CAPÍTULO 5 DO TEMA-ENREDO PARA O SAMBA-ENREDO: TRANSPOSIÇÃO DE GÊNEROS
O samba-enredo atravessa, a partir da construção do enredo, um processo de transposição intersemiótica1. De um texto verbal na maioria das vezes produzido em prosa, que é a sinopse do enredo ou o tema-enredo, estrutura-se o desfile de uma escola de samba em todos seus segmentos, inclusive na canção.
A pesquisa da antropóloga foi desenvolvida entre os anos de 1991 e 1992 na Mocidade Independente de Padre Miguel, do Rio de Janeiro; transcorridas mais de duas décadas, dá para dizer que hoje haveria mudanças, com uma maior presença de compositores mais jovens e escolarizados.
Compulsoriamente o samba-enredo surgirá de outro universo semântico, que é aquele concebido pelo carnavalesco da escola de samba para o “todo” do desfile. Da mesma forma, expressa tradições e importa elementos que necessariamente devem estar representados na letra da canção. Assim, a noção de autoria é bastante plural e complexificada (além da criação a partir da base formulada pelo carnavalesco, na maioria das vezes o samba-enredo é composto por mais de um autor).
Sobre a passagem do tema-enredo para o samba-enredo, Cavalcanti (2006) ressalta que essa transposição, da “forma escrita e narrativa à forma musical e poética”, produz “desníveis de significados” (lembra que a origem dos autores são “meios culturais distintos”). A sinopse do enredo, assim, tratava de estabelecer uma “referência comum de sentido, um vocabulário e uma determinada conexão de ideias-chave”.
A transposição de gêneros se dá, primeiramente, pelo fato da letra do sambaenredo ser uma criação derivada de uma sinopse criada por outro personagem, o carnavalesco. Maria Laura V. Cavalcanti (2006, p. 111) lembra que a “letra de um samba-enredo é elaborada a partir de um universo semântico e sintático preestabelecido na sinopse do enredo proposta pelos carnavalescos”. A autora destaca que a relação entre carnavalesco e compositor é “radicalmente distinta”, visto que “o enredo a ser cantado em samba é de autoria do carnavalesco e, muito frequentemente, o carnavalesco provém de setores sociais distintos daqueles dos sambistas, de um meio cultural diverso”.
Numa declaração extraída de Tiãozinho da Mocidade, uma das principais referências da agremiação carioca, o compositor é tratado como o “intelectual” da escola, “quem pode denunciar, resistir, dar voz a tudo que se fala”. “Compositor de samba-enredo é voz do povo, da comunidade”, afirma Tiãozinho (CAVALCANTI, 2006, p. 112). Em outro depoimento, Edu, também compositor da Mocidade, explica a relação de “hierarquia criativa” que há entre carnavalesco e compositor: “Ele [o compositor] fica tentando atingir a cabeça do carnavalesco que já pensou o que ele quer. Por mais que ele tente passar para a gente, sabe que há sempre um ruído qualquer. Você entende de uma maneira, outro de outra. Então o compositor fica
1 Nomenclatura utilizada por teóricos dos Estudos de Intermidialidade, como Claus Clüver (2006), estudado no capítulo anterior. Transposição intersemiótica, lembrando, é o cruzamento entre duas ou mais linguagens artísticas que produz um novo elemento sígnico.
Capítulo 5
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