Artigo relato

Realizado por meio do edital n°14/2020 - Seleção de Bolsistas para as áreas Artísticas, Técnicas e de Produção Cultual, com recursos de Lei Aldir Blanc.

Este é o relato de uma vivência que aconteceu em Belo Horizonte com Eugênio Barba, Julia Varley e Silvia Pritz, em dezembro de 2019.

Dentre toda a programação tivemos demonstrações técnicas, documentários, rodas de conversa, mas neste relato vou me ater aos encontros práticos com Eugênio Barba. Cada encontro com ele foi uma aula com vários conteúdos dos quais ele descreve em seus livros, porém estar numa mesma sala com ele, ouvir sua voz, sentir sua presença, é uma experiência transformadora. Ver, de perto, a forma como ele e Júlia lidam com o fazer teatral, o profissionalismo dos dois, a seriedade que encaram o trabalho, é impressionante. Me fez perceber como e porquê o Odin Theatret resistiu ao longo dos anos, fazendo teatro comprometido.

Fazer parte dessa vivência foi um privilégio e, por isso, quero compartilhar como foi essa experiência.

DIA 1 - Workshop Técnicas de Direção Primeiro dia de oficina prática com Eugênio Barba e Julia Varley. Chegamos ansiosas para o primeiro encontro que seria um Workshop de Técnicas de direção teatral. Uma grande roda de cadeiras estava preparada na sala. Eugênio e Julia já estavam sentados, em silêncio, aguardando o horário exato para começar, e as pessoas se posicionarem. 9:00 da manhã ele começa falando sobre equilíbrio.

Equilíbrio

“A busca de um equilíbrio extracotidiano exige um esforço físico maior: mas é a partir desse esforço que as tensões do corpo se dilatam e o corpo do ator nos parece vivo antes mesmo que ele comece a se expressar.”

Eugênio Barba

Julia, então, convidada a demonstrar, se levanta e vai buscando deslocar seu corpo, com gestos suaves, mudando a distribuição de peso sob seus pés, encontrando uma postura de desequilíbrio ou de equilíbrio extracotidiano, como dito por Eugênio.

“A técnica extracotidiana do ator-dançarino, isto é, a presença, deriva de uma alteração do equilíbrio e postura básica, do jogo de tensões opostas, que dilata a dinâmica do corpo.”

(Barba, 1995, p. 81)

Enquanto Eugênio falava sobre as possibilidades de desequilíbrio - passos maiores ou menores, cabeça mais para trás ou para frente - a Julia demonstrava e era hipnotizante vê-la. Ela estava apenas se deslocando no espaço, no meio da roda, mas era como se ela empurasse o espaço; a tensão entre o corpo e o espaço, os micromovimentos, o olhar dela, tudo fazia com que fosse impossível desviar o olhar. “É possível dizer que o equilíbrio - a capacidade que o homem possui de ficar ereto e de se mover no espaço nessa posição - é o resultado de uma série de relações e tensões musculares no nosso organismo. Quanto mais nossos movimentos se tornam complexos - dar passos maiores dos que damos normalmente, ficar com a cabeça mais para trás ou mais para frente -, mais o equilíbrio fica ameaçado. E aí toda uma série de tensões entra em ação para nos impedir de cair. [...] Uma consequência da alteração do equilíbrio são aquelas tensões orgânicas bem precisas que empenham e evidenciam a presença material do ator, só que em uma fase pré-expressiva: uma fase que antecede a expressão intencional e individualizada.”

Eugênio Barba

Barba defende que o deslocamento do ângulo do olhar habitual provoca a alteração do equilíbrio, a postura física muda, a pressão dos pés no chão, o tônus muscular e, assim, os atores produzem uma “transformação qualitativa da energia”, por meio do deslocamento, seja através do olhar ou do centro do corpo. O desvio do equilíbrio cotidiano coloca o corpo em outro lugar, gerando uma energia diferente da que usamos cotidianamente, sendo essa a base da técnica extracotidiana: a alteração do equilíbrio. Entretanto, “a energia não é só o resultado de uma simples e mecânica mudança de equilíbrio, mas de uma tensão entre forças contrapostas.” Por isso, a importância da conscientização do corpo, para perceber as oposições e conseguir provocá-las, para atingir lugares diferentes no corpo e no espaço, dilatando o corpo e a energia.

