Nébula: Design Especulativo, Utopias e Tecnologia

NÉBULA DEsign especulativo, utopias e tecnologia

MATEUS AGOSTINHO CASTRO TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

ORIENTADOR: RODRIGO MENDES DE SOUZA UFMS - UNIVERSIDADE FEDERAL DE MATO GROSSO DO SUL

NÉBULA DEsign especulativo, utopias e tecnologia

MATEUS AGOSTINHO CASTRO

ORIENTADOR: RODRIGO MENDES DE SOUZA TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO APRESENTADO AO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO COMO PARTE DOS REQUISITOS PARA A OBTENÇÃO DO TÍTULO DE ARQUITETO E URBANISTA. CAMPO GRANDE, 2021.

CASTRO, Mateus Agostinho Nébula: Design Especulativo, Utopias e Tecnologia em Campo Grande, MS / Mateus Agostinho Castro. - 2021 143 p.

Monografia (Bacharelado em Arquitetura e Urbanismo) - Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), 2021.

1. Arquitetura especulativa 2. Utopia 3. Virtual 4. Consumo

12/13/21, 11:20 AM

SEI/UFMS - 2968100 - Ata

ATA DA SESSÃO DE DEFESA E AVALIAÇÃO DE TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO (TCC) DO CURSO DE ARQUITETURA E URBANISMO DA ​FACULDADE DE ENGENHARIAS, ARQUITETURA E URBANISMO E GEOGRAFIA - 2021-2 No mês de dezembro do ano de dois mil e vinte e um, reuniu-se por meio de videoconferência (plataformas Microsoft TEAMS ou Google MEET) a Banca Examinadora, sob Presidência do(a) Professor(a) Orientador(a), para avaliação do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Faculdade de Engenharias, Arquitetura e Urbanismo e Geografia da Fundação Universidade Federal de Mato Grosso do Sul em acordo aos dados descritos na tabela abaixo: DATA, horário e local da apresentação

Nome do(a) Aluno(a), RGA e Título do Trabalho

Professor(a) Orientador(a)

Professor(a) Avaliador(a) da UFMS

Professor(a) Convidado(a) e IES

2 de dezembro de 2021 Horário - 10h03 as 11h43 Campo Grande, MS

Mateus Agostinho Castro (2016.2101.037-6)

Tema: Nébula – Design Especulativo, Utopias e Tecnologia

Rodrigo Mendes de Souza

Gilfranco Alves

Juliana Villela Junqueira

Após a apresentação do Trabalho de Conclusão de Curso pelo(a) acadêmico(a), os membros da banca examinadora teceram suas ponderações a respeito da estrutura, do desenvolvimento e produto acadêmico apresentado, indicando os elementos de relevância e os elementos que couberam revisões de adequação (relacionadas em anexo).

Ao final a banca emitiu o seguinte CONCEITO para o trabalho: APROVADO Assinam eletronicamente os membros da banca examinadora.

Ata homologada pela Coordenação de Curso e pela Coordenação da disciplina de TCC.

Campo Grande, 2 dezembro de 2021.

Prof. Dr. Jose Alberto Ventura Couto Coordenador do Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo (FAENG/UFMS)

Prof. Dr. Gutemberg dos Santos Weingartner Coordenador da Disciplina Trabalho de Conclusão de Curso (TCC)

Documento assinado eletronicamente por Rodrigo Mendes de Souza, Diretor(a), Substituto(a), em 06/12/2021, às 23:16, conforme horário oficial de Mato Grosso do Sul, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Gutemberg dos Santos Weingartner, Professor do Magisterio Superior, em 09/12/2021, às 11:41, conforme horário oficial de Mato Grosso do Sul, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

Documento assinado eletronicamente por Jose Alberto Ventura Couto, Professor do Magisterio Superior, em 09/12/2021, às 14:21, conforme horário oficial de Mato Grosso do Sul, com fundamento no art. 6º, § 1º, do Decreto nº 8.539, de 8 de outubro de 2015.

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12/13/21, 11:20 AM

SEI/UFMS - 2968100 - Ata

FACULDADE DE ENGENHARIAS, ARQUITETURA E URBANISMO E GEOGRAFIA

Av Costa e Silva, s/nº - Cidade Universitária

Fone:

CEP 79070-900 - Campo Grande - MS

Referência: Processo nº 23104.033813/2021-56

SEI nº 2968100

https://sei.ufms.br/sei/controlador.php?acao=documento_imprimir_web&acao_origem=arvore_visualizar&id_documento=3541065&infra_sistema=100000100…

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AGRADECIMENTOS Primeiramente, gostaria de agradecer aos meus pais, Silvio e Andrea, por sempre acreditarem no meu futuro, lutando para me garantir a melhor educação e experiências que poderia ter. Aos meus avôs, Antônio Augusto, Maria Inês, Alceni e Arlene, por sempre me apoiarem desde criança, me permitindo sonhar. Às minhas tias, Luciana e Fernanda, por sempre estarem ao meu lado, mesmo fisicamente distantes. O apoio de todos vocês sempre foi e será importante.

Às minhas amigas, Laura e Isabela, que me conhecem desde a minha infância e adolescência e sempre se mostraram presentes em diversos momentos da minha vida.

Aos meus amigos, Prado, Marques, Nicoly e Soares, por me acompanharem nessa jornada pelo curso, só nós sabemos o quanto lutamos. O amor de vocês foi fundamental para meu crescimento e persistência. Conseguimos, esse é o Rumba Club!

Ao meu amigo Lucas, que a amizade sempre me fortaleceu nos meus momentos de dificuldade. Ao meu amigo Pedro que, já no final do curso, me conheceu e me deu momentos felizes.

Aos meus colegas da turma de Arquitetura

e Urbanismo da UFMS que me mostraram o real significado da união de uma sala.

Sempre me fizeram sentir confortável e bem acolhido num espaço de educação, onde eu pudesse ser eu mesmo.

Ao meu orientador Rodrigo, por acreditar na minha ideia, me permitir criar além das barreiras e colaborar com seu conhecimento. Mesmo durante todo o isolamento social, enquanto essa tese foi escrita, sua participação e cuidado foram de extrema importância.

Por fim, mas não menos importante, a mim, que não só é autor deste trabalho, mas que sabe, mais do que ninguém, por tudo que viveu e teve que lutar para chegar até esse momento. Não foi um caminho tranquilo, mas ver esse produto pronto, me orgulha de uma maneira imensa. Tudo isso é fruto do meu crescimento como profissional, mas também como pessoa.

“Cegos de tanto ver as coisas, precisamos buscar algum recuo em relação ao contexto no qual estamos imersos e, sendo contemporâneos, “neutralizar as luzes que provêm da época para descobrir as suas trevas”, relembrando as palavras de Agamben.

Dessa perspectiva, talvez seja possível ver a tragédia latente e abafada do nosso tempo, dispersa e oculta em meio à “névoa da guerra”, lembrando da famosa expressão de Clausewitz. Imagem-enigma. Um quase anagrama perfeito.”

Guilherme Wisnik, 2018, p. 307.

resumo

Tem-se a crença que a rede e as tecnologias digitais são sinônimo do progresso humano, assim como são emancipatórias e libertárias. Mas será que no fundo não somos capazes de enxergar o que elas têm como princípio motriz? Essa tese apresenta uma leitura e associação de métodos de design alternativos, estudo de utopias e distopias na arquitetura e urbanismo e aspectos contemporâneos da rede digital em torno do consumo, para propor uma realidade (dis)utópica onde o capitalismo pós-digital foi extrapolado ao seu máximo e essa sociedade vive pela exploração de seus dados, mesmo que não a perceba em sua completude.

Palavras-chave: Arquitetura especulativa; Utopia; Virtual; Consumo

SUMÁRIO INTRODUÇÃO

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CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

PSICOPATIAS

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3.6. A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A ECONOMIA COMPARTILHADA

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1.1 DESIGN COMO CRÍTICA

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3.7. FAKE NEWS E PÓS-VERDADES

81

1.2. DESIGN ESPECULATIVO

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3.8. BIG DATA E A LIBERDADE DIGITAL

85

1.3. METADESIGN

21

3.9. BOLSAS DE VALORES E A ECONOMIA DIGITAL

90

1.4. DIVULGAÇÃO E FINANCIAMENTO

23

1.5. EXEMPLOS 1.6. THE UNITED MICRO-KINGDOMS

25 28

3.10. SOLUCIONISMOS E ESVAZIAMENTO DA POLÍ-

TICA

3.11. COGNICAÇÃO ALGORÍTMICA E A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

3.12. O PROBLEMA NÃO É A TECNOLOGIA

91 94 95

2.1. AS UTOPIAS

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2.2. O MOVIMENTO MODERNO E O FUTURO

37

4.1. CONTEXTO

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2.3. PÓS-MODERNISMO E AS MEGAESTRUTURAS

40

4.2. O CORPO PÓS HUMANO

105

2.4. NEW BABYLON

44

4.3. ESTRUTURA

119

2.5. FUN PALACE

49

4.4. VIDA NÔMADE

123

2.6. ARCHIGRAM

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4.5. PROGRAMA ARQUITETÔNICO

125

2.7. ARCHIZOOM & SUPERSTUDIO

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4.6. FIM

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2.8. AS DISTOPIAS E O CINEMA

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

141

2.9. AS NOVAS UTOPIAS

60

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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CAPÍTULO 3: NEVOEIRO -TECTÔNICA

3.5. O PROCESSO DE CIBORGUIZAÇÃO DO CORPO E

3.1. ARQUITETURAS TRANSLÚCIDAS E A ANTI-

3.2. JUNKSPACE, BIGNESS E O FIM DAS FRONTEIRAS ENTRE O VIRTUAL E O REAL

CAPÍTULO 4: NÉBULA

ANEXOS

69 71

3.3. A NUVEM E HIPERVIGILÂNCIA

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3.4. A QUESTÃO DO CLIMA

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INTRODUÇÃO Este trabalho quer explorar um fenômeno de enevoamento da realidade a partir da situação contemporânea da tecnologia e das transformações digitais na sociedade e como a arquitetura e urbanismo pode se relacionar com isso. Não é possível negar a quantidade massiva de informações que recebemos diariamente e a variedade de recursos tecnológicos que nos conectam uns aos outros por meio do virtual. A internet, que anos atrás era acessada e depois se desconectava, não é mais uma realidade, agora estamos sempre online.

Apesar de sempre ter sido tratado como uma realidade transparente, libertária e emancipatória, o virtual acabou se mostrando como um mundo de opacidade, incertezas e monopolizador. Além disso, quer se explorar com esse trabalho, como o consumo e o capitalismo, nas suas diversas fases, articula e articulou toda lógica de funcionamento da sociedade e qual o papel do arquiteto e urbanista nesse cenário complexo. O que ele pode propor para discutir os efeitos do consumo e da tecnologia e suas consequências para o futuro? Afinal, a culpa é da tecnologia? Ela é a culpada por todos os possíveis problemas que vivenciamos?

OBJETIVOS Objetivo geral: elaborar uma proposta de arquitetura especulativa pautando a temática da contemporaneidade digital para desenvolver uma reflexão sobre como tratamos a tecnologia hoje e quais poderão ser os próximos passos.

Objetivos específicos: - Pesquisar e entender melhor os exemplos de design que fogem daquele que é voltado exclusivamente ao comercial; - Fazer um levantamento histórico sobre as propostas utópicas e distópicas com um recorte temporal que engloba o período moderno da arquitetura até a contemporaneidade, focando principalmente nas propostas desenvolvidas durante as décadas de 60 e 70; - Fazer uma leitura crítica de para quais fins a tecnologia, no geral, é usada atualmente; - Entender as ligações entre o uso da tecnologia com as questões políticas, sociais e culturais.

JUSTIFICATIVA Após episódios como o Caso Snowden e o programa de vigilância PRISM e os diversos casos envolvendo o Facebook e seu uso de dados privados de seus usuários, podemos notar que cada vez mais a privacidade digital é um tema que se torna necessário discussões. Por mais que a internet tenha se tornado uma parte muito importante das nossas vidas e seja percebida como um fenômeno ícone da liberdade das informações, seu uso pode nem sempre ser para os melhores intuitos.

O uso de dados pessoais não serve apenas para criar anúncios mais personalizados, focados em gostos e necessidades pessoais. Ele engloba uma rede de interações que podem servir como arma de manipulação e colocar em perigo não apenas as informações íntimas de cada indivíduo, como toda uma nação e sua democracia.

Portanto, o trabalho se justifica justamente na tentativa de tentar entender como a tecnologia pode ser usada contra as pessoas tornando o mundo um lugar bem mais sombrio do que a luz que acreditamos que a internet pode trazer.

METODOLOGIA O trabalho foi pensado a partir de um levantamento bibliográfico dos 3 eixos principais a serem discutidos: 1. designs críticos/não comerciais; 2. história das utopias e distopias na arquitetura e urbanismo e 3. condição contemporânea do uso da tecnologia na sociedade global.

As leituras foram feitas a partir de livros físicos e digitais, além de artigos, mestrados e outras consultas realizadas online. Após a leitura foi realizado um fichamento de cada conteúdo e foram criados mapas mentais/fluxogramas para melhor entender o encaminhamento da cada capítulo. O texto então foi dividido em 4 capítulos, sendo 3 para cada eixo temático pesquisado e o último para a descrição do projeto especulativo gerado ao final. Cada capítulo recebeu o nome de um nível de enublamento da visão, culminando no ápice que seria 10

o nome do projeto em si: a Nébula.

O primeiro capítulo chamado Sinais de Fumaça aborda principalmente o livro Speculative Everything (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby, que desenvolvem a temática do Design Especulativo, tema base para a proposta; e o livro Metadesign (2010) de Caio Vassão, que aborda sobre o design na complexidade.

O segundo capítulo chamado Céu Nublado aborda mestrados e artigos de diversos autores sobre a condição histórica da arquitetura moderna e seus sucessores, além dos autores desses períodos que propuseram utopias e distopias.

O terceiro capítulo chamado Nevoeiro aborda vários livros que discutem a complexidade do mundo contemporâneo e como a tecnologia se insere nesse cenário. O livro Dentro do Nevoeiro (2018) de Guilherme Wisnik teve papel importante na estruturação não só do capítulo como de todo o trabalho.

Por fim, o último capítulo chamado Nébula, nome do projeto, aborda toda a explicação da proposta, seguindo a linha dos designs especulativos e seus exemplos. O desenvolvimento do projeto fez uso de diversos softwares como AutoCad, Sketchup, Rhinoceros + Grasshopper, Photoshop e Illustrator, além de desenhos e estudos feitos à mão.

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INTRODUÇÃO

CAPÍTULO 1

SINAIS DE FUMAÇA

1.1. DESIGN COMO CRÍTICA

O entendimento do que seria o design pode ser colocado como “solucionador de problemas”. Ele é ainda muito mais entendido como um solucionador de problemas formativos, em grande parte das vezes (DUNNE; RABY, 2013, p. 2). Quando nos deparamos com a situação de caos e complexidade que vivemos a essa altura do século XXI, o design se propõe como uma possível forma de solucionar essas necessidades e dar uma ordem à confusão.

Mas o que seria essa complexidade? Segundo Edgar Morin (p. 34-35), a complexidade pode ser percebida como uma questão quantitativa em um primeiro momento, ou seja, é um conjunto extremamente grande de unidades que interagem e interferem.

Porém, a complexidade não se limita apenas a isso. Ela é definida pelas suas suas incertezas, indeterminações, aleatoriedade, acaso.

A complexidade está, pois, ligada a certa mistura de ordem e de desordem, mistura íntima, ao contrário da ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina no nível das grandes populações e a desordem (pobre, porque pura indeterminação) reina no nível das unidades elementares ( MORIN, 2015, p. 35).

1. Televisão da Braun AG (1958). Disponível em: <https://collection.cooperhewitt.org/objects/18621885/>.

Acesso em: 28 de out. de 2021.

A complexidade está presente na vida cotidiana. Quando paramos para entender, por exemplo, algum problema cotidiano como o trânsito das grandes cidades. Não é possível fazer uma leitura plana por exemplo apenas no entendimento mecânico dos veículos que circulam pelas vias, assim como também seria insuficiente tentar entender o problema apenas pela direção dos fluxos e seus motivos econômicos para a cidade. Cada aspecto que engloba o funcionamento (ou não funcionamento) do trânsito não existe isoladamente, apesar de serem tratados assim. Eles existem um com o outro, de maneira simultânea.

A possibilidade de reduzir esse sistema, ou seja, quebrá-lo em partes menores, ou não, é uma discussão totalmente subjetiva, dependendo muito de seu motivo (VASSÃO, 2010, p.

13). Sendo assim, como seria possível projetar algo complexo?

Mais do que projetar uma solução para o design em nossa realidade, é explorar a especulação de como as coisas poderiam ser.

Essa forma de design se desenvolve na imaginação e anseia em criar novas perspectivas para problemas sociais e culturais difíceis de resolver, em criar espaços para discussão e debate sobre caminhos alternativos de ser, e inspirar e

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CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

2. TV Helmet (Portable Living Room) (1967) de Walter Pichler. Disponível em: <https://pictolic.com/en/ article/vr-helmet-from-the-60s-walter-pichlers-futuristic-concepts>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

encorajar a imaginação das pessoas a fluir livremente (DUNNE; RABY, 2013, p. 2, tradução do autor).

Para isso, entender e criticar o presente é necessário. O design crítico, como forma de gerar novas perspectivas a partir do que temos, é fundamental para entendermos, não só a complexidade do hoje, como discutir a do amanhã. Não se resume apenas em um experimento ou entretenimento, é para ser desafiador e crítico em como as tecnologias nos atingem (DUNNE; RABY, 2013, p. 34).

A crítica, apesar de majoritariamente ser considerada algo negativo, é, na realidade, algo que associado ao design pode oferecer alternativas ao que temos hoje. O design crítico cabe perfeitamente nas questões complexas, ele traduz e expressa nossas dúvidas, medos, esperanças, desilusões quanto a tecnologia, principalmente às descobertas científicas, em algo implantado na nossa vida cotidiana. Ele pode ir além, chegando a questionar os ideais sociais e econômicos (DUNNE; RABY, 2013, p. 34-35).

3. Clean Air Pod (1970) de Antfarm. Disponível em: <https://www.spatialagency.net/database/ant.farm>.

Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Em essência, o design crítico seria uma expressão do design conceitual. Sendo assim, um aspecto fundamental dessa área é a separação do design com o mercado. Liberando o design das pressões impostas pelo comércio, novas possibilidades manifestam-se e se torna possível questionar e provocar, criando, desde novas estéticas para a tecnologia, até alternativas para o cenário e modelo atual do capitalismo.

O design conceitual é por vezes apontado como algo que se resume a ideias e que não foram ainda realizadas. Mas é justamente esse o ponto. Ele é a manifestação dessa irrealidade e tira total proveito disso. Mais do que ideias, os design conceituais são propostas de ideais. Em cenários complexos, a possibilidade de termos esses designs é justamente algo que precisamos para o entendimento e questionamento do que somos e fazemos. Ideais não são medidos pelo o que eles obedecem na realidade, mas a realidade que é julgada quando se atende as expectativas dos ideais (NEIMAN apud DUNNE; RABY, 2013, p.12).

Em arquitetura nós temos exemplos na história que mostram o potencial do design conceitual e crítico. Muitos deles se encontram durante a década de 60 e 70, período em que não só a arquitetura, como também o design, passaram por várias propostas nesse sentido. Mesmo assim, alguns desses projetos se materializaram.

4. Designs for an Overpopulated Planet: Foragers (2009) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Frame de vídeo (00:17). Disponível em: <https://vimeo.com/8141224>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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Um exemplo que poderia ser citado é a House VI (1975) de Peter Eisenman. O projeto prioriza as preocupações formais muito mais do que as de ordem prática e funcionais. Quem morasse ali iria viver numa ideia, muito além do que uma casa propriamente dita. Curiosamente, o próprio dono escreveu que mesmo com os problemas funcionais, ele amava viver em uma construção tão conceitual (DUNNE; RABY, 2013, p. 24).

Se naturalmente associamos a ideia de uma casa com a função de um abrigo que têm seus funcionamentos e sistemas contemporâneos atrelados ao viver nesse ambiente, quando nos deparamos com o exemplo da House VI muito se questiona: será então que esse design deu certo?

O design convencional, ou comercial, pode medir seu sucesso a partir de sua usabilidade, vendas, aceitação, custo, entre outros. No entanto, o sucesso de um design crítico vai para um caminho totalmente diferente desse. Ele pode ser medido a partir de quão exigente, desafiador e até conscientizador ele conseguiu e consegue ser (DUNNE, RABY, 2013, p. 43).

Ainda nessa ideia do design comercial, o cidadão, como consumidor, tem papel crucial nessa dinâmica. O ato de comprar tem o papel de determinar o nosso futuro tecnológico. Quando expomos esses cidadãos com essas propostas de Design Especulativo, eles podem se envolver de maneira crítica em como aquilo pode representar um possível futuro e discutir as alternativas ao seu redor (DUNNE; RABY, 2013, p. 49).

5. Diagramas da House VI (1975) de Peter Eisenman. Disponível em: <https://eisenmanarchitects.com/ House-VI-1975>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

O design então absorve o papel de catalisador de mudanças sócio-econômico-culturais dando enfoque a possibilidades caso algum tipo de comportamento não mude ou mude. Nossas crenças para com o que há por vir são postas em questionamento e se torna possível discutir essas alternativas de futuro no presente.

Muitas dessas propostas podem ser associadas a uma noção negativa para com o futuro, uma certa desesperança dentro desse mar de complexidades. Essas emoções negativas e muito complicadas são muito evitadas no design convencional. No entanto, o negativo no design crítico tem um papel, na realidade, positivo: ser como uma antítese da ingenuidade das pessoas para com essa utopia tecnológica e colocá-las de frente a questionamentos, alertas e críticas (DUNNE; RABY, 2013, p. 38).

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Com as polêmicas envolvendo as gigantes da tecnolo-

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

6. Fachada da House VI (1975) de Peter Eisenman. Disponível em: <https://eisenmanarchitects.com/House-VI-1975>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

gia, como o Facebook, e o uso e venda de dados dos usuários e seus respectivos resultados nas eleições estadunidenses de 2016, no Brexit e até nas eleições brasileiras em 2018, tem se discutido a privacidade (ou a falta dela) no mundo virtual e o que é ético nessa esfera. Porém, quase 10 anos antes dessas discussões tomarem proporções globais, o designer Bernhard Hopfengärtner propôs o Belief Systems (2009).

São criadas neurotecnologias que podem adivinhar o que as pessoas estão pensando através de câmeras, sensores e algoritmos que interpretam as expressões faciais e comportamentos.

Uma inteligência artificial que rastreia e processa esses dados e associa a outras informações como as compras e cliques em sites de cada indivíduo. Hopfengärtner cria 6 cenários em que isso seria aplicado, que vão desde máquinas de venda que sabem exatamente o que cliente quer, até maneiras de aprender a manipular suas expressões e não deixar com que elas indiquem seu sentimento, retirando esse aspecto tão humano da comunicação corporal. Ironicamente ou não, anos depois nos deparamos com um design conceitual não apenas sendo uma alternativa de realidade, como sendo a própria realidade, onde algoritmos e sensores são capazes de entender nossas vontades e nos apresentar anúncios personalizados de acordo com nosso perfil e necessidades mais recentes.

Para nós, o propósito da especulação é perturbar o presente ao invés de prever o futuro. Mas para explorar completamente esse potencial, o design precisa se dissociar da indústria, desenvolver sua imaginação social mais intensamente, englobar a cultura especulativa, e então, talvez como a curadora do MoMA Paola Antonelli sugere, nós poderemos ver o início de uma forma de design dedicada em pensar, refletir, inspirar e prover novas perspectivas para alguns desafios que enfrentamos (DUNNE; RABY, 2013, p. 88, tradução do autor).

7. Belief Systems (2009) de Bernhard Hopfengärnter. Disponível em: <https://collection.cooperhewitt. org/objects/18621885/>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

A ideia de Hopfengärtner não era prever o futuro, ditar como ele iria ser, mas sim, propor alternativas de realidades para o futuro através do design, para que fosse possível uma reflexão e discussão. É muita coincidência seu projeto se tornar algo tão próximo do real? Provavelmente não. A leitura do presente para desenvolvimento desse tipo de projeto é inevitável e muito importante. É a partir de uma extrapolação de algo do presente para uma possível realidade futura que se pauta o design crítico especulativo. O designer soube ler muito bem os aspectos que circundavam sua proposta naquele momento, gerar um design e convulsionar a discussão sobre o tema.

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

16

Para isso, é necessário destravar a imaginação das pessoas e aplicar essa ideia em várias áreas da vida em uma microescala. O design crítico, ao gerar alternativas, tem a função de ser um guia, como um compasso, muito além do que um mapa. A ideia é navegar e explorar novos conjuntos de valores (DUNNE; RABY, 2013, p. 44).

Assim como o exemplo anterior, todo o cenário que é criado em torno da ideia é o que importa, muito além do que a narrativa, ou seja, o que as pessoas e ou personagens ali pensam. A proposta fundamental é gerar designs que possam fazer com que os espectadores possam imaginar que tipo de sociedade é aquela e seus valores, crenças e ideologias (DUNNE; RABY, 2013, p. 76).

1.2. DESIGN ESPECULATIVO

É nesse momento que adentramos o Design Especulativo mais especificamente. Segundo os autores do Speculative Everything, Anthony Dunne e Fiona Raby (2013, p. 2, tradução do autor): Eles [os projetos de Design Especulativo] usualmente tomam forma de cenários, frequentemente começando com um questionamento de “e se?”, e são destinadas a gerar espaços para debate e discussão; portanto, eles são necessariamente provocativos, intencionalmente simplificados, e ficcionais. Sua natureza ficcional exige de seus espectadores a suspensão de suas descrenças e permite sua imaginação fluir, momentaneamente esquecendo como as coisas são agora e imaginar como as coisas poderiam ser. Nós raramente desenvolvemos cenários que sugerem como as coisas deveriam ser porque isso o torna muito didático e até moralista.

Assim como apresentado pelo futurólogo Stuart Candy na Royal College of Art em 2009, os autores apresentam um diagrama para ilustrar diferentes tipos de futuro. O diagrama é composto por 4 cones que se dividem em: futuro possível, futuro plausível, futuro provável e o quarto cone que intersecta os dois últimos, o futuro preferível.

O cone do futuro provável seria aquele em que descreve aquilo que muito provavelmente irá acontecer, a não ser que ocorra um evento muito extremo como uma queda da economia, um desastre natural ou uma guerra. É nesse cone em que o design comum ou comercial opera.

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CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

8. Diagrama PPPP por Anthony Dunne e Fiona Rabby. Página 5 do livro Speculative Everything (2013)

O segundo cone seria o do futuro plausível e descreve aquilo que é planejado e previsto, o que pode acontecer. A ideia não é fazer adivinhações sobre os eventos futuros, mas sim, se assegurar de que se estará preparado para enfrentar e prosperar em um variado número de possíveis acontecimentos. O exemplo dado por Dunne e Raby seria a companhia Royal Dutch Shell que na década de 70 desenvolveram modelos de futuros alternativos em situações globais variadas para se assegurar de que a empresa prosperaria mesmo em cenários de grandes mudanças.

9. Biophilia: Survival Tissue (2010) de Veronica Ranner. Disponível em: <https://www.veronicaranner. com/biophilia-survival-tissue >. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

O próximo cone seria o do futuro possível. Aqui são feitas as conexões entre o mundo de hoje e o sugerido. Esses cenários são, em primeiro lugar, cientificamente possíveis e, em segundo lugar, devem ter um caminho que conecta onde estamos hoje para onde está essa outra realidade. Isso permite que o espectador possa se relacionar com o cenário a partir de sua própria realidade e usá-lo como forma de reflexão. Temos aqui um espaço para a cultura especulativa da escrita, do cinema, da ficção científica e outros, que muitas vezes se baseiam em noções de experts para tornar esses cenários mais aceitáveis.

Já com cone do futuro preferível temos um questionamento: esse futuro é preferível para quem? Quem decide o que é preferível ou não? Por mais que nós possamos participar da criação desse futuro preferível como cidadãos (votando, por exemplo) e como consumidores (comprando, por exemplo), grande parte desse poder hoje está atrelado ao Estado e às indústrias.

Nós acreditamos que especulando mais, em todos os níveis da sociedade, e explorando cenários alternativos, a realidade se torna mais maleávele, mesmo que o futuro não possa ser previsto, nós podemos condicionar os fatores atuais para aumentar a probabilidade de um futuro mais desejável acontecer. E igualmente, os fatores que possam nos guiar para futuros indesejados, podem ser percebidos anteriormente com antecedência e serem abordados e, pelo menos, reduzido(DUNNE; RABY, 2013, p. 6, tradução do autor).

Para além da área dos cones desses futuros temos a zona da fantasia, onde não é de interesse primordial do Design Especulativo. Segundo os autores, a fantasia existe em seu próprio mundo, sem muitas conexões reais com a realidade em que vivemos. Ela, sem dúvida, tem seu valor para o entretenimento, mas não se aplica nesse caso.

10. All That I Am: From a Speck of Hair to Elvis Presley’s Mouse Model (2012) de Koby Barhad. Disponível em: <https://br.pinterest.com/pin/535928424401742587//>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Um dos métodos, se é assim que podemos chamar, mais CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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comuns para o Design Especulativo seria os cenários dos “what-ifs’’?, ou em português, “e se?”. A criação de uma realidade aqui parte da ideia de “e se essa coisa acontecesse o que estaríamos vivendo agora?”. Um cenário muito comum é “e se Adolf Hitler e a Alemanha Nazista tivessem vencido a Segunda Guerra?”. Esse tipo de realidade é muito usada em livros e no cinema, um exemplo é o livro The Man in the High Castle (1962) de Philip K. Dick, que depois foi adaptado para a série com o mesmo nome.

O designer James King criou em 2006 o Dressing the Meat of Tomorrow. O questionamento “e se?” aqui se dá a partir da pergunta “e se a produção de pecuária desaparecesse, como seria o consumo de carne?”. É pensado um protótipo a partir de um possível escaneamento por ressonância magnética de diversos animais (gado, galinha, porcos) para se escolher as melhores imagens que serviram como molde para a carne desenvolvida em laboratório. Com isso questionamentos sobre a possibilidade de vegetarianos e veganos consumirem essa nova carne já que não existe mais violência e nem morte animal e qual mais tipo de carne seria possível produzir em laboratório começam a surgir.

11. The MacGuffin Library: Goebbels’s Teapot (2008) de Keith R. Jones e Onkar Kular. Disponível em: <http://noamtoran.com/NT2009/projects/the-macguffin-library>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

O espectador da proposta não tem acesso a todos os detalhes, sendo assim, ele precisa emergir nessa irrealidade (ou outra realidade) através dos protótipos que lhe é apresentado e se questionar: como aquilo funciona? É preciso se fazer uma leitura crítica e discutir sobre. O papel desse trabalho, assim como muitos outros projetos especulativos, é usar de uma realidade para se questionar a nossa.

É justamente nessa riqueza de possibilidades que o Design Especulativo deve atuar. Trabalhar com essa combinação de aspectos faz dele rico em fatores para o entendimento presente e futuro. Vassão (2010, p. 64) enquanto discute sobre objetos algorítmicos, diz: “[...] quando [Van Onck] fala do design tirando proveito da ´combinatória´: das possibilidades de explorar múltiplas variantes de um mesmo ´meta-objeto´, enquanto altera-se suas condicionantes ´pré-programadas.”. Depois, Vassão (2010, p. 65) ainda segue: Esses artistas, arquitetos e designers estão manipulando as condicionantes de um espaço de possibilidades, um espaço abstrato que é engendrado, agenciado e condicionado pelas regras, procedimentos, fórmulas ou algoritmos que manipulam.

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12. Dressing the Meat of Tomorrow (2006) de James King. Disponível em: <https://www.flickr.com/photos/ michaelsurtees/2289720958/in/photostream/>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Em seu texto, Vassão não trabalha especificamente com o Design Especulativo, mas com a ideia de Metadesign. No entanto, sua perspectiva quanto a manipulação de condicionantes existentes no presente para gerar o produto de design combina justamente com essa noção de poder trabalhar os aspectos e fatores do presente com o propósito de criar essa nova realidade, esse novo futuro preferível (ou não).

Vassão ainda comenta sobre o agenciamento do complexo e “o que é projetável?”. Nas variadas áreas do design, incluindo a arquitetura, aprendemos que temos o controle total sobre os resultados de nosso projeto e que, como deuses, somos capazes de mandar e desmandar na realidade do mundo, criando e ordenando. Esse mito do “designer-Deus” é posto à prova no mundo complexo justamente pela impossibilidade de se compreender e gerir todos os níveis de possibilidades que o compõem.

13. Viaduto Santa Ifigênia no centro de São Paulo durante o lockdown da pandemia do Covid-19. Disponível em: <https://www.frontliner.com.br/prefeitura-suspende-assistencia-medica-em-sao-paulo/>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

Esse é um tema difícil e controverso, exatamente porque toca aquilo que se considera fundamental do processo de projeto: o controle sobre os resultados das intenções projetuais - “projetar” seria “determinar um futuro”, em geral, por meio do domínio das técnicas e da tecnologia, ou seja, pelo conhecimento atualmente derivado da ciência e da tecno-ciência. No entanto, exponho a seguir alguns conceitos oriundos das ciências exatas e dos estudos da comunicação que afrontam exatamente as crenças de que é possível o controle estrito sobre o projeto - a crença de que é possível um “projeto determinístico” em design (VASSÃO, 2010, p. 68).

Um dos principais motivos que tornam o design algo não determinístico são as emergências. Segundo o próprio Vassão (2010, p. 70): “Por emergência, entende-se aquilo que “emerge”, ou seja, “aparece sem aviso prévio”. Na realidade complexa em que estamos inseridos, esses acontecimentos que surgem sem esperarmos são mais corriqueiros do que nós imaginamos.

Algumas atingem escalas menores e outras, escalas globais, como o exemplo da pandemia do Covid-19. Quantos projetos determinísticos não foram tragicamente atingidos pelo lockdown e todas as outras consequências do vírus?

14. Drive-thru dentro de shopping em Botucatu-SP durante a fase vermelha da pandemia do Covid-19. Disponível em: <https://g1.globo.com/sp/bauru-marilia/noticia/2020/07/03/drive-thru-com-carros-dentro-de-shopping-divide-opinioes-de-clientes-em-botucatu-achei-engracado.ghtml.>. Acesso em: 28 de out. de 2021.

Por conta dessas emergências, é praticamente impossível afirmar quais serão as consequências de um projeto. Sendo assim, é mais do que necessário assumir a incompletude do processo de design frente a complexidade em que estamos inseridos e entender os resultados desses projetos como máquinas abstratas: “sistemas interativos abertos, ecologias de objetos e de informação, computação ubíqua como parte do ambiente urbano, CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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sistemas de objetos produzidos colaborativamente, projeto de procedimentos e regras etc.” (VASSÃO, 2010, p. 74-75).

1.3. METADESIGN

Para além do Design Especulativo, temos o Metadesign de Vassão. O prefixo “meta” pode ser associado no grego com “além”, “após”, “a seguir”, entre outros. Sempre no sentido de um movimento que conecta dois pontos. Ele também tem o significado de movimento de autoconhecimento, uso de um meio para explicar ele mesmo. O Metadesign, então, passa a ser um conjunto de soluções que podem se transpor em casos específicos e se moldar a diferentes situações (VASSÃO, 2010, p. 19).

Softwares como o Adobe Photoshop e o MetaFont podem se enquadrar nesse sentido do Metadesign: são metasoftwares que contém todas as soluções de imagens raster e fontes tipográficas, respectivamente, previstas em seu código. O input dos designers que ajusta a materialização desses produtos finais.

Podemos entender então o Metadesign não como o projeto de produtos concretos, mas como um projeto de conjunto de regras e possibilidades para a criação desses produtos. Abre-se a possibilidade de englobar as mais variadas áreas de conhecimento nesse design, pois ele remete à complexidade. Ele é capaz de se apropriar da complexidade para gerar objetos mais compactos.

Em todos esses casos, o objeto “intermediário” criado é uma coleção de objetos abstratos - podendo ser instruções e regras declaradas em alguma notação formal - como no caso do MetaFont (linguagem de programação) e na legislação urbana (linguagem jurídica) - ou em alguma forma aproximada de declarações ou agenciamentos não necessariamente formais e/ou estritamente lógicos - como no meta-edifício de Gaudi (sistema de plataforma invertida e correntes em catenária), e na ampliação que Rietveldfaz das fundações do desenho técnico para abarcar a descrição de uma meta-cadeira de conformação final variável (VAN ONCK apud VASSÃO, 2010, p. 60).

O Metadesign, em si, não é um método. Ele estabelece relações entre variadas metodologias das áreas em que se aplica o projeto a ser desenvolvido. Um exemplo seria um designer que propõe seus procedimentos a partir de um ponto de vista científico, ou mesmo na coleção de procedimentos, num sentido mais empírico (VASSÃO, 2010, p. 62).

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15. Interface do Adobe Photoshop. Disponível em: <https://abra.com.br/curso-online/photoshop-online/>.

Acesso em: 04 de nov. de 2021

Outra questão é a Arquitetura Livre. Ela tem como sentido a colaboração no processo criativo, tornando o exercício de projeto uma atividade não centralizada na mão de um único “designer’’, mas sim de vários. E “designer” aqui não é no sentido estrito da palavra, mas sim de qualquer pessoa que faça parte do processo criativo. Ela contempla novas referências para o projeto e liberta o processo do design de um pensamento reducionista e centralizador (VASSÃO, 2010, p. 22-23).

14. Villa Verde Housing (2010) de Elemental.

Disponível em: <https://www.archdaily.com/447381/ villa-verde-housing-elemental >. Acesso em: 28 de out. de 2021.

16. Habitação Villa Verde (2010) de ELEMENTAL. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/01156685/habitacao-villa-verde-slash-elemental>. Acesso em: 04 de nov. de 2021

Associando-se à Arquitetura Livre, o Software Livre é um exemplo bem expressivo no sentido dos projetos colaborativos.

Vassão (2010, p. 109) explica que o surgimento desse software emerge através de uma reação à limitação ao código fonte. Segundo o autor, que se baseia em Ceruzzi (1998), o código fonte passou a ser um item de extremo valor comercial a partir da década de 80, visto que, com o aumento do uso dos computadores pessoais, cada vez mais empresas se especializaram em vender softwares prontos e com isso, o acesso do programador ao código ficou prejudicado. Não se interessava mais em compartilhar essas informações e sim, lucrar em cima delas. Então, Richard Stallman propôs o Software Livre.

E, até hoje, há confusão entre dois movimentos similares, mas muito diferentes: o Open Source defende o simples acesso ao código fonte - para a promoção da disseminação dos conceitos por trás das soluções, mas não a disseminação de uso do código, em si -, enquanto o “Software Livre” exige acesso, a alteração e reutilização do código, inclusive para fins lucrativos - promovendo colaboração consequente, ou seja, que possa sustentar empreendimentos baseados no uso de Software Livre (VASSÃO, 2010, p. 109-110).

A ideia de apropriação e recombinação das partes é que torna aquele projeto algo inovador e o torna original. A noção de computador pessoal que temos hoje surge justamente dessa dinâmica do acesso ao código fonte e possibilidades de recombinação. O Altair 8800 (1975) foi o primeiro computador pessoal que vinha com a ideia de “kits de montagem”. Suas peças eram combinadas e recombinadas para gerar novas possibilidades a partir de amadores, ampliando seu uso (VASSÃO, 2010, p. 113). Muito além do hardware, os softwares, ainda antes de serem controlados por grandes marcas como Microsoft e Apple, eram construídos e programados por pessoas para atender suas necessidades.

17. Altair 8800 (1975). Disponível em: <https://pt.fanpop.com/clubs/cherl12345-tamara/images/41450196/ title/altair-8800-computer-terminal-photo>. Acesso em: 04 de nov. de 2021

Esse compartilhamento e formação de comunidades em torno dessas explorações, enriqueceu a ideia de “computador pessoCAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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al” e colaborou com sua crescente importância e popularização em escala global. Essa noção de compartilhamento em massa é bastante perceptível hoje de maneira mais intensa nas redes sociais, principalmente quando o assunto são os memes.

Já bastante introduzido no vocabulário popular, o termo “meme” surge com Richard Dawkins em 2001 quando os caracteriza como: “‘unidade de transmissão cultural’, uma entidade abstrata compacta e reconhecível em um grau suficiente para que seja ‘contaminante’” (DAWKINS apud VASSÃO, 2010, p. 116). A ideia e entendimento do que seria um meme na internet mudou muito desde seu princípio, mas ainda assim, carregam a ideia de ser algo altamente compartilhável. O Metadesign, junto a Arquitetura Livre, pode então se apropriar dos memes justamente para tornar a compactação dos sistemas complexos algo ainda mais aberto ao compartilhamento e popularização.

1.4. DIVULGAÇÃO E FINANCIAMENTO

Essa popularização do Metadesign e do Design Especulativo é fundamental para sua preservação e perpetuação. Como vimos, o design comercial predomina como forma de design mais explorada, mas com um sentido: é ele que gera capital, acima de qualquer outra coisa. A divulgação dessas outras formas de design e suas respectivas vantagens para a sociedade como um todo faz perpetuar o pensamento crítico para com processos projetuais simples em realidades complexas.

18. Disaster Girl (2005) meme bastante popular até os primeiros anos da década de 2010 foi vendido como NFT por R$ 2,5 milhões em 2021. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/cultura/2021-04-30/disaster-girl-vende-a-imagem-por-500000-dolares.html>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

De fato, o financiamento desse tipo de atividade de design é bem complicado, ainda mais quando se depende de uma indústria que não se importa e/ou concorda com seus preceitos. No entanto, é justamente escapando do mercado e indo atrás de curadores, organizações, universidades e outros espaços de ensino que ele se torna possível e viabiliza novas ideias. A perpetuação desse tipo de pensamento acaba por alimentar até a própria indústria e mercado, visto que ele abre novas perspectivas quanto a novas tecnologias, novos materiais, e outras possibilidades (DUNNE; RABY, 2013, p. 31).

Muito além do financiamento desses projetos, a questão da própria disseminação é de relevante importância se visando o engajamento do pensamento crítico do espectador e a sua possível colaboração. Para isso, a exposição desses designs ao público torna algo indissociável a sua criação. Dunne e Raby (2013, p. 140) apresentam os museus como uma forma totalmente 23

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

19. What If... Beijing International Design Trienal (2011) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/content/projects/620/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

viável de exposição. Segundo os autores, por mais que muitos designers vejam o espaço do museu como algo elitista e inacessível, hoje, essa condição não é tão mais verdadeira.

Se, ao invés de ficar olhando para o passado, nós apresentarmos às pessoas artefatos ficcionais de versões alternativas da nossa própria sociedade ou seu possível futuro, as pessoas começariam a relacionar com eles da mesma maneira - um tipo de material cultural especulativo, arqueologia ficcional, ou antropologia imaginária? (DUNNE; RABY, 2013, p. 140, tradução do autor).

20. Incênidio no Museu Nacional no Rio de Janeiro em 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/ brasil/2018/09/03/album/1535940297_655202.html>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Eles consideram os novos formatos de museus e galerias de artes, com diferentes propósitos e audiências, servindo como um espaço que oferece diversas possibilidades para os designers e para o próprio público. De fato, hoje, mesmo aqui no Brasil, temos variados tipos de museus, porém, se formos analisar com mais atenção quem é o público desses lugares temos uma conclusão contrária aos autores. Segundo notícia da BBC Brasil de setembro de 2018, no ano anterior (2017) mais brasileiros visitaram o Museu do Louvre, em Paris, do que o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, mesmo esse último tendo um aumento nas visitas.

Outra notícia publicada no Agência Brasil em junho de 2019, segundo dados de uma pesquisa realizada pelo instituto Oi Futuro, 82% dos frequentadores dos museus são da classe A e B, recebendo a partir de R$9.980/mês. Por mais que até pode se notar o esforço dos museus em se modernizar, mesmo com a escassez de investimentos, e se tornarem mais atrativos a grande parcela da população, ainda não vivemos uma realidade onde os museus e galerias do país são amplamente visitados por setores mais pobres da sociedade.

Isso sem contar na distribuição desses museus no país.

Enquanto a cidade de São Paulo concentra cerca de 111 deles e sendo a 5ª capital com mais museus do mundo, segundo dados do site São Paulo São em julho de 2019, muitas outras cidades, principalmente as interioranas e menores, carecem da mesma variedade desses espaços.

21. Concentração de museus nos estados brasileiros. Disponível em: <http://g1.globo.com/educacao/ noticia/2015/07/regioes-sul-e-sudeste-concentram-quase-70-dos-museus-do-pais.html>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Ao mesmo tempo, o design de mercado atinge esses centros urbanos menores independentemente de seu tamanho, salvo suas proporções. A estratégia aqui vai além de se apoiar no espaço de museus e galerias, mas usar o próprio espaço público como plataforma de divulgação. Praças, CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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centros comerciais e ruas mais movimentadas são o epicentro da vida urbana mesmo em cidades pequenas e podem servir como lugar de divulgação para esse tipo de design.

Para além do espaço físico, a internet possibilita um grande meio de divulgação e discussão desses trabalhos de uma maneira talvez um pouco menos elitista. Apesar de ainda muitas pessoas terem um acesso à internet limitado por pacotes de operadoras ou banda-largas com velocidades baixas, é inegável o aumento do número de pessoas com acesso a meios de se acessar a internet. Principalmente quando o assunto é smartphones, cada vez mais pessoas, das mais diversas classes sociais e idades, adquirem um, podendo fazer parte desse debate e compartilhamento de informações.

Quanto mais pessoas das mais variadas classes sociais o Design Especulativo ou o Metadesign atingir, maior a discussão e colaboração popular em torno do tema explorado. O que é importante é a suspensão da descrença por parte dos espectadores. É no “fazer acreditar” que a especulação convida as pessoas a imaginar, especular e sonhar junto. Com isso as experimentações na estética se livram da necessidade de simular o que já conhecemos e pode extrapolar a realidade (DUNNE; RABY, 2013, p. 94).

22. Croqui do uso do espaço público abaixo do MASP de Lina Bo Bardi. Disponível em: <https://medium. com/@linologas/senta-que-l%C3%A1-vem-hist%C3%B3ria-dd08ca81971f>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

1.5. EXEMPLOS

Esses objetos não precisam ser realistas, apenas plausíveis. Mesmo que não sejam acreditáveis, o papel da estética do design da irrealidade deve indicar que aquilo realmente não é real. Enquanto no design comum temos a necessidade de traduzir a estética do objeto em algo natural e transparente, aqui o design precisa ser artificial e até anômalo (DUNNE; RABY, 2013, p. 94-96).

O exemplo do coletivo de design Troika, Plant Fiction: Selfeater (Agave autovora) (2010) mostra essa certa dualidade entre parecer real, mas sem deixar de indicar que não é. A planta desenvolvida aqui desenvolvida por meio de renderização, tem uma aparência ultra-realista, mas o cenário branco quadriculado e sua cor totalmente negra (incomum para a maior parte das plantas) a transporta para uma dimensão quase que paralela ao desse realismo e indica esse aspecto de especulação.

Nós pensamos que é melhor envolver as pessoas por meio de uma hábil ambiguidade, para surpreender, e para ter uma

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CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

23. Plant Fiction: Selfeater (Agave autovora) (2010) de Troika. Disponível em: <https://www.designindaba.com/articles/creative-work/power-plants>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

abordagem mais poética e sutil para relacionar o real com o irreal (DUNNE; RABY, 2013, p. 102, tradução do autor).

Porém a exploração da estética do Design Especulativo não se resume somente a renders ultrarrealistas que mesclam aspectos do que é real com o que não é. Essa busca da ultra realidade na expressão das imagens no design como um todo, desde o uso de efeitos especiais de maneira excessiva em filmes, até o uso de renders para a representação de projetos de arquitetura e design. O designer acaba se tornando refém de uma estética comum e o software toma vezes da expressão da imagem (DUNNE; RABY, 2013, p. 102).

Esse excesso de realismo na representação limita o papel principal deste design que seria o convite ao espectador para especular e imergir no design. Com imagens prontas, sem dar margem a reflexão e possibilidade de fazer parte daquela criação, o objeto se torna puramente um objeto cenográfico, não é mais o foco da proposta.

24. Codex Seraphinianus (1981) de Luigi Serafini. Disponível em: <https://www.designindaba.com/articles/creative-work/power-plants>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Uma técnica cada vez menos usada, porém muito potente nesse sentido, são as ilustrações. Os níveis de abstração colocados ali têm o poder de inspirar o espectador a ir além do que somente a própria ilustração (DUNNE; RABY, 2013, p. 106107). Um bom exemplo seria o Codex Seraphinianus (1981) de Luigi Serafini. O projeto é um livro que conta com inúmeras ilustrações de seres com características muito diferentes das que nós estamos acostumados com os que vivem aqui na Terra, no entanto, ele ainda conversa com alguns aspetos familiares. É possível reconhecer características equinas em um ser que possui a parte traseira do corpo semelhante a uma lagarta com rodas.

Associado ções, o livro é ensível o que o ga quem o “lê”

25. Fictions (2007) de Filip Dujardin. Disponível em: <https://www.uncubemagazine.com/blog/12061079>.

Acesso em: 04 de nov. de 2021.

ao estranhamento causado pelas ilustraescrito em uma língua totalmente incompretorna ainda mais curioso. Tudo isso intrie o faz imaginar que realidade é aquela.

Para além das ilustrações, outra técnica mais comumente usada é a da fotomontagem. Essa técnica torna possível expandir os limites para além do que é considerado real.

Trabalhos como o de Filip Dujardin e suas fotomontagens em Fictions (2007) desafiam nossos olhares a decidir se o que vemos é real ou não, se utilizando de imagens de arquitetura para extrapolar suas possibilidades físicas e lógiCAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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cas em montagens que, mesmo estranhas num primeiro momento, não deixam de ser possíveis (DUNNE; RABY, 2013, p. 114).

Outra forma, talvez a mais comum, de trabalhar a estética do especulativo, é através da exploração de modelos físicos. Os próprios autores Dunne e Raby possuem uma infinidade de exemplos. Um dos apresentados por eles é o Technological Dreams Series: No. 1, Robots (2007) onde os robôs, num futuro, irão fazer tudo por nós. Nossa vida se torna cada vez mais próxima deles e eles se tornam co-habitantes de um mesmo espaço. Como seria nossa interação com esses robôs? Como poderia se dar o nosso relacionamento com essas máquinas?

Eles desenvolvem quatro robôs, seu funcionamento e seu comportamento. O primeiro, por exemplo, seria mais independente e reservado, não se sabe muito bem o que faz, mas não importa desde que faça isso bem. Ele sofre interferências por campos de ondas eletromagnéticas e isso causa seu mau funcionamento, por isso se move sempre se escondendo em um local onde elas não o atinjam. Em um primeiro momento, toda a ideia pode parecer absurda, mas se analisarmos os caminhos que os avanços tecnológicos têm tomado nos últimos anos, desde aspiradores robôs controlados por aplicativos, até o desenvolvimento de inteligências artificiais capazes das mais variadas finalidades, isso não parece tão improvável assim.

26. Technological Dreams Series: No. 1, Robots (2007) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/content/projects/10/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Outro projeto do casal que explora o uso de modelos físicos é o Do You Want To Replace The Existing Normal? (20072008). Nessa especulação os designers desenvolvem produtos para os desejos e necessidades mais complexas e sutis do que as que temos hoje em dia. O primeiro seria o Statistical Clock que usa o site da BBC para criar um conglomerado de dados sobre novas notícias de fatalidades mediadas através da tecnologia.

Como um rádio relógio, ele possui 4 canais para cada modalidade: carro, trem, avião, etc. A cada minuto o relógio checa novidades e as anuncia através de sua caixa de som.

O S.O.C.D. (Sexual Obsessive Compulsive Disorder) por exemplo é o produto ideal para as pessoas que gostam de assistir pornografia, mas se sentem culpadas ou que aquilo é errado. Uma caixa preta serve como leitor do DVD do seu filme de escolha e essa mesma caixa possui uma espécie de corda de borracha que você deve segurar enquanto assiste. Essa espécie de dildo gigante sente e analisa o seu nível de excitação e, além de pixelizar a imagem, distorce o som. Quanto mais ex27

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

27. Do You Want to Replace The Existing Normal?: Statistocal Clock e S.O.C.D. (Sexual Obsessive Compulsive Disorder) (2007-2008) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/ content/projects/75/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

citado, mais distorcido a mídia. Caso você realmente queira assistir o vídeo é preciso controlar seu nível de excitação.

Mesmo os personagens também podem ser usados como plataforma para se explorar a estética do Design Especulativo. Ao se apoiar nessa ideia, o designer faz um convite voyeur ao espectador: ele agora passa a tentar ler e interpretar as ideias, valores e prioridades a partir das expressões, vestuários, posturas e gestos desses personagens.

28. The Insivible Empire: The Herd (2008) de Juha Arvid Helminen. Disponível em: <http://www.juhaarvidhelminen.com/The-Invisible-Empire>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Exemplos como o de Juha Arvid Helminen em Shadow People/ Invisible Empire (2006) também elabora personagens que transportam o espectador para outras visões de mundo, valores e motivações (RABY; DUNE, 2013, p. 125). A ideia do artista partiu da percepção do lado obscuro da polícia finlandesa durante os protestos da Smash ASEM, movimento anarquista contrário ao Diálogo Ásia-Europa (ASEM), em setembro de 2006. A forma com que os policiais se escondiam por trás de seus uniformes e praticavam má conduta, fez Helminem pensar sobre como essas vestimentas podem acabar funcionando na sociedade.

Segundo o artista: “Uniformes criam unidade e por conta deles nós podemos separar um soldado de um civil. Mas às vezes, quando nos escondemos neles, fazemos coisas bens ruins” (tradução do autor). A vestimenta é vista mais do que uma forma de expressão, mas como uma forma de repressão, em que escondemos nossas verdadeiras personalidades e criamos muros entre quem somos e as pessoas que conhecemos.

Em 2010, Rem Koolhaas & AMO (seu think tank) criaram um projeto para o European Climate Foundation chamado Roadmap 2050 Eneropa. Aqui são exploradas as formas para geração de energia sustentáveis distribuídas por entre os países europeus. Um mapa ficcional indica novas fronteiras para o continente e novos nomes para esses lugares. A região do Mediterrânio recebe o nome de Solaria; as ilhas britânicas, de Isles of Wind; e assim sucessivamente. Koolhaas e sua equipe transmutam as nações europeias em espaços de compartilhamento de energia e abre espaço para a discussão sobre a temática (DUNNE; RABY, 2013, p. 172).

1.6. THE UNITED MICRO-KINGDOMS

29. Map of Eneropa (2010) de OMA. Disponível em: <https://www.architectural-review.com/essays/rotterdam-the-netherlands-rem-koolhaas-oma-tackles-energy-interdependency-in-europe>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Inspirados pelo experimento do AMO (e outros tantos), Dunne e Raby produziram The United Micro-Kingdoms (2013). De CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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início, eles se apropriaram do compasso político, onde no eixo x temos a escala econômica e no eixo y temos a escala social.

O diagrama forma então 4 quadrantes, o de direita e esquerda autoritárias (2 quadrantes superiores) e o de direita e esquerda libertários (2 quadrantes inferiores). Se baseando nesses 4 quadrantes, eles dividiram o território da Inglaterra em 4 regiões que seriam administradas por cada ideologia política desta e, consequentemente, resultaria em modos de vida diferentes.

A partir daí, eles decidiram que iriam explorar a dimensão do tipo de transporte que cada um desses micro-reinos teriam. Segundo Dunne e Raby (2013, p. 173-174, tradução do autor): Nós escolhemos o transporte. Transporte envolve não apenas tecnologia e produtos mas também infraestrutura; nós poderiamos pensar grande mas apresentar nosso pensamento de maneira mais concreta por meio de veículos. Cada veículo encorporaria diferentes ideologias, valores, propriedades e sistemas de crenças - essencialmente visões de mundo alternativas.

30. Compasso político. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Political_Compass>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Se baseando nisso, os autores poderiam explorar as formas de liberdade e individualidade de cada micro reino. Foi combinado então os seguintes aspectos: comunismo com energia nuclear, social democracia com biotecnologia, neoliberalismo com tecnologia digital e anarquia com auto-experimentação (DUNNE; RABY, 2013, p. 174). Com isso, os autores elaboraram a narrativa para introduzir seu projeto: (...) na tentativa de se reinventar para o século XXI, a Inglaterra se dividiu em 4 super-condados habitados pelos digitarians, bioliberals, anarcho-evolucionists, and communo-nuclearists. Cada condado se torna uma zona experimental livre para desenvolver sua própria forma de governança, economia e estilo de vida. A Inglaterra se tornou um laboratório não regulado para modelos sociais, ideológicos e econômicos concorrentes. A busca era para descobrir através de experimentações a melhor estrutura social, política e econômica para garantir a sobrevivência no nova ordem pós crash econômico - um tipo de experimento pós apocalíptico projetado para evitar a coisa por si mesma, o que cada vez mais, se torna inevitável (DUNNE; RABY, 2013, p. 174, tradução do autor).

A partir daí, Dunne e Raby passam a explicar como funcionaria cada micro reino deste e a desenvolver a ideia de transporte para cada um. Indo no sentido horário, começando 29

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

31. Posicionamento políticos dos micro-reinos. Disponível em: <http://unitedmicrokingdoms.org/introduction/>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

pelo primeiro quadrante, temos os Communo-nuclearists. Essa população tem seu crescimento limitado e vive em uma espécie de trem que simula um relevo de uma paisagem, de 3 km de extensão, movido a energia nuclear. Essa espécie de “reino-trem” viaja de norte a sul do país entre uma área livre de militarização, onde só existe a paisagem natural (DUNNE; RABY, 2013, p. 185). A existência desse trem na paisagem quase que se mescla com o entorno.

Por se alinharem a uma ideologia comunista, o Estado provê tudo para seus habitantes e tudo é extremamente regulado e planejado. Eles compartilham o luxo e são livres das pressões da vida cotidiana. Eles vivem nesses vagões que comportam tudo o que precisam, de cozinhas a fábricas, de academias a jardins hidropônicos, de piscinas a fazenda de peixes. Por mais que as inspirações para sua existência venham de colônias espaciais do anos 50, 60 e 70, sua existência lembra bastante a Dubai do começo do século XXI. Mesmo que de início se assemelha como um playground sobre trilhos, um paraíso do prazer, é mais próximo a uma tentativa de isolamento de uma população que quer fugir dos efeitos danosos do Antropoceno (DUNNE; RABY, 2013, p. 186).

32. The United Micro Kingdoms: Communo-nuclearists (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Em toda essa área verde no entorno do trajeto do reino é proibida a existência de humanos e qualquer pessoa que estiver nas proximidades é rapidamente morta por um canhão. Mesmo que se precise de muita disciplina para o seu funcionamento, toda diversidade é aceita tentando manter o bem-estar geral estável, mesmo em um espaço confinado (DUNNE; RABY, 2013, p. 186).

Na sequência, temos os Digitarians. A vida desse reino é dependente das tecnologias digitais, onde a exploração dos dados, as métricas, a vigilância permanente e a transparência são o meio de funcionamento. Eles não tem muita certeza se são governados por tecnocratas, ou por algoritmos, mas, desde que as coisas aconteçam de maneira fluída e as pessoas sintam que têm liberdade de escolha, pouco importa. Aqui a maneira de transporte é o digicar, uma espécie de carro elétrico que se dirige sozinho (DUNNE; RABY, 2013, p. 175).

33. The United Micro Kingdoms: Digicars (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http:// dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Muito além de ser um meio de transporte, o digicar é uma interface de navegação para tarifas e mercados. Todo tempo e cada milímetro da superfície das estradas são monetizados e otimizados. Eles estão sempre calculando a melhor e mais econômica rota a se fazer e seu painel exibe informações sobre tempo versus dinheiro, ao invés da veCAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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locidade, inclusive sugerindo possibilidades de rotas mais baratas e rápidas (DUNNE; RABY, 2013, p. 176). É como uma extrapolação de um Uber associado ao mercado financeiro.

Por mais que as vias ainda pertençam ao Estado, elas podem ser compradas por empresas que vendem o acesso ao seu trecho para os cidadãos-consumidores. Os digicars ainda apresentam tarifas, os P5: preço, privacidade, prioridade, proxêmica e passo.

Cada uma sendo uma opção ao viajante escolher o que quer pagar e o que é mais vantajoso. Como são controlados por um computador central, esses veículos raramente se colidem e sua forma é totalmente utilitária e funcional (DUNNE; RABY, 2013, p. 176).

A Digiland é um vasto campo de concreto, semelhante a um imenso estacionamento, exclusivo para as máquinas. As vias permeiam as casas, lojas e fábricas (DUNNE; RABY, 2013, p.

179). O mercado e o dinheiro de cada consumidor-cidadão é o que guia os fluxos e como o micro reino se articula.

Depois, temos os Anarcho-evolutionists. Esse outro modelo abandonou o desenvolvimento de tecnologias. Ao invés de modificar o planeta, eles preferem modificar os próprios humanos para superar seus limites. Sendo assim, eles se apropriam de biohacking e auto experimentações e criam trans e pós-humanos. Tudo é permitido, desde que não prejudique a vida alheia (DUNNE; RABY, 2013, p. 182).

34. The United Micro Kingdoms: Digiland (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http:// dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Eles não acreditam no poder do Estado e se auto organizam, se baseando na confiança e acordos entre os cidadãos.

Eles não utilizam carros e ou se locomovem através de seus próprios corpos (provavelmente modificados) ou por animais modificados geneticamente. A hierarquia é inexistente e a cooperação é o ideal para o bom funcionamento dessa sociedade.

Por isso, um meio de transporte que eles usam (em grupo) é a VLB, sigla para Very Large Bike, ou em português “Bicicleta Bem Grande” (DUNNE; RABY, 2013, p. 182 - 183).

Nesse meio de transporte, as pessoas usam da cooperação e organização em equipe para os transportar de um ponto a outro. Suas alterações corporais são de acordo com suas necessidades, por exemplo, ciclistas tem coxas muito bem desenvolvidas. Assim como os humanos, os animais também são alterados, como o hox: um híbrido entre o cavalo (horse) e o ox (uma espécie de boi), que serve para transportar grandes quantidades de carga e puxar carruagens (DUNNE; RABY, 2013, p. 184).

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CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

35. The United Micro Kingdoms: Cyclist, Ballonist, Pitsky and Hox (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby.

Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Por fim, temos os Bioliberals. Eles se baseiam na liberdade e escolha de seus indivíduos e se apropriam das biotecnologias para criar uma simbiose com o mundo natural. A natureza é potencializada para avançar junto às necessidades humanas e o governo investe massivamente neste aspecto. Cada pessoa é capaz de produzir sua própria fonte de energia e as fábricas foram trocadas por jardins, cozinhas e fazendas onde tudo é produzido (DUNNE; RABY, 2013, p. 180-181).

36. The United Micro Kingdoms: Vert Large Bike (VLB) (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http://dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

Abandonando a queima de combustíveis fósseis, o meio de transporte aqui são os biocars, carros que combinam digestores anaeróbicos que produzem gases com células combustíveis que se alimentam desses gases para gerar energia para mover os veículos. Sua eficiência é menor se comparada aos carros alimentados por combustíveis fósseis, resultando em veículos lentos, mal cheirosos e volumosos que são como seres vivos, com pele, músculos e ossos, não de maneira literal, mas de maneira abstrata (DUNNE; RABY, 2013, p. 182).

[Design pode ser] a plataforma para entreter parceiros improváveis. A cola para coisas que podem não ser naturalmente coladas. O lubrificante que permite o movimento pelo qual nós podemos fazer conexões e comparações. A linguagem para conversas complicadas e traduções (ARNOLD apud DUNNE; RABY, 2013, p. 188, tradução do autor).

Enfim, é perceptível que cada vez mais estamos nos enquadrando em um pensamento muito restrito, em que se torna mais complicado imaginar possíveis alternativas com o passar do tempo. O designer, em suas diversas frentes de atuação, deveria se tornar mais sensível às oportunidades de alteridade, mutabilidade e colaboração. O mundo complexo pede pelo desenvolvimento de novas visões de mundo que sejam mais diversas e incluam diferentes crenças, ideais, esperanças e até medos que temos hoje.

O projeto do que como uma oportunidade de sos sistemas de

37. The United Micro Kingdoms: Biocar (2013) de Anthony Dunne e Fiona Raby. Disponível em: <http:// dunneandraby.co.uk/content/projects/666/0>. Acesso em: 04 de nov. de 2021.

deve se encerrar como uma pergunta, muito mais resposta, reconhecendo a complexidade como uma se experimentar e ir além. Se não mudamos noscrenças e ideias, a realidade também não muda.

O valor final do projeto não é o que ele alcança, mas o que é capaz de fazer as pessoas sentirem, especialmente no sentido de encorajá-las a se questionar de maneira intensa.

Como o dia a dia poderia ser diferente? Mesmo que essas propostas sejam concebidas a partir de pesquisas e análises do CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

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presente, não podemos perder o teor provocativo e imaginativo que elas devem ter.

33

CAPÍTULO 1: SINAIS DE FUMAÇA

CAPÍTULO 2

CÉU NUBLADO

2.1. AS UTOPIAS Há um senso comum de que Arquitetura é obra construída. O projeto seria apenas um meio para concretizar uma ideia em coisa edificada intervindo num determinado contexto. O percurso entre o pensamento e a obra concluída é marcado por um longo processo de simulações, revisões e adaptações para se ajustar ao programa, às normas legais e às limitações tecnológicas (OBA, 2015).

Como comentado no capítulo anterior, temos uma visão de que o projeto de arquitetura se resume apenas em uma etapa do processo de construção de um edifício. O produto final, o que é comercializável, palpável, ou no caso da arquitetura, habitável, é o que deve ser valorizado. No entanto, na história da arquitetura e urbanismo podemos ver diversos exemplos que mostram que o processo de projeto, mesmo que não executado, perpetuam ideias e se tornam importantes referências.

O caráter crítico de um projeto pode gerar diversas discussões e seu valor vai muito além do fato dele ser realizável ou realizado. Segundo Oba (2015), muitos desses projetos que teriam maior força se permanecessem no plano das ideias do que como obras descontinuadas ou mal construídas. Sendo assim, muitos projetos arquitetônicos foram considerados impossíveis de serem executados ou mesmo propunham alguma ideia muito distante da realidade em que se encontravam. Podemos considerar esses projetos como utópicos.

38. Cenotáfio de Newton (1784) de Étienne-Louis Boullée. Disponível em: <https://br.pinterest.com/ pin/477803841690575624/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A palavra “utopia” deriva dos termos gregos “ou”, que significa “não”, e “topia”, que significa “lugar”. Ela seria então o “não lugar”, “local que não existe”. A expressão surge pela primeira vez em 1516 no livro que recebe esse nome (Utopia) de Thomas More. No livro, o autor descreve a ilha de Utopia e a sociedade que habita esse local como uma forma de criticar a realidade da Inglaterra naquele momento, idealizando esse local como solução desses problemas que se apresentavam.

Daí, temos a noção atual de utopia que corresponde a um lugar ideal, uma realidade melhorada (GONÇALVES, 2014, p. 13-14).

A partir desse livro de More podemos extrair três principais elementos para caracterizar uma utopia: uma sociedade real sendo criticada, uma sociedade modelo e um espaço-modelo onde essa população se estabelece e vive (GONÇALVES, 2014, p.

14). Apesar de existirem outras obras que seguiram essa ideia de criar utopias após More, é depois da Revolução Industrial, 35

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

39. Ilha de Utopia (1516) de Thomas More. Disponível em: <https://docplayer.com.br/112336914-Ilha-de-utopia-thomas-morus.html>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

principalmente a partir do século XIX, que as utopias ganharam ainda maior expressão.

As cidades industriais estavam cada vez mais abarrotadas de pessoas, gerando um ambiente perigoso, insalubre e problemático. Frente a esse novo cenário urbano, inúmeras realidades, onde todos esses problemas eram contornados e a sociedade poderia viver em um equilíbrio, eram criadas como resposta a essas adversidades. Livros como Viagem para Icaria (1848) de Étienne Cabet e Notícias de Lugar Nenhum (1891) de William Morris são publicados criticando as deficiências sociais e econômicas daquele período, enquanto propunha uma sociedade utópica onde elas eram resolvidas (GONÇALVES, 2014, p. 16-17).

No campo das artes, o processo da industrialização também impactou no surgimento das vanguardas no início do século XX. Segundo Gonçalves (2014, p. 17): 40. Over London (1872) de Gustave Dore. Disponível em: <https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-artisticas-sofisticadas/Gustave-Dore/61527/Over-London---By-Rail,-de-&39;London,-a-Pilgrimage&39;,-escrito-por-William-Blanchard-Jerrold-(1826-94),-gravado-por-Stephane-Pannemaker-(1847-1930),-pub.1872.html>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Nesta transição é patente a relevância da ideia de utopia como força motriz para a criação de uma “nova arte”, uma arte que busca no abstrato, no impossível, no irrealizável e no inaceitável alguns de seus principais valores e motivos. É neste momento, enfim, que ocorre a associação irrevogável entre os conceitos de vanguarda e utopia, uma convergência que corresponde à associação fecunda entre aquilo que ainda não existe, e a busca frenética por aquilo que poderá existir.

O termo vanguarda tem origem militar. Esse militarismo está muito atrelado não só ao período pré Guerras Mundiais, como refletido no surgimento e conotação das vanguardas artísticas. O autor italiano Franco Berardi (2019, p. 67) explica que essa palavra também tem significado de abertura e de prefiguração para um outro futuro: “Por isso a noção de vanguarda se liga historicamente à noção de utopia, que tem uma função importante na primeira parte do século que acreditou no futuro. Utopia é um lugar que não existe”.

41. Off Billingsgate (1872) de Gustave Dore. Disponível em: <https://www.meisterdrucke.pt/impressoes-artisticas-sofisticadas/Gustave-Dore/52937/Fora-de-Billingsgate,-vista-de-Harrow-Alley,-de-%22Londres,-uma-peregrina%C3%A7%C3%A3o%22,-escrito-por-William-Blanchard-Jerrold-(1826-84),-gravado-por-Heliodore-Joseph-Pisan-(1822-90),-pub.-1872.html>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Na arquitetura e no urbanismo do século XX, assim como na arte, a utopia também foi usada como elemento estruturador do pensamento modernista. O “não lugar” dá espaço ao projeto alcançável e executável a partir da adesão dos pensamentos do Movimento Moderno (GONÇALVES, 2014, p. 18). No futuro, os arquitetos e urbanistas eram capazes de imaginar o novo e essa possibilidade trazia a noção de utopia muito próximo ao que é o projeto.

O que seria o projeto se não imaginar uma realidade no futuro?

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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2.2. O MOVIMENTO MODERNO E O FUTURO

Na edição do dia 20 de fevereiro de 1909 do jornal parisiense Le Figaro, Filippo Tommaso Marinetti publicou o Manifesto Futurista. No texto, o autor indicava o quanto acreditava no futuro como plataforma para promessas da modernidade com o advento das máquinas.

O Manifesto Futurista é um hino à modernidade explosiva cujos efeitos - ainda muito pouco perceptíveis na realidade italiana - estendem-se ostensivamente pelo mundo urbanizado e industrializado euro-americano. Os objetos que ele enfatiza e que transforma em valores estéticos e políticos são a máquina, a velocidade, a violência e a guerra (BERARDI, 2019, p. 14).

Nesse contexto, a arquitetura, assim como as máquinas, deveria ser reduzida apenas ao seu essencial, sem ornamentos ou peças que não fossem essenciais para seu funcionamento. É nesse momento que surge a “máquina de morar” e a “cidade máquina”, todos muito focados no seu sentido lógico e racional (GONÇALVES, 2014, p. 35).

A vontade em prosperar é o motor da sua ideologia nesse período. Associado ao avanço tecnológico, a ideologia moderna constrói novas ideias e possibilidades para o seu futuro, principalmente tentando resolver a cidade industrial do século XIX. A tecnologia e a indústria são partes essenciais para esse desenvolvimento da sociedade e são o caminho a se seguir para atingir o progresso.

42. Edição do jornal Le Figaro com o Manifesto Futurista (1909). Disponível em: <https://www.culturagenial.com/futurismo-principais-obras/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

O termo “tecnologia” advém do grego techne, que por sua vez denominava não só as habilidades de manufatura do artesão mas também se referia às belas artes e às artes humanas da mente. A techne era, portanto, algo poético. Com esse entendimento mais filosófico de sua essência, concluímos que a Tecnologia é um modo de trazer à tona a verdade, de revelar o que ainda está encoberto (GONÇALVES, 2014, p. 32).

Nesse contexto, ainda em 1904, alguns anos antes ainda do Manifesto, Tony Garnier publica a Cidade Industrial, um modelo urbano utópico com destaque na indústria. Ele contemplava a rígida setorização urbana e os espaços vazios e verdes que articulavam esses setores. “Esse rigor funcionalista estava a serviço da nova austeridade estética, no qual lógica e beleza coincidem [...]” (GONÇALVES, 2014, p. 33). Se previa o uso de materiais como concreto e as composições formais remetiam à indústria e à racionalização, sem ornamentos.

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CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

43. Cidade Industrial (1904) de Tony Garnier. Disponível em: <https://www.culturagenial.com/futurismo-principais-obras/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A proposta era bem avançada para a época e serviu como referência para muitos arquitetos do período moderno, principalmente na concepção de cidades setorizadas pelo seu uso e na concepção da Carta de Atenas, décadas depois (GONÇALVES, 2014, p. 34).

Outra proposta que também ganhou atenção foi a Città Nuova (1914) de Antonio Sant’Elia. Sua estética, com esse alinhamento às máquinas e à indústria, serviu como base estética para muitos arquitetos anos depois, principalmente durante a década de 60. A proposta celebra a vida urbana industrial e todos seus odores, ruídos e dinâmicas. (GONÇALVES, 2014, p.

38).

44. Cittá Nuova (1914) de Antonio Sant’Elia. Disponível em: <https://vortexcultural.com.br/artigos/ ideias-no-vortex-antonio-santelia-o-arquiteto-que-ha-100-anos-construiu-o-sci-fi/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

O valor do movimento e da velocidade, no entanto, era celebrado por muitos que compunham esses movimentos modernos.

Com o desenvolvimento e melhoria dos meios de transportes, as distâncias entre as pessoas se tornavam cada vez menores. A valorização do automóvel no Movimento Moderno vem dessa exaltação do avanço tecnológico como provedor do progresso.

Tendo criado carros enormes, bufantes, velozes e muito mais potentes que os monstros míticos da Antiguidade, os homens parecem tomados por um terror sagrado e põem em cena rituais de submissão à máquina ou se exercitam em exaltações desmedidas da nova beleza, a beleza da técnica, a beleza da velocidade e do automóvel! (BERARDI, 2019, p. 24).

A mobilidade e os meios de transporte nas cidades industriais assumem um papel importante para as novas concepções urbanas e as novas utopias incluem o uso intenso de estruturas viárias em suas ideias. Harvey Corbett e Hugh Ferriss desenvolvem várias ilustrações de como essa questão poderia ser resolvida nos centros urbanos. As cidades seriam divididas em níveis, sendo o subsolo dedicado ao tráfego de carros e trens e o térreo aos pedestres que teriam acesso aos estabelecimentos nas bases dos arranha-céus que contariam com as habitações em seus outros pavimentos (GONÇALVES, 2014, p. 42-43).

45. City of Future (1913) de Harvey Corbett. Disponível em: <https://artcontrarian.blogspot.com/2014/04/ harvey-wiley-corbett-style-cities-of.html>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A imagem de veículos voadores sob a cidade moderna era elemento muito recorrente nas utopias desse período e se perpetuou por mais algumas décadas. O Empire State Building, em Nova York, que foi inaugurado no início da década de 30, contou com um aumento de 200 pés (algo em torno de 60 metros) para que o ponto de parada para zepelins fosse adicionado.

Essa ideia foi tão importante que a famosa foto divulgada em CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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1930 de um atracado no edifício não passava de uma manipulação de imagem e, apesar do plano, apenas um estacionou em toda a história do edifício, em setembro de 1931. A força da imagem é seu símbolo de modernidade, mesmo que nenhum Zepelin houvesse pousado ali, a ilustação de tal indica a visão de futuro, sendo essa justamente a noção de projeto.

O pensamento racionalizado influenciou no sentido de que as propostas utópicas desse período eram concebidas como modelos, ou seja, são inerentemente pensadas para a aplicação em repetição e em qualquer lugar.

Há, portanto, uma transposição do não-lugar para o “qualquer-lugar”, quando a utopia pretende promover um estado de harmonia universal para toda a civilização humana, sem disparidades acentuadas (GONÇALVES, 2014, p. 53).

As ideias modernas carregam um caráter universalizante e neutralizador em busca de uma padronização da humanidade. A Bauhaus surge em 1919 em Weimar, na Alemanha, e desenvolve o pensamento do projeto voltado à indústria a rigor. Seu foco é para com a funcionalidade, clareza e síntese formal.

A arquitetura e o urbanismo deviam ser universais e democratizantes. Para isso, era preciso ter em mente que todos passavam a responder a um modelo único médio de humano. O maior símbolo dessa padronização é o Modulor de Le Corbusier, a partir do qual seria possível, de um humano padrão, definir as regras para a proporcionalidade e funcionalidade para os novos projetos modernos (GONÇALVES, 2014, p. 56-57).

46. Fotomontagem de zepelin atracado no topo do Empire State Building. Disponível em: <https://www. nytimes.com/2010/09/26/realestate/26scapes.html>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Essa padronização também veio a influenciar na concepção das cidades modernas com as quatro funções essenciais para a vida humana: habitação, trabalho, circulação e lazer. Essa setorização funcional seria aplicada em qualquer e todo local, ignorando toda e qualquer singularidade física ou cultural. A Ville Radieuse (1924) de Le Corbusier seria um exemplo disso.

O plano para a Ville se caracteriza pelo traçado geométrico das vias, que priorizavam o transporte pelos automóveis e a separação dos setores de acordo com a função. A habitação aqui tem um caráter primordial e é colocada como centralidade desse modelo (GONÇALVES, 2014, p. 57-58).

Como era chamado pelo arquiteto, os blocos de apartamentos são as Unités e elas condicionavam o próprio comportamento do coletivo. Aqui a política e as leis eram substituídas pela 39

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

47. Ville Radieuse (1924) de Le Corbusier. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/787030/ classicos-da-arquitetura-ville-radieuse-le-corbusier>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

própria cidade, que seria a geradora da harmonia social. Assim como para Thomas More e a ilha de Utopia, a cidade, para Le Corbusier o próprio design urbano seria o agente condicionador do modo de vida dos seus cidadãos. Esse controle e universalização do Movimento Moderno ficou ainda mais evidente com a consolidação do Internacional Style que se tornou símbolo desse processo de padronização da arquitetura, tornando a produção passível de ser implantada em qualquer lugar, porém com as mesmas características e conceituação. Os grandes centros passavam a ser cada vez mais visualmente semelhantes graças aos edifícios do estilo internacional (GONÇALVES, 2014, p. 6061).

2.3. PÓS-MODERNISMO E AS MEGAESTRUTURAS 48. Unité d’Habitation Berlin (1958) de Le Corbusier. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/ Unit%C3%A9_d%27Habitation>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

49. Implosão do conjunto habitacional Pruitt-Igoe (1972). Disponível em: <https://pt.m.wikipedia.org/ wiki/Ficheiro:Pruitt-Igoe-collapses.jpg>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

50. American Way of Life e o consumismo. Disponível em: <https://www.todamateria.com.br/american-way-of-life/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Passado toda euforia do Modernismo, principalmente a partir da década de 60, muitos arquitetos passaram a criticar a prática das ideologias modernas. Em 1972, com a implosão do conjunto habitacional Pruitt-Igoe do arquiteto Minoru Yamasaki em St. Louis, EUA, devido ao seu fracasso para atender os moradores, o historiador Charles Jencks decretou “a morte da arquitetura moderna”. Além desse episódio, desde 1956 não eram mais realizados os CIAM (Congresso Internacionais de Arquitetura Moderna) que eram símbolo da discussão e difusão das ideias modernistas (KAMIMURA, 2010, p. 25). Isso tudo indicava que o momento histórico já era outro.

Se no campo da realidade se falava em superação da herança urbana modernista, no universo imaginário da utopia ainda haviam valores e conceitos modernos que poderiam ser perpetuados, já que nunca se concretizaram. A crítica era direcionada à realidade urbana que os ideais utópicos modernos haviam construído, e não necessariamente à utopia moderna (GONÇALVES, 2014, p. 119).

Os anos 60 seria marcado como uma década de reivindicações de minorias sociais, da liberdade sexual, da contracultura, do boom midiático e tantos outros eventos que agitaram o cenário político e cultural (KAMIMURA, 2010, p. 25). A cultura, principalmente o que seria pop, foi trabalhado de duas maneiras ao longo da segunda metade do século XX. A primeira foi a partir da década de 50 e 60, associado ao aumento do consumo e a ideia do American Way of Life fez com que Reyner Banham entendesse a cultura, ou melhor, a arquitetura pop como uma atualização da arquitetura moderna.

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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A arquitetura para Banham deveria se equiparar ao design das coisas descartáveis, assim se tornando pop. Era necessário uma releitura da aproximação entre arquitetura e indústria para atender às novas demandas de um mundo mais consumista que expandia. O exemplo da Casa do Futuro (1955-56) de Alison e Peter Smithson foi um ícone dessa lógica do consumo pop. A casa era uma sugestão dos arquitetos para como seria a moradia nos anos futuros, aprimorada por diversos gadgets, além da sua plástica que lembra uma nave espacial de ficção científica que traduzia essa linguagem futurista para a década de 50.

Para Banham, era imperativo que a arquitetura pop não só expressasse as tecnologias contemporâneas, mas também as elaborasse em novos modos de existência. Aqui reside a grande diferença entre Banham e os Venturi. mais uma vez, Banham procurava atualizar o imperativo expressionista da criação moderna, ao passo que os Venturi rejeitavam as tendências expressivas tanto quanto as tecnofílicas; na realidade, opunham-se a qualquer prolongamento do movimento moderno nesse sentido (FOSTER, 2016, posição 224).

Já a segunda, durante a década de 70, foi reelaborada por Robert Venturi e Denise Scott Brown. Em Aprendendo com Las Vegas (1972) os autores desenvolveram a ideia do “pato” e do “galpão decorado”. Para eles, o “pato” seria o edifício que representa explicitamente sua função pela sua forma, enquanto o “galpão decorado” seria aquele que possui uma estrutura genérica com uma decoração adicionada para denotar seu propósito. A ideia do “pato” vem justamente de uma construção em formato explícito de pato que, não ironicamente, vendia patos e ovos de pato.

51. Casa do Futuro (1955-56) de Alison e Peter Smithson. Disponível em: <https://coisasdaarquitetura. wordpress.com/2011/01/08/alison-e-peter-smithson/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A faixa comercial, a Las Vegas Strip [via principal da cidade] em particular… desafia o arquiteto a tomar uma visão positiva, não rancorosa. Arquitetos não têm o hábito de olhar os ambientes sem julgá-los, porque a arquitetura moderna ortodoxa é progressiva, se não revolucionária, utópica, e purista; é insatisfeita com as condições existentes.

Arquitetura moderna tem sido qualquer coisa menos permissiva: arquitetos tem preferido mudar o ambiente existente do que valorizar o que tem nele. (SCOTT BROWN & VENTURI apud KOHLSTEDT, 2016, tradução do autor).

A presença de letreiros e grandes placas indicando o uso de edifícios “galpões” foi bastante defendida pelos autores e essa imagem, hoje bastante comum e corriqueira, se tornou símbolo do novo pop. A arquitetura agora deveria ser pensada para pessoas desatentas e em movimento de seus carros. Mas apesar dessa leitura positiva da cultura do consumo, existiu 41

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

52. Esquema “pato” vs. “galpão decorado” de Denise Scott Brown e Robert Venturi. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/798578/expressivo-ou-kitsch-aprendendo-com-venturi-e-scott-brown>.

Acesso em: 05 de nov. de 2021.

quem explorasse seu lado mais sombrio.

Andy Warhol foi símbolo do movimento da Pop Art e traduziu em quadros e fotografias a cultura pop norte-americana, trabalhando com processos que se assemelhavam a indústria e linha de produção. Não só se utilizou de produtos comuns como lata de sopa e garrafas de bebidas, como também de ícones da cultura pop, como Marylin Monroe e Elvis Presley. O artista também usou da ironia para exibir cenas mais pesadas como a imagem de um suicídio e de uma cadeira elétrica com uma estética comercial e colorida.

53. Latas de Sopa Campbell (1962) de Andy Warhol. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Latas_de_Sopa_Campbell>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A cultura pop venturiana abrangia uma rejeição do elitismo e se voltava totalmente a cultura das massas e seu consumo exacerbado. Ela funcionou como uma espécie de populismo, mesmo que esse não fosse totalmente verdadeiro. (...) “alusão” à tradição arquitetônica para os iniciados, “inclusão” da iconografia comercial para todos os outros - serviu como um duplo código de chaves culturais que reafirmavam as fronteiras entre as classes mesmo quando pareciam transpô-las. Esse populismo falacioso só chegou a ser dominante na cultura política uma década depois, no governo de Ronald Reagan, do mesmo modo que sucedeu com a identificação neoconservadora da liberdade política com os mercados livres, que também foi antecipada em Aprendendo com Las Vegas (FOSTER, 2016, posição 280).

54. Marilyn Diptych (1962) de Andy Warhol. Disponível em: <https://en.wikipedia.org/wiki/Marilyn_Diptych>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

55. Cadeira Elétrica Grande (1967) de Andy Warhol. Disponível em: <https://pt.wahooart.com/@@/8XXNE7-Andy-Warhol-Cadeira-el%C3%A9trica-grande>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Sendo assim, as utopias pensadas nesse período efervescente acabaram contaminadas pelos pensamentos dessa cultura pop, tanto de Banham, como de Venturi. Vivendo um mundo diferente daquele onde as ideias do Movimento Moderno se difundiram, os pós-modernistas agora passaram a se abrir a uma infinidade de caminhos e possibilidades que poderiam perpetuar não só o sentimento de otimismo que já se vinha sendo defendida anteriormente, como um possível pessimismo (GONÇALVES, 2014, p. 120). É nesse momento que as megaestruturas passam a ter um papel importantíssimo para as novas utopias (e distopias) pós-modernas.

Segundo definições de Fumihiko Maki o conceito de megaestrutura seria “uma grande moldura na qual todas as funções de uma cidade (ou até mesmo parte dela) estão alojadas. Ela se tornou possível pela tecnologia atual” (MAKI apud GONÇALVES, 2014, p.

122). Nessa definição podemos perceber dois aspectos importantes: o primeiro, que a megaestrutura seria uma plataforma onde se apoiam as funções urbanas e, o segundo, que a tecnologia teria um papel fundamental para a realização dessas propostas.

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Um outro ponto importante a ser citado é que essas megaestruturas, sendo “molduras”, apoiariam unidades menores de rápida mutação, que são associadas a estrutura base, podendo se modificar com as necessidades e possuindo uma expectativa de validade menor do que a estrutura base, que não só permaneceria, como também poderia se extender. O objetivo seria promover as dinâmicas urbanas e fazer delas uma solução aos questionamentos sobre a profissão do arquiteto urbanista frente aos questionamentos sobre o Modernismo, assim como comenta Gonçalves (2014, p. 123): O objetivo era promover a espontaneidade urbana, mas sempre condicionada à uma estrutura idealizada pelos arquitetos, que garantiria assim os valores monumentais, estéticos e culturais inerentes à prática arquitetônica. Os usuários não deveriam mais viver em estado de suspensão alienada à produção do tecido urbano, e a megaestrutura seria a solução para a tão reivindicada flexibilidade urbana, uma maneira para a cidade do futuro se libertar das amarras estáticas do urbanismo moderno ditatorial. A Megaestrutura resolveria o conflito entre a grande e pequena escala, o estático e o efêmero, entre a designação profissional do arquiteto e a espontaneidade popular.

56. City in the Air (1962) de Arata Isozaki. Disponível em: <https://www.archdaily.com/912738/the-city-in-the-air-by-arata-isozaki>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Esse novo nascimento da técnica agora visava o desenvolvimento do comportamento pós-industrial, como o consumo, os avanços na robótica e na corrida espacial e o desenvolvimento de inúmeros materiais sintéticos. Montaner comenta (2014, p.

112): A arquitetura pode ser construída como qualquer outro objeto de consumo, integrar-se totalmente às leis de fabricação em série e alcançar a perfeição de encaixe de qualquer peça industrial. Os avanços da tecnologia científica estão transformando o estatuto do saber em geral e a forma da arquitetura, em particular.

Agora a ocupação humana ultrapassa não só os limites das fronteiras como atinge novos domínios: ela avança pelos oceanos, adentra o subterrâneo e até mesmo a atmosfera, tudo isso graças às novas possibilidades dos recursos tecnológicos, desnaturalizando os meios de existência humana (GONÇALVES, 2014, p. 130). Ainda na década de 40, Buckminster Fuller, defendia a possibilidade de edifícios móveis livres de limitações de infraestrutura. Ele também decompôs a cúpula em figuras geométricas simples para facilitar a montagem tornando-as flexíveis e estáveis (VASCONCELOS, 2015. p. 60).

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57. Dome Over Manhattan (1960) de Buckminster Fuller. Disponível em: <https://gothamist.com/arts-entertainment/the-1960-plan-to-put-a-dome-over-midtown-manhattan>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Yona Friedman foi um outro arquiteto importante nesse quesito. Em 1958, ele projetou uma estrutura modular elevada a mais de 15 metros da superfície, capaz de se adaptar às mudanças e demandas da sociedade. O solo aqui é utilizado para a agricultura ou preservação das cidades já existentes e a cobertura para as ruas e outras infraestruturas. (VASCONCELOS, 2015, p. 60). A mobilidade era um aspecto importante de seu trabalho e junto com as novas possibilidades e estudo da cibernética, isso foi levado ao próximo nível.

58. Ville Spatiale (1958) de Yona Friedman. Disponível em: <https://archinect.com/news/article/150185828/visionary-architect-yona-friedman-has-passed-away>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Para auxiliar na comunicação entre arquiteto e cliente, Friedman concebeu a Flatwriter que seria uma máquina que possibilitaria os usuários a inserir suas informações e escolher entre as opções projetuais qual seria melhor de acordo com suas necessidades. O serviço poderia ser sempre alimentado com novas informações para possíveis novas alterações e customização da habitação. O papel do arquiteto seria apenas mediar as informações dos usuários em projetos que seriam recombinados pela máquina (GONÇALVES, 2014, p. 134-135).

