jantar! Mas para finalizar por hoje, há alguém por ai que precise de um licenciado em Línguas, Literaturas e Culturas!? Ou então, alguém pode dar dicas para eu melhorar a minha procura de emprego!?
Abreijos, José Maria
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3 Logística Terça-feira, 3 de Dezembro de 2013
alcance; água ele vai buscar, várias vezes
Hora: 16:00
ao dia traçando o caminho entre sua sala
Local: São Paulo - SP, Brasil
e o bebedouro. Isso, é claro, quando passa o dia no escritório. Hoje é um desses dias. O escritório está Em Chamas.
Primeira nota da pilha: Jogos Vorazes: Em Chamas, Porto Alegre, 500 cópias. Segunda: Jogos Vorazes: Em Chamas, Curitiba, 600 cópias. Brasília, 300 cópias.
Harry Potter e a Pedra Filosofal ele posicionou nas estantes, com pouco destaque inicialmente, depois dominando totalmente os espaços nobres da livraria nos Jardins. Em 2001, presenciou a apresentação de O Senhor dos Anéis a uma nova geração. Quando o fenômeno
A relação entre o volume de livros e o
da vez era o primeiro Crepúsculo, ele
lançamento recente do filme nos cinemas
enviava para a sede as encomendas da
passa pela cabeça rapidamente, o
filial. Agora, como gerente de logística da
pensamento mal se forma. É necessário
rede, era responsável por atender, dentro
dar conta dos pedidos.
do possível, os pedidos do Brasil inteiro.
A Moreninha, Florianópolis, 10 cópias.
Estava novamente em sua mesa, copo de
Ele para um pouco. É um bom momento para ir ao bebedouro buscar mais um
água bebido. A Moreninha, Florianópolis, 10 cópias.
copo de água. Carlos Alberto Moreira Leal bebe bastante água. Café, se estiver ao
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Processa o pedido. Não há tempo para reminiscências. O Natal se aproxima e a pilha de notas ainda vai aumentar bastante antes de diminuir. Brasileiro deixa as coisas para a última hora. Muitos livros serão vendidos nas próximas semanas; ou pelo menos ele e sua equipe assim esperam. Fim de expediente. Carro. Casa. Ou melhor, carro, engarrafamento, casa. Mensagem da esposa no smartphone: “Tenho uma petição pra preparar, vou chegar tarde”. Fim do engarrafamento. Agora sim, casa. Antes de começar a cozinhar, liga a TV. Troca os canais. De repente, um videoclipe, ele reconhece a cantora. Não conhece a canção, deve ser mais nova. Maria Clara escutava as músicas da moça alguns anos atrás. Ele achava engraçado, era claramente música para meninas adolescentes, e ela já tinha 25 anos. Engraçado não é o termo. Achava meigo. Vêm à mente uma das canções, talvez fosse a favorita dela na época. Talvez fosse a dele, pelo menos dentre as que ela tanto escutava. ...Head first, fearless. -----Cacá conquistou o emprego na livraria quando estava na faculdade. Hoje, não consegue entender o que o tinha levado a cursar Direito. Dois semestres depois de começar a empilhar livros profissionalmente, trocou para o curso de Administração. Tinha pensado em fazer especialização em Comércio Internacional, mas quando se aproximava da parte final do curso de graduação, o trabalho como gerente da filial da livraria o fez perceber que gostaria de trabalhar com logística. Maria Clara entrara para a equipe antes de Cacá virar gerente. Ele se sentia sortudo por isso. Da primeira vez que comentou com a namorada, ela respondeu: “Imagina o processo que eu ia tacar na livraria.” E deu risada.
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Sim, ela cursava Direito. Talvez ele tivesse se sentido um pouco intimidado, afinal havia abandonado a faculdade que ela cursava, mas sabia que o tinha feito por vocação, não por falta de capacidade. Além disso, embora ainda não fosse gerente da livraria, já era o funcionário de ouro. Todos sabiam que, assim que a posição ficasse disponível, ele seria promovido. Dessa forma, sentia-se bastante seguro. E, de qualquer forma, não fora ele o responsável por contratar Maria Clara, nem tinha poder para demiti-la, e por isso não titubeou quando a convidou para sair pela primeira vez. Não demorou muito e estavam namorando. Não era coincidência terem se conhecido em uma livraria – mesmo que como funcionários, não visitantes – ambos adoravam ler. Adoravam também comentar o que tinham lido. Cacá descobriu que, com todos os livros que ela tinha lido, nunca havia passado por A Moreninha. Obrigado a ler o clássico de Joaquim Manuel de Macedo na escola, ele supôs que assim tivesse sido para todos. No encontro seguinte, presenteou-a com a edição de capa mais bonita que encontrou. Logo conheciam intimamente as peculiaridades um do outro. Ela encorajava o gosto dele por sistemas lógicos, soluções ideais, mover isso para cá, aquilo para lá, mais rápido, menor custo, o rei da eficiência. Ele chegava até a retomar um pouco do gosto pelo Direito quando a ouvia analisar as leis e os casos. Menos séria, mas mais adorável, a predileção dela por canções de menina. Não muito depois de ela desenvolver a paixão por Taylor Swift – e de ele começar a zombar dela por isso – ela obteve sua vingança. “Até parece que cê não canta Hey Soul Sister bem certinho, toda a letra decor.” “Mas Train é banda de adulto.” “E Hey Soul Sister é música de menina.” “Ah, é bonitinha, mas cê sabe que eu gosto mesmo é de Drops of Jupiter.” “Tá bom.” Ela dizia, e ria. ------
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Janta preparada, ele desliga a TV e liga o computador. Responde a e-mails (de trabalho, claro). Revisa planilhas e memorandos do dia e começa a projetar as tarefas de amanhã. Na hora de ir para a cama, resolve recuperar um pouco do atraso na leitura. Já não lê tanto quanto costumava. Nem ele nem ela perceberam a gradual diminuição. Em um dia qualquer, notaram que nenhum deles estava em dia com livros atuais. Haviam jurado remediar isso. Ela optou por 50 Tons de Cinza. Ele, por Guerra dos Tronos. Não poderiam comentar os livros em detalhes desta vez, como costumavam fazer quando decidiam juntos que livro leriam a seguir. Não vê quando ela chega, já está dormindo. Provavelmente não a verá de manhã, tem que sair cedo. Antes de pegar no sono, lembra-se de mais um pouco. ... You take my hand and drag me head first, fearless.
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4 Arquitetura da Memória
Quarta-feira, 4 de Dezembro de 2013
E a cidade crescia como um animal, Em estruturas postiças, Sobre areias movediças Lenine - Lá vem a cidade
bem cortado e a reserva no Hilton
Hora: 00:00
marcavam a distância entre o Caio
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
Brandes de agora e o menino da década de 90 que viera para um curso intensivo e acabara casando com a musicista da qual se despedira em definitivo na cidade de Coimbra - hoje ela provavelmente mal
O dia estava tão cinzento como na primeira vez que desembarcou no Heathrow, ainda sem compreender uma frase completa em inglês, atrapalhado com as esteiras para retirada das bagagens. A fluência no idioma, o terno
lembra de sua existência. Talvez a decisão de entrar na concorrência mesmo sabendo da estreita margem para criação, já que a rede mantinha um padrão visual com raras variações de continente
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para continente, tivesse alguma relação com a oportunidade de voltar à Inglaterra. Hyper Books, já não gostava da pretensão embutida na marca, mas a antipatia ganhou reforços quando chegou à sede da companhia. Ao invés de estar dentro de alguma das grandes livrarias localizadas em endereços charmosos e quase acolhedores – já que nenhuma megastore consegue ser realmente um lugar aprazível – , a sede da corporação ocupa o décimo quinto andar de uma torre envidraçada na Broadgate Tower. Enquanto aguardava o diretor de marketing, encarregado de acompanhar o processo de expansão da rede no Brasil, o brasileiro se mantinha imóvel na poltrona de couro escuro, pernas cruzadas, braços apoiados no estofado que imitava um modelo antigo e queixo apoiado no suporte formado pela mão direita. Os olhos vasculhavam a sala acarpetada em busca de alguma referência ao negócio. Seu imaginário esperava se deparar com uma sala cujas paredes revestidas de madeira nobre guardassem as edições mais relevantes na história da livraria, ou imagens das lojas mais antigas antes que a rede expandisse seus tentáculos para fora da Europa. Ao contrário disso, o local delimitava os espaços com divisórias de vidro temperado e persianas metálicas. Não se percebia quase ruído, talvez em função do pequeno número de ocupantes daquele andar. A recepcionista o conduziu até a sala de espera, mostrou os dentes um pouco amarelados na moldura rubro intenso e prometeu que Mr. Kasper estaria disponível em dez minutos, no máximo. Foram treze, acompanhados com rigor no Tissot com pulseira de couro preto que Caio reservava para ocasiões relevantes. Mr. Kasper, um sujeito atarracado e impaciente, deu instruções secas quanto às prioridades da nova loja – disponibilidade de espaços que pudessem ser negociados com as editoras para dar visibilidade aos títulos capazes de pagar pelo destaque do seu produto, caixas posicionadas de modo a não atrapalhar a circulação nas seções com maior lucratividade – DVD´s musicais e livros infantis – e um espaço com capacidade para realização de eventos que não interferisse no acesso às gôndolas dos mais vendidos. As cores seguiriam o padrão utilizado em toda a rede e estavam apontadas no contrato. Nenhuma recomendação para visitar a maior loja, em Londres mesmo, antes de iniciar o projeto e o aviso de que a entrega seria fiscalizada pelo próprio Kasper. Se não saísse da visita completamente satisfeito, o bônus previsto no contrato não seria aprovado - alertou o executivo.
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Caio havia pensando em pedir para conversar com outros responsáveis da rede, para compreender a filosofia organizacional e adequar, na medida do possível, o espaço para que refletisse os valores e o modo de trabalhar, mas a acolhida não lhe pareceu propícia. Quando voltasse ao Brasil tentaria contatos informais com a equipe. Saiu da reunião com ânimo nenhum para pensar no projeto. Lembrou de Ruth tocando violoncelo, mas não tinha seu endereço. Enquanto aguardava o táxi para levá-lo ao hotel, fingiu para si a possibilidade de percorrer novamente os trajetos da época em que desenhava fachadas de prédios históricos para arrecadar alguma grana, mas a neve não parecia disposta a dar trégua.
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5 Olá a todos! Consegui trabalho! :) Quinta-feira, 5 de Dezembro de 2013
Hora: 20:30
Local: Porto, Portugal
outro dia falar sobre eles porque ainda não os conheço muito bem. Hoje, que foi o meu primeiro dia de trabalho, tive direito a uma formação. Foi
Lembram-se de eu ter falado a três dias atrás de ter ido a uma entrevista de emprego na Hyper Books para vendedor!?
uma seca de tal forma que eu acabei por adormecer. A culpa não foi minha! Foi da chefe e dos meus colegas!
Depois da tempestade vem a bonança. É
Durante a formação, houve um intervalo
esse o meu trabalho!
em que seis colegas, que iam iniciar o seu
Vai permitir ter contacto com uma das minhas paixões: a leitura! Adoro histórias policiais e de terror sendo os meus autores favoritos a Agatha Christie e o Stephen King. A loja deste shopping no Porto é fabulosa! Tem dois pisos sendo que a área destinada ao público no 1º Piso é em H e no 2º piso é em B. As iniciais de Hyper Books! Os colegas e a chefe Margarida parecem ser pessoas fantásticas. Mas fica para
turno às 10h, serviram-nos uma bebida à nossa escolha. Eles disseram que era a forma dos cotas darem as boas-vindas aos novatos. E que boas-vindas! Eu pedi um copo de leite simples morno porque não bebo café e já agora, nem bebidas alcoólicas. Então, o Álvaro, o mais velho, começou a contar-nos histórias inesquecíveis que tinham acontecido na loja. A história, que mais me chamou atenção, aconteceu no Natal de 2004. Em todos os
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Natais há bichas enormes para pagar e por junto a nós na caixa há colegas nossos virados de costas prontos a embrulhar, se for necessário. Na bicha do Álvaro estava uma adepta ferrenha do FC Porto que comprou o livro “Largos Dias Têm 100 Anos” do Pinto da Costa, o presidente deste clube também conhecido como o Papa do futebol português. E numa bicha ao lado estava um adepto do Benfica que comprou o “Almanaque do Benfica” relativo ao centenário (1904-2004) deste clube desportivo. Estes dois adeptos pediram para embrulhar os livros. Só que depois de embrulhar, sem ninguém se perceber, o Álvaro recebeu o livro “Almanaque do Benfica” e entregou a adepta ferrenha do Porto. Conclusão: depois do Natal, a adepta foi lá a loja e coincidências do diabo, apanhou o Álvaro e agrediu-lhe várias vezes com o livro na cara. O que fez com que tivesse receber tratamento hospitalar no São João e ficasse sem menos três dentes da frente. É por isso que o Álvaro atualmente usa dentuça. Em relação ao benfiquista, passado uns dias, contaram ao Álvaro que essa pessoa encarou com boa disposição a troca dos livros. Enquanto o Álvaro contava estas histórias, os outros cinco colegas esmagavam e colocavam soníferos nas nossas bebidas. Nós todos adormecemos no início da segunda parte! Depois, não sei como, mas pegaram em nós e colocaram-nos em outros sítios. Foi uma praxe que ninguém levou a mal. Estou mortinho que chegue um grupo de novatos! Eu acordei eram 15h e estava abraçado a Daniela e em cima do monte das várias cópias do “Uma Vida ao Teu Lado” de Nicholas Sparks na montra do primeiro piso. Um livro que está no top 10 das vendas! Mas não fui e nem a Daniela quem ficou com a pior praxe. Foi o Vítor, que foi praxado por duas mulheres porque já deu para entender que o Vítor tem a mania de ser mulherengo. Elas colocaram-no nu no meio da loja mas completamente tapado por uma gigante cópia da capa do livro “ A Desumanização” do Valter Hugo Mãe que o amarrava. Este livro está no top 5 das vendas! Após esta brincadeira, nós, os novatos, fomos lanchar/almoçar juntos com colegas que tinham terminado o turno às 16h à zona de restauração deste shopping. Este lanche serviu para nos conhecer melhor uns aos outros e também para aumentar o espírito de grupo. Depois, cada um foi para casa.
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Eu ainda fiquei algum tempo no shopping para comprar os presentes de Natal para os meus pais, a minha irmã e para o Lince, o meu gato. Mas não vou revelar agora o que comprei! Prometo, que depois do Natal, eu digo quais são os presentes. Agora tenho que ir embora porque a minha mãe está farta de chamar-me para jantar. Que chata! Mas é uma mãe porreira.
Abreijos, José Maria
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6 A Escolha do Gerente de RH Sexta-feira, 6 de Dezembro de 2013
ambiente que tem o intuito de ser sinistro,
Hora: 18:37
mas leve. Apenas quando se presta
Local: Brasília - DF, Brasil
atenção ao contraste do brilhoso prata com o metálico é que dá a sensação de armadilha. Voltando à fala, eles pareciam bem
A semana se passou com ocorrências interessantes. Conheci três candidatos jovens (19, 21 e 22 anos) à vaga de vendedor da Hyper Books. Eles se apresentaram bem vestidos em demasia para a vaga. Isto denota algum tipo de preocupação com a aparência com maior vigor que em jovens normais. É uma boa coisa. Candidatos diferentes. Eles falavam adequadamente, mas rápido, na minha sala de Gerente de RH, numa entrevista coletiva na minha sala privativa. Inicialmente a decoração metálico-negro do escritório causa impacto suficiente para deixar as pessoas admiradas e absortas pela falta de vida da sala. É um
educados, provavelmente jovens que queriam demonstrar ter habilidade para trabalhar em empregos nos quais são qualificados demais. Provavelmente para enfrentar os pais burgueses que preferiam que seus filhos fossem médicos, engenheiros e advogados renomados. Já fui assim, eu sei como é. Inicialmente eu faria o papel de misterioso, contudo, ao observar a fala dos jovens, resolvi ser curioso e perguntar sobre suas vidas, suas leituras e viagens. O sujeito de 22 anos, com voz de tenor informa que viajou bastante no Brasil, mas que recusou viagens aos exterior por convicções políticas. Interessante. Este
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seria excelente se fosse apaixonado pela empresa, mas daria problemas se precisasse fazer algo com o qual não concordasse. Ou seja, não é adequado. Imagina que eu peça a ele que ofereça um livro que pretendo promover que vai de encontro aos seus ideais! Ele não o faria. O sujeito de 19 anos, barítono e lacônico. Respondia apenas àquilo que eu questionava objetivamente enquanto o olhava. Este é adequado hierarquicamente, mas deve ser péssimo em vendas, mesmo que leia muito, falta-lhe a habilidade de dissertar sobre o que lê ou colocar em prática toda a literatura sobre lógica discorre devorar. E diz isto em duas frases simples. O sujeito final, 21 anos, era sorridente, visualmente adequado - magro, marcas de olheira e óculos. Contudo ele jogava mais do que lia, mas lia bastante blogs, interessava-se pelas opiniões de colunistas e lembrava de seus nomes e semana de publicação das colunas. Finalmente alguém capaz de ler ideias alheias e lembrar do momento de sua publicação. Excelente para a sessão de periódicos. Pena que a vaga esta ocupada, e o sujeito lembra de datas específicas de acontecimentos históricos e é um gênio na citação de “bestsellers”. Informei a todos que seus currículos seriam analisados e suas respostas confrontadas com a vaga de vendedor. Que lhes enviaria o resultado até a quarta-feira. Era segundafeira. Quando eles saíram, eu percebi que o sujeito de 22 anos tinha um encurtamento de uma das pernas. O que o fazia mancar muito discretamente. Enfim, alguém pra vaga pra deficiente que leia e disfarce tão bem sua deficiência quando parado – sem ficar trocando de apoio, típico da maioria destes indivíduos. Ele é apaixonado político - provavelmente anarquista - o que o faz suscetível a aceitação pelos outros. Eles irá me dever se eu o escolher e terei de deixar isto claro. Além do mais, se ele me causar problemas, as recusas a qualquer ordem contarão para uma justa-causa, se necessário. Excelente. Mandei e-mail para ele 15 minutos depois que cruzaram a porta. Convoquei para que ele aparecesse na quarta-feira pela manhã, 15h.
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Hoje, sexta-feira, eu o apresentei à equipe e fiz seu treinamento pessoalmente, medindo cada ação que ele emitia em concordância ou discordância. Ele precisa ter um treino intensivo pra disfarçar a discordância quanto à propaganda das capas em evidência na semana. Será um treino pra mim mesmo treinar um anarquista. Estes jovens odiosamente apaixonados pelo utópico me dão asco, mas controláveis quando bem treinados. Diferente dos já assumidamente capitalistas. Estes disfarçam tão bem que até eu mesmo posso ser enganado por eles. Final da tarde. O expediente se encerra. Esta na hora do meu uísque. Cobrarei uma parcela da dívida da Inara que, embriagada, poderá me dar o “feedback” do que os funcionários acharam da escolha.
Victor Eras.
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7 Viagem. Mental Sábado, 7 de Dezembro de 2013
com vontade de ouvir algo bem específico.
Hora: 15:00
Skynyrd, Sweet Home Alabama, tá
Local: São Paulo - SP, Brasil
escolhido. De repente é uma boa trocar algumas músicas do iPhone antes de viajar. Como era mesmo o nome do gerente da loja de Porto Alegre? Depois eu olho na agenda. O arquiteto provavelmente
Nossa, faz tempo que não vou a Porto
vai querer falar com ele também. Como
Alegre. E tinha que ser justo agora, na
será esse arquiteto? Deve ser bom,
época mais movimentada do ano.
aprovado diretamente pelo pessoal de
Demoram um tempão pra definir a
Londres. Será que conhece Porto Alegre?
abertura de outra loja lá, e resolvem tirar o projeto do zero no Natal. Se dependesse só dos chefões lá da Inglaterra, provavelmente a livraria nova já estaria aberta. Com eles, o negócio é eficiência. O Brasil é mais complicado. Mas nós não levamos o mesmo baque da última crise, e agora somos um bom negócio. Eles que aguentem as maluquices daqui.
Vou convidar a Maria Clara pra ir comigo. Da outra vez ela já não foi, não conhece Porto Alegre ainda. Só ficou perguntando na volta se as gaúchas eram mesmo tão bonitas. Próxima música... Mike and the Mechanics, Over My Shoulder. Não, a letra é meio deprê, fim de relacionamento, cara chutado pela mulher. O novo clipe do Paul, óbvio! Ainda falta identificar algumas das
Vou ouvir alguma coisa. Agitada, pra cima.
celebridades. Johnny Depp, Meryl Streep,
O lado ruim de ter muita música é que às
Jude Law, Sean Penn, Chris Pine: esses
vezes é difícil de escolher, se o cara não tá
foram fáceis. Alice Eve, a cena da calcinha
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no último Star Trek, mas tive que pesquisar o nome. Lily Cole também. Pô, aquela é a Alanis ou não é? Passa muito rápido. O Júnior falou que tem o Tom Ford também, mas quem é que conhece a cara de um estilista? A Kate Moss dançando em cima da mesa é quase tão sexy quanto a Alice Eve deitadinha no piano. Acabou, mais tarde eu tento de novo. Dance Tonight. Nunca consigo ver um clipe do Paul sem ver Dance Tonight depois. Vão me matar, mas tenho que admitir, pelo menos pra mim mesmo, que é uma das minhas preferidas dele. Quem é que vai me matar se eu admito só pra mim mesmo? Que bobagem. Uhu, propaganda nova do Head & Shoulders com o Joel! A Maria Clara não vai querer ir pra POA. Mesmo sendo no Natal. Ou quase no Natal. Pelo menos não vão me obrigar a viajar exatamente em 24 e 25. Que rosto lindo tem essa Natalie Portman. Vai estar quente pra caramba. Eu já caí nessa de achar que o Sul é sempre frio. Dessa vez, vou preparado pro calor. Enfim, ela não vai querer ir. Não sei se eu iria se não fosse a trabalho também. Além do calor de matar, a cidade fica morta nessa época, e nem tem muito pra fazer mesmo quando as pessoas estão lá. Mas vou convidar igual. Bom, a viagem é mais pra frente. Antes disso, ainda tem um monte de entregas a organizar. Melhor começar a preparar as atividades da semana. Pera, acabou o clipe, vou pegar alguma coisa pra comer e depois começo a trabalhar.
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8 Parabéns Hyper Books do Porto! :) Sem Título Domingo, 8 de Dezembro de 2013
É a confusão total na loja apesar de serem
Hora: 23:45
23h45mins de um domingo! Há corredores
Local: Porto, Portugal
com as estantes completamente vazias e também há bichas quase a dar a volta completa a loja. Isto obrigou os seguranças ao longo do dia a fecharem a loja temporariamente por questões de
Parabéns a você,
nesta data querida,
muita felicidade,
segurança. Infelizmente, já foi chamado o INEM algumas vezes para socorrer alguns
muitos anos de vida
feridos. Espero que esteja tudo bem com
Parabéns Hyper Books do Porto
estas pessoas! O caso mais grave ocorreu
nesta data querida
a hora do almoço. Eram 13h13mins
muita felicidade,
quando terminou a disputa de Aunt Renie,
muitos anos de vida!
a famosa idosa, e Maria, uma jovem grávida, pelo “O Milionário de Lisboa” de José Rodrigues dos Santos. Era o último
Hoje, feriado da Imaculada Conceição, a Hyper Books do Porto faz uma década de existência!
exemplar! A Aunt Renie, que é a viúva famosa por dar a volta ao mundo como forma de combater a solidão, vinha de sul para norte da zona da poesia portuguesa
Para comemorar o aniversário, colocou
com o seu guarda-chuva pendurado no
todos os livros com 50% desconto.
braço esquerdo. A Maria, que pela barriga
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aparentava estar grávida a 6 meses, vinha de norte para sul da zona da culinária com uma expressão facial de fúria, que talvez causada pelo caos. Mas no meio da confusão, o livro foi rasgado a meio e após a confusão a Aunt Renie ficou com uma perna partida e a Maria a sangrar da cara. Isto tudo era desnecessário porque teve origem no toque involuntário da idosa com o guarda-chuva na barriga da jovem grávida. Os outros casos tiveram haver sobretudo a quebras de tensão mas também há casos de pessoas agredirem com chapadas ou puxarem cabelos a outras pessoas com o objetivo de roubarem livros. Só quero ir dormir! Estou completamente roto da cabeça e do corpo! A manhã até começou normal e com alguma calma apesar de estarmos em época natalícia. Esta calma deve-se sobretudo ao gerente da loja que guardou em segredo esta promoção até meia hora antes da abertura da loja. Depois, a palavra começou a passar em boca em boca e em rede social em rede social e em cerca de 45 minutos instalou-se o caos. Mas no meio deste caos, eu tive direito a dois minutos de fama! Viram-me no telejornal da noite do canal 3!? Era um sonho de criança falar na televisão. Já sou famoso! Amanhã, eu depois vou a box e vejo o telejornal. Sobre a possível queixou que entrou na ASAE contra a Hyper Books do Porto por causa de dumping, eu estou proibido confirmar ou desmentir pela gerência da loja. Só posso expressar a minha opinião que é que neste Natal há imensas famílias que vão ter um Natal mais risonho apesar das suas dificuldades económicas porque a gerência desta loja. Também espero que a gerência nos pague, pelo menos, a dobrar este dia porque o trabalho é de outro mundo. Assim, também tenho direito a ter um Natal mais risonho! Agora, eu vou a zona da restauração jantar um hambúrguer com batatas fritas porque não há tempo a perder e a noite promete ser longa. Abreijos, José Maria
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9 O tenente começava a folhear os volumes, nervoso; depois, já interessado, lia, tomava apontamentos. E coçava a cabeça, resmungando: Ó diabo! Mas quanto se aprende neles! Quem havia de dizer! Italo Calvino - Um general na biblioteca
Ligações Improváveis
Segunda-feira, 9 de Dezembro de 2013
não fosse fazer muita diferença ouvir os
Hora: 18:00
a n s e i o s d e a l g u m e m p re g a d o d a
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
organização a menos que fosse alguém destacado para trabalhar na cidade, mas como recém haviam contratado o espaço
Quando Caio atendeu o telefone, cordial e disposto a agendar o encontro mesmo que já tivesse antes decidido que não abriria o escritório no período entre natal e ano novo, arrependeu-se imediatamente de ter solicitado reuniões presenciais com membros da equipe local. No fundo talvez
no shopping para iniciar a montagem, provavelmente só poderia conversar mesmo com membros de outras regiões. Antes de retornar ao Brasil, sem ter refeito os percursos que imaginava querer relembrar, o arquiteto conheceu a maior das lojas de Londres e a filial do Porto, 32
que lhe surpreendeu pela extravagância de ter sido montada com um layout que representava as iniciais da marca. Ver aquilo o confortou, por um lado, significava que talvez a margem para criação fosse até maior do que imaginava. Por outro lado, se o tal gerentão que conheceu em Londres tinha gostado daquele projeto, certamente não gostaria do que ele estava planejando. O gerente de logística da rede foi quem ligou, pessoalmente. O fato de ter dispensado as formalidades de uma secretária para intermediar o encontro fez com que Caio perguntasse se ele já conhecia a cidade, se precisava de indicações para hospedagem e até a convidá-lo para jantar. Arrependeu-se um pouco pelo excesso de atenções, pois não tinha ideia se simpatizaria com o sujeito. De toda sorte, poderia levantar as informações fundamentais para tocar o projeto. O jovem gerente da logística se apresentou como Cacá, assim sem nenhuma cerimônia. Caio estranhou, mas supôs que a competência do rapaz era suficiente para não precisar de outros artifícios que impusessem respeito. Enquanto combinavam os detalhes da reunião que deveria acontecer depois do dia 26, pareciam amigos de tempos. - Minha mãe era bibliotecária, talvez por isso tenha me empolgado em projetar uma livraria. - Que bacana. Ela certamente vai gostar de fazer compras na loja que o filho planejou. - Não poderia. Mesmo que ainda fosse viva, não morava aqui. Eu não sou gaúcho, vim de São Paulo há muitos anos. - Ahn. Desculpe. - Sem problemas. Quando tiver definido os detalhes da viagem, voltamos a nos falar. Despediram-se sem preocupações com o pequeno incidente da conversa. Caio não anotou na sua agenda de qual filial ele vinha, tampouco se viria sozinho ou com mais alguém da equipe. Andava disperso e continuava sem entender porque se empenhara para ganhar aquele contrato justo no momento em que estava praticamente decidido a deixar a profissão de lado, ao menos até decifrar as inquietações que surgiram naqueles
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dias de longas caminhadas na praia, quando a cena do pescador consertando sua rede suscitaram uma inveja febril em Caio. Era noite já quando resolveu andar pelas ruas do centro para se livrar do ar abafado que reinava no apartamento e nas ruas aristocráticas do bairro onde morava. Ao passar pela vitrine da pequena livraria de rua onde estava, expostos livros que lera na infância, então questionou-se se Vilma teria mesmo orgulho de um projeto no estilo que faria. Talvez ela preferisse essas pequenas lojas de rua onde os compradores, os vendedores e os livros se conheciam todos.
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10 Conheça quem faz a Hyper Books Página Inicial I Conheça outros funcionários I Localize uma loja I Trabalhe Conosco
Mas o que nós fazemos no Departamento de Logística? Como vocês devem saber, a Hyper Books tem muitas lojas espalhadas Funcionário: Carlos Alberto Moreira Leal (Cacá) Função: Gerente de Logística Local: Escritório da rede (São Paulo/SP)
pelo Brasil. Todas essas lojas precisam receber os lançamentos em termos de livros, CDs, blu-rays, revistas, além de reabastecer os estoques quando algum produto está acabando. Nós recebemos os pedidos de cada loja, organizamos a distribuição, o transporte. Nosso objetivo
Olá, amigos. Eu sou o Carlos Alberto, e
é garantir que cada loja possa oferecer ao
trabalho como gerente de logística da
cliente as opções que ele procura, sendo
Hyper Books no Brasil. Comecei na
que os produtos devem chegar sempre
empresa como vendedor na loja dos
em ótimas condições, em prazo razoável e
Jardins, em São Paulo, há mais de dez
com o menor custo possível, para que
anos. Era para ser só um emprego
possamos oferecer os melhores preços a
temporário, uma maneira de pagar as
vocês, nossos clientes.
contas enquanto estudava Direito. Apaixonei-me pelo ambiente da livraria,
To d o s n a n o s s a e q u i p e a q u i n o
pelo trabalho, pela equipe (até demais,
Departamento de Logística da Hyper
conheci minha esposa aqui). Mudei de
Books Brasil temos muito orgulho do
curso na faculdade, fui sendo promovido,
nosso papel em tornar cada visita a
e hoje tenho um cargo que adoro, e que
nossas lojas uma experiência
desempenho com muito prazer.
recompensadora.
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11 Desenhar e fugir
Por eso vuelvo y me voy, vuelo y no vuelo pero canto: soy el pájaro furioso de la tempestad tranquila. El Pajaro Yo - Pablo Neruda
Quarta-feira, 11 de Dezembro de 2013
rabisca layouts, consulta na memória as
Hora: 10:00
livrarias que mais lhe agradaram, tenta
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
imaginar uma que satisfizesse leitores com diferentes perfis e que se afaste do clima que encontrou na sede da rede em
O escritório anda silencioso, boa parte dos estagiários está mais concentrada no final do semestre em seus cursos do que nos projetos que por essa época ou já foram concluídos ou estão em stand by. Caio
Londres. Odiou aquele lugar. Como contraponto, lembrou del Ateneo, em Buenos Ayres, mas aquele era um espaço irreproduzível e totalmente na contramão da proposta de uma megastore multinacional.
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Sobre a grande mesa com tampo de vidro fosco estão espalhados seus lápis de grafite macio, as folhas tamanho A3 de gramatura 224g/cm2 e os livros com as obras preferidas de Santiago Calatrava e um volume antigo sobre escadarias, de Pilar Chueca – pensava em utilizar alguma ideia impactante para unir os dois pavimentos do espaço amplo de pé direito duplo. Queria ter um esboço para apresentar ao gerente de logística quando se encontrassem, mais para ter assunto do que pela expectativa de uma aprovação ou análise crítica. Mas o que precisava mesmo era ocupar-se com qualquer som ou vista vindos de fora da própria cabeça. Desenhar ainda era uma boa alternativa de anestesiar sensações incômodas. Concluiu quatro esboços de escadaria, uma, por pura fanfarronice, usava as iniciais da rede como guarda corpo. Talvez fosse melhor não mostrar aquele desenho. E se o gerente gostasse da ideia e insistisse na sua aplicação? Melhor descartar. Os dedos sujos de grafite deixaram marcas bonitas na porcelana branca da xícara. A bonita mistura de branco louça e carvão-metálico seria uma boa escolha, não estivesse obrigado a usar os berrantes amarelo e vermelho. Seria necessário investir em madeira e luzes suaves para abrandar a gritaria das cores, mas nesse momento Caio se concentra nos rumores da rua que sobem até sua janela. Não são provenientes do trânsito ou da movimentação comercial dos arredores, mas de um bate boca de namorados. Isso ele vê através da vidraça porque tem pudor de escancarar o postigo e interrompê-los. O casal é jovem e não se importa com a senhora idosa que passa por eles com ar interrogativo, parecendo querer avisá-los do tempo que perdem com besteiras. De volta à mesa de trabalho na sala predominantemente branca, Caio remexe os e-mails recentes e percebe ter recebido também o contato de um gerente de RH, parece que de Brasília, mas sente-se pouco estimulado a ligar. Protelar ainda é um hábito forte.
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12 Devaneio musical em frente ao atribulado (e semi-natalino) Quinta-feira, 12 de Dezembro de 2013
esquerdo quando eu, Victor Eras, sentado
Hora: 14:00
em minha mesa, em frente à porta da
Local: Brasília - DF, Brasil
gerência dos Recursos Humanos, admirava o setor.
“Nobody said it was easy/ It's such a shame for us to part/ Nobody said it was easy…”
A música ainda flutuava levemente na sala, para atormentar. “Come back and haunt me”… Mas Victor é forte! – a frase tornou-se meu mantra. Sorria levemente lembrando de meu passado. Da escolha pelos livros e pela profissão, no lugar de
Eu levemente divagava, lembrava das
viver uma vida modesta e pacata que
viagens de carro. Coldplay não era uma
provavelmente me proporcionaria um
banda super brilhante na minha opinião,
grande amor. Engraçado que ela possa
mas o que faz a música que não odiamos
acompanhar minhas memórias, mesmo
em um momento obter um significado em
depois de três anos.
um dado momento, quando acidentalmente algo toca em uma situação inadequada? A música ganha significado. Não é mais uma música, é retrato de um momento. De dor geralmente.
O horário de trabalho estava próximo ao fim. Eu tinha decidido correr meus velhos e amigáveis 10km, ou próximo a isto no Parque Sara Kubitshek. Contudo ainda me intrigava, posterior à escrita dos relatórios
A sala era discretamente inundada pela
de desempenho humano nos setores da
música de um “player” em formato de
Hyper Books, a ausência de retorno do e-
barra metálica que ficava no canto
mail do arquiteto Caio, indivíduo indicado 38
para projetar a nova loja da livraria no shopping de Porto Alegre. Obviamente não coloquei apenas meu nome no título, mas também meu cargo na livraria. Isto pode ter contribuído para ele evitar a leitura. Provavelmente alguns sujeitos mais comunicativos tenham feito contato por telefone ou pessoalmente… Humanos, sempre prontos ao contato, e quando mais interessa não falam nada. Sou paciente. Não fui sempre, mas aprendi a sê-lo. A observação tem sido uma boa companheira. Junto com as reflexões e devaneios. Hoje não haveria uísque, encontros ou planejamentos detalhados. Haveria corrida, reflexões e música. Bem como leitura. Recordei-me imediatamente do aforismo XV de Bacon em Novum Organum ou Verdadeiras Indicações Acerca da Interpretação da Natureza: "Não há nenhuma solidez nas noções lógicas ou físicas. Substância, qualidade, ação, paixão, nem mesmo ser, são noções seguras. Muito menos ainda as de pesado, leve, denso, raro, úmido, seco, geração, corrupção, atração, repulsão, elemento, matéria, forma e outras do gênero. Todas são fantásticas e mal definidas." Eu voltaria da corrida com novos significados para os eventos da semana que se finaliza. Momento de pesar os ganhos e perdas. De organizar os recursos (humanos) para as festas natalinas que tanto agradam clientes e funcionários. Que me parecem pessoalmente lamuriosas e falsas, mas que são de um retorno enorme à multinacional. A música é clara: não posso mudar o mundo todo, mas posso adequar uma pequena parte dele para atingir fins específicos, os meus fins. Eu já não pensava em Bacon, em “Novum Organum”, e, menos ainda, em Coldplay com a letra significativa, mas repetitiva de “The Scientist”. É a música da sobrevivência.
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13 Cacáfonia (só que não) concedas conselho congênere a Sexta-feira, 13 de Dezembro de 2013
Hora: 10:00
Local: São Paulo - SP, Brasil Caro Caio, Conforme combinamos, confirmo comparecimento à capital colorada. Cada convidado a nossa congregação compartilhará conjecturas com convicção (creio), cabendo ao capacitado colega construir consenso com capricho. Cadernos e cartilhas conterão conhecimento complementar.
companheiros com cujo contato não conto. Completo comunicando que comemoraremos o concílio (caso conquistada convergência de conselhos) com celebração contida. Confio que c o m p ro m i s s o s c o n c o m i t a n t e s n ã o comprometerão o comparecimento do colega. Candidato-me a comparecer com comidas carregadas de cravo e canela, condimentos que cultuo. Cordialmente, Cacá ------
Comunicação com companheiros conectados a computadores comporá o
Escrevo novamente, pois me esqueci de
conjunto de cabeças à caça da conclusão
dizer que a reunião foi marcada pela
cabal. Conduzo comigo desta capital
diretoria para o dia 27.
companheiro, a quem concedi conselho de que não carregue cachecóis, conhecendo o cruel calor da capital cujo caminho cursaremos. Clamo que
Desculpe o lapso, estava preocupado com outras coisas. Atenciosamente
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14 O peso dos nomes
[...] Voltou para casa recitando em voz baixa todos os nomes que supunha cabíveis para a jovem que não vira. O Nome - Maurem Kayna
para tomar como referência ao elaborar o Sábado, 14 de Dezembro de 2013 Hora: 21:05 Local: Porto Alegre - RS, Brasil
projeto e resolveu percorrer as principais livrarias da capital gaúcha para analisar o que funcionava melhor e o que não gostaria de repetir no seu layout. Na incursão à melhor loja da cidade - não
Depois da crise de riso ao receber o e-mail de Cacá com o agendamento da reunião, Caio resolveu escrever ao gerente Vitor. Organizou algumas perguntas genéricas sobre o funcionamento das demais filiais
a maior - foi interpelado por uma mocinha simpática e cheia de piercings: "Procurando algum autor em especial?" Subitamente constrangido, Caio disparou que estava em busca da obra completa do
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seu xará. O ar inquisidor da garota não deixava outra alternativa além de prosseguir com o gracejo que servia apenas para disfarçar sua missão de agente infiltrado da concorrência. "Me chamo Caio" disse, pontuando a frase com um meio sorriso. Prontamente a menina disparou, com ares de vitória, uma ordem para que ele a seguisse: "Aqui estão todas as publicações do Caio Fernando e naquela outra prateleira tu escontras as obras sobre ele." Dito isso, despediu-se quase saltitante. Caio agradeceu e ficou ali folheando uma edição revista de Morangos Mofados. Bem diferente da que leu, impressa em papel áspero e já amarelado num formato que mais lembrava uma revistinha de palavras cruzadas. O volume que já recebeu rabiscado em muitos trechos e acrescentou ainda outros sublinhados antes de decidir não devolver à sua colega de turma. Havia também uma coleção onde estavam algumas das cartas cuja leitura ele havia assistido, nos tempos em que rastreava toda a programação cultural gratuita da cidade - foi em um final de tarde tórrido, no gasômetro, algum estudante das cênicas leu algumas cartas de Caio para Hilda Hist, um evento alusivo ao seu aniversário de sua morte. Comprou a seleção de textos dividida em três volumes e agradeceu a presteza da garota dos piercings e olhos pintados à maneira Winehouse. Na escada rolante, em direção ao estacionamento, pensou que o essencial na livraria dependia muito pouco da arquitetura e logo se perdeu em devaneios sobre a significância dos nomes. O que ele teria em comum com um sujeito que sintetizou a visão de tanta gente que viveu as décadas de setenta e oitenta além do nome e de ter vivido algum tempo em Londres?
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15 Trechos e Resposta Domingo, 15 de Dezembro de 2013
aflitos e maltratar perdidos. O autor do
Hora: 16:00
poema intitulado Invenção de Orfeu fez
Local: Brasília - DF, Brasil
isto bem. Mas sua contribuição para a jornada da minha vida foi esta oitava estrofe. Jorge de Lima - o autor do poema
Diante de uma parede com frases, poemas e citações, eu admirava aquilo que me chamou atenção hoje:
citado - embelezou com rima uma aventura que parece marítima. Mas não há espaço para rima e beleza n e s t e m u n d o p o r m u i t o t e m p o . É hora de Victor se informar. E, por menos
Nem achada e nem não vista
esperançoso que seja, volta as costas à
nem descrita nem viagem,
parede e dirige-se ao computador de
há aventuras de partidas
mesa. Sem se voltar para a frase ou para a
porém nunca acontecidas.
parede, nem mesmo para voltar ao leve delírio sobre poesia, rima e beleza.
Finalmente Caio havia respondido ao eÉ final da tarde de domingo. Não é mais
mail, mas não diretamente ao pedido de
amanhecer. É o prelúdio da noite. Que não
encontro. Fez-me perguntas sobre as
tem significado real. É apenas uma
ideias para o projeto, para as quais
convenção. Não tem nada de poético, não
prontamente fiz um texto:
tem a menor emoção. Mas a história humana se encarregou de povoar de pretensas emoções, para consolar os
Caro Caio, de posse meus parcos conhecimentos na área, resta-me o
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c o n h e c i m e n t o h u m a n o e e m p r e e n d e d o r. L i t e r á r i o e o b s e r v a d o r. Ao contrário de alguns colegas gerentes e editores que correntemente me correspondo tão pronto esteja - espera-se que seja uma indireta suficiente -, coloco-me na posição oposta de não achar que são os livros que chamam o leitor. É a possibilidade de se encontrar neles, nas palavras e no enredo que apraz os indivíduos. Logicamente quem não tem hábito da leitura precisa de capa, frases prontas e i m p a c t a n t e s , l a y o u t c h a m a t i v o e g u t u r a i s d o s e s d e c o n v e n c i m e n t o . Não é por estes clientes que nossa rede se expande. Isto ocorre devido aos leitores vorazes que se apaixonam pelo atendimento, disposição das prateleiras, encontros de leituras, cafés com possibilidade de leitura de partes dos livros, música em fones, escolhidas, e que podem ir ao encontro das narrativas. Minha sugestão, então, é que não haja espaço para estantes de um lado da abertura da loja. Apenas um café com uma parede com espaço para uma imagem enorme e um trecho que pode ser mudado por semana. Ou parte da parede tomada por uma tela de alta resolução com cenas e imagens que remetam aos livros. Uma chance de chamamento pelo café, pela estante de leitura disponível e pelos títulos não anunciados, contudo discretamente destacados em frases reflexivas, chocantes ou depressivas. Provavelmente abarcará a maioria dos leitores. Enquanto no outro lado da abertura da loja ficaria uma sala com luz direcionada em cada poltrona para "degustação" de livros em um ambiente com música instrumental clássica, quadros nas paredes e um espelho bidirecional, no qual quem está fora vê quem esta dentro, não com clareza suficiente, mas que os alvos, controlados pela luz branca do abajur direcional, sejam os livros. Imagino que a contemplação de um lugar com leitores sentados confortavelmente e sem acesso ao mundo exterior de observadores transeuntes seja algo não tão corriqueiro e que pode fazer com que o sujeito adentre a Hyper Books! Não estou ciente do espaço que tens para projetar, contudo não vejo necessidade de uma loja em formato de HB, como no caso da famosa loja do Porto, em Portugal. Se tiveres a possibilidade de um andar superior, como imagino que tenhas, os suportes das
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mesas, em geral transparentes, sugiro eu, seja no formato H e a próxima B. Assim quem esta no térreo da loja, ao olhar para cima, veja as mesas sequencialmente da esquerda pra direita formando o HB da empresa. Agora tenho que fingir estar curioso quanto à aceitação da ideia. O que achas? Fico à disposição para discutirmos o assunto via Skype se o desejares. A t t . Victor Eras. É interessante admirar o e-mail de resposta. Objetivo, cauteloso, mas sem demonstrar a arrogância de ter pesquisado por uma hora e trinta e dois minutos o assunto até achar a impressão de disposição espacial que poderia favorecer a entrada de clientes: chamar atenção para a ação de ler, não para o fim do empreendimento que é a venda. Não é o livro que chama a atenção das pessoas. É a história dos outros. A história de si. Momentos que se entrelaçam e parecem conformar uma única unidade. Como sugeriu ainda Jorge de Lima, antes do trecho citado em sua parede do escritório: Nobre apenas de memórias, vai lembrando de seus dias, dias que são as histórias, histórias que são porfias de passados e futuros, naufrágios e outros apuros,
descobertas e alegrias.
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O leitor quer afundar com o autor e emergir com ele. Nem sempre feliz. Mas geralmente vivo. E insuportavelmente apaixonado pela vida e pela beleza que aprendeu a ver no mundo, nĂŁo na Ăşnica beleza que importa. A beleza da sobrevivĂŞncia.
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16 Amor é fogo que arde sem se ver :) Segunda-feira, 16 de Dezembro de 2013
Há um foco de incêndio invisível na Hyper
Hora: 17:00
Books do Porto! O incêndio foi atado, ao
Local: Porto, Portugal
bocado, por volta das 16h, pelo Cupido na zona de romance em língua portuguesa. Um colega meu, que não vou revelar o
Amor é fogo que arde sem se ver; É ferida que dói e não se sente; É um contentamento descontente; É dor que desatina sem doer;
nome por questões de privacidade, estava a arrumar os livros no sítio certo com ajuda da Daniela porque as pessoas têm a mania de pegar nos livros, lerem ou fotografarem o livro às escondidinhas e
É um não querer mais que bem querer;
depois deixar o livro num sítio qualquer
É solitário andar por entre a gente;
para que não seja descoberto o seu
É nunca contentar-se de contente;
comportamento menos correto. Estas
É cuidar que se ganha em se perder;
pessoas esquecem que a loja tem um muito bom sistema de vídeo vigilância.
É querer estar preso por vontade; É servir a quem vence, o vencedor;
Voltando ao amor, ai, o meu tal colega e a
É ter com quem nos mata lealdade.
Daniela estavam arrumar os livros de costas viradas de um para o outro e de
Mas como causar pode seu favor
repente, ainda estou para descobrir, caiu
N o s c o r a ç õ e s h u m a n o s a m i z a d e ,
de uma estante superior 13 exemplares do
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
“Amor de Perdição” de Camilo Castelo
Luís de Camões
Branco em cima das suas cabeças. O meu tal colega J… socorreu imediatamente a
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Daniela porque ficou inconsciente durante algum tempo. Atualmente, a Daniela está a ser assistida no Hospital São João para ver se a sua cabeça não ficou afetada. Curiosamente é o mesmo onde me encontro. Mas atenção que a minha presença e da Daniela é pura coincidência! Eu vim ao hospital a uma consulta oftalmológica porque ando a ver mal. Ai o amor! Mas a Daniela não sabe que o meu tal colega gosta dela porque ele é tímido. Alguém quer dar conselhos como ele pode conquistar a Daniela!? Eu não dou conselhos porque não sou perito neste assunto. Em relação ao dia da Hyper Books até às 16h foi um dia igual aos outros. Trabalho mais trabalho e mais trabalho porque os portugueses também deixam tudo para a última da hora. Cacá, não são só os brasileiros que têm este problema. Quanto mais próximos no Natal maior o número de clientes por dia. E é o primeiro Natal que não vou poder festejar em condições porque dia 25 trabalho. É uma das regras da Hyper Books que obriga os novatos a trabalhar no Natal ou no Ano Novo. Ao menos prefiro ter o dia de Ano Novo de folga para poder comemorar a passagem de Ano Novo com a toda alegria mas sem consumo de bebidas alcoólicas.
Chi-coração, José Maria
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17 Pensou em vasculhar as caixas de livros para ter companhia ou fuga ao longo da tarde, mas a preguiça e o calor, que davam ganas de procurar uma sombra e desligar as angústias do pensar, atrasavam seus gestos nessa direção. Labirintos Sazonais (Verão) - Maurem Kayna
Diferenças
Terça-feira, 17 de Dezembro de 2013
viver no sul, deixando o ruído contínuo de
Hora: 11:02
São Paulo como uma lembrança
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
embaçada. A resposta cheia de sutilezas e ordens
Dezembro é um mês frenético, mas Caio não costuma ser contaminado pelas a g i t a ç õ e s c o m e rc i a i s o u f e s t i v a s . Incomoda-se um pouco com o agravamento das confusões no trânsito e, nessas horas, se alegra de ter escolhido
disfarçadas de sugestões que recebeu do gerente Vitor o fez pensar na discrepância de estilos que grassava na Hyper Books e achou isso interessante. Um pequeno retrato do mundo, como costumam ser as organizações. Para não desprezar de todo o uso das tais iniciais, pensou em estantes
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cujas laterais incorporassem o monograma – chapas de compensando cortado a jato d’água seriam ideais para obter o efeito desejado. Gastou a terça-feira sobre a mesa de trabalho, terminando os esboços em papel antes de passar para algum dos aficionados por tecnologia que estagiava no escritório fazer a edição no computador. Quando saiu do escritório, já no meio da quadra, voltou-se e contemplou o sobrado charmoso de janelas verdes que já se tornara referência no cenário da arquitetura regional e lembrou-se do tempo em que a insegurança o fazia temer pelo futuro. Nos tempos de estudante, quando caminhava pelas ruas arborizadas do bairro onde alugou o imóvel comercial e onde tem seu apartamento, não cogitava a possibilidade de transitar por ali, considerando aquela condição social acima de suas expectativas. Quase vinte anos mudaram drasticamente sua forma de ver o lugar e suas pretensões. Antes de visitar o sebo no centro da cidade, onde pretendia buscar inspiração para o café solicitado pelo gerente de RH, parou no Parcão para aproveitar a sombra e um banco solitário com vista para a agitação dos que passavam por ali. Não tardou a aparecer uma velhinha simpática que pediu licença para partilhar o banco com ele. O sotaque carregado indicava duas possibilidades, ou vinha de alguma das colônias alemãs do interior do estado ou era mesmo estrangeira. Disposto a não se preocupar com o relógio, Caio contrariou o usual recolhimento e puxou conversa. Renie, um pouco constrangida, disso no pouco português de que dispunha, estar de passagem pela cidade, conhecendo as áreas verdes e os museus. Caio sentiu-se à vontade para contar os planos da tarde para Aunt Renie. Encontrar alguém que falasse inglês a fez sentir-se animada e a senhora manifestou interesse em visitar o sebo com o novo amigo assim que soube que ficava próximo de outro parque da cidade. Quando deu por si, Caio estava recebendo sugestões para o projeto da livraria e convidando a estrangeira desconhecida para conhecer seu escritório e precisou se esforçar para não convidá-la a se hospedar em seu apartamento.
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18 Quarta-feira muda
Dia atribulado na Hyper Books, ninguĂŠm teve tempo de registrar seus auspĂcios ou agruras...
19 J+D=A Quinta-feira, 19 de Dezembro de 2013
Recebi de resposta outro SMS a dizer
Hora: 23:47
“Bom dia, irmão! Deves ter enganado no
Local: Porto, Portugal
número. Sou o padre (não posso divulgar). Jesus que guie o teu caminho. Abraço!”
Boa noite! Eu confesso-me! Sou o tal colega que está apaixonado pela Daniela. E como não tive nenhuma resposta, eu decidi procurar ajuda no motor de busca do Google. Lá encontrei a página “10 maneiras de dizer ‘Eu te amo’” da autoria de Christiane Silva. Apesar de serem conselhos para mulheres conquistarem homens, o José Maria
Foi assim que percebi que ele percebeu que tinha apontando mal o meu número e mandou um SMS para o padre de uma paróquia no interior de Portugal. A primeira maneira não resultou. Então fui a segunda maneira: “Assista a um jogo dele.” Mas como eu não pratico desporto, o Zé avançou para a terceira maneira.
ignorou isto e iniciou uma operação para
“Poste uma música no mural dele no
me conquistar.
Facebook” é o que diz a terceira maneira.
