Samba-Enredo: a poética do carnaval de Porto

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CAPÍTULO 6 A PRESENÇA DO ÉPICO NO SAMBA-ENREDO

No “instinto de nacionalidade”, de que fala Machado de Assis (1873), de uma “literatura empenhada”, referência de Antonio Cândido (2007), a poesia épica exerceu sempre um papel singular na literatura brasileira. Desde o primeiro século de colonização europeia no Brasil, a epopeia foi uma constante para descrever guerras e conflitos e mitificar fatos e heróis. Nessa idealização, o índio seria geralmente associado como o elemento caracterizador da brasilidade. Já em 1563, o padre José de Anchieta, publica em Coimbra (Portugal), de forma anônima, Des Gentis Mendi de Saa (“Os Feitos de Mem de Sá”), o primeiro poema épico das Américas - impresso antes mesmo d’Os Lusíadas, de Camões, de 1572. Narra o conflito da França Antártica - a batalha dos colonizadores portugueses contra a tentativa de invasão dos franceses - com o apoio dos índios tamoios -, no Rio de Janeiro. Para Afrânio Coutinho, a obra é a que inicia a literatura brasileira; para Cândido, Anchieta é quem criou um sentimento nativista, que marcaria a Corte. Contudo, nem todos os críticos e historiadores da literatura consideramna “literatura”, e sim “manifestação literária”. Nos séculos seguintes, outras obras poéticas ajudariam a consolidar a épica na tradição da poesia brasileira. Eis algumas das mais conhecidas: Prosopopeia (1601), de Bento Teixeira, O Uraguai (1769), de Basílio da Gama, Vila Rica (1773), de Cláudio Manuel da Costa; Caramuru (1781), de Frei Santa Rita Durão; I-Juca Pirama (1851), de Gonçalves Dias; A Confederação dos Tamoios (1856), de Gonçalves de Magalhães; O Caçador de

Esmeraldas (1902), de Olavo Bilac; e Cobra Norato (1931), de Raul Bopp. Os poemas citados têm aspectos comuns em relação à tematização e à forma literária num sentido amplo. Em relação à métrica, porém, os poemas citados seguem diferentes estruturas. Enquanto O Uraguai e Caramuru adotam o esquema métrico da poesia camoniana, com versos decassílabos (tanto sáfico quanto heróico), Cobra Norato e A Confederação dos Tamoios utilizam versos livres. Já I-Juca Pirama conta com métricas variadas a cada canto ou estrofe. Não sendo a métrica um fator determinante para a inclusão dessas obras no rol da poesia épica brasileira, outros aspectos devem ser investigados. Para isso, devese recorrer às características temáticas que constituem o gênero épico. A “essência” do épico é assim definida por Vassallo (1992, p. 85-86): O relato das façanhas (sobre)humanas e lendárias de alguém dotado de uma qualidade ou defeito exacerbado e único, inserido num campo semântico coerente porém restrito, identificado como paladino de uma verdade ou sistema de valores monolítico e aceito sem discussão, levando esta aceitação às últimas consequências.

Pela caracterização acima, é possível pensar-se numa ampliação do escopo do que vem a ser o épico. Vassallo (1992, p. 86) ressalta que “cada época atualiza o épico conforme seus padrões e critérios”. Na contemporaneidade,

Capítulo 6

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