A Ville Spatiale de Friedman potencializava transformando-a não só em base para os edifícios e criação de circulações, mas se tornava a própria cidade. A abrangência global do projeto indicava essa universalidade e seu grid espacial, a fragmentação, tornando o ambiente urbano um organismo de difícil compreensão, totalmente mutável e variável (GONÇALVES, 2014, p. 140).

59. Ville Spatiale (1958) de Yona Friedman. Disponível em: <https://revistaprojeto.com.br/noticias/memorial-da-resistencia-de-sao-paulo-exibe-mostra-de-yona-friedman/#gallery-1-3>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Yona Friedman também seria pioneiro ao incorporar o conceito de urban play, que incorporava a ideia de lazer e diversão no urbanismo, como elemento primordial da vida na cidade. Esse play estava presente nessa liberdade dos cidadãos ao poder escolher suas habitações e onde as posicionar a partir de suas necessidades. A autonomia de cada pessoa promovia essa vivência lúdica ao espaço urbano (GONÇALVES, 2014, p. 141).

2.4. NEW BABYLON

60. Ville Spatiale (1958) de Yona Friedman. Disponível em: <https://twitter.com/urbanfoxxxx/status/859109397074780160>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Outra personalidade importante nesse sentido foi Constant Nieuwenhuys. Em 1958, o artista entrou para o IS (Internacional Situacionista) e foi a partir desse momento que seu projeto para a New Babylon (1959-1974) começou a tomar forma. As ideias de “deriva”, “situação”, “urbanismo unitário” e “mapas psicogeográficos” seriam materializadas na proposta que Constant desenvolveria, mas o sentido de ludicidade tem CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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um papel primordial para seu projeto (KAMIMURA, 2010, p. 34)

Assim como Friedman, Constant foi bastante influenciado pelo livro Homo ludens: o jogo como elemento da cultura (1938) de Johan Huizinga. O projeto da New Babylon teria como pressuposto a liberdade do homo ludens para viver de maneira lúdica e se aproveitando do lazer a todo momento, extinguindo-se qualquer noção de labor e rotina. Graças ao avanço da tecnologia, a humanidade seria livre de ter que gastar seu tempo com o trabalho e tudo poderia ser automatizado. Sendo assim, todos teriam total liberdade para se voltar ao lúdico e ao jogo urbano (KAMIMURA, 2010, p. 34).

Após os desastres da Segunda Guerra, a humanidade se vê de frente a uma consciência tecnocrática e opressora que foi capaz de gerar todas as atrocidades ocorridas na guerra. É nesse momento que se passa a entender a humanidade real, com todas as suas consequências e condições psicológicas. Segundo Kamimura (2010, p. 36): “(...) ‘do homem ideal ao homem comum’ pode ainda ser comparado como algo que vai do Modulor perfeito e ‘ideal’ de Le Corbusier aos personagens disformes ‘reais’ das obras de Jean Dubuffet”.

61. Modulor (1948) de Le Corbusier. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/911962/sobre-o-deslocamento-do-corpo-na-arquitetura-o-modulor-de-le-corbusier>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

62. Site Visited (1981) de Jeand Dubuffet. Disponível em: <https://www.wikiart.org/en/jean-dubuffet/ site-visited>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

No ano de 1960, Constant se retira da IS, mas muitas ideias que adquiriu nesse movimento foram de extrema importância para o desenvolvimento da New Babylon anos mais tarde.

A ideia de perambular pela cidade, assim como “os bêbados, vagabundos e poetas” foi chamada de “deriva’’. Estar à deriva seria a passagem por diversos cenários da cidade, caminhando e experimentando o que a vida urbana tem a oferecer. A psicogeografia então adotaria a deriva como atividade elementar, para mapear as ambiências urbanas, através do que era possível se sentir em cada uma delas (KAMIMURA, 2010, p. 54).

Para os situacionistas, a cidade deveria ser concebida como uma colagem de fragmentos - as situações construídas -, que prescindia de qualquer tipo de ordem ou planejamento dos espaços segundo premissas funcionais. Era necessário subverter a lógica da segregação da cidade burguesa, encontrando, em seus interstícios, a verdadeira pulsação da vida urbana (KAMIMURA, 2010, p. 55).

A ideia do jogo urbano então, encantava Constant justamente por incorporar essa deriva de maneira que possibilitava a exploração do ambiente urbano de maneira lúdica e livre. O artista passa a elaborar modelos, plantas e mapas para elabo45

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63. The Naked City (1957) de Guy Debord. Disponível em: <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/15.176/5458>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

rar o que seria a New Babylon:

64. Gezicht op New Babylonische sectoren (1957) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/gezicht-op-new-babylonische-sectoren>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

65. New Babylon-Amsterdam [I] (1963) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/new-babylon-amsterdam-i>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

66. Gele sector (1958) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/ gele-sector>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A New Babylon de Constant é pura fragmentação e dinamismo: tudo e todos se movem. A paisagem também nunca é a mesma: ao contrário, pode ser modificada e manipulada por seus próprios habitantes de maneira contínua. Implodem-se os conceitos de tempo e espaço: em New Babylon não há dia e nem noite - recurso obtido com o auxílio da iluminação e climatização artificiais -, e nem diferenciação entre os lugares, que são como setores, que unem e formam o próprio caminho da deriva contínua. Em uma nova sociedade onde o trabalho produtivo foi completamente abolido através da automação, a única preocupação dos habitantes é a ininterrupta realização das paixões, e a sociedade plena através da construção de situações e do jogo (KAMIMURA, 2010, p.

60-61).

A estrutura da proposta é pensada com elementos pré-fabricados metálicos e que possibilitem a mobilidade e flexibilidade da composição. Ela poderia se expandir para onde fosse preciso, podendo ser implantada desde de paisagens virgens até cidades históricas, como Paris, Amsterdã, Munique, Barcelona e outras propostas por Constant (KAMIMURA, 2010, p. 61). Além disso, com a desintegração do núcleo familiar e extinção da noção espacial e temporal pautada pelo trabalho, o habitante da New Babylon seria livre para decidir para onde iria e quanto tempo ficaria nesse local (VASCONCELOS, 2015, p. 99).

Os setores seriam um esqueleto horizontal que pode abrigar alguns usos fixos como centros técnicos, serviços como hotéis, equipamentos sanitários, ensino e distribuição de artigos necessários para o dia a dia do homo ludens. O restante, seria móvel e alterado de acordo com as necessidades e vontades dos seus habitantes. A ventilação, temperatura, luminosidade e outras condições climáticas seriam controladas pelo uso da tecnologia (VASCONCELOS, 2015, p. 100).

No exemplo do Setor Amarelo, Constant mostra uma estrutura metálica que toca o solo a partir de alguns apoios. Uma torre mais alta concentra os serviços técnicos essenciais e as circulações ocorrem por meio de elevadores e escadas. A chegada ao setor se dá ou pelo subsolo (por meio de trem), ou pelo terraço (por meio de transportes aéreos) e ou térreo (veículos e pedestres), sendo assim, eles liberam a estrutura para essa vivência labiríntica do jogo urbano. O resultado é um gigantesco playground onde a espacialidade dinâmica e quase aleatória gera uma vitalidade de exploração do ambiente, quase que vertiginosa (KAMIKURA, 2010, p. 71).

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As atividades possíveis de serem realizadas nesse setor também são comentadas por Constant, os jogos de ambiência são explorados de maneira totalmente lúdica. Salas como: “sala surda”, “sala das imagens”, “sala da reflexão” e “sala dos jogos eróticos” são alguns desses espaços propostos por Constant na intenção de gerar variadas experiências ao homo ludens (KAMIKURA, 2010, p. 72).

Enquanto Friedman acreditava na livre articulação das habitações e outros equipamentos pelos próprios usuários, Constant previa uma revolução total da sociedade e de seus meios de produção, articulando uma nova proposta de vida. A rotina não seria mais um elemento cotidiano, não haveria espaço para repetições. Assim como os espaços, os habitantes mudam e vagam em busca de ambiências e experiências únicas.

Por conta dessas mudanças, o artista considerava que qualquer representação feita da sua proposta seria apenas como uma foto, que retrata um momento estático daquele lugar. O que ele projetava eram sugestões de como a proposta poderia se configurar inicialmente, depois sendo modificada infinitamente de maneira constante (KAMIMURA, 2010, p. 75 e 80).

67. De ladderbeklimmers (1969) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/ work/de-ladderbeklimmers>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Segundo Huizinga, o jogo era configurado como um intervalo da vida cotidiana, ou seja, existia um caráter temporal como limitador de sua experiência. Era justamente na separação da vida comum que se dava a existência do lúdico. No entanto, Constant levou a ludicidade às últimas consequências. Não haveria separação entre a vida cotidiana e o jogo, mas o habitante da New Babylon viveria nesse labirinto infinito à deriva de maneira ininterrupta. Não parece haver aqui um mecanismo de ordem que configure a vida nessa utopia, apenas a infinita liberdade de se buscar novas experiências (KAMIMURA, 2010, 8283).

É nesse sentido que surgem críticas ao projeto de Constant, como as declaradas por Alan Colquhoun: Ao contrário das intenções declaradas por Constant, a impressão dominante desta utopia estética é de tédio e claustrofobia; é como um interminável centro comercial sem indicações de saída. [...] A cidade de Constant ilustra um mundo no qual, mediante uma lobotomia, foram erradicados o poder e os conflitos (COLQUHOUN apud KAMIMURA, 2010, p. 83).

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Depois de anos mergulhado nas ideias da New Babylon,

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68. Homo ludens (1964) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/ homo-ludens>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Constant se volta à pintura novamente e é nesse momento que, para alguns autores, ele parece demonstrar a insatisfação com as impossibilidades da materialização de sua ideia. Mark Wigley aponta que: Figuras discretas finalmente vêm a foco contra diáfanos planos em 1968. Mas as suas formas borradas agora remetem a manchas de sangue. As dúvidas vão embora quando estas se tornam vermelhas. Há um sentido de violência corrente.

Conforme nos aproximamos finalmente das figuras, perto o suficiente para detectar rostos, aquelas foram empilhadas ou estão dilaceradas sobre toda a superfície como se tivesse havido uma horrível carnificina (WIGLEY apud KAMIMURA, 2010, p. 85).

Aquelas ideias de revolução que agitavam os pensamentos de Constant floresceram nas revoltas de 68, mas acabaram se tornando insucessos. Muito desse pessimismo do artista poderia estar atrelado a essa insatisfação com o esfriamento dessas possibilidades que poderiam ter acontecido. No entanto, alguns outros críticos consideram que, pelo contrário, a obra de Constant nesse momento refletia algo positivo da carreira do pintor (KAMIMURA, 2010, p. 87).

69. La révolte (1972) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/la-revolte>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Sendo a New Babylon símbolo de uma nova sociedade, a violência, criatividade, erotismo, crime, diversão e outros aspectos não seriam necessariamente elementos contrários, o que contava era a evidenciação dos instintos primários do humano. Para Van Schaik por exemplo, as formas prismáticas que podemos ver ao fundos das obras seria a New Babylon e todas as tragédias e horror aconteceriam no mundo fora da utopia, ou seja, no mundo que não aceitou aquela utopia (KAMIMURA, 2010, p. 88-89).

No século XX, a celebração da qualidade teatral presente nos espaços das megaestruturas coloca o espaço arquitetônico como estrutura de suporte que oferece aos indivíduos um contexto instigante, de onde surgirão diferentes reações e até mesmo comportamentos. O espaço teatral no espaço arquitetônico possibilita ao ser humano a realização de uma das suas funções mais primitivas: a brincadeira ou o jogo (VASCONCELOS, 2015, p. 91).

70. New Babylon (1971) de Constant Nieuwenhuys. Disponível em: <https://stichtingconstant.nl/work/ new-babylon>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

O lúdico associado com o uso da tecnologia que as vanguardas pós-modernas assistiam evoluir, possibilitaram a arquitetura em de tornar seus espaços muito mais atrativos ao público, com a possibilidade de levar o usuário a um espaço quase que fantasioso, irreal, que entretia por meio da espetacularização. O espetáculo e espectador faziam parte de CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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um processo coletivo e espontâneo que tornava o corpo como recurso principal do ator e sua relação com a ambiência seria parte dessa experiência (VASCONCELOS, 2015, p. 91-92).

2.5. FUN PALACE

Essa relação da tecnologia com a espetacularização da arquitetura fica muito evidente do Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. O projeto era uma celebração da sociedade do lazer e serviu de inspiração para diversos outros arquitetos nos anos seguintes. Segundo Mathews (2005, p. 3, tradução do autor): Não era um museu, nem uma escola, teatro ou parque de diversões, e mesmo assim poderia ser tudo isso simultaneamente ou em momentos diferentes. O Fun Palace era um ambiente que interagia e respondia continuamente às pessoas.

71. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/842>.

Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A ideia para o projeto surgiu inicialmente pela produtora de teatro Joan Littlewood. Ela visionava um espaço para a bricolage cultural, ou seja, onde as pessoas pudessem experimentar o teatro de maneira colaborativa, onde cada um faz parte da peça que é a auto-descoberta (MATHEWS, 2005, p. 4). Em outras palavras, Littlewood pretendia criar um espaço onde a própria vida cotidiana das pessoas seria explorada como o play urbano, fazendo com que as pessoas fossem livres para realizar diversas atividades para seu lazer.

Essa atenção ao lazer e ao tempo livre não era sem motivo. O pós guerra inglês foi marcado por fechamentos de algumas indústrias e automação de outras, causando um número maior de desempregados e pessoas com cargas horárias menores. Sendo assim, o lazer surge como um problema a ser solucionado por diversas áreas da sociedade. O Labour Party publicou um texto no ano de 1959 em que previa que a automação das indústrias transformaria a Inglaterra numa economia baseada no lazer:

72. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/do-fun-palace-ao-design-generativo/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

A governança dos trabalhadores do pós-guerra provou que, em uma sociedade corretamente planejada, é possível garantir uma alta taxa de empregos; e, com a automação se espalhando, vai ser também possível, enquanto se mantêm as taxas de empregos, afrouxar continuamente as horas de trabalho que a maioria das pessoas precisam trabalhar.

Esses dois incríveis avanços significarão uma mudança drástica no pensamento social. Uma vez o pleno emprego sendo assegurado, a ênfase vai ser não mais no empregos para todos, mas sim no lazer para todos - lazer e como usá-lo (THE

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73. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://www.moma.org/collection/works/845>.

Acesso em: 05 de nov. de 2021.

LABOUR PARTY apud MATHEWS, 2005, p. 5, tradução do autor).

Animada com a sua ideia, Littlewood publicou em 1964 na revista The New Scientist um artigo onde decorria suas ideias para o espaço. A sua intenção era criar uma “universidade das ruas” onde os usuários poderiam ser livres para aproveitar seu tempo para realizar as atividades que bem entenderem, de maneira bem informal. As estruturas não seriam permanentes e poderiam ir se alterando com as necessidades das pessoas: “com a informalidade vem a flexibilidade” (MATHEWS, 2005, p. 6, tradução do autor).

Os projetos que foram desenvolvidos indicavam uma arquitetura em contínuo processo de construção, sem a vontade de se chegar a um fim, justamente por não ser um projeto finito. Até quando revistas de design e arquitetura entraram em contato com Price para publicar as plantas e outros desenhos técnicos da sua proposta, ele respondia que não havia edifício, apenas kit de partes (MATHEWS, 2005, p. 8).

74. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://www.cca.qc.ca/en/articles/issues/2/what-the-future-looked-like/32737/1964-fun-palace>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

O Fun Palace seria onde as pessoas poderiam escapar das suas rotinas e explorar sua criatividade e desenvolvimento pessoal. Com o apoio de guindastes, os usuários poderiam construir e modificar paredes pré-fabricadas, plataformas, pisos, escadas e outros elementos. Haveria também um sistema de controle do ambiente, com zonas de vapor, barreiras visuais, cortinas de ar quente e dispersores de neblina. Tudo ali poderia variar dentro da moldura estrutural fixa (MATHEWS, 2005, p. 9).

Por contar com um programa tão complexo e imprevisível, Price achava que o Fun Palace precisava de auto regular e por isso partiu para as teorias cibernéticas como resposta a essa necessidade. Para ele: “O Fun Palace precisaria ser hábil para ‘aprender’ os padrões comportamentais e ´planejar futuras atividades as modelando de acordo com os princípios cibernéticos e as estratégias da teoria do jogo” (MATHEWS, 2005, p. 10, tradução do autor).

75. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://projetobatente.com.br/do-fun-palace-ao-design-generativo/>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Então, em 1963, Gordon Pask, autor e participante da British Cybernectics Foundation, passou a fazer parte da concepção do Fun Palace justamente para auxiliá-los nos assuntos voltados à cibernética e tecnologias que seriam aplicadas ao projeto. No entanto, Pask foi responsável por mudar a direção para onde Littlewood e Price queriam chegar com o projeto para um estudo de controle social através da cibernética. Um diagrama produzido por ele e sua equipe traduziam o Fun Palace em CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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um diagrama onde as pessoas eram tratadas como dados (MATHEWS, 2005, p. 11 e 13).

Sensores e terminais responsivos seriam responsáveis por coletar os dados das preferências de cada usuário que seria atribuído um valor. Essas informações seriam armazenadas em um computador e as traduziria em parâmetros para a modificação dos espaços e atividades. Assim como descreve Mathews (2005, p. 14): Price, Littlewood, e Pask consideraram que a configuração do dia-a-dia e as atividades do Fun Palace poderiam ser controladas por análise cibernética de uso de padrões. Eles propuseram sete seções administrativas para fiscalizar e manter o Fun Palace. Ainda assim, a intenção era que a administração seria passiva e apoiadora, e que os controles cibernéticos poderiam monitorar diretamente os padrões de uso e desejos, deste modo permitindo o edifício a se autocontrolar e auto reprogramar.

Apesar de todas as propostas tecnológicas e voltadas a um espaço cultural poliprogramático, Price, Littlewood e Pask enfrentaram diversos problemas burocráticos na tentativa de construir sua proposta e, em 1975, Price declarou que o projeto já era obsoleto. Apesar disso, o projeto serviu como referência para o Centro Pompidou (1976) de Renzo Piano e Richard Rogers, ainda que essa influência fosse mais volumétrica do que conceitual (MATHEWS, 2005, p. 18).

76. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <http://www.nomads.usp.br/pesquisas/cultura_digital/complexidade/CASOS/FUN%20PALACE/FUN%20PALACE.htm>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Para Price, a arquitetura era, antes de mais tudo, de caráter social, com foco na emancipação e empoderamento individual. Sua vontade ao projetar o Fun Palace foi de criar uma arquitetura que sintetizasse tecnologia, cibernética e game theory e que estivesse em constante mutação, servindo as necessidades populares. Assim como o autor Stanley Mathews sintetizou na fala de Price: “O Fun Palace não era sobre tecnologia. Era sobre pessoas”.

2.6. ARCHIGRAM

Muitos inspirados em projetos como o Fun Palace de Price, os recém formados arquitetos Peter Cook, David Greene e Michael Webb lançaram a primeira edição da revista Archigram.

O nome era a mistura de architecture com telegram e o material consistia em projetos acadêmicos elaborados por estudantes (inspirados por ideias futuristas e expressionistas) e alguns poemas escritos por Greene.

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77. Fun Palace (1960-1975) de Cedric Price. Disponível em: <https://waysofcurating.withgoogle.com/ exhibition/a-stroll-through-a-fun-palace/media/5476885186215936>. Acesso em: 05 de nov. de 2021.

Em 1962, se juntam ao grupo Ron Herron, Dennis Crompton e Warren Chalk e com essa nova formação publicam a segunda edição de sua revista. O grupo tinha um espírito de revolta contra as ideologias do Estilo Internacional pregado pelo Movimento Moderno e declararam a imagem da Bauhaus algo decadente e um insulto ao funcionalismo (KAMIMURA, 2010, p. 97-98).

Os integrantes possibilidades que a para a arquitetura. possibilitador de um encontrava estagnada

78. Archigram Magazine Issue No. 1 (1961). Disponível em: <https://www.stylepark.com/en/news/when-the-city-learned-to-walk/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

do Archigram concordavam com as novas nova sociedade do consumo poderia gerar Eles acreditavam na tecnologia como um novo caminho para a arquitetura que se nos princípios modernos.

Durante os anos sessenta, Archigram manteve intercâmbio entre os universos da arquitetura e da tecnologia como premissa de projeto, não apenas desenhando formas que remetessem a cápsulas lunares e computadores, mas também investindo o próprio projeto arquitetônico dos novos paradigmas informacionais e tecnológicos (KAMIMURA, 2010, p. 99).

Com a efemeridade dos produtos nessa nova concepção de consumo, a arquitetura, que não era tão flexível e dinâmica, não fazia mais sentido para aquela realidade (KAMIMURA, 2010, p. 100).

Warren Chalk, no seu escrito de 1967 titulado “A arquitetura como produto do consumidor”, propõe claramente a necessidade de uma arquitetura descartável, trocável e produtível como qualquer objeto de consumo, defendendo uma “estética dos desperdícios”. (MONTANER, 2014, p. 113).

79. Plug-In City (1964) de Archigram. Disponível em: <https://www.dezeen.com/2020/05/12/archigram-plug-in-city-peter-cook-dennis-crompton-video-interview-vdf/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

80. Plug-In City (1964) de Archigram. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/01-166703/the-plug-in-city-1964-slash-peter-cook-archigram>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Dessa “estética dos desperdícios” vem a ideia dos kits para a arquitetura. A produção arquitetônica agora seria comprada através de peças montáveis, transportáveis e substituíveis. Há uma mistura entre a cultura do consumo, dos progressos tecnológicos e do pop (MONTANER, 2014, p. 113). O pop aqui deve ser entendido não como uma retomada da cultura vernacular e tradicional, mas como a cultura de massas ou como melhor definido por Argan: “não a criatividade do povo, e sim a não criatividade da massa.” (ARGAN apud KAMIMURA, 2010, p. 103).

O projeto Plug-in City (1964) do Archigram é um dos maiores símbolos dessa produção do grupo. O projeto é com conglomerado de tubos e outros componentes desordenados acoplados a uma estrutura coerente. As peças que compõem a Plug-in City tem data de validade, ou seja, deveriam ser trocadas por novas peças depois de um certo tempo: 40 anos para a estrutura base, CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

52

20 anos para as vias, 5 a 8 anos para os dormitórios e assim por diante (KAMIMURA, 2010, p. 112). [...] se o urbanismo de Yona Friedman se dizia “espacial” porque acrescentava uma componente vertical ao zoneamento bidimensional do urbanismo moderno, Archigram mergulhava na quarta dimensão: a do tempo. Seu design sugeria mudança constante, fluxo interminável, veias, artérias e vasos capilares transportando pessoas, mercadorias, informações (KAMIMURA, 2010, p. 121).

Apesar de muitas semelhanças aos projetos utópicos apresentados anteriormente, a Plug-in City não apresentava nenhuma área para indústria ou agricultura. Seus usos eram voltados primordialmente para a habitação, escritórios e serviços. Sendo assim, a noção que a proposta indica a Simon Sadler é a de que ela seria ocupada por “colarinhos brancos” que cumpririam sua jornada de trabalho reduzida, graças ao avanço tecnológico (KAMIMURA, 2010, p. 131-132).

81. Plug-In City (1964) de Archigram. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/01-166703/the-plug-in-city-1964-slash-peter-cook-archigram>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

A proposta da Computer City (1964) trazia um desenho que lembrava os circuitos elétricos e suas vias de comunicação seriam responsáveis pelo trânsito de informações pela cidade. Essas informações seriam bombardeadas em um grande volume contendo dados sobre o tráfego, preços, taxas de natalidade e inúmeras outras (KAMIMURA, 2010, p. 131). Essas ideias estavam muito alinhadas ao desenvolvimento da cibernética, assim como no Fun Palace.

Depois de uma euforia mega estruturalista, o grupo diminui a escala e passa a focar no desenvolvimento de produtos voltados a essa sociedade do consumo. Alguns exemplos são: Magic Carpet and Brunhilda’s Magic Ring of Fire (1968), The pipe environment (1970), L.A.W.U.N. 1 (1969) e L.A.W.U.N. 2 (1970). Esses projetos se aproximam mais dessa visão otimista de melhoria da vida por meio da tecnologia (KAMIMURA, 2010, p.

136).

82. Amazing Archigram 4: Zoom Issue (1964) e Mystery in Space #86 (1963) da DC Comics Disponível em: <https://www.mascontext.com/tag/archigram/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Envolvem processos muito mais soft do que hard e, em sua maioria, variam entre as escalas do corpo humano “cyborg” como possibilidade de hibridização biológico-elétrica às de ambientes que possam ser controlados ciberneticamente pelo usuário (KAMIMURA, 2010, p. 136).

Para além da ideia de peças substituíveis do Archigram, o nomadismo, ou a mudança de lugares de partes da estrutura ou ela como um todo, foi uma característica da sua produção.

No caso da Walking City (1964) o grupo pensou em uma estrutu53

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

83. Computer City (1964) de Archigram. Disponível em: <https://prostheticknowledge.tumblr.com/image/53306821706>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

ra ovóide com pernas que possibilitariam a estrutura como um todo se movimentar e trocar de ambiente. Apesar desse exemplo, a maior parte de suas megaestruturas foram pensadas como uma grande estrutura fixa com células que se acoplavam e desacoplavam na medida em que se precisasse.

Essa possibilidade de movimentação de células estava muito relacionada com a ideia futurista de movimento constante de pessoas e informações (MONTANER, 2014, p. 114). Agora, não era apenas pelo desenvolvimento de meios de transporte e comunicação, mas pelo nascimento e desenvolvimento de um mundo cada vez mais globalizado.

2.7. ARCHIZOOM & SUPERSTUDIO 84. Magic Carpet and Brunhilda’s Magic Ring of Fire (1968) de Archigram. Disponível em: <http://archigram.westminster.ac.uk/project.php?id=122>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

85. Walking City (1964) de Archigram. Disponível em: <http://archigram.westminster.ac.uk/project. php?id=60>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

A dualidade entre celebração e crítica à sociedade do consumo é a temática principal a ser trabalhada por grupos italianos. Um deles era composto pelos arquitetos Andrea Branzi, Gilberto Correti, Paolo Deganello e Massimo Morozzi, num primeiro momento, e depois contou com Lucia Bartolini e Dario Bartolini. O nome Archizoom veio do grupo Archigram, justamente por abordarem temáticas similares de consumo e sociedade pós industrial (KAMIMURA, 2010, p. 149).

Além do Archizoom, outro grupo de arquitetos italianos também surgiram nesse período: o Superstudio. Esse era composto por Cristiano Toraldo di Francia, Adolfo Natalini (o mesmo da exposição), Roberto Magris, Piero Frassinelli, Alessandro Magris e Alessandro Poli. O nome desse vinha justamente da ideia da exposição Superachitettura (KAMIMURA, 2010, p. 149).

O Archizoom usou da ironia, estética eclética e do kitsch em suas propostas como as Dream Beds (1967) e o Teatro del potere (1969) exaltando de maneira crítica a cultura pop, com um visual muito forte e agressivo. O Superstudio, ao contrário, usava da ambiguidade entre sutileza e agressividade de suas propostas para criar essa visão crítica que defendia (KAMIMURA, 2010, p. 152-154).

86. Dream Beds (1967) de Archigram. Disponível em: <https://divisare.com/projects/313783-archizoom-associati-the-four-beds>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Para Archizoom e Superstudio, era necessário rejeitar a arquitetura em sua acepção tradicional, partindo-se do pressuposto de que esta, como profissão, parecia demasiadamente comprometida para ser recuperada. Assim, explorar as suas contradições no próprio plano da representação, âmbito no qual seria possível demonstrar a expansão de suas estruturas ad absurdum, se constituiu como tarefa primordial para CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

54

os dois grupos (KAMIMURA, 2010, p. 167).

Uma dessas propostas foi o Monumento Contínuo (1971) do Superstudio. O projeto foi pensado em um formato de storyboard de 80 quadros com legendas em italiano e inglês. A história retratava a evolução dos monumentos com o passar do tempo até chegar no que seria o Monumento Contínuo (KAMIMURA, 2010, p.

167).

Essa proposta seria o resultado de toda a abstração sobre os monumentos, se formalizando em um volume geométrico, linear e puro. Ele poderia se estender ao infinito, assim como muitas outras propostas apresentadas anteriormente. Ele se articularia por entre edifícios e cenários famosos ao redor do mundo, continuando sua extensão.

A malha ortogonal existente no Monumento acaba sendo usada pelo grupo em outras criações, se mostrando configurável a qualquer projeto, desde objetos de design, até arquiteturas de espaços. Sua utopia era pautada na eliminação da cidade real para uma vivência do espaço sem a ação de poderes e hierarquias sociais. Eles se pautavam, assim como Constant, na abolição do labor para tornar os habitantes do Monumento Contínuo livres para viver como bem entendessem (KAMIMURA, 2010, p. 175-176).

Ao mesmo tempo que a proposta do Monumento tinha uma espacialização de escalas monumentais, podendo ser associada a um pensamento totalitário, a proposição do grupo era justamente a contrária, de uma utopia de liberdade, sem sistemas opressores e consumo (KAMIMURA, 2010, p. 178). Seria essa justamente a ambiguidade que o grupo trabalhava, usar de uma imagem mas propor o contrário.

87. Monumento Contínuo (1971) de Superstudio. Disponível em: <https://www.centrepompidou.fr/fr/ressources/oeuvre/ck4yyK7>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

88. Minsura Furnite Series (1969-70) de Superstudio. Disponível em: <https://www.domusweb.it/en/from-the-archive/2011/07/21/-superstudio-misura-series.html>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Assim, sem abandonar tal paradoxo, as imagens concebidas pelo Superstudio revelam à primeira vista uma singeleza que parecia fazer com que seus objetos “metafísicos” flutuassem no espaço como se estivessem prestes a desvanecer-se. De fato, isso era apropriado para uma arquitetura que se queria autodestrutiva. E esse processo de extinção poderia ganhar inclusive uma caráter de happening, como o projeto de uma barragem de espelhos autoextinguível para as cataratas do Niágara ou a Hidden architecture (“arquitetura oculta”), registrada em fotografias pelo grupo em 1969-70 (KAMIMURA, 2010, p. 180).