Logo às oito da manhã, eu comecei pela primeira maneira: “Mande um SMS.” Depois de dois minutos, à volta do telemóvel, a pensar mando ou não mando, como se faz um malmequer, lá mandei um
Então, liguei o meu pc e lá procurei o Facebook da Daniela. Após uns minutos de pesquisa, lá o encontrei graças a uma identificação numa foto. De seguida, fui ao Youtube e procurei “A Bela Portuguesa”
SMS a dizer “Bom dia! Eu amo-te!”. 52
do Diapasão. Postei o vídeo com a mensagem “Lembrei-me de ti” no mural da Daniela. Passado uns segundos, eu respondi ao José Maria com a mensagem “Pois! Ontem, eu levei um casaco amarelo igual.” Zé, como é que tu querias que eu associasse uma música pimba dos anos 90 ao “Amo-te!? Devias ter postado uma música romântica famosa ou então um vídeo onde cantavas tu. Devia ser lindo! Como esta terceira maneira não teve o resultado desejado, eu li a quarta maneira que diz “Dê um abraço bem apertado!” Foi a primeira coisa que pensei fazer quando cheguei a Hyper Books. Mas quando ele ia-me abraçar, na secção de culinária, tropeçou numa canadiana de uma senhora na casa dos 50 anos. Mal o Zé caiu ao chão, a senhora agradeceu-lhe por ter aparecido e perguntou qual era o seu livro de receitas de Natal. O José Maria não respondeu porque estava com cara de poucos amigos. Após uma hora a tentar acalmar-me, passei para a maneira seguinte que é “Deixe um bilhetinho”. Veio logo à cabeça deixar um convite para almoçar porque a Daniela trás marmita de casa para almoçar na Hyper Books. Lá escrevi o bilhetinho e deixei-o dentro do cacifo da Daniela. O tempo parece que começou andar muito lentamente e nunca mais era hora de almoço. Depois de uma eternidade, finalmente era hora de almoço. Corri rapidamente para a mesa junto da estátua do Ronald McDonald e esperei pela Daniela. Minuto mais minuto mais minuto e sem sinal da Daniela. Realmente, foi uma péssima ideia do Zé deixar o bilhetinho no meu cacifo. Só fui lá depois de terminar o turno porque como é Natal, as mulheres do Hyper Books decidiram à última hora fazerem um almoço de Natal num café perto do shopping onde serve comida boa e barata. Então apareceu a maneira “Roube um beijo.” Pensei logo para mim, Zé Maria tem que ser este. E realmente foi! É difícil esquecer este momento. Estava ajudar as criancinhas a sentaremse no colo do Pai Natal, quando o Zé apareceu com um olhar para a frente e cheio de confiança. Só que tanto olhar para a frente, esqueceu-se dos dois degraus e tropeçou 53
neles. Mas ao tropeçar neles, agarrou-se a mim e caímos os dois juntos ao chão. E claro, que é difícil resistir quando temos um homem deitado por cima de nós. Por isso, eu beijeio na boca. Já a vários dias que lhe ando a olhar nos olhos, que curiosamente é a maneira seguinte, e o Zé não se apercebeu. Estou sem palavras para descrever aquele beijo da Daniela. Só foi pena durar pouco porque a Dani começou a queixar-se do pescoço. E é por isso que estou novamente a escrever este diário no Hospital São João. A Dani teve alta a uns minutos atrás. Mas tive que lhe dar um presente inesperado, que é a oitava maneira. Não é todos os dias que o primeiro presente que o namorado dá a namorada um protetor de pescoço. É a minha Camões! E ele é o meu Charlot! Apesar de tantos incidentes, lá me conquistou. Amo-te José Maria! Amo-te Daniela dos Anjos!
Abreijos, José Maria e Daniela dos Anjos
P.S. “Ande de mãos dadas.” e “Faça elogios criativos.” são as maneiras seguintes. Mas, nós iremos fazer isto muitas vezes daqui para a frente.
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20 Visita Sexta-feira, 20 de Dezembro de 2013 Hora: 10:30 Local: São Paulo - SP, Brasil
– Logo depois do Natal. – Pô, que chato, cara. Não dá nem pra curtir as festas em paz com a tua gata, hein.
– Cacá! Tudo bem? – Tudo bem, Mauro. – Legal cê aparecer por aqui, quanto tempo! A Clarinha não veio? – Não, eu mesmo vim meio que a trabalho.
– Faz parte. E vocês, como é que estão por aqui? – Tá tudo bem. O movimento tá ótimo, as vendas tão altas, mas a gente tá dando conta. Sabe que não perdemos nenhum funcionário nos últimos meses? A galera tá em ponto de bala, ótima equipe. Tudo
– Como assim? O que que um cara
graças a você, as suas ideias de
importante que nem você precisa vir fazer
administração.
aqui na nossa humilde lojinha?
– Até parece. Quem tá no comando é
– Até parece... Eu tenho que ir até Porto
você, se os funcionários tão ficando, o
Alegre ajudar o pessoal a bolar o layout da
mérito é seu.
loja nova. Pensei em passar por aqui e relembrar alguns detalhes, tentar alguma inspiração. – Certo, certo. Quando é que cê vai?
– Que é isso, eu só to seguindo o caminho que cê deixou trilhado. – Bobagem. Se você não tivesse mérito, eu não tinha te indicado pra me substituir.
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– Ou eles não tinham te aceitado. Mas quem que tá trabalhando agora? Vim de manhã exatamente pra pegar a loja menos cheia, tentar dar um oi pro pessoal. – A Carol tá ali, nos infantis. O Luiz tá nos CDs. A Camila e a Tati tão nos caixas. O César devia tá aqui na frente, mas foi no banheiro, eu to cobrindo. – E quem tá nas embalagens? – Eu mesmo. – É isso aí, mão na massa. Uhm, acho que tem alguém querendo ser atendido, vou te deixar trabalhar. Té mais. -----– Oi Carol. – Oiiii, Cacá, tudo bom? – Tudo, e contigo? – Beleza. – As crianças te dando muito trabalho? – Não, eu adoro elas. – Não podemos te demitir nunca. – É melhor mesmo. – Como vai a vida? – Acabou a correria da faculdade, começou a correria aqui na loja. Só quero que chegue janeiro logo. Que cês vão fazer nas férias? – Acho que a Clara não vai poder viajar, um caso importante, algo assim.
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– Que saco. – É a vida. Mas bom te ver. Vou ali dar um oi pro Luiz. -----– Fala, Cacá!! Tudo na boa, cara? – Tudo, tudo. Que tu anda fazendo aqui, alguém ainda compra CD? – Sai pra lá, ô, hahaha. – Hahaha – Mas as vendas tão boas, viu. Pessoal compra muita porcaria, essas Miley Cyrus aí, mas pelo menos a gente tá vendendo. Cara, escuta isso aqui. – ... – Muito bom, né?! – Muito mesmo. O que é? – O novo do Arctic Monkeys. – Oh, não tinha ouvido ainda. Vou ver o CD todo depois. E o novo do Bowie, hein? – Nem me fala! Se eu começar a falar dele, cê só sai daqui de noite. – Hehehe. Bom, não posso me dar ao luxo de ficar aqui o dia todo. Fazer assim, vou comprar o CD, assim cê duplica suas vendas do mês. – Sai pra lá, hahaha. -----– Oi, moças!
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– C h e f i n h o ! – Chefinho! – Cês combinaram que iam dizer juntas? – Ai ai, sempre com o bom humor, hein. – Cês tão bem? – Por enquanto, sim, né. O fim de semana é que vai ser terrível. – Ah, mas mesmo assim, tá tudo bem, chefinho. – Eu não sou mais o chefe de vocês, pô. – Agora tu é o chefe de todo mundo. – Até parece. – Cê não vem pra nossa festa de final de ano aqui da loja? Sempre vai ter lugar pra você. – E pra Clarinha também, claro. – Valeu o convite, vou falar com ela. Quem sabe a gente vem mesmo. Ah, vou levar esse CD. -----– Quase vou embora sem te dar oi, Cesar. – Opa, tive que dar uma chegada no banheiro, ninguém é de ferro, né, hehehe. – E aí, como vai o livro? – Tá devagar. Escrever é mais difícil do que as pessoas pensam. Mas vai sair, pode confiar. – Claro, não tenho dúvida. Vou querer uma cópia autografada, hein. 58
Nem precisa pedir, né, seu Cacá.
– E o que tu anda sugerindo pros clientes? – Olha, a maioria quer os de sempre, Jogos Vorazes, Crônicas de Gelo e Fogo, 50 Tons de Cinza. Às vezes, se a pessoa diz que já leu um desses e gostou, eu sugiro algum desses que o pessoal lança pra embarcar no sucesso dos outros. – Algumas coisas não mudam. – Agora, se cê quer algo diferente e bem bom, tem o último do John Grisham. – Opa, valeu pela dica. Vou colocar na lista. Mas recém comecei a ler Crônicas de Gelo e Fogo. – Tá atrasado, hein. – Tô mesmo. E, por falar nisso, tenho que voltar pro escritório. Tchau, cara, até a próxima.
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21 Eu vejo solidão Sábado, 21 de Dezembro de 2013 Hora: 21:46 Local: Brasília - DF, Brasil
corrigir erros linguísticos, assinar papéis, medir desempenhos, fornecer feedback, adiantar a revisão da escala para as semanas mais atribuladas, acompanhar a
“No one ever saw you moving through the dark Leaving slips of paper somewhere in the park Hidden from your friends, stealing all they knew Love is thrown in airless rooms Thin vile rewards for you”
troca de tur nos. Era rotineiro e calorosamente previsível. “Gray concrete city” acabou de cantar David Bowie, e é o que esta cidade é. Depois de uma semana cheia e uma mais ainda a começar, escolhi ficar reflexivo e
A música de David Bowie - “You feel so lonely could die” - ressoava pela sala em d o s e s h o m e o p á t i c a s d e s o l i d ã o . Carregada de escolhas que o levaram onde ele esta: solitário e feliz. Eu achava interessante o fato de que toda minha existência parecia ter uma trilha sonora.
lembrar-me dos finais de ano quando ainda era aluno de graduação. Namorava, viajava e me divertia. Era o momento em que podia ser eu mesmo, sem máscaras. Lembrava-me sempre, nestas situações de final de ano, há alguns anos desde que me separei, do Parque Moinhos de Vento, conhecido popularmente como Parcão, em Porto Alegre. Mania de humanos darem apelidos para lugares e pessoas,
É noite. A correria do dia impediu de me
como se isto simbolizasse lembranças ou
alimentar adequadamente, mas não de
intimidade. É o que acontece lá que é
admiravelmente observar os funcionários,
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importante e marcante, não o nome/apelido que lhe atribuem. O parque é florido, com alta movimentação de pessoas e bancos estrategicamente alocados ao longo das passagens, com um lago melancólico, principalmente na brisa fria de julho, quando aproveitava a viagem ao Rio de Janeiro para visitar de carro o sul. Eram dias de carro, muitas músicas e muitas memórias. Principalmente o parque. Lá, percebi o que ocorreria. Minha namorada silenciosa, olhando para as pessoas, segurava minha mão e, séria, falava de seus passados, desde o início do relacionamento. De quando me tornei estagiário na Hyper Books e de quando lia mais que saia com ela. Que me dedicava a detalhar em diagramas a relação que queria ter com algumas pessoas para alcançar níveis maiores na empresa. Ela estava discorrendo, provavelmente sem saber, o início de quando deixou de me amar. Quando passou a me dedicar à carreira, em detrimento dela. Ela sempre foi assim: inteligente, bela e inocentemente sincera, mesmo quando não sabia o objetivo de sua própria fala. Mas eu sabia. Ela estava desanimada, triste e solitária. Naquele parque florido, no verão que escolhemos voltar para ficar longe de todos os amigos que tínhamos em quase cada estado, menos em Porto Alegre. Ali decidi que deveria deixá-la partir. Dedicar-me à Hyper Books e crescer na carreira. Já que homem algum merece felicidade em tudo, ou não é felicidade é auto-enganação. Eu sempre pensava nisto e me alegrava em ver no Facebook a foto dela com novos namorados, com novo visual, em lugares antigos. Quando me dei conta de que não tinha escolhido ainda o local deste ano para o cumprimento de nossa promessa mútua, resolvi começar a fazer uma busca na internet, logo após posicionar o copo de uísque puro e uma trilha sonora de Ed Sheeran que começa com “I see fire”, música presente no lançamento de final de ano O Hobbit Desolação de Smaug. Deixei-me levar pela letra e melodia para a escolha do lugar para final do ano. Pensei na Europa. Vou cumprir a promessa do segundo ano de namoro de sempre passar o final de ano em um lugar sem amigos, para pensar, refletir e olhar a paisagem, como se estivéssemos juntos.
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22 Carta ao Pai Natal :) Domingo, 22 de Dezembro de 2013
escritores por um dia. O júri são os chefes.
Hora: 17:17
E quem escrever a carta mais original
Local: Porto, Portugal
ganha um fim de semana para duas pessoas em regime de meia pensão num hotel de cinco estrelas. É um prémio que
Boa tarde!
irá custar a cada funcionário poucos euros. E eu quero ter um fim de semana romântico com a Daniela!
Sei que escrever uma carta ao Pai Natal é
Eu consegui cuscar algumas cartas na
uma coisa de crianças porque o Pai Natal
hora do almoço de ontem. Sei que não é
não existe. São os nossos pais que dão as
uma atitude bonita mas queria saber como
prendas. Mas na minha família, escrever
estavam os meus concorrentes. A do Vítor
uma carta ao Pai Natal é tradição. E até na
é sobre pedir um Ferrari porque assim irá
véspera de Natal um de nós se veste de
ter uma bomba para conquistar mulheres
Pai Natal. Assim, conseguimos manter
e nunca mais chegará atrasado. Atrasado
aquele espírito de Natal por muitos anos.
vai ele ficar se continuar fazer olhinhos a Daniela! A do António é sobre paz, amor e
Este ano, partilho a minha carta ao Pai
felicidade para todo mundo. Que cliché! A
Natal com vocês porque há um concurso
que mais queria cuscar, que é a carta da
inter no na Hyper Books do Porto
Daniela, nunca consegui. O que será que
organizado por nós, os funcionários, e que
ela escreveu!?
decorreu até ontem as candidaturas. Afinal, trabalhamos todos os livros com
A carta é a seguinte:
livros e faz todo sentido também sermos 62
Porto, 21 de Dezembro de 2013 Querido Pai Natal,
Quero acreditar que este Natal não seja entroikado apesar de saber que tiveste encerrar várias fábricas de presentes, despedir duendes e transferir essas produções para países onde a mão-deobra é mais barata. Por isso, escrevo-te esta carta para pedir o meu simples presente de Natal. Eu este ano portei-me muito bem. Por exemplo, neste curto período de trabalho na Hyper Books fui o funcionário da semana uma vez. Curiosamente foi na semana passada. E sonho um dia ser um famoso escritor. Mas, por agora, eu preciso que me dês a coisa mais valiosa do mundo: saúde! Com saúde, eu poderei levantar-me da cama todos os dias sem me queixar. Com saúde, eu poderei sair de casa, desfrutar do Sol e ir trabalhar. Com saúde, eu poderei chegar a casa depois do trabalho, sorrir e ser feliz. Sei que não é um presente que se vá a um shopping e que se compre como a esmagadora maioria dos presentes. Talvez para me dares saúde terás que me dar conselhos. Por exemplo, praticar desporto. Não sei! Tu é que sabes. Confio na tua experiência! Sei que asa tuas barbas brancas irão fazer magia. Por isso, cá te espero na noite de Natal a conviver com a minha família.
