EMBARQUE: Para permanecer não é necessário ficar.

Page 1



Embarque

Para permanecer não é necessário ficar

Mariela Espejo

1a. Edição

Engenheiro Coelho

Edição de autor 2019


Embarque - Para permanecer não é necessário ficar ©Mariela Espejo 2019 Edição de autor

Projeto desenvolvido para Trabalho de Conclusão de Curso, apresentado como requisito para obtenção do Diploma de Bacharel em Jornalismo pelo Centro Universitário Adventista de São Paulo - Unasp Campus Engenheiro Coelho

ORIENTAÇÃO: Andréia Moura ILUSTRAÇÕES E CAPA: Jorge Sosa PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO: Andréia Moura (Etc. y Tal Produções) IMPRESSÃO: D7 EDITORA @mmarielasofia (instagram) marielasofiae@outlook.es @euandreia.moura (instagram) andreiamoura007@hotmail.com @jorgesosa.av(instagram) jorgesosa.av@gmail.com


Y aunque las lĂĄgrimas que derramo no caigan en tu tierra, y mis pies caminen en otras veredas. Siempre me alegrarĂŠ al recordar lo que me has hecho sentir.


Agradecimentos


A mi abuelita, que me enseñó a leer y escribir. A mi abuelito, con quien aprendí a imaginar, razonar y cuestionar. A mi mamá, que me incentiva a soñar con ser escritora. A mi papá, mi consejero y admirador. A Jorge, por inspirarme con su arte. To my teachers; Alan Cubilla and Jorge Fonseca, who helped me to open doors through the english language. To Ruth Van Reken and Michael Pollock, who motivated me to move forward with this project. To Elizabeth Liang, that inspired me to write in order to heal. A Andreia, por acreditar em mim. A Kemelly, minha companheira de lutas e vitórias. A Fernanda, minha amiga incondicional.



A Gabriel, para que en tus vueltas por el mundo sepas que tienes raĂ­z.



Partes Prefácio Prólogo Bagagem de mão Uma odisseia Pista de pouso Lar, doce lar Epílogo



Prefรกcio


Bilhete para a pluralidade Há alguns anos tenho flertado, na vida e em minhas pesquisas, com os conceitos antropológicos da Mestiçagem. Um namoro que nasceu da percepção quase instintiva de que algo fundamental havia mudado na estrutura das coisas, do mundo. Que havíamos deslocado, irrevogavelmente, nossas formas de ver, entender, construir, expressar, conhecer. Nossas formas de ser, pensar. Tudo era sobre movimento. Sobre o instante. Sobre ser “A” e “Z” ao mesmo tempo, sobre encurtar estas distâncias em círculos. Isto me pareceu mais palpável quando passei a dar aulas para universitários. No início de minha vida docente, ensinava a geração imediatamente posterior à minha, mas parecia ter sido transportada a uma realidade paralela. Este grupo de estudantes rejeitava toda a rigidez das formas de vida herdadas. Construíam-se e reconstruíam-se mestiçando heranças culturais, conhecimentos adquiridos, produtos consumidos, lugares visitados. Por rejeição e apropriação. Eram frutos de inumeráveis choques, encontros, atropelamentos a que, por circunstâncias histórico-culturais, estavam constantemente submetidos. O que a internet, a popularização da aviação, o fortalecimento dos mercados comuns, entre outras coisas – iniciadas em minha infância e hoje em pleno funcionamento – fizeram, foi discursar sobre a possibilidade de uma existência sem forma fixa, sem estabilidades, sem identidades eternas,

12


sem conhecimentos estritamente objetivos. Revelaram a possibilidade possib de ser/pertencer ao universo da multiplicidade e da coexistência. Na arte, na comida, nas geografias que se transformam, nas fronteiras que se esmaecem, nas religiões que se reinventam, nas circunscrições de espaço, tempo e merei mória em constante expansão, em tudo se mestiça. Tudo móri é de devir. O que os tempos atuais desnudam, incentivam e potencializam, na verdade, é um processo muito antigo pote permeado por constantes tentativas de rejeição pelos pe modos modo de vida ditos “estáveis”. No encontro com novos territórios, novas comidas, novos filmes, novos livros, terr novas nova pessoas, no reencontro com paisagens e passados, nossas noss vidas se mestiçam. Nossos ciclos não cessam de movimentar-se, mas em espiral, nunca retornando ao mo ponto pont de partida e, portanto, sempre rumo ao inesperado. Sempre expandindo e não repetindo. A subversão desta dinâmica – rejeição ao estável e o abraço ao instável/múltiplo/mestiço – cada vez mais ab característico das novas gerações despertou em mim o já cara citado fascínio por estudar multiplicidades na humanidade e no nos processos. Foi assim, neste contexto, que Mariela me procurou. O ano, 2018. Já éramos velhas conhecidas das aulas. Professora e aluna, desde 2016. Ela me apresentou um projeto em construção. Escrever um livro sobre pessoas que transitavam em diversas culturas. Escrever pe sobre so como viam, viviam, entendiam, se relacionavam.

13


“Isto é possível?”, me perguntou timidamente. Sorri de leve, por dentro tomada de empolgação. Sim! Não era só possível, era necessário. Não eram estas, também, minhas inquietações pessoais e acadêmicas? Na época não sabíamos que esta pesquisa se tornaria muito maior que as (agora entendemos) incipientes pretensões iniciais. Eu também não sabia, naquele momento, que este trabalho era uma pesquisa autobiográfica sobre o misterioso universo das multiplicidades. Mariela é assim, múltipla por formação, mestiça em toda a acepção trabalhada por antropólogos como François Laplantine, Alex Nouss1 e Sergei Gruzinski.2. Seu livro é uma viagem em direção a fenômenos que caracterizam existências plurais. Para produzi-lo, ela embarcou em diversas jornadas. Com os conceitos, com especialistas nestes fenômenos, com pessoas que – por contexto de vida – se construíram plurais, consigo mesma. Buscando, por meio de entrevistas e observações, os indícios da proximidade entre tais pessoas que, embora separadas geograficamente, culturalmente, ou por gerações, se unem em um tipo de existência comum, uma identidade construída na multiplicidade de formas possíveis de ser. Embarque: para permanecer não é necessário ficar, trata de uma sociedade cada vez mais mestiça. Uma sociedade em trânsito, viagem, habitada por peregrinos que não procuram, exatamente, um destino, mas encontraram um destino 1

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002. 2 GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 3 LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.

14


em transitar. Já afirmavam Laplantine e Nouss3, o valor da viagem se cumpre na distância percorrida. Hoje, quem nega sua pluralidade com fins de afirmar uma identidade estável/rígida/ fixa nega, também, sua capacidade de avançar. E talvez este seja o ponto principal deste material: o convite ao reconhecimento da própria existência mestiça e ao abraço desta identidade múltipla como forma de vida para constante expansão. Que a viagem iniciada nestas páginas continue muito depois de esta leitura assentar-se na mente. Que o bilhete com que se embarca aqui seja o primeiro de muitos. Que se abram as portas para outras viagens, rumo a diferentes paisagens, que desconstruirão fronteiras, aproximando você de pessoas nunca vistas, pessoas com quem você sinta-se à vontade para compartilhar o pão (material, intelectual, espiritual). E que assim, na partilha, vocês se tornem compatriotas de uma nação que não é física, mas que identifica, que cria pertencimento. Que neste pertencimento, você permaneça em todos os seus pares, dentro deles, e eles dentro de você, ainda que os caminhos jamais voltem a se cruzar.

Andréia Moura Jornalista, Mestre em Divulgação Científica e Cultural, Doutoranda em Meios e Processos Audiovisuais. É professora nos cursos de Jornalismo e Comunicação Social do Unasp- Campus Eng. Coelho

15



Prรณlogo


VOO 751

- Vocês são brasileiras? - Somos - Então vocês estão na fileira errada. Perder os fones antes de fazer uma viagem é uma tragédia. Passar horas sentada sem poder ouvir música ou assistir séries na Netflix pode ser aterrador. Mas, dessa vez, estar sem fones no ouvido resultou produtivo e me permitiu ouvir diálogos como o que acabei de descrever. Era domingo, 23 de junho, e estava no aeroporto de Guarulhos, Terminal 3. O horário do voo era 16h15, o destino final, Santiago de Chile. Depois de fazer o check-in e despachar a bagagem, me dirigi a área da imigração. Enquanto esperava o moço que revisa a documentação terminar de ver meu passaporte me deparei com uma mulher e sua filha que aguardavam inquietamente serem chamadas. De repente, uma funcionária avisou-lhes que o atendimento para cidadãos estava na outra fileira, indicação que não tardaram em obedecer. Nesse instante parei para pensar que minutos antes eu também tivera que escolher entre a fileira de estrangeiros e a de cidadãos.

18


Entrar por qualquer uma das duas é algo que a maioria faz automaticamente. Mas há pessoas que, por estranho que pareça, duvidam diante das duas opções. E não só diante destas, mas de muitas outras. Neste livro há algumas delas. Perguntas cujas respostas não podem ser obtidas de acordo com certidões de nascimento, nem passaportes e, mesmo assim, são válidas. Enfim. Não gosto de dar spoilers então só passe a página.

19



bagagem de mĂŁo



E AGORA? Estava pronta! Passei no vestibular, fiz a matrícula, tirei o visto e comprei a passagem. Era novembro de 2015 e os preparativos para começar a faculdade estavam em dia. Sete horas de voo me levariam ao lugar em que estudaria pelos próximos quatro anos: São Paulo, Brasil. Sim, também tinha aprendido um pouco de português. O suficiente para não precisar de Google Tradutor. Enfrentar uma nova cultura não é coisa simples, mas estava relativamente pronta. Ou pelo menos isto pensava a garota de 18 anos. Porém, essa percepção começou a mudar no primeiro dia de aula em que mais de 60 alunos deveriam se apresentar e responder às perguntas: Qual é seu nome? Quantos anos tem? De onde vem? A esta, eu não estava pronta para responder.

23


opcÃo 1 , Panamá. Essa era a resposta mais simples que eu podia dar. Porém, iriam me chamar de panamenha e eu não era de lá – pensei levantando minhas sobrancelhas.

24


1997 Meu primeiro voo foi aos 8 dias de nascida – entre minha cidade natal (Juliaca) e Lima, a capital do Peru. Eu precisei sair do lugar onde morávamos por causa da altitude. Juliaca é uma cidade localizada no sul do país e encontrava-se a 3.825 metros de altura. As condições atmosféricas não eram ideias para minha saúde. Por isso, depois de dois meses, eu e minha mãe viajamos ao Chile onde ficamos na casa dos meus avós, em Talca. Passados 4 messes voltamos ao Peru onde meu pai continuava trabalhando, mas dessa vez no norte do país e ficamos lá por quatro anos. A partir de então as viagens não pararam. Porém, todas concentravam-se no trânsito entre Peru, Equador e Chile. Aos 8 anos, minha mãe, meu irmão e eu pegamos um voo para um percurso mais longo. Partimos de Santiago e fizemos escala em Santa Cruz. Na verdade, eu não tinha noção de onde esse avião estava nos levando. E não era porque não sabia onde estava parada, mas porque o mundo que conhecia até esse momento, era América do Sul. Em 2005, meus pais tomaram uma decisão que am ampliaria meus conhecimen-

25


tos em geografia, nosso endereço mudaria mais uma vez. Assim como muitas das notícias que marcaram minha vida fiquei sabendo desta por telefone. Meu pai ligou dizendo: – Filha, vamos morar no Panamá, numa cidade chamada David. Confusa respondi: – Onde? Onde fica isso pai? Nunca havia visto nenhum lugar com esse nome no mapa. Por isso, mesmo dentro daquele avião, a única coisa que sabia era que iria me encontrar com ele. Foi assim que em 16 de fevereiro de 2006, data que sempre lembramos em casa, chegamos ao Panamá. Neste dia minha bagagem era uma mala azul que, aos meus olhos, era gigante e para meus braços pesada demais. Cheia de uma seleção especial de brinquedos. Pelo visto, era tudo o que precisava para me sentir em casa.

26


27


2015 Dez anos se passaram sem que eu percebesse e aqueles brinquedos ficaram para trás. Durante esse tempo, poucos me perguntaram de onde eu era pois sabiam que minha família tinha vindo do Chile. Ninguém duvidada disso ao ouvir o sotaque da minha mãe ou ao comer as empanadas que ela fazia. Mas eu falava como panamenha. Não gostava de comer arroz com feijão (comida típica de lá), mas conhecia a história e geografia do país. Não amava sua bandeira, mas cantava para ela toda segunda-feira. Ainda assim, não tinha RG, só residência. Continuava a ser estrangeira.

28


‘’E’’ DE ESTRANGEIRO

11 de dezembro de 2015 – Pai, você sabe que eu ainda não tenho uma assinatura, né? – disse com preocupação. – Bom, pensa em uma logo, porque vão te chamar daqui a pouco – respondeu sem tirar os olhos do seu telefone. – Não é justo! Uma assinatura é coisa séria. É algo que fica para sempre! – reclamei – É verdade, mas não é difícil de fazer. Só não vai inventar algo muito complexo porque você vai ter que usá-la muito. – disse sem complicações. Estávamos no Tribunal Eleitoral na cidade do Panamá para fazer minha cédula de identidade. Por lei o documento só pode ser feito após completar 18 anos. Eu teria cumprido com o requisito em julho. Admirava as assinaturas criativas, ter uma assinatura fora do comum me daria autenticidade, mas 18 anos passaram sem que eu pensasse seriamente na minha. Sem tempo para pensar, acabei imitando a do meu pai. Seu nome é Christian Espejo Pereda, e, sua assinatura, CespejoP. Claro que com uma caligrafia particular. E, por sinal, difícil de imitar para falsificar minha revisão de provas da escola. “MespejoM” foi o que escrevei na máquina para assinar. Pelo menos agradeci ao fato de não ter ficado como um rabisco de criança. Quinze dias depois recebi o carnê de residência permanente com uma foto que até hoje evito mostrar. Do lado dela um “E” do mesmo tamanho. Se eu fosse nascida no Panamá teriam colocado um P. Se meus pais fossem panamenhos e eu tivesse nascido fora do país, seria PE, panamenho nascido no exterior. Mas como não era nem uma nem a outra, colocaram apenas a vogal que me identificava como estrangeira.

29


Nosso endereco , O termo estrangeiro, como tudo na vida, tem uma origem. Provém da palavra francesa étranger e do latim extraneus, que significa estranho, de fora. Mas apesar de não ser panamenha - e as vezes sem reconhecê-lo - me sentia bem naquele país. Tínhamos uma casa lá. E isso era muito significativo para nossa família, pois era nossa primeira e única propriedade. Era o lugar onde nós quatro tivemos estabilidade depois de vários anos indo de um lugar para outro. No entanto, em poucos dias nosso lar experimentaria mais uma mudança. A mesa ficaria com uma cadeira vazia.

30


opcão 2 , – Boa noite! Meu nome é Mariela, tenho 18 anos e sou do Peru. Esta também poderia ter sido a resposta. Afinal, era meu lugar de nascença. O problema com a afirmação era que se alguém me perguntasse em que lugar do Peru eu morava ficaria sem resposta. Cusco foi a última cidade peruana em que residi, mas isto fora aos 6 anos de idade. A antiga capital do império Inca foi nosso lar por um ano, em 2004. Lá fiz o primeiro ano do fundamental, conheci lugares turísticos, aprendi a comer maná e tive uma melhor amiga. Agora restavam apenas memórias daquelas paisagens. Há muito tempo não comia o doce peruano e tinha perdido contato com Michelle. Se eu voltasse para o Peru neste momento, por mais que fosse meu lugar de nascença, não me sentiria em casa. Por isso, dizer que era de lá, não fazia muito sentido para mim.

31


MIDORI Ser estrangeiro não é uma experiência desconhecida. Muitas pessoas saem do seu país para morar em outro por diversos motivos. No Brasil, por exemplo, até 2010 foram registrados 268,5 mil imigrantes, 86,7% a mais do que em 2000. Porém, esse número representa apenas 0,9% da população total, não é muito significativo em proporção ao total de habitantes, mas é uma parcela da população que não pode ser ignorada1. Dos países com maior representatividade na população imigrante no Brasil, os Estados Unidos e o Japão encabeçam a lista. Ao ler Japão um nome veio à minha cabeça. Lembrei de Midori, uma menina de 22 anos que conhecera nos meus primeiros dias na faculdade. Ela trabalhava no Instituto de Línguas onde eu recebia aulas de português. Tinha compartilhado um pouco da sua história comigo em uma visita ao meu quarto. Ambas morávamos no mesmo internato. Sentada na minha cama e com uma almofada no colo ouvi com atenção. Os seus avôs paternos vieram do Japão, cada um por sua conta. Se conheceram em São Paulo onde fizeram sua família. Um dos filhos se apaixonou por uma brasileira que viera do Nordeste e, após 2 anos e meio de namoro e noivado, oficializaram seu amor perante a lei. Em 1997 nasceu a terceira integrante da família. Uma menina de pele clara, cabelo escuro e olhos puxados. Chamaram-na de Midori.

1

Dados retirados do site do IBGE referentes ao censo de 2010. https://cnae.ibge.gov.br/en/component/ content/ article/95-7a12/7a12-vamos-conhecer-o-brasil/nosso-povo/1471-migracao-e-deslocamento.html

32


Por ser o primeiro membro da família resultado de uma mistura entre brasileiro e japonês ela era novidade e alvo de mimos por parte dos parentes. Não conseguia disfarçar a felicidade de ser o centro de atenção. Com frequência suas bochechas generosas inchavam-se fazendo seus olhos ficarem quase fechados. A bebê gostava de sorrir. Midori aprendeu a caminhar e a pronunciar algumas palavras, mas todas em português. Porém, não passou muito tempo para ela precisar aprender outra língua. Completados os três anos, ela e sua família se mudaram para o Japão junto com a avó por parte de pai. “Omizu kudazai” fora a primeira frase que aprendeu em japonês. A utilizou para pedir água durante o voo que durou pelo menos 30 horas. Foram curtas horas para assimilar a mudança. Fechadas as portas da aeronave, o Brasil ficou para trás.

33


Japão Com olhos expectantes e segurando na mão do pai Midori observara com atenção cada detalhe. Era inverno na cidade de Toyokawa e a neve não era tímida. A partir desse dia seus sentidos experimentariam sensações novas que, todas elas, Midori estava ansiosa por descobrir. Midori estudou em uma escola japonesa (Toyokawa Ichinomiya Seibu Shougakko). Dentro do sistema educativo, ela conseguiu o domínio da língua, além de receber uma formação rígida em relação à disciplina. Hoje ela agradece à cultura japonesa pela educação que recebeu. Porém, nem tudo foi positivo nessa etapa escolar. – Lá eu sofria so ia bullying bully g – disse pra mim. m. – Porque? – perguntei imediatamente. – Eu acho que é porque era estrangeira. Do nada os meninos começaram a falar um

34


monte de coisas para mim e eu não queria ir mais à escola. – E você deixou de ir? – Não. Uma tia que morava lá me ajudou a enfrentar a situação. Ela me deu um livro. Você é especial, de Max Lucado. Depois que eu li, falei para mim mesma: “eu não posso aceitar o que eles estão falando porque não é verdade, eu sei o que é verdade e Deus, principalmente, sabe”. E a situação mudou por completo. De minha parte, eu não lembrava de ter sofrido bullying na escola. Mas recordava sim uma situação que me fez sentir desconfortável e ao mesmo tempo confusa. Foi no primeiro dia de aula quando comecei o segundo ano do fundamental. Estava em Santiago, no ano anterior tinha estudado em Cusco. Depois da professora me apresentar como a nova aluna que vinha do Peru escolhi uma carteira e peguei da mochila um caderno para pôr em cima da mesa, junto com meu estojo. Minutos depois de começar a aula um menino que estava na fileira do lado, algumas cadeiras à frente, falou em tom de zombaria: “o Chile ganhou do Peru na guerra”. Eu nem reagi. Já tinha ouvido falar da Guerra do Pacífico em que ambos países se enfrentaram e o Peru perdeu sua embarcação insígnia, O Huáscar. Mas eu não tinha um posicionamento frente a esse evento histórico. E como tê-lo se ambos países faziam parte da minha história?

35


expatriados Algo que chamou minha atenção quando vi os números de imigração na plataforma digital do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Do total de imigrantes internacionais que entram no Brasil, 65% são brasileiros que retornam ao seu país. E me perguntei: será que quando eles voltam ao Brasil não se sentem também um pouco estrangeiros?

36


voltar Frango frito crocante, yakissoba e banana coberta com chocolate eram algumas das comidas que vendiam nas feiras da cidade. Midori gostava de passear em meio às barracas. Com luvas e orelheiras para se proteger do frio caminhava observando as luminárias japonesas que se penduravam do teto nas tendas. A cor vermelho era destaque. No verão ela não ficava de fora dos festivais. Participava das danças com a vestimenta de ‘yukata’, que é uma versão casual do quimono japonês. Observei, através de uma foto, como ela e seu pai caminhavam entre “Sakuras”. Estas árvores se caracterizam por suas flores rosas que aparecem na primavera e simbolizam o inicio de uma nova etapa para os japoneses. Para Midori não foi diferente. Essa foi uma das últimas fotos que tiraria no Japão antes de retornar ao Brasil em 2007. – Como foi voltar para o Brasil? – perguntei, procurando apreender sua experiência. – Esse momento marcou minha vida – respondeu em tom sensível – eu voltei pra cá, mas o Japão continuou dentro de mim. No começo a ideia de retornar parecia legal para ela. Os comentários que sua mãe fazia sobre o Brasil a incentivavam a querer vir. Mas quando chegou de volta a São Paulo percebeu que o que ela queria era estar no Japão. – Quando entrei na escola eu ainda pensava que as coisas funcionavam igual ao Japão. Então, como de costume, deixei meus materiais embaixo da carteira achando que era minha. No dia seguinte tudo tinha sumido.

37


Ela tinha idade para entrar no sexto ano, porém teve que repetir o quinto por causa do português que não dominava. – Me parecia estranho observar o comportamento entre alunos e professores. Até hoje não me acostumo quando algum professor te abraça e pergunta como está sua vida – disse rindo – no Japão isso seria falta de respeito. Ao voltar para o Brasil, para aquele país que era a resposta ao item de lugar de nascimento do seu RG e aquele que representara lá fora, o resultado foi o encontro com um “desconhecido” para Midori.

38


MINHA RESPOSTA – No ensino médio eu tinha uma professora chilena, sabia? – disse Wali em tom de novidade – Sério? – perguntei depois de engolir a comida que tinha na minha boca. Estávamos no refeitório da faculdade na mesa que sentávamos nas três refeições. – Sim, mas não gostava dela porque era muito chata. – adicionou – E pensei que os chilenos eram todos assim, mas você é diferente. – disse usando o garfo para pegar a comida que tinha no prato. Pois é, me apresentei como chilena desde o primeiro dia de aula. E, sem querer, passei a representar as pessoas daquele país. Para Wali, me conhecer mudou a percepção que ele tinha sobre esse povo. Mas eu era mesmo chilena?

39


chi-chi-chi Meu passaporte e RG chilenos, pensava eu, me davam autoridade para afirmar que era do Chile. Afinal, esse era o lugar de que mais lembrava, o país que visitava com maior frequência. Além disso o contato com o Chile sempre foi estreito por causa da família. Meus avôs maternos faziam questão de nos visitar sem importar o lugar onde morássemos. Assim como minha tia Ana e meus primos César e Lucas. Outra prova da minha chilenidade era que o dia 18 de setembro sempre era celebrado em casa. Fazíamos pratos típicos, pendurávamos bandeiras e ouvíamos música folclórica. Por isso, mesmo longe de casa, na celebração de independência do Chile eu amarrava as quatro pontas da bandeira tricolor à grade da minha janela como símbolo do meu amor por esse país. O que as pessoas não imaginam depois de ouvir que sou do Chile é que lá até minha família me chama de panamenha ou peruana e, ultimamente, brasileira. Não me localizo nas cidades e tenho que depender de outros para chegar nos lugares. De certa forma não sentia que dizia a verdade.

40


911 Depois de tentativas frustradas para escolher uma nacionalidade da forma mais válida possível concluí que não me encaixava em nenhuma delas. Então recorri a quem sempre me auxilia quando aparecem questionamentos. Meu pai. E já que milhares de quilômetros nos separavam me conformei com ouvir sua voz. – Pai preciso de ajuda – comecei. – O que aconteceu filhinha? – Se alguém me pergunta de onde eu sou o que respondo? – soltei em tom um pouco inseguro. – É simples. Você diz: nasci no Peru, tenho nacionalidade chilena e moro no Panamá. – Mas não é simples assim... – São fatos – respondeu pragmaticamente. – Sim, mas, de onde eu sou?

41


ouvidos Uma das tantas conversas inconclusas que tive sobre este tema foi com Camila. A conhecia por foto, mas naquela tarde de primavera foi nosso primeiro encontro. Na troca de palavras percebeu que meu sotaque não era brasileiro. – Você não é daqui, né? – perguntou como qualquer um faria. – Sou não – concordei já ciente de qual seria a próxima pergunta. – E você é de onde? – disse esperando desenhar alguma bandeira na sua mente. – Sou do Chile – respondi de imediato – mas na verdade sou de vários países, –acrescentei. – Sim, mas você é natural de onde? – insistiu. – Natural? Tipo, o lugar onde nasci? – Seu lugar de nascença – disse em tom impaciente. – Nasci no Peru – Isso era fácil de responder, disse para mim mesma. – Ah, peruana! – disse interrompendo meus pensamentos e mudando o tema da conversa. Tinha resolvido sua dúvida.


efeitos colaterais Independentemente de onde era estava claro que tinha vindo ao Brasil para estudar. O curso que escolhi foi jornalismo o que também era um desafio. Os dias passaram e fui percebendo que o fato de ter que me comunicar em outra língua, na qual meu vocabulário era reduzido e minha gramática tinha problemas sérios, influenciou para que meu lado introvertido ficasse mais visível. No colégio onde me formei no ensino médio eu era líder, participativa, conversava com todos meus colegas. Mas agora no prédio da faculdade, na sala D-204, não falava com ninguém. Conseguia entender os professores, mas parecia que meu cérebro não captava a informação como antes. Não levantava a mão para opinar, nem perguntas surgiam na minha cabeça. Sem dúvida o pior momento era o intervalo. O professor saia da sala e não tinha ninguém em quem fixar meu olhar. Não porque meus colegas não fossem amigáveis, mas porque não conseguia conversar. Do que eu ia falar? Não conhecia nada do Brasil, já tinha esquecido o conteúdo da aula e tinha decorado os nomes da maioria deles e seu lugar de origem. Além disso, os trabalhos que entregava nas disciplinas voltavam cheios de correções em vermelho. Para onde tinha ido a menina que recebera reconhecimento por excelência acadêmica meses atrás? Mesmo quando alguém tentava puxar conversa com a melhor das intenções começava fazendo a pergunta que me fazia repensar minha existência. De onde você é?

43


id Já que não me identificava cem por cento com nenhum lugar resolvi colocar na descrição do meu perfil de Instagram 6 letras e um ponto no final: nômade. Achava que me definia bem e podia ser o nome da minha identidade. O que não sabia era que essa palavra seria um passo para a primeira descoberta. Quando digitei nômade no buscador de Facebook achei uma comunidade com esse nome, Global Nomad’s World. A foto de capa era um mapa-múndi o que me levou a ler a descrição da página. O que li me impactou de imediato. “Você está atravessando culturas? Lhe é difícil responder à pergunta – De onde você é? Quer saber como a experiência internacional te moldará? Lhe ajudaremos a responder estas perguntas e a compreender sua experiência como nômade global” Parecia que tinha sido escrito para mim! Comecei a ver as fotos e ler as postagens para ver do que se tratava. Havia um único administrador na página, Daniela Tomer. Mandei uma mensagem com a esperança de que respondesse e pudesse me ajudar a tirar algumas dúvidas.

44


espelhos e âncoras – Oi, Mariela. Prazer te conhecer – disse Daniela com um sorriso no rosto. – O prazer é meu – respondi emocionada. A internet nos conectou em questão de segundos e, por uma hora, Boston pareceu próxima de mim. Apesar de Daniela aparecer na minha frente apenas como uma imagem bidimensional, enxerguei seus intensos olhos verdes e pude sentir a textura do cabelo que lhe cobria os ombros. Ela era uma psicóloga clínica que ajudava famílias a usar sua experiência de transição global como uma forma de crescimento pessoal. Inclusive, participa, com outros especialistas no tema, de uma conferência que acontece anualmente em Bangkok, Tailândia e reúne pessoas que querem aprender a lidar com o contexto multicultural. Durante a conversa descobri que tínhamos várias coisas em comum. Uma dessas era o espanhol, língua que utilizamos para compartilhar nossas histórias. – O que te motivou a participar desta comunidade? – perguntei depois de me apresentar. – Bom, foram duas coisas. A primeira delas foi minha experiência pessoal. Minha vida esteve marcada por transições de lugares que mexeram muito comigo. – disse ao relembrar os lugares pelos quais tinha passado – A segunda foi o interesse por ajudar a outros que passam pela mesma situação. Em 1977, – contou-me – ela e seus pais tiveram que abandonar Argentina por questões

45


políticas, e Israel foi o país que os recebeu. Lá Daniela aprendeu hebraico, fez faculdade, casou e formou sua família. Até esse momento sua identidade era algo muito claro para ela. Então, decidiram ir morar na Europa. Quando Daniela saiu de Israel, pensou em como essa experiência de transição cultural iria afetar o desenvolvimento da identidade dos filhos. E percebeu que a sua própria, se veria questionada. – Agora estou falando em espanhol, com sotaque argentino. Mas quando estou na Argentina me sinto alheia, diferente. Eles percebem que tem algo de errado comigo. Você não, mas eles sim. Por isso me sinto mais argentina fora da Argentina. Lá eu sou uma argentina meio falsa, incompleta – Disse com tom de voz relaxado. Ela parecia entender a situação sem pôr em dúvida quem ela era. – A nossa identidade, – começou – possui elementos de fixação e de reflexão. Para entender isto, vamos pensar em uma tenda. Se você armar uma, vai precisar de elementos como o próprio tecido, os paus que formaram sua estrutura e os espeques, certo? – Certo –respondi– tentando ver como se conectavam as coisas. – Supondo que aquela tenda é nossa identidade, há três espeques que vamos chamar de âncoras2 porque lhe dão suporte e a mantem fixada ao solo. Essas âncoras, Mariela, representam o lugar, a comunidade e a família, 2

46

Tradução livre. Anchors.


respectivamente. Porque é a partir delas que obtemos estabilidade e firmeza na questão de identidade. A medida que a conversa fluía, tentava desenhar o mecanismo com ajuda da imaginação. – Enquanto somos crianças – continuou– aprendemos a nos desenvolver no contexto onde estamos, dentro do espaço que a tenda delimita. Nessa etapa, as cordas que a fixam à terra são menores que o tecido, mas depois de entender como a vida funciona ali dentro, as cordas se esticam e o espaço aumenta, tornando aquele lugar um ambiente seguro para nosso desenvolvimento. Daniela me explicou que este processo de expansão é repetido cada vez que enfrentamos situações novas. Como por exemplo, nosso primeiro dia na creche, o primeiro dia na escola, na faculdade ou em um novo emprego. – Seguindo o raciocínio, quando os espeques são fixos e estáveis, enfrentar novas etapas poderá ser um pouco assustador no começo, mas como a tenda é algo conhecido e seguro, temos a coragem suficiente para encarar a situação –comentei um pouco insegura. –Exatamente! –exclamou Daniela– Enquanto crescemos e aprendemos de nós mesmos, nos enxergamos como seres humanos competentes e capacitados para enfrentar o futuro, porque a experiência nos prepara para superar desafios. Até esse ponto o conceito ia ficando claro na minha cabeça, porém, a ideia ainda estava incompleta.