Segundo Eugênio, o nível pré-expressivo não tem interesse em deixar claro o que se quer expressar, busca-se novas relações descobrindo as possibilidades no corpo, novos caminhos a serem percorridos, novos jeitos de se movimentar e de gerar significados. O que importa é tornar a presença do ator cenicamente viva, envolver o corpo todo, provocar uma presença que cative a atenção do espectador. O trabalho nesse nível é a parte de pesquisa e investigação corporal para a expressão consciente e potente.

Um aspecto proposto como ponto inicial para se trabalhar no nível pré- expressivo é a conscientização corporal: observar e perceber a relação que estabelecemos com o próprio corpo, como a maneira de andar por exemplo, e, além disso, entender o corpo como um todo que se movimenta cotidianamente, muitas vezes sem a menor percepção das partes que o compõe, das articulações como engrenagens que possibilitam inúmeros movimentos. Então dissecar o corpo, observar, sensibilizar e buscar a conscientização de cada parte faz-se necessário no processo de entender o corpo como um todo.

Eugênio destaca algumas partes do corpo como elementos fundamentais e que devem ganhar atenção especial, são eles: pés, mãos e olhar. Além de frisar a importância da precisão em todos os movimentos.

Alguns questionamentos que guiaram seu trabalho como diretor foram: como dilatar o corpo? Como despertar o sentido do espectador? Para ele, o ator deve ter a capacidade de transformar o interior em algo perceptível/ visível, como os músicos fazem através das notas, o escritor através das palavras e o ator por meio das ações.

Oposição “A dança das oposições caracteriza a vida do ator em diferentes níveis.”

A técnica extracotidiana desenvolvida por Eugênio, baseia-se na alteração do equilíbrio, tendo os pés como centro da expressividade, “[...] são eles que definem a tonicidade do corpo e seus deslocamentos no espaço”, o jeito de andar, de pisar, diz

algo. Criar resistência no espaço, estar atento às oposições no corpo, no espaço, ampliam as possibilidades de expressão e provocam tensões.

Eugênio diz que “na busca da dança das oposições, o ator tem uma bússola para orientar-se: o mal estar.” Ele diz que estar em desequilíbrio, fora do lugar comum do corpo, funciona como um sistema de controle que permite ao ator observar-se enquanto age.

“Não se observa através dos olhos, mas através de uma série de percepções físicas que lhe confirmam que tensões não habituais, extracotidianas, habitam o seu corpo. O corpo do ator revela sua vida ao espectador em uma miríade de tensões de forças contrapostas. É o princípio das oposições.”

Eugênio Barba

Foto 1- Eugênio Barba de pé e Julia Valey sentada ao fundo

Barba propõe realizar uma ação ampla e pesada de forma contida, utilizando a mesma energia física. Para ele esse processo “faz vivo o corpo inteiro do ator ainda que na imobilidade”. Um princípio da técnica extracotidiana é o uso antieconômico do corpo, diferente do cotidiano que optamos pelo mínimo esforço; por isso, se realizamos uma ação de forma contida mantendo a energia física extracotidiana geramos uma grande quantidade de energia, por menor que seja o movimento.

Eugênio pede a Julia que faça a demonstração de uma partitura de movimentos do espetáculo Ave Maria, tal como ela executa durante a apresentação. Quando ela termina, ele pede que ela repita a mesma partitura de forma contida, com micromovimentos, para que fique visível que a concentração de energia faz o corpo inteiro vivo, presente.

Energia Energia é uma temperatura - intensidade pessoal que o ator pode individuar, despertar e modelar.”

(Barba, 1994, p. 94)

Eugênio destaca um ponto importante para o trabalho do ator, que se relaciona com a técnica extracotidiana: a energia. “A energia do ator é uma coisa bem precisa que todo mundo pode identificar: sua força muscular e nervosa. O que nos interessa não é a pura e simples existência dessa força, porque ela já existe, por definição, em todos os corpos viventes. O que nos interessa é o modo como ela é modelada e em qual perspectiva.” (Ferdinando Taviani, A Energia do Ator como Premissa apud. A Arte Secreta do Ator) “Estudar a energia do ator, então, significa se interrogar sobre os princípios pelos quais os atores podem modelar, educar sua força muscular e nervosa segundo modalidades que não são aquelas da vida cotidiana.”

Ferdinando Taviani

Para buscar uma energia extracotidiana, além da alteração do equilíbrio, Eugênio fala sobre a necessidade de “romper a mecanicidade”, ou seja, fugir da divisão em 2 tempos. Ele pede a Julia que demonstre um partitura de movimentos dissecada em 3: no 1 inspira, 2 segura, 3 expira; a observação feita por ele é “fugir do binário”.