55

A proposta desenvolvida pelo Superstudio seria o monu-

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

89. Monumento Contínuo (1971) de Superstudio. Disponível em: <https://searchofthesublime.tumblr.com/ post/178678492088/il-monumento-continuo-superstudio-1969>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

mento erigido pela celebração da emancipação total do homem como indivíduo, por meio do desenvolvimento da tecnologia e da história. Eram propostas trabalhadas em imagens que serviam de crítica ao momento em que viviam (KAMIMURA, 2010, p. 184).

90. No-Stop City (1971) de Superstudio. Disponível em: <http://architectuul.com/architecture/view_image/no-stop-city/21025>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Próxima à publicação do Monumento Contínuo, o Archizoom publica a No-Stop City (1971). O projeto era uma coletânea de imagens e desenhos; algumas perspectivas mostravam objetos inseridos em paisagens urbanas, com escalas monumentais e resultados de um processo de produção industrial, “no-stop”. Os cortes mostravam os usos devidos de cada nível, sendo o térreo voltado a circulação de pessoas e veículos leves, os veículos pesados ficariam no subsolo, mais abaixo uma estrada de tráfego rápido e depois o metrô. Os pavimentos mais baixos eram voltados ao comércio e serviços, enquanto os mais altos à habitação. O terraço era composto por um teto jardim. (KAMIMURA, 2010, p. 185). A proposição lembra muito outros projetos já comentados que também seguiam esse nivelamento de um edifício único para diversos usos da cidade.

Internamente, as instalações se mostravam diretamente voltadas ao consumo, com cores bem saturadas e vívidas. A No-Stop City combinava a ironia do grupo sobre como o design foi apropriado exclusivamente para os interesses do mercado e como a crítica da expansão das estruturas do capital se deram sobre o território. Podemos notar essas características também exploradas em projetos como as Dream Beds (1967). Foram desenvolvidas maquetes de ambientes que eram revestidos de materiais sintéticos e cores extravagantes, diretamente associados ao visual artificial e pop vigente.

O Archizoom combinava os seus projetos com as condições do capital, com o intuito de desmistificar a ideia de que a cidade representava o progresso. Tanto Archizoom, como Superstudio, abordavam perspectivas sobre como a arquitetura estava perdendo poder na tomada de decisões, para servir apenas como mais um produto servindo a interesses privados (KAMIMURA, 2010, p. 199).

91. No-Stop City (1971) de Superstudio. Disponível em: <http://architectuul.com/architecture/view_image/no-stop-city/21025>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

92. No-Stop City (1971) de Superstudio. Disponível em: <https://socks-studio.com/2011/04/19/archizoom-associati-no-stop-city-internal-landscapes-1970/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Mais do que isso, ambos os grupos já entendiam esse novo cenário e propunham especulações que não tinham intenção nenhuma de serem executadas, eram puramente proposições conceituais e críticas para com o momento. Já na década de 70, muitas das ideias revolucionárias da década anterior já vinham perdendo força e, paralelamente, as áreas do conhecimento, assim como a arquitetura e o design, se fragmentavam e se esCAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

56

pecializavam cada vez mais (KAMIMURA, 2010, p. 200 e 203). [...] o que observamos não são necessariamente propostas “melhores” para um mundo melhor, regido sob uma nova ordem, resultando na construção de cidades mais belas. O que há, ao contrário, é um desejado distanciamento da realidade para que nela se possa intervir, buscando-se o despojamento de todos os seus resíduos ideológicos. O que pode ser discutível, no entanto, é o quão longe tal atitude “política” pode realmente encontrar-se dos “confortáveis espaços da academia” (KAMIMURA, 2010, p. 206).

O papel crítico dessas utopias desenvolvidas por esses arquitetos pós-modernos foram importantes para a revisão dos conceitos modernos que já não se adequavam à nova realidade e também como reflexão do que seria essa nova realidade. Algumas dessas propostas poderiam ser confundidas com distopias, se levarmos em conta o caráter crítico implícito nas suas ideias. E uma área, para além da arquitetura e urbanismo, que essas ideias distópicas encontraram terreno mais fértil foi justamente no cinema.

93. King Kong (1933). Disponível em: <https://www.planocritico.com/critica-king-kong-1933/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

3.8. AS DISTOPIAS E O CINEMA

Ainda anterior à crise do Modernismo, enquanto aos valores de progresso era bastante atribuído ao desenvolvimento tecnológico, a imagem das metrópoles eram associadas à exacerbação de suas principais características nos filmes como: congestão, problemas de transporte, desumanização do ambiente e outros. Uma característica bastante presente nas produções desse período é a verticalização exacerbada desses centros urbanos (GONÇALVES, 2014, p.81-82).

A criação do elevador em 1853 por Elis Otis possibilitou o surgimento dos arranha-céus, com isso a paisagem das cidades, principalmente nos Estados Unidos, se modificou. O filme King Kong (1933) mostra esse cenário urbano verticalizado.

Ilustrações como as de Hugh Ferriss para o livro Metropolis of Tomorrow (1929) indicam o poder monumental dessas construções e a atmosfera assustadora que ela gerava às cidades (GONÇALVES, 2014, p. 83).

Esse fascínio por essas altas construções também indicava um certo temor da maior parte das pessoas, já que essa ambição por se construir cada vez mais alto poderia ser associada à história da Torre de Babel. Essa noção é retomada no filme Metropolis (1927) que mostrava a cidade como um cenário denso, insalubre e meio de escravização dos próprios habitantes. A 57

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

94.

Metropolis

of

Tomorrow (1929) de Hugh Ferriss. Disponível em: <https://www.pinterest.es/ pin/120893571226273757/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

verticalidade da Nova Torre de Babel representa um símbolo do poder que controla aquela cidade e ocupa a paisagem com sua monumentalidade. Seguindo os conceitos da vanguarda futurista, o longa materializa uma sociedade alienada e escravizada pela própria ânsia por progresso (GONÇALVES, 2014, p. 85-86).

Mas as distopias ficam ainda mais evidentes nos filmes após a crise do Movimento Moderno. A partir desse momento, os filmes passam a usar das ideias defendidas pelo Modernismo e suas eventuais consequências para criar cenários em que o questionava.

95. Metropolis (1927). Disponível em: <https://medium.com/@migdomserpa/metropolis-1927-8123a3288bd5>.

Acesso em: 06 de nov. de 2021.

96. 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). Disponível em: <https://www.planocritico.com/critica-2001-uma-odisseia-no-espaco/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

2001: Uma Odisseia no Espaço (1968) também trabalhou a exploração do espaço se apropriando de uma estética branca e asséptica do futuro, onde materiais como vidro e aço traduzem o arrojo e avanço do futuro (GONÇALVES, 2014, p. 87). É um contraste direto à insalubridade e escuridão das cidades industriais. Em THX 1138 (1971) os espaços vazios e neutros mostram a total falta de ornamentação e austeridade do movimento moderno, se materializando em espaços frios, monótonos e desumanos (GONÇALVES, 2014, p. 94). Era uma abstração total do espaço, assim como no Monumento Contínuo, no entanto, enquanto o projeto do Archizoom, por mais ambíguo e crítico que fosse, mostrava cenários em que se parecia ter uma vivência feliz e equilibrada, já nesse filme, essa abstração configura uma distopia.

O próprio monolíto que aparece em 2001 se assemelha, salvo suas escalas, com o Monumento Contínuo e a abstração total do monumento ao passar pelas diversas eras da evolução humana.

As distopias também incorporaram aspectos do totalitarismo e opressão, onde os habitantes de uma sociedade eram rigidamente controlados por um Estado ditatorial e que anulava as liberdades dos indivíduos. Romances como Admirável Mundo Novo (1932) de Aldous Huxley, 1984 (1949) de George Orwell e Laranja Mecânica (1962) de Anthony Burgess traziam essa premissa em suas ficções. No cinema, filmes como Alphaville (1965) de Jean-Luc Godard e Fahrenheit 451 (1966) de François Truffaut usavam cenários urbanos condenados a serem alienados por seus governantes (GONÇALVES, 2014, p. 90).

97.

THX

1138

(1971).

Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/766622/cinema-e-arquitetura-thx-1138>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

diz:

Comentando sobre Fahrenheit 451, Gonçalves (2014, p. 91)

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

58

O espaço urbano representado no filme parece mais uma reminiscência dos subúrbios de uma cidade moderna, com uma arquitetura árida e sem profundidade. Truffaut selecionou edifícios que são arquetípicos da decadência modernista dos anos 60. O conjunto habitacional é retratado sem beleza e humanidade, abrigando as classes mais baixas e os dissidentes do Sistema imposto.

Na adaptação do livro para o cinema, Laranja Mecânica (1971) de Stanley Kubrick usa de uma estética semelhante ao retratar o cenário urbano com um conjunto de edifícios brutalistas de Londres, enquanto a sociedade é controlada por um Estado totalitário. Em Playtime (1967) de Jaques Tati os cenários se apropriam da estética do International Style para mostrar a falência desse modelo em uma sociedade oprimida e alienada. Segundo Gonçalves (2014, p. 92): “Ironicamente, a ideologia modernista que almejava transformar a sociedade por meio da arquitetura, começa a ser associada a uma ideia de futuro desumano, estéril e controlador”.

98.

Fahrenheit

(1966). Disponível em: <http://luziacinemaufpe.blogspot.com/2014/01/fahrenheit-451-1966-francois-truffaut.html>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Durante o período pós-moderno, houve um retorno ao historicismo, negado pelo Modernismo, e com ele uma tentativa de alinhar-se à lógica do capitalismo tardio. Enquanto o Movimento Moderno propunha uma abstração que por vezes era difícil de compreender, agora no Pós-modernismo tínhamos o pastiche historicista, muito mais palatável e de fácil consumo (GONÇALVES, 2014, p. 101-102). Essas estratégias foram usadas como mecanismo de crítica a realidade consumista pelo Archizoom, por exemplo, no projeto das Dream Beds, como já citado.

O autor Philip Dick se apropriou desses pensamentos e concebeu uma realidade em que características heterogêneas se sobrepõe, se materializando em um cenário fragmentado, com uso do kitsch e celebração do consumo e desperdício em sua ficção Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (1968). O livro foi adaptado para o cinema anos depois em Blade Runner (1982) e o filme conta com essa paisagem urbana fragmentada, escura, com elementos pastiche da arquitetura historicista e voltada a uma vivência solitária e anônima. Assim como a exaltação de Las Vegas por Venturi, os anúncios luminosos consomem grande parte do espaço urbano e o cenário resultante é decadente e distópico (GONÇALVES, 2014, p. 103-104).

Grande parte dessas utopias dos anos 60 e 70 e distopias do cinema caracterizaram um momento histórico em que se tentava propor novos caminhos a arquitetura e urbanismo diante da 59

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

99. Blade Runner (1982). Disponível em: <https://funkyjeff77.wordpress.com/2013/04/01/blade-runner-1982-a-complete-analysis/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

crise moderna. Porém, o caráter ficcional dessas propostas, ou por não serem capazes de serem executadas com a tecnologia da época, ou por se tratarem de ideias consideradas muito distantes da realidade, se mostraram incapazes de gerar proposições que saíssem do papel num cenário tão urgente por mudanças.

Mesmo não sendo materializadas, essas propostas se tornaram um importante conglomerado de referências para o pensamento e crítica da arquitetura e urbanismo. Segundo Kamimura (2010, p. 211):

100. A Menina do Napalm (1972). Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com.br/noticias/reportagem/historia-menina-do-napalm-a-iconica-foto-que-revelou-o-horror-da-guerra-do-vietna.phtml>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

E foi sobre arquitetura que tais propostas se debruçaram: através de desenhos, plantas, cortes, detalhes, perspectivas, vistas, montagens, esboços, maquetes; de memoriais, texto-manifesto, exposições, simulações; ainda que fosse a arquitetura “contaminada”, investida das discussões advindas de outras esferas disciplinares, como as da tecnologia e as da comunicação. Nenhum destes projetos pôde ser realizado; estes permanecem, no entanto, registrados no domínio da fantasia ou da especulação, sugerindo, muitas vezes, uma hibridização do próprio real a partir das ficções criadas.

As mudanças político-econômicas da década de 70 e início da década de 80 concretizaram essa mudança do pensamento da arquitetura e urbanismo. Autores como Frederic Jameson cita o ano de 1973 como “o fim dos anos sessenta”. Segundo Jameson (apud KAMIMURA, 2010, p. 210) o período entre 1972 e 1974 foi caracterizado por: 101. Protestos de Maio de 1968 em Paris. Disponível em: <https://revistacult.uol.com.br/home/quarenta-anos-depois/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

[...] golpe político no Chile e a queda de praticamente todos os países da América Latina em ditaduras militares, a retiradas das tropas norteamericanas do Vietnã, o desgaste e a fragmentação do movimento negro e do movimento feminista, o acordo comum entre o Partido Comunista e o Partido Socialista na França, a crise da Nova Esquerda, etc. Mas o marco emblemático parece ser, inevitavelmente, o de ordem econômica: a dura “crise do petróleo”, de 1973-79, de âmbito mundial e que põe um “ponto final à expansão econômica e à prosperidade características do pós-guerra em geral e dos anos sessenta em particular.

Esse período marca a dissolução de inúmeros grupos e término de projetos propostos por arquitetos, como o fim do Archigram (1974), da IS (1972), do Archizoom e Superstudio (1972), abandono do projeto da New Babylon por Constant (1974) e até a decisão de que o Fun Palace já estava ultrapassado por Price (1975).

102. Protestos contrários a Ditadura no Brasil. Disponível em: <https://aventurasnahistoria.uol.com. br/noticias/reportagem/torturas-mortes-e-desaparecimentos-a-constante-ameaca-do-negacionismo-da-ditadura-militar.phtml>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

3.9. AS NOVAS UTOPIAS CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

60

As novas ideias urbanísticas pós-modernas a partir da década de 60, que contrariavam o papel totalitário do arquiteto-urbanista; as já citadas mudanças sócio-políticas das décadas de 70 e 80 e, por fim, a queda do bloco comunista na década de 90, criando a hegemonia capitalista e iniciando o processo de globalização; foram responsáveis pela dissolução da ideia anterior que tínhamos de utopia até então e para o que configura uma utopia contemporaneamente.

Todo esse cenário da segunda metade do século XX direcionou as cidades para as mãos dos interesses do mercado imobiliário (privado) e a ausência cada vez maior da ação do Estado (público), principalmente com o fortalecimento de lógicas neoliberais que ganharam força a partir do fim da década de 80. Sobre as novas possíveis utopias contemporâneas Ricardo Gonçalves (2014, p. 200) comenta:

103. Sombras dos edifícios em Bauneário Camburiú cobrindo a faixa de areia da praia. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/epoca/brasil/balneario-de-camboriu-praia-que-chamou-atencao-do-mundo-por-sombra-de-arranha-ceus-quer-recuperar-sol-24918748>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

(...) os três principais termos que constituem o gênero utópico são: uma crítica social estabelecida; uma proposta de sociedade ideal, e um espaço-modelo que permita que essa sociedade idealizada se desenvolva. Veremos que as propostas discutidas aqui [as utopias contemporâneas] nem sempre desenvolvem uma crítica social, tampouco propõe uma nova sociedade. A maioria delas irá explorar as características morfológicas de uma arquitetura digitalizada, baseada no valor da imagem e no discurso da sustentabilidade.

Com o avanço da computação tivemos uma mudança significativa de como a arquitetura é tratada, não apenas durante sua concepção, como sua própria imagem. Com o surgimento de softwares como o CAD (Computer Aided Design) o processo de representação do desenho arquitetônico se tornou mais eficiente, de modo geral, porém a lógica da relação entre o arquiteto e o instrumento de projeto se mantinha a mesma que antes. Mas com a evolução das ferramentas de trabalho informatizadas e uma tentativa cada vez maior de virtualizar o projeto, surge a plataforma BIM (Building Information Model) que justamente configura um modelo completo do projeto arquitetônico com todas suas respectivas informações de sua construção. Materiais, sistemas estruturais, projetos complementares, detalhes e diversos outros dados compõem agora uma arquitetura virtualizada que servirá como projeto para sua futura construção.

O arquiteto passa a dividir seu processo com o computador, que agora é o instrumento viabilizador de todo o projeto.

61

CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

104. AutoCad 14. Disponível em: <https://www.allanbrito.com/2008/08/06/como-instalar-o-autocad-14-no-windows-vista/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

105. Modelo virutal BIM. Disponível em: <https://www.cimentoitambe.com.br/massa-cinzenta/bim-usado-no-brasil/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Em uma época se articular multiplicada pluralistas, compreendido p. 202).

em que não faz mais sentido a tentativa de um zeitgeist, cada tipologia arquitetônica é num caleidoscópio de tendências efêmeras e tornando o contexto complexo demais para ser por uma visão unificadora (GONÇALVES, 2014,

Uma das vertentes defendidas por Gonçalves seria justamente a utopia do instrumental, principalmente quando se aborda o parametrismo. A parametria ou parametrismo é a associação de dados que geram parâmetros na concepção do desenho e geometrização do projeto. O produto gerado usa da combinação desses parâmetros, muitas vezes chamados de algoritmos, para gerar diversas soluções. Cada variação desses parâmetros gera um resultado diferente do outro. Um exemplo, seria a concepção de uma escada, onde é possível alterar a altura que ela vai vencer, sua forma, rotação, inclinação, altura do corrimão, entre tantos outros fatores.

106. Modelo paramétrico de escada e suas variações. Disponível em: <https://www.instagram.com/p/ CVAXMuBMmNW/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

“Seu modo de produção se baseia em uma industrialização avançada, devido ao seu design que não aceita as limitações de estandardização intrínsecas da produção em massa de elementos da construção civil” (GONÇALVES, 2014, p. 204). O uso de algoritmos não se resumiria apenas à arquitetura, podendo ser usada também no urbanismo, podendo se adequar a diversos ambientes, de acordo com a sua demanda. Com isso, o parametrismo pode englobar as discussões ecológicas, podendo essas serem parte dos parâmetros utilizados.

A arquitetura paramétrica é bastante conhecida por suas formas dinâmicas, que fogem das geometrias mais rígidas e puras, justamente por abordarem uma lógica compositiva mais maleável e dinâmica. No entanto, ela não se resume apenas e exclusivamente a isso. O processo paramétrico pode sim gerar formas mais retilíneas e comuns e ainda assim se utilizar de algoritmos para sua formalização.

O parametrismo passou a ser difundido por Patrik Schumacher, sócio da arquiteta Zaha Hadid, apresentado como um Manifesto Parametricista em 2008 na 11ª Bienal de Arquitetura em Veneza. Ele elege a parametria como um novo estilo a ser defendido e difundido na arquitetura, assim como um novo International Style.

107. The Silo (2017) de Cobe. Disponível em: <https://cobe.dk/place/the-silo>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

A sociedade de massas que era caracterizada por um único, quase universal, padrão de consumo acabou evoluindo CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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para uma sociedade heterogênea da multidão. As principais questões que a arquitetura e o urbanismo de vanguarda deveriam contemplar podem ser resumidas no slogan: organizar e articular a crescente complexidade da sociedade pósfordista. A tarefa é desenvolver um repertório arquitetônico e urbano que esteja preparado para criar espaços complexos e policêntricos, que sejam densamente estruturados e continuamente diferenciados (SCHUMACHER apud GONÇALVES, 2014, p.

202).

A defesa dessa arquitetura como um manifesto a associa bastante a essa lógica modernista, no entanto, ela se diferencia pelos seguintes aspectos: enquanto o Modernismo defendia uma lógica de transformação social a partir de um processo de industrialização total e universal; o parametricismo, por sua vez, ao mesmo tempo que defende uma lógica universalista, também defende uma personalização de seus elementos, não podendo ser levada a lógica de produção industrial em série, assim como defendida pelo modelo moderno. Ou seja, ela é universalista mas ao mesmo tempo não é. Se deseja que ela esteja em todos os lugares, mas sem seguir um padrão.

108. Centro Heydar Aliyev (2013) de Zara Hadid Architects. Disponível em: <https://www.archdaily.com. br/br/01-154169/centro-heydar-aliyev-zaha-hadid-architects>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Como comentado, nem sempre sua formas são fluídas e fora da lógica mais racional, porém seus principais propulsores como a Zaha Hadid e Frank Gehry quase sempre trabalharam com formas mais complexas. Essas obras com volumetrias disformes demandam um alto investimento e, consequentemente, essa utopia de universalidade se torna algo ainda mais complicado de se aplicar.

Com isso ela é elevada ao status de monumento do capital financeiro, evocada para comunicar o potencial econômico de um Estado ou instituição. No entanto, essa fragilidade ficou evidente diante das recentes crises econômicas nas potências europeias, que interromperam sensivelmente o consumo dessas arquiteturas opulentas, fazendo com que o star-system fosse obrigado a migrar para Dubai, China e o sudeste asiático, onde os mercados em expansão vertiginosa e a força de trabalho mais barata permitem a bonança arquitetônica (GONÇALVES, 2014, p. 206).

Ainda assim, seus avanços quanto a experimentação e complexidade da concepção arquitetônica são méritos a serem exaltados na arquitetura paramétrica. Essa tentativa de fugir de um modelo mais corbusiano, com mais curvas e menos rigidez, também era presente na arquitetura de Oscar Niemeyer, arquiteto modernista brasileiro, que trabalhou a forma prismática de ângulos retos moderna para gerar linhas mais orgânicas.

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CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

109. Museu Guggenheim Bilbao (1997) de Gehry Partners. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/ br/786175/classicos-da-arquitetura-museu-guggenheim-de-bilbao-gehry-partners>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

110. Metropol Parasol (2011) de Jürgen Mayer H. Architects. Disponível em: <https://divisare.com/projects/166459-j-mayer-h-arup-hufton-crow-metropol-parasol>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Assim como o parametrismo, Niemeyer também usava da lógica de não diferenciação entre estrutura e fechamento, e os elementos arquitetônicos se mesclam, transformando uma cobertura em parede, parede em piso, pilares em fechamentos, e assim por diante.

Na arquitetura paramétrica muito dessa não distinção se dá no universo digital, porém quando efetuado na realidade sua formalização é de uma malha estrutural que é moldada na forma do projeto. Ela acaba se tornando uma combinação do “pato” e do “galpão decorado” da lógica de Venturi e Scott Brown.

Mas o efeito principal dessa combinação de pato e galpão é a promoção do edifício quasi-abstrato como signo pop ou logotipo midiático. E, nesse ponto, Gehry não está mais sozinho: há todo um bando de “patos decorados” que combina a vontade de monumentalidade da arquitetura moderna com a falsa iconicidade populista do projeto pós moderno (FOSTER, 2016, posição 380).

111. Catedral de Brasília (1970) de Oscar Niemeyer. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/0114553/classicos-da-arquitetura-catedral-de-brasilia-oscar-niemeyer>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

112. Estrutura do Centro Heydar Aliyev (2013) de Zara Hadid Architects. Disponível em: <http://arquitetandomajurie.weebly.com/blogue/exercicio-04>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Segundo Gonçalves (p. 211) há uma relação forma x estrutura x materialidade muito mais verdadeira na arquitetura de Niemeyer do que no parametrismo. Isso porque é como se a construção civil ainda não estivesse desenvolvida o suficiente para traduzir por completo essas arquiteturas no real. Parece faltar um material para a arquitetura paramétrica assim como o concreto foi para a arquitetura moderna. Uma possível solução para isso seria o desenvolvimento das tecnologias de impressão 3D. Hoje já existem inúmeras propostas desse tipo de construção usando diversos tipos de materiais, desde argila até bio-plásticos e polímeros. O uso de estruturas em madeira (desde pranchas recortadas fresadoras CNC, assim como no Metropol Parasol (2011) ou com chapas de CLT que permitem serem curvadas e assumirem novas formas) também é uma possibilidade para o futuro das estruturas parametrizadas.

Depois dessa utopia da instrumentalização teríamos a utopia do espetáculo. Com o avanço da lógica capitalista de aumento na velocidade de consumo, não só os produtos como as ideias e imagens passaram a ser cada vez mais efêmeras. O consumo de imagens passa a ser tão importante, ainda mais na era digital, onde a renderização e fotorrealismo das representações dos projetos arquitetônicos ganham tanto destaque que em certo ponto suprimem a importância do próprio projeto em si.

113. Cabana de leitura impressa em 3D (2021) de Professor XU Weigo’s Team. Disponível em: <https:// www.archdaily.com.br/br/959720/cabana-de-leitura-impressa-em-3d-professor-xu-weiguos-team?ad_medium=gallery>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Diferentemente do poder que a imagem tinha nas propostas CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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utópicas do século XX, a banalização da imagem faz com que seu poder de atração seja instantâneo, sem muitos significados por trás, já que sua leitura é rápida. Isso tudo é uma resposta ao mercado que exige da arquitetura essa representação realista como maneira de hipnotizar os consumidores visto seu enorme potencial de venda.

Um exemplo dessa arquitetura do espetáculo é o escritório criado pelo arquiteto Bjarke Ingels: o BIG (Bjarke Ingels Group). Eles exploram a linguagem pop na representação de seus projetos, usando da imagem como principal meio de se destacar.

O livro Yes Is More, paródia com a frase “Less is more” de Mies Van der Rohe, usa da linguagem de histórias em quadrinhos para manifestar os interesses da produção arquitetônica do BIG.

Sua principal característica se dá pela observação das condicionantes das paisagens urbanas para gerar um projeto que se mesclem com a energia desse entorno oferecendo um uso diverso programático. Essa simbiose com o urbano é traduzida numa volumetria que se torna uma paisagem topográfica artificial.

114. Usina de Energia e Centro de Recreação Urban CopenHill (2019) de BIG. Disponível em: <https://www. archdaily.com.br/br/926163/usina-de-energia-e-centro-de-recreacao-urbana-copenhill-big?ad_medium=gallery>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Podemos notar uma nítida continuidade com as utopias de Friedman e Constant, que promoviam o urban play e a mobilidade para satisfazer os desejos da nova sociedade pós-industrial. Mais ainda podemos identificar uma forte influência das utopias do Archigram, pelo uso da linguagem pop e pela exploração da imagem como comunicador e divulgador de uma arquitetura hedonista, centrada na satisfação dos desejos do Homo ludens contemporâneo. Para Bjarke Ingels, é cidade do futuro é um grande playground urbano para ser explorado em todas as suas dimensões (GONÇALVES, 2014, p.

231-232).

Sua arquitetura é divulgada a partir de 3 caminhos: a primeira são os renders/perspectivas. Ela dá uma visão macro do projeto e ignora o detalhe, aquilo que é da essência física do edifício. Isso acontece muito pelo caráter comercial de sua linha de pensamento. Para grande parte dos clientes, pouco importa como aquilo é executado ou a materialidade do projeto, desde que ele seja estéticamente agradável aos seus gostos.

Essa imagem da arquitetura do “macro”, do espetáculo, compõe a imagem do próprio Bjarke Ingels como o grande empreendedor, o arquiteto-show-man a serviço do business mercadológico. Sua filosofia de trabalho de satisfazer a todos os desejos e interesses envolvidos, por mais contraditórios que possam parecer, auxilia a legitimar sua arquitetura

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CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

115. LEGO House (2017) de BIG. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/880944/lego-house-big?ad_medium=gallery>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

116. Battersea Power Station Malaysia Square (2016) de BIG. Disponível em: <https://big.dk/#projects-bps>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

compromissada com os valores ideais bem como com os valores da sociedade de consumo e do lucro dos empreendedores, sem que haja nenhum constrangimento nisso (GONÇALVES, 2014, p.

234).

O segundo são os diagramas. O BIG faz uso dessa linguagem justamente como método de venda, ou seja, como explicação da lógica da concepção projetual na tentativa de convencer o cliente. Aí está seu grande mérito: é na tentativa de inserir uma arquitetura mais inovadora em um meio tão restrito que é o mercado imobiliário que o BIG ganha seu destaque.

117. Mountain Dwellings (2008) de BIG e JDS. Disponível em: <https://www.archdaily.com.br/br/601342/ mountain-dwellings-slash-big-and-jds?ad_medium=gallery>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

118. Site do escritório BIG. Disponível em: <https://big.dk/#projects>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

119. Masdar City (2009) Foster + Partners e LAVA. Disponível em: <https://big.dk/#projects>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

O terceiro e último seria o uso de ícones. Os ícones em si poderiam ser considerados como diagramas e de fato não deixam de ser. No entanto, para o BIG ele ganha um destaque principalmente por abstrair toda a ideia dos projetos em um único símbolo. Esse ícone ganha força justamente por ser de rápida leitura mas ainda assim ter um papel marcante. O escritório faz uso desses ícones em seu site para apresentar o portfólio de projetos, cada ícone representando um projeto, atrelado a cores de acordo com sua tipologia programática.

Temos também a utopia verde. A discussão sobre sustentabilidade e ecologia se tornou habitual dentro da produção de arquitetura. Nas concepções das Cidade-Jardim de Howard ainda no início do século XX, por exemplo, já podemos perceber uma conceituação embrionária sobre o assunto. Mas é principalmente depois da década de 70 e 80 que o debate sobre a sustentabilidade e os impactos antrópicos na natureza tomou mais força, impactando também na concepção da arquitetura e do urbanismo.

Principalmente na arquitetura mais contemporânea, a tecnologia é vista como a solução na busca de atingir uma arquitetura mais sustentável. Norman Foster é um exemplo de arquiteto que se apropria de diversas tecnologias para trazer aspectos mais eco-friendly a seus projetos. O seu projeto para a Masdar City (2009) exemplifica essa sua tentativa de utopia verde e assim como comenta Gonçalves (2014, p. 248): Ao invés da ambiência natural e da fusão entre campo e cidade defendidas por Howard, Masdar é um ícone da sustentabilidade high-tech, baseada em dados analíticos edirecionada para obter resultados de eficiência energética e redução de carbono. Ao invés do protagonismo da natureza em detrimento do ambiente construído como nas propostas de Howard, a “cidade-jardim” de Foster é mais cidade do que jardim, pois Masdar se utiliza até de “árvores mecanizadas” para gerar CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

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sombra em sua praça central. Com isso ela se aproxima mais da artificialidade tecnocrática almejada por Fuller e da herança high tech dos britânicos do Archigram, reconfigurada com a causa sustentável.

No entanto, com o avanço da discussão sobre a necessidade de construções mais sustentáveis, se inicia um processo de banalização da sustentabilidade e se tornam arquiteturas verdes, porém mais de fachada. O discurso se tornou algo corriqueiro ao ponto de qualquer construção que faça o mínimo, como por exemplo colocar uma placa solar para aquecimento de água, já é vendida como uma construção sustentável. O capitalismo se apropria de um discurso sério, esvaziando seu sentido e o transformando em um adereço apenas.

Por fim, a (dis)utopia do tempo, colocada por Gonçalves como “crônicas do tempo”. Aqui o trabalho do fotógrafo Giacomo Costa ganha um papel de simular cenários onde os centros urbanos são abandonados e suas estruturas, por vezes muito contemporâneas a nós, são destruídas pelo tempo. A natureza vai aos poucos repopulando esse ambiente tão transformado pelo humano, enquanto a arquitetura vai se deteriorando em ruínas.

120. Scena n. 21 de Giacomo Costa. Disponível em: <http://www.giacomocosta.com/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

121. Atto n. 9 de Giacomo Costa. Disponível em: <http://www.giacomocosta.com/>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

Em uma época de histeria digital e generalização da imagem a serviço do espetáculo hedonista, uma visão perturbadora como a de Giacomo Costa pode fornecer uma certa serenidade desconcertante, uma redenção subversiva, contestando o positivismo tecnológico dominante (GONÇALVES, 2014, p. 266).

A utopia e distopia contemporânea é caracterizada pela experimentação formal e imagética do objeto arquitetônico, não havendo a real intenção de mudança social, mesmo que só como proposta de projeto, um projeto crítico-conceitual. Existem, obviamente trabalhos de arquitetos que tentam usar da lógica utópica para criticar ou mesmo caricaturar a situação contemporânea da arquitetura e sociedade. Assim como os trabalhos de Giacomo Costa e os de Victor Sardenberg como o The Slab Stack (2019), Zero Building (2016), Big Fat Dumb Cities for Sale (2016), dentre outros. No entanto, essas propostas parecem não ter tanta divulgação e espaço na produção arquitetônica justamente por não serem voltadas à lógica capital.

122. Big Fat Dumb Cities for Sale (2016) de Victor Sardenberg. Disponível em: <http://victorsardenberg. com/gallery-category/projects/#big-fat-dumb-cities-for-sale>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

123. Zero Building (2016) de Victor Sardenberg. Disponível em: <http://victorsardenberg.com/gallery-category/projects/#zero-building>. Acesso em: 06 de nov. de 2021.

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CAPÍTULO 2: CÉU NUBLADO

CAPÍTULO 3

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3.1. ARQUITETURAS TRANSLÚCIDAS E A ANTI-TECTÔNICA

Vivemos um momento de nublamento da realidade. Na arquitetura, esse fenômeno não seria diferente. Inúmeros edifícios contemporâneos apresentam contornos indefinidos, fachadas de plásticos e resinas que durante o dia permitem a entrada de luz para seu interior sem o revelar por completo, e de noite se tornam lanternas que contornam as silhuetas quase fantasmagóricas que se projetam para fora. Alguns desses exemplos são o Blur Building (2002) de Diller Scorfidio + Renfro, Pavilhão Britânico na Expo 2010 em Xangai de Heatherwick Studio, Instituto Moreira Salles São Paulo (2017) de Andrade Morettin Arquitetos e até o Pavilhão do Brasil para a Expo Dubai de 2020 de Ben-Avid, JPG.ARQ, MMBB Arquitetos.

O movimento moderno nos trouxe a ideia da transparência como sinônimo de verdade e honestidade, porém após o conturbado período das Guerras Mundiais, a descrença a esse ideal tecnocrático fez com que as superfícies transparentes de vidro da arquitetura moderna progressivamente perdessem seu sentido. Assim como comenta Wisnik (2018, p. 5-6):

124. Blur Building (2002) de Diller Scorfidio + Renfro. Disponível em: <https://dsrny.com/project/ blur-building>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Se a profusão de torres de vidros modernas, com seus esqueletos estruturais à mostra, teve um equivalente semântico na difusão dos exames médicos por raio X, que tornaram transparentes as peles e os tecidos humanos, permitindo isolar em imagens as estruturas ósseas dos corpos, os atuais edifícios com fachadas translúcidas, ou semiopacas, nos quais a ossatura estrutural se esfuma, parecem dialogar com o sistema de busca de informações na internet.

A ideia de transparência aplicada em uma realidade dominada por produtos produzidos com materiais sintéticos e que não expressam sua lógica funcional de maneira evidente se torna incoerente e até mentirosa de certa maneira. Após as catástrofes ocorridas durante a Segunda Guerra há um rompimento no pensamento moderno do progresso tecnológico. A transparência, defendida até então como a verdade e honestidade, foi posta em questionamento e, durante as décadas seguintes, as superfícies arquitetônicas foram colocadas em discussão, ganhando uma certa ambiguidade.

Em um texto publicado na década de 60, Colin Rowe e Robert Slutzky discutem a questão da transparência categorizando em 2 tipos: a transparência “literal” e a “fenomenal”. Segundo os autores, a primeira, quando usada, faz com que a estrutura e todo o espaço arquitetônico são manifestados pelo uso do 69

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

125. Pavilhão Britânico Expo Xangai (2010) de Heatherwick Studio. Disponível em: <http://www.heatherwick.com/project/uk-pavilion/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

126. IMS SP (2017) de Andrade Morettin Arquitetos Associados. Disponível em: <https://www.archdaily. com.br/br/883093/instituto-moreira-salles-andrade-morettin-arquitetos/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

vidro e suas aberturas, já a segunda torna a estrutura e o espaço indeterminado a partir do uso de peles que se combinam e se sobrepõem, relacionando-a com as pinturas Cubistas, essa mais valorizada pelos autores.

A partir desse ponto poder-se-ia dizer que Le Corbusier está preocupado sobretudo com as qualidades planares do vidro [transparência fenomenal], enquanto que Gropius se interessa principalmente pelos atributos translúcidos desse material [transparência literal] (ROWE & SLUTZKY, p. 42, 1963).

127. Pavilhão do Brasil para Expo Dubai (2020-21) de Ben-Avid, JPG.ARQ, MMBB Arquitetos. Disponível em: <https://www.mmbb.com.br/projects/fullscreen/94/1/2808>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Assim como comentado por Foster (2016, posição 1561): Favorecer a transparência fenomênica em detrimento da literal parece uma transvaloração menor, mas marcou o momento quando, mais uma vez no discurso arquitetônico, a atenção para com a superfície começou a ser tão importante quanto a articulação do espaço, uma leitura da pele de um edifício, tão importante quanto uma compreensão de sua estrutura. Ou seja, marcou o momento quando, ao menos discursivamente, a arquitetura pós-moderna em sua versão principal tornou-se uma superfície cenográfica de símbolos, tal como foi praticada por Robert Venturi e Denise Scott Brown, entre muitos outros.

Anos depois, durante a década de 90, essa arquitetura das peles translúcidas passou a surgir com mais força no cenário arquitetônico. As questões historicistas e iconográficas da pós-modernidade eram deixadas de lado, mas a noção das fachadas como invólucros se mantinham nessa arquitetura. Apesar de não terem necessariamente um certo apelo menos austero, como a pós-modernidade, elas ainda contrariavam a tentativa de eliminar a separação do interior com o exterior por meio da transparência.

E, ainda que a nova arquitetura dita leve e minimalista reaja ao figurativismo pós-moderno, assim como à estridência das fachadas de vidro espelhado de seus edifícios corporativos, retornando a uma matriz de contenção formal identificada ao moderno, esses edifícios translúcidos não deixam de ser “galpões decorados” com uma roupagem cool (WISNIK, 2018, p. 19).

128. Pavilhão Barcelona (1929) de Mies van der Rohe. Disponível em: <https://divisare.com/projects/ 338931-ludwig-mies-van-der-rohe-maciej-jezyk-barcelona-pavilion>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Essa roupagem cool, como citada, muitas vezes foi e é produzida por materiais de origem sintética. Jacques Herzog, ainda em 1988, já declarava que a compreensão que ele tinha dos objetos do cotidiano, como a televisão e o computador, era de opacidade quanto a sua materialidade e funcionamento. “[...] todos esses objetos me parecem ser uma espécie de conglomerado sintético” (HERZOG apud WISNIK, 2018, p. 43). A esse fenômeno podemos dar o nome de “anti-tectônica”. Para tectônica, vamos CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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usar a definição que melhor se enquadra no sentido dessa discussão: tectônica como “potencial de expressão construtiva” assim como definido por Kenneth Frampton (AMARAL, 2009, p. 4).

A anti-tectônica seria justamente aquilo que não expressa o potencial construtivo. Steve Jobs tinha um apelo anti-tectônico em seus produtos: todas as emendas e marcas de fabricação deveriam ser evitadas para entregar ao consumidor uma impressão de que aquele objeto era algo puro e até mágico.

Mágico justamente pela tentativa de evitar que o consumidor tivesse acesso a parte interna, evitando seu entendimento total.

A arquitetura também se apropriou desse fenômeno e passou a expressar certa desmaterialização, com edifícios liquefeitos e que contrariavam o princípio da solidez que a carecterizou desde a Antiguidade. O plástico teve um papel importante nesse processo e em 1950, Roland Barthes o descrevia como substância alterada, visto que ele, por mais transparente, quase sempre possui uma aparência turva. Justamente quando o consumo passava a crescer, pós Segunda Guerra, o plástico adquire o poder de se transformar nos produtos mais banais.

129. iMac G3 (2000). Disponível em: <https://www.techtudo.com.br/listas/2018/05/imac-original-completa-20-anos-veja-curiosidades-sobre-a-famosa-linha.ghtml>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

[...] com todas essas matérias levíssimas, a relação, que nos era habitual, entre volume e peso: tudo flutua como se nos encontrássemos na estratosfera, fora da lei da gravidade. O polietileno transformou todos em astronautas (ARGAN apud WISNIK, 2018, p. 47).

3.2. JUNKSPACE, BIGNESS E O FIM DAS FRONTEIRAS ENTRE O VIRTUAL E O REAL

130. McDonald’s na década de 90. Disponível em: <https://paranashop.com.br/2020/07/mcdonalds-batel-primeiro-drive-thru-do-sul-do-brasil-completa-30-anos/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A tectônica não foi a única atingida pelas lógicas do consumo. Rem Koolhaas criou um conceito para essas transformações chamado junkspace, que em tradução livre seria algo como espaço-lixo. Essa arquitetura seria o resíduo que a humanidade deixa no planeta, tudo o que sobra.

O junkspace é um mundo dominado por hotéis com paredes de gesso acartonado e redes de fast-food com balcões e mesas revestidas de adesivos vinílicos que imitam madeira ou pedra em cores pálidas, e habitado por pessoas com injeções de botox, implantes de silicone, e emagrecidas por operações de lipoaspiração. Mas não apenas isso. Semelhante a uma descrição do inferno feita por Bosch contemporâneo, o junkspace é, em essência, segundo Koolhaas, um mundo de desconexão e desorientação (WISNIK, 2018, p. 113).

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CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

131. Revista Muscle & Fitness edição de junho de 1989. Disponível em: <http://fitnessemuscle.blogspot. com/2014/01/revista-muscle-fitness-anos-80-e-90.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O junkspace é o mundo dos shoppings centers e aeroportos. Essas arquiteturas agregam um programa denso e complexo e que cada vez mais inclui novos usos. Condomínios residenciais atrelados a shoppings, hotéis, centro de convenções e torres empresariais formando um mesmo complexo multifuncional. Koolhaas define isso como bigness, ou em português, grandeza.

O bigness é essa arquitetura das cidades verticais que são totalmente dependentes da artificialidade técnica de ventilação, iluminação e circulações. São os fat buildings que seu volume corpo fica tão grande que, além da luz e vento não serem mais capazes de atender o interior, suas fachadas não transparecem mais o que podem esconder.

132. Junkspace. Disponível em: <https://valorinveste.globo.com/mercados/renda-variavel/empresas/noticia/2020/03/18/shopping-centers-tem-operacoes-temporariamente-suspensas-no-rio-e-em-porto-alegre. ghtml>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Com isso, não só é rompida a continuidade visual, como a relação entre a arquitetura e a cidade. O interior replica a experiência urbana sem se relacionar com ela própria. Frederic Jameson chama esse descolamento do interior com o meio urbano como hiperespaço interno. Ele cita o exemplo do Hotel Bonaventure (1976) do arquiteto John Portman, que em seu programa, além do hotel, possui um shopping, escritórios e centro de convenções. Suas entradas são pouco destacadas, desconectando o urbano, e sua circulação é complexa e não hierárquica, causando certa confusão a quem se desloca ali dentro.

O uso de elevadores e escadas rolantes, não apenas no Hotel Bonaventure, como em todos esses outros fat buildings colabora ainda mais com o desnorteamento e a percepção espacial, pois suprime o deslocamento natural por um mecânico. Essa arquitetura reflete, mesmo que inconscientemente, a dificuldade de se enxergar e distúrbio do ciberespaço.

Vivemos um momento de pouca clareza. A impressão que temos é a de que um regime geral de baixa definição do pensamento impede que tenhamos entendimentos mais nítidos acerca dos reais embates em curso no mundo atual. [...] Sistemas complexos de gerenciamento e controle operando em escala inédita no planeta, e com o nosso próprio consentimento, já que tudo se passa de forma alheia à nossa compreensão. Baixa definição, nesse caso, quer dizer opacidade (WISNIK, 2018, p. 49).

133. Hotel Bonaventure (1976) de John Portman. Disponível em: <https://rangelplanningdesign.com/r-pad-blog/f/john-portman-bonaventure-hotel-los-angeles-1976>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

No mundo das nuvens digitais, a informação é difusa e complexa. Os algoritmos que coordenam o funcionamento da rede não é pensado para ser entendido pelos seus usuários, mas sim por ele mesmo. A linguagem binária composta pelo uso do 0 e do 1 e suas combinações, que por sua vez é usada na programação, não permite um entendimento claro e direto de todos os que usufruem de seu funcionamento. Seu uso é CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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feito justamente para codificar informações para a leitura da máquina. Segundo Jeffery L. Kosky, esse fenômeno é o global blur, ou o desfocamento global. Mesmo que imaginemos que a internet seja clara e transparente, no fundo, ela não é algo nítido. Assim como compara Evgeny Morozov: [...] ela se parece mais com uma das manchas do teste de Rorschach. Assim, dependendo de quem contempla a imagem, e de qual é a sua agenda política e ideológica, podem variar muito as lições que dali são extraídas” (MOROZOV, 2018, p.

21).

A arquiteta Kazuyo Sejima também comenta que a sociedade da informação é mais próxima ao que não vemos, do que ao que vemos (WISNIK, 2018, p. 9). Essa névoa não se limita apenas ao mundo digital, mas penetra suas fronteiras com o real e as torna cada vez mais imperceptíveis. O vídeo-instalação do artista John Gerrard chamado Western Flag (2017) se trata de uma alta haste fincada em um deserto do Texas que era um importante campo de extração de petróleo. Na parte mais alta da haste, orifícios expelem uma densa fumaça preta que forma uma bandeira.

Para além de todos os seus possíveis significados, o que chama atenção é que, na realidade, o vídeo não retrata uma instalação que aconteceu fisicamente naquele local e sim uma realidade virtual construída por efeitos especiais. A dúvida que fica é justamente a de se o mundo virtual seria apenas um simulacro do mundo real. Assim como Wisnik (p. 53) expõe não se trata disso. Na realidade o ciberespaço já se mescla com a realidade, borrando cada vez mais as fronteiras entre eles.

134. Tokyo Compression n. 82 (2010) de Michael Wolf. Disponível em: <https://photomichaelwolf.com/#tokyo-compression/24>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

135. Uma das manchas do Teste de Rorschach. Disponível em: <https://www.jornalciencia.com/teste-de-rorschach-por-que-vemos-imagens-em-manchas-de-tinta/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

3.3. A NUVEM E HIPERVIGILÂNCIA

O conceito de nuvem que tanto conhecemos hoje surgiu durante a execução de diagramas por engenheiros elétricos, a partir da década de 50. Era um símbolo amorfo usado para reduzir a complexidade de sistemas. Era um artifício para simplificar o entendimento dessa rede e não se preocupar com o que acontecia ali dentro. Quanto mais complexas as redes, mais importante era o uso da nuvem; acabou se tornando uma metáfora (BRIDLE, 2019, p. 15). Hoje ela representa esse sistema que carrega enormes volumes de dados em escala global e que, mesmo que usamos de maneira recorrente, pouco entendemos seu funcionamento.

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136. Western Flag (2017) de John Gerrard. Disponível em: <http://www.johngerrard.net/western-flag-spindletop-texas-2017.html#2017-western-flag-76>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A queda do Muro de Berlim em 1989 não só levantou fumaça de seu material sendo demolido, como uma fumaça ideológica que permeia nossa realidade até hoje. O capitalismo se deu como grande vencedor e poderia então assumir uma escala global, era quase como se fosse algo inerente ao humano, era a única resposta. Robert Kurz, ao contrário, não acreditava que a queda da URSS deveria ser vista como triunfo do capitalismo.

137. Queda do Muro de Berlim em 1989. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/mundo/queda-do-muro-de-berlim-dia-em-que-mundo-mudou-24070411>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

[...] o bloco soviético, na prática, não representava tanto o antípoda do mercado capitalista global, e sim, bem mais, a sua segunda periferia - sendo a primeira o chamado Terceiro Mundo, que já dava sinais de sofrer as consequências da exploração capitalista há bem mais tempo. [...] Seu colapso, portanto, era o sinal do declínio econômico de estados que estavam na margem do sistema mundial de produção de mercadorias, e não fora dele. Declínio que demonstrava nada mais que uma crise sistêmica do próprio capitalismo globalizado, e que deveria se alastrar, segundo a previsão feita por Kurz no raiar dos anos 1990, da margem para o centro (WISNIK, 2018, p. 45).

Associado à já inevitável crise soviética, o acidente de Chernobyl, em 1986, indicou que não existia mais muros ou qualquer outra proteção física que protegesse as pessoas do inimigo. O perigo estava à deriva no ar e o receio não era mais com o diferente que ficava do outro lado, ele era nossa companhia. Ironicamente, nesse mesmo momento, há um aumento do número de condomínios fechados e shoppings centers.

138. Acidente Nuclear de Cherbobyl em 1986. Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/ciencia/ 141908-chernobyl-causou-o-pior-acidente-nuclear-historia.htm>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Se naturaliza um estado de emergência e em 2001, com os ataques terroristas do 11 de setembro a paranoia abre precedente à vigilância contínua. Diversos procedimentos de controle são adotados cada vez mais, desde de o uso de drones até o escaneamento raio x de bagagens e dos nossos corpos. Mesmo dentro desse nevoeiro de incertezas, mecanismos de alta tecnologia são capazes de nos observar com clareza.

A National Security Agency (também conhecida como NSA) dos EUA é responsável por boa parte dessa hipervigilância. O presidente George W. Bush, após os atentados, deu liberdade para a agência espionar as comunicações do país sem precisar de nenhum pedido especial. Essa espionagem incluía telefonemas, e-mails, transações financeiras e outros tantos dados (BRIDLE, 2019, p. 202).

139. Atentados do 11 de setembro de 2001. Disponível em: <https://jornal.usp.br/cultura/o-dia-em-que-a-terra-parou-2/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Anos depois, em 2013, o caso Snowden e o escândalo da operação PRISM voltaram a colocar a NSA na mídia por conta da espionagem que dessa vez envolvia não só seu país, como todo CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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o mundo. De anônimos a Estados, todos eram vigiados e seus dados de diversos servidores de inúmeras empresas do ramo da internet foram coletados. E-mails, áudios, vídeos, imagens e qualquer outra informação que eram compartilhados “privativamente” por serviços da Microsoft, Yahoo, Google, Facebook, Apple e tantas outras eram vigiados pela NSA (BRIDLE, 2019, p.

198-199).

Essas empresas anunciaram que não tinham nenhum envolvimento com o caso e a Apple, especificamente, desde então, vem usando a segurança e privacidade dos clientes como marketing para seus novos produtos. É recorrente em suas apresentações a frase “o dado é processado no próprio aparelho”, ou “o dado não deixa o aparelho”. Talvez isso até possa fazer com a corporação realmente não tenha acesso aos dados dos seus clientes, apesar de haver dúvidas, no entanto pouco sabemos sobre o real potencial de acesso e invasão que a NSA tem.

Apesar de toda a polêmica do caso, pouca coisa realmente mudou. O Senado norte-americano reagiu propondo o Decreto USA FREEDOM, no entanto, pouco alterou os poderes da NSA, que ainda coleta dados por intimações secretas. A espionagem feita por governos não é uma novidade, no entanto, com o avanço tecnológico de coleta e processamento de dados a penetração no que é privado se torna ainda mais fácil.

140. Slide sobre a coleta de dados da operação PRISM. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/ PRISM_(programa_de_vigil%C3%A2ncia)>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Essa imensidão de dados coletados, apesar de mesmo com um processamento monstruoso, não é sempre compreensível. A hipervigilância acaba não sendo tão vantajosa no sentido de gerar novas informações para os departamentos de segurança. A maior das pistas que serviam para evitar ataques terroristas vinham de técnicas investigativas antigas e relatos de informantes e não pela coleta massiva de dados, assim como foi declarado pelo Grupo de Revisão de Tecnologias de Inteligência e Comunicação norte-americano (BRIDLE, 2019, p. 207-208).

O exemplo de São Francisco e o sistema de câmeras de vigilância também é bastante curioso. Por volta dos anos 2000, o número de homicídios em um raio de 75 metros de onde foram instaladas as câmeras caíram, mas cresceram nos espaços onde elas não vigiavam. Não se resolve a real causa dos crimes, só deslocam eles para outros locais.

Nunca quisemos saber de verdade o que havia nas salas secretas, nos prédios sem janelas do centro da cidade, pois a

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141. Base norte-americana da NSA em Harrogate, Reino Unido. Disponível em: <https://theintercept. com/2016/09/06/nsa-menwith-hill-targeted-killing-surveillance/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

resposta não seria nada bonita. Tal como a mudança climática, a vigilância em massa se provou uma ideia muito vasta e desestabilizante para a sociedade enfiar a cabeça. Tal como as conversas constrangedoras - um meio-termo entre piada e pavor - sobre o clima, tornou-se apenas mais um chato zumbidinho de fundo da paranóia na rotina diária de todo mundo (BRIDLE, 2019, p. 205).

3.4. A QUESTÃO DO CLIMA

142. Mapa da NASA mostrando as anomalias na temperatura global entre 2014-2018. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/noticia/2019/02/07/aquecimento-global-decada-pode-ser-a-mais-quente-da-historia-diz-agencia-britanica.ghtml>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O zumbido sobre o clima também é uma constante. Cada vez mais fenômenos naturais catastróficos causados pela devastação do ambiente acontecem e, concomitantemente, menos parece ser possível parar a aceleração para um fim apocalíptico. Mesmo com encontros de grandes potências mundiais para discutir a temática e decidir estratégias há décadas, a capacidade de ação parece ser limitada ou ineficiente. Em agosto de 2021, várias plataformas midiáticas noticiaram que o aquecimento global acelera com consequências sem precedentes.

Assim como Berardi discorre (2019, p. 133): “Na realidade, todos sabem muito bem que o crescimento econômico impõe uma exploração cada vez mais devastadora dos recursos do planeta e uma devastação crescente do ambiente”. Timothy Morton descreve o aquecimento global como um “hiperobjeto”, ou seja, algo que está ao nosso redor e é complexo demais para a visualização do inteiro.

Como as mudanças climáticas, a internet e a radiação nuclear também são hiperobjetos e uma das características principais deles é que podemos perceber sua existência a partir da influência que eles exercem nas coisas. No caso dos problemas climáticos: o derretimento das calotas polares, aumento dos níveis dos oceanos, toneladas de gases tóxicos liberados na atmosfera e tantas outras ações antrópicas maléficas ao ambiente.

143. Notícia sobre as alterações climáticas. Disponível em: <https://g1.globo.com/natureza/aquecimento-global/noticia/2021/08/09/influencia-humana-e-responsavel-por-alta-de-107c-na-temperatura-global-estima-relatorio-do-ipcc-orgao-da-onu.ghtml>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Smartphones, computadores e data centers geram calor durante seu funcionamento e com o aumento das temperaturas, cada vez mais energia é necessária para resfriá-los e mantê-los funcionando. O aumento da umidade e das chuvas interferem diretamente na eficácia do transporte de dados por espectro eletromagnético e reduzem seu alcance. Segundo Bridle (2019, p. 75) até o ano de 2015, os data centers do mundo consumiam cerca de 3% de toda a energia mundial.

Se espera que em uma década essa quantidade de energia CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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triplique e, só no Japão, as necessidades de energia para esses serviços digitais podem superar a geração total atual do país até 2030 (BRIDLE, 2019, p 75-76). As criptomoedas também são responsáveis hoje por um maciço uso de energia visto que seguem um sistema de processamento de transações em rede de computadores. Segundo dados do site Cambridge Bitcoin Electricity Consumption Index, no dia 12 de maio de 2021, o pico de energia consumida foi de 483,42 bilhões de kWh. Se, com esse valor, o Bitcoin fosse um país, ele ocuparia a 10ª posição em consumo de energia, ultrapassando a França com 450,8 bilhões de kWh, segundo dados do site Index Mundi.

A concentração de dióxido de carbono (CO2) também é preocupante: em altas quantidades ele prejudica a capacidade de pensamento humana. Com a concentração de 1000 ppm de CO2 a cognição humana caí em 21% e em escolas na Califórnia e no Texas, ainda em 2012, já era possível medir concentrações de 2000 ppm (BRIDLE, 2019, p. 88). A nuvem das condições climáticas e do digital tomam conta do mundo.

144. Gráfico com o consumo de eletricidade pelo processamento do Bitcoin. Disponível em: <https:// cbeci.org/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

3.5. O PROCESSO DE CIBORGUIZAÇÃO DO CORPO E PSICOPATIAS

Por mais etérea que possa parecer, ela não é irreal.

Ela tem forma e não é invisível. É a infraestrutura física: cabos submarinos, data centers, antenas e quilômetros de fibra óptica dispersos ao redor de todo o globo. Essa descentralização das infraestruturas da rede pode ser considerada como um resquício das Guerras, uma forma de evitar alvos fixos de bombardeios. Porém, a máquina não se limita apenas ao exterior de nós.

Durante o passar do século XX, a máquina foi se invisibilizando e interiorando. Segundo Kevin Kelly, “a conexão de rede é destinada a instituir uma espécie de superorganismo bioinformático no qual se concatenam elementos orgânicos, biológicos, eletrônicos e cognitivos em um continuum cujos componentes não podemos mais distinguir” (BERARDI, 2019, p. 126-127).

Esse processo de certa simbiose com partes eletrônicas e nossos corpos nos inserem em um processo de ciborguização, bastante comentado por Donna Haraway por exemplo. “Híbrido de carne e conexão” como declarado por Giselle Beiguelman (WISNIK, 2018, p. 53).

Quantas informações escondidas em códigos QR que apenas as câmeras dos nossos celulares são capazes de ler?

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145. Data center em Covilhã, Portugal. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/economia/oi-portugal-telecom-alinham-operacoes-estrategias-comerciais-10092054>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Quantos caminhos até certo local precisamos de serviços de satélite pois nossa cognição já limita o entendimento dos espaços? Certamente, esses aparelhos ainda não fazem parte fisicamente dos nossos corpos, mas já interferem no funcionamento do mesmo. Mas, por exemplo, quantos procedimentos médicos que inserem mecanismos e produtos estranhos para nossos organismos já existem hoje? Desde cirurgias plásticas até marcapassos, somos cada vez mais ciborgues.

146. Pagamento via PIX com leitura de código QR. Disponível em: <https://cndl.org.br/varejosa/voce-ja-sabe-como-funciona-o-qr-code-do-pix/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A capacidade de registrar cada aspecto de nosso cotidiano se assenta por fim na própria superfície de nosso corpo, o que nos persuade a sermos otimizados e atualizados como nossos aparelhos. Pulseiras smart e apps de smartphone com contadores de passos integrados e monitores de reação galvânica na pele acompanham não só nossa posição, mas cada respiração e cada batimento cardíaco, até nosso padrão de ondas cerebrais (BRIDLE, 2019, p. 151).

Mesmo que não entendendo completamente o funcionamento e potencialidades dessas tecnologias, as associamos ao nosso funcionamento biológico e as introduzimos na base da hierarquia de necessidades de Maslow. Essa pirâmide proposta por Abraham Maslow indica 5 níveis de necessidades humanas e a base é composta pelas necessidades fisiológicas, as que são de primeira importância para nosso funcionamento: respiração, comida, água, sexo, sono, homeostase e excreção. Para cada uma dessas, temos, pelo menos, um app para controlar os dados relacionados.

147. Realidade aumentada em carro desenvolvida pela Wayray Navion. Disponível em: <https://www.nbcnews. com/mach/science/4-surprising-ways-augmented-reality-will-revolutionize-your-life-ncna830911>. Acesso

148. Pirâmide de Maslow. Disponível em: <https://blog.opinionbox.com/piramide-de-maslow/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

É criada uma dependência para com esses aparelhos, hoje principalmente o smartphone, que carrega um histórico imenso de dados que precisam ser atualizados constantemente, tanto para a comunicação, como para as necessidades mais banais. É quase que uma necessidade de sobrevivência em tempos de tecnociência e economia digital. Nossa atenção é dividida por inúmeras erupções de novas informações. Segundo Byung-Chul Han (WISNIK, 2018, p. 75): Pois a atenção dispersa, na forma das atividades multitarefa, não é um progresso civilizatório, argumenta Han, e sim um retrocesso, equivalente ao do animal que realiza suas atividades sempre alerta ao regime da sobrevivência, atento a um predador que pode golpeá-lo por trás, por exemplo. Assim, diante do sentimento atual de transitoriedade e superficialidade da vida e do mundo, reagimos com a histeria hiperativa da produção, como uma forma de terapia ocupacional. Mas a pura inquietação gerada pelo excesso de informações e de estímulos é estéril. E, ao diminuir a atenção profunda, coloca-se em xeque o lugar social da cultura do pensamento, que é também, no plano CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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individual, o lugar da constituição psíquica do sujeito.

Inundados de informações, nos sentimos angustiados com uma infinidade de questões a responder, a sensação de perder o controle diante de tanto é constante. Han ainda considera que, enquanto o século XX foi a era bacteriológica, o século XXI é caracterizado pela era neural. As nossas doenças contemporâneas giram em torno das psicopatias como a ansiedade, depressão, burnout, transtorno de déficit de atenção e muitas outras.

Cada vez mais fármacos para esses transtornos neurais se tornam mais banais, quase como que necessários para sobrevivência.

O caso dos hikikomori no Japão é símbolo dessa realidade. Segundo Berardi (2019, p. 145): “Hikikomori é aquele que vive por muito tempo em condições de permanente reclusão no espaço superconectado do próprio quarto. Não sai para encontrar pessoas [...] os pais, com os quais não tem nenhum tipo de relação, lhe trazem comida”. Apesar de ser um fenômeno japonês conhecido, é possível criar paralelos com formas parecidas de viver em todo o mundo atualmente. Grande parte das pessoas, principalmente os mais jovens, se isolam do mundo real e da frustração que ele pode gerar.

149. Hikikomori. Disponível em: <https://www.megacurioso.com.br/estilo-de-vida/116547-hikikomori-o-fenomeno-japones-que-ja-afeta-pessoas-no-mundo-todo.htm>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O sono também é outra questão que interfere diretamente no estado psicológico e físico de nossos corpos. A hiperexcitação que recebemos diariamente cria um sono cada vez mais precário. Ele é corriqueiramente visto como um empecilho, um defeito que nossos corpos não foram capazes de superar ainda.

Assim, se o sono representa um repositório de descanso e da escuridão em nossas vidas, um momento de regeneração do corpo e da mente, de metabolização dos acontecimentos do dia e, portanto, de uma pausa que remete ao tempo cíclico das estações e da alternância entre dia e noite, o regime 24/7, segundo a descrição de Crary, representa, ao contrário, a introjeção de um tempo contínuo, homogêneo e iluminado, de trabalho e consumo sem pausa e sem limites, marcado pela indiferença e pela disponibilidade absoluta, alimentada pela superabundância de serviços e de imagens (WISNIK, 2018, p. 79).

3.6. A PRECARIZAÇÃO DO TRABALHO E A ECONOMIA COMPARTILHADA

As precariedades não se limitam apenas ao psíquico, abrangem a questão do trabalho. Durante as reformas neoliberais a partir da década de 1980, novas formas mais flexíveis de trabalho substituíram as antigas gestões empresariais. Nesse processo, muitas garantias que tinham sido conquistadas pelos 79

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

149. Monitoramento de sono em dispositivos móveis da Apple. Disponível em: <https://www.showmetech.com. br/watchos-7-confira-5-novidades-do-apple-watch/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

trabalhadores foram trocadas por um modelo mais autônomo e que parecia indicar uma maior liberdade. “Atomização dos direitos coletivos em nome da emancipação individual” (WISNIK, 2018, p. 67). Com o suporte das novas tecnologias digitais, a ideia do “empreendedor de si mesmo” se tornou ainda mais viável.

A Amazon é um exemplo clássico dessa condição. Os seus grandes armazéns são organizados de acordo com a logística da “alocação caótica”. Ela recebe esse nome pois é caótica para a lógica humana, mas faz total sentido para a máquina. Os operários que são encarregados de buscar esses produtos são guiados por computadores portáteis, sempre pensando na menor distância a ser percorrida. Esses aparelhos também servem para monitorar os trabalhadores, punindo-os com a retirada de “pontos”, ou seja, salário, em caso de atrasos e/ou quebra de ritmo de serviço, evitando encontro entre funcionários.

150. Greve dos entregadores de aplicativo. Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/07/03/ entregadores-de-aplicativos-marcam-nova-greve-para-12-de-julho>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Há relatos de funcionários que usam fraldas para, sequer, parar para ir ao banheiro. Com isso, a empresa garante um afastamento entre funcionáios e dissolução de possíveis organizações trabalhistas, como greves e sindicatos. Eles são reduzidos a algoritmos que os guiam para realizar seu serviço que também serão substituídos por máquinas dentro de alguns anos.

Para chegar lá, os funcionários têm de pegar ônibus particulares que custam até dez libras por dia - mais do que uma hora de trabalho - para entrar em turnos que podem começar antes do sol nascer ou depois da meia-noite. Alguns operários começaram a dormir em barracas na floresta próximo ao depósito, onde as temperaturas no inverno com frequência ficam abaixo de zero. Só assim tinham como chegar ao trabalho, e a tempo, sem que seu salário fosse automaticamente reduzido pelos sistemas de rastreio do depósito (BRIDLE, 2019, p. 137).

151. Armazém da Amazon em favela no México. Disponível em: <https://g1.globo.com/economia/noticia/2021/09/13/o-controverso-armazem-da-amazon-no-meio-de-favela.ghtml>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Outro fenômeno do capitalismo digital é a “economia compartilhada”: as pessoas passam a não sentir mais a necessidade de ter bens materiais e propriedades, agora tudo pode ser compartilhado por meio de aplicativos a qualquer momento que precisarem. Para que comprar e manter um carro se é possível pedir um Uber quando precisar se deslocar? Para que comprar uma casa se é possível variar entre diversas oferecidas mundo a fora pelo Airbnb? Para que comprar e acumular inúmeros discos físicos se eu posso acessar uma biblioteca infinita de músicas a qualquer momento no meu smartphone pelo Spotify?

A

noção

de

propriedade

é

substituída

pelo

acesso.

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Toda aquela mercadoria que foi adquirida e que acaba potencialmente se tornando um capital morto agora pode ser reintroduzida na economia e torna-se novamente um bem rentável. Muito se compara o poder de compra de jovens entre 20 e 30 anos em décadas passadas e o de agora: as novas gerações são vistas como pouco materialistas e mais eco-friendly. No entanto, não é a necessariamente a falta de vontade de consumir, mas sim uma crise do próprio sistema.

O número de desempregos de jovens, o aumento exorbitante de inúmeros bens como as moradias próprias e a manutenção de carros criam um cenário perfeito para a economia do compartilhamento. Não se deixa de ter acesso mesmo com todo problema econômico. Além disso, a economia compartilhada é vendida como mais ecológica: enquanto você divide o transporte com outras pessoas e usa canudos de metal, as mega corporações seguem sugando diversos recursos naturais e o agronegócio queima hectares de florestas e paisagens naturais.

A economia compartilhada faz com que a crise financeira que vivemos se torne algo mais suportável, maquiando as reais causas. O acesso a esses bens por meio dessas novas “empresas-aplicativo” pode ser considerado como capitalismo de plataforma. O nome vem justamente da ideia desses aplicativos serem apenas uma plataforma que apenas faz a conexão entre consumidor e vendedor. Essas empresas não precisam contratar efetivamente quem trabalha para eles, só dão o meio para que essas pessoas trabalhem.

152. Arte urbana em São Paulo. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2021-09-01/ameaca-de-apagao-inflacao-e-crise-politica-o-campo-minado-para-a-retomada-economica-do-brasil.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Primeiro, são empresas com um valor de mercado extraordinário, mas que apresentam um balancete estranhamente minguado: a Uber não precisa empregar nenhum motorista, tampouco o Airbnb precisa adquirir propriedades. Segundo, em vez de respeitarem uma legislação precisa e rigorosa, que explicite os direitos dos clientes e as obrigações dos provedores do serviço - um dos pilares do Estado regulador moderno -, os operadores da plataforma recorrem ao conhecimento amplamente distribuído dos participantes do serviço, contanto que o próprio mercado penalize aqueles que se comportam mal (MOROZOV, 2018, P. 57).

3.7. FAKE NEWS E PÓS-VERDADES

Mesmo com o nublamento, temos a hipervisibilidade. “[...] parte importante da população mundial tem câmeras fotográficas no bolso e acesso imediato à postagem das fotos que produz” (WISNIK, 2018, p. 87). A nitidez das imagens atinge níveis cada vez maiores 81

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

153. Fome no Brasil durante a pandemia de COVID-19. Disponível em: <https://www.brasildefato.com. br/2021/04/05/brasil-tem-19-milhoes-de-pessoas-passando-fome-em-meio-a-pandemia>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

e as nossas incertezas parecem diluir. Temos então uma dualidade: De um lado, uma opacidade em relação à compreensão geral das coisas, à nossa capacidade de nos situarmos individual e coletivamente em um sistema-mundo globalizado que se tornou impalpável e especializado demais. De outro, uma nitidez excessiva no trato mais objetivo e cotidiano com as informações, promovida pelo aumento da acessibilidade, da proximidade e da ubiquidade (WISNIK, 2018, p. 89).

154. Homepage do Google em 1998. Disponível em: <https://www.blogdainformatica.com.br/30-anos-de-www-veja-20-sites-da-decada-de-90-e-2000/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Por herança iluminista, temos por verdade que quanto mais informação, melhores as decisões. Essa lógica é aplicada a sua enésima potência na internet e nas nuvens digitais que conduzem uma enchente de dados que, ao contrário do que se imaginava, não traz (apenas) coerência à nossa realidade. Narrativas ultra simplificadas, teorias conspiratórias e política antiética tornam aquilo que era pra ser clareza em opacidade. James Bridle defende justamente essa ideia. É em torno dessa contradição que gira a nova idade das trevas [...] As trevas sobre as quais escrevo não são trevas literais, tampouco representam ausência ou oclusão do conhecimento, como afirma a visão popular da idade das trevas. Não é uma expressão de niilismo nem de desesperança. É, isso sim, uma referência tanto à natureza quanto à oportunidade da crise presente: a aparente incapacidade de enxergar com clareza o que está a nossa frente e agir de forma significativa, com mobilização e justiça, no mundo - e, reconhecendo essas trevas, buscar novas maneiras de ver sob outra luz (BRIDLE, 2019, p. 19-20).

A internet nos dá acesso a um acervo que ultrapassa qualquer biblioteca física. As respostas a diversas coisas estão ali na nuvem prontas para o acesso, mesmo que elas não sejam as mais corretas. Diante dessa vastidão de informações, nosso processo de entender o complexo, gera a necessidade de mais, o que só deixa todo o entendimento ainda mais opaco. É nesse ambiente que floresce a “pós-verdade” e as fake news.

155. Fake news sobre a “mamadeira erótica” que circulou durante as campanhas eleitorais de 2018. Disponível em: <https://www.e-farsas.com/e-verdade-que-o-pt-de-haddad-distribui-mamadeira-erotica-nas-escolas.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Mesmo com aparelhos de som e imagem incrivelmente potentes, com um nível absurdo de nitidez, o aparato técnico também abre caminho para manipulação desses materiais, também com a mesma clareza. Se torna cada vez mais difícil distinguir aquele produto real do digitalmente manipulado, distorcendo a realidade e abrindo precedente para tornar mentiras em verdades.

As pós-verdades criadas são protegidas de questionamento pois são difundidas por meio de autoridades da própria plataforma digital. Quando uma informação se encontra CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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em sites como o YouTube, Facebook, ou difundida por grupos do WhatsApp, ela parece ser algo confiável, ainda mais quando direcionadas a grupos de pessoas que são mais propensos a acreditar nelas. As bolhas sociais que surgem no contexto das redes sociais favorecem a proliferação de qualquer informação que coincida com os interesses dos membros daquele grupo.

Os algoritmos evoluem para simplificar a narrativa das histórias, entregando cada vez mais notícias que interessem ao perfil de pessoa que vai se interessar e difundir aquela história, independente da sua veracidade. Fazendas de robôs são montadas para bombardear os feeds de notícias com o intuito de embaçar mais a discussão política, muito além de apenas tentar mudar a opinião das pessoas.

Na eleição dos Estados Unidos, trolls russos postaram a favor de Clinton, Sanders, Romney e Trump, assim como as agências de segurança russas parecem ter tido um dedo em vazamentos contra os dois lados. O resultado é que primeiro a internet e depois o discurso político mais amplo ficam maculados e polarizados. Como descreveu um ativista russo: “A função é contaminar, criar uma atmosfera de ódio, deixar a coisa tão fétida que a gente normal não vai querer nem chegar perto” (BRIDLE, 2019, p. 267-268).

Quando o cidadão comum tenta acompanhar esses casos se depara com uma rede infinita de conexões entre o poder, corporações de dados, manipulações obscuras, fundos de capital e fontes de informação dispersas, que servem mais para confundir seu entendimento. Se forma um ruído na comunicação que gera mais confusão ainda. Depois dos casos que envolveram o Brexit, as eleições norte-americanas de 2016 e, porque não, as eleições brasileiras de 2018, inúmeros bots de origem desconhecida foram responsáveis por contaminar a discussão pública sobre os assuntos. A democracia passa por um momento delicado quando os seus participantes não são detectáveis e nem se quer existem como pessoas, porém seus efeitos na sociedade ficam cada vez mais evidentes.

Fato é que as fake news não são coisa nova. Elas sempre existiram de uma forma ou outra, no entanto, elas encontraram no meio digital uma forma de dispersão rápida e eficiente: rápida por poder ser compartilhada inúmeras vezes em poucos segundos e eficiente pela crença na verdade e nitidez que temos com a tecnologia e seus meios de comunicação. Além disso, elas se adequam ao formato de negócio no meio digital que é baseado em visualização e cliques, 83

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

155. Jair Bolsonaro, eleito presidente do Brasil em 2018. Disponível em: <https://oglobo.globo. com/epoca/brasil/especialistas-em-epidemias-apontam-erros-de-bolsonaro-no-uso-de-mascara-em-coletiva-24314199>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

156. Donald Trump, eleito presidente dos EUA em 2016. Disponível em: <https://www.bbc.com/portuguese/ brasil-55580191>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

157. Manifestação a favor do Brexit em 2018. Disponível em: <https://www.istoedinheiro.com.br/may-alerta-conservadores-para-risco-de-se-opor-a-acordo-do-brexit/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

é assim que as plataformas digitais ganham seu dinheiro.

Nossa confiança nos meios de comunicação é tanta que entregamos a eles mesmos o papel de identificar e denunciar essas fake news. Inúmeras redes sociais, principalmente as do Facebook (que foram responsáveis por grande parte da difusão dessas pós-verdades) criaram mecanismos para averiguação de notícias e o Twitter sempre pergunta se você quer ler o artigo primeiro antes de dar retweet em alguma notícia.

158. Aviso antes de compartilhar alguma notícia sem ler a matéria no Twitter. Disponível em: <https:// propmark.com.br/digital/twitter-faz-alerta-para-usuario-ir-alem-do-titulo-das-noticias/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

159. Protestos de supremacistas brancos em Charlottesville, EUA. Disponível em: <https://www.bbc.com/ portuguese/internacional-40910927>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Nos últimos anos vários países tentaram de maneira falha lutar contra a difusão dessas inverdades, tentando mirar em alvos que pouco ou nada tem a ver com sua fonte. Na Espanha se pensou em proibir o uso de memes, na Itália se pensou em criar comissão para averiguar as notícias e na Alemanha multas a quem divulgá-las. No entanto, pouco esforço se faz para com o capitalismo digital e a regulação das corporações envolvidas.

As causas da eleição de representantes de uma extrema direita nacionalista nos EUA e no Brasil e de movimentos de mesmo cunho como o Brexit são atribuídos aos preconceitos de grande parte da população, mas pouco se questiona o porque estamos vivendo um crescimento de movimentos extremistas de cunho racista, machista, LGBTQIA+fóbico e outros.

Além disso, se nega também a crise da confiança no conhecimento especializado, principalmente no meio da mídia tradicional. Movimentos anti-vax, comuns nos EUA, se tornam cada vez mais comuns no Brasil por conta da vacina contra a Covid-19. O país, que era símbolo de eficientes campanhas de vacina, agora é governado por um presidente negacionista e discussões sobre a presença de fetos na composição das vacinas.

Quando thinktanks aceitam de bom grado o financiamento de governos estrangeiros; quando empresas de energia financiam pesquisas questionáveis sobre as alterações climáticas; quando até a rainha [...] questiona a profissão dos economistas como um todo; quando a mídia usualmente acata ordens vindas de agências de relações públicas e assessores políticos; quando reguladores financeiros e comissários europeus largam seus empregos para trabalhar em Wall Street - poderíamos mesmo culpar os cidadãos por estarem céticos com relação aos “especialistas”? (MOROZOV, 2018, p. 185).

160. Manifestação contrário a vacinação contra Covid-19. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/ blog/noblat/de-se-a-bolsonaro-o-que-ele-tanto-se-esforca-por-merecer/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A impressão de extrema liberdade que a internet nos causa é fonte para a emancipação intelectual da população que antes “era alienada por mídias centralizadas e corruptas”. Se sente CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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que a rede é responsável por difundir as “grandes verdades ocultas” que antes não eram capazes de serem divulgadas porque quem estava no poder não queria que soubéssemos. No fim, as elites econômicas e políticas seguem achando soluções para as fake news que nada falam sobre suas reais causas, assim como para as alterações climáticas, sendo que ambas são fruto do capitalismo.

3.8. BIG DATA E A LIBERDADE DIGITAL

A ideia de que os computadores e a internet são instrumentos de nitidez e emancipação dos seus usuários é contradita com a concentração do poder na rede pelas corporações. A opacidade e complexidade do meio deixa tudo mais difícil de ser lido e a computação é vista como entidade apolítica. As informações circulam em enormes volumes e em alta velocidade, gerando uma falta de real consciência, automatismos e diminuição no poder de decisão.

Os atritos entre o mundo físico e o digital são, de fato, eliminados com a evolução para tecnologias contactless, enquanto os bancos de dados são arquivados por sistemas centralizados que afastam o nosso poder de controle sobre eles. As corporações da área da tecnologia rompem nossa capacidade de pensar outros modelos de organização da infraestrutura digital e, cada vez mais, a internet se opõe a sua ideia original de independência, dispersão e liberdade.

161. Pagamento contactless. Disponível em: <https://www.comparaonline.com.br/blog/financas/contactless-saiba-mais-sobre-essa-nova-forma-de-pagamento/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Os códigos e algoritmos das corporações tornam diversas atividades cotidianas dependentes. Os trabalhos são automatizados por sistemas digitais e somos articulados pela conectividade. O fenômeno do home office durante a pandemia do Covid-19 mostrou não só a necessidade econômica de não parar mesmo em momentos de crise intensa, mas nossa dependência dos sistemas das grandes corporações, se ela ainda não tinha ficado clara.

O perigo da ênfase na coprodução do espaço físico e cultural por parte da computação é que esta, por sua vez, oculta as vastas desigualdades de poder das quais depende e que reproduz. A computação não só incrementa, enquadra e molda a cultura; ao agir de modo subjacente à sua consciência cotidiana e casual, ela se torna cultura (BRIDLE, 2019, p. 50).

Esse processo de automação sobressalta o pensamento digital à nossa própria experiência. Elas são diretas e 85

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

162. Notícia sobre o acúmulo de serviço. Disponível em: <https://revistapegn.globo.com/Economia/noticia/2021/08/trabalhadores-nos-eua-usam-home-office-para-ter-dois-empregos-ao-mesmo-tempo.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

assertivas, sem deixar brecha a qualquer dúvida ou incertezas da cognição humana. Para complicar ainda mais a situação, a confiança nas instituições públicas se encontra em queda, o que facilita qualquer organização paralela parecer o modelo perfeito. Então, principalmente as redes de comunicação e informação, passam para o setor privado. A privacidade se torna uma mercadoria nas mãos das corporações, principalmente as 5 maiores que dominam o mercado: Amazon, Apple, Google, Facebook (agora Meta) e Microsoft.

163. Grandes corporações do Big Tech. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/10/04/ internacional/1570189971_000536.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Mesmo com inúmeras startups surgindo, grande parte delas focam justamente em se tornarem sucesso para serem então adquiridas por essas grandes empresas. A situação em que se encontram, após coletarem uma quantidade assustadora de dados a baixo custo, é de competitividade com o próprio sistema governamental. Elas têm em suas mãos uma fonte de capital imensa e pronta para ser vendida para os próprios governos.

Evgeny co sobre a

Morozov “emancipação

discorre predatória”

um (2019, p.

pou171):

O paradoxo no cerne desse modelo é que nos tornamos cada vez mais enredados nas redes políticas e econômicas tramadas por essas empresas, mesmo quando cumprem um conjunto de promessas emancipatórias anteriores. Elas de fato nos oferecem um pouco de liberdade, mas isso só se dá ao preço de uma escravidão maior.

164. Jeune fille à la fleur (1967) de Marc Ribound. Disponível em: <https://esquerdaonline.com. br/2018/05/24/quais-sao-mesmo-os-significados-dos-maios-de-68-dos-nossos-ontens-nossos-hojes-e-dos-nossos-amanha/20vietnam-march1-jumbomarcribaud/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Trocamos produtos ou serviços pelos nossos dados. Muito dessa situação se dá pelo conceito de emancipação que temos no século XXI, que é justamente a liberdade de escolha dentro do mercado global.

O futuristas digitais do final do século XX visavam o livre acesso à informação e o aumento da sociedade virtual. Os EUA, mais especificamente a Califórnia, foi o maior propulsor da cibercultura nesse período (e ainda é hoje por meio do Vale do Silício). Com apoio de ideologias como o new age e a contracultura, o ciberespaço prometia um novo modo de vida para a vida no pós-guerra. Para escapar das opressões das burocracias do Estado era preciso comprar a emancipação no mundo da tecnologia.

165. Steve Jobs na década de 80. Disponível em: <https://veja.abril.com.br/tecnologia/ex-de-steve-jobs-conta-detalhes-de-sua-dificil-relacao-com-o-fundador-da-apple/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Steve Jobs é um símbolo desse movimento, que, por meio de seus produtos tecnológicos, se opunha ao sistema e enfrentava o poder. Os primeiros produtos da Apple de fato tinham um potencial de modificação que foram se perdendo com o tempo, CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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enquanto eles se tornam mais fechados e invioláveis. A Europa, por sua vez, sempre teve um histórico com hackers ligados às questões políticas durante as décadas de 60 e 70, realizando diversos atos de protesto. Essa própria cultura cibernética vista como propulsora de revoluções políticas pode ser vista claramente no capítulo anterior e as utopias de arquitetos europeus desse período.

No entanto, nos Estados Unidos, os serviços de defesa sempre estiveram associados ao desenvolvimento da cibercultura. Por mais que existissem alguns movimentos hackers que lutassem em questões políticas, burocráticas e tecnocráticas no país, grande parte de seu pensamento cibernético se deu em torno da associação com o próprio sistema.

A revista Wired, símbolo da propagação da cibercultura nos EUA, o pensamento da cultura digital sempre esteve atrelado ao pensamento neoliberal, sendo que esse último foi cada vez mais tomando conta da lógica do que viria a ser o ser virtual. O surgimento da World Wide Web foi um marco importante para a difusão da utopia virtual, que em poucos anos fez sua perspectiva mudar para uma possível distopia.

A Microsoft, com o Windows 95, lançou o seu antigo navegador Internet Explorer.

Isso representava que uma empresa agora seria responsável por dar e, de certa forma, controlar o acesso à comunicação.

166. Capa da revista Wired em junho de 1997. Disponível em: <https://www.wired.com/story/favorite-25-covers/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A Microsoft ganhou a concorrência no mercado da informática porque teve a capacidade de impor seus percursos. E o melhor modo de impor um percurso é tornar o acesso quase imperceptível, quase inconsciente, quase automático (MOROZOV, 2019, p. 121).

O ciberespaço então, cada vez com o acesso mais facilitado pelas empresas, se torna “uma alucinação experimentada cotidianamente por bilhões de mentes em todo lugar.” segundo William Gibson (apud BERARDI, 2018, p. 102). Essa junção de mentes dá princípio a uma rede neural que privilegia alguns, visto que grande parte desse “pensamento em enxame” internaliza automatismos, podendo guiar alguns comportamentos de grandes massas.

A ideia da aldeia global não se desenvolveu e ela acabou parcelada pelas empresas de tecnologia e agências de espionagem. O futuro passa a ser visto como uma ameaça, visto que se torna cada vez mais difícil imaginar alternativas 87

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

167. Internet Explorer no Windows 95. Disponível em: <https://medium.com/@snoffeecob/bringing-internet-explorer-4-0-to-life-on-wind ows-95-in-2019-84d030b75643.>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

para escapar de automatismos impostos ao sistema de maneira geral. Muitas das decisões de consumo que tomamos hoje não são totalmente autônomas, são fruto de um lance maior para qual propaganda mais relevante aos seus gostos, de acordo com seus dados coletados, vai aparecer no seu feed.

Obviamente que anterior à exploração dos dados, as propagandas já tentavam nos persuadir a comprar determinado produto ou serviço. No entanto, a lógica agora é diferente: antes se queria vender o mesmo produto para vários clientes, por isso os anúncios precisavam se aplainar para chamar a atenção de um perfil mais vasto de pessoas; agora, com a possibilidade de ver quem tem mais probabilidade de consumir o que se vende, quer vender um número infinito de produtos para o mesmo cliente, de acordo com seu perfil.

168. Mark Zuckerberg, CEO do Facebook, prestando depoimento no Congresso dos EUA. Disponível em: <https://disparada.com.br/mark-zuckerberg-facebook-depoimento-congresso-eua/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Associado a isso temos a regularização algorítmica: a partir da retroalimentação do próprio usuário, uma inteligência artificial pode desenvolver algoritmos para determinada tarefa. O filtro de spam nos serviços de e-mail funcionam dessa maneira, se ensina a inteligência como reconhecer um regra e quando é necessário criar uma nova regra. Ou seja, quando você passa a não ler mais aquela newsletter diária de uma loja que você fez um cadastro, com o tempo, o algoritmo entende que você não se interessa por mensagens que você está recebendo todos os dias e, então, interpreta aquele remetendo como spam.

Fraudes de cartão e outros sistemas de segurança seguem uma lógica semelhante, onde não se ensina regras a inteligência artificial, mas sim como criá-las. A eficiência e proliferação dessa lógica automatizada nos faz questionar a real funcionalidade das nossas leis que, além de muitas vezes não estarem totalmente a par da realidade, sofrem processos lentos e burocráticos para qualquer alteração.

Não resta dúvida de que a regulação algorítmica poderia melhorar a administração das leis existentes. Se é um recurso eficaz contra fraudes de cartões de crédito, por que não usá-lo contra fraudes fiscais? (MOROZOV, 2019, p. 86).

169. Eletrocardiograma no Apple Watch. Disponível em: <https://blogdoiphone.com/dicas/tutoriais/hack-ecg-apple-watch/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O uso de tecnologias de vigilância é uma forma de poupar dinheiro para grande parte das empresas. Os smartwatches são capazes de colher informações sobre vários aspectos da sua saúde, imagine se empresas de planos de saúde pudessem ter acesso a essas informações para saber o quanto vão cobrar a mais daquela pessoa que não pratica exercícios físicos e não CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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se alimenta de maneira mais saudável. O Apple Watch já permite que vários hospitais e serviços particulares de saúde tenham acesso aos dados de seus clientes, caso o cliente permita.

Assim, enquanto acreditamos que o Vale do Silício quer nos livrar da burocracia das instituições públicas, na verdade, ele transforma nossa realidade em um Estado acumulador de dados. O sistema de reputação dos apps e sites, comum nessas startups, se torna muito mais eficiente que qualquer regulação pública.

Se você trabalhar seriamente, vai ser recompensado com uma boa avaliação digital e será protegido por uma rede social personalizável. Robert MacBride (apud MOROZOV, 2019, 101) comenta: Com recursos da tecnologia e das técnicas de planejamento modernas [...] não se requer de fato nenhum grande truque para transformar até mesmo um país como o nosso numa corporação eficiente, onde todos os detalhes da vida não passam de funções mecânicas a serem ajustadas.

Desde o início, a discussão sobre o digital foi guiada como algo apolítico, o que favoreceu a posição das corporações. Os que questionam como o virtual tem são colocados como oposição ao progresso, visto que, em tese, a tecnologia só pode trazer mais eficiência e melhorias para a humanidade.

Porém, é comum questionar os interesses de grandes corporações de outras áreas, como “Big Pharma” (as grandes companhias farmacêuticas), “Big Food” (as grandes companhias da área da alimentação), “Big Oil” (as grandes companhias da área do petróleo). Com o caso Snowden, o “Big Data” (as grandes companhias de tecnologias e dados) passou a ser mais questionado, no entanto seus reais interesses ainda são pouco discutidos.

170. Compro seus Dados (2019) de Bruno Melo. Disponível em: <https://www.behance.net/gallery/78810783/ Compro-Seus-Dados>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O Big Data, majoritariamente controlado por empresas norte-americanas do Vale do Silício (apesar de hoje a China ter ganhado um destaque), é vendido como solucionador de problemas colocados pelo sistema. Toda área social, política ou econômica já está cheia de apps com soluções para romper com a burocracia tradicional. As corporações se pautam na mobilidade social como argumento contrário à ineficiência pública: o Uber se faz capaz de dar uma mobilidade mais eficiente e direcionada ao consumidor, do que o transporte público, por exemplo, mesmo que a viagem seja mais cara que a de ônibus.

Não que todas as promessas vindas do Vale do Silício são todas vazias, mas elas podem ser entendidas como um mecanismo de potencialização de políticas ne89

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

171. Google Maps Hacks (2020) de Simon Weckert. Disponível em: <http://www.simonweckert.com/googlemapshacks.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

oliberais. A autonomia defendida por eles é dada a custo de uma vigilância oculta dos dados de seus clientes.

3.9. BOLSAS DE VALORES E ECONOMIA DIGITAL

Durante a pandemia houve um aumento das maiores fortunas do planeta, com 20 dos indivíduos mais ricos do mundo concentrando cerca de 1,77 trilhão de dólares em 2020, 24% a mais que em 2019. Só o empresário Elon Musk, dono da Tesla e SpaceX, teve sua fortuna aumentada em 482% no ano de 2020 e Zhon Shanshan, dono da Nongfu Spring e da Wantai, em 997%, segundo dados do El País.

172. Notícia sobre a concentração de renda durante a pandemia. Disponível em: <https://brasil.elpais. com/economia/2021-01-01/pandemia-faz-as-maiores-fortunas-do-planeta-dispararem.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Jeff Bezos, dono da Amazon, também teve sua fortuna elevada, principalmente pelo aumento do consumo virtual durante a quarentena e o isolamento social. A ideia de que a tecnologia seria a plataforma para resolver as desigualdades sociais não parece ter dado certo.

Não há como negar que os níveis de desigualdade econômica estão historicamente altos, que a globalização não beneficiou a todos igualmente, e que o mundo está repleto de pessoas furiosas que usam o seu direito de voto para culpar o sistema no poder. No entanto, embora não haja dúvida quanto ao ressurgimento da retórica populista - a ser seguida, sem dúvida, pela prática populista-, isso pouco afeta o pressuposto fundamental a respeito da benevolência do setor tecnológico - sobre o qual está baseada a ideologia contemporânea do “utopismo tecnológico” (MOROZOV, 2019, p. 173).

As bolsas de valores indicam hoje como o nevoeiro digital afeta diretamente as questões econômicas. Com a ascensão dos processos digitais, as operações de ações passaram a acontecer de maneira ainda mais rápida, praticamente instantânea.

Entender o mercado tinha se tornado ainda mais opaco do que ele sempre foi, dificultando a entrada de novos investidores não preparados. Quem tem em mãos os melhores softwares, ou seja os que reagem de maneira mais instantânea, melhor seu desempenho.

173. Notícia sobre o controle de Elon Musk sobre as criptomoedas. Disponível em: <https://www.moneytimes.com.br/elon-musk-indica-seu-apoio-ao-bitcoin-preco-da-criptomoeda-sobe-13/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Essa sensibilidade do mercado pode ser exemplificada com o caso das notícias automatizadas. Uma empresa chamada Automated Insights desenvolveu um software capaz de gerar notícias a partir de dados de outras notícias. O programa faz uma leitura geral de tudo o que é publicado na imprensa e entrega notícias pela Associated Press (AP). Em 23 de abril de 2013 o Twitter oficial da AP publicou uma notícia que dizia que a Casa Branca tinha sido alvo de explosões e Barack Obama, na CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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época presidente dos Estados Unidos, tinha ficado ferido. O ato foi reivindicado pelo Exército Eletrônico Sírio e nunca aconteceu de fato, foi apenas produto de um hackeamento.

No entanto, o que impressiona é que, um minuto após a publicação da fake news, a bolsa da Dow Jones entrou em queda absurda, voltando a crescer logo depois quando se percebeu que a notícia era falsa. Esse fenômeno abrupto de queda e retomada foi classificado como flash crash e indica como as automações no mercado estão presentes e atentas para qualquer pequena variação (BRIDLE, 2019, p. 143-144).

Além disso, mecanismos clandestinos para conseguir lucro resultaram em um desenvolvimento de fóruns privados que tornavam essas transações indetectáveis. As dark pools são uma dessas estratégias, visto que possibilitam movimentar grandes volumes de dinheiro sem gerar alertas no mercado.

174. Notícia sobre a variação brusca das ações. Disponível em: <http://g1.globo.com/economia/mercados/ noticia/2013/04/indices-de-acoes-despencam-nos-eua-com-noticia-falsa-sobre-explosao.html>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

3.10. SOLUCIONISMOS E ESVAZIAMENTO DA POLÍTICA

A simplificação dos problemas complexos por meio das soluções dadas pelo Vale do Silício acaba contaminando toda a discussão política. Quando nos deparamos com alguma questão a solução pensada é ou um novo aplicativo, ou uma forma de processar mais dados. Esse processo pode até resolver pequenas adversidades do cotidiano de maneira bem lucrativa, mas situações mais complexas nem sempre podem ser realmente resolvidas por ele.

As nossas decisões “incoerentes” pode ser mudadas e controladas por meio de informações, tornando as soluções a qualquer problema uma questão exclusivamente informacional. Muitos formuladores de políticas veem nesse solucionismo a resposta para modernizar e resolver de maneira mais eficiente problemas sem de fato atuar nos reais causadores.

Em outros termos, os pobres tomam decisões financeiras ruins porque as outras preocupações reduzem sua “banda larga cognitiva”, de maneira parecida com o uso do Skype ou do Spotify, que podem deixar sua conexão com a internet mais lenta. Segundo essa concepção, se os pobres recebessem uma mensagem de texto adequada no momento certo, eles poderiam acabar poupando mais. Para combater a pobreza então, devemos ter “um ambiente isolado da escassez”, de modo que as decisões ruins e irracionais sejam evitadas ou minimizadas por meio de algum sistema de monitoramento permanente (MOROZOV, 2019, p. 109).

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CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

175. Porcentagem de volume de vendas nas Bolsas vs. Dark Pools. Disponível em: <https://www.bloomberg. com/quicktake/dark-pools>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

O indivíduo é colocado como responsável por ser incapaz de controlar seus desejos, por isso seus dados são extraídos tão facilmente. Assim como Evgeny Morozov (2019, p. 177) compara: Pregar o autocontrole diante dos extrativismo dos dados é como pregar o empreendedorismo diante da destruição causada pelo neoliberalismo: é uma maneira de reduzir um problema coletivo e político ao nível individual.

No entanto, o que é mais irônico é que esses usuários são vistos como estoques valiosos de informações. A Big Data desenvolve maneiras bem pensadas de conseguir essas informações seja de maneira sigilosa ou pedindo voluntariamente. Com isso ela tem acervo suficiente para entregar publicidade para o alvo que mais provavel vai consumir aquilo ou usá-lo para desenvolvimento de inteligências artificiais.

176. Página do Internet.org no Facebook. Disponível em: <https://www.digai.com.br/2015/08/internet-org-o-mundo-precisa-da-internet-de-mark-zuckerberg/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

A iniciativa Internet.org do Facebook tem como objetivo incluir digitalmente populações de países em desenvolvimento. Através de diversas infraestruturas financiadas pela empresa, áreas mais remotas da América Latina, Sudeste Asiático e África agora podem ter acesso à internet. No entanto, enquanto o acesso ao Facebook e alguns outros sites específicos são gratuitos, o resto é pago de acordo com a quantidade de dados usados pela pessoa. Por se tratar de uma população mais pobre, poucos acessam informações além daquelas presentes no Facebook ou site e aplicativos parceiros. [...] à primeira vista, os pobres desfrutam daquilo que já está ao alcance dos ricos - no caso, o acesso à internet.

Mas não custa muito identificar a distinção crucial. À diferença dos ricos, que pagam com dinheiro pelo acesso, este é adquirido pelos pobres com os seus dados - os dados que o Facebook um dia vai monetizar para justificar toda a operação Internet.org. Afinal, não estamos lidando com caridade.

O Facebook está interessado em “inclusão digital” do mesmo modo que os agiotas se interessam pela “inclusão financeira” - ou seja, em função do dinheiro (MOROZOV, 2019, p. 55).

177. Protestos contrários a TTIP. Disponível em: <https://www.dw.com/en/german-frustration-builds-over-ttip-secrecy-from-us/a-18819097./>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

Ser contrário à exploração de dados hoje é ser contrário ao livre comércio. Acordos comerciais como o Transatlantic Trade and Investment Partnership (TTIP), o Trade in Services Agreement (TISA) e o Trans-Pacific Partnership (TPP) focam tanto nas empresas que esquecem aspectos políticos. O relatório Uncovering the Hidden Value of Digital Trade: Towards a 21st Century Agenda of Transatlantic Prosperity sequer considera o cidadão e suas vontades.

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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A parceria público-privada entre NSA e Vale do Silício se mostrou evidente depois dos escândalos do caso Snowden. Enquanto se acreditava que a rede traria evidentes melhorias para a segurança dos usuários, acabou que os dados privados ainda podem ser coletados. Se analisarmos o caso do Gmail, por exemplo, percebermos como é vantajoso para ambas as partes: enquanto o Google pode oferecer um serviço que é caro, devida toda sua infraestrutura para o funcionamento, de graça porque pode usar seus algoritmos para ler nossos e-mails e nos oferecer propagandas baseadas nessas informações privadas, a NSA pode ter acesso gratuito aos mesmos dados.

O Google é capaz de produzir um sistema de segurança que deixasse os e-mails indecifráveis para seus algoritmos, mas que vantagem ele e a NSA tirariam disso? No mínimo, o Gmail seria um serviço pago. A venda dos assistentes virtuais da linha Echo Dot da Amazon por um preço consideravelmente baixo para o mercado brasileiro não é pago pelos R$293, mas pela coleta de dados do seu uso.

Grande parte dos governos sofrem com a falta de recursos para aplicar em serviços públicos e o massivo acervo de dados que as empresas de tecnologia possuem, associado a uma infraestrutura computacional e solucionismos é a resposta perfeita para esse corte de gastos. Surge um Estado de bem-estar digital: “O equilíbrio de poder da política do futuro vai favorecer os agentes privados em detrimento dos públicos, de uma maneira que não se via desde a época feudal” (MOROZOV, 2019, p. 168).

178. Echo Dot 3ª Geração no site da Amazon. Disponível em: <https://www.amazon.com.br/Echo-Dot-3%C2%AA-Gera%C3%A7%C3%A3o-Cor-Preta/dp/B07PDHSJ1H>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

3.11. COGNIÇÃO ALGORÍTMICA E INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

A inteligência artificial e os mecanismos de cognição digital evoluem de maneira exorbitante, mas enquanto apenas visualizamos seus resultados, pouco entendemos como realmente o machine learning pensa. Um artigo sobre como um sistema automatizado para, a partir de imagens de rostos, reconhecer possíveis criminosos foi bastante discutido em 2016.

Ao contrário de um juíz/examinador humano, um algoritmo ou classificador de visão computadorizada não tem bagagem subjetiva alguma, não tem emoções, não tem tendenciosidades quaisquer devido a experiências anteriores, raça, religião, doutrina política, gênero, idade etc., nem fadiga mental, nem precondicionamento porque dormiu ou comeu mal. A inferência automatizada sobre a criminalidade elimina total-

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179. Sede da NSA em Fort Meade, EUA. Disponível em: <https://canaltech.com.br/espionagem/O-que-e-a-NSA/>. Acesso em: 07 de nov. de 2021.

mente a variável da metaprecisão (a competência do juiz/ examinador humano) (WU, ZHANG apud BRIDLE, 2018, p. 163).

Os algoritmos que seriam responsáveis por essa análise não surgiram do nada. Eles, assim como todo o acervo digital, foram resultado de anos de história humana e seus erros. Vários exemplos de como esse acervo humano influencia no funcionamento das tecnologias existem. Uma taiwanesa-americana comprou uma máquina fotográfica da Nikon em 2009 que tinha a função em que a foto seria tirada automaticamente quando todos os rostos estiverem de olhos abertos.

A câmera não foi capaz de identificar a diferença física da mulher e sua família que tinha olhos não caucasianos.

180. Prints da videoconferência com problemas no Zoom. Disponível em: <https://cepedi.org/2020/09/22/o-uso-de-reconhecimento-facial-por-twitter-e-zoom-escancara-o-racismo-algoritmico-das-plataformas-digitais/>. Acesso em: 08 de nov. de 2021.

Em 18 de setembro de 2020, enquanto muitas pessoas faziam conferências por meio de plataformas digitais, um usuário com o nome de Colin Madland publicou prints em seu Twitter reclamando sobre dificuldades que um homem negro estava tendo quando usava o recurso de fundo falso do Zoom. Esse recurso funciona reconhecendo uma pessoa na imagem da webcam e automaticamente retirando o fundo da imagem e substituindo por outro, ou mesmo desfocando o original.

Prints da videoconferência publicados em sua conta do Twitter mostrava quando o algoritmo não reconhecia em alguns momentos o rosto do homem negro e só fazia sua camisa aparecer, mesmo em boas condições de iluminação e rede. O que ele e nem ninguém esperava era que uma situação similar iria acontecer no Twitter.

O site possuía um algoritmo que recortava a imagem na pré-visualização no feed e depois a exibia por completo quando se abria o tweet. Esse recorte era feito dando destaque a alguma parte importante da imagem, normalmente rostos. Porém Colin percebeu que, mais uma vez, o aplicativo priorizou seu rosto ao do colega. O tweet ganhou destaque na rede e outros usuários passaram a testar o algoritmo postando imagens com uma pessoa branca e outra negra em posições diferentes e mais uma vez os rostos enquadrados foram os das pessoas brancas.

181. Tweets de Colin com o recorte da prévia. Disponível em: <https://cepedi.org/2020/09/22/o-uso-de-reconhecimento-facial-por-twitter-e-zoom-escancara-o-racismo-algoritmico-das-plataformas-digitais/>.

Acesso em: 08 de nov. de 2021.

O Twitter acabou retirando a função e agora apresenta a imagem por completo no feed de notícias e assumiram o erro, prometendo melhorar o algoritmo. Casos como esse vem sendo conhecidos como racismo algorítmico e pensar que a inteligência artificial é totalmente livre de conceitos e CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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preconceitos humanos é esvaziar totalmente a própria história humana, sendo a tecnologia mais um resultado dela. A consciência de injustiças e erros humanos é essencial para que tecnologias não sejam aplicadas de maneira acrítica.

“Não há documento da civilização que não seja documento da barbárie” (BENJAMIM apud BRIDLE, 2018, p. 166). Nos colocamos em lugar em que as nossas próprias plataformas de comunicação são, de maneira automatizada, colocadas a trabalhar de maneira nociva para a própria comunicação. Essa crise mostra como e quanto estamos afundados em um nevoeiro cognitivo da nossa própria realidade.

3.12. O PROBLEMA NÃO É A TECNOLOGIA

Majoritariamente, enquanto indivíduos, nossas informações são varridas por serviços automatizados e corporações de data.

Vivemos em uma era de profunda assimetria epistêmica.

A hipervisibilidade do cidadão como indivíduo monitorado por todo tipo de dispositivo inteligente - é acompanhada da crescente hiperinvisibilidade de todos os outros agentes (MOROZOV, 2019, p. 113).

Toda informação de grandes empresas e serviços militares continuam muito bem arquivadas e a exploração informacional é unidimensional: a do cidadão comum. Apesar de todo esse cenário, o problema nunca foi a tecnologia em si, mas o uso dela pela política não democrática e economia neoliberal. A ideia não é negar todo o desenvolvimento tecnológico que evidentemente teve um impacto enorme na melhoria da qualidade de vida e nas possibilidades de produção humanas, mas sim discutir de maneira mais crítica o uso dela para estratégias de manipulação e exploração.

Por mais que muitos não se importem com a exploração dos dados, não deixa toda essa situação menos pior. Na realidade isso só facilita ainda mais o uso indevido dessas informações para usos ainda mais indevidos e sombrios.

Mas isso acontece apenas porque não podemos imaginar uma catástrofe informacional com a mesma facilidade com que o fazemos em relação a uma catástrofe ambiental. O fato é que nos tornamos péssimos distópicos - e nossos intelectuais tecnófilos, apaixonados pelo Vale do Silício e por termos como “inovação”, são em parte culpados. Contudo, o fato de a catástrofe ocorrer em câmera lenta e não ser tão fácil de visualizar não a torna menos catastrófica! (MOROZOV, 2018, p. 133).

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CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

182. Tweet mostrando o algoritmo em funcionamento. Disponível em: <https://cepedi.org/2020/09/22/o-uso-de-reconhecimento-facial-por-twitter-e-zoom-escancara-o-racismo-algoritmico-das-plataformas-digitais/>. Acesso em: 08 de nov. de 2021.

Assim como a catástrofe ambiental, a informacional já tem seus efeitos espalhados e, muitas vezes, hipernormalizados por toda sociedade. Mas ainda temos como repensar como o uso dessa tecnologia vem sendo aplicada. [...] se somos capazes de pensar de outras maneiras, então também somos capazes de repensar o mundo, e assim entender e viver de modo diferente dentro dele. E como nossa compreensão atual decorre de nossas descobertas científicas, nosso novo pensamento deve emergir das e junto às nossas invenções tecnológicas, que são manifestações bastante reais do estado contestado, complexo e contraditório do mundo em si. Nossas tecnologias são extensões de nós, codificadas em máquinas e infraestruturas, em armações de conhecimento e ação; se realmente pensadas, elas sugerem o modelo de um mundo mais verdadeiro (BRIDLE, 2018. p. 24).

183. No Robot! (2018) de Hiroto Nagashima. Disponível em: <https://www.behance.net/gallery/71134381/ 005-NO-ROBOT>. Acesso em: 08 de nov. de 2021.

É preciso retomar a discussão política, econômica e social dentro da discussão sobre tecnologia e rede e afastar a opacidade que a encobre. Essas questões aplicadas à tecnologia implica em discussões sobre como nossa privacidade, liberdade e democracia vem sendo tratada. Não deveria ser preciso movimentos ou partidos políticos especializados nessa temática, esse tema deveria sem preocupação de todos em relação ao nosso próprio futuro.

Leis não são capazes de impedir a venda de dados, justamente porque os consumidores a aceitam, mesmo que de maneira inconsciente. Ninguém forçou o consumidor a usar o Uber, o Gmail, o Facebook ou qualquer outro serviço/produto, ele o fez porque ou é de graça, ou oferece uma melhor experiência, ou qualquer outra razão; mesmo que isso implique na coleta de seus dados.

Para muito além de leis, é preciso ampliar o debate sobre como o consumismo informacional pode acarretar em situações desastrosas para todos os indivíduos, ou pelo menos, a maioria deles.

184. Memory Leak (2014) de Rui Hu. Disponível em: <https://homeostasislab.org/visualizar/obra/2599>.

Acesso em: 08 de nov. de 2021.

Questionar a passividade do cidadão, que é tratado apenas como um consumidor potencial e fonte rentável de dados, retomando questões de cidadania e, no mínimo, questionando monopólios de corporações de tecnologia e seu poder de influência dentro da sociedade. Para isso, o papel de cientistas e artistas é fundamental, pois enquanto o do primeiro pode restabelecer o discurso da responsabilidade moral do desenvolvimento da ciência, o do segundo pode aplicar essa temática a suas obras para discutir nosso futuro.

CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

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E uma das intervenções mais importantes: recuperar o poder emancipatório que sempre foi esperado da tecnologia, não limitando sua existência aos desejos neoliberais das grandes corporações.

Enquanto isso, ainda vivemos dentro do nevoeiro e tem muita fumaça a ser dispersa para que possamos realmente enxergar com nitidez.

Se, por um lado, dentro dela [nuvem] nos vemos cada vez mais controlados e expropriados dos meios cognitivos para mapeá-la, por outro, são as poéticas do embaçamento e do retardamento, em arte, as estratégias que melhor se opõem ao regime de nitidez das imagens-fetiche que alimentam a “sociedade da hipervisibilidade” na qual vivemos, e que é o par oculto das nuvens financeiras e digitais (WISNIK, 2018, p. 307).

185. Cryptonudes (2018-2021) de Mari Nagem e Lina Lopes. Disponível em: <https://homeostasislab.org/ visualizar/obra/1015>. Acesso em: 08 de nov. de 2021.

185. Poluição atmosférica na China. Disponível em: <https://ciclovivo.com.br/planeta/meio-ambiente/ china-chega-a-niveis-extremos-de-poluicao-e-promete-mudancas-na-energia/>. Acesso em: 08 de nov. de 2021.

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CAPÍTULO 3: NEVOEIRO

CAPÍTULO 4

NÉBULA

4.1. contexto

Após anos de mineiração de dados pelo Big Data, continua exploração neoliberal, enfraquecimento dos Estados nacionais devido à crise política, governos catastróficos e degredação irreversível do meio ambiente, o mundo está à beira de um colapso.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

Assim como sempre fez, o Big Data surge com uma solução heróica para salvar a humanidade: o Projeto Nébula. A Nébula é uma megaestrutura que se espalha por todo o planeta em que seus habitantes estão finalmente livres de todos os problemas. O dinheiro, que havia causado tanta destruição e desigualdades, seria extinto e a moeda de troca seria os dados, algo muito mais democratizante, segundo o Big Data.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

Com o avanço das tecnologias de inteligência artificial, não é mais necessário que nenhum humano tenha que sofrer por conta do labor. Agora todos os habitantes da Nébula são livres para viver suas vidas da forma como bem entenderem, aproveitando seu tempo com o lazer e em viver novas experiências. A Nébula é, acima de tudo, uma forma de proteger a humanidade do próprio ambiente que ela mesma destruiu. Quem se recusasse a entrar na Nébula não sobreviveria por muito tempo de qualquer forma.

103

CAPÍTULO 4: NÉBULA

4.2. o corpo pós-humano

A única condição para entrar na Nébula é a aplicação de um plug na região da nuca, que se conecta diretamente ao sistema nervoso de cada indivíduo. Com isso, as fronteiras entre o real e o virtual são dissolvidas e cada habitante pode viver uma realidade aumentada de acordo com suas vontades.

105

CAPÍTULO 4: NÉBULA

A realidade aumentada na Nébula não se resume apenas a visão, mas abrange também a audição, tato, paladar e olfato.

107

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Além de possibilitar ver o que gostaria, todos os outros sentidos são totalmente alteráveis à vontade de cada pessoa. Se um habitante quiser bloquear alguém e nunca mais precisar ver ou escutar a pessoa; se sentir comendo um restaurante 5 estrelas; explorar uma floresta, sentindo o cheiro das plantas e ouvindo o som dos animais; ela pode. Tudo é possível na Nébula.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

O corpo é transmutado a viver concomitantemente o real e o virtual.

Enquanto o corpo real se dá pelo que é código biológico, o virtual se dá pelo código algorítmico. Cada indivíduo possui sua representação corpórea virtual (Amorphus Life & Massive Algorithm - A.L.M.A.) que é gerada pelo conglomerado de dados pessoais que aquela pessoa compartilha para com os outros. Cada A.L.M.A. é representada com uma forma amorfa que se altera de acordo com os dados.

111

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Quanto mais informações são compartilhadas, mais a possibilidade do algoritmo da Nébula entender seus interesses e oferecer novos serviços e experiências. Além disso, mais dados é sinônimo de um indivíduo que tem acesso a muitas vivências dentro da Nébula e isso também reflete no seu número de avaliação. Quanto mais bem avaliado, numa escala de 0 a 5, mais acesso o habitante tem e, consequentemente, novos dados serão gerados. Segundo o Big Data, essa é a solução para o problema do dinheiro, para ter mais acesso e ser melhor avaliado é só se esforçar em compartilhar mais informações pessoais e esperar ser retribuído pela avaliação alheia.

113

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Num ambiente cheio de possibilidades, o sono é um grande empecilho, mas na Nébula isso não é mais um problema. Com o plug instalado, agora os habitantes não precisam mais dormir de fato, mas sim, recarregar. É só encontrar os pontos de recarga espalhados por toda a Nébula e aproximar o plug. O carregamento é magnético e o nível de carga e a eficiência do carregamento, ou seja, quanto tempo demora para carregar e quanto tempo de duração dessa recarga varia de acordo com a avaliação de cada indivíduo.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

A alimentação também é toda fabricada com biotecnologia e pode ser acessada em pontos de alimentação, que são máquinas espalhadas pela Nébula.

A aparência não é a das melhores, nem seu sabor, mas pouco importa. Se a pessoa tiver a possibilidade de acessar, ela pode sentir um sabor delicioso de salmão em uma experiência virtual por um restaurante caro em Tóquio ou ao menos um hambúrguer do McDonald’s na praça de alimentação de um shopping.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

4.3. a estrutura

A Nébula é como uma grande tela em branco onde é projetada a realidade de cada indivíduo. Ela serve como base para a realidade aumentada de cada habitante. Sua estrutura metálica é fixa e se estende infinitamente pela superfície terrestre, cortando decadentes paisagens urbanas e restos de áreas naturais. Seu encontro com o terreno tem um sistema de nivelamento fazendo que ela se estabeleça em qualquer terreno.

Esse grande corredor é fechado com uma camada dupla de placas de policarbonato que impedem parcialmente a visão externa. Entre cada camada existe um sistema de de gás argônio que impede a troca térmica com o exterior.

Todo clima interno a Nébula é controlado artificialmente pelo algoritmo, que altera os níveis de iluminação, umidade, ventos e temperatura.

119

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Dentro desse volume prismático, o algoritmo, ao coletar os interesses dos habitantes em cada local, vai transformando o interior da estrutura com labirintos amorfos impressos em 3D de uma resina bioplastica autoportante.

Essa resina é reaproveitada quando algum espaço é desfeito para gerar novos ambientes. Esse volume interno vai sendo gerado pela Nébula e variando com o tempo. Espaços maiores diminuem com tempo, se alongam ou se tornam inacessíveis. Com mais dados e interações dos habitantes mais o algoritmo vai se aprimorando, além é claro de criar uma personalidade própria, podendo ele mesmo criar espaços para seu próprio interesse.

121

CAPÍTULO 4: NÉBULA

4.4. vida nômade

As pessoas andam, escalam, se arrastam, deitam e se penduram nessas superfícies em que não existe mais limite entre chão, cobertura e parede.

Tudo é espaço a ser aproveitado. Como a vida dentro da Nébula é muito centrada no indivíduo, a família não é mais vista como algo a ser priorizado.

A própria reprodução não faz mais sentido, todos os novos humanos são gerados pelo algoritmo em incubadoras espalhadas pela estrutura.

123

CAPÍTULO 4: NÉBULA

4.5. programa arquitetônico

Algumas das áreas do programa base da Nébula são: PRAZER, VIOLÊNCIA, CUBO, NATURAL, CONSUMO, CONSPIRAÇÃO.

125

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Alguns espaços são projetados para ajudar os habitantes da Nébula na busca pelo prazer. São espaços configurados como novas Sodoma e Gomorras.

O pecado católico cai por terra, não há limites para a busca pelo prazer. O uso de drogas para potencializar ainda mais o poder da mente e o sentimento de euforia é corriqueiro. A busca do prazer sexual também é algo encontrado aqui. Os habitantes da Nébula são estéreis, fazendo com que a única geração de novos humanos seja pelo algorítmo, não há tempo para se ter filhos.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

A dor e a violência também são meios de se atingir o lazer. Nesses espaços, brigas acontecem muitas vezes até a morte de algum ou alguns indivíduos. Não se precisa ter motivo, o intuito é a violência pela experiência.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

As únicas áreas que não se alteram dentro na Nébula são os cubos. Eles são grandes prismas metálicos que são sempre envoltos por uma densa neblina. Os habitantes da Nébula não sabem o que acontece ali e não tem acesso ao seu interior. Além na neblina, eles são sempre vigiados por drones e cães robôs que supervisionam e observam cada centímetro da área. Não há muito a se fazer por ali.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

Conspirar também é uma forma de se encontrar o lazer. Grupos conspiracionistas e seitas se formam a todo momento e usam de espaços de conspiração para criar e compartilhar pós verdades, fazendo com que ideias absurdas (ou nem tanto) sejam divulgadas a todo momento.

133

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Apesar de não haver propriedade, a não ser o próprio eu físico e virtual, toda a lógica de consumo é voltada aos dados. Aréas onde podem ser encontradas diversas propagandas de melhorias para o corpo, como garras para escalada, alongamento de coluna, pés mola, órgãos sintéticos, entre outros, também são onde os habitantes da Nébula podem fazer esses processos de acordo com o que podem ter acesso. É só entrar em alguma cápsula e dentro de poucos minutos você terá seu novo apêndice. Dados e avaliações de habitantes que já faleceram também podem ser comprados para melhorar sua própria avaliação.

135

CAPÍTULO 4: NÉBULA

Uma das áreas mais tranquilas são as áreas naturais. Nela uma grande esfera ilumina e aquece todo entorno. O clima varia de maneira intensa nessas salas, podendo ocorrer nevascas, inundações, vendavais, entre outros fenômenos “naturais”. Muitos vão até esse espaço como uma forma de contemplação do que era o mundo antes, mesmo que não tenham conhecido.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

4.6. fim

Enquanto os 99% são distraídos pela Nébula, finalmente o 1% pode terminar seu projeto espacial para fugir da Terra antes que seja tarde demais.

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CAPÍTULO 4: NÉBULA

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Nébula não é um projeto como convencionalmente pensamos em arquitetura. Enquanto a maioria dos projetos arquitetônicos são respostas a serem executadas para resolver problemas e criar novas possibilidades, a proposta desse projeto é puramente especulativa, ou como colocado por Victor Sardenberg quando fala sobre seus projetos “é puramente uma caricatura”.

Não se quer com essa especulação propor uma solução para todas as questões levantadas no capítulo 1 ou 3, ou se quer se igualar aos projetos apresentados no capítulo 2.

Toda a pesquisa serviu como uma base sólida no desenvolvimento conceitual para o projeto, possibilitando elencar problemas que vivemos hoje e que são atrelados a tecnologia.

Daí foi possível extrapolar ao máximo as capacidades dessas adversidades e criar um cenário que, ao mesmo tempo que parece irreal e, até de certa forma impossível, ainda possui uma conexão direta com a realidade atual.

É nessa extrapolação e no exagero que nasce a caricatura: a Nébula. E é nessa proposta que podemos nos inserir nessa nova dimensão e tentar imaginar como poderia ser tudo aquilo.

Será que tudo isso é completamente inviável e inaceitável? Ou será que, em níveis menores, isso já acontece? Quanto a Nébula está longe da proposta do Metaverso apresentada em novembro de 2021 por Mark Zuckerberg, por exemplo? Afinal: será que já vivemos na Nébula?

O intuito desse trabalho de conclusão de curso nunca foi trazer respostas, mas gerar ainda mais perguntas. É com a perpetuação do pensamento crítico que podemos entender onde estamos e tentar decidir para onde vamos. Precisamos nos colocar frente a todo uso da tecnologia (e qualquer outra questão) que não nos parece levar ao caminho que esperamos. Entender toda a complexidade do hoje não é uma tarefa fácil, mas com propostas como a Nébula, podemos fazer o que o ser humano, por enquanto, faz de melhor: imaginar.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

implantação (1:1000)

100 m

setor detalhado

PLANTA NÍVEL 01 (1:500)

0M

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100 M

150 M

200 M

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ERROR 404 NOT FOUND

1

100 M

LEGENDA: 1. CONSPIRAÇÃO (122.716,2 M³) 2. CUBO (125.000 M³) 3. NATUREZA (356.518,35 M³) 4. PRAZER (150.380,23 M³)

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3

PLANTA NÍVEL 02 (1:500)

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AA

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100 M

LEGENDA: 5. VIOLêNCIA (64.076,99 M³) 6. CONSUMO (2.319.574,21 M³)

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LEGENDA: Lorem ipsum

1. CUBO (125.000 M³)

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