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associaram. Mas essa abordagem vai além das comparações entre samba e crônica, pois a inserção de um fazer em um meio de reprodução massivo em geral leva a uma total modificação no estatuto desse fazer. 3.3. A MODIFICAÇÃO DAS RELAÇÕES DE MEMÓRIA DO SAMBA URBANO Naquele que talvez seja seu ensaio mais conhecido, Walter Benjamin se ocupou de estudar o papel dos meios de reprodutibilidade técnica na evolução da arte, mostrando assim como sua aparição levou a subtrair na arte toda uma cadeia de relações sociais entre a pessoa humana e o fazer artístico. São modificações que dizem respeito à posição da arte no mundo moderno, em que ela passa a estar integrada às relações de propriedade inerentes à economia capitalista. Mesmo que essas novas circunstâncias deixem intata a continuação da obra de arte, elas desvalorizam, de qualquer modo, o seu aqui e agora. Embora esse fenômeno não seja exclusivo da obra de arte, podendo ocorrer, por exemplo, numa paisagem , que aparece num filme aos olhos do espectador, ele afeta a obra de arte num núcleo especialmente sensível que não existe de tal modo num objeto da natureza: sua autenticidade. A autenticidade de uma coisa é a quintessência de tudo que foi transmitido pela tradição, a partir de sua origem, desde sua duração material até o seu testemunho histórico. Como este depende da materialidade da obra, quando ela se esquiva do homem através da reprodução, também o testemunho se perde. Sem dúvidas, só esse testemunho se perde, mas o que desaparece com ele é a autoridade da coisa, seu peso tradicional (BENJAMIN, 2012, p. 182).
Tendo em vista essas considerações, pode-se afirmar que a história oficial do samba como gênero musical reside então na sua história como canção passiva de ser reproduzida tecnicamente. Afinal, a gravação de “Pelo Telefone”, mais do que um “marco zero” do samba, representa que sua veiculação não depende mais do atrelamento do gênero para com o espaço urbano. Mais do que isso, condicionado a uma padronização pelos meios de reprodutibilidade técnica, o samba modifica sua estrutura para assim se adaptar a essas tecnologias. Ainda sobre “Pelo Telefone”, é notório que não se trate da reprodução pura e simples de uma das canções veiculadas na casa de Tia Ciata, mas sim uma reunião de diversos temas que eram cantados ali. São pequenas composições que como o próprio Donga admite: “não pertencia a ninguém e o desenvolvi... (DONGA apud SANDRONI, 2012, p. 121)”. Por desenvolver, Donga quer dizer que esses motivos líricos e melódicos seriam