Abraço, José Maria
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23 Quase em Porto Alegre Segunda-feira, 23 de Dezembro de 2013
de Natal com a família de Maria Clara;
Hora: 18:00
visitariam os pais dele no dia 25. Na
Local: São Paulo - SP, Brasil
manhã seguinte, partiria para a capital gaúcha. Visitaria a loja já existente da rede, tendo conseguido marcar um breve
A distribuição estava completa. Os exemplares de Crepúsculo, O Senhor dos Anéis, de livros do Paulo Coelho e da Agatha Christie, os CDs, os blu-rays; o que fora pedido fora comprado, o que fora comprado fora entregue. Nenhuma solicitação deixou de ser atendida – nem sempre isso acontecia, afinal o processo envolvia uma longa cadeia, mas neste fim de ano, todas as lojas tinham tudo que afirmaram necessitar. A esta altura, a maior parte do que seria vendido já o fora, afinal hoje é segunda-feira e a terça trará consigo a véspera de Natal. Tendo deixado para trás mais um período de desafio, Carlos Alberto finalmente voltou sua total atenção para as reuniões que teria em Porto Alegre. Passaria a noite
encontro com o gerente de lá – o da nova loja ainda não havia sido contratado. No caso de contar com algum tempo livre, cogitou visitar livrarias da concorrência. Ainda não decidira o que fazer à noite. Não queria ficar trancado no hotel, disso tinha certeza. Pensou que poderia pedir uma dica ao arquiteto Caio. I m a g i n a r i a C a i o t r a t a r- s e d e u m a insinuação? E em caso afirmativo, como reagiria? Carlos Alberto enxergava o homem com quem em breve se encontraria como alguém solitário. Seria ele avesso a proximidade; ou teria sido deixado de lado por um mundo do qual desejava fazer parte, mas que não parecia disposto a convidá-lo a aproximar-se? Qualquer que fosse o caso (e poderia ser
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ainda que Carlos estivesse plenamente equivocado em suas suposições), desenvolvera certa simpatia pelo antigo paulista, agora gaúcho adotado. Pegava-se imaginando que ideias o arquiteto teria para a nova loja. Visualizava disposições surreais, estantes formando desenhos geométricos ousados, cores loucas, vivas. Lembrou-se que nada disso seria realmente possível; particularmente as cores seriam padronizadas. Quanto senso prático teria Caio? Seu trabalho seria ser prático, afinal fora encarregado de falar com o arquiteto em grande parte por sua experiência como gerente de loja. Enquanto os clientes andam de um lado para o outro, e os títulos populares ficam orgulhosamente expostos, e os funcionários são treinados para manter o sorriso no rosto, alguém precisa repor o estoque. A área da fila para os caixas precisa ser confortável sem tomar muito espaço ou bloquear o acesso a partes do estabelecimento. A entrada da área restrita a trabalhadores precisa estar sutilmente inserida, quase camuflada, mas ainda assim de fácil acesso quando necessário. Os terminais de consulta precisam estar dispostos de forma a facilitar o atendimento, tornando o tempo de espera do cliente o mais curto possível (e liberando o atendente para servir ao próximo freguês o quanto antes). Esperava que Caio não fosse o tipo de arquiteto que toma considerações de ordem prática como aborrecimentos. Decidiu que não havia porque ser dúbio: escreveria para Caio dizendo que gostaria que saíssem juntos na noite do dia 26. Caso já estivesse comprometido, poderia então fazer alguma sugestão de um lugar a visitar? Abriu o e-mail e começou a compor a mensagem.
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24 Tudo era treva; tudo era dúvida; tudo era confusão. O século XVIII terminava; começava o século XIX. Orlando - Virginia Woolf
Um dia comum
Terça-feira, 24 de Dezembro de 2013
consigo mesmo, no apartamento bem
Hora: 8:00
mobiliado e sem árvore de natal. Era
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
confortável ter dinheiro suficiente para pagar uma ceia pronta - o cheff da moda a entregaria as vinte e uma horas - mas isso
Ocupar-se de planejar a reunião do dia vinte e sete, com uma recepção amigável ao gerente espirituoso e adepto das a l i t e r a ç õ e s l h e p a re c e u u m a b o a ocupação, mas grande parte da organização só seria possível no dia vinte e seis. Assim, tinha dois dias inteiros a sós
deixava o dia completamente livre de obrigações, o que nem sempre é um alívio. Apesar do calor escaldante Caio decide calçar seus tênis e trocar o ambiente climatizado pela rua. Caminha na calçada
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coberta pela sombra das Tipuanas e Jacarandás, já sem flores, enquanto observa platibandas, janelas de madeira antiga, portões ferro ricamente trabalhados e as rotinas festivas nas casas que permitem a intromissão dos olhares vindos da rua. Bisbilhotar o natal alheio desperta uma inédita saudade do apartamento onde cresceu, em São Paulo. O fato de ter se desvinculado da família o libertara das obrigações corriqueiras ligadas à data – viagens cansativas para a reunião com a tia de comentários ácidos; as compras que consomem um recurso vultuoso, melhor aplicado se direcionado a uma creche da periferia ou projeto de reciclagem; a preocupação com o preparo da ceia e uma mesa capaz de impressionar os convidados; emoções exacerbadas depois do terceiro ou quarto cálice de espumante rosado. Caio estava tão protegido desses desgastes como exposto à total falta de rumo. Agora que começara a deixar a fase de viciado em trabalho para trás, não cogitava passar a véspera de natal no escritório, incorporando no projeto em que trabalhava sozinho, os insights que tivera no sebo do Bom Fim e durante a conversa com a velhinha que virou mochileira depois de enviuvar. Também não dispunha de tranquilidade suficiente para sentar-se na varanda do apartamento e ler o volume da edição original de Morangos Mofados que encontrara junto de outras preciosidades desejadas havia tempos - Orlando na edição da Horgarth Press, e Noite, de Érico Veríssimo. O trânsito calmo fazia Porto Alegre parecer a cidade que Caio conhecera anos atrás. O arquiteto caminhava a esmo, volta e meia conferindo no smartphone os e-mails protocolares enviados por empresas fornecedoras e clientes; apenas um de cunho pessoal – a amiga Renata, agora morando no Rio, parecia excitada com a perspectiva de passar o Reveillon com alguém que conhecera há pouco; desejava ao amigo de infância que parasse de pensar tanto e pudesse rir um pouco mais e convidava para visita-la, aproveitariam a praia e um bom tanto de ócio. Mesmo sem inspiração para responder na hora, Caio sentiu as palavras da engenheira soprarem ânimo em seus passos. Com vontade de percorrer caminhos mais largos, Caio aproveitou a disponibilidade de bicicletas nas estações do BikePoa e buscou trajetos aleatórios, divertindo-se com o vento produzido em seu deslocamento. Queria apenas se cansar, ver a agitação alheia ir arrefecendo junto com a tarde.
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Antes de comer as porções servidas em requintadas peças de porcelana sem prestar mais atenção ao sabor do que às imagens que corriam na tela do tablet ou da televisão (sintonizada na BBC e com a tecla mute a tivada), Caio escancarou as janelas, desejou que chovesse e fez promessas de revolução para a própria vida.
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25 Feliz dia de trabalho! :) Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013
personalização que existe noutras
Hora: 18:30
prendas. Mas, no meio desta azáfama, na
Local: Porto, Portugal
Hyper Books do Porto deu para comemorar o Natal.
Boa tarde! Hoje, de manha, a loja esteve encerrada. Só abriu ás 14h e cada turno só tinha uma duração de quatro horas. Foi a prenda de Natal do gerente! Por isso, deu para dormir mais um bocadinho porque a noite de Natal foi longa. E ainda consegui almoçar o cabrito com a minha família ao meio dia.
Todos tivemos que levar uma prenda até um valor de 5€. Estas prendas foram numeradas e colocadas no chão junto dos nossos cacifes. No final do turno, cada pessoa tirava um número de um saco preto que estava a ser supervisionado por um dos nossos chefes. A mim saiu o número 69 e era um caderno A5 de linhas que só estava escrito “Era uma vez…” na primeira linha. A Daniela teve em sorte o número 13 e recebeu de presente um
Depois, fui trabalhar apesar de a vontade
maldito cheque-prenda de 5€ para gastar
não ser muita. E que dia terrível! Depois da
na nossa loja. Mas, uma vez mais, o Vítor
azáfama das últimas semanas dos
decidiu fazer das suas. Foi o presente
presentes de Natal agora há azáfama para
mais fácil de ser identificado de quem era.
trocar os presentes de Natal e gastarem
Ele ofereceu um baralho de cartas de
os cheque-prenda, que na minha opinião,
mulher nuas que, em sorte ou em azar, foi
é a pior prenda que se pode dar a uma
entregue a chefe Margarida. Vocês deviam
pessoa porque não tem aquela
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ter visto a reação da chefe ao desembrulhar aquele presente. O Vítor andou desaparecido durante alguns minutos. Depois, ainda houve a divulgação do vencedor ou vencedora do concurso de cartas ao Pai Natal. Eu não venci. Venceu a Daniela! Já decidimos que vamos passar um fim de semana romântico em Lisboa em Fevereiro. Que carta tão linda. O presente que a Daniela pediu ao Pai Natal foi para acabar com o racismo. Uma justa homenagem ao Nelson Mandela que faleceu este mês. Até sempre Madiba! E, no final de cada turno, havia uma mesa composta com doçaria de Natal. Isto serviu para haver confraternização entre a família Hyper Books do Porto. O António é uma pessoa inspiradora. O Vítor é bom conselheiro sobre mulheres. A Daniela é a metade que me completa. Todos os meus chefes são exemplos de liderança e ambição. E estou sempre aprender com os restantes colegas e com os clientes que atendo. Em relação aos presentes de Natal, que comprei no dia 5 de Dezembro, foi um rato de brincar para o Lince, uma camisola para a minha irmã, uma garrafa de vinho tinto para o meu pai e uma mala para a minha mãe. Desejo a todos vocês a continuação de um Bom Natal!
Abreijos, José Maria
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dia 26. 23h30. Recusei oito convites de
Bálsamo do
colegas de trabalho, de familiares e amigos de faculdade para passar em suas
Feriado
casas. A solidão era um bálsamo para o jovem Werther de Goethe e pode sê-lo
Quarta-feira, 25 de Dezembro de 2013
para mim também.
Hora: 19:03
Dei-me o dia de folga para beber
Local: Brasília - DF, Brasil
tranquilamente. Mas comecei me embriagando e ouvindo Bethânia. Mas , afinal, estava sozinho, poderia ser eu
Já era dia. Olhei para a Televisão e a vi mostrar o menu principal do DVD de Maria Bethânia - “Carta de Amor” na tela e uma doce melodia tocando. Ainda sem foco visual, olhei o relógio no pulso esquerdo. 7h13. Eu havia dormido no sofá e, milagrosamente, não quebrei o copo de uísque 12 anos que abri com intuito de ver o DVD. Normalmente apenas ouviria o CD e ficaria lendo um livro. Mas o dia 24 foi cansativo o suficiente. Ainda mais com aquele drama dos presentes de natal entre os funcionários que ganharam cada um uma folga num dia escolhido de acordo com o amigo-secreto. E o próximo amigo poderia roubar a data do amigo anterior. Isto em meio à entrega de presentes e abraços. Tudo bem humano, dramático e não muito verdadeiro, provavelmente. Cheguei em casa depois de averiguar a limpeza e adequação das tarefas para o
mesmo, menos rígido e mais sorridente. Lembrei-me de ler inúmeras mensagens natalinas com desejos de "feliz natal" como se isto significasse uma enorme mudança no mundo. Ria a cada mensagem pensando o quão piegas eram colegas, amigos e familiares que enviavam mensagem ou ligavam - e eu não atendia para não mudar em nada a vida, não demonstrar nada além da habitual e cultural obscenidade de amenidades natalinas. Hoje não preciso me concentrar como normalmente. Não trabalharei e tudo esta tremendamente organizado na Hyper Books, como geralmente esta. Então posso me deliciar com uma escrita adequada e uma ópera. Vou começar a reler os Irmãos Karamázov, de Dostoiévski. É interessante notar irmãos tão distintos, com propósitos tão próximos se
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comportando de maneira tão discordante. É uma alegoria do mundo que vivemos, geralmente as pessoas não sabem os motivos de suas ações e nem quais são suas ações, mas parecem irremediavelmente voltadas para satisfazer a seus desejos e mistérios. Tomei banho depois de separar o livro e a ópera de Oberon de von Weber. Seria um dia tranquilo, solitário e informativo. Como a maioria dos dias o era. Só que com risos intermitentes das cobranças de seus familiares, colegas e amigos para almoço de natal. Juro que ri sozinho me dirigindo ao banheiro e imaginando quantos receberia e quantos telefonemas teria de atender para convencer de que a solidão era uma companheira mais adequada que muitos humanos. Mas eles nunca entenderão, melhor dizer que me embriaguei - o que é verdade - e estou de ressaca, o que não é mentira. Apenas uma distorção ligeira. Em breve sentirei dor de cabeça e sede terrível.
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26 Punição? Quinta-feira, 26 de Dezembro de 2013
Hora: 17:31
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
Do ponto de vista de um paulistano, Porto Alegre poderia ser o próprio inferno, tão quente está. Isso, somado à sobrecarga de atividades recentes, às obrigações natalinas (não as considerava exatamente obrigações, já que gostava do processo, mas elas tomavam tempo e requeriam atenção) e ao fato de ter chegado hoje mesmo à capital gaúcha o fez levar a reunião com o gerente da loja já existente na base do improviso. Passará o resto da tarde na piscina do hotel. Amanhã, quando encontrar com o arquiteto, estará mais bem preparado.