47


– Esses três elementos - lugar, comunidade e família - não servem apenas como âncoras, mas também como espelhos3. É neles onde olhamos e vemos um reflexo que de quem nós somos. Cada espelho nos mostra como somos vistos por aquela âncora específica. – Ou seja, constantemente recebemos mensagens de quem somos de acordo com o meio que nos rodeia. – disse complementando sua fala. – Sim. Por isso a gente repensa nossa identidade cada vez que chegamos a um lugar novo, porque nem nossas âncoras nem es espelhos são os mesmos. – enfatizou– Porém, estes três elementos não exercem uma influência isolada e independente sobre nós. Parte das mensagens que recebemos sobre quem somos provem de como estes três elementos interagem entre si.

3

48

Tradução livre. Mirrors.


contradicões , Jônathas entende bem o que isso quer dizer. As camisas xadrez, calças brancas e óculos quadrados eram símbolo do Tim, apelido que recebera em homenagem ao músico brasileiro Tim Maia. Seu rosto lembrava ao artista que, em vida, também usara seu cabelo no estilo Black Power. Nos seus primeiros anos, Jônathas morou em Teófilo Otoni, Minas Gerais, e frequentou uma escola reconhecida pelo nível de ensino. A maioria das pessoas que frequentavam a instituição eram de classe alta. Apesar de ele ter o mesmo nível intelectual dos seus colegas, e ter feito amizade com vários deles, sua renda familiar era menor. – Às vezes ficava com vergonha quando vinham me buscar. O carro que a gente tinha não era como o dos outros. – disse relembrando a cena. Neste contexto, a imagem de Jônathas no espelho refletia uma imagem de inferioridade econômica. Mas quando o cenário mudava, também modificava-se a sensação. No bairro onde morava, sua família era a única que possuía carrinho de bebê, para a irmã que ainda era pequena. O que supria uma necessidade da sua família, para aquela comunidade era um luxo. Por este motivo, ele recebia constantemente mensagens opostas sobre quem ele era. Não apenas o aspecto socioeconômico era motivo de um reflexo contraditório. Na sala seus colegas não compartilhavam da mesma fé, ele era o único cristão. Na sua igreja, não tinha assunto para bater papo com as crianças da sua idade. Isto fez com que ele crescesse se sentindo deslocado, mesmo sem sair da sua cidade.

49


areia movedica , – No meu caso, – comecei a analisar – minhas âncoras não eram estáveis porque me mudava de país com frequência e me distanciava dos meus amigos. A única constante era minha família. –Durante sua vida você teve várias transições culturais que fizeram com que você se reinventasse e aprendesse novas formas de se expressar, de se vestir, de se relacionar. Mais do que não ser de apenas um país, a sua identidade é múltipla. – concluiu Daniela – Como assim? Posso ter mais de uma identidade? – perguntei. Daniela me explicou sua perspectiva. – Nas gerações anteriores, as pessoas passavam os primeiros anos descobrindo sua identidade e passavam o resto da vida vivendo de acordo com aquilo. Hoje, isso não é mais assim. A inquietação me levou a procurar em outras fontes. Pelo visto, não era uma questão na qual apenas eu tinha parado para pensar. Me encontrei com Zygmunt Bauman, e com a ideia de que em nossa sociedade não herdamos a identidade e sim a criamos. “Passamos nossa vida inteira redefinindo quem somos.” – disse numa entrevista para a Conferência de Fronteiras do Pensamento em 20114. Já que minha pergunta tinha a ver com questões culturais, o título de um dos seus livros pareceu ser apropriado: A cultura no mundo moderno líquido . Nas suas páginas, encontrei sua perspectiva sobre o assunto e uma citação de Heidegger, na qual detive meu pensamento. “A identidade passa em terras estrangeiras do domínio daquilo que é dado, sem exigir cuidados ou manutenção especiais, para o domínio do que está estabelecido e que por tanto exige ação.” Esta frase me deu um vislumbre de como a identidade pode ser construída durante nossa trajetória, mas preferi pedir ajuda a um especialista no tema de cultura para entender a identidade desde uma visão sociológica. 4

50

IDENTIDADE pessoal. Fronteiras do pensamento. 2011. 2 min 42 seg, son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sMaWuh6nw3g&t=2s. Acesso em: 12 ago. 2019.


CULTURA Desta vez o contato foi por telefone. A primeira pergunta foi sobre identidade cultural. Como o lugar onde estamos afeta quem somos? – foi um dos primeiros questionamentos. – Quando você começou a falar já deu para perceber que você não é brasileira, não é? – perguntou Duarcides Mariosa, professor da PUC-Campinas6. – Sou não – respondi sorrindo – Bom, comecemos por aí – continuou – o ser humano é uma unidade biológica que para funcionar precisa de um software, um conjunto de ferramentas. A principal delas é o idioma. Embora todos tenhamos o aparelho fonador, você desenvolve um contato original com um determinado grupo de pessoas que estão dentro de um mesmo país. Você adquire uma língua e também um sotaque. O professor me mostrou, através de exemplos, as duas camadas da cultura, que o antropólogo Gary Weaver (1981)7 ilustra na forma de um iceberg. Na parte visível da porção de gelo encontra-se a cultura da superfície, que representa elementos como os costumes, tradições,

5 BAUMAN, Z. A cultura no mundo moderno líquido. São Paulo: Zahar, 2013. 6 Doutor em Sociologia pela Unicamp. 7 POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.

51


a comida e o idioma. – Essas coisas aprendemos de forma consciente – comentou o professor –. Na parte oculta pela água, está nossa visão de mundo, crenças básicas, valores e linguagem. Esses aprendizados chegam até nós sem que percebamos. – Aqueles aprendizados que acontecem de uma forma inconsciente podem parecer como características biológicas próprias, mas, na verdade, são instintos biológicos resultado de processos orgânicos que são moldados em função da relação que você tem com o meio, seja ele físico ou sociocultural– explicou – Tanto a camada visível como a invisível do iceberg conformam a forma de ser de uma pessoa. – E como acontece esse processo em pessoas que não têm um lugar fixo? – O processo de aprendizado é o mesmo. Você adquire cultura e é capaz de reproduzir e criar novos hábitos. O que faz a diferença são os lugares nos quais você aprende a cultura. Eles te proporcionam a possibilidade de comportamentos. Eu conseguia identificar em mim elementos de várias culturas. Depois de tudo, tinha morado em nove cidades diferentes, e meus pais eram de países distintos.

52


53


54 54


RICA – Mariela, imagina que você tem um jardim – disse Duarcides–. E tem uma mangueira que você conecta na torneira para molhar as plantas. Se essa transparente você veria o fluxo da água passando ou ela mangueira fosse transparente, estaria parada? – Nossa – exclamei diante da brilhante ilustração – Eu não veria o fluxo. – Ela (a cultura) é um fluxo uxo, mas quando você olha através da mangueira, ela está parada, certo? A cultura é isso. É você se identificar com algo q está em constante transformação. O que que parece estar parado, mas que coi estagnada, não é um quadro grudado na te dá identidade não é uma coisa parede, uma mesma cadeira, uuma árvore. O que te da identidade é o fluxo col na torneira são todas as experiências que das trocas, e o que você coloca você teve. – disse, esclarecendo meu panorama –. É com isso que você vai molhar a planta. A água que sai na planta tem diferentes fontes, mas quando s mesmo, você se vê como um ser fixo, com você se vê a si identida própria, algo imóvel, mas que na verdade uma identidade está em fluxo constante. exatame estas rotas que percorríamos para cheEram exatamente gar aos destinos que, traçadas no meu interior, compunham substânc líquida de fluxo constante. Como afirma uma substância Bauman , “diásporas vizinhas ou misturadas também enriqu podem enriquecer-se mutuamente durante negociações a id respeito de identidades desejadas, e ganhar poder, em vez de perde-lo.”. O fato de ser de vários lugares, enriquecia minha identidade, ao invés de en enfraquecê-la. Era peruana, era chilena, podia dizer que era panamenha. Não precisava escolher um, porque não pertencia a lugares, eles sim a mim.. 8 BAUMAN, Z. A cultura no mundo líquido moderno. São Paulo: Zahar, 2013.

55


GLOBALIZACÃO , Esse conjunto de endereços que lembro incompletos, as expressões que aprendi com diferentes pessoas e todas as experiências que me marcaram formam os óculos com os quais hoje enxergo o mundo. Através da globalização, a diversidade cultural ficou mais evidente. Mesmo sem cruzarmos fronteiras, podemos estar em contato com outras formas de pensar e agir. O termo globalização é usado com frequência para assinalar como o mundo se tornou mais conectado. Em primeira instância, ela é um processo econômico de interação e integração relacionado com aspectos sociais e culturais que teria sido impulsionado no final do século 20 e início do século 21. Mas apesar de ser uma palavra atual, o processo de globalização não é novo. Se conhecêssemos melhor a história e voltássemos ao século 16, veríamos que a globalização acontece há tempos. Ao olhar a história, podemos ver o velho continente sendo construído através de múltiplas migrações milenares, guerras, conquistas e também trocas, comparações e transformações dos povos uns pelos outros através desses conflitos. E, se pensarmos no continente americano,

56


não precisamos retroceder muito tempo pa para testemunhar 9 daqueles encontros . Como exemplo disto, Mário de Andrade retratou ret uma das consequências da colonização europeia no B Brasil através da dividisua obra Macunaíma, na qual retrata um personagem per do entre duas culturas. Sua história revela as múltiplas facetas de um ser humano que, por sua vez, representa represe o arquétipo Dividido entre opções do brasileiro e do latino-americano. Dividid entre culturas, mas antagônicas, Brasil ou Europa, oscilando ent 10 pertencendo simultaneamente a todas . Foi entre esses dois mundos que o novo con continente assentou as bases do que é hoje. Os antroan 11 pólogos Laplantine e Nouss , autores do livro li A Mestiçagem, asseguram que o que se criou na América Latina é um estilo de vida, maneiras de ser, modos de ver o mundo, de encontrar os ou outros, de falar, de amar, de odiar, nos quais a plura pluralidade é afirmada não como debilidade, mas como parte da sua identidade.

9

GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Letras 2001. Companhia das Letras, 10 Idem. 11 F NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: LAPLANTINE, F.; Piaget, 2002.

57


ADICIONAR À PLAYLIST Há uma música que expressa a ideia de que somos uma espécie em movimento contínuo. Com frequência me pego mexendo os dedos ao ritmo do refrão.

Yo no soy de aquí Pero tú tampoco Na primeira estrofe, Jorge Drexler – intérprete da música – contextualiza essas frases. E as repete como refrão.

Somos una especie en viaje No tenemos pertenencias sino equipaje Vamos con el polen en el viento Estamos vivos porque estamos en movimiento Nunca estamos quietos, somos trashumantes Somos padres, hijos, nietos y bisnietos de inmigrantes Es más mío lo que sueño que lo que toco A música olha os momentos migratórios através da história de uma perspectiva antropológica. Mas, por trás desses versos também há uma história de alguém cujo passado está marcado pela presença de várias culturas. Jorge Drexler nasceu no Uruguai, porém os pais tinham raízes diferentes. O pai, natural da Alemanha, fugiu do holocausto e chegou ao país sul-americano onde conheceu sua esposa, descendente de espanhóis e portugueses. A família também morara em Israel, onde Drexler aprendeu a falar hebraico.

58


Atualmente, ele reside em Madrid. O clipe da música cativa e não deixa espaço para as distrações. A partir de diferentes ângulos, mostra os velozes passos de uma jovem indígena do povo dos Rarámuri, que assentados no estado de Chihuahua, no México, se caracterizam por ser campeões em velocidade. O próprio nome com o qual são chamados significa “pés leves”. A protagonista, ganhou uma ultramaratona de 100 quilômetros correndo de sandálias, como é a tradição. A ideia do constante movimento da humanidade é um dos temas prediletos do compositor e a música, o melhor meio que tem para contagiar sua paixão pelo que significa ser global. Interessantes também, são os lugares onde o vídeo foi gravado. Em contraste com o cenário natural onde a menina corre e pula as rochas, o do intérprete é fechado e repleto de livros. Algo que parece não ter relação na verdade tem semelhanças. A intenção de mostra-los em lugares tão distintos é reconhecer que assim como pelos campos, nas bibliotecas também pode se viajar12.

Yo no soy de aquí Pero tú tampoco De ningún lado del todo De todos lados un poco

12

JORGE Drexler - Movimiento – Entrevista. Zambombazo. 2018, 6 min 18 seg, son., color. Disponível em: https://www.youtube.com/ watch?v=g5_4Ks_2Sgo

59


século xxi Mas, porque falar que vivemos em um mundo globalizado é tão atual? Por mais que o deslocamento humano seja uma característica implícita na história da humanidade, há aspectos que mudam nesses encontros entre povos. Ao olhar para o passado, Bauman12 identifica as fases da trajetória humana e as divide em três. A primeira emigração em massa mobilizou cerca de 60 milhões de pessoas da Europa para diferentes partes do globo. A etapa de colonização e conquista de “terras vagas” representou um processo de extensão cultural do então único território “superpovoado”, o velho continente. Neste período, América recebera europeus no seu território o que ampliou as fronteiras do mapa-múndi conhecido no ocidente até então. A etapa de aventura não durou para sempre. O autor comenta que com o declínio dos impérios coloniais, algumas das populações nativas seguiram os colonialistas que retornavam à terra natal. Estes estabeleceram-se em cidades nas quais deveriam ajustar-se à única visão de mundo, o da assimilação, criado na fase inicial do processo de construção nacional como forma de lidar com minorias étnicas, linguísticas ou culturais. Dessa forma, traços limítrofes foram criados para que surgissem, assim, os países cujas bandeiras reconhecemos hoje, e formas de pertencer a eles. A terceira fase da migração moderna, que teve início no final do século 19, introduz a era das

60


diásporas que Bauman13 descreve como um “arquipélago infinito de colônias étnicas, religiosas e linguísticas” e se caracteriza pela redistribuição global dos recursos vivos e das oportunidades de sobrevivência ao atual estágio de globalização. Apesar de as fronteiras geopolíticas permanecerem, elas são cada vez mais permeáveis. Mesmo que precisemos cruzá-las para sair de um lugar, há meios que possibilitam que esses lugares cheguem até nós, mesmo sem nos levantarmos da cama. Na sociologia, a nova configuração global é um tema de estudo. O professor Duarcides me explicou que, apesar dos povos serem endógenos desde o início, não tinham constantes trocas de ideias e valores. – A globalização veio para intensificar essas trocas – ressaltou –. Neste momento você está em Engenheiro Coelho com seu computador e eu estou com meu telefone numa sala da PUC, mas estamos falando por Skype e poderíamos adicionar alguém da Espanha sem problema algum. – É verdade – disse assentindo com a cabeça, mesmo sem ele perceber. –Você – continuou dizendo – está sabendo coisas ao meu respeito e eu estou sabendo de você. Essa informação não apenas enriquece, mas desestrutura a base de conhecimentos que tínhamos anteriormente. Não destrói, mas amplia. Por meio de exemplos, Duarcides me mostrou que ao mesmo tempo em que a globalização me aproxima da identidade cultural permitindo possibilidades de conexão global, faz com que eu questione a mim mesma. Ainda procurava respostas. 12 13

BAUMAN, Z. A cultura no mundo líquido moderno. São Paulo: Zahar, 2013 Idem.

61


UMA ALTERNATIVA

Neste momento entendia um pouco melhor a identidade cultural. Mas continuava sem reposta quando alguém queria saber minhas origens. Navegando na web achei um site chamado Life Story Therapies. Your voice, your tribe, your place. Mal sabia eu que o próximo clique seria o início de uma descoberta importante na minha vida. O título do post era Third Culture Kids: An Alternative Answer to “Where are You From?”. Não demorei para descer o cursor e jogar meus olhos no texto. Rachel Cason14 era a administradora do site. Com base em seus conhecimentos e sua própria história, se dedicava a ouvir a pessoas que, como eu, procuravam uma resposta para aquela pergunta. Nenhum dia passava sem que lembrasse dessa incógnita. Enquanto tentava mudar de assunto, na roda de amigos havia outros que respondiam facilmente. – Prazer, sou de São Paulo – dizia Kemelly com um sorriso e um forte aperto de mãos. – Vim de Brasília – falava Débora – Sou Mexicano – afirmava Jorge, tentando pronunciar nasalmente o “a” que antepõe o “n” do gentilício que o identifica. Eles tinham certeza, não duvidavam, não tinham que pensar para dizer. – O que diferencia alguém multicultural de uma pessoa monocultural? – perguntei para Rachel. Tínhamos marcado de falar por Skype naquele dia. Ela

62


estava contente em poder conversar sobre um tema que a identificava. Rachel crescera como filha de missionários britânicos no Níger, França e Inglaterra. Aos 16, retornara ao seu país de origem onde estudou por dez anos na Keele University. Lá, fez Licenciatura dupla em Sociologia e Francês, e depois Mestrado em Ciências Sociais, seguido pelo Doutorado em Sociologia. Esta última etapa lhe possibilitou um maior entendimento sobre seu próprio contexto multicultural e lhe forneceu ferramentas para conectá-la com as histórias dos outros. – Pessoas monoculturais são aquelas que podem ver através de apenas um par de óculos – respondeu com o sotaque britânico que fazia com que precisasse prestar total atenção. Ela encontrava-se em casa e acabava de pedir desculpas porque teria que atender a filha por alguns minutos. – Não se preocupe – disse sorrindo. Estava feliz de poder falar com alguém que me entendesse, mesmo a 10 mil quilômetros de distância. Por causa de atender a outras crianças de terceira cultura, ela concluiu que há uma diferença entre a cultura de uma pessoa que experimenta constante transições geográficas e a cultura das que não vivem isto. – Nós estamos conscientemente criando nossa própria cultura– disse me olhando através da câmera do seu computador – Questionamos nossa própria cultura e nos aproximamos dela com um olhar crítico.

14

Doutora em Sociologia pela Keele University. Oferece terapia de aconselhamento para clientes no Reino Unido, além do serviço atual de análise e acompanhamento de histórias de vida também disponível para TCKs ao redor do mundo.

63


o termo Você já misturou duas cores de pintura que resultaram numa terceira cor diferente das originais? O que acontece neste caso é mais ou menos o que se passa com as crianças de terceira cultura (TCK). Rachel me explicou que ser TCK é ter crescido em pelo menos um país e cultura diferente da própria. Uma criança que passa os anos de desenvolvimento num país no qual não nasceu mantém características da cultura original pelo contato com os pais dentro de casa. Porém, quando ela se relaciona com o entorno, também adquire comportamentos da cultura do país no qual reside. Fruto do contato com estas suas culturas, surge uma terceira. Naquele momento meus neurônios começaram a se movimentar rapidamente enquanto meus olhos se abriam cada vez mais. Para entender com maior profundidade este termo, Rachel me recomendou que procurasse um livro específico, Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds16. Achei o material na internet e o adicionei ao carrinho de compras. Em 15 dias, suas páginas estavam nas minhas mãos. Foi assim que conheci Ruth Van Reken, que junto com David e Michael Pollock dedicaram-se sete anos à escrita da obra. A que comprei era a terceira edição, atualizada em 2017. Porém, o trabalho dos autores começou bem antes. Em 1997, Ruth participou da primeira conferência que reuniu TCKs no Equador. Assim como ela, os que assistiram ao evento eram filhos de missionários que tinham crescido em um contexto multicultural.

64


– Entendo seus questiona questionamentos – disse Ruth depois de ouvir meu caso– 35 anos atrás as pessoas não acreditavam neste assunto, porém sofrimento era muito comentada. Elas não a questão de identidade e sofrimen sabiam ver os benefícios de tudo aquilo e muito menos como utilizá-los. Ruth nasceu na Nigéria e voltou para os Estados Unidos, país de origem dos pais, na adolescência. Depois de alguns anos, voltou para estudar no país norte-ameÁfrica, mas, por motivos acadêmicos decidiu estuda emocionais que a motivaricano. Esta série de transições geraram crises emocio ram a pesquisar sobre o tema, atividade que desempenha até hoje. desemp Porém, o termo foi um legado do trab trabalho que outra Ruth desempenhou entre 1950 e os anos 2000. Ruth Hill Useem. Com ajuda dos seus estudos em sociologia e antropologia, ela se dedicou a analisar o perfil de filhos american na Índia, lugar onde passou de missionários americanos parte significativa da sua vida. Mas as crianças crian de terceira cultura não são apenas aquelas que crescem num contexto missionário. Ruth também se dedicou a observar filhos de expatriados, –pes –pessoas que, depois de anos morando no exterior, voltav voltavam ao seu país de origem– e os colocou na mesma cate categoria. Afinal de contas tinham algo em comum, eram crianças que acompanhavam seus pais em uma outra cultura. Filhos de militares, empregados de multinacionais e diplomatas também são parte da lista.

16

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.

65


Porém, há aspectos mais específicos que as crianças de terceira cultura compartilham. Além do fato de terem morado em diferentes países e estar em constante mudança geográfica, há quatro características que fazem parte da vida de um TCK. A primeira delas é a expectativa de repatriação, ou seja, sabem que algum dia irão voltar ao país de origem. Isso acontece porque os pais se mudaram por tempo determinado devido à profissão ou estudos, não apenas como imigrantes que vão para um lugar com intenções de ficar. Outro fator são as diferenças visíveis que existem entre a pessoa e o meio onde se encontra. Ela é vista claramente como estrangeira, seja pela língua, aparência ou ambos. Em terceiro lugar está o estilo de vida privilegiado, assinalado nas vantagens oferecidas pelas companhias ou organizações por causa de estarem vivendo em uma cultura diferente. E por último, encontra-se a identidade ligada ao sistema. Isto é resultado de estudar ou trabalhar internacionalmente através do patrocínio de companhias especificas, departamentos de serviço internacional, missões religiosas ou entidades militares, às quais as crianças se sentem fortemente identificadas. O tempo que a pessoa passa fora do seu país de origem não determina se pode ser, ou não, considerada como de terceira cultura. Por mais que a etapa na qual essa transição aconteça a afete de formas diferentes, ela continua a ser TCK sem importar se experi-

66


mentou isto na infância ou adolescência. Por outro lado, também há um nome para aqueles que depois de alcançar a vida adulta morando em um só lugar, experimentam transições internacionais na etapa pós maioridade. Eles são chamados de Third Culture Adults. Por fim, o termo Third Culture Kids (criança de terceira cultura) não é apenas para crianças, mas indica que a experiência aconteceu na etapa formativa do indivíduo. É importante ressaltar que da combinação de duas cores, o resultado será sempre o mesmo. Da mistura do vermelho e azul obtemos roxo, se juntamos amarelo e azul sai verde. Mas, no caso das TCK não há combinação cujo resultado possa ser previsto. Cada pessoa tem uma experiência totalmente diferente através da incorporação de aspectos culturais dos países com os quais ela tem contato. – O tema de identidade está em alta – explicava Ruth Van Reken – cada vez mais, livros e filmes tratam este assunto, porém não têm a linguagem adequada. Histórias da vida real são difundidas, mas carecem de um marco conceitual no qual desenvolver o pensamento. TCK é o novo conceito – disse confiante. Ouvir esta afirmação me deixou ainda mais curiosa para entender o que é ser uma criança de terceira cultura e mergulhei naquele termo.

667


ser tck Ao ler o livro sobre TCKs me deparei com uma série de características que observava em mim. Uma delas foi o sentimento de “infidelidade” cultural. Pude entender bem este ponto quando lembrei do jogo entre Chile e Peru na semifinal da Copa América de 2019. Prestes a começar os primeiros 45 minutos, me acomodei no sofá da casa do meu avô para ver a disputa. Não costumo assistir futebol, mas ver os times representando seus países sempre foi motivo de emoção. Antes da bola rodar pelo campo, os jogadores se posicionaram para cantar seus respetivos hinos nacionais. O chileno foi o primeiro. Puro Chile tu cielo azulado, puras brisas que cruzan también – cantei unindo minha voz à seleção e torcedores chilenos. Depois de finalizado o canto, o Chile ficou em silêncio para dar lugar ao hino nacional do Peru. Mas eu continuei cantando com a mesma emoção – Somos libres, seámoslo siempre, seámoslo siempre. – há muito tempo não cantava estas estrofes e aproveitei a oportunidade para entoar as notas que cantava quando lá morei. Nesse sentido, torcer para mais de um país era minha vantagem. Na última Copa do Mundo FIFA de 2018, realizada na Rússia, mesmo sem o Chile ter participado, por exemplo, torcia para o Peru fazer gols. Depois que o time foi eliminado, ainda podia contar com o Panamá para gritar “vamos!”. O aspecto de ‘fidelidade’ também pode ser visto em coisas mais complexas como a política, onde a discordância de princípios pode ocasionar situações desconfortáveis. Mas para mim, sem dúvida o mais difícil seria escolher a culinária favorita. A comida em minha casa sempre foi variada. No café da manhã e no jantar comíamos fruta, iogurte, pão com geleia ou

68


com queijo, coisas simples. Mas nos almoços, o menu era mais amplo. Um dia podia ser “tallarines al pesto”, outro “porotos con riendas”, ou “pupusas”. Também comíamos “patacones”, “arroz chaufa” e “plátano con queso.” Minha mãe gostava de cozinhar e em cada lugar aprendia pratos novos. O único que não variava era o pão, que ela mesma fazia. Devido a isso, nosso paladar estava acostumado a experimentar coisas diferentes. Apesar de comer variedade de pratos, devo reconhecer que quando soube que no Brasil a base do almoço era arroz e feijão fiquei preocupada. Não era fã dessa mistura, não naquele momento. Com o tempo me acostumei ao sabor. Desde então, escolho diariamente entre feijão preto e feijão carioca. Raras vezes estes elementos ficam ausentes do meu prato. experiência, as papilas gustativas Pela minha exper podem ser reeducadas. Acontece com quem deixa de comer doce ou ado adota um novo regime. Somos adaptáveis dos pés à cabeça. Poadap rém, algo a que não consigo me acostumar é a despedidas. .

69


buguei Apesar de saber que não ficaria em um lugar por muito tempo, fazer amizades era algo de que gostava. Não tinha dificuldade em dar o primeiro passo e perguntar o nome de alguém desconhecido. – Oi, tudo bem? – falei para o jovem que estava do meu lado na livraria da faculdade. Eram meus primeiros dias no interior do Brasil. Vim estudar no Centro Universitário Adventista de São Paulo, campus Engenheiro Coelho. – Oi – respondeu timidamente. – Você é de onde? – perguntei curiosa. O tinha ouvido trocar palavras em francês com o jovem que o acompanhava. – Chad –disse com um sorriso. – Do you speak english? – perguntei ao perceber sua dificuldade com o português. Ele fez um aceno com a cabeça e o dialogo ficou mais fluido. Segundos mais tarde, uma menina que falava espanhol interrompeu a conversa. – Mariela, sabes donde queda la secretaria? – disse com pressa, tentando achar o lugar para entregar seus documentos estudantis. – It’s in the other building – respondi automaticamente – Ah, no, disculpa. Queda en el edificio de al lado – disse corrigindo a frase anterior. Ela agradeceu e continuou seu caminho. – O que está acontecendo? – perguntei para mim mesma enquanto tentava continuar a conversa com Kassao.

70


Vieram à minha mente cenas de televisão onde celebridades hispanas que moravam nos Estados Unidos eram entrevistadas. Algo que me incomodava era que mesmo eles sabendo que essas entrevistas eram para meios hispanos, insistiam em falar em inglês. Não fazia sentido para mim. Mas, depois do episódio na livraria, minha opinião mudou. O inglês era, de certa forma minha segunda língua. Durante os anos que morei no Panamá estive em contato com o idioma por causa da grade curricular dos colégios em que estudei. Tínhamos 5 disciplinas que eram ministradas em inglês, conteúdos de áreas específicas. Gramática, escrita, fala e fonética estavam inclusas. Os métodos que os professores utilizavam eram dinâmicos, por isso era uma das minhas matérias favoritas. Mesmo sem falar fluentemente, depois dos anos de estudo conseguia me comunicar. Enquanto estava falando com Kassao, meu cérebro começou a pensar em inglês. Mas, quando a menina que, como eu, tinha o espanhol como língua materna me fez a pergunta, não tive tempo de ‘trocar’ o idioma. Quando comentei este fato com Ruth Van Reken, ela me disse que era algo comum para TCKs. E que, na verdade, qualquer pessoa que falasse várias línguas se encontraria com este problema. Mas isso não acaba aqui. Depois de 10 meses no Brasil, quando voltei para visitar meus

71


pais, meu ouvido também tinha mudado um pouco. Fizemos escala em Bogotá por quase três horas, e, como de costume, preferi esperar perto do portão do meu voo. Do meu lado encontrava-se uma família colombiana que também esperava a hora de embarcar. Minha foi a surpresa quando, ao ouvi-los falar me pareceu que falavam de uma forma estranha. Mas era espanhol, como podia ser estranho? Detive a leitura do livro que tinha no meu colo para pensar nisso. A resposta que achei naquele momento foi que, depois de passar vários meses ouvindo quase nada de espanhol, meu ouvido se desacostumou com os sons característicos da língua. – Que estranho – disse apenas movimentando os lábios.

72


Já na Cidade do Panamá, me preparava para embarcar no último voo que me levaria ao estado onde estava minha casa, Chiriquí. Antes de subir no avião, entreguei meu passaporte e passagem para o moço da companhia aérea conferir. Ao receber meus documentos de volta ouvi: – Buen viaje! Ao que respondi de imediato – Obrigada. Falar em português de forma continua por vários meses tinha aberto espaço para que esse tipo de situações acontecesse com frequência. Quando falava espanhol, era comum que utilizasse palavras do porex tuguês, por causa da similaridade. Ou expressões que eq adotei e que não conseguia achar um equivalente na minha própria língua.

73


Casa Mesmo com essas confusões, estar em casa era o respiro que eu precisava. Não apenas por necessitar de um espaço confortável e mais exclusivo, mas porque era meu lar. Essas três pessoas, mãe, pai e irmão, tinham sido a única constante na minha vida. O teto que nos abrigava tinha mudado pelo menos 18 vezes. Também escrevi sobre isso no meu blog. “Dormir até meio dia, andar de pijama as 24 horas. Cantar quando quiser e dançar como quiser. Cozinhar com a receita da vó e às vezes queimar o arroz. Casa é isso. Casa é minha mãe me chamando até gastar meu nome. É passar noites desconfortáveis porque meu irmão esteve brigando pela coberta o tempo todo. É meu pai acordando a gente para fazer o culto. Casa? Casa é mais do que um grupo de paredes e teto. Já moramos numa mansão, em um apartamento, em casas grandes e outras bem pequenas. O total, perdi a conta. Mas nós continuamos em quatro.” Porém, estar em casa não matava toda a saudade que tinha no coração.

74


lar O primeiro ano no Panamá não foi tão fácil para mim. É verdade que nosso núcleo familiar estava completo, mas meus avós, meus primos e tias com quem tinha morado no ano anterior tinham ficado no sul do continente. – Pai, porque temos que morar tão longe? - reclamei em prantos numa noite chuvosa. Eu sei que aqui estamos bem, mas de que adianta isso se não temos família por perto? – argumentei apertando com as mãos aquele cobertor vermelho que era um dos poucos pertences que tinha na nova casa. Não lembro o que ele me disse, mas sim daquele sentimento de impotência. Meu coração estava dividido e a parte que tinha ficado comigo não era suficiente.

75


INESPE INESPERADO Depois de um tempo me acostumei com a distância. Mesmo com saudade da família do Chile nós quatro permanecemos juntos e solidifi sol camos nosso lar. O que eu não sabia é que deixar o Pa Panamá para estudar no Brasil também mudaria minha percepção per do que é um lar.

76


PEDACOS DE MIM , – Estimados passageiros chegamos ao Aeroporto Internacional de Guarulhos. A temperatura é de 22 graus – foram algumas palavras do capitão quando o avião pousou na pista. Minha mãe estava junto naquele voo. Ela viera para conhecer o lugar onde eu estudaria. Tive sua companhia por uma semana, que me ajudou muito com a documentação e com tudo o que iria precisar até dezembro, no nosso próximo encontro. Uma vez por ano voltava ao Panamá. Nas férias de julho aproveitava para visitar meus avós no Chile. Ficar triste ao deixar esses dois países era normal. Minha família estava lá e, de certa forma, estava acostumada a essas separações. O estranho foi quando, depois de passar dois anos estudando no Brasil, meu coração também sofreu quando o avião começou a voar. Voltar para casa no final de 2017 foi algo estranho. Não me sentia totalmente à vontade lá. Sem entender porque, as primeiras semanas não foram tão animadas quanto eu tinha planejado. Esse sentimento inexplicável me deixava desconsertada. Quando vim para o Brasil, em 2018, passei alguns meses me sentindo desanimada. Estava em um lugar que gostava muito e onde tinha amigos mas, de certa forma, essas transições me afetavam mais do que eu pensava. Comecei a perceber que minha ideia de lar estava fragmentada.

77


PERTENCIMENTO Apesar de não poder ter todas as peças num só lugar, há algo que continua sendo essencial para os TCKs e para todo ser humano. –Pertencer continua sendo uma necessidade básica. – assegurou Daniela. Ela me explicou que sem esse senso de pertencimento, não podemos continuar crescendo e ser o que somos. Por isso, precisamos de uma comunidade da qual possamos fazer parte. A tecnologia contribui para criar comunidades virtuais que nos conectam com pessoas, formando vínculos de pertencimento. – A gente, por exemplo, talvez nunca se conheça pessoalmente, mas quando este encontro terminar você vai ter a sensação, espero, e eu também, de que conhecemos mais uma pessoa que pertence ao mesmo núcleo. Nascer em um lugar é, depois da família, a primeira forma de pertencer a algo. Ao receber o RNE você diz “eu sou daqui”, “eu pertenço a este lugar”. E isso te dá segurança. Com muitos TCKs é tudo ao contrário, olham seu passaporte e dizem “o que eu tenho a ver com isto?”

78


– Já atendi pessoas adultas que se perguntam: “como, nesta etapa da minha vida, posso estar tão confuso? Supõe-se que deveria saber quem sou e ter uma ideia de para onde dirigir minha vida, onde morar. Como é possível que não possa responder a uma pergunta tão simples como ’De onde sou?’”. Em alguns casos, este questionamento pode provocar transtornos mentais como ansiedade e depressão. – ela advertiu sobre a seriedade do assunto. Por mais que aquela fosse uma pergunta complexa, era válido repensar as respostas que pudesse ter.

79


MARCADA

– Midori, quando alguém te pergunta de onde é você sabe o que responder? –perguntei, desviando meu olhar ao adorno que pendurava do seu pescoço. Era vermelho e no meio segurava uma pedra verde-água. – Não – respondeu imediatamente – não sei o que responder porque isso me confunde. Neste caso eu pergunto: você quer saber a origem; onde eu morei; ou onde eu estou morando? Já respondi na lata que era de Araras, porque moro lá. E acham que eu sou ararense. Aí perguntam, “ você nasceu lá” ? E tenho que explicar. Mas geralmente essa é a resposta que eu dou. Mesmo não sendo, mas tudo bem, né? – disse dando risadinhas. – Seu coração está dividido entre esses dois países? – perguntei na tentativa de chegar a seus sentimentos. – É mais puxado para o Japão. O Brasil, apenas nasci aqui. aqu Têm coisas do Brasil dentro de mim, sei que tê têm, mas quando eu estou lá parece que me sinto mais em paz do que quando es estou aqui. É inexplicável. in A última vez que M Midori visitou o Japão foi fo em 2015. – Como as pessoas te olhavam lá? – perguntei querendo imaginar o ambiente.

80


– Nossa, todo mundo me olhava. – disse ela – Eles percebem quando você é mestiça. Aqui acham que sou “pura” (cem porcento japonesa), mas lá não, eles sabem que sou mistura. Então todo mundo me olha, por onde eu passo me olham. E também sou um pouco mais alta do que as meninas de lá, elas são muito baixinhas. Isto acaba me destacando também. Algumas pessoas, eu percebo, tiram fotos. Ignoro e finjo que não é comigo. O olhar deles é inexplicável, não sei o que acham de mim. – confessou Midori. –Você gostaria de ter nascido lá? Faria diferença para você? – perguntei com expectativa. – Acredito que teria sido ruim porque lá é 8 ou 80. Como mulher que nasce lá ou você fica muito submissa, porque são sumariamente patriarcais, ou fica muito rebelde. Essa é a tendência, é difícil ver um equilíbrio. – Mas se seu país de nascimento tivesse sido o Japão? – insisti. –Bom, pensando no agora eu seria mais feliz porque teria a nacionalidade de lá. Nascer num país que você busca tanto e tem como referência... seria mais feliz. –disse pensativa. Penso em Daniela. Ela tem experiência com este

81


tipo de situação. Tem quatro filhos que a acompanham nas transições de lugar. Em nossa conversa, via internet, eu e a psicóloga falamos sobre Midori. – Midori, no Japão, se sentiu muito conectada com a cultura e hoje não pode deixar isto para trás, precisa manter este elemento nela. – explicou Daniela – Porém, o que ela ama é “Japão sem estar em Japão”. Este é o grande diferencial que marca os TCKs. Pertencem a todos os lugares e a nenhum ao mesmo tempo. “Realmente, como escolher um país para dizer que pertenço a esse lugar?” – pensei resignada. – Ser TCK é estar dentro de uma comunidade de pessoas semelhantes não por serem da mesma nacionalidade, mas por terem a mesma experiência – disse me animando – O que quero dizer é que não nos conhecemos. Não sei de você mais do que as palavras que temos trocado nestes minutos de conversa. Mas tenho certeza e já posso sentir que há coisas que temos em comum. O sentir-se alheio, saber que leva tempo para entrar em uma nova comunidade, a habilidade de mudar de língua e muitas outras coisas que temos em comum porque somos parte desta cultura. A diferença está no fato de que a cultura do TCK não existe em um lugar fixo, ou seja, não tem país.

82


83


Pontes Entender a si mesmo é essencial, porém, os relacionamentos interpessoais também são parte do dia a dia do indivíduo e cada pessoa tem suas próprias formas de entender a cultura de acordo com a sua experiência. Assim como existem relacionamentos que nos dão estabilidade – âncoras –, existem os relacionamentos que nos permitem fazer conexões – pontes17. Michael Pollock, educador e co-autor de Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds, tem dedicado sua vida a trabalhar com crianças de terceira cultura ao redor do mundo. Hoje, ele trabalha em uma organização – Interaction International – que dá apoio a jovens que fazem parte da comunidade TCK. – Os relacionamentos pontes são aqueles que temos com pessoas que podem entender o contexto no qual crescemos. São pessoas em que investimos tempo e nas quais confiamos. Michael ilustrou a ideia com uma experiência pessoal que teve ao sair da faculdade aos 22 anos. Seu rumo era desconhecido, mas o objetivo estava claro. – Amo trabalhar com crianças e meu desejo era trabalhar em escolas internacionais – contou. Mas além dos sonhos profissionais, havia amizades que não queria perder. Ciente de que sua vida o levaria por caminhos diferentes dos de seus amigos decidiu expressar seu desejo de permanecer na vida de um de seus mais íntimos, Nick. – Olha – disse a Nick em tom sério – você é doutor, você pode fazer muito dinheiro. Eu sou

84


professor, não vou ser rico e penso em trabalhar ensinando ao redor do mundo, como missionário talvez. ensina Gostaria de continuar sendo seu amigo, mas não sei se isto Gostar vai dar certo. Eu realmente valorizo a sua amizade, mas entendo se para você não fará sentido mais. Ao relembrar aquela conversa reconheceu que não soube se expressar da melhor forma, mas foi o jeito que ele achou para demonstrar que se importava com a amizade acho que ambos tinham. – Do que você está falando? – perguntou Nick – Nos conhecemos há quatro anos, conheço sua família, você conhece a minha, você é como um irmão pra mim! Nós co temos que ser amigos. – disse decididamente. –Está falando sério? – perguntou Michael, surpreso pela –E resposta que acabava de ouvir. Ele não estava colocando um ponto final, mas queria saber se não iria se iludir ao pressupor que Nick estava disposto a manter o contato. Michael entende que cada TCK tem valores diferentes a que dá prioridade. Podem ser pessoas, lugares, ou a vida profissional. E é importante reconhecer qual deles tem mais importância para saber que decisão tomar em situações onde não se pode ter tudo. Quando alguém se torna valioso é primordial tomar a iniciativa e expressar o quanto essa pessoa é valiosa.

17

Tradução livre. Bridges.

85


Para os TCKs, a forma de estabelecer uma amizade pode ser diferente do resto. Geralmente, uma criança de terceira cultura cria laços de confiança com pessoas que conhecem sua história, com quem pode compartilhar seus sentimentos. – Nos Estados Unidos esta aproximação é sinal de intenções de ter um relacionamento sentimental com alguém. Pois um dos valores dos jovens nesse país é o respeito à individualidade. Por esse motivo é importante entender como os relacionamentos funcionam em cada lugar. Seguindo esse conselho Michael pode fazer amizades e conservá-las até hoje. – Tenho um filho que tem seu nome e ele tem um filho com o meu – disse agradecendo aquela conversa que tivera com Nick antes deles se separarem pela primeira vez.


Até aqui Aquela pergunta que me fizeram no primeiro dia de aula tornou-se um questionamento interno sobre minha identidade. Além da confusão, causou incômodo. Porém, foi essa inconformidade que me levou a procurar respostas. Ainda há dúvidas pendentes, mas agora sei que não sou a única pessoa que se sente estrangeira, independentemente do país e mais, não sou a única que se sente alheia no planeta terra. Nossa identidade não é estática. Ela é diversa, é plural. E cada um constrói sua cultura de acordo com o contexto em que se encontra. A globalização permite ampliar este espectro nos aproximando de diferentes visões culturais sem precisar sair de casa. E o mais tranquilizador: há um nome para tudo isto. Sou uma criança de terceira cultura. Com ganhos e perdas, mas acima de tudo, disposta a construir pontes.

87


88


UMA ODISSEIA 89


Reflexo –Chinesa, japonesa, o que você é? –perguntaram três meninos rodeando-a em um dos corredores da escola. Esta pergunta a pegou de surpresa e roubou as palavras. Desafiantes e com caretas os meninos tentaram imitar a aparência de Lisa, esticaram as pálpebras dos seus olhos e insistiram. “Chinesa, japonesa, o que você é?”. Os olhinhos puxados da menina de 5 anos eram novidade naquele lugar em que, mesmo se ela tentasse responder, suas palavras seriam como uma bola que bate na parede e volta. As palavras apareceram ao lembrar do seu avô que, por parte de pai, era originário da China. Era por causa dele que levava o sobrenome Liang. – Chinesa – respondeu aos meninos. – Pintinho chinês – exclamaram rindo e apontando para ela. Lisa não conseguiu se safar deles logo de cara. Ao chegar em casa, seus pés a levaram depressa ao banheiro para ver se o espelho teria respostas. – O que tem? – pensava Lisa ao contemplar seu rosto refletido no metal. Suas mãozinhas tentavam achar alguma coisa que explicasse porquê de os meninos terem sido rudes com ela. Sua dúvida acabou quando percebeu que ela não era igual a seus colegas. Na frente do espelho pode observar seus incontáveis fios de cabelo que pareciam tingidos por carvão. Chegou mais perto para ver as íris que lhe permitiam enxergar e pareciam banhadas por melado de cana; as sobrancelhas povoadas que herdara do seu pai como linhas que demarcavam a largura dos seus olhos. Lisa era um contraste em relação

90


aos cabelos loiros e olhos azuis que abundavam naquela escola do condado de Fairfield. Apesar de ser descendente de chineses, Lisa não sabia muito sobre a China. Não conhecia a Ásia nem tinha costumes costume orientais. Conhecia, de fato, a Guatemala – país em que nascera nasce e no qual aprendera espanhol. Porém, embora seu pai fosse guatemalteco, gu nascido e crescido lá, Lisa também tinha passaporte estadunidense, esta por causa da mãe que, por sua vez, tinha Irlanda, França, França Alemanha e Inglaterra nas suas origens. Li não apeElizabeth Liang nas cresceu num contexto onde várias culturas se encontram. Ela as carregava no sangue.

91


invisível A cena se repetiu no sexto ano quando, em 1981, voltou do Panamá para morar em Connecticut, mas dessa vez em Westport. Além de ter crescido alguns centímetros e falar com sotaque distinto a sua cor já não era a mesma por causa do sol. –O que você é? –perguntavam para ela. Dentro da sua cabeça Lisa respondia enfrentando tal questionamento. “O que você quer dizer? Sou por acaso um cacto? Sou uma pessoa! O que tem de errado com isso? Você vai mudar seu comportamento em relação a mim de acordo com o que eu te diga? Você vai ser mais ou menos educado? Você vai ser mais caloroso ou mais frio? Eu estou bem na sua frente! Isto é o que sou! Então porque minha resposta faria alguma diferença?” Para Lisa era ilógico que eles precisassem categorizá-la etnicamente para saber como chamá-la e o que esperar dela. Pela cor da sua pele ser mais escura do que a da maioria as meninas negras fizeram amizade com ela. Até que um dia uns meninos a enfrentaram diante das suas amigas e perguntaram-lhe, – Você é negra? – Não –respondeu com um sinal de interrogação no rosto. O que ela não sabia era que suas amigas interpretariam esta resposta como uma ofensa.

92


– O que você quer dizer com isso? –perguntaram as meninas com tom exaltado. Como é de imaginar, Lisa perdeu suas amigas naquele dia. E mais do que isso, Lisa sentia como se não pudesse achar ela mesma. – Acaso ninguém pode ver o que sou? –se perguntava com uma mistura de ira e confusão. Isso era o que enfrentava todos os dias. E a situação não mudava no momento de preencher formulários de pesquisa estandardizados. Para escolher a opção da sua etnia a caneta passava reto nas opções de raça branca, negra, asiática ou latina. Ela não podia escolher entre suas origens. Por isso, para ser o mais honesta possível, marcava a opção outra.

93


minoria Apesar de ser diferente naquela escola não era a única excluída. No ônibus escolar, ela e seu irmão sentavam com outros na mesma situação. Dois australianos os acompanhavam nos assentos de trás. A cena típica em que alguém que não pertence ao grupo dominante não pode sentar nos mesmos assentos era real na rotina de Elizabeth. Para sua felicidade no momento da refeição também não ficava sozinha. Na hora do almoço, uma menina que tinha acabado de chegar da Colômbia e outra italiano-americana ocupavam os dois lugares restantes na mesa de seis. Lisa era do grupo dos mestiços. Crianças de famílias multiétnicas que eram minoria em Westport, uma vila de 28 mil habitantes localizada no estado de Connecticut. Ela tinha razão quando dizia que aquele era um condado rico e homogeneamente branco. De acordo com os dados da Scout Neighborhood, Westport apresenta uma renda per capita de $108,829, valor três vezes maior do que a média nacional ($31,177), e a porcentagem de pobreza não supera os 4,3%. Até hoje, a população é composta na sua maioria por pessoas brancas (85,5%) e aqueles que, como Lisa, escolhem a opção duas ou mais etnias/outra representam 2,7% do total registrado.

1

94

Dados tirados do site Scout Neighborhood referente aos dados do U.S Census Bureau. https://www.neighborhoodscout.com/ct/westport/demographics#


eu Quando Lisa expôs o deslocamento sentido quanto à questão de identidade étnica durante a infância me preocupei ao ver que a segregação é sempre presente na sociedade. Apesar de eu também ser uma mistura de povos, (Incas, Mapuches e Espanhóis), minha experiência era diferente. Mesmo assim, a questão da aparência não deixava de ser motivo de autorreflexão.

“Quando me olho no espelho, não vejo uma simples imagem. Vejo uma história. Por trás dessa silhueta se encontram vários elementos que me fazem ser quem eu sou. Começando pela genética. Ela traz consigo uma mensagem, implanta um molde que provêm dos progenitores e sinaliza toda uma linha de ancestrais. Por isso o escuro dos meus olhos, por isso os fios brancos na minha cabeça. Cada traço é um símbolo. Uma prova irrefutável de que sou filha dos meus pais. Estão também as cicatrizes, impossíveis de apagar. Elas são lembrança dos mais ternos dias de brincadeiras, quando as pernas seguiam os impulsos do coração. Ou talvez da cirurgia onde o corpo precisou de intervenção. São memórias de dias felizes e outros não tanto. É sinal de viver num mundo perigoso e também da coragem que foi necessária para voltar a estar em pé. Quando me olho no espelho, não há lugar para as comparações. O coração bate no meu ritmo, os olhos enxergam do meu jeito. Meus cachos tem sua própria bagunça. Não existe inconformidade quando a identidade fica de pé. Pensando dessa forma, até a postura muda. Meus passos são mais firmes porque sei melhor quem eu sou.”

95


cores Enquanto escrevia as cenas anteriores minha mãe compartilhou comigo um vídeo publicado pelo jornal espanhol El País, em maio de 2019. Na postagem, uma mulher de cabelo volumoso está sentada numa cadeira é o foco das câmeras. Quando dei play no vídeo soube seu nome e profissão. Era Angélica Dass, uma fotógrafa brasileira reconhecida internacionalmente como artista. Ela iniciou o vídeo compartilhando uma inquietação pessoal. – Eu nunca entendi porque os seres humanos eram classificados como “branco”, “negro”, “vermelho” e “amarelo” –disse olhando à plateia. Seguidamente começou a contar o porquê. – Eu nasci em uma família muito colorida. Meu pai era o filho de uma babá, de uma empregada, de quem herdou uma intensa cor chocolate. Ele foi adotado por aqueles que conheço como meus avós. A matriarca da família, minha vó, tem a pele de porcelana e o cabelo de algodão. Meu vô estava entre iogurte de baunilha e morango. Minha mãe é filha de uma indígena brasileira que tem um tom entre avelã e mel. Ela tem outras duas filhas, uma como um amendoim e a outra um pouco mais bege, como um bolinho. Crescendo nesta família, a cor nunca foi importante para mim. Mas fora de casa parecia que tinha muitos significados2. Em nenhum momento Angélica nomeou as cores que eu usaria para descrever o tom

2

96

¿DE qué color es un lápiz de color carne? Angélica Dass, fotógrafa. Aprendemos Juntos. 2019, 5 min 32 seg, son., color. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=mkDqaGANaos&list=WL&index=45&t=0s. Acesso em: out 10. 2019


97


de pele dos seus familiares. Cada pigmentação foi mencionada com referências de elementos cuja cor se assemelhasse ao que ela enxergava. Isto me cativou. Não me segurei e fui procurar algum endereço de e-mail para me comunicar com ela. Mas o que achei me deixou boquiaberta. Desde sempre Angélica sofreu por causa do preconceito com sua cor escura. Mas na sua cabeça nunca fez sentido aquela classificação de pessoas de acordo com o tom de pele. Por isso, em 2013, começou um projeto para compartilhar seu ponto de vista com o mundo. Ela viajou por 20 países fotografando todo tipo de pessoas, de todas as idades, classes sociais e, claro, de todas as cores possíveis. Fez 4 mil retratos e editou cada uma das imagens. Todas seguiam a mesma composição. Uma pessoa com ombros nus e olhar fixo. No momento de editar as fotos Angélica pegava um quadradinho do nariz e identificava a cor dentro da paleta industrial pantone que se encaixasse naquele tom. Ao encontrar o matiz o definia como fundo do retrato, o que deixava a pessoa camuflada em sua própria cor. O que ela demonstrou foi que não há ser humano cuja pele se encaixe na cor branca nem preta e sim dezenas de variações de cor marrom, bege e rosê. Pelo menos esses foram os tons que meus olhos perceberam nos retratos.

98


email Sem demora escrevi uma pergunta e a enviei com a esperança de que pudéssemos conversar. Assim começou nosso diálogo. –A cor da nossa pele faz parte de quem somos, cada pigmentação tem variações que nos diferencia dos outros. Como podemos construir nossa identidade e valorizar nossa história sem abrir brecha para as divisões e classificações raciais? –perguntei. – Uiii Mariela – disse em tom de desaprovação – Começamos com um conflito importante, a palavra multirracial. O que isto significa? Que os pais têm diferentes raças? Quais são estas raças? Quantas raças existem? O que te define como pertencente a uma raça ou outra? Angélica não apenas respondeu meu questionamento, mas me encheu de novas perguntas. Só o início da conversa já me deixou empolgada. – Raça é uma construção social, o conceito de raça não se aplica à espécie humana. – afirmou com ajuda do teclado do dispositivo que nos conectara através da internet. E ainda me desafiou. – Você pode me dizer a raça das pessoas nesta foto? Reconheci a imagem que me enviou. Eram quatro fotografias da coleção Humanae cuja cor, de acordo com a paleta era PANTONE 58-6 C, era um tom nude que caracterizava a pele de todos eles. Porém, a pergunta era válida. Apesar de eles serem da mesma cor, o formato do rosto, a cor dos olhos e o tipo de cabelo eram totalmente distintos. Poderia eu escolher alguma raça e acertar a questão?

99


O QUE VOCÊ É? A resposta de Angélica foi “não”. De acordo com ela, estudos científicos e sua própria vivência demostram que há uma única espécie que engloba todos nós. É a espécie humana aquela que deve identificar o que você é. Esta visão desconstruía o pressuposto sobre o qual Lisa era julgada. Quão diferente teria sido a situação de Lisa se ela e as pessoas que a rodeavam tivessem essa perspectiva. Já no sexto ano da educação fundamental os demais insistiam na tentativa de encaixá-la numa categoria.


DENTRO DE CASA Depois de terminar o sexto ano em Connecticut, a família de Lisa fora transferida para o norte da África. Foram morar em Marrocos, um lugar com uma paisagem diferente da que estavam acostumados. Uma das coisas que ela lembra claramente é a de ter morado no mesmo bairro do rei que, naqueles anos, era Hassan II de Marrocos. O palácio real estava localizado no setor onde ela morava, porém nunca o viram pessoalmente. Outra lembrança eram os cultos que aconteciam na mesquita todos os dias durante o mês do Ramadã. Lisa ouvia os cantos dos rituais na sua casa. Para estudar, entrou em uma escola internacional de fala espanhola porque seus pais quiseram que mantivesse o contato com seu idioma nativo. Isto não fez muito sentido para ela, já que a língua oficial era o árabe e a segunda mais falada, o francês. Apesar do ensino da escola ser em espanhol não havia estudantes da América Latina e sim de outros continentes. Ou seja, o sotaque dela continuava a ser diferente. Paradoxalmente, na escola de estrangeiros ela também era uma estrangeira. Porém, se havia algo pelo qual ela não queria se destacar era por ser uma má aluna. Por isso, durante a noite estudava árabe para que

101


no dia seguinte pudesse responder às perguntas da professora dessa disciplina. E seu esforço deu frutos, deixou uma ótima impressão. O ano que Lisa estivera naquele país não traz apenas boas lembranças. Diariamente ela era alvo de olhares dos homens que encontrava na rua. Até hoje lembra as expressões em árabe que utilizavam para insultá-la. Na tentativa de fugir da situação constrangedora, caminhava com um livro aberto nas mãos para evitar contato visual. Mas os xingamentos não pararam. Dentro de casa a educaram para ver o lado positivo da situação. Por isso, reclamar não era uma opção. Lisa sentia como se sua opinião não importasse e seus sentimentos não fossem válidos. – Quando você é TCK e tenta falar sobre as coisas que são difíceis, os adultos com frequência dirão: “mas olhe quão afortunado você é! Olhe tudo o que você tem vivido”. E isso não ajuda, te faz sentir como se não estivessem acreditando em você – disse ao contar sua experiência.

102


EQUILÍBRIO Minha mente se volta à conversa tida entre mim e Daniela Tomer, que conheci via Skype. Quando falamos sobre o tema ela identificou o diálogo como algo importante dentro de casa, assinalando que a ênfase das conversas não pode ficar o tempo todo no lado positivo das coisas. – O fato de que é difícil, de que se sentem alheios, sozinhos e fora da sua zona de conforto também tem que ser dito e reconhecido – ressalta. Isto faz com que a criança se sinta ouvida e em certo grau compreendida. Do contrário, se são mencionadas apenas as vantagens, eles podem sentir que esses sentimentos devem ser reprimidos e isto nunca é saudável. No caso de Lisa, apesar de tudo, ela tinha certeza do amor que seus pais e do fato de que não gostavam de vê-la ficar triste, uma atitude normal para um pai que quer o melhor para seus filhos. Por outro lado: – O aspecto positivo nunca pode ser deixado de lado – continuou Daniela – Falar sobre as oportunidades e encorajá-los a se adaptar ao novo ambiente também é vital na etapa de desenvolvimento.

103


DIÁLOGO Para Michael Pollock, que atualmente exerce o cargo de Diretor Executivo da Interaction International3, há três elementos essenciais em casa: compartilhar experiências, ouvir com cuidado e aprender sobre a terceira cultura. Os primeiros dois são aspectos necessários em qualquer núcleo familiar, pois a comunicação é o cimento sobre o qual fundamos nossas relações interpessoais. Já o aprender sobre a terceira cultura é estar ciente de que as experiências passadas e as que virão irão mudar tanto o pai quanto a criança, porém de maneiras distintas. – Durante os anos que eu e minha família moramos na Ásia. Meus filhos foram influenciados pela cultura chinesa e a coreana – observa Michael – Por isso é meu dever aprender o que se tornou valioso para eles e como enxergam o mundo a partir desses encontros culturais. Segundo ele, os pais devem ser capazes de reconhecer as situações de estresse que seus filhos tem antes, durante e depois de uma transição. E em alguns casos diminuir as expectativas de como a criança poderá lidar com as situações. – Isto pode ser complexo porque as transições são como um novo emprego e a criança pode estar vulnerável se não encontrar um apoio nos pais –assegura.

3

104

Organização que desenvolve serviços e recursos, fornece treinamento e participa do planejamento estratégico mundial para atender as necessidades e promover atendimento de qualidade para o indivíduo móvel internacionalmente.


SANDERS CAMP Para conhecer um pouco mais da experiência de criar filhos fora do país de origem conversei com Heather Sanders. Ela e seu esposo, Loren, são pais de quatro filhas. Avalyn, Catalina, Sonia e London. As quatro usam franja e tem cabelo em variações de castanho escuro. A primeira, de oito anos, tem olhos esverdeados e os dentes em etapa de mudança. Sua pele bronzeada e estatura a distingue das irmãs. Catalina tem um ano a menos, olhos azuis e sardinhas nas bochechas. A que segue é Sonia, com cinco aninhos. Seus cílios e sobrancelhas fazem seu olhar mais intenso. Nas fotos nem sempre gosta de sorrir e, as vezes, faz caretas. A caçula é London. Tem três anos e gosta de chupar seu dedo gordo. Em 2017 a família deixou o estado de Michigan (EUA) para morar no outro lado do mundo.

105


TRANSICÃO , Céu azul e árvores frondosas de uma cor verde musgo foi o que ficou em minha memória do dia que vi o lugar onde a família Sanders reside, na cidade de Okazaki. No bairro, as casas são parecidas. Por fora são brancas e tem dois andares. Mas o tamanho da casa ficou pequena para esta família de seis. – Em Michigan nossa casa era maior –exclamou Heather me mostrando que na mesa de jantar já não havia espaço para todas as cadeiras. Os cômodos da casa estão distribuídos de uma forma tradicional. Sala de estar, sala de jantar e cozinha no andar de baixo. No segundo andar, os quartos. Em cada um, duas pessoas. Um para o casal, outro para as mais velhas e o terceiro para Sonia e London. – Ainda bem que temos dois banheiros – comentou agradecida. Mas as dificuldades dos Sanders no Japão, iam além do espaço reduzido em casa. Tudo era desconhecido. E por mais que tivessem se preparado com antecipação o primeiro ano foi difícil para todos. Em primeiro lugar, a falta de contato com pessoas. Não havia família perto, nem amigos. Fazer novas amizades não era como em Michigan. Desde sua chegada, em abril de 2018, assistem semanalmente em uma igreja da comunidade,

106


porém levou um ano para que pudessem estabelecer relações e que os membros que compartilham sua fé fossem parte da vida deles. – Eles dificilmente vão te perguntar “como você está?”. – disse ciente de que é uma característica cultural. Um dos propósitos da família é que ao aprender da sua cultura possam entender melhor a comunidade japonesa nos Estados Unidos. – Temos alguns amigos japoneses em Michigan. Eles nos ensinaram algumas coisas da cultura antes de nos mudarmos. Depois de um ano e meio morando aqui entendo melhor o que é importante para eles e como devemos tratá-los. As pessoas que os rodeiam, ao ver sua disposição e interesse por conhecer sua cultura, demonstram também interesse e ficam mais abertos. O que já é uma vitória. Outra novidade é a escola. Uma das coisas que chamaram a atenção da mãe, são os materiais que as meninas precisam levar. A mochila que utilizam tem um formato quadrado com o espaço exato para cada coisa. Para os lápis utilizam um estojo retangular de plástico também com o tamanho exato para cada objeto. Levam uma toalhinha para secar as mãos e um par de sapatos chamado uwabaki para estar dentro

107


da sala de aula. Além disso, um capacete em caso de terremoto e um cobertor para a cabeça caso haja incêndio. Embora precisasse desses elementos para três das meninas consegui-los não era tão difícil quanto o próprio estudo. Os primeiros meses de escola foram desafiadores, especialmente para Avalyn que chegara para o primeiro ano. A frustração de não entender o que os seus colegas diziam e a dificuldade que tinha para cumprir com as tarefas de casa a deixavam triste. – Raramente via ela sorrindo –Heather conta – Até agora há noites que ela tem problemas para dormir por que lhe preocupa como será o dia seguinte na escola. Agora é fluente na língua, mas nos primeiros meses sofria porque pensava que seus colegas não gostavam dela e que não queriam fazer amizade. Na escola que Avalyn frequenta as crianças almoçam lá e como a comida japonesa no começo lhe parecia estranha não era agradável. Por outro lado, Heather sabe que cada menina lida com as situações de formas diferentes. – Catalina é mais relaxada e não demonstra tanta preocupação com os deveres escolares como Avalyn. No primeiro ano ela estava no jardim da infância, então era mais tranquilo para ela porque não tinham tarefas ou professores exigentes – comenta Heather. Ela também explica que Catalina e Sonia iam a uma escola diferente da de Avalyn.

108


Depois de seis meses, com um conhecimento melhor do lugar e a capacidade para se comunicar, a filha mais velha começou a gostar de ir para a escola todos os dias. Mas sempre há momentos em que ela e suas irmãs se sentem um pouco estranhas por serem as únicas estadunidenses na escola. – Elas também perceberam que seus colegas tem visões de mundo diferentes, além dos costumes. A cosmovisão também é distinta. A decisão de colocar as meninas em escolas japonesas foi para ter uma imersão total na cultura. A mãe vê o fato de lidar com situações difíceis como uma vantagem. Ela espera que no futuro, ao lembrar dessas situações, as meninas sejam corajosas para enfrentar desafios maiores. Mas para ela também não é simples. Na cidade onde moram quase não há pessoas estrangeiras que falem inglês e aprender japonês tem sido difícil. – Ir ao mercado já é um desafio. Não consigo identificar por mim mesma qual é o molho de soja porque são todos parecidos, garrafas de vidro com um líquido escuro no interior. Além disso, Loren passa pouco tempo em causa por conta do trabalho. – Geralmente ele sai para o trabalho antes das meninas irem para a escola. Às vezes antes de que acordem e volta quando elas estão na cama. Aqui a jornada mínima de trabalho é de 12 horas. Tem dias que ele trabalha das sete da manhã as sete da noite, as vezes mais.

109


PREPARO Embora não exista uma fórmula para que a mudança seja exitosa, os pais devem pensar com antecipação oito elementos básicos para o bem-estar familiar.

1 2

Começando por aquelas necessidades que não dependem do lugar onde a família se encontra, como desafios de aprendizagem que a criança possa ter, alguma incapacidade física ou condição médica crônica. Também é importante levar em consideração a etapa escolar que a criança ou adolescente está passando.

O segundo ponto, que David Pollock, Ruth Van Reken e Michael Pollock indicam no livro Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds, são as condições da empresa ou organização que efetua a transferência. Os pais devem estar cientes dos elementos que terão à disposição para cuidar da família.

3 4

110

Em terceiro lugar, pensar em como os relacionamentos dos membros da família podem ser afetados. Os parentes estarão ou não presentes nas datas importantes? O contato com os amigos será mantido? Os bichos de estimação poderão ir junto?

Outro ponto importante é saber se ambos os pais são a favor da mudança. Qualquer tipo de relutância contra a ideia facilmente se transformará em ressentimento e hostilidade como resultado da pressão durante a etapa de ajuste.


5

Da mesma forma, a maneira em como cada integrante da família lida com o estresse deve ser observada.

6

7

O sexto aspecto tem a ver com o ganho da experiência. Deve-se pensar se a decisão a favor da mudança é tomada tendo em vista apenas o trabalho ou também porque representa uma oportunidade para os membros da família crescerem como indivíduos.

O tema da educação também entra nestes pontos. A família Sanders optou por colocar suas filhas em escolas locais para se aproximarem da cultura. Já os pais de Lisa preferiram uma escola internacional, em Marrocos, para que não perdesse suas raízes.

8

Por último, é preciso pensar em como dizer adeus. Uma vez que é momento de ir embora, o fechamento é importante. E isto ajudará no processo de entrada à nova cultura ou no retorno ao lugar de origem4.

4

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.

111


280 KM/H – Como reagiram à notícia de que iriam para o Japão? – perguntei curiosa. – Bom, elas eram muito pequenas para entender o que essa viajem significaria, mas explicamos a elas que iríamos viajar de avião e moraríamos em outro país. Elas ficaram empolgadas – comentou Heather– em especial com a ideia de voar. Antes da viajem a família se dedicou a estudar japonês e a conversar com amigos sobre algumas questões culturais. Por isso, decidiram tirar a Avalyn da escola antes de encerrar o ano escolar. Apesar de ser uma boa ideia fazer os preparativos com antecipação para ela não foi tão fácil ter que interromper seus estudos na escola e deixar seus amigos. Esta não é a primeira mudança da família, mas é a primeira para fora do país. – Eu e meu esposo estamos pensando em pedir para ficar mais um ano aqui e completar os três. Depois voltar para os EUA por um ano e logo ir para outro lugar– disse enfatizando que este é apenas o começo. No caso dos Sanders, o emprego do pai, que trabalha numa empresa multinacional, é um meio para ir a lugares distintos e ter experiências enriquecedoras. – Quais você acha que serão as dificuldades quando retornarem aos EUA? – Acho que estar em dia com a leitura e escrita em inglês. Mas, acho que as crianças aprendem rápido e são muito capazes,

112


mais do que pensamos. Acho que não vai ser tão difícil. Me preocupa mais o fato delas esquecerem o japonês – confessa Heather. Afora a ideia de como tenha sido a experiência sempre há coisas que fazem falta quando não se tem mais. – Talvez sintam saudade da liberdade daqui. Japão é um país muito seguro. As escolas aqui realizam atividades divertidas e em Michigan não tem isso. Agora as meninas dizem que querem voltar para poder falar em inglês e não ter que fazer tanta tarefa – comentou sem rir da situação – Mas acho que quando voltarem vão ver as coisas positivas da escola no Japão. Por enquanto elas vem o país como um lugar muito difícil. Apesar de as meninas terem feito amizades na escola estes relacionamentos não são fortalecidos fora da sala de aula. – Elas sentem saudade de ter amigos para convidar para celebrar aniversários ou simplesmente brincar em casa – disse a mãe expondo sua inquietação. Porém, sabe que nem todas as filhas tem as mesmas lembranças do país de origem. – A mais velha lembra um pouco mais dos EUA. London tem referências apenas daqui então voltar será uma experiência diferente para ela. A de cinco anos não lembra da nossa casa nos EUA nem de seus amigos e em algumas situações sabe mais japonês do que inglês. Encerramos a chamada e fui dormir. Porém, para os Sanders o dia apenas começava.

113


SEGURANCA , Apesar da distância que possa separá-los dos seres queridos, há formas de possibilitar aos integrantes da família relacionamentos sólidos que os ajudem a estar em equilíbrio cultural. Durante os anos em que Michael Pollock (mentor de jovens multiculturais) e sua família moraram no exterior ele achou sábio escolher algumas pessoas que tivessem a função de âncoras e pontes. – Os relacionamentos âncora são aqueles que envolvem pessoas que estarão presentes na vida da criança sem importar o que aconteça. As vezes são pessoas da família, as vezes amigos próximos que os conhecem. O importante é que tenham interesse em estar disponíveis para eles. A presença de pessoas como as que Michael faz referência é importante porque elas serão testemunhas dos diferentes contextos onde as crianças tem crescido. E os pais podem ajudar a identificar estes agentes e fortalecer esses laços. – Ir para China não é como pegar um ônibus e descer na esquina, sabíamos que a família inteira não poderia nos visitar. Mas alguns deles conseguiram ir para passar tempo conosco. Quando

114


voltamos um dos avós av disse para meus filhos: “lembra de China?”, “eu lembro de ter te quando fomos para a muralha mu brincar com teus amigos!”, conta Michael. visto brinca Muitas crianças de terceira terce cultura se sentem desequilibrados culturalmente porque para eles é normal que tudo ao redor mude constantemente ou tenha sido assim durante uma parte significativa das suas vidas vidas. É como se eles tivessem esbarrado com novos icebergs onde não apenas a forma de cumprimentar e de se vestir são diferentes, mas a forma de enxergar o d mundo é totalmente dis distinta e é necessário se adaptar àquilo. Enquanto os padrões de comportamento em um lugar desaparecem, começa a busca busc por aqueles que deveriam ser uma referência no novo local. Mesmo antes de que saibam como devem se comportar ou como as pessoas pensam, eles devem descobrir onde se encontram5. Por isso, este tipo de lembranças com pessoas pontes, estabelecem um nexo que não pode ser s rompido com aquelas experiências vividas e proporciona um equilíbrio cultural.

5

POLLO POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds Boston: Nicholas Brealey, 2017. Worlds.

115


O palco Por outro lado, há elementos que, fora de casa, podem contribuir para o desenvolvimento do indivíduo. Para Lisa, a forma de se expressar e expor suas emoções era através da escrita. Desde criança ela escreveu ficção como forma de desabafo. Mas Lisa não só era boa escrevendo. Ela também herdara o talento para atuação da mãe. Ver os atores em cena sempre lhe chamou a atenção, mas foi no Marrocos onde ela se aproximou do teatro e começou a incursionar nas artes cênicas. A primeira peça que interpretou está ainda na sua memória. Teve que decorar um monólogo de 7 minutos, era a interpretação de uma encantadora de serpentes. Posicionada no palco com a vestimenta que a peça requeria e os diálogos na ponta da língua Lisa entrou em cena. A medida que as palavras saiam da sua boca uma sensação nova se apoderou dela. Durante esses minutos a única voz que se ouvia era a sua. Os olhos dos expectadores só se moviam para acompanhar seus movimentos, pois ela era o centro de atenção. – Naquele momento – reconheceu Lisa – comecei a perceber que o público iria ouvir se eles acreditassem em mim, na personagem que interpretasse. Sabia que apesar de não ter nada a ver com aquele personagem eu

116


continuava a ter que acreditar no que estava falando e precisava me comprometer com aquilo, me entregar por inteiro. Isso funcionou. Foi ali que comecei a aprender o que é atuar. Para Lisa, atuar não é mostrar-se, é acender os holofotes diante de uma alma humana –o personagem– e replicar comportamentos humanos reconhecíveis para que o público entenda o que você está fazendo e veja que você está interpretando uma pessoa e não um desenho animado, não alguém bidimensional.

117


ALIENÍGENA

Ao descer do avião, a primeira percepção de Lisa foi o ambiente árido. A areia marrom veio ao seu encontro e na tentativa de dissipá-la sacudiu suas mãos. O pai havia sido transferido ao Egito onde morariam pelos próximos quatro anos. Não era uma mudança radical, mas continuava a ser outro país. As pirâmides maias eram pequenas em comparação às que contemplava ali, embaixo do ardente sol do norte da África. Lá continuou com as aulas de teatro durante o ensino médio e depois de formada decidiu voltar para Estados Unidos e estudar na Universidade de Wellesley. Porém, terminou seus estudos em Wesleyan. Mais perto do seu sonho de ser atriz o próximo passo foi ir para a Califórnia onde a indústria de produção televisiva e de teatro estadunidense está concentrada. Ela se estabeleceu em Los Angeles e começou a trabalhar como atriz e produtora. Mas a questão da identidade cultural continuava a ser pauta no seu cotidiano. – “Você é de Iowa?”, “Você veio de Nebraska?”, perguntavam depois de ouvir seu sota-

118


que. As pessoas identificavam sua forma de falar como a da região centro-oriental do país, o que era um terrível erro porque ela nunca tinha morado lá. – Isso me fazia sentir como se minha vida nunca tivesse acontecido – confessou Lisa. Até hoje as pessoas têm a impressão de que ela é dessa região. Mas ela não liga mais. – Decidi que não ia mentir sobre minhas origens, não ia facilitar para os outros. No final das contas é problema deles não meu. – foi a resolução. Depois de completar 30 anos ela começou a conversar sobre sua história com algumas pessoas e decidiu enfrentar a questão de identidade. – Isto é mais fácil quando você tem pelo menos um bom amigo, uma pessoa que te apoia. Te dá mais coragem de deixar de lado aquilo que faz ma que os outros te vejam como algo estranho. com qu Agora não nã me incomoda mais porque achei algo para me apoiar. Estes amigos – continuou firme pa explicando – são espelhos, porque representam uma forma de ser reconhecida por mais alguém que conhece sua história. Ver esse reflexo é incrível! história

119


Uma das pessoas pessoa que foram peça chave nesta caminhada foi fo uma colega de trabalho. outra pessoa com Na sua equipe, encontrava-se encon traços asiáticos. Hiwa era de pele clara, olhos cor mel e cabelo preto qque, diferentemente do de Lisa (um corte pixie), era comprido até a cintura. Em certa ocasião foram for confundidas pelo público devido à suposta semelhança entre ambas. O fato delas terem ssido identificadas como a mesma pessoa foi m motivo suficiente para elas conversaram sobre suas heranças culturais. Hiwa não tinha morado em muitos países, m nem sequer fora dos Estados Unidos, porém era do Havaí. O fato de d ser de um estado separado do território principal princ fez com que morar na Califórnia fosse uma um experiência de choque cultural. cult Para localizar o Havaí Hav no mapa tive que virar o globo para o lado direito. dire Sempre o posiciono de uma forma em que possa ver o continente americano, que é a parte par do mundo com que familiarizada. Achei o Havaí no meio estou mais familiarizada do Pacífico entre América Amér do Norte e a Ásia.

120


Imaginei como seria morar em algumas das ilhas daquele estado. Esse tipo de coisas foi tema de conversa entre Lisa e Hiwa e logo desencadeou uma ideia revolucionária. Ambas eram responsáveis pela produção de uma peça. As Três Irmãs, obra do autor russo Anton Tchekhov, na qual precisariam de cinco pessoas para interpretar os papeis principais. As duas amigas consideravam importante começar a criar consciência sobre o tema da diversidade étnica/cultural, por isso tiveram a ideia de que além delas, que também participariam da peça, os outros três atores que tivessem o papel fossem multiétnicos. Assim, no momento em que se acenderam as luzes, o palco estava composto por pessoas com experiências culturais como as delas. A peça foi apenas o pontapé para iniciativas que Lisa desenvolveu para tratar do tema. Também escreveu um livro chamado Writing Out of Limbo, em que conta sua vida como uma nômade global. No meu caso, foi graças a Alien Citizen: An Earth Odyssey6 que a conheci.

6

Peça de teatro escrita e produzida por Elizabeth Liang. Vencedora do Prêmio Calcutta International Cult Film Festival de 2018. Tem sido apresentada em escolas e universidades de vários países ao redor do mundo.

121


uma odisseia na terra Fiquei sabendo, através das redes sociais, que havia um filme sobre crianças de terceira cultura e sem demora fui procurar informação. Não entendia bem o que era um solo show, termo que estava na descrição, até assistir à gravação de uma pessoa que, vestida de calça e camiseta pretas, se encontrava no cenário contando sua história e usando humor para entreter ao público. Era Lisa interpretando a si mesma em certos momentos da sua vida. Na primeira cena ela usa uma máscara de algo que parece ser um extraterrestre verde e com antenas na cabeça. Inusitadamente, uma voz grave a tira da sua postura confortável e lhe pergunta: – Quem é você? Lisa fica em silêncio. – De onde você é? – pergunta a voz. – Essa é uma boa pergunta! – responde de forma sarcástica7. Durante os 90 minutos de atuação Lisa expõe sentimentos que marcaram sua vida desde que saiu da Guatemala até a etapa adulta. O título da peça, “Cidadão Alienígena”, expressa algo que por muito tempo esteve no fundo do seu coração. Certamente Lisa sabia que não era de outro planeta, mas muitas vezes tinha sentido como se o fosse. Uma das expressões que repete durante toda a obra é tampar a boca com ambas mãos e abrir os olhos como se estivesse

122


sendo punida por falar. Esse gesto foi enfatizado para ressaltar o quanto ela guardou dentro de si e como fora difícil dizer às pessoas que a rodeavam “por favor, não me faça sofrer mais”. – Alien Citizen foi uma experiência em que minhas feridas sararam – reconhece. Através desta experiência teve a oportunidade de viajar no tempo e voltar para aqueles momentos em que sentiu que era invisível. Conseguiu enxergar sua história em retrospectiva e mensurar o resultado daquela soma de experiências.

7

ALIEN citizen: An Earth Odyssey. Hapalis. 2017, 90 min, son., color. Disponível em: https://aliencitizensoloshow.com/ Alien-Citizen-AEO-the-Movie-1 Acesso em: Jul 12. 2019

123


ganhos Atualmente ela continua ativa no mundo da atuação. Dentro do seu portfolio estão registrados papéis secundários em series como Law & Order LA, Criminal Minds e Brooklyn 99, além da participação em alguns filmes. No seu currículo são mencionados atributos que lhe dão valor como atriz. Entre eles, falar várias línguas e imitar sotaques. Começando por árabe egípcio básico, português iniciante, francês de conversação e espanhol fluente. Sotaque chinês, australiano, inglês, canadense, francês, alemão, irlandês, italiano, sotaque do Oriente Médio, de Nova Iorque, sotaque porto-riquenho, russo, sulista e espanhol. Devido à herança familiar e ao fato de ter morado em vários países, Lisa desenvolveu facilidade para aprender idiomas e imitar alguns elementos característicos de outros. Esta habilidade tem vantagens que vão além da possibilidade de se comunicar com diferentes grupos de pessoas. Aprender diferentes línguas na infância pode moldar capacidades de raciocínio e permitir que o indivíduo atinja um nível acadêmico superior ao dos demais. Da mesma forma, aprender a gramática de uma língua pode fortalecer pertencimento gramatical do próximo idioma a ser aprendido8.

8

124

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.


Para Lisa, sua bagagem cultural também a tem capacitado para interpretar personagens de forma verídica. Devido ao contato com pessoas de contextos diferentes ela desenvolveu sensibilidade e empatia para se colocar no lugar dos outros. Por isso, no momento de fazer um personagem ela consegue “vestir as roupas” daquela pessoa e defendê-la com convicção. A experiência de crescer entre culturas também fornece um conhecimento do mundo de forma palpável que seria impossível obter apenas através da leitura de livros ou de filmes9. O fato de ter se deslocado para diferentes lugares e ter caminhado por diferentes ruas, experimentado cheiros e sabores diferentes, ouvido diferentes sotaques, ter passado por situações vergonhosas é o que enriquece a visão de mundo de uma criança multicultural. Pessoas com um contexto como o de Lisa são agentes disseminadores desta forma de enxergar o mundo. Da mesma forma, escritores como Rupi Kaur tem compartilhado fragmentos da sua história em suas obras contribuindo para a normalização da ideia de uma identidade nutrida por mais de uma cultura. A poeta feminista nasceu em Panjabe, Índia e emigrou com seus pais para Toronto, Canadá, quando tinha 4 anos. No livro O que o sol faz com as flores10, coleção de poemas autorais, ela escreve sobre seu sotaque.

9

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 10 KAUR, R. O que o sol faz com as flores. São Paulo: Planeta, 2019.

125


“Minha voz é o fruto de dois países num encontro por que eu teria vergonha se o inglês e minha língua-mãe fizeram amor minha voz tem as palavras do pai e o sotaque da mãe o que tem de errado se minha boca leva dois mundos”

Para Ruth Van Reken, obras como este livro – Embarque: Para permanecer não é necessário ficar – contribuirão para a concientização de uma realidade cada vez mais perceptível em que as crianças de terceira cultura não são mais que o resultado de um mundo globalizado.

126


amigos – Eu conseguia fazer amizades porque era engraçada. E aprendi que as pessoas gostam daqueles que as fazem rir – disse Lisa ressaltando um aspecto da sua personalidade. Apesar das experiências negativas, Lisa encontrou pessoas que foram um apoio para ela. Exemplo disso é o de uma professora que teve na Cidade do Panamá, onde estudou do segundo ao quinto ano do ensino fundamental. O incentivo que recebeu dela fez toda a diferença para acreditar no potencial que tinha como artista. Também fez amigos que tinham experiências similares às dela e fizeram com que ela se sentisse à vontade. No Egito conheceu pessoas que compartilhavam da sua perspectiva. – Gostava de conversar com eles. Falavam de como era ter morado no Nepal, por exemplo – disse lembrando aquela época – eu ouvia suas vivências com atenção porque me pareciam interessantes. E eles também gostavam de ouvir as minhas e o melhor de tudo era que não faziam perguntas ignorantes. – O que seria uma pergunta ignorante? – perguntei realmente ignorando a resposta. – Todos podemos ser ignorantes – esclareceu –, mas a diferença é que quando nós (TCKs) não sabemos de alguma coisa, sentimos vergonha e queremos aprender sobre aquilo. Muitas pessoas não demonstram o mínimo interesse.

127


mal entendidos Michael Pollock me explicou o que Lisa tentava dizer. Geralmente, quando alguém que morou em diferentes países ou fala vários idiomas se encontra com quem vem de um contexto monocultural recebe deste segundo uma série de perguntas que revelam pouco conhecimento a respeito do lugar sobre o qual se deseja saber e, em alguns casos, preconceitos e estereótipos. Quando Michael, retornou aos Estados Unidos depois de ter passado um ano no Quênia os vizinhos que sabiam que tinha morado na África deixaram uma péssima primeira impressão. – Did you have friends that are Jungle Bunnies? – lhe perguntaram os fazendeiros da localidade. Inicialmente Michael não entendeu a pergunta até descobrir que “Jungle Bunny” é um termo pejorativo utilizado para fazer referência a pessoas negras ou de ascendência africana. –Eu fiquei muito bravo e pensei que nunca poderia confiar nessas pessoas – confessou depois de compartilhar aquele diálogo que tivera anos atrás. Para ele, um dos desafios que crianças de terceira cultura enfrentam diariamente é o de saber em quem confiar. –Uma vez que a confiança é quebrada aquele lugar não é mais seguro para compartilhar determinada parte da minha vida – disse Michael. Aí eu passo a escondê-la ou apenas ignorá-la e isso é o que machuca. Fato que acontece ainda mais naqueles lugares nos quais a pessoa parece pertencer e os demais pensam

128


que ela sabe como as coisas funcionam ali. – As crianças de terceira cultura tendem a julgar rápido demais, especialmente no país de origem ou naquele ao qual supostamente pertencem – disse Michael. – Julgar? Mas isto não seria irônico? – perguntei. – Julgamos porque é nosso mecanismo de sobrevivência – esclareceu – Quando vamos a um lugar totalmente novo tiramos tempo para observar a cultura e entender o ambiente – disse Michael – Somos muito criativos para observar e nos adaptar. Mas quando voltamos ao lugar onde supostamente nos encaixamos o pensamento costuma ser: “deveria ser como estas pessoas, mas não sou, então passar tempo com eles é uma perda de tempo”. A ilustração abaixo me ajudou a entender melhor a situação. – Se um estadunidense – disse Michael – me pergunta de onde eu sou eu lhe responderia: “bom, é uma longa história”. A pessoa provavelmente evitaria o tema e diria algo como: “eu sou de Nova Iorque, é lá que eu moro”. Porém, o julgar antecipadamente me faria pensar: “esse cara é raso e nem interesse ele tem pelo que eu tenho a dizer sobre mim”. O que na cabeça dele pode significar o contrário. O que ele quer dizer é: “bom, eu não entendo esta situação, mas podemos fazer algo juntos e depois, quando você se sentir mais confortável, me contará mais sobre sua história”.

129 129


dizer adeus Apesar do privilégio que representa ter amigos de culturas diferentes a forma como os relacionamentos começam e são construídos varia de cultura para cultura. Em alguns lugares as pessoas podem parecer mais ‘abertas’ e em outros mais ‘fechadas’. Mas o que não muda é a sensação de ter que dizer adeus. – Sempre que deixava um lugar sentia tristeza, especialmente nas últimas duas semanas – comentou Lisa relembrando a dificuldade de assimilar a ideia de ter que ir embora repetidas vezes. – Aprendi que nessas duas semanas tinha mais coragem de falar com as pessoas porque sabia que ficaria ali por poucos dias. Portanto, se alguém me rejeitasse não ligava para isso. Assim eu podia contar a verdade ou ser vulnerável porque não teria que lidar com as consequências das minhas confissões. Mas sentir alívio nesse aspecto não significava facilidade para as coisas. – Também percebi que com frequência conhecia alguém nessas duas semanas que realmente achava legal, que morava perto de mim e eu ignorava. Isso me trazia um sentimento de melancolia e amor por aquele lugar. Um dos desafios para TCKs é o de se manter ligado às pessoas que considera valiosas. Quantas dessas amizades poderão ser Qu mantidas mantid a longo prazo e de uma forma significat cativa é uma pergunta cuja resposta está mud mudando constantemente e continua sem ser totalmente conhecida.

130


Apesar de a tecnologia contribuir para nutrir estes laços isto pode se tornar em uma responsabilidade que gera estrese. Da mesma forma, se a pessoa decide continuar investindo naquela amizade por medo de perdê-la pode isolar-se no ambiente em que se encontra rejeitando oportunidades de estabelecer conexões novas e esquecendo que as pessoas físicas são parte do presente11. Outra característica é que, entendendo que as mudanças são imprevisíveis, as TCKs podem desenvolver amizades profundas em pouco tempo por medo de que acabem. Isto se dá ao compartilhar sentimentos e segredos íntimos como sinal de que aquela amizade é valiosa12. Porém, a forma de lidar com relacionamentos varia de acordo com a pessoa. A perda contínua a que o indivíduo (TCK) é exposto pode provocar uma reação contrária. Criam-se barreiras pessoais a fim de evitar aproximação e a perda. Neste caso, o medo gera uma precaução que impede que um relacionamento profundo seja construído13. Para Lisa, a única forma de estabelecer um relacionamento sentimental seria com alguém que fosse de um contexto similar, que tivesse a capacidade de pular de um iceberg (cultura) para outro e assim os aspectos culturais não fossem barreira entre eles, nem entre eles e o resto do mundo.

11

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 12 Idem. 13 Idem.

131


ele Enquanto a música tocava e os convidados conversavam Lisa ouviu que alguém chamava à porta. Era a primeira festa que organizava no seu apartamento. O evento comemorava o fato de ela finalmente morar sozinha, pois durante vários anos tivera que compartilhar seu espaço com mais pessoas no internato. Desta vez ela era rainha e senhora daquele recinto. Depressa Lisa foi abrir a porta para receber a quem estivesse do lado de fora. Ao puxar a maçaneta seus olhos divisaram dois jovens que vinham participar da festa. Um deles era um colega de trabalho, rosto familiar. O outro, estava ali por convite do primeiro, até esse momento era um desconhecido. Inexplicavelmente um pensamento invadiu a mente de Lisa. É ele, dizia a sua voz interior. Tinha um pressentimento que concordava com a opinião que seu colega tinha compartilhado dias antes. –Lisa! Sei de alguém que acho que daria certo com você – disse Rony com expectativa. Ela lembrou daquela conversa que tiveram no trabalho sobre aquele que agora via em pessoa. A noite não passou em vão para esses dois. Porém as interações se resumiram a alguns flertes. Não houve convite para um próximo encontro. Mesmo assim o pressentimento persistia. É ele. O que se iniciou naquela festa foi crescendo com o tempo. Dan era uma pessoa de um contexto similar ao de Lisa. Seus pais eram estrangeiros e de lugares

132


diferentes. Este foi um ponto importante para ela, pois sabia que seu parceiro precisaria ser uma pessoa capaz de entender o que é ser multicultural e que valorizasse sua história. Lisa encontrou em Dan alguém que compartilhava sua visão de mundo, alguém que amava viajar. Mas aquela sintonia não se resumia à busca de passagens de avião e escolha de hotéis. – Ele já tinha viajado por conta própria, o que me fez pensar que ele não tinha medo do mundo. Ele tinha aprendido francês na escola, o que me fez vê-lo como alguém que entende como as línguas podem ser diferentes e como se aprende e melhora um idioma na prática. Eu não tinha que explicar este tipo de coisas para ele. Se Dan ouve outra língua não fica tipo: “o que esse cara está falando” – disse Lisa com olhos brilhantes. Além disso, Lisa admirava o fato de Dan saber de muitas coisas que ela desconhecia sobre política, história. Temas que dominava não apenas por ter tido uma boa educação, mas também por ser alguém que gosta de aprender. – Como TCKs a gente sabe pouco dessas coisas. Sabemos Sabemo como é estar naquele lugar e morar lá, mas isso não significa que saibamos se o presidente, vice-presidente ou primeiro ministro são bons ou maus. Nós simplesmente vamos para escola e somos como qualquer um – esclareceu Lisa.

133


Em 2008 o amor de ambos foi consolidado no altar. Mas antes disto acontecer, Dan havia sido aprovado pela nova família de forma inesperada. – Quando viajamos juntos e fomos pela primeira vez a Guatemala e El Salvador ele aproveitou da viagem inteira. Se sentia à vontade viajando e era cortês e amigável com todo mundo. Ele conheceu minha família e se deu muito bem. Imediatamente se entrosou às conversas – comentou Lisa mostrando quão raro era isso em sua família. – Em que casos, o fato de duas pessoas multiculturais estarem juntas não é o ideal? –perguntei. – Isso depende de que cada um tenha resolvido questões pessoais ou não. Há exceções de TCKs cujas famílias deram muito apoio e ajuda em cada transição. Especialmente pais que validaram seus sentimentos e, portanto, eles não tinham o peso da culpa por sentir o que sentiam. Estes tem mais facilidades com relacionamentos. Porém, duas pessoas multiculturais podem ser incompatíveis por ter as mesmas situações sem resolver e podem ficar estagnados – ressaltou ela. Lisa concluiu sua apresentação de Alien Citizen dizendo o quão afortunada era por tudo que experimentara. Na etapa adulta ela pode encaixar todas as partes da sua história e ver como tudo aquilo permitiu que hoje ela fosse uma pessoa única. – Entendi que não pertenço a lugares e sim a pessoas – disse nas cenas finais da apresentação com um sorriso no rosto.

134


135


pertencer

De repente todos somos imigrantes Trocando uma casa pela outra Primeiro trocamos o ventre pelo ar Depois o subúrbio pela cidade imunda Em busca de uma vida melhor Mas alguns de nós abandonam a vida por completo – Rupi Kaur14 Através dos seus anos de estudo Ruth tem percebido que as formas tradicionais de pertencimento estão mudando. Isto não acontece apenas com quem deixa um país ou uma cidade, mas com todos os que experimentam mudanças na sua forma de se relacionar com o mundo. – Acontece quando você muda de escola com frequência, quando seus pais se separam. – disse ela, enfatizando que todos podemos perder o senso de pertencimento de um dia para outro. – Como, então, podemos encontrar estabilidade diante dessas reconfigurações sociais? – perguntei franzindo a testa.

14

136

KAUR, R. O que o sol faz com as flores. São Paulo: Planeta, 2019.


– Bom, no meu caso, eu sinto que pertenço cada vez que encontro alguém com uma resposta divertida à pergunta “de onde você é?” – respondeu demostrando sua satisfação. Para as crianças de terceira cultura, conhecer o termo TCK, significa dar um passo que possibilita a criação de vínculos com aqueles que compartilham da mesma experiência e assim desenvolver o senso de pertencimento. Por outro lado, há formas de pertencer que não necessariamente estão relacionadas com a trajetória do indivíduo. De um tempo pra cá Ruth desenvolveu laços com pessoas que enfrentam desafios similares. – Nos últimos anos tenho padecido de câncer de mama, o que me aproximou de pessoas com a mesma doença – disse Ruth – No nosso grupo compartilhamos sentimentos e damos apoio mútuo. Da mesma forma, alguém gu com problemas de alcoolismo e faz parte dos Alcoólicos Anônimos pode desenvolver um sens senso de pertencimento com aqueles que compartilham da sua condição. Para Daniela Tomer, o esporte é um meio para nutrir seu pertencimento.

137


– Cada vez que me mudo preciso buscar algum tipo de esporte coletivo do qual possa participar. Isso permite que me conecte com as coisas mais básicas do que somos – disse Daniela – Cada vez que jogo vôlei, por exemplo, me encontro com pessoas que não sabem que sou psicóloga, nem onde nasci, nem as línguas que falo. Na quadra a gente transpira do mesmo jeito. Sorrimos e passamos bons momentos. Podem me conhecer como uma jogadora com fraquezas em algumas áreas e fortalezas em outras, mas é uma relação autêntica. Assim como para Daniela estar num time de vôlei é sinônimo de se sentir acolhida, para Lisa foi no teatro onde ela encontrou seu lugar. Foi no palco onde ela encontrou um espaço para mostrar as diferentes caras da sua personalidade. Embaixo dos holofotes o único critério de avaliação é seu desempenho na interpretação dos personagens. Lá em cima não há cores nem sotaques que a impeçam ser quem ela é. – No teatro todos são esquisitos! –disse rindo.

138



140


pista de pouso 141


o que FICOU – Filha, escolhe os brinquedos que você vai querer – disse minha mãe enquanto deixava meus lençóis favoritos na pilha de coisas que não levaríamos para Panamá. Com uma lista mental dos brinquedos que selecionaria me dispus a cumprir o solicitado. – Só não leva aquela de olhos grandes–advertiu indicando a boneca que ganhara meses atrás. – Mas eu gosto dela mãe. Porque não podemos levá-la? – perguntei – Não há espaço suficiente! – exclamou deixando claro que havia coisas mais importantes para levar – Mas não fique triste, você está levando bastante coisa já. Não vai precisar dela. Obedeci a minha mãe sem resistência e a deixei junto com as coisas que ficariam. Mas aquela boneca nunca saiu da minha mente. Lembro que era loira e tinha uma cabeça três vezes maior que seu corpo. Dos pés à cabeça media uns 30 centímetros, mas era mais pesada do que as barbies que eu tinha. Com nove anos, Stephany também teve que escolher quais brinquedos levar e quais deixar. Mas o mais difícil foi deixar aqueles com quem brincava todos os dias, seus primos e amigos do prédio onde morava.

142


143


Olá sora cha– Mariela, vem cá um momentinho por favor – a professora mou-me antes da aula começar. – Sim – disse me aproximando da sua mesa. – Temos uma aluna nova, Stephany. Ela veio de intercâmbio bio e vai fazer esta disciplina. Como vocês falam espanhol acho que trabalhaabalhariam bem juntas. Antes de que a cumprimentasse ela já me esperava com um sorriso. Não consegui reconhecer seu sotaque então perguntei de onde vinha. – Estudo no Peru, afirmou com seus olhos brilhantes. – Ah, e você sempre morou lá? – perguntei. – Não. Morei na Bolívia e no Equador também – disse gesticulanulando com seus lábios cobertos de batom vermelho. Antes de continuar com as perguntas ela se adiantou e falou sobre como tinha chegado ao Peru. Não escondi minha emoção ao perceber rceber que ambas compartilhávamos a experiência de ter crescido em países íses diferentes. Foi difícil continuar prestando atenção na aula. Uma pessoa essoa desconhecida tinha chegado, mas parecia ser muito familiar. A conversa continuou depois que o sinal bateu. No caminho para o residencial feminino percebia-se duas meninas que falavam em outra utra língua e não disfarçavam os risos. – Mas você fala bem português! –ressaltei na conversa. – É que quando era criança convivi com alguns brasileiros –disse se explicando sua fluência no idioma– Além disso, minha família matererna mora na fronteira da Bolívia com Brasil, então quando ia visitá-los os aprendia algumas coisas. Tudo o que ela falava ia me deixando cada vez mais intrigada. Cheegamos ao prédio e cada uma foi dormir no seu quarto. Mas a conversaa não acabou naquela noite. Nos dias seguintes falamos por horas. Na verdade, ela foi a que mais falou. Eu me dediquei a ouvir sua história.

144


opostos única de Vania e David, Stephany nasceu em CochabamFilha ún ba, Bolívia. Os pais, mesmo sendo bolivianos, vinham de regiões diferentes. A mãe era do leste, caracterizado pelo clima tropical, diferentes flora e fauna abundantes. Contrário do oeste, onde as cores terrosas se ressaltam ressalt nas montanhas que compõem a paisagem. Além do sotaque sotaq ser distinto, os gostos de comida de ambos eram opostos. David gostava de sopa, batata e batata doce. Já Vania preferia prefer os pratos com banana da terra, mandioca e queijo. da coisas mais difíceis no casamento deles tem sido a – Uma das comida. Alguns dias se cozinha para meu pai e outros para minha mãe – disse Stephany que, sem escolha, aprendeu a amar as duas culinárias. Nos detivemos a falar de pratos típicos bolivianos. Eu conhecia as “salteñas”, um tipo de pastel assado recheado de batata e carne. Lembrei do sabor e fiquei com vontade de comer uma dessas naquele momento. Mas Stephany me apresentou outras comidas que me deixaram com água na boca, como o “pique a lo macho”, que consiste em um prato com pedaços de carne e batata frita com cebola e ovo cozido. Era parecido ao “lomo saltado” peruano, mas ela assegurou que o sabor era distinto.

145


av simón lopes Desde que ela tem memória os Sarzuri haviam morado no mesmo prédio branco de seis andares, onde Stephany aprendeu a caminhar, ler e fazer amizades com pessoas de diferentes idades e nacionalidades. Com 5 anos ela saia de casa disposta a brincar com seus amigos do prédio. Mesmo sendo a mais nova da turma, sempre era parte do grupo. Ao sair do seu apartamento apertava o botão do elevador para procurá-los e descer juntos, mas não ia sozinha. Com frequência topava com Mónica, uma senhora uruguaia que morava no andar de cima. – Oi – dizia Stephany levantando sua cabeça para olhá-la aos olhos. Mas Mónica não cumprimentava de volta. Stephany não sabia se seu “oi” tinha sido muito baixo ou a senhora estava distraída, mas o sorriso continuava aberto. Em várias ocasiões a cena se repetiu. Stephany apertava o botão do elevador e quando as portas abriam-se via Mónica que, com um coque alto e de saltos, ia rumo ao seu trabalho. Stephany, que no lugar da bolsa levava uma bola em mãos, não conseguia olhar para ela sem dizer “Bom dia”, mesmo sabendo que não teria resposta. Mas as idas e vindas no elevador deixaram de ser tão silenciosas. – Depois de 32 vezes ela me cumprimentou de volta. – relatou Stephany destacando sua insistência.

146


Ela ganhara uma um amiga e daí pra frente foi a única pessoa a quem Mónica cu cumprimentava no prédio. Stephany venceu aquela batalha. Porém, no prédio préd haviam mais pessoas. No quarto andar além da bandeira da Bolívia também estava a da Argentina. Na casa, o pai, também boliviano, casara-se com uma argentina. Os bo filhos, consequentemente, tinham um pouco de ambas culturas. consequentem Parecia que a única ún família local do prédio eram os Sarzuri. Além disso, Stephany era diferente dos seus vizinhos por Step outro motivo. Ela era er bem mais nova que o resto. Seus amigos tinham de 13 a 18 1 anos, mas ainda assim ela nunca ficou de fora. Depois de sair sa de aula ela e mais 5 meninos e meninas brincavam de futebol no pátio do prédio. Nenhum dos vasos com flores chegou a ser quebrado, mas os estac carros estacionados recebiam golpes constantemente. Uma das amizades que lembra com muito carinho é a que fez com os que moravam no quinto andar, Anne e Peter Schmid. O apartamento deles era o lugar onde ela ficava quando seus pais trabalhavam até tarde de noite. Peter, o mais novo, tinha 16 anos e as vezes ficava responsável por cuidar dela. – Nos dias que ele tinha tarefas para fazer me dizia: “olha, hoje você vai assistir dois filmes, você assiste um enquanto eu termino meus deveres e depois eu vou lá assistir o outro com você, tá bom?”

147


Enquanto Peter estudava Stephany ficava na sala de jantar com Moustache (gato de Peter) que tinha ordens de tomar conta dela. Stephany se dirigia à estante onde estavam os filmes e radiante olhava um por um dos DVD que estavam ao seu dispor. Os Schmid gostavam de assistir filmes por isso tinham mais de 50 de diferentes gêneros ordenados em ordem alfabética. Para ela, aquela estante era um tesouro. Mas Anne e Peter não eram bolivianos. Eles eram brasileiros. E os pais, de países distintos, o pai da Suíça e a mãe da França. – O engraçado era que os pais usavam línguas diferentes em situações específicas. Quando estavam contentes falavam em português. Quando os pais brigavam com os filhos, usavam o inglês. E para o resto dos diálogos, o francês. Comigo falavam em espanhol – comentou Stephany que desde então passou a admirar o francês. Outro dos momentos que compartilhou com saudade foi do dia em que acabaram com o sorvete do senhor Schmid. O pai de Peter gostava muito de doces, por isso sempre tinha uma reserva do seu sorvete favorito, que por sinal era francês e não era barato. Certo dia, Stephany e Peter se deixaram levar pelo gosto e sem perceber esvaziaram o pote a colheradas.

148


Quando o pai voltou do trabalho se dirigiu à geladeira para comer um pouco da sua sobremesa favorita, mas não a achou. Expectantes Peter e Stephany aguardavam em silêncio na sala de jantar, fingindo que nada tinha acontecido. Mas não passou muito tempo para que ouvissem a voz do pai na cozinha. – Vocês comeram sorvete hoje? –perguntou em francês querendo saber se eles tinham sido os culpados. Sem escapatória, ambos confessaram o delito. – Sim pai, a gente comeu sorvete e acabamos com seu pote –explicou Peter. O pai chegou onde eles estavam e ficou observando seus rostos constrangidos. Mas depois de uns segundos começou a dar risada pelo acontecido. – Tá bom, vamos comprar mais então –disse determinado a comer o doce gelado. Momentos como esse fizeram crescer a cumplicidade entre eles. A diferença de idade nunca foi motivo para não estabelecer laços que ambas famílias cultivaram durante dez anos, até que foram transferidos para países diferentes. Os Schmid saíram uma semana antes, rumo a Bangladesh.

149


primeira mudanca , Ao esvaziar a casa a ficha começou a cair. As coisas eram encaixotadas e levadas para doação. Enquanto o eco enchia os cômodos suas mãos seguravam uma tartaruga de madeira. – Pai, a gente vai pra lá? perguntou sinalizando o souvenir que meses atrás ele trouxera de Galápagos. Ela não sabia nada do Equador, mas na mente o associava às tartarugas. – Sim filha, a gente vai pra lá e você vai poder ver tartarugas no mar respondeu-lhe. Os Sarzuri faziam a mudança para a ir a um novo lugar e o tempo era curto. Em um mês a família devia estar instalada na nova parte do mundo. Contudo, Stephany não compreendia porque as pessoas choravam ao se despedir dela. No último dia de aula os colegas fizeram uma despedida e ela começou a perceber que realmente não estaria mais com eles. Quando ouviu o discurso do seu primo, que de poucas palavras e uma personalidade tímida não costumava a falar, o coração começou a doer. Detinha o olhar em cada um pois seria a última memória que teria dos seus colegas. Depois dos abraços, esteve alguns instantes com os mais íntimos. – Quando você vai voltar? Perguntou-lhe sua melhor amiga enquanto ambas olhavam o pátio do colégio da sacada. – Daqui a sete anos – assegurou Stephany – Quando você se formar eu vou vir e a gente vai se ver de novo. Com essa promessa Stephany partiu da Bolívia.

150


equador Na expectativa de como seriam as coisas em Quito Stephany saiu do aeroporto examinando cada rua da cidade. Animada pela olhada que já que dera abriu a porta da casa para explorar a área. Atraída pela luz de uma das janelas se aproximou para ver a paisagem. Uma visão privilegiada da capital estava perante seus olhos, em primeiro plano, prédios e ruas iluminadas. No fundo, Os Andes. – Agora vou morar aqui – repetia com o pensamento. Embora gostasse da nova casa, com o passar das horas sentiu a ausência dos vizinhos. A medida que desempacotavam as coisas e arrumavam os quadros o ambiente enchia-se de pertences familiares, contudo, o vazio continuava.

151


silêncio Os primeiros dias na escola foram calmos. Não demorou muito para se adaptar com o ambiente, mas para a surpresa de alguns colegas resultou que ela era uma aluna que tirava boas notas. O que, automaticamente, a posicionou como rival de uma das meninas que era destaque na turma. Nos dias seguintes foi surpreendida ao perceber que ninguém na sala olhava para sua cara. Todos fugiam dela porque falar com Stephany era estar contra a elite da sala. Ela manteve-se discreta. Na verdade, não tinha opção. – Algo que as pessoas não entendem é que as vezes, quando você é estrangeiro, você não precisa se sentir estrangeiro. Mas sem querer eles fazem que a gente se sinta como um estranho – expôs relatando o sentimento. Para sua idade Stephany tinha uma percepção ampla do que acontecia. Por causa do contato com pessoas mais velhas que tivera na Bolívia ela acabou desenvolvendo uma maturidade precoce. Por isso, o fato de ninguém falar com ela na escola era para Stephany algo que não fazia sentido. – Era uma atitude muito infantil – expressou – Mas nem por isso não me doía.

152


Foi assim que sua vida virou uma rotina que ia de silêncio em silêncio. Não falava com ninguém na escola e não tinha ninguém para brincar em casa. Tinha a voz da mãe, sim. Com frequência conversavam sobre os preparativos para receber o bebê que estava a caminho. Porém, esses diálogos também foram silenciados de vez. Os primeiros dois anos no Equador não foram fáceis. Enquanto o pai tentava se acostumar com as novas responsabilidades, a mãe tentava recuperar a saúde que piorara depois de uma negligência médica ao fazer uma curetagem pela perda do bebê. Stephany também tinha suas lutas na escola, mas aos seus olhos eram um problema simples comparado às dificuldades em casa. – Se eu falasse para eles meus pais iam ficar tristes. Se eles comentavam comigo o que acontecia eu ia ficar mal. Por isso, cada um guardou sua dor para não ver o outro chorar – confessou lagrimejando. Sem dúvida, a situação teria sido amenizada se os familiares estivessem do seu lado. Em Cochabamba, tios e tias moravam perto. Porém, estavam sós e num país que não era o deles.

153


Alheio Michael Pollock passou por momentos como o que Stephany acabara de relatar. Como ela, era filho de missionários e morou fora do seu país uma parte significativa da vida. Por isso decidiu trabalhar em escolas que receberam crianças multiculturais para aprender com elas e ensinar a partir de suas experiências. Com essa bagagem no campo cultural ele e seu pai escreveram sobre a terceira cultura na primeira edição do livro Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. – O senso de não pertencer ou de sermos rejeitados num determinado grupo social estimula a mesma parte do cérebro que é acionado pela dor física – observou Michael Pollock ao citar em nossa conversa pesquisas científicas relacionadas à dor emocional que também conhecia – Nesse momento da vida, Stephany enfrentou um ambiente hostil que a excluiu do resto da classe, o que pode acontecer com qualquer pessoa. Não obstante, esta dor também está presente quando um TCK volta a um país que ama e não se sente aceito pelo resto, porque é tido como um mero estrangeiro – comentou Michael. Independentemente das dores de rejeição vividas por Stephany e sua família, uma perspectiva diferente a respeito de serem estrangeiros foi cultivada por eles. Uma que nortearia pensamento e formas de atuar nos anos seguintes.

154


sarzuri – Esta vai ser a nossa terra –foi a resolução do pai quando chegara ao Equador. A família era ciente de que deveriam se camuflar entre os equatorianos. Do contrário, o trabalho desta família missionária não seria eficaz. O primeiro que deve morrer é a ideia de que somos de lá (Bolívia) e o que a gente faz é melhor – ressaltou David que fora transferido para ocupar o cargo de tesoureiro na sede equatoriana da Igreja Adventista do Sétimo Dia (Iasd). E se esforçaram ao máximo para que fosse assim. Em uma das viagens que fizera ao leste equatoriano, teve a missão de visitar uma tribo shuar – povo indígena amazônico que habita nas selvas do Peru e Equador. Enquanto seus pés avançavam entre o mato, seus braços afastavam as folhas de arbustos que bloqueavam seu caminho. O calor era intenso, mas a beleza do lugar extraordinária. Quando ele e outro colega de trabalho chegaram ao lugar foram recebidos com expectativa, pois ambos eram estrangeiros e sua presença foi motivo de celebração na aldeia. Aquele dia foi realmente uma festa, lhes preparam o melhor que tinham e David se sentiu valorizado. Não entanto, houve um elemento que fez a diferença na relação entre ele e os habitantes desse lugar. A prova de fogo foi beber “chicha”. A bebida é feita a base de milho

155


e a preparação consiste em triturar e mastigar com os dentes para depois cuspir e encher as jarras. Aquela bebida era sagrada. Possuía um significado importante para os aldeões. Tomar “chicha” equivalia a dizer: “você é meu irmão, te amo”. Quando recebeu o recipiente cheio do líquido David lembrou daquela frase que enunciara ao chegar àquele país “esta vai ser nossa terra”. Sem pensar duas vezes engoliu a bebida amarela. – Quer mais? – perguntaram após o último gole. – Foi suficiente, obrigado – respondeu antes de encherem novamente o copo. David poderia não ter tomado a bebida como seu colega fez. Porém, ele sabia a diferença que aquele gesto ocasionaria entre o relacionamento com os shuar daquela aldeia. A partir de então David tornou-se um deles. O carinho que recebeu após aquele episódio fez valer a pena cada gole de chicha que tomara na primeira visita. – Começamos a amá-los, entendê-los, caminhar dentro do pensamento deles –disse Stephany que acompanhou todo esse processo. Desde criança ela percebeu a importância de respeitar o outro, ainda mais quando se é visitante naquela terra. Para Stephany, ter uma atitude de rejeição das tradições e imposição de ideias seria repetir a história da colonização.

156


– O fato de querer chegar a um lugar e julgar a partir do nosso ponto de vista não é bizarro. Aconteceu quando os espanhóis chegaram aqui e impuseram o que eles eram. Não houve diálogo nem respeito. Mas hoje deveria ser o contrário, deveríamos chegar para aprender – comentou fazendo menção da frase do filósofo irlandês Edmund Burke. “Quem não conhece sua história está condenado a repeti-la”. Um vez que se demonstra respeito e valorização pela cultura local, aí sim as pessoas estarão dispostas a receber quem vem de fora. – Lá nos tornamos equatorianos, por isso doeu sair – revelou ao contar que mais uma vez foram chamados para trabalhar em outro país.

157


interrompida Já tinha se adaptado à Quito, tinha amigos e planos para o futuro. Mas tudo mudou repentinamente. Seriam transferidos a Lima, Peru. Stephany realmente não queria ir embora, estava no último ano do ensino médio e não contava com uma mudança na metade do ano escolar – que se inicia em setembro e termina em junho/julho. A ideia de voltar para sua formatura a consolava, mas no momento tinha que encarar a realidade. Continuaria as aulas à distância. Uma das últimas atividades acadêmicas do semestre foi interpretar o poema “Rua Desconhecida”, do poeta argentino Jorge Luis Borges. Disposta a cumprir com tal exigência e com os versos em mão Stephany fez a primeira leitura. Depois do ponto final nada parecia fazer sentido, o que a obrigou a ler várias vezes para ter alguma compreensão da ideia que o poeta expusera. A análise foi mais difícil do que o imaginado. Quando recebeu a noticia de que deixaria o Equador a tarefa ficou em segundo plano. A prioridade era a mudança, pois na semana seguinte deveriam embarcar. Enquanto Stephany coletava seus pertences e fechava as caixas o relatório do poema veio a sua memória e teve que tirar um tempo para cumprir com aquele quesito. Porém, o tempo venceu e viajou sem entregá-lo.

158


pés divididos Quando chegou ao Peru, em 2016, não teve tempo para fazer turismo. Além de terminar o último te semestre do ensino médio online, Stephany entrara no primeiro ano da faculdade. Para os peruanos, a etapa universitária chega mais cedo. Com 17 anos os estudantes ingressam às faculdades e se inicia o preparo para a vida profissional. Ela escolheu Comunicação Social como curso e os estudos começaram no mês de março. Chegou julho e com ele a data da sua formatura em Quito. Como combinado, Stephany viajou antes da cerimônia para fazer exames finais. Fez uso da passagem de avião comprada com antecedência para aquele dia e entrou no avião. Em poucas horas, voltaria a pôr os pés naquele lugar que fora seu por tanto tempo.

159


voltar Sentada na carteira de costume e com uma pasta cheia de papéis Stephany entregou o que a professora lhe solicitava. Uma das atividades que ela cobrou foi aquela atividade que não tinha sido entregue. Quando tirou o papel que continha sua visão sobre “Rua Desconhecida” o poema tomou vida. Aqueles versos com que Borges descrevera a sensação de voltar à Argentina depois de sete anos morando na Suíça e na Espanha fizeram sentido para ela. Retendo o papel em mãos, Stephany leu mais uma vez.

“De penumbra da pomba chamaram os hebreus a iniciação da tarde, quando a sombra não entorpece os passos e o anoitecer é percebido como uma música esperada e antiga, como um grato declive. Nessa hora em que a luz tem a finura da areia, dei com uma rua ignorada, nobre em sua largura de terraço, cujas cornijas e paredes mostravam cores suaves como o próprio céu que comovia o fundo. Tudo — a mediania das casas, as modestas balaustradas e aldravas, talvez uma esperança de menina nas sacadas — entrou em meu inútil coração com limpidez de lágrima.

160


Talvez essa hora da tarde prateada concedesse à rua sua ternura, tornando-a tão real quanto um verso esquecido e resgatado. Só depois ponderei que aquela a rua ignorava a tarde, que toda t casa é um candelabro onde aas vidas dos homens ardem como velas isoladas, que todo to impensado passo nosso caminha ca sobre Gólgotas. – Quando fiz o exercício exercíc comparei a experiência de Borges à minha quando voltara pra B Bolívia de férias. Cochabamba não era a mesma e eu também tinha mudado. mu Porém, naquele dia em que voltei a meu antigo colégio em Quito senti que esses versos descreviam meu sentimento. Tinham passado ape apenas seis messes desde a mudança, mas aquele lugar onde tivera morado mora por dez anos era outro. Pessoas tinham ido embora, a mercearia tinha sido transformada em salão de beleza, o colégio estava sendo reformado. refor Os caminhos que os pés de Stephany alguma vez trilharam eram agora ruas desconhecidas. – O sentimento é de nostalgia por algo que você guarda, mas que sem importar o quão guardado esteja d mesma maneira – disse com voz melancólinão fica da ca – O que nos resta é ser felizes com as lembranças do vi que foi vivenciado naquele lugar, porque as coisas não esperam por você, o mundo não se detém.

161


DECOLAR Olhando pela janela do voo que a levaria de volta a Lima, divisou Quito pela última vez. – Como posso amar tanto este lugar se não é meu? – se perguntava enquanto o avião decolava do chão. Sabia que, depois da formatura, não haveria motivos para voltar. Não tinha bens para cuidar, nem família para visitar. Contudo, a sua vida estava ali.

162


perdas Embora morar em países diferentes possa enriquecer a bagagem cultural de uma pessoa e contribuir para uma visão mais ampla do mundo que o rodeia, além de os capacitar para enfrentar situações onde precisem de adaptação e flexibilidade, no estilo de vida do TCK também há coisas que se perdem. Assim como em cada mudança alguma coisa se perde, há também partes de nós que ficam. Além de deixar pessoas mudar de endereço também pode significar uma mudança de etapa, de rotina, de espaço. Cada transferência inclui perdas que – não importa o ganho tido – causam dor1. Quanto maior é a aproximação com o lugar e as pessoas mais profundos serão os sentimentos de luto. Inclusive, quando não se é consciente da tristeza2. A ideia de combater estes sentimentos com pensamentos de felicidade é muitas vezes a mais comum. Não obstante, pode ser um erro. Algo desse tipo aconteceu comigo em outubro de 2004.

1 POLL POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Gr Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Bos201 ton: Nicholas Brealey, 2017. 2 Idem.

163


rodoviária A primeira vez que me separei da minha mãe ela não se despediu de mim. Tinha 7 anos e não sabia exatamente quando a veria de novo, mas estaríamos em países diferentes por vários meses. Ela ficaria em Cusco e eu iria para o Chile. Ainda na rodoviária de Tacna –cidade na fronteira entre ambos países–, soltei a mão da minha tia, que iria me cuidar por esse tempo, para sentir os braços da minha mãe pela última vez. Mas não pude. A cor vermelha da sua camiseta me permitiu identificá-la de longe. Ela tinha ido sem dizer tchau. Eu, sem reação, segurei novamente a mão da minha tia e subi no ônibus que nos levaria para nosso destino. Aquela cena não me deixou triste no momento. O mais penoso daquele dia seria estar sentada 30 horas no ônibus para chegar a Santiago. Entramos, sentamos e esqueci do assunto. Porém, os dias passaram e comecei a sentir saudades dos meus pais.

164


Alheio O dia de reencontro com eles chegou. Também em uma rodoviária, esperei que descessem do ônibus que os trouxera. Minha emoção foi grande quando vi minha mãe e irmão aparecer. Estávamos juntos outra vez. E aquele episódio inicial em que ela foi sem dar tchau foi substituído pelo abraço de recepção. Porém, a cena não foi apagada da minha memória. Anos depois, curiosa por saber o que aconteceu em Tacna, perguntei para minha mãe porque não se despediu de mim naquela ocasião. E a resposta foi: – Não queria que você chorasse. Eu nunca imaginei que essa tivesse sido a real intenção. – Mas isso foi pior – falei para ela– eu pensei que você tinha esquecido de se despedir de mim e aí sim me senti abandonada. Contudo, entendo o que minha mãe estava pensando. Sua atitude não é muito diferente da de muitos pais que sabem que irão se distanciar dos seus filhos. Algumas famílias transculturais mandam seus filhos a escolas de internato em países distantes desde o ensino fundamental. Com objetivo de “prepará-los” para esta separação alguns pais deixam de abraçar seus pequenos para que se acostumem com aquilo e não sintam tanta saudade depois3. Mas este tipo de medidas não diminui o problema. A tristeza é algo do qual não se pode fugir. E se ela não é expressada no momento da separação irá se acumulando dentro do corpo até que, em algum momento, explode4. Isso foi o que aconteceu com Stephany quando, depois de conter a dor de uma perda, as emoções transbordaram num só dia. 3 POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 4 Idem.

165


choro – Quando Francisco morreu eu não chorei. Não assimilei o que tinha acontecido e as pessoas ao meu redor estavam tão afetadas. Não quis ser mais uma. Nesse tempo minha forma de lidar com as situações difíceis era mostrar firmeza e ficar calada – reconheceu. Francisco fora amigo íntimo da família Sarzuri por anos. Se conheceram na Bolívia e morou com eles no Equador, por isso a perda foi tão significativa. Depois de um ano daquela tragédia o irmão de Francisco passou alguns dias na casa de Stephany. E sua presença trouxe lembranças do acontecido. – Quando ele começou a falar de Francisco eu rompi em prantos – relembra– e não pude parar, porque doía como dói até hoje. Ele perdera a vida em um acidente de trânsito em outro país, por isso os Sarzuri não conseguiram dar o último adeus. A distância não permitiu. – Isso me ensinou claramente que chorar é necessário, que é parte de sentir. Porque para estar feliz a gente precisa soltar coisas. Eu enfrento problemas pela multiculturalidade, mas outras pessoas encaram outro tipo de situações igualmente dolorosas. Chorar é uma terapia – adiciona– assim como muitas coisas. Por algum motivo Deus nos deu a capacidade de chorar.

166


gritos Me encontrava na biblioteca procurando algo que me interessasse ler. Dentre os livros que escolhi um foi de Pilar Sordo, psicóloga clínica que tivera conhecido anos atrás através de vídeos de YouTube. Já tinha a ouvido falar sobre relacionamentos entre pais e filhos, mas a obra que tinha nas mãos falava sobre ser “surdo”. Além de ter o título de psicóloga clínica Pilar percorre a América Latina fazendo pesquisa sobre relacionamentos interpessoais. No livro Oídos Sordos conheci um pouco mais da sua vida pessoal e as consequências de ter acumulado estresse, ansiedade e pesar por tanto tempo. As emoções que, por anos, ela não soube expressar mandaram a fatura quando foi diagnosticada com várias doenças sem motivo aparente. Os médicos não conseguiram dizer o porquê dos mal-estares até que uma deles a examinou de forma integral. Corpo, mente e alma. Durante o processo percebeu que, às vezes, o corpo grita aquilo que a alma não consegue dizer com palavras. Quando se referiu à tristeza fez uma analogia com o que acontece nos terremotos5. Me convidou, mediante o texto, a imaginar a cena da terra se mexendo. Diante de um sismo há duas possibilidades. A casa cai ou ela fica em pé. As probabilidades de ela cair quando a magnitude do sismo é alta, são fortes. Mas, para evitar isso existem as construções antissísmicas que consistem em cimentos flexíveis que acompanham o movimento telúrico e dessa forma a edificação fica intacta. Esta flexibilidade – 5

SORDO, P. Oídos Sordos. Santiago: Planeta, 2016.

167


168


comentou no livro– representa a capacidade de identificar os sentimentos e expressá-los. Por outro lado, quando as construções são rígidas, tem um alto risco de serem derrubadas pelo terremoto. Da mesma forma quanto mais retivermos a pressão, o estresse e a dor dentro de nós, maior será o desastre6. A verdade é que as pessoas, de modo geral, aprendem que ser vulnerável é sinal de fraqueza e que expressar tristeza significa debilidade na estrutura da personalidade. Porém, ser forte tem a ver com a flexibilidade e não com a rigidez. Se relaciona mais com “expressão” do que com “contenção”7. Assim como minha mãe foi embora antes de dizer tchau, eu também já fugi da tristeza. Fujo até hoje na verdade. As vezes me afasto de alguém para não me apegar o suficiente a ponto de ter que chorar quando tiver que partir. Mas este livro me fez enxergar outra perspectiva. Pensando bem, se cada lágrima derramada é sinal de que experimentamos a felicidade pelo menos por um instante, a dor é uma afirmação daquilo que é bom. Sendo assim, cada vez que choro por alguém é porque tive bons momentos com essa pessoa, porque ela se tornou importante para mim. Se não fosse assim não teria motivos para chorar nem sentiria dor ao ir embora. Se tais reações não existissem, isto seria sinal de que não houve algo significativo digno de ser lembrado8. Pensar assim, confesso, tem sido um alivio emocional já que as despedidas são parte da minha rotina.

6

SORDO, P. Oídos Sordos. Santiago: Planeta, 2016 Idem 8 POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017 7

169


o que FICA Ao fechar as portas do avião, os passageiros que não tem bilhete de retorno perdem o mundo que até então conheciam e lhes pertencia. As paredes não serão as mesmas, os endereços terão novos nomes e o céu será de outra cor. Este tipo de situações se encaixa na categoria de perdas ocultas 9 que embora nunca se repitam da mesma forma ocorrem uma e outra vez. Somado a essa está a perda de status. Quando o individuo muda de cenário também se perde o senso de pertencimento àquele lugar onde fora reconhecido pelo que era e pelo jeito que podia contribuir nesse espaço10. Da mesma forma acontece com o estilo de vida. A forma de fazer compras, os produtos disponíveis, a forma de se transportar de um lugar a outro, são coisas que podem mudar de um dia para outro. Quando tudo gira ao redor o equilíbrio cultural também se perde11. A distância entre os amigos, em muitos casos, ocasiona a perda do vínculo. Esta, geralmente, é uma das mais perceptíveis. Igualmente, pessoas que são modelos a seguir deixam de estar presentes na vida do indivíduo, o que pode afetar o comportamento de quem vai, como de quem fica12. Assim como a perda de mundo, de status e estilo de vida, há coisas que também são insubstituíveis, cujo valor vai além do material.

10

9 Tradução livre. Hidden losses. POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 11 Idem. 12 Idem.

170


insubstituíveis Depois de terminar o semestre de estudos no Brasil, Stephany voltou à sua faculdade no Peru. Chegou e teve que se esforçar para dar conta das atividades que tinha perdido nas aulas. Dificilmente tinha tempo para relaxar. Nesse ritmo, a encontrei quando fui participar de um evento de jovens na Universidad Peruana Unión (UPeU), que fica em Ñaña, a uma hora da capital. Pude estar com ela apenas uma noite do evento, pois fazia parte da equipe de produção audiovisual que dia após dia realizava vídeos para a programação. Mas o dia em que o evento se encerrou, tivemos tempo para conversar. Falei não apenas com ela, mas com seus pais, David e Vania. Quando os vi percebi que os traços de ambos eram diferentes. O pai, moreno e de olhos puxados. Vania, com um tom de pele mais claro, olhos grandes e cabelo encaracolado. Nos sentamos na grama de uma praça no centro de Chaclacayo –cidade vizinha– e ouvi detalhes da história de Stephany a partir de outra perspectiva.

171


Um dos aspectos que como pais estavam cientes era o pouco tempo que lhes era dado para efetuar as mudanças. Especialmente a última. – Sair de um país de um dia para o outro não é fácil – disse Vania – tivemos que deixar coisas em casa de outras pessoas porque não conseguimos nos desfazer de tudo. Na família Sarzuri há três coisas que são prioridade no momento de uma mudança. Os livros da biblioteca, os materiais e roupas de encenação e os equipamentos técnológicos. O resto é negociável. Contudo, na saída do Equador houve algo que não conseguiram vender e no Peru não conseguiram substituir. – O Equador se caracteriza por fazer móveis esculpidos em madeira. As estantes, especificamente, são muito bem-feitas. Nós tínhamos uma, mas ninguém se interessou por ela quando quisemos vendê-la. Mesmo diminuindo o preço o móvel ao estilo clássico, tão valioso para Vania, parecia não sê-lo para

172


o resto. Não obstante, transportar a estante até o Peru não foi a solução no momento da mudança. O móvel ficou. Já instalados na casa nova num condomínio a poucos metros da Universidade onde os pais iriam trabalhar algo faltava na sala de estar. Procuraram nas cidades próximas e em outros estados algum móvel de estilo similar ao que Vania tanto gostava, e claro, de madeira. Porém, a busca só comprovou que aquela estante era insubstituível. – Resolvi trazer a estante e fui ao Equador procurá-la – contou a mãe de Stephany analisando o quanto esta viagem compensava. Um amigo carpinteiro a embalou para que chegasse ao Peru intacta. E o transporte terrestre foi um sucesso. A estante sobreviveu ao percurso de mais de 24 horas e chegou de Quito sem novidades, além de algumas baratas dentro. Depois de limpá-la a colocaram no lugar que desde o primeiro dia a aguardava. Agora sim a casa estava completa.

173


selva Durante os anos que Stephany passara no Equador as viagens foram parte da sua rotina. Com seus próprios olhos vira as tartarugas de Galápagos que no início foram referência única daquele país. Percorrer o Equador de norte a sul fez com que sua estadia lá não fosse monótona. Mesmo sem sair para outros países o ritmo de idas e vindas a acostumou ao movimento. Mas quando chegaram ao Peru aquelas viagens cessaram. A rotina consistia em ir para a faculdade e voltar para casa. Compreensivelmente, isto foi um choque para Stephany. Porém, o que a trouxe ao Brasil não foi apenas a busca por novidade. – Um dos motivos que me fez vir para o Brasil foi uma questão de assimilação –confessou ela. Não estava fugindo, mas estava cansada de lutar. O tipo de luta que enfrentava diariamente não era com obstáculos predeterminados e sim com variáveis que afetam a convivência. Além da mudança que a família teve no ritmo de vida, aspectos da cultura representaram um desafio para os três. – Uma das características do povo aqui é o individualismo que, provavelmente, foi alimentado pelos 20 anos de terrorismo (1980-2000) – comentou enquanto acomodava seus óculos. Desde que a conheci, Stephany demonstrou ser uma pessoa amigável que gosta de conhecer pessoas e compartilhar coisas com elas. Porém, quando fazia trabalhos em grupo na sua

174


faculdade no Peru, os integrantes não demonstravam interesse em fazer uma amizade que fosse além da cordialidade necessária para realizar trabalhos juntos. E nas ruas de Lima dificilmente Stephany se encontrava com pessoas que a cumprimentassem. Se é verdade que ao estar em contato com uma outra cultura estamos expostos a absorvê-la, é valido se perguntar até que ponto é positivo assimilar alguns aspectos. – Esses são traços culturais que não quero assimilar, nem chegar para corrigir. Tenho que valorizá-los como são, mas nem por isso vou me tornar como eles – expôs. Em seus 22 anos de vida Stephany tem percebido que podemos ser seletivos e que nossa identidade pode ser construída tomando o que queremos assimilar de outras culturas. – No Equador foi bonito assimilar certas coisas, como por exemplo, cumprimentar na rua – ressaltou. Também há coisas que admiro nos peruanos. São trabalhadores e muito criativos. São proativos. No Equador não são muito abertos com os estrangeiros, mas quando te conhecem te adotam. Te amam e te defendem, são fiéis. Aprendi a ceder batalhas e a lutar em outras. Durante o semestre que passou no Brasil, em 2019, ela fez amizades com pessoas que contribuíram para uma experiência positiva, e renovadora. – Eu amei o Brasil. Amei os brasileiros, sua alegria, vontade de

175


compartilhar e conhecer pessoas – destacou sem disfarçar sua alegria pelos messes que passou no interior de São Paulo. Stephany é, com toda certeza, uma pessoa adaptável. Não tem dificuldades para estar em novos ambientes, se relacionar, e mostrar sua forma de ser. – Você se consideraria um camaleão? – perguntei. A flexibilidade com que encarava as situações parecia ser semelhante à capacidade de mimetismo do réptil. Mas a resposta foi não. – Um camaleão se camufla e transforma. Quero acreditar que não preciso me transformar totalmente. Ser a soma daquilo que assimilo nas diferentes culturas não significa que me torno uma pessoa daquele lugar. Nem eu sou um camaleão nem os outros precisam sê-lo. Podemos ser diferentes e viver juntos. Além do mais, quanto mais diferenças temos, melhor convivemos, porque vemos a partir de diferentes perspectivas. Um camaleão não vive apenas com outros da sua espécie, vive em meio à selva. Gosto de pensar que eu sou mais um desses animais diferentes e que todos podemos construir uma realidade se tivermos respeito e amor os uns pelos outros, se ouvirmos e formos ouvidos.

176


177


máscaras Através do estudo de casos, Michael Pollock e Ruth Van Reken concluíram que há quatro formas de identidade cultural em relação à cultura circundante.

1

A primeira delas é a de estrangeiro13, onde a aparência e a forma de pensar são visivelmente diferentes do meio onde a pessoa se encontra.

2 3

Por outro lado, quando alguém tem traços físicos diferentes dos das pessoas locais, porém absorve a cultura do lugar, ela pode ser chamada de adotada15. Neste caso, a pessoa adotou certos costumes por causa do tempo que tem mora ali e a profunda imersão naquele ambiente.

4

Por último, quando o indivíduo tem o aspecto físico e forma de pensar semelhantes às pessoas do lugar onde se encontra, ele é um considerado espelho16, por refletir nele características da cultura visível e invisível daquele lugar. Por isso, dificilmente alguém irá pensar na possibilidade de ele ser estrangeiro.

14

178

A segunda forma é a de imigrante oculto14, na qual a pessoa parece fisicamente com o resto, mas sua forma de pensar e ver o mundo é distinta.

13 Tradução livre. Foreigner. Tradução livre. Hidden Imigrant. 15 Tradução livre. Adopted. 16 Tradução livre. Mirror.


Estes aspectos tem um papel importante na aceitação que TCKs tem em um ambiente social e na própria concepção que tem deles mesmos17. Seguindo estas características, há algumas reações comuns que TCKs tem enquanto tentam resolver suas questões de identidade, especialmente quando entram na categoria de imigrante oculto e adotado.

1 2

A primeira é a dos adaptados18, que se sentem confortáveis no novo lugar. se acomodam e seguem em frente.

A segunda é dos isoladores19 que preferem não se expor por medo do desconhecido e optam por ser expectadores antes de se engajar em atividades locais.

3 4

Os gritadores20 são aqueles que procuram uma identidade distinta à do resto e deixam claro que não irão ser como os demais.

E os camaleões21, aqueles que tentam achar uma identidade igual a do resto e escondem o tempo que passaram em outros países se conformando externamente com roupas, língua ou atitudes do lugar onde estão22. Stephany realmente não parecia com um camaleão. 17 POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 18 Tradução livre. Adapters. 19 Tradução livre. Insulators. 20 Tradução livre. Screamers. 21 Tradução livre. Chameleons. 22 POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.

179


raízes – E a Bolívia, tem planos de voltar lá? – perguntei para os pais enquanto fechava o zíper do meu casaco. A temperatura estava diminuindo e meu corpo sentia. – Quando morávamos lá escolhíamos outros destinos. Fomos a República Dominicana, Paraguai, Brasil – complementou Vania – mas, desde que saímos de lá as férias são só para visitar nossa família. Veio a minha cabeça a bandeira boliviana. Vermelho, amarelo e verde são as cores que compõem o símbolo. Elas representam respectivamente o sangue derramada pelos heróis nacionais, a abundância de recursos minerais do país e a esperança do povo, assim como a riqueza de bosques e selvas. Porém parece que nem todos os bolivianos acreditam no potencial da sua terra. Até 2018, o Instituto Nacional de Estatística registrou 11.216.000 de pessoas que compartilham o mesmo símbolo tricolor como seu. Não obstante, do total, aproximadamente 500 mil bolivianos emigram a outras regiões do mundo (Argentina é o destino mais comum, seguido da Espanha)23. Esta cifra corresponde aproximadamente a 5% da população total. Dado que David antecipara durante a conversa. – Nós não procuramos fugir da Bolívia, como alguns fazem. Pelo contrário, queremos voltar – assegurou – A maioria dos nossos compatriotas tem a ideia de que ir embora significa progresso, por isso há tantos espalha-

180

23 Dados retirados do site do Instituto Nacional de Estadística resgistrados no Censo de Población y Vivienda de 2012. http://datos.ine.gob.bo/binbol/RpWebEngine.exe/ Portal?BASE=CPV2012COM&lang=ESP


dos pelo mundo. O pai de Stephany ressaltou que essa atitude não é apenas característica das pessoas do seu país. Ele tem percebido a mesma vontade em outros lugares. – Quando moramos em Equador observamos que muitos dos seus habitantes também emigram a outros países, porém há uma diferença. Os que vimos e estão nos Estados Unidos e Europa vão em busca de oportunidades, mas não investem lá e sim no seu próprio país. Com o dinheiro que recebem constroem casas no Equador com a esperança de voltar. – E vocês, para onde voltariam? – perguntei. Pois sabia que David e Vania eram de regiões diferentes – Ao centro –respondeu Vania de imediato– Lá temos nossa casa. Eles me contaram que quando saíram da Bolívia compraram uma propriedade onde começaram a conscomp truir sua casa. Nunca a habitaram, mas é deles. – Eu acho que adotamos o país inteiro. Nós três somos a síntese – comentou o pai. – Ocidente, centro e oriente – disse a mãe ap apontando cada um segundo a região que representava. – Os três lados nos encantam – confessou David. São diferentes, mas muito bonitos. – Muito Mu bonitos – confirmou Stephany. – Nossa base vai ser Cochabamba – reiterou o pai – Mas eu não diria o mesmo da Stephany. Né? Disse olhando para a filha que estava na sua frente.

181


glocal “Pertencer a todos os lugares e a nenhum ao mesmo tempo” é uma frase conhecida pela comunidade TCK. O que diz é real. Quando sua vida é marcada por bilhetes de avião, folhas de passaporte com carimbos diferentes e mudanças no fuso horário, não há lugar onde possa se sentir completo. Não há momento em que a saudade não bata a porta. Não obstante, usar esta frase como lema não contribui ao senso de pertencimento que o ser humano tanto precisa. Essa é a perspectiva de Rachel Cason, socióloga que conheci através do blog Life Story Therapies. Por meio das histórias que outros TCKs tem compartilhado com ela, Rachel observa que o impacto dos lugares geográficos na experiência multicultural não deve ser subestimado. – Ao nos referir a lugares estamos falando de uma experiência local e é dessa mesma forma que a globalização faz sentido. Ela só pode ser entendida no conceito de viver localmente – disse enquanto eu tomava nota. Para tornar mais visual o que ela tentava explicar, utilizou um exemplo familiar naquele encontro virtual. McDonald’s é uma das empresas de comida rápida mais conhecidas e está presente em mais de 100 países ao redor do mundo. Seja no Brasil, no Egito ou na Tailândia, os “Big Mac” estarão sempre

182


por perto. Contudo, a fama mundial não em sido suficiente para garantir o sucesso nos países. A cada vez que se instala em um novo território, a companhia passa por um processo de assimilação cultural para ser aceita pelos paladares locais. Apesar da maioria dos produtos serem iguais em todos os países, há algumas exceções. Em Israel, por exemplo, existe o Mc Arábia, que consiste em dois hamburguês em um pão sírio. No Equador, o lanche inclui patacones, que são fatias fritas de banana-da-terra verde. Na Suíça, o McRaclette, contém queijos suíços e o McFondue é um fondue de chocolate. Apesar de ser uma franquia internacional, McDonalds teve que observar e entender os gostos alimentícios em cada país para abrir sucursais e ter clientes. – A ideia de globalização –explicou Rachel– funciona é compreendida a nível apenas quando q mp local. Podemos ver quão cosmopolitas podem ser os TCKs, porém, eles continuam a viver em um lugar de cada vez. É por isso que a nossa relação com o lugar é tão importante. A socióloga comentou que, não importa quantas tenham sido as mudanças, recusar a importância do local assim como erradicar as diferenças e

183


limites culturais é algo para o qual não necessariamente estamos equipados. – Quando TCKs sentam na minha frente e dizem, “eu não me encaixo nesta cultura, eu me sinto como um cidadão global”, eu pergunto, “que peça do global?” –disse juntando as sobrancelhas. O fato de ser multicultural não exime às pessoas de encarar uma cultura de cada vez. Por outro lado, ela ressaltou que mesmo tendo morado em dez países distintos, o nível de aproximação com a sua cultura não é a mesma em todos os casos. – Eu tenho passaporte inglês, falo inglês e moro em Londres, mas como é minha interação com esta cultura? Interajo, de fato, com coisas que são inglesas? Tenho amigos aqui? Me importo com a minha cidade? Como comida inglesa? –questionou deixando claro que é algo que todos devem repensar. Antes de passar para o próximo tópico, Rachel compartilhou uma última reflexão: –Se não temos compromisso com nossa realidade local, quais benefícios poderemos trazer a estes lugares? Como poderemos contribuir? – perguntou retoricamente. Confesso que em primeira instância, foi difícil configurar o cérebro para deixar de fixar o olhar na herança cultural, a bagagem adquirida por si só e olhar o que estava abaixo dos meus pés. No momento era o piso branco do meu quarto –822–, no segundo andar do prédio onde morava a maior parte do ano. Mas, como poderíamos eu, Midori, Elizabeth e Stephany nos aproximar dos lugares que foram importantes nas nossas vidas?

184


CASTILLO Com as mãos em cima da mesa e deixando os óculos de grau do lado direito, José Antonio tomou a palavra. Estávamos numa pizzaria em San Isidro, Lima, a família Castillo e eu. Keila, a esposa, sentou-se do seu lado na mesa, o que nos deixou frente a frente. Eu fiquei entre Rodrigo e Ricardo. Por mais de 20 anos, Jose Antonio exerceu, entre outros cargos, o de Chefe regional para América Latina do Programa de Alimentação Escolar da ONU que, devido ao seu caráter internacional, o transferiu várias vezes ao longo da carreira. Entre os países em que moraram juntos estão Quênia, Itália, Panamá e Cabo Verde. Seus filhos, de 15 e 18 anos, cresceram neste contexto transcontinental onde o vestígio mais perceptível é o sotaque, que identifiquei como uma mistura de espanhol e italiano. – Eles são como peixes na água –destacou o pai se referindo à adaptabilidade que caracteriza ambos os filhos– As muitas mudanças lhes ensinaram a como sobreviver. Desde o início, Rodrigo e Ricardo frequentaram Escolas Internacionais. – Porque optaram por este tipo de instituições? –perguntei para a mãe. – Era nossa melhor opção –afirmou com o tom suave de voz que a identificava– Se não fosse assim, a mudança entre um país e outro teria sido muito drástica. Keila me explicou que os países onde moraram a língua oficial era sempre distinta à anterior. Se os meninos tivessem estudado

185


em escolas locais no Quênia, Itália, Panamá e Cabo Verde precisariam saber falar, inglês, italiano, espanhol e português. Isto pode parecer vantajoso, já que quanto mais línguas a pessoa domine, mais oportunidades terá no futuro. Porém, apesar de que o fato de crescer em um contexto multilíngue possa contribuir para o bem, se o tempo que a criança tem de contato com aquela língua não é suficiente para ser capaz de desenvolver o pensamento de forma profunda, sua capacidade de comunicação pode acabar limitada. E os Castillo eram cientes disto24. – Estudar em Escolas Internacionais permitiu que eles pudessem dar continuidade aos estudos de forma ininterrupta e utilizando uma só língua como base –explicou Keila. Assim como os Castillo, há muitas famílias que escolhem este sistema educativo cujo conceito dinâmico envolve o movimento de pessoas, mentes ou ideias através das fronteiras políticas e culturais. No caso de Rodrigo e Ricardo, os colégios onde estudaram tiveram o inglês como língua base e uma grade escolar similar a de instituições em outros países. Segundo os dados da International School Consultancy, existem 11 mil e duzentas escolas internacionais que utilizam o inglês como língua principal ao redor do mundo. Tais instituições são frequentadas por 5 milhões e 700 mil estudantes e geram emprego para 546 mil funcionários de tempo completo. Este

24

186

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017.


número aumentou desde 2016, quando as escolas internacionais não chegavam às 9 mil e os estudantes que atendiam eram 4,53 milhões25. Ver esses números me fez pensar na quantidade de pessoas que, como eu, não pertencem a um só lugar, visto que as escolas internacionais representam ambientes onde crianças de terceira cultura podem aprender junto com outras com as mesmas experiências. Hoje em dia, Ricardo estuda numa escola privada do bairro onde mora. E seu irmão, está no primeiro ano de economia na Universidad del Pacífico. Em 2015, os Castillo retornaram ao Peru, seu país de origem, para se estabelecer como família. Jose Antonio tinha se aposentado naquele ano e de acordo com os planos, Lima era o destino final. Para Rodrigo, pensar que as mudanças constantes chegaram ao fim e saber que agora deve permanecer em um mesmo lugar foi estranho no começo. A casa que ocupariam seria definitiva e as viagens, apenas por turismo. – A parte boa é que agora posso fazer amigos sem pensar em se despedir deles tão cedo– comentou Rodrigo que escolheu fazer o mesmo curso que seu pai. – Acho que quero mudar novamente de colégio –interrompeu Ricardo. Ele tinha mudado de instituição no início do ano, mas sentia o impulso de experimentar algo novo.

25

Dados retirados do site da ISC Research atualizados em setembro de 2019. https://www. iscresearch.com/

187


– Este mês ele entrou na classe dos melhores alunos de sua turma – a mãe se orgulha de Ricardo. Em comparação ao anterior, o colégio atual era mais rígido, mas ainda assim, Ricardo se empenhou para atingir uma posição elevada entre os colegas. – É difícil manter –esclareceu ele– Se diminuo o índice de notas, automaticamente passo para a outra turma– disse ciente de que haviam tarefas pendentes por fazer para entregar no dia seguinte. Desde que seus filhos nasceram, os pais tiveram as crianças como prioridade. O tempo que passaram junto aos filhos permitiu que lhes ensinassem não apenas princípios morais, mas também amor e respeito pela pátria que os viu nascer. Este ponto foi essencial para que, como família, nunca esquecessem seu lugar de origem. Segundo Jose Antonio, é dessa forma, quando se tem identidade, que é possível contribuir. É através das trocas rocas culturais que o enriquecimento humano acontece. Apesar da ênfase que a família teve em nutrir suas raízes, aízes, houveram aspectos da cultura peruana que os rapazes foram conhecer apenas quando se mudaram a Lima. Rodrigo, por exemplo, sempre soube que era peruano, mas não sabia o que era sê-lo de fato. Mais de uma vez, teve que representar o seu país na escola, porém hoje reconhece que falava do Peru sem conhecê-lo. – Uma das vantagens que essas experiências nos proporcionaram foi uma visão mais ampla das coisas, das pessoas, atitudes e posturas, mas a parte ruim é a falta de raízes –destacou o pai.

188


Porém, ele enfatizou que desenvolver sensibilidade para com o próximo só acontece se a pessoa se mantém em uma estrutura social na qual ela é um estrangeiro que deve estar ao mesmo nível de percepção das pessoas naquele país. Diferente do imigrante, que geralmente está entre imigrantes e não se mistura. Durante o tempo que estiveram fora do seu país, Jose Antonio e sua família viveram como estrangeiros. Contudo, depois de quatro anos de ter voltado ao Peru, a percepção das pessoas sobre eles continuava a mesma. – Como se sente estando na sua terra e não sendo identificado como peruano? – perguntei cruzando minhas pernas para mudar de postura. – Não me interessa –disse subitamente– não posso ficar esperando que me reconheçam. É um processo lento. espe Por isso is não devo me frustrar nem julgar as pessoas. A experiência que tinha lidando com culturas ao redor ex do mundo mun não apenas lhe dera a facilidade de saber como se inser inserir em contextos diferentes, como também a capacidade para entender perspectivas que não consideram, necessariamente, o todo. –Eu –E não espero que me entendam, eu tento entender às pessoas –concluiu. As palavras de Jose Antonio foram pontuais, mas o valor, inestimável. Aquela conversa, intercalada com pedai ços de pizza de vegetais, foi um momento que nunca vou esquecer. esquec E, enquanto a tecnologia permita, ficará armazenada em áudio no gravador do meu celular.

189


setembro 2019 Conheci a Stephany no Brasil e aos Castillo, no PanamĂĄ. PorĂŠm para conversar com eles precisei atravessar mais uma vez a Cordilheira dos Andes.

190


VOO 916 Com os olhos quase fechados e sem forças entrei no avião. Eram as 5 horas da manhã e eu não tinha dormido nada na noite anterior. Sem um pingo de emoção por voar, sentei no 24 A e fiquei esperando que o trânsito se iniciasse. Decolar é minha parte favorita. A próxima vez que abri os olhos estávamos sobrevoando El Callao (Estado do Peru). Em poucos minutos chegamos a Lima, onde estaria por dez dias. Minha avó me recebeu no aeroporto e me levou para sua casa. Dormi 6 horas seguidas e acordei na hora da janta. Para festejar, fomos a um restaurante comer “pollo a la brasa”. Estava no Peru e minhas papilas estavam de festa. Sem saber, 15 anos tinham se passado desde que eu e minha família saímos do país. Estar de volta depois de tanto tempo foi algo que me conectou com o passado e me fez relembrar os tempos da infância. Por mais que não conhecesse o Peru, me encontrei com coisas muito familiares. O sabor da “mazamorra”, dos “picarones”. A voz da minha avó. Alguns dias foram dedicados a passear. Dentro do ônibus que nos levaria ao centro da cidade, observei pela janela durante todo o percurso. Os prédios eram desconhecidos, os letreiros me pareciam estranhos, mas de repente me deparei com algo que identificava bem. Estava de pé, segurando o corrimão para não cair quando enxerguei uma bandeira. Suas cores trouxeram a minha memória os dias em que utilizara lápis de cor vermelho para pintar seu

191


interior. Estava na minha frente ondeando com o vento, como se me dissesse: “bem-vinda de volta”. Sorri como quem recebe uma mensagem do crush. Vê-la me cumprimentando fazia com que me sentisse peruana. Quando descemos na estação Jirón de la Unión, a felicidade se apoderou de mim. Aquela avenida tinha história. Anos atrás meus pais tinham namorado naquelas ruas que, rodeada de prédios de uma arquitetura colonial, me deixavam sem fôlego. Avançando em direção à praça principal, as catedrais e casas antigas foram alvo da minha admiração. E não só minha. Jaymee, uma amiga panamenha (nascida em Honduras), que conheci com 8 anos, contemplava aquelas edificações do meu lado. Em uma esquina, achei um senhor que vendia “Doña Pepa” e corri a comprar duas por 1 sol cada. Aquela era uma bolacha coberta de chocolate que comera desde pequena, significava muito para mim. E fiz com que Jaymee também a experimentasse. Quando chegamos à Plaza de Armas sentamos num dos bancos para observar o movimento dos transeuntes. – Jaymee! –disse emocionada– tenta imaginar como era este lugar nos séculos passados. As

192


pessoas que por aqui andavam, as roupas que usavam. Só imagina! Ficamos até o sol se esconder e as luzes iluminarem a noite. Aquele com certeza foi um dos dias mais significativos da minha vida. Durante o tempo que estive lá, também passei tempo com minha família. Comemos e rimos juntos, nos abraçamos e tiramos fotos. Aquela viagem foi especial. Ir para o Peru foi encontrar uma parte de mim. Uma que tinha ficado guardada e cheia de poeira. Me senti completa. Não estava com meus pais, nem irmão. Não falava com sotaque peruano, nem muito menos sabia como me mover na cidade. Mas era um lugar que me pertencia e eu estava lá para abraçá-lo.

193


FICAR Quando falei da minha viagem com Rachel Cason, que adora ouvir histórias de TCKs, ela disse que aquela tinha sido uma oportunidade para validar esta parte da minha cultura. – Quanto mais paramos para nos conectar com os lugares, nacionalidades e culturas da nossa história mais rica torna-se a nossa realidade – comentou– alguns dizem, “É sobre pessoas, não lugares” e entendo. Mas essas pessoas também se movem em lugares. E às vezes, os lugares são a parte mais estável da nossa vida. Um pensamento veio na minha cabeça. O que escrevi quando postei uma foto de um prédio, também de estilo colonial, no meu Instagram. “Tal vez sea porque permanecen. No huyen, ni se esconden. Se distancian, pero siempre las encuentro en el mismo lugar. Ciudades se quedan” 26. A imagem tinha sido capturada quando caminhava no centro de Santiago. Era meu último dia no Chile (julho 2017) e não queria ir embora. Recentemente tinha perdido pessoas que, por diferentes motivos, tinham ido embora da minha vida. Ou eu, como é muito provável, tivera sumido da deles. Ver aquelas construções que continuavam no mesmo lugar em que as conheci, me confortou. Apesar dos ‘terremotos’ da vida, elas permaneciam ali.

26

194

Legenda de foto. https://www.instagram.com/p/Barh7PMhtN9/


E AGORA? Já no final do nosso encontro, David, pai de Stephany, expressou sua inquietação sobre o que viria pela frente. – Em algum momento queremos, talvez, influenciá-la para que decida voltar lá, porque é nossa única filha– confessou se referindo à Bolívia. Em Cochabamba, a casa dos Sarzuri está num condomínio familiar onde residem tios e primos de Stephany. Aqueles com quem crescera até os nove anos. – Mas pensar assim é egoísmo. Ela morou em vários lugares e passou por tanta coisa que as vezes paro e penso: “o que estará passando por sua cabeça?”– reflete o pai– Nós preferimos que ela decida para onde ir. – Eu amo a Bolívia –disse Stephany– minha família está lá. Amo o Equador, lá tenho amigos. As vezes penso no que vou fazer depois que me formar e a verdade é que não sei. Não imagino como seria voltar à Bolívia. Pertenço a tantos lugares que é difícil decidir. Prefiro não fazer planos e ver como as coisas fluem.


PORTAS O pensamento de Stephany refletia um dos aspectos que conversei com Daniela quando falamos sobre a construção da identidade. Quando TCKs fazem planos para o futuro as possibilidades aumentam. O fato de conhecer diferentes realidades e ter vínculos com todas elas complica o momento de fazer uma escolha. – Seja qual for o caminho escolhido se ganha, mas também se perde muito. É como entrar por uma porta de dez. Você abre uma, mas deixa as outras fechadas. O que acontece com pessoas multiculturais é que elas são cientes daquelas que ficam sem abrir – indicou Daniela. Mesmo diante das variáveis, há aspectos culturais que influenciam as prioridades do indivíduo. Michael Pollock através da sua experiência tem percebido que os valores do indivíduo mudam de acordo com o lugar. – A cultura sul-americana no geral, tende a ser centrada na família na maioria das circunstâncias. Nesses casos, as TCK investem muito nestes relacionamentos. Apesar dos pais deixarem que os filhos tomem as decisões por si sós, é importante lhes transmitir os princípios familiares. – Assumir que nossos filhos tem nossas mesmas prioridades pelo que absorveram em casa, não é suficiente. É preciso que os pais inculquem os valores sobre os quais o lar é fundamentado. Devem dizer “isto é o que fazemos porque isto é o que valemos” –enfatizou Michael. Assim como manter o diálogo. É importante estar aberto a observar como os valores dos filhos são construídos em relação à cultura onde se encontram ou de acordo com a experiência multicultural de cada um.

196


OUTRO ADEUS Conversamos por mais de uma hora, a família Sarzuri e eu. Estar com eles me parecia um sonho, pois tinha ouvido muito deles nas conversas com Stephany. Ouvir sobre os desafios que tiveram que encarar e a atitude com que os superaram fez com que minha admiração aumentasse. As situações difíceis pelas que passaram não foram poucas, mas o lema sempre se manteve firme. – Nossa filosofia é que nossa terra não é aquela onde nascemos, é aquela onde lutamos. E seja onde for, vamos dar tudo, até o limite, sem ficar com nada, porque não sabemos o que acontecerá amanhã –disse o pai quase no final do nosso encontro. Subimos no carro para ir embora e eles me deixaram no condomínio onde me hospedava. Agradecida, me despedi de Stephany e de seus pais. Desci e fechei a porta. Enquanto eles partiam eu caminhava em direção à casa. Precisava fazer minhas malas, pois no dia seguinte retornaria ao Brasil.

197


198


LAR, DOCE LAR 199


CAFÉ DA MANHÃ Ir ao refeitório era o ritual de cada manhã. Em um ambiente de internato, as refeições eram um ponto de encontro com centenas de jovens universitários. Alguns ainda de pijama, com olheiras, de mau humor. Outros, sorridentes. No entanto, todos famintos chegavam para a primeira refeição do dia. Apesar de o refeitório abrir às 6h, eu chegava alguns minutos antes das portas se fecharem, perto das 8h. Nesse horário poucos ainda se encontravam nas mesas. Dentre os que escolhiam o mesmo horário estava Marcos. Mesmo sem conhecê-lo, já sabia identificar seu timbre de voz. Normalmente, ele compartilhava a mesa com várias pessoas e conversava com todas elas. Índia era seu apelido. Só sua aparência me impedia de pensar que era chamado assim porque era daquele país. Era do meu tamanho, loiro e de olhos claros. A sua foto de perfil no facebook era uma imagem dele no Kremlin, mas para ser russo falava muito bem o português. Não quis continuar com a dúvida e um dia lhe perguntei: – De onde você é? – Sou da África do Sul, respondeu. Isso apenas me trouxe mais dúvidas sobre suas origens e foi aí que as perguntas começaram.

200


11 AM – Este lugar para mim pode ser o melhor do mundo, mas se pudesse morar em Botsuana e tivesse que escolher entre ir e ficar, prefiriria ir –disse Marcos Lopes com determinação. Nos encontrávamos com as pernas cruzadas em baixo de uma árvore. Rodeada de folhas e brincando com pedacinhos de grama nas mãos eu ouvia atentamente. Marcos me ensinou algumas palavras em hindi, russo, armênio e me contou um pouco da sua viajem a Cancún em espanhol, que falou com sotaque argentino. Marcos falava português muito bem e morava em Brasília, porém, o mundo vivia dentro dele.

201


NANTS INGONYAMA BAGITHI BABA A primeira vez que seus olhos viram a luz foi sob o sol de Johanesburgo. Ali onde o Oceano Índico e o Atlântico se encontram, a África lhe deu as boas-vindas. Porém, foi em Maputo, Moçambique, onde Marcos deu seus primeiros passos e aprendeu a caminhar. Os pais eram missionários brasileiros que chegaram a Moçambique para trabalhar na Adra1, agência humanitária presente em mais de 120 países. Quando as pessoas da vizinhança o viam nos braços da sua mãe, ficavam surpreendidos e diziam, “ele não pode ser um bebê, é um boneco”. Sua pele clara, cabelos dourados e olhos azuis contrastavam com as características físicas dos moçambicanos que eram de pele cor chocolate ao leite e cabelos escuros. Ele chamava a atenção e deixava que todos o carregassem. Quando a família ia para a igreja, ele era motivo de alegria para os membros. A mãe o deixava em um canto e ele passava de mão em mão. Desde pequeno, Marcos teve facilidade para estar entre pessoas e se envolver com elas. Cresceu em meio à alegria dos moçambicanos que com roupas de cores brilhantes se reuniam para cantar com a voz e com o corpo. E ele não era um mero expectador, também usava roupas com diversidade de estampas e se unia ao grupo para dançar ao ritmo dos tambores.

202

1 Agência Adventista de Desenvolvimento de Recursos Assistenciais/Agência Humanitária da Igreja Adventista do Sétimo Dia.


Habitualmente, a família visitava África do Sul, nos finais de semana. Depois de seis horas de viagem. Encontravam-se com ruas amplas e prédios de azulejos que compunham uma paisagem completamente diferente da que estavam acostumados a ver no dia-a-dia em Maputo. Contudo, um dos lugares favoritos de Marcos era o Kruger Park. O parque é uma reserva natural que fica a 390 quilômetros de Johanesburgo, uma distância similar a que há entre Curitiba e São Paulo. Com um área de quase 2 milhões de hectares de vida selvagem é uma das atrações que encabeçam o roteiro de viagem dos turistas. – Sabe “O Rei Leão”2? É tipo isso– assegurou Marcos. A família atravessava a savana no próprio carro e enquanto o pai ia ao volante, Marcos e Lucas, seu irmão mais velho, iam no assento de trás observando a paisagem e os anfitriões do lugar, os animais. Com as mãos na janela e os olhos o mais perto possível do vidro, Marcos – com apenas quatro anos – levantava a cabeça para ver as orelhas dos elefantes de três metros que passavam rodeando o automóvel. Só descia o queixo quando os filhotes, que estavam no nível de altura, passavam usando sua janela como espelho.

2

Filme produzido pelos estúdios norte-americanos Walt Disney Pictures em 1994. Se passa na África e conta a história de uma família de leões e de suas relações com outros animais e o ecossistema em que vivem. Em 2019 foi produzido, pela mesma empresa, um remake em live action.

203


Em casa, o sotaque era distinto e as comidas brasileiras prevaleciam. Assim, mesmo morando fora do Brasil, a família comia feijoada, strogonoff, coxinha e brigadeiro para adocicar as refeições. Porém, teve algo que ficou no Brasil. O restante da família. O contato que os parentes era através de vídeos. Com frequência, a mãe ligava a câmera e filmava Marcos para que desse oi para sua vovó. Mas ao fazer disto um costume, ele chegou a acreditar que a própria câmera era sua avó. – Tá falando sério? –perguntei depois de rir. – Mas é claro –respondeu– Se você fala para uma criança sorrir para a lente da câmera e diz: “dá um oi para a vovó”, o que você acha que a criança vai pensar? O raciocínio fazia sentido. Por coisas como essa, quando voltavam o Brasil de férias, vir não significava, necessariamente,

204


se encontrar com a família e sim com um lugar desconhecido. Aos sábados, por exemplo, quando confraternizavam com membros da igreja Marcos ficava perto apenas daqueles que tinham pele mais escura. Estar entre eles era mais familiar que se agrupar a todo resto de tipos brasileiros. E a isto se aferrava quando estava fora da África. Não entanto, o ambiente que Marcos conhecia até então mudaria drasticamente.

205


- 5 OC Com cinco anos, ele e sua família foram transferidos para Armênia, que os recebeu com temperaturas abaixo de zero. Mas me parecia difícil imaginar o cenário que Marcos descrevia, não sabia onde ficava aquele país. – Armênia faz parte do continente asiático. Se encontra rodeada por vários países como o Irã, Azerbaijão, Geórgia e Turquia. O clima pode chegar aos -7 graus centígrados no inverno – explicou enfatizando, com o olhar, a baixa temperatura do lugar. Na viajem até lá, trocaram de avião em Londres, onde Marcos teve o primeiro contato com essa ausência de calor. Ao chegar no destino final se viram em uma situação difícil em que tiveram que escolher entre ficar quentinhos no hotel ou sair para comprar roupas para esquentar o corpo que, claramente não estava acostumado com aquele clima. Os pais saíram à procura de agasalho, enquanto os meninos ficaram dentro do quarto, que seria sua casa por três meses. – O que você lembra da Armênia? –perguntei enquanto desfiava uma folha que tinha caído das árvores que nos cobriam do sol. – Não muito, mas de alguns lugares da cidade se podia ver o Monte Ararate. Era bem bonito –recordou encostando a cabeça na sua mão direita. Aquele monte, me comentou, fica na Turquia, mas devido a sua altura era

206


possível contempla-lo de Yerevan, capital da Armênia. O Ar Ararate permanece coberto de neve durante o ano todo. Assim, a cor co branca destaca-se em meio às montanhas circundantes, em que o marrom e verde revestem a superfície. Porém, aquela paisagem não permaneceu disponível para Marcos por muito tempo. Completados seis meses a família receMa beu uma notícia que poderia levá-los para um outro lugar. O pai be de Marcos tinha sido chamado para trabalhar na Rússia, o país mais extenso do mundo. Quando a mãe soube disto não manifestou muita animação e pensou que estaria disposta a ir apenas se Lucas e Marcos concordassem. Com a intenção de fazer deles seus aliados, lhes comentou a ideia e explicou como seria morar naquele lugar. – A Rússia fica muito longe, as pessoas não são muito abertas e é um país bem frio. Frio mesmo. Vocês gostariam de ir morar lá? – perguntou aos filhos. – Sim! – responderam em uníssono – com certeza! Surpreendida pelo entusiasmo dos meninos, ela não teve outra opção a não ser ir junto. Morariam na região asiática do país, a Sibéria.

207


- 40 OC A família morou nas duas partes da Rússia, tanto a oriental quanto a ocidental, mais próxima a Moscou. Nesse país, Marcos começou a frequentar a escola e foi ali que aprendeu a ler e escrever. – Então você foi alfabetizado em russo! –interrompi. Após três meses, ele já conseguia se comunicar bem com os russos. A facilidade para aprender idiomas é outra de suas características que se manifestou cedo. Dessa vez sua aparência não era distinta da maioria dos habitantes locais, pelo contrário, pensavam que Marcos era russo e ficavam surpresos quando dizia que era do Brasil. Além do idioma, Marcos também aprendeu a música naquele país. No geral, os russos tem conhecimentos musicais e aptidão artística. Em cada sala de aula haviam pianos para que os estudantes pudessem tocar. – Se você der um piano para um mendigo, é bem provável que ele saiba tocar –comentou enfatizando como era comum todos terem conhecimentos musicais. E ele também tinha talento musical. Várias vezes, Marcos foi escolhido como solista do coral da escola. – Eu acho que me escolhiam por que era estrangeiro – justificou Marcos que, junto com seu irmão, levou prêmios mais de uma vez nos concursos musicais locais. Depois da escola havia muito para fazer. Moravam num vilarejo cheio de crianças para brincar e um lago congelado era um dos principais entretenimentos. Coberto dos pés à cabeça, Marcos saia de casa para brincar com os vizinhos na rua. Jogava futebol com eles. Porém, os mais velhos, preferiam outras formas de diversão. Na pracinha do vilarejo,

208


havia um escorregador. Quando jogavam água no brinquedo, ela congelava criando uma pista de deslizamento veloz. Lucas, assim como alguns outros, pegava sua bicicleta e subia ali para escorregar. Com a intenção de fazer o mesmo, Marcos pegou a sua e subiu para descer no escorregador. Mas não chegou em pé ao chão. A bicicleta se desestabilizou e o jogou contra uma árvore, onde bateu de cabeça. Uma ambulância chegou para socorrê-lo e levá-lo ao hospital. Imitar a pirueta não tinha sido uma boa ideia. Apesar do frio e os riscos, estar fora de casa e contemplar a natureza sempre foi uma suas atividades favoritas. Seja o kremlin em Moscou ou as montanhas na Sibéria, a paisagem era sempre deslumbrante. A casa onde moravam era apertada para a família de quatro. Tinha dois quartos e o banheiro ficava fora dela, na garagem. Porém, era cálida. Seu sistema de calefação era a base de água. Tubos com água fervendo rodeavam a estrutura da casa, no interior, o que mantinha uma temperatura agradável nos cômodos.

209


ENTRE ELES A maioria das famílias missionárias que, como a de Marcos, moravam na Rússia, faziam parte de uma comunidade de estrangeiros que estavam ali pelo mesmo propósito. Os filhos frequentavam escolas para estrangeiros e socializavam entre eles na maior parte do tempo. Esta unidade lhes permitia manter o senso de pertencimento e estreitar laços com aqueles que passavam por situações similares. Porém, também os afastava da comunidade local. Com Marcos era o contrário. Sua família se relacionava com russos, falava sua língua, comia suas comidas e se esforçava para entendê-los. Com eles, Marcos aprendeu o valor da amizade. Uma característica dos russos, no geral, é que não sorriem para estranhos e são pessoas reservadas. De fato, os russos não receberam à família calorosamente. Na igreja que frequentavam, ninguém os cumprimentou nos primeiros três meses. Mas, mesmo assim, Marcos aprendeu que cada pessoa tem seu tempo para se abrir e confiar. Quando criança, não haviam preconceitos que lhe impedissem ser próximo deles, mas aquela foi uma lição que é valiosa até hoje. – Se vejo uma pessoa com cara fechada ou que mantêm a distância, eu entendo sua atitude. Não é um defeito e sim parte de quem ela é. Por isso, não julgo e respeito o jeito de cada um –explicou Marcos.

210


harmonizar O fato de que Marcos e sua família serem de um contexto multicultural era real. Porém, a forma com que eles se enxergavam dentro dos espaços culturais indica que a percepção que tinham sobre si e sobre o outro estava atrelada ao ato de se reconhecer mestiço. No aspecto cultural, ser mestiço começa no encontro com outros povos, porém, o deslocamento em si próprio é apenas o primeiro passo. Mesmo que haja multiplicidade de populações que convivem num mesmo espaço, o processo de mestiçagem só começa quando o indivíduo escolhe construir sua identidade com base no conjunto de culturas. Não pelo fato de, a partir das diferenças, integrá -las, mas entendendo-as como partes que existem em um todo, mas também independentemente3. Em todos os lugares, Marcos e Lucas (seu irmão) foram incentivados pelos pais a conhecer os lugares e as pessoas. Ele lembra que andavam de ônibus sozinhos e percorriam as cidades, brincavam na rua com os vizinhos e frequentavam escolas locais. Dessa forma, não se distanciavam do seu presente, mas investiam nele cada dia. Ainda assim, eram também, interagindo dentro daquele espaço, o próprio passado em expansão. Ao se aproximar das comunidades nas quais estavam inseridos, a cultura alheia era valorizada e assimilada, de

3

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.

211


maneira que a própria identidade de Marcos estava em constante construção. Sem deixar para trás aquilo que trazia consigo, mas sendo ampliado pelo novo. Uma transformação sem destruição, um devir ininterrupto4. Ser mestiço é se entender em relação ao outro. É um desapego do que se chama de “próprio”, um des-singularizar-se. E a universalidade que se agrega a este sentido não é totalizadora, mas remete a ideia de co-existência, de polifonias que se harmonizam. O próprio sentido de harmonizar é isto. Sons independentes, únicos, dotados de especificidades que soam conjuntamente. É possível ouvi-los separados e juntos. Há beleza no conjunto e em suas percepções independentes. As vezes uns soam mais altos que outros. Há fases em que estas alturas se alternam. Mas estão ali, todos juntos, coexistindo e expandindo-se em ondas5.

4

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002. 5 Idem.

212


óculos Por mais que conviver com o diferente seja comum. Ainda há lugares no planeta que são mais ‘monocromáticos’ e onde o contato com pessoas de diferentes culturas não é tão comum. Nesses casos, a capacidade de ver a partir de várias perspectivas não funciona, a não ser que haja disposição para entender como é olhar para aquele horizonte específico. Lembrei de Duarcides Mariosa, doutor em sociologia com quem tinha conversado anteriormente. Ele e eu, discutimos sobre o relacionamento entre pessoas internacionais com a comunidade local. – Se é verdade que a cultura é um tipo de óculos pelos quais vemos as coisas, também devemos perceber que enxergamos o mundo através desses óculos –pontuou o professor. Assim como se deve estar aberto para entender aos “cidadãos globais”, eles também precisam precis se colocar no lugar dos que são de um contexto mais est estável. Marcos sabia disto. Ele entendia que o jeito de alguma algumas pessoas era diferente do dele, mas ciente de que também carregava uma visão, ele conseguia dialogar e aprender com a outra cultura. Alguns aspectos que contribuíram para que ele desenvolvesse tal comportamento, foi o da sua personalidade. Naturalmente, Marcos é uma pessoa amigável e que

213


gosta de experimentar coisas novas. Seu estilo de vida potencializou esta característica e lhe ensinou a importância de ter empatia pelo próximo. Por outro lado, acreditar que há pessoas que enxergam o mundo através de apenas um par de óculos, pode também ser questionado. Ainda na vídeo-chamada que fiz com Rachel Cason, socióloga que mora na Inglaterra, ela fez uma observação que me pareceu interessante. – Acho difícil encontrar alguém realmente monocultural –assegurou – Elas (pessoas locais) não transitam como nós, mas experimentam, mesmo que em níveis diferentes, a perda, a mudança e o senso de não encaixar.

214


horizontes Em uma das palestras que Ruth Van Reken dera como especialista no tema de crianças de terceira cultura, apresentou um quadro com várias categorias culturais. Dentro dele a de TCKs Tradicionais era apenas uma das 11 do total apresentado. Outros termos da lista eram: Crianças Bi/Multiculturais, Crianças de Herança-Misturada, Crianças Fronteiriças, Crianças de Educação Transcultural, Crianças de Minorias, Crianças de Imigrantes, Crianças de Refugiados, Adotados Internacionais, Crianças Domésticas de Terceira Cultura e Outras. Cada variação representa uma realidade cultural diferente e todas estão dentro do guarda-chuva de Crianças Interculturais (CCK). Contudo, uma pessoa pode pertencer a mais de uma categoria ao mesmo tempo. Elizabeth Liang, por exemplo, além de ser TCK é uma Criança de Herança-Misturada, devido ao legado dos seus avós por parte de pai e mãe. Rupi Kaur, está dentro das CCK porque além de se mudar com frequência quando era pequena, é filha de imigrantes. Malala Yousafzai, ganhadora do Prêmio Nobel da paz em 2014, é CCK porque devido aos ataques de talibãs na sua cidade, teve que sair e se refugiar em Londres, onde mora até hoje. Mas, ser uma criança intercultural não significa, necessariamente, ter feito viagens internacionais. Quando Ruth terminou de apre

215


sentar este tema, um trabalhador social que nunca tinha saído dos Estados Unidos, observou similitudes da sua experiencia com os casos que ela comentou minutos antes. – Eu me encaixo em mais de uma dessas categorias –disse para Ruth. – Então me conta! Qual é sua história? –perguntou animada. Aquele homem afro-americano e sua mãe, moraram no centro de uma cidade quando ele ainda era criança. Foi então que teve a oportunidade de ir a uma escola para ‘brancos’ em uma área suburbana, onde ele poderia receber uma melhor educação. Consequentemente, sua visão sobre as coisas mudou, pois o contexto no qual se encontrava era diferente. Ele se identificava nas categorias de Crianças de Herança-Misturada, Crianças de Educação Transcultural e Crianças de Minorias. O próprio fato de Ruth expor este tema no lugar onde estava, indica que a interculturalidade vá além do cruzamento de fronteiras geográficas. Ela encontravase num abrigo em que crianças em vulnerabilidade social estavam à procura de uma nova família. Experimentar separação dos pais, irmãos é passar por uma situação de perda e de readaptação. – Muitos no mundo também não cresceram de um contexto monocultural –assegurou Ruth– E hoje o que podemos fazer é ver as TCK como parte de algo maior. Quanto mais nos enxerguemos dentro desse espectro, menos sentiremos esta diferenciação em relação ao resto da humanidade.

216


lágrimas Chegou o dia em que Marcos e sua família tiveram que deixar a Rússia. Seus amigos ficaram profundamente tristes ao se despedir, mas se consolaram com a esperança de se reencontrar em breve.

217


ÍNDIA Com onze anos, Marcos foi morar na Índia. – É um país muito pobre, mas as pessoas são muito alegres. Haviam muitos feriados e festivais. Era bem legal– expressou sorrindo. Uma das celebrações era o Holi ou Festa das Cores, que anuncia a chegada da primavera e o fim do inverno simbolizando a vitória do bem sobre o mal. Neste festival a única regra é se divertir. Pessoas de todas as idades, classes sociais e crenças saem para a rua com pintura em pó de diferentes cores. A multidão celebra jogando tinta um na cara do outro e dizendo “Happy Holi”. Outro festival que Marcos gostava era o Diwali, também conhecido como Festa das Luzes. Este representa um evento especial para algumas religiões, pois simboliza a destruição das forças do mal. À noite, a cidade se enche de velas e luminárias que não deixam nenhum canto na escuridão. Mas, sua parte favorita era a dos fogos de artificio lançados ao céu como parte da celebração. Mesmo sem haver data para comemorar, Marcos e seu irmão frequentavam as ruas de Nova Deli e visitavam os mercados. Ao nível dos pés, comerciantes estendiam lençóis para oferecer seus produtos, enquanto o cheiro das especiarias enchia a atmosfera. Antes de fazer alguma compra, Marcos observava com cautela o trato entre os vendedores e os indianos. Prestava especial atenção no preço da mercadoria para que não lhe cobrassem mais da conta. – Quando eu pedia algo subiam o preço, por isso, quando ouvia o valor, que era superior ao normal, eu dizia em Hindi, “você está louco?

218


Como assim você quer me cobrar mais caro?” – comentou rindo– Eles ficavam assustados e surpresos de que eu me dirigisse a eles em sua língua. Lá ele aprendeu a falar inglês, a segunda língua oficial da índia, mas também aprendeu espanhol por causa dos hóspedes que tinham em casa. Dois argentinos missionários moraram na sua casa por mais de dois anos e já que eles não falavam português, ele teve que se acostumar à língua deles. – Nossa, mas você realmente tem facilidade com os idiomas –disse admirada de que pudesse conversar comigo em espanhol sem ter tido aulas formais nem ter morado em algum país de fala espanhola. Na escola, ele e seu irmão eram os únicos cristãos, seus amigos eram budistas, muçulmanos, hindus. Mas a forma dos outros enxergarem o mundo nunca foi barreira para que ele se inserisse no grupo. Assim, Marcos cresceu acostumado à diversidade de etnias, costumes e tradições. Todas essas experiências deixaram marcas na sua forma de ser. Suas cores favoritas por exemplo, são laranja e roxo. Tons vibrantes que aprendeu amar quando morava na África. Sua forma de orar também revelava o contato que teve com outros povos. Ao invés de inclinar a cabeça e fechar as mãos, no momento de agradecer pelos alimentos abria as mãos e alçava um pouco o queixo como uma forma de demonstrar sua vulnerabilidade diante de Deus.

219


SOCIEDADE MESTIcA , Quando pensamos em ser de algum lugar específico, as vezes não percebemos que ser de lá é ser como as pessoas de lá. Rachel percebeu isso ao analisar sua própria história. Ela passou alguns anos na França, quando era criança e mesmo sem ter a nacionalidade sabia que carregava um pouco daquele país consigo. – Ser francês se trata de socializar até tarde, gostar de vinho, usar alho e sal em tudo – expôs. Quando Rachel cozinhava em casa, geralmente cortava os vegetais de diferentes formas, como é característico da culinária francesa. Esse era seu jeito francês de fazer as coisas. Para ela o autoconhecimento é chave na interação com o mundo ao nosso redor. – Minha individualidade em conexão com o quadro completo da humanidade me permite ter um entendimento mais amplo da cultura –ressaltou – é a curiosidade por si mesmo e pelos outros que nos permite ser parte da família humana. – Mas a identidade nacional não é as vezes um obstáculo para a interculturalidade? –perguntei a Rachel. Tinha observado pessoas, que, orgulhosas pela sua herança cultural, faziam comentários que expressavam superioridade. Ela me explicou que a ideia de pureza nacionalista não é válida no contexto do planeta terra. – Falar que somos propriamente britânicos não tem sentido algum, assim como

220


afirmar que se é apenas estadunidense seria negar heranças como a irlandesa e dizer que se é hispano apenas seria esquecer da colonização espanhola. Da mesma forma, afirmar a identidade brasileira sem levar em conta a imigração italiana e tantas outras não faz sentido. 6 Começamos a falar em Mestiçagem . Não aquela que acontece apenas quando duas etnias se misturam biologicamente dando origem a uma outra. E sim, uma que é inerente à existência humana7. De acordo com os antropólogos Laplantine e Nouss8, a noção de pureza nacional e o eurocentrismo contradiz aquilo que antecede à formação do velho continente. Este território e suas formas de habitá-lo foram resultado de trocas, transformações dos povos através de múltiplas migrações, guerras e conquistas. Uma realidade onde nada é fixo e os povos conquistadores se tornam progressivamente herdeiros dos povos que conquistam. Por isso, é difícil estabelecer uma diferenciação absoluta entre quem pertence ao lugar e quem não. As particularidades que caracterizam uma determinada cultura também passaram por processos de aquisição e interpretação. Aqueles costumes adotados, foram em determinado momento, um empréstimo de outras culturas. Toda identidade cultural é

6 Conceito antropológico de amplas interpretações que não deve ser entendido aqui em suas acepções mais prosaicas (e equivocadas), a saber, uma suposta “mistura” de raças que se demonstra no fenótipo 7 GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 8 LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.

221


produto dos encontros, misturas e cruzamentos, alguns deles, já apagados da memória9. Se pensarmos nos números, por exemplo, 1, 2, 3, 4, 5 e os que seguem, não duvidaríamos de que a nossa forma de contabilizar as coisas faz parte de quem somos. Porém, eles são um legado árabe que o foi adotado mundialmente. Mas não sabemos disso porque geralmente, depois de algumas gerações, esquecemos daquilo que chegou mediante o cruzamento de mares. Se nada em nossas mãos conserva seu estado de pureza10, porque utilizamos este termo como significado de intocável, original, autêntico? Laplantine e Nouss enxergam esse afã por classificar coisas como uma crise de separação, busca desesperada pela síntese11. E é esse anseio por classificar e categorizar o que ofusca a identidade humana. A mestiçagem como termo antropológico, não faz referência a uma simples combinação de ingredientes na qual depois de uns minutos sai do forno pronta para ser consumida. Esta não tem um início nem um fim demarcados, não segue uma linha de tempo em que o puro vai se combinando com o novo e o diferente. Mas dizer aquilo que não representa é uma forma de se aproximar de seu entendimento. Também se poderia dizer que é diferente do hibridismo, no

222


qual o cruzamento e a mistura ocorreriam num espaço determinado de tempo. Definir a própria mestiçagem seria restringir suas variáveis. Contudo, pode ser identificada como a constante construção do ser e do ser em sociedade12. Não somos mestiços por causa das colonizações e conflitos pelos quais o território no qual estamos foi demarcado. Não foi do fruto da mistura entre conquistadores e autóctones que a mestiçagem surgiu. Ela é a humanidade que há em nós.

9

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002. Idem. 11 Idem. 12 GRUZINSKI, S. O pensamento mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 11

223


PARTE DE NÓS De volta à conversa que tivemos via Skype, Rachel e eu, ela novamente ressaltou a importância de manter a conexão com os lugares e as nacionalidades. – Você acha importante que TCKs conheçam a cultura dos seus ancestrais? – perguntou Rachel. A pergunta não tinha sido retórica, ela realmente queria saber minha opinião. E eu nem tinha parado para pensar nisso. – Não sei –respondi– Não é suficiente conhecer as culturas com as que a pessoa esteve em contato? Mais uma vez Rachel abriu meus olhos para enxergar uma parte da minha identidade. Mencionou às famílias com herança italiana que, além de, talvez possuir traços físicos e personalidade, mantinham costumes daqueles que lhes precederam. Como se reunir em família e fazer massa caseira. – Não é uma questão de pureza e sim de história –ressaltou. É importante fazer nossas próprias conexões internas com nossa herança histórica. Não como forma de nos manter alheios ao nosso redor, mas sim para não nos distanciarmos daquilo que representa a nós mesmos, da nossa história e passado. Fui procurar os autores que falavam da sociedade mestiça e achei em um de seus livros um pensamento que complementava a visão de Rachel. “O presente, para sobreviver o futuro, deve mestiçar-se com o passado. O puro e o homogêneo, esses satisfazem-se com tábulas rasas”13. O fato de manter aquilo que faz parte da nossa história, além de fortalecer nossas raízes, contribui para sermos multiculturais. – Nossa cultura é como uma Matrioshka (boneca russa). Assim como a boneca tem dentro de si bonecas diferentes encaixadas em ordem de tamanho, da mesma forma temos traços culturais que são parte da nossa identidade e cabe a nós escolher o tamanho de cada um deles –concluiu.

13

224

LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.


VISÃO Quando perguntavam para Marcos de onde ele era, (mudo afora) a resposta era sempre Brasil. Quando ouviam que era brasileiro, as pessoas o associavam a um povo alegre e amante do futebol. – As pessoas achavam legal conhecer um brasileiro. Mas quando estou aqui, falo que sou da África do Sul por que lá foi onde nasci. A pergunta difícil para Marcos responder era outra. – Quando me perguntam “em qual país você mais gostou de morar?” aí eu fico sem resposta. Para Marcos não é possível comparar tais experiências. Em cada lugar há muito para aprender, descobrir, provar. Apesar de no mundo existirem 205 países diferentes a perspectiva que ele tem sobre a distância vai além da quilometragem marcada por um carro ou as milhas que um avião percorre. – A verdade é que desde criança sempre enxerguei o mundo pequeno. Sabia que com um voo poderia estar em algum lugar diferente. A diferença é que antes não podia, porque era pequeno. Mas agora eu posso. Depois de 11 anos no Brasil, Marcos viajou a Rússia para trabalhar voluntariamente como professor de inglês durante um ano. Aproveitou para rever alguns amigos e visitar aqueles lugares que tinham sido alvo de admiração quando criança.

225


– Quantos voos você já pegou? –perguntei. – É impossível saber – respondeu antes de que eu terminasse a frase. O certo é que a cada viagem que fazia a ideia de fronteiras entre nações ficava mais obsoleta. Ir de um ponto para outro do mundo e observar a vida naqueles lugares lhe deu uma perspectiva diferente sobre o mapa-múndi que desenhamos na nossa cabeça ao pensar no planeta Terra. – Eu não vejo países no mundo, vejo lugares –expressou Marcos. Para ele, o mundo era sua casa.


aterrisagem Perto das 13h Marcos e eu nos levantamos e caminhamos em direção ao refeitório. Era a hora do almoço e meu estômago já tinha começado a fazer barulho. Ainda mais depois de ele falar de comidas típicas que experimentara nas suas viagens. Conversar com Marcos tinha me levado para diferentes partes do mundo. Conheci, através dos seus relatos, um pouco de como é viver em Moçambique, na Armênia, em Rússia e na Índia. Eu tive a sorte de encontrá-lo em São Paulo. Contudo, mais do que falar sobre países ele falou sobre ser naqueles lugares. Sobre os desafios e as alegrias de conhecer outras culturas. E eu pude ver como todas aquelas viagens tinham feito dele não um melhor viajante, e sim um melhor humano.

227


? Na falta de um sofá sentei na minha cama. O sol ainda brilhava e sua luz entrava por uma das janelas do quarto. Na minha frente uma escrivaninha bagunçada, cheia de livros e roupa sem guardar. Até esse momento tinha aprendido muita coisa. Tinha conhecido pessoas com histórias únicas. Midori, Jônathas, Lisa, Heather, Stephany, Jose Antonio e Marcos. Que como eu eram estrangeiros em todas partes. Todos tiveram que aprender a se adaptar em ambientes diferentes, a se colocar no lugar do outro. E, em algum momento, se sentiram como extraterrestres por não encaixar nas categorias culturais ou étnicas tradicionais. Tinha visto a tristeza de pessoas que deixaram um lugar que amavam mesmo sem ter nascido ali e o entusiasmo por explorar um novo lugar. Além de me sentir identificada com eles cada conversa tinha sido como raios de luz que aos poucos foram iluminando e enriquecendo minha visão de mundo. Aquela pergunta inicial, de onde você é? Não me causava mais uma confusão interna. Porque, mesmo sem ter uma resposta simples, sabia o que aquelas respostas significavam. “Sou do Peru!”, “Sou do Chile!”, “Sou do Panamá”! Eram, todas elas, respostas válidas. Ninguém podia negar que, de uma ou outra forma, esses lugares me pertenciam. Contudo, depois de entender melhor quem sou e como as experiências culturais constroem minha identidade as pessoas começaram a fazer uma outra pergunta. – Depois de se formar vai para onde?

228


PARA ONDE VOLTAR? Sim. Estava no último ano da faculdade e não tinha resposta para essa pergunta. Não porque não sabia o que queria fazer com minha vida, mas porque independente do lugar onde fosse, aquele não era meu lar.

229


CONSUMIDA Nos primeiros meses de 2017 (janeiro e fevereiro) uma série de incêndios florestais queimaram mais de 587 mil hectares em vários estados do Chile. Entre eles, O’Higgins, Maule e Biobío foram os mais afetados. Houve mais de 3 mil feridos e 10 falecidos. Fiquei sabendo de longe, mas vi os estragos com meus próprios olhos. Em julho do mesmo ano fui visitar amigos que moram naquela região, mas no caminho a cor da paisagem foi mudando de verde musgo a preto. Durante vários quilômetros pinheiros queimados contavam, ainda de pé, do fogo que lhes tirara a vida subitamente. Nos desviamos da rota principal para ver como tinham ficado as localidades menores. E chegamos a Carrizal, onde conheci Rosa. Rosa era uma senhora de mais de 40 anos que morava nesse lugar há vinte. Estava ali conversando comigo porque, como muitos maulinos, tinha perdido tudo. – Ninguém pensou que o fogo chegaria até aqui – disse apontando em direção ao rio que pensavam deteria o incêndio. Dez minutos antes de que as chamas invadiram sua propriedade, recebeu uma ligação da prefeitura avisando que saísse dali e anunciasse a evacuação ao resto da vizinhança. Com as mãos vazias, ela e sua família saíram e viram de longe como o fogo consumia tudo. Logo entraram no ônibus que os levaria a um lugar onde estivessem fora de perigo. Mas sem ter onde dormir a sua e outras famílias passaram a noite na rua.

230


Depois de alguns minutos de caminhada, chegamos à propriedade de Rosa. Abriu o portão que ainda estava ali e entramos. No lugar dos cimentos da casa, havia uma mancha preta no solo, sinal das chamas que consumiram a estrutura de madeira. Perdera a casa que tinha construído com esforço, ela e seu esposo. – Tinha tudo o que necessitava, não precisava pedir emprestado nada para ninguém –disse Rosa, que no momento morava em uma casa que o Governo tinha construído para os afetados pelo incêndio. O local tinha um defeito: nada de banheiro privado. – Agora temos que ir na casa do vizinho quando precisamos usar o banheiro –comentou enfatizando a incômoda situação. O caso de Rosa era lamentável. Embora o incêndio tivesse causado outros estragos, como a perda de emprego do marido – que trabalhava numa empresa madeireira –e a perda dos hectares de cedros que tivera como meio de sustento, não ter nem sequer um colchão próprio a fazia sentir-se totalmente deslocada. – E você pensa em ir para outro lugar? –perguntei querendo saber se tentaria sorte fora de Carrizal. – Não –disse ela– faz muito tempo que moro aqui e não gosto da cidade. Prefiro ficar por aqui mesmo. Meu lar é aqui –enfatizou Rosa. Me despedi dela e agradeci por ter compartilhado sua história comigo. Depois de um forte abraço subi ao carro e segui meu caminho. Mas ela ficou na minha mente, a paisagem devastada não me permitia pensar em outra coisa.

231


espac0 , – Lar para mim significa um lugar, como um santuário onde posso desfrutar da privacidade –disse Krystle– Meu lar está em Sunshine Coast. As águas cristalinas da cidade costeira, lagos e dunas de areia são o lugar onde Krystle se sente em casa, porém, quase não passa tempo lá. Explorando as opções de séries da Netflix achei uma série documental chamada Tales by Light. Nela, fotógrafos de renome viajam o mundo em busca de paisagens inéditas, espécies de animais e povos aborígenes. Krystle Wright foi protagonista em um dos episódios. No vídeo conheci sua paixão por fotografar esportes extremos. Quando assisti conheci um pouco do trabalho que ela desempenha e as técnicas que utiliza na captura de imagens que retratam desde alpinistas de rochas, mergulhadores, até praticantes de bungee jumping. Mas o que me chamou a atenção, além do seu talento artístico, foi seu estilo de vida semi-nômade. Pois, segundo o documentário, ela não possuía residência em nenhum país. Quando trocamos e-mails ela se encontrava em Chamonix, França, e até o final de 2019 tinha agendadas viagens à Austrália, Fiji, Nova Zelândia, Estados Unidos e Canadá. A primeira coisa que perguntei foi quais lugares tinha visitado. Enumerou um total de 47 países que abrangiam todos os continentes. De fato, não tinha casa própria em nenhum deles. Morava com amigos nas suas casas.

232


– Na estrada, a coisa da que mais abro mão é da privacidade. Pode parecer só um detalhe, mas quem viaja muito poderá entender quão preciosa ela é –comentou Krystle. Ter um canto onde pudesse descansar e estar confortável era um privilegio que não possuía. Assim como a oportunidade de ter animais de estimação, como tinha quando ainda morava na Austrália, país onde cresceu. – Há muito tempo eu quero me rebelar contra a ideia de ter uma rotina. Porém, a medida que vou ganhando experiência vou aprendendo a importância de ter uma estrutura para se manter saudável e firmar bases. Encontrar o equilíbrio é incrivelmente importante como, sem dúvida, também é o fato de que os dias são imprevisíveis. Ela se considera uma pessoa em trânsito cujo estilo de vida tem sido possível com o apoio ainda de longe dos amigos e familiares. Mesmo assim os momentos de solidão não são poucos. O senso de não ter lar é algo constante fora de Austrália. Contudo, Krystle é ciente das vantagens e desvantagens. – Eu escolhi este estilo de vida e aceito os desafios que ele representa –destacou. Há algo que não muda. Apesar de conhecer tantos lugares, ter visto o sol se pondo da cima de diferentes montanhas, mergulhado em todos os oceanos, seu coração está completo só na Austrália.

233


janelas Como Krystle, não tinha mais um lugar que fosse meu. Passava 9 meses do ano num internato, num quarto que compartilhava com três amigas. Quando visitava os familiares eles me recebiam com muito amor, mas a casa deles não era a minha. Quando ia para a casa dos meus pais não havia um quarto que fosse meu. Longe de reclamar desta realidade e reconhecendo que faz parte desta fase da vida comecei a me perguntar o que era ter um “lar”. A saudade que tinha dos meus pais e irmão não cabia mais em mim. Porém, a contagem regressiva para ir visitá-los era, ao mesmo tempo, o prazo que teria para estar com meus amigos da faculdade. Depois de dezembro, não sabia para onde iria nem quando os veria de novo. Por isso, pensar que meu lar estava apenas em pessoas era uma ideia não muito grata. Já que mesmo perto de uns, estaria longe de outros. Isso me levou a repensar meu conceito de lar mais uma vez. Quando pensei na minha mãe, de quem recebo o melhor abraço do mundo, desenhei uma casa de quatro paredes com teto, porta e janelas e a comparei com ela.

234


“¿Sabes?, podría dibujarte una flor, un jardín, o un corazón. Pero, ahora, pensar en ti me hace imaginar algo distinto. Verme aquí, encarando la vida lejos de ti, me hace reflexionar en lo que aprendí de tu ejemplo. Tus enseñanzas son cimientos y sobre esa base he podido mantenerme firme a pesar del viento. Tus abrazos. Desde qué nascí tus brazos me dieron calor y protección. Fue sobre tu pecho donde mi cabeza reposó y encontró su lugar. Y así construiste paredes y techo, como un refugio al que siempre puedo recurrir. Y a esa casa, que construiste con el tiempo, también le pusiste puertas y ventanas. Me diste alas. Me animaste a soñar. Hoy puedo sentirme en casa dentro de mí, recordarte y escucharte reír. Gracias por ser mi casa, y enseñarme a construir.” 14 Se não fosse pelos princípios que me ensinou hoje eu não teria alicerces. Se não fosse pelos seus abraços não teria paredes nem teto. Mas se não fosse pela liberdade com que me criou não teria como construir meu próprio lar.

14

Texto original: https://www.facebook.com/photo.php?fbid=2306659039393162&set=pcb.2306664442725955&type=3&theater

235


estrangeiros Ao imaginar quantas pessoas estão atualmente fora do seu país natal nunca pensei que fossem tantos. De acordo com a ONU, o número de pessoas que mora no exterior é de 258 milhões, o equivalente à toda a população do Brasil e da Argentina junta. Se os estrangeiros que estão no mundo fossem parte de um só país, este seria o quinto mais populoso do mundo, só perderia para Indonésia, que hoje ocupa esse lugar. Apesar de representar apenas 3,4% da população mundial15, esta porcentagem tem crescido significativamente nos últimos tempos. Em cinco anos (20102015) o número aumentou 28 milhões, ou seja, um crescimento de 2,4% anual no total de estrangeiros. Se todas estas pessoas estão fora do seus países, isso significa que estão longe do seu lar?

15 Dados retirados do site oficial do Institut National D’études Démographique, referents ao International Migration Report 2017, Population Division, Department of Economic et Social Affairs (DESA), United Nations. https://www.ined.fr/en/everything_about_population/demographic-facts-sheets/focus-on/migration-worldwide/.

236


ON THE ROAD Kenneth respondeu a essa pergunta. Seu endereço tinha mudado tantas vezes que apontar para um lugar geográfico não era suficiente para definir seu lar. Com 21 anos já tinha morado em cinco países diferentes. Chile, Argentina, Filipinas, Brasil e Madagascar. Uma das coisas que tem aprendido nas suas viagens pelo mundo é que o senso de lar pode ser criado dentro de si. Quando falamos sobre isso ele definiu seu lar de uma forma diferente das que tinha pensado antes. Todos seus pertences cabiam em uma mala de 23 quilos que podia levar aonde quisesse. – Meu lar está onde posso montar minha barraca e acender uma fogueira – disse enquanto estava sentado numa cadeira na minha frente. Sua filosofia era parecida a de Pico Iyer, escritor de ensaios e novelas que conheci através do livro The Global Soul. Nele, Iyer conta sua história e como ele achou seu lar. Fisicamente ninguém negaria que ele era indiano, já que herdou a cor canela dos pais. Porém, nasceu na Inglaterra e aos sete anos foi morar na Califórnia. Contudo, não foi em um nem no outro onde ele encontrou um lar e sim no interior de Japão, na cidade de Nara, lugar onde mora até hoje.

237


Para ele, o fato de não relacionar a ideia de lar a um lugar físico é libertador pois lhe dá a oportunidade de criar o seu próprio. Mas para que isto aconteça é necessário parar e ouvir. Porque é na quietude e quando nos detemos que podemos identificar aquilo que é realmente importante16. Antes de começar a relatar sua história uma das frases que Iyer colocou no seu livro expressa o sentido de lar para ele.

16

IYER, P. The Global Soul: Jet Lag, Shopping Malls and the Search for Home. New York: Alfred, A. Knopf, 2000. 17 É necessário não ser “eu mesmo” e muito menos ser “nós mesmos”. A cidade dá uma sensação de estar em casa. Devemos ter a sensação de estar em casa no exílio. Devemos estar enraizados na ausência de um lugar. (Tradução minha).

238


It is necessary not to be “myself”, still less to be “ourselves”. The city gives one feeling of being at home. We must take the feeling of being at home into exile. We must be rooted in the absence of a place.17 Simone Weil Por outro lado, também há formas de transportar o senso de lar18. Uma delas é através de objetos sagrados19. Estes são pertences que simbolizam as raízes da pessoa e lhe permitam se sentir conectado com um lugar especial20. Por isso, sem importar onde se encontre, Kenneth leva consigo uma bandeira do Chile que coloca em um lugar visível para lembrar que faz parte dele e da sua história. Já que, apesar de ter três passaportes, os laços com país austral são cultivados até hoje.

18

POLLOCK, D.C.; POLLOCK, M.V.; REKEN, R.E.V. Third Culture Kids: Growing Up Among Worlds. Boston: Nicholas Brealey, 2017. 19 Idem. Tradução livre. Sacred objects. 20 Idem.

239


TBT “Às vezes há certas coisas da vida que, demoramos a perceber, um dia podem acabar. Talvez por estarmos ocupados demais com algumas coisas ou simplesmente vivendo o momento. Mas acho que meu caso foi a ingenuidade da infância. Sabia que um dia iria voltar para o Brasil, mas não imaginava que seria naquele momento. Foi bem repentino, não tinha o sentimento de despedida ou tristeza. Sentia que um dia ia voltar para o Japão. Mas estava enganada pensando que voltaria em breve. A vida me deu um coice e foi difícil me recuperar e levantar do chão. A ingenuidade da infância me fez viver cada momento. O presente. E eu lembro de tudo como se fosse ontem. Principalmente as árvores de Sakura, que sua beleza e significado é efêmero e único para cada pessoa e a cada ano que se passa. Não importa quantos anos passem. 10, 15, 30 ou 60 anos, o período do florescimento das árvores de Sakura é o mais é aguardado. Ali podemos fazer um simples piquenique e contemplar sua beleza e vida curta. Cada ano que se admira sua existência momentânea, é uma nova concepção de pensamentos, de como enxergar a vida e principalmente uma nova lembrança para recordar cada ano que passa. Ou no meu caso, para viver a lembrança pelo resto da vida. Um momento da vida que para sempre vou guardar no coração. As árvores cheias e florescidas como se o país inteiro fosse constituído somente por elas. Uma recordação que sempre traz um sentimento nostálgico. As pétalas caindo como se fossem as gotas de chuva, porém coloridas na cor rosa. Uma chuva que cai tão delicadamente que parece estar dançando no vento. Um dança que te envolve com a sensação de estar sendo abraçada da forma mais gentil. Uma gentiliza que você recebe e quer cuidar para ter para sempre.”

Midori Okuizumi

240


rumos Aquele dia que conversei com Midori, fiz uma última pergunta. –Você pensa em voltar para o Japão? –Sim, mas não para morar a vida inteira. – disse resolvida– Conforme eu fui vivendo percebi que gosto muito de não ter um endereço fixo. De viver um tempo aqui, um tempo lá, em outro lugar. Então quero morar lá, reviver o que tive, que foi uma época muito boa da minha vida, mas só por um tempo. Eu quero ter mais experiências, conhecer outras culturas, novas filosofias. Porque cada lugar tem um modo de viver a vida. Acho isso muito interessante. Ir lá vai me permitir ver as coisas de uma forma adulta. dulta. E depois, vou morar em outros lugares.

241


12.11.19 Oi, meu nome é Mariela. Tenho 22 anos e faço jornalismo. De onde sou? Que bom que você perguntou! A primeira coisa que meus olhos viram neste mundo, além do rosto da minha mãe, foi o céu azul de Juliaca. Dei meus primeiros passos em Talca e completei meu primeiro ano em Trujillo. Pisei solos de diferentes cores e nadei em diferentes mares. Se até agora isso não foi suficiente para responder sua pergunta, então troque-a. Sou uma criança de terceira cultura. Sigo páginas como @tckglobal e @tcktown, nas quais, além de me identificar com os memes, encontro pessoas com experiências como a minha. Vai nos chamar de estranhos? Então te devolvo a pergunta. De onde você é? Me diga. Mas antes de falar pense bem. Se você mora no mesmo planeta que eu o convido a repensar sua resposta. Olhe para trás, para aqueles de quem você herdou a textura do seu cabelo, o formato do seu nariz, sua estrutura corporal. Se você é aquilo que você tem não se iluda pensando que você é de um lugar só.

242


Mas eu tenho uma bandeira, você poderá dizer. Então ame-a. Fortaleça suas raízes. Isso também faz parte de você. Só não deixe que as fronteiras separem você do resto. Não insista em classificar pessoas de acordo com o visível aos olhos. Porque a diversidade é uma oportunidade para enxergar o invisível, para nos aproximarmos. E pertencer.

243


embarcar Enquanto descanso as mãos do teclado, penso naquele lar que há em mim. Nas músicas que viajam comigo e as pimentas que não saem do meu bolso. Apesar de me sentir bem, feliz e completa com aquela casa que estava construindo parei para pensar e fechei os olhos. Lembrei dos “vals” peruanos que costumava ouvir. Eles me levavam às ruas pelas quais caminhei quando era criança e os sabores dos meus pratos favoritos. Recordei a sensação que tinha quando temperava minhas comidas com merkén. Ele me transportava ao sul do Chile, especificamente ao Mercado Central de Chillán, onde vendem esta especiaria em todos os cantos. E pensei, também, nas lembranças que vinham à minha mente quando ouvia o sotaque panamenho. Era estar um pouquinho mais perto do Canal. Percebi que em todas as memórias haviam risadas do meu lado, haviam mãos que puxavam meus braços e olhares que me traziam paz. Portanto, desvincular minha ideia de lar das pessoas era uma ilusão. Ilusão cujas ondas me puxavam para dentro querendo me engolir. Voltei a escrever.

244


“Encuentro en mi existencia incoherencia que deriva de miedos que se contradicen. Si existir se hace posible a través de otros, el ser independente es una ilusión. Ilusión en que me encuentro sumergida, casi ahogada. Veo la cruel oscuridad, pero al mismo tiempo, estoy atraída hacia ella. Y respiro estos contrastes, sin poder huir del aire que inhalo. Sin poder separar el dióxido del oxígeno, elementos opuestos que viviendo juntos me permiten hoy escribir”21. Não posso dizer que de um dia para outro achei resposta a meus questionamentos. Antes, me enchi de muitos outros. Mas devo reconhecer que neste livro não viajei sozinha. Tive vários companheiros que, entre risadas e prantos, me fizeram ver que antes mesmo de sermos plurais e mestiços, somos vulneráveis. Laplantine e Nouss já tinham me advertido que reconhecer nossa condição mestiça é nos desapegarmos de nós mesmos. Porque “ser, é ser com, é ser em conjunto, é partilhar - a maioria das vezes conflituosamente - a existência”22. Para entender estas palavras não precisei de tradutor nem de dicionário, mas sim de vivências. Além de me incomodar, questionar, perguntar e pesquisar, precisei lembrar, sentir, identificar, sorrir, deixar lágrimas cair e escrever, que é para mim respirar. Conhecer pessoas, amá-las e me entregar a elas é um risco. Posso ser rejeitada, posso ser esquecida. E mesmo sendo correspondida saber que em qualquer momento a distância pode me arrebatar delas é assustador. Porém, já estou na sala de embarque. 21 22

Texto Original: https://www.instagram.com/p/B3S4-xLjVWB/ LAPLANTINE, F.; NOUSS, A. A Mestiçagem. Lisboa: Piaget, 2002.

245


246


epĂ­logo 247


23 L, JANELA Enquanto afivelo o cinto entram dezenas de passageiros com destino a São Paulo. – Será que minha mala cabe aí? –se perguntava uma jovem ao ver o espaço dos compartimentos. – Será que poderia fazer a gentileza de trocar de lugar com meu filho? – perguntou um pai para uma senhora. – Vou assistir filme – comentou um menino. Os rostos me são familiares. Caras amassadas, curiosas, olhos grandes, cabelos loiros, com fios brancos, mãos que abrem e fecham compartimentos. Sorrisos. Nunca antes tinha visto essas pessoas. Porém, o simples fato de serem pessoas as torna familiares. Por que, além da aparência, além do sotaque, todos passamos pela sala de embarque. Todos fizemos as nossas malas, preparamos nossas roupas. Todos nos despedimos de alguém, seja por pouco tempo ou sem saber quando os voltaremos a ver. Somos todos passageiros, não apenas deste voo, mas da vida no século XXI. É que o passaporte não se preenche apenas com carimbos. Ele é preenchido no dia a dia. Ao esticar os pés na cama, sair de casa, dirigir na estradas, ir para a mercearia, ao falar “bom dia”.

248


Não há papel suficiente para registrar as viagens da alma. Não existem emojis para dizer o quanto se ama, o quanto se sofre. Mas há sim, braços suficientes para serem abertos. Há sim, olhos suficientes para olhar para o lado e ser humano. Ainda sem fones empreendo esta viagem. O avião move-se lentamente na pista de decolagem, os motores acordam e as aeromoças passam pelo corredor dando as últimas instruções. Eu tento não pensar no que deixo aqui, mas é impossível. É parte de mim. Contudo, vou embora com a certeza de que tenho um lar. Não só terra, não só família. Um lar que cabe aqui dentro e continuará a ser construído a cada passo na estrada desta vida. Com você.

249





Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.