Eugênio diz que “a energia é o ‘como’ (tensões e impulsos): o que se cria na luta entre o fazer e a resistência”. As tensões provocadas, a alteração do equilíbrio cotidiano e a dinâmica das oposições aceleram o fluxo das energias que caracterizam nosso comportamento cotidiano e, assim, o corpo é dilatado.

O corpo dilatado é, acima de tudo, um corpo incandescente, no sentido científico do termo: as partículas que compõem o comportamento cotidiano foram excitadas e produzem mais energia, sofreram um aumento de movimento, elas se afastam, se atraem, se opõem com mais força e mais velocidade num espaço mais amplo.

(Barba, 1995, p.54)

Então, o corpo dilatado “[...] trata-se de uma qualidade extracotidiana da energia que torna o corpo teatralmente ‘decidido’, ‘vivo’, ‘crível’; desse modo a presença do ator, seu bios cênico, consegue manter a atenção do espectador antes de transmitir qualquer mensagem”.

Esse processo de tornar o corpo do ator cenicamente vivo, através dos pontos citados anteriormente, exige disciplina e treinamento contínuo. Nessa vivência, foi possível observar todos esses conceitos presentes no corpo, na voz e na presença cênica da Julia quando fazia demonstrações ou nas apresentações (Vide link Hermano Muerto).

DIA 2 - Master Class com Eugênio Barba e Julia Varley

Segundo encontro prático com Eugênio Barba e Julia Varley.

Todos sentados em uma roda, Eugênio começa falando sobre a presença do ator e destaca um termo utilizado pelo Odin Teatret: Sats “[...] sats, ou seja, “preparação para a ação, para se lançar, para estar a ponto de…”), com uma posição da cabeça que, alterando o equilíbrio, quebra organicamente as linhas do corpo.

O termo sats do Odin Teatret, ou seja, o impulso para a ação - que através do não movimento é energia no tempo - era definido por Stanislávski como ‘estar no ritmo certo’” Eugênio Barba

Estar pronto, ainda que na imobilidade, exige do corpo uma postura específica, quer dizer, exige que o corpo esteja em atividade, pronto, preparado para agir a qualquer

momento, com precisão. Sats, o termo utilizado pelo Odin, é o impulso que vem antes da ação, é o estado em que o corpo está pronto para agir.

Eugênio diz que nesse estado os músculos posturais estão ativados, não os músculos de deslocamento, “[...] de um lado, o ator projeta uma quantidade de sua energia no espaço; de outro, retém mais do que o dobro dessa energia em si mesmo, criando uma resistência que se opõe à sua ação.”

Foto 2 - Eugênio Barba no centro da roda

Energia no espaço e energia no tempo “A energia no tempo se manifesta por meio de uma imobilidade que está atravessada e carregada por uma tensão máxima: é uma qualidade especial de energia que não é, necessariamente, o resultado de um excesso de vitalidade ou do uso de movimentos que deslocam o corpo.”

Eugênio Barba

Numa imobilidade que não é nem estática nem inerte, e sim dinâmica, Eugênio continua refletindo sobre o quanto a imobilidade pode ser carregada de energia e prender a atenção do telespectador.

A imobilidade, principalmente nas artes marciais, é um sinal de que a pessoa está pronta para ação. Estar parada e preparado, com energia, é o que Eugênio chama de energia no tempo.

Sobre a energia no espaço, Eugênio fala que é “[...] o modo como o ator é capaz de transformar a imobilidade em ação, o modo de dilatar o seu corpo; e ele não faz isso através de uma amplificação dos movimentos no espaço, e sim através das tensões dentro do seu próprio corpo.”

Outros pontos que ele destaca para moldar a energia no espaço são as direções do movimento, os planos (alto, médio e baixo), a postura, o equilíbrio, além dos jeitos de pisar, a direção do olhar e os movimentos dos braços.

Um exemplo que ele cita, e que a Julia faz uma demonstração técnica, é miniturizar uma partitura de movimentos, para sentir a diferença entre a energia no espaço e a energia no tempo. Deve-se diminuir o movimento no espaço devagar (90%, 70%, 50%, 30%, 10%) mantendo a mesma energia, até ficar imóvel, mas fazendo a partitura mentalmente.

Considerações finais Além dos encontros práticos com Eugênio e Julia, o evento contou com Master class de Silvia Pritz, que é dançarina e pesquisadora do movimento com base na técnica de Rudolf Laban - Domínio do movimento, acompanhou o Odin pela América Latina e já produziu apresentações na Argentina.

O evento foi grandioso, enriquecedor, recheado de trocas e de afeto. Presenciar o comprometimento e a seriedade com que eles encaram o fazer teatral, me fez repensar o lugar do teatro na minha vida. Foi um presente poder vivenciar esse encontro.

Foto 3 - Participantes do evento

Referências Bibliográficas BARBA, Eugênio. A canoa de papel: tratado de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec, 1994.

BARBA, Eugênio. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia teatral. São Paulo: Hucitec, 1995.

BARBA, Eugênio. Queimar a casa. Origens de um diretor. São Paulo: Perspectiva, 2014.

BURNIER, Luís Otávio. A Arte de ator: da técnica à representação - Campinas, São Paulo: Editora da Unicamp, 2001.

DONOSO, Marília Gabriela Amorim. O treinamento como processo de investigação do ator-criador. São Paulo: UNESP, 2010.

FERRACINI, Renato. A arte de não interpretar como poesia corpórea do ator. São Paulo: Editora da Unicamp, 2003.

Anexos

● Descrição do evento ● Programação ● Link’s ● Cartaz de divulgação

ConectArt Edição Brasil / Dinamarca Eugênio Barba irá abrir seu trabalho como diretor-autor exemplificando exercícios ou cenas que ilustram os seus procedimentos e estimulam questionamentos. Além disso, ele irá trabalhar os princípios do conceito da Antropologia Teatral com aulas práticas.

O Master Class tentará definir os diferentes níveis de dramaturgia no trabalho em um teatro e os princípios da antropologia teatral, apresentando os seguintes tópicos: • Desenvolvimento da dramaturgia do nível orgânico ou dinâmico do ator (ações físicas e vocais).

• Relação dinâmica entre a pontuação e a estrutura narrativa.

• Relação de dramaturgia do principal e do texto atual.

• Relação de dramaturgia entre o diretor, o escritor e o ator.

• Técnicas diárias e extra- diárias.

• Diferença entre movimento e ação, estáticos e dinâmicos, imobilidade.

• Energia no espaço e energia ao longo do tempo.

• A técnica de administração de montagem.

• A percepção do diretor e a percepção do espectador.

Além disso, o trabalho contará com: • Materclass com Silvia Printz: Com base na metodologia Laban, o workshop propõe introduzir o eixo triplo: material sintaxe e resultante poético. Passando individualmente e em grupo pelas três variáveis: tempo – espaço energia, oferecendo ferramentas que colaboram e estimulam a criação de materiais próprios, trabalho criativo, metodologias pedagógicas em relação a práticas cênicas e também a organização do processo criativo para novas montagens.

• Com preparação para espetáculo Ave Maria o qual tem a direção de Eugênio Barba: Lançando mão de versos do poeta italiano Antonio Verri a atriz Julia Varley evoca o encontro e a amizade com a atriz chilena Maria Canepa. É a morte que celebra a imaginação criativa e a dedicação de uma atriz que sabia como fazer uma marca depois de sua partida.

• Exibição dos filmes: "A arte do impossível” e "Linaje" com as sessões comentadas por Eugênio Barba.

Programação ConecArt- Edição Brasil/Dinamarca de 09 a 13 de Dezembro de 2019

• Data: 09.12 16:30 as 18:00hs - Demonstração de trabalho Hermano Muerto • Data: 09.12 20:00h – Exibição: Filme Linaje; (aberto ao público com vendas de ingresso) 21:00h às 22:00h - Roda de Conversa (com Eugênio Barba, Júlia Varley, o diretor do filme Gustavo Laskier e Produtora Silvia Pritz) • Data: 10.12 9h às 13h – Workshop Técnicas de Direção • Data: 10.12 15h ás 18hs: Preparação para o espetáculo Ave Maria 20 ás 21:30h: Apresentação do Espetáculo Ave Maria • Data: 11.12 9:00h as 13:00h - Master Class com Eugênio Barba e Júlia Varley 20:00h - Apresentação do Filme “ A arte do impossível” (aberto ao público com vendas de ingresso).

21:00h às 22:00h - Roda de Conversa com Silvia Printz • Data: 12.12 14:00h as 18:00h - Mater Class com Silvia Printz • Data: 13.12 14:00 as 18:00hs - Materclass com Silvia Printz

Links ● Hermano Muerto : https://vimeo.com/398569715 ● Filme Linaje: https://youtu.be/9Zk0AdAn4To ● Site Odin Theatret: https://odinteatret.dk/