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27 Talvez amizade
Além do arco-íris mais livre descalça A vida é uma valsa falando de amor E o próprio arco - íris a gente até acha Que dorme na caixa de lápis de cor Casuarina - Arco-Íris
compulsivamente. Era melhor receber Sexta-feira, 27 de Dezembro de 2013 Hora: 12:00 Local: Porto Alegre - RS, Brasil
Cacá com o território todo à sua disposição. Embora não fosse o jovem gerente de logística o responsável pela aprovação do projeto, a partir de suas impressões seria possível finalizar o anteprojeto e partir para as próximas
O escritório está completamente vazio, em
etapas. Não era a pressa ou a ambição
recesso desde a sexta-feira anterior.
que o guiavam, mas a necessidade de
Somente no dia seis de janeiro o sócio e
cumprir aquele compromisso para, então,
demais funcionários deveriam começar a
dar os próximos passos fora da
aparecer novamente em seus postos,
arquitetura, talvez fora de Porto Alegre.
agitando papéis e clicando
Tomado como estava pela determinação
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um tanto vaga de buscar um silêncio ideal, vinha gastando boa porção do dia a caminhar ou pedalar pensando nas possibilidades de sobrevivência que tinha à disposição. É sempre mais fácil pensar em desapego e revolução dos hábitos quando a conta bancária permite tempo suficiente com a despensa cheia, o guarda-roupa em ordem, os tributos quitados e ninguém esperando por justificativas sobre o desejo de partir. Depois de organizar a mesa de reuniões com os desenhos, as plantas e as amostras de materiais que estavam previstos, sobravam ainda umas duas horas até que Cacá chegasse com seu aparente entusiasmo e provável suor - o calor fazia as ruas de Porto Alegre fritarem desde o dia do Natal. Música era a companhia mais apropriada e exerceu influência positiva sobre o ânimo de Caio, que se concentrou na bela imagem suscitada pela letra do samba: Além do arco -íris mais livre descalça
A vida é uma valsa falando de amor E o próprio arco-íris a gente até acha
Que dorme na caixa de lápis de cor
Pensou no convite da amiga Renata para passar uns dias no Rio, repetiu a música no player e quando a campainha tocou, estava consultando sites de companhias aéreas. Cacá pareceu gostar das propostas do arquiteto, aprovou o layout e não parecia com ânimo de acrescentar maiores propostas. Concluíram a reunião a meio da tarde e combinaram de jantar juntos. O jantar com o gerente de logística foi o mais leve dos compromissos de trabalho de que Caio poderia se lembrar. Escolhera o tailandês para agradar o próprio paladar, mas acabou fazendo também a alegria de Cacá. O arquiteto perguntou sobre a carreira do gerente na HyperBooks, confessou não ter visitado muitas vezes a loja já existente em Porto Alegre porque preferia uma concorrente e os sebos do centro, mas prometeu dedicação total ao projeto da nova loja.
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Cacá não levou a mal a confissão e relatou com orgulho seu crescimento na rede de livrarias e o abandono do curso de Direito. Não falou de Maria Clara, nem dos planos para o final do ano. Falaram de gosto musical e de livros. A diferença de idade não foi um barreira. Caio tinha disposição e curiosidade para conhecer novas bandas e Cacá curtia músicas de outras décadas - over my shoulders foi um ponto em comum. Quando chegou em casa, abriu as portas da varanda e ligou o som sem grandes preocupações com o volume. De toda sorte, havia pouca gente no prédio por conta do feriadão.
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28 Ressaca atrasada
O tempo fica preso nas expectativas no perĂdo entre o natal e a virada do ano e nĂŁo ĂŠ dificil esquecer dos compromissos...
29 Dos parques e da vida Domingo, 29 de Dezembro de 2013
farfalhar das folhas, crianças gargalhando,
Hora: 21:39
e um pouco mais distante o burburinho
Local: Brasília - DF, Brasil
humano próximo à água. Quando se concentrava mais ainda, podia sentir sua pulsação, o vento tocando seu rosto de
É interessante como, em meio a toda confusão cinza de Brasília exista um lugar tranquilo, durante a semana, como o Parque Rural. Victor pensava e admirava a paisagem. Hábito que ele pensava ser de prioridade idosa, mas havia aprendido a observar mudanças e diferenças nos padrões. Como em quase tudo, ele se orgulhava disto. Apesar do Parque não conter árvores como nos Bosques de Belém do Pará recorrente lugar na sua adolescência – o aspecto único com uma leve brisa menos árida que o restante da cidade fazia Victor refletir.
leve. Eu faço parte do ambiente e para alguém eu também sou o ambiente. Depende de ponto de vista. Com seu cruzar de pernas habitual, um livro na mão e uma face séria constantemente verificada pelo seu exercício de auto-percepção, Victor olhava curioso para as pessoas. Sério. Odiava pessoas que pareciam descomprometidas com tudo. Olhares cansados o chateavam muito. Como em clientes esperando vendedores. Ensinou várias vezes seus empregados a identificar o início disto. Pois quando a feição aparece, já não há muito o que fazer. O importante era identificar o início. O bater dos dedos nas
Ele conseguia se concentrar, sem fechar
prateleiras, o trocar de apoio ora num pé
os olhos, sentado e ouvindo insetos,
ora em outro, o início do franzir do cenho.
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Mas no parque não era assim. Aparentemente um contrato social implícito lembrava as pessoas que ali era um lugar de fornecimento de alegria e descontração. Fazia dois meses que ele não ia a este parque. Sempre ocupado ele se desligou das tentativas de escrita no sábado apenas verificando as malas e separando o que pretendia levar para o lugar nunca antes visitado. Ele tinha decidido na manhã de ontem. Ao escovar os dentes para ir a Hyper Books. Ele se viu pensava em desistir da viagem à Europa. - "Pai, pai, ela mexeu comigo. Briga com ela?” Uma criança disse ao longe e instantaneamente chamou atenção de Victor. Pai. Fazia tempo que ele não falava com o seu. Tempo em demasia. O pai dele admitia estes distanciamentos ocasionais, principalmente sabendo que o final de ano do filho é corrido como gerente, e de uma livraria multinacional. Seu pai dizia sentir orgulho, ainda mais ao saber das histórias dos livros que ele contava e indicava ao pai quando se falavam por telefone. Seu pai mora em Porto Alegre. Que também tem parques excelentes, e o clima é muito melhor. Mas árvore e parque já servem o suficiente para reflexões. Lembranças do pai lhe vinham a partir da fala da pequena criança e não havia mais zumbido, batidas cardíacas ou farfalhar. Eram memórias. E só. Era um domingo produtivo, do ponto de vista de um treino para autocontrole. Mas Victor ainda se sentia vazio, como se precisasse ler muito mais, observar muito mais para poder compreender o mundo. E provavelmente era isto. Ele nunca estava satisfeito consigo mesmo a ponto de parar de se atualizar, ler ou observar. Os parques eram fundamentais em sua vida. E a Hyper Books a pedra de fundação. Lá ele poderia observar a rotina, controlar a rotina e modelar as pessoas, ou pelo menos suas ações. Ou parte delas. A livraria era seu laboratório diário. Os parques eram quadros, ele não poderia interferir, mas o levavam a outra dimensão. O domingo foi se acabando. O entardecer alaranjado e seco, além de quente, fez com que ele se desse conta do quanto havia ficado ali refletindo e ouvindo. Parte perdido no ambiente, parte perdido em si. Ou se encontrando, como ele gostava de pensar.
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A Deusa do
Ele seca a gota de suor. Ela responde ao toque. Beijam-se novamente. Aproximamse novamente. Tomam-se novamente.
Espaço e do
ela aproximou sua cadeira, para mostrar-
Tempo
lhe umas fotos no celular. Fotos de que, não importa. A área climatizada, que os
Domingo, 29 de Dezembro de 2013
Não há mais mesa entre eles, desde que
Hora: 21:30
Local: São Paulo - SP, Brasil
protege da elevada temperatura do verão porto-alegrense, não o impede de suar. Ainda há vinho nos copos. Ela toma um gole. Inclina-se e coloca o copo de volta
Havia no ar uma combinação de odores:
sobre a mesa. Seu belo decote passeia
suor, perfume, vinho e aromatizador de
em frente aos olhos dele.
ambientes. O dourado que atravessava a janela refletia sobre a pele clara. Uma audaz gota de suor se deixa levar pela gravidade, passa perto do seio. Faz calor no mundo lá fora; faz mais calor no universo fechado que ocupam. O ambiente é agradável. De bom gosto, caso seja necessário qualificar melhor. Sem que uma frase seja perdida, mais dois copos aparecem entre eles. Nenhum interrogatório. Nenhum monólogo chato, nenhum silêncio constrangedor. Uma conversa como aquelas que parecem acontecer apenas em filmes, cuidadosamente lapidadas por um roteirista para parecer espontâneas, porém perfeitas demais para assim ser.
Sorridentes os dois, como adolescentes, para os quais amanhã é um conceito tão abstrato quanto uma divindade qualquer. Ele a aperta forte. Sente os seios dela contra seu peito. O nome dela é Mariana. Gaúcha do interior, mora em Brasília, trabalha em um Ministério. Estava em Porto Alegre a serviço, hospedada no mesmo hotel que ele. Haviam se conhecido na piscina, no primeiro dia dele na cidade, antes da reunião com o arquiteto Caio. Quando voltou da janta no restaurante tailandês, recebeu o recado dela propondo um drink, “horário de verão, ainda é dia, praticamente”. Aceitou. Ela volta do
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banheiro parecendo ainda mais bonita. Aproxima-se dele, mas não volta a sua cadeira; inclina-se e o beija na boca. Entre sorrisos e carinhos, ele diz que precisa ir ao banheiro. “Tá, mas volta logo”. No breve intervalo fora de seu tórrido e dourado universo, pensa em Mariana. Não se arrepende. Por melhor que fosse, não teria sido tão bom quanto o que tinha agora. Enquanto seca o rosto, escuta Maria Clara cantando, do quarto, em seu inglês perfeito: And I don’t know how it gets better than this
You take my hand and drag me head first, fearless
And I don’t know why, but with you I’d dance
In a storm in my best dress, fearless. Dá um risinho para si mesmo. Lembra-se que, ao contrário dos adolescentes, ele tem consciência do tempo, o que já foi e o que virá. É 29 de dezembro. Os desafios de um ano se foram. Nem sempre se pode escolher que novos desafios o futuro trará, mas às vezes se pode opinar. Abre a porta do banheiro. “Que tal se começarmos a tentar ter filhos?”
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30 Novos Projetos
fugindo do sol, clamando que viesse logo o aguaceiro para arrefecer a noite e permitir sono tranquilo. O menino de calção encardido espreitava o guarda municipal para mergulhar no chafariz do parque
Labirintos Sazonais (verão) - Maurem
Segunda-feira, 30 de Dezembro de 2013
esforçando-se para simular uma
Hora: 06:00
temperatura tolerável. No domingo ainda
Local: Porto Alegre - RS, Brasil
acordou cedo na expectativa de poder pedalar pelas ruas do bairro antes que o sol devorasse o asfalto e os paralelepípedos deixando um bafo queimante no ar, mas as oito da manhã o
O calor persiste o bastante para que Caio
calor já o empurrava de volta ao
contrarie seus hábitos - o que tem
isolamento térmico.
acontecido com frequencia crescente nos últimos tempos - e consuma praticamente todo o final de semana dentro do apartamento com o ar condicionado
Aproveitou para trabalhar em casa e hoje cedo estava com a parte criativa do trabalho concluída. Na quinta-feira a
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equipe bem preparada do escritório começaria a preparar as plantas em 3D, os cortes e vistas necessários para a execução. Nessa fase o seu envolvimento era menor, apenas na execução voltaria a exercitar seu olhar clínico para detectar desvios. Depois haveria a visita do moço de Londres e então algo completamente diferente. Por hoje, no entanto, isso não tinha muito importância. Apesar da usual indiferença com datas como natal e ano novo, dessa vez estava decidido a algum tipo de ritual que o empurrasse na direção das mudanças que esperava, mesmo sem saber exatamente quais seriam. Não pensava em sete ondinhas na praia, lentilhas ou oferendas à Iemanjá, mas a ideia de aproximar-se da água pareceu-lhe apropriada. Passear de barco pelo Guaíba foi o ritual particular de Caio, não no último dia do ano, mas no penúltimo. Não sozinho, como desejaria, mas num dos barcos abarrotados de gaúchos ufanistas que glorificam a paisagem da capital vista desde o Lago. Não repetiu mantras, nenhuma oração, nenhum pensamento objetivo. Deixou-se levar, gostando do farfalhar da água contra o casco da embarcação, contente com a convicção de que era apenas mais uma segunda-feira como qualquer outra e ao mesmo tempo a última segunda-feira em que ainda se mantinha preso àquela etapa da vida. Na próxima semana estaria no Rio de Janeiro e na próximo em um lugar ainda não decidido. Por um ano inteiro Caio voltaria a viver sem planos, sem premeditação. Levaria material de desenho e a satisfação de caminhar, além da renda que o escritório continuaria propiciando, certamente em menor proporção que agora, mas em suficiente medida para que não deixasse os dias soterrarem-no pela repetição. Desembarcou desejando que logo os projetos de saneamento pudessem amenizar a contaminação do Guaíba.
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31 365º dia de 2013 :) Terça-feira, 31 de Dezembro de 2013
Em relação a 2013 é recordar com
Hora: 01:01
saudade porque foi um ano muito bom.
Local: Porto, Portugal
Licencie-me em Línguas, Literaturas e Culturas na FLUP, consegui arranjar trabalho na Hyper Books, conquistei a
Boa madrugada! O Porto ultimamente anda triste ao contrário de Porto Alegre. E não é só por causa de algumas últimas exibições cinzentas da equipa principal de futebol. É também por causa do tempo onde o vento e chuva são reis neste final de ano. Por exemplo, uma casa de um amigo meu na véspera de Natal ficou destruída por causa da queda de uma árvore. Felizmente não houve vítimas. Mas o Natal ficou triste para ele apesar de ter sido comemorado na casa de uns tios. É o fado de cada um! Em relação ao meu fado para 2014, os meus três desejos são de continuar a trabalhar na Hyper Books, ser promovido
Daniela, entre outros pequenos ganhos pessoais. Todos os dias ganhamos alguma coisa! Esta é a minha última publicação e quero agradecer a todos os colegas, clientes e leitores. Espero que tenham ficado com uma pequena noção do imenso trabalho que temos na Hyper Books do Porto. Por exemplo, apesar de ser a esta hora madrugada, eu estou a trabalhar na Hyper Books do Porto. Normalmente de madrugada, nós arrumamos os livros, que os clientes deixam espalhados, no sítio correto e repomos o stock. Uma palavra sobre Hyper Books!? Brutal! Recomendo que visitem esta loja.
e continuar a namorar com a Daniela.
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Peço desculpa por hoje a minha publicação ser curta mas eu estou extremamente cansado e está a custar-me imenso pensar. Prefiro trabalhar durante o dia! Desejo a todos que os próximos capítulos da história da vossa que irão se passar em 2014 sejam com vocês como heróis e com finais felizes. Quem corre por gosto não cansa!
Até já e abreijos,
José Maria
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Assim que as bagagens foram apanhadas
P l a n o s
e as mãos separadas ela olhou languidamente para ele que compreendeu
finalizados e
e tomou-lhe as malas, assumindo o carro
novos projetos
táxi que os levasse ao centro de Rio
de transporte até a saída em busca de um Branco/AC, aproximadamente 18km. O que lhes custaria uma pequena fortuna,
Terça-feira, 31 de Dezembro de 2013
dado que ele preferia alugar um carro, mas
Hora: 16:59
ela sugeriu aproveitarem a paisagem e a
Local: Rio Branco - AC, Brasil
baixa incidência de crimes para “curtir a arquitetura local”. Ela também fez uma pesquisa sobre a cidade. Finalmente uma
Eles chegavam de mãos dadas em direção à esteira para apanhar as bagagens mínimas que haviam levado na viagem. Inara e Victor estavam publicamente juntos pela primeira vez. Provavelmente isto se estenderia durante a volta a Hyper Books. A mão esquerda dele segurando a mão direita dela. Ele geralmente mais apressado em deixar a multidão, ela
mulher que não deixa tudo nas minhas mãos e toma alguma iniciativa. Pena que seja facialmente tão expressiva e simples de analisar. Contudo ela também sabia não expressar, quando se esforçava o suficiente e Victor imaginava isto, como na entrevista entre ela e Claudio. Ela esta apreensiva, mas se forçou a não demonstrar.
olhando para o aeroporto que parecia
Na manhã da segunda-feira ele a convidou
dividido em dois por algo que mulheres
para fazerem a viagem. Ela tentou
poderiam imaginar como um cinto. A visão
esconder a surpresa, contudo não teve
e r a c l a r a q u a n d o a a e ro n a v e i r i a
êxito, dado que ela sentiu o rosto ficar
pousando. Ele cedeu o lugar a ela na
quente e ele deu um leve sorriso com o
janela porque obviamente ele havia
canto esquerdo da boca. Terei de
divisado ao longe a construção e
desmarcar tudo e explicar aos meus
memorizado para descrições futuras a
familiares a escolha do local e a
quem lhe perguntasse.
companhia. Mas irei. Eu gosto dele e ele gosta de mim. Por mais que finja ou
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disfarce bem, seja lá como ele chame naqueles termos que, em geral, são técnicos. Ele é estudioso do comportamento humano, então deve saber o que faz com os outros, mas não sabe o que faz consigo mesmo. Nisto eu posso ajudar. Entraram num táxi que era o próximo da fila. Ele a deixou entrar primeiro e sentou-se ao seu lado no banco traseiro. Contudo ele odiava sentar no banco traseiro. Não dava ideia da forma que o motorista dirigia, o quanto pressionava o freio e a embreagem. Mas ele estava acompanhado desta vez, e não era com a jovem que namorava há anos atrás. Ele aprendeu a ser adequado socialmente, principalmente com Inara. Ao olhar para as laterais do aeroporto deixou-se divagar em lembranças do dia anterior. Finalmente meus planos funcionaram. E de uma maneira melhor do que eu imaginava. Lembrou-se da manhã de segunda, quando chamou Claudio, o que havia rejeitado para a vaga de gerente de seção. Sentou-se no meio das prateleiras e lhe ofereceu um cartão de Feliz Ano Novo, com um bônus para o ano novo. Claudio demonstrou dúvida facialmente e iria perguntar, quando Victor informou que ele precisaria ser o novo gerente de seção imediatamente naquela tarde. Disse ainda que ele fez uma avaliação e que pelo desempenho não diminuído depois da entrevista ele entendeu que Claudio era resistente o suficiente e compreensivo para ser o chefe da seção. Ao virar as costas o novo chefe lhe perguntou quanto à Inara. - “Ela foi convidada a ser gerente comercial da livraria. Não fui eu que a escolhi, foi o responsável nacional” - Deu um leve sorriso com ambos os cantos da boca e saiu. Foi ao encontro do novato que ele selecionou entre os três sujeitos e que possuía uma leve mácula ao andar. Ao encontrá-lo o jovem, não tão mais jovem que o gerente de R.H., sorriu discretamente e fez sinal para que o aguardasse. Ele atendia um cliente e sugeriu uma série de livros sobre positivismo, coisa que aquele jovem odiava, mas que era do interesse do cliente. Contudo não deixou de indicar, ao final, um livro de críticas a esta postura filosófica. Imaginou que o gerente ouviu tudo e esperou reprovação. _ “Tu tens evoluído muito. Não tem problema indicar, ao final, um livro de reflexão sobre o tema, ou crítica severa” – fez um pausa e fingiu olhar para os lados – “Aqui esta a carta de
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aceite do orientador da pós-graduação que te prometi em nosso combinado. Fizeste adequadamente tua parte. Boas festas” – sorriu levemente novamente com ambos os cantos e saiu. Ele tinha oferecido a carta de seu próprio orientador da pós-graduação caso o sujeito recomendasse Inara ao representante nacional que passou na manhã da terça-feira passada, quando Victor estava ocupado deixando as coisas em dia e preparando a “dinâmica” das folgas sorteadas pelo amigo secreto às avessas deles. O representante quis conversar com alguns funcionários e Victor, já prevendo isto, preparou o jovem para isto. Claro que ele aceitaria. Aquela entrevista com o gerente foi a quarta na mesma semana. Ele tinha uma dívida. Deveria pagá-la. E Victor sabia disto ainda mais. Ninguém poderia desconfiar da conversa e dos trâmites. O jovem era discreto e cumpridor da palavra, Victor passou a semana passada conversando com funcionários entre as prateleiras, incluindo Inara, com conversas que não levariam ao riso, para parecer mais profissional caso alguém imaginasse algo. Sentiu uma pressão em sua mão esquerda de leve. Olhou para dentro do táxi e viu a entrada da cidade. Discreta e tranquila, perto da entrada de Brasília. Lembrou-se do toque e olhou para a mão esquerda que segurava a de Inara. Olhou para os olhos dela, sorriu com um canto da boca e foi agraciado com um beijo no rosto, próximo a boca. Ele teria um bom final de ano. Longe da praia. Longe de conhecidos. Apenas com a mulher que escolheu e que aceitou deixar dramas de família e crendices para se juntar a ele nesta cidade que nenhum dos dois tinha pisado antes. Enfim, ele teria um ano diferente e uma mulher para planejar o futuro novamente.
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Um fim, dentre
namorados(as), talvez de longa data, talvez de relacionamentos recém iniciados. Cacá não sabe, mas Victor Eras, gerente
tantos
de RH da Hyper Books em Brasília, está disposto a assumir um relacionamento até
Terça-feira, 31 de Dezembro de 2013
Hora: 21:18
Local: São Paulo - SP, Brasil
então oculto, e José Maria está feliz da vida com o início de seu namoro com Daniela. O que Cacá sabe é que estará com seus pais, alguns outros familiares e sua
É um dos vários mecanismos internos do s e r h u m a n o d i v i d i r e c a t e g o r i z a r. Precisamos disso para nos orientar em um universo que compreendemos tanto quanto uma criança compreende testes de carbono-14. Nas lojas da Hyper Books no sul da Ásia, não se comemora ano novo hoje. Em breve eles farão seus próprios desfiles, com seus dragões, cobras ou macacos, qualquer que seja o animal símbolo do novo ciclo. Nós, os descendentes de Roma, continuamos obedecendo a Caio Júlio César.
esposa, Maria Clara. Passaram a noite de Natal com a família dela, agora a situação se inverteria. Não usariam branco; nenhum dos dois era supersticioso. Sem dúvida haveria lentinhas, o que era bom porque Cacá as adora. No dia 2, estaria de volta ao trabalho – embora até pudesse trabalhar de casa, vantagens de ser chefe, preferia passar pelo escritório, pelo menos por meio turno, para se certificar de que o período de festas havia corrido bem, que não havia nenhuma necessidade de aquisição e distribuição emergencial. Algumas trocas já haviam sido solicitadas,
Alguns comemorarão a data com suas
mas nada que representasse problema.
famílias; alguns irão a festas com os
Projetava que a situação permaneceria.
amigos; muitos se acumularão em pontos
Trocas de presentes constituíam um
estratégicos – da Harbour Bridge em
desafio pequeno frente a abastecer lojas
Sydney à praia de Copacabana no Rio de
para o Natal.
Janeiro – para assistir a festivais pirotécnicos. Alguns fugirão das multidões, talvez sozinhos, talvez com
Tiraria férias no fim de fevereiro, para emendar com o Carnaval. A Europa era o
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destino mais provável. Esperava que a viagem contribuísse para seu principal plano para 2014. Se você estiver lendo isso ainda em 31 de dezembro, é provável que seja da turma que não comemora a virada do ano (ou pelo menos não sai de casa para isso). Imagine que Cacá, sua esposa e seus familiares estão agora já reunidos no amplo apartamento onde moram os pais dele. Há lombinho de porco, castanhas, refrigerante, cerveja... As lentinhas ainda não estão prontas. A espumante está gelada, pronta para o brinde. Todos estão felizes. Por mais arbitrário que possa parecer celebrar a decisão de um ditador romano em 46 a.C., em algum momento é necessário parar a fazer o inventário do período recente, e projetar o seguinte. Que seja hoje, então. A Hyper Books está fechada. Ela voltará a operar, e talvez vocês saibam mais sobre ela, ou talvez não. De qualquer forma, esperamos que sua visita tenha sido agradável. Esperamos que tenham encontrado o que procuravam.
E desejamos a todos um Feliz Ano Novo. Foi um prazer.
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Autores x capítulos
AR Fonseca escreveu no ponto de vista de Victor Eras.
André Rodrigues escreveu no ponto de vista de José Maria.
Marcelo Elias Dillenburg escreveu no ponto de vista de Cacá.
Maurem Kayna escreveu no ponto de vista de Caio Brandes.
xci
Extras
Making-of “Cacáfonia (só que não)” - Marcelo
Caio”. Uma vez que meu interesse desde
Elias Dillenburg
o início era tentar passear por formas diferentes de escrever, a oportunidade se mostrou por demais tentadora. A primeira
A ideia de criar um texto escrito em aliterações surgiu quando resolvemos que meu personagem, o Cacá, iria interagir com o personagem da Maurem, Caio. Imaginei que o e-mail que Cacá obviamente teria que enviar a Caio começaria, de acordo com as boas normas de comunicação, com “Caro
coisa que eu fiz foi pensar em aliterações comuns; nessa linha, me veio à mente, por exemplo, “conforme combinamos”, que abre o e-mail. Pensei também em palavras importantes começando com ca-, co- e cu-, e cheguei a passar rapidamente os olhos por um dicionário para o caso de algo me chamar a atenção.
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Possuindo o suficiente para montar uma estrutura básica, o passo seguinte foi o que trouxe as reais dificuldades. Para conseguir ligar as palavras e espressões de que eu já dispunha, mantendo a premissa de um texto que fizesse sentido, passei a ter que buscar palavras que se faziam necessárias, ao invés das palavras que eu mesmo havia escolhido. Em alguns casos, os termos me vieram à mente quando as sentenças foram escritas. Em outros casos, precisei sair à caça de sinôminos para os termos que seria mais óbvio utilizar, mas que não começavam com as sílabas “mágicas”. Em alguns casos, simplesmente não foi possível completar a sentença, e tive que voltar atrás e reconstruir o trecho em questão. Tratou-se, sem dúvida, de um processo mais trabalhoso do que o padrão, mas foi também o texto que mais me ofereceu sensação de realização. Não vou dizer que é meu favorito dentre os textos que escrevi, pois de forma geral fiquei bem contente com o resultado da série, mas sem dúvida é um trabalho que sempre guardarei como uma pequena conquista.
Vindo de outras histórias - Maurem Kayna
Quando André Rodrigues convidou voluntários para o projeto, era novembro e eu estava em pleno desafio-insanidade do NaNoWriMo (o desafio literário que me fez produzir uma novela com mais de 50 mil palavras, onde Caio é um dos protagonistas) e achei um ótimo exercício criar situações onde minha personagem poderia interagir com outras num plano distinto da história na qual trabalhava. Foi assim que o arquiteto que havia passado algum tempo morando em Londres e em Coimbra (isso na novela do NaNoWriMo) se envolveu com a reforma da loja que viria a ser um novo ponto da Livraria Hyper Books em Porto Alegre. A pressão de cumprir o cronograma de publicações organizado e manter a coerência com os posts dos demais participantes foi um tempero extra no mês de dezembro, já tão cheio de correrias. Mas a experiência foi ótima! Espero que alguma diversão os tenha embalado nessas páginas virtuais.
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