Manuscrita #2

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INQUISIÇÃO Quem se habilita a pular fogueira no arraiá eólico de Felipe Neto?

EN GARDE Brincamos de tiro ao alvo com o inquestionável

DEXTER Uma lista de presentes para o nosso serial killer favorito

PERFIL Michel Melamed: do satélite ao pão de queijo

VIN GAN ÇA

Com a bênção de Guy Fawkes, explodimos o Parlamento da Banalidade

revista mais do raro



manifesto A

ssim como Guy Fawkes, os manuscritos foram traídos.

Subjugados em ciladas calculadas, foram vítimas da vaidade dos algozes que se indignaram diante do seu brilhantismo. Torturados individualmente, o clã de raridades foi barbarizado, sem chance de resistência. Armadilhas vis de diabos sem chifres que se apresentam sob vestes rosadas, abusando da confiança dos que visam destruir sem deixar vestígios. Tiranos imorais que fazem de vocativos carinhosos seus laços convidativos. Derrotados inconformados que censuram quem os ofusca. Os manuscritos foram dispersos em becos sem saída, com corpos e almas dilacerados, à mercê de feridas rasgadas, dores lancinantes e do cheiro metálico do próprio sangue. Remember, remember, the 5th of November, os manuscritos ouviram ao longe. Não sabiam quem os chamava, mas sentiam o hálito de pólvora na voz que os despertava. Lentamente, começaram a se desprender de suas dores. As peles refizeram-se, fechando as chagas e marcando-os com cicatrizes indeléveis, numa lembrança da emboscada sofrida. Renascendo do seu próprio caos, o exército de raridades conclamou-se pela segunda vez, despindo-se de couraças por saber que

manuscritos unidos se bastam, protegem e garantem. Seus elos, permeados pelas cicatrizes recém-impressas, em carne viva, cedem passagem ao chamado de Guy Fawkes e transformaram-se em capa, lâminas e máscaras. Com a ferocidade de uma alcateia, os sobreviventes multiplicaram-se em campo aberto, assolando a corja que os subestimou. Justiça começa a ser escrita em tinta fresca, letra corrida e ímpeto latente. Edckson e a mira implacável; Paulo e a velocidade da luz; Vera e a fúria incontida; Pawel and the unforgettable fire; Yasmine e a sua natureza camicase; Cristiane e as asas da Fênix; Amanda e a visão em infravermelho; Thamiel e a espada moura; Erika e o rugido destemido; André e sua nitroglicerina pura; Juarez e a maestria das torturas; Pedro e a sede de barbárie; Saravá e a vingança maligna; Hugo e o instinto animalesco; Maçao e a doçura venenosa; João Paulo e a truculência erudita; Patrícia e a ironia cortante; Gilbert e a bravura empírica; Sayeg e a força de um exército. Em pólvora, os manuscritos raros começam sua posteridade e, com máscaras de sorrisos enviesados, perpetuam suas vendettas.

Bijou Monteiro

fundadora e editora



Remember, remember the 5th of November The gunpowder treason and plot. I see no reason why gunpowder treason Should ever be forgot. Guy Fawkes, ‘twas his intent To blow up King and Parliament. Three score barrels of powder below, Poor old England to overthrow. By God’s providence he was catch’d With a dark lantern and burning match. Holloa boys, holloa boys, let the bells ring! Holloa boys, holloa boys, God save the King! Hip hip hoorah! Hip hip hoorah! A penny loaf to feed the Pope. A farthing o’ cheese to choke him. A pint of beer to rinse it down. A faggot of sticks to burn him. Burn him in a tub of tar. Burn him like a blazing star. Burn his body from his head. Then we’ll say ol’ Pope is dead. Hip hip hoorah! Hip hip hoorah!


editorial

H

á quem diga que a parte mais difícil é o começo. Se os obstáculos continuarem proporcionais ao nosso lucro, logo publicaremos a centésima edição da Manuscrita. Mas, por enquanto, estamos no segundo degrau. E, cá entre nós, nem precisamos de elevador. Depois de um grande debut, nosso time de colaboradores está ainda mais afiado. Temos ânsia pelo raro, por mais do raro. Como diria o grande Don Ramón Valdés, “a vingança nunca é plena, mata a alma e a envenena”. Arriscamos ir além desta famosa frase. O que há por trás de uma triunfal desforra? E pela frente? De ladinho? Caríssimos, apelamos até para um microscópio. Com várias matérias sobre o tema, a Manuscrita faz uma viagem ao sombrio e corajoso mundo de Guy Fawkes. E se você não chegou a tempo de pegar o bonde, podemos transformar qualquer dia do ano num épico 5 de novembro. Não importa se a vingança é sangrenta ou ingênua, destrinchamos o mote e revelamos os mais secretos personagens. Temos detalhes preciosos do clássico moderno V for Vendetta, uma consulta aos nomes mais intrigantes da mitologia, relatos de episódios colossais, um manual para sobreviver no meio dum tiroteio de uma bala só e uma grande descoberta: a vingança é um prato que se come com geleia de pimenta. Mas não é só de vendetta que vivem nossos manuscritos. Eles também estão românticos nesta edição... Sim, o amor está no ar. Tudo bem que você pode até precisar de uma máscara para não morrer de asfixia, mas este sentimento brutal foi muito bem dosado nas próximas páginas. Figuras ilustres estão por aqui. Você conhecerá um muito mais sobre Michel Melamed, Daniel Daibem e Felipe Neto. Este último, também conhecido como o rei da cocada youtúbica. Cultuada obra de Park ChanWook, o filme Lady Vengeance ganhou espaço nobre nesta edição. Também vamos passear por dois seriados que dão o que escrever: Glee e Dexter. Se a pedida é humor marrom (isso mesmo, da cor de...), Marcelo Saravá dá conta do recado com suas tirinhas sem desenho. Se é para flagrar um mascarado nas ruas, ninguém melhor que o nosso correspondente internacional - o fotógrafo Pawel Litwinski. E por falar em correspondente, o radar da Manuscrita estava ligado no mega festival SWU e no aguardado lançamento do mais recente filme de Arnaldo Jabor. Acredite: é raro encontrar coberturas assim. Tudo em sincronia, à espera do seu clique. Aproveite. Sussurrando baixinho o ‘remember, remember...’ ou em silêncio, para que o felino não desperte. Edckson Félix

editor


expediente OS MANUSCRITOS Amanda Souza

amanda@manuscrita.com.br

Novembro de 2010

André Oliveira

andre@manuscrita.com.br

Bijou Monteiro

bijou@manuscrita.com.br

Cristiane Sita

cristiane@manuscrita.com.br

Edckson Félix

edckson@manuscrita.com.br

Erika Bueno

erika@manuscrita.com.br

Franklin Dassie

franklin@manuscrita.com.br

Gilbert Antonio

EDIÇÃO Bijou Monteiro

bijou@manuscrita.com.br

Edckson Félix

edckson@manuscrita.com.br

Paulo Segundo

paulo@manuscrita.com.br

gilbert@manuscrita.com.br

Hugo Mendonça

hugo@manuscrita.com.br

João Paulo Sá

joaopaulo@manuscrita.com.br

Juarez Cruz

juarez@manuscrita.com.br

Maçao Filho

macaofilho@manuscrita.com.br

PLANEJAMENTO EDITORIAL E DIAGRAMAÇÃO Edckson Félix

edckson@manuscrita.com.br

Marcelo Saravá

sarava@manuscrita.com.br

Marcelo Sayeg

Foto de capa: Pