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CORREIO BRAZILIENSE • Brasília, domingo, 6 de março de 2016 • 9

O EXCESSO DE HIERARQUIA DIFICULTA A INTERLOCUÇÃO ENTRE OS NÍVEIS DE UMA ORGANIZAÇÃO E PODE COMPROMETER A PRODUTIVIDADE. NOS ÂMBITOS POLÍTICO E INTERNACIONAL, TAMBÉM É PRECISO SE PREPARAR PARA CONVERSAS COMPLEXAS

HORA DE ENCARAR DISCUSSÕES DIFÍCEIS Loic Venance/AFP - 03/12/15

o ambiente empresarial, o diálogo tem sido prescrito como remédio para uma gama de problemas, como os de relacionamento e de produtividade. A aplicação, entretanto, encontra obstáculos impostos não apenas pela cultura, mas ainda pela própria estrutura de algumas empresas. Na política e nas relações diplomáticas a situação é parecida, e exige treinamento e articulação de todos os envolvidos no debate. Mario Lucio Machado, managing partner da Wisnet Consulting, que trabalha com liderança empresarial e planejamento estratégico, conta que as relações de subordinação são um dos empecilhos ao debate nas instituições, gerando receio e distanciamento por parte dos funcionários, já que os modelos de discussão são estabelecidos pelos superiores. Ele caracteriza a situação como cíclica. “O de baixo não fala o que pensa, não expressa sua percepção. O de cima não tem tempo para conversar, porque sente que o de baixo não vai agregar valor. Esses fatores dificultam os diálogos honestos dentro das corporações — são diálogos superficiais, aparentemente harmoniosos. A prática de diálogos honestos implica uma mudança de cultura dentro das organizações e isso não está acontecendo”, lamenta. O especialista explica que há, em geral, dois tipos de culturas

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que determinam as formas que o diálogo toma: as monocrônicas e as policrônicas. Nas primeiras, mais pragmáticas, há a lógica de que “tempo é dinheiro”. Nas segundas, é necessária uma relação de afetividade e confiança para, depois, se falar de negócios, caso do Brasil. Construir um espaço de diálogo honesto nas empresas, portanto, exige respeito a esses diferentes contextos e dedicação de todos os envolvidos. “Você não pode criar esse ambiente quando as pessoas se sentem oprimidas, sem direitos, sem voz, sem valorização”, aconselha.

Interação Os diálogos mais delicados também podem ocorrer entre organizações, em relações entre países ou quando toda a comunidade internacional é chamada a discutir questões que impactam a população mundial (veja Linha do tempo). Foi o caso da 21ª Conferência das Partes da ConvençãoQuadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UNFCCC). A COP-21, como ficou conhecida, ocorreu no fim do ano passado, com o objetivo de debater as mudanças climáticas. Realizado em Paris, o evento reuniu 195 nações que assinaram, ao fim dos debates, um documento para combate ao aquecimento global, considerado histórico. O Acordo de

Na COP-21, 195 nações se comprometeram a combater o aquecimento global: esforço para chegar ao consenso Paris substituirá o Protocolo de Kyoto em 2020. Diante da pluralidade de interesses e culturas em torno de um tema delicado, a conferência do clima de 2015 é considerada, do ponto de vista do debate, um hard talk. A Organização não Governamental Greenpeace, de defesa do meio ambiente, acompanha de perto eventos como a COP-21, representada por colaboradores preparados para as conversas difíceis.

Estar munido de dados sólidos nesses momentos fortalece a comunicação, explica o gerente de Mobilização da ONG no Brasil, Renato Guimarães. “Em situações de negociação, conversas que envolvam hard talk ocorrem muito. Essa negociação requer dados corretos e ideias claras, e temos especialistas dentro do Greenpeace voltados para lidar com esses temas”, conta o gerente. “O hard talk, no geral, precisa que os inter-

Habilidade necessária A expressão hard talk (conversa dura, em inglês) designa diálogos sobre temáticas delicadas, de grande importância e que exigem preparo e ética da parte dos interlocutores. Diferenças culturais e estruturas hierárquicas são alguns dos fatores que interferem na condução desse tipo de debate.

locutores tenham muito conhecimento do que estão falando. Ele envolve conversas diretas e respostas diretas.” O Greenpeace está presente em 55 países e tem 28 escritórios: são mais de 4 milhões de colaboradores em todas as partes do mundo. Para realizar uma comunicação efetiva entre os participantes e também com agentes governamentais e outras instituições, é necessária uma estrutura organizada de debates.“Como toda ONG estruturada, há uma hierarquia. E o nosso desafio é pensar como criar um ambiente em que as pessoas se sintam confortáveis para expor seus pensamentos”, afirma Guimarães. Os representantes da organização são treinados para transparecer, de maneira clara, as ideias e posicionamentos também para a mídia, evitando informações truncadas. O respeito ao outro é também um elemento crucial para a ação em diferentes nações. “Há países em que é mais comum ir direto ao ponto. Nos países latinos, o hard talk é mais difícil, só ocorre em ocasiões específicas. Nós, latinos, temos mais dificuldades, faz parte da nossa maneira de pensar: se você for muito direto, às vezes isso é confundido com agressividade. É preciso primeiro criar um espaço de afinidade e depois ser mais duro”, narra. “Não é algo que impeça o diálogo, mas requer adaptação”, frisa o gerente.

Breno Fortes/CB/D.A.Press

COMUNICAÇÃO E PODER relação ao diálogo, ou seja, não se trata apenas de ver o diálogo como um caminho necessário para a superação da crise política: trata-se de um diagnóstico que talvez identifique na negligência como que essa questão foi tratada a origem ou as origens dos impasses políticos que nós estamos vivendo”, ressaltou. “Não fosse a constituição de muralhas no lugar da constituição de pontes, seria possível que muitos dos dilemas, dos desfiladeiros traiçoeiros por onde vemos o país obrigado a trafegar, não se apresentassem dessa forma.”

Instituições públicas A jornalista Virginia Galvez,

diretora da Secretaria de Comunicação do Senado, complementou a discussão apresentando dados sobre o alcance dos meios de comunicação da Casa. No Facebook, são 1,2 milhão de seguidores. Na rede de televisão e mais de 5 mil horas de comissões foram exibidas ao vivo durante o ano passado. “Acho que nós temos, desse lado da Praça dos Três Poderes, a tentativa e a possibilidade de diálogo”, avaliou, e elencou ainda algumas dessas possibilidades. “O e-Cidadania permite que qualquer cidadão entre e manifeste sua opinião. Nós temos diversos projetos cujas manifestações foram consideradas, isso só está crescendo”, garantiu.

Galvez é jornalista, graduada pela Universidade de Brasília (UnB). Iniciou a carreira em 1979, como redatora no Jornal de Brasília, e atuou como repórter nas sucursais de O Globo e da Folha de S. Paulo na capital e na TV Globo. Ingressou no Senado Federal em 1998. Hoje, como diretora da Secretaria de Comunicação Social, coordena a TV Senado, a Rádio Senado, a Agência Senado, o Jornal do Senado e a atuação institucional nas mídias sociais e as áreas de marketing e relações públicas da Casa.

Virginia Galvez, do Senado, elencou formas de dialogar com a sociedade

Chip Somodevilla/AFP - 1/10/13

As relações de poder têm uma conexão intrínseca com o diálogo. Nem sempre, entretanto, essa prática é feita de forma transparente e eficiente pelos governos, como pontou o jornalista e professor da USP Eugênio Bucci. Ele criticou a comunicação pública feita no país hoje, por meio de slogans, que ele classificou como “massificação de valores de um certo pactus de adesão, obediência e subserviência”. Para Bucci, é inaceitável que a verba pública seja utilizada para promover uma visão sem diálogo com outros pontos de vista, inclusive o da oposição. “Podemos entender, suponho, a crise política como uma resultante da negligência do poder em

✓ Virgínia Malheiros

Leon Neal/AFP - 28/8/07

1964 — Símbolo de tolerância e de paz » Nelson Mandela é símbolo de paz e tolerância na luta pelo fim do Apartheid na África do Sul. Foi preso em 1963 e solto em 1990, depois de intensa mobilização social. Madiba, como era conhecido, foi eleito presidente de seu país em 1994 e deixou um legado de perseverança e conciliação ao mundo.

1942 — Revolução pacífica

1963 — A luta pelos direitos civis dos negros

“Eu lutei contra a dominação branca, e lutei contra a dominação negra. Cultivei o ideal de uma sociedade livre e democrática, na qual todas as pessoas vivem juntas, em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal que espero viver para alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer” Discurso durante o julgamento de Rivonia, no qual foi sentenciado à prisão perpétua

» A liderança de Martin Luther King Jr. contribuiu para que os Estados Unidos revogassem as leis segregacionistas que tiravam direitos civis essenciais da população negra até a década de 1960. Seu discurso em Washington, durante marcha que reuniu cerca de 250 mil pessoas, é um dos mais marcantes da história mundial. “Tenho um sonho de que um dia esta nação se erguerá e corresponderá em realidade ao verdadeiro significado de seu credo: 'Consideramos essas verdades manifestas: que todos os homens são criados iguais’” Discurso proferido durante marcha em Washington

» As ideias do indiano Mahatma Gandhi, principalmente relacionadas à promoção da não violência, fizeram dele um agente de diálogo entre várias tradições religiosas. Depois de anos, alcançou melhorias para a comunidade indiana na África do Sul e decidiu voltar à Índia para lutar pela independência do seu país, que ocorreu em 1947. “Não posso lhes ensinar a violência, porque eu mesmo não acredito nela. Posso somente lhes ensinar a não se curvar perante ninguém, ainda que isso lhes custe a vida. Força não vem da capacidade física, mas de uma vontade indomável” Discurso sobre a não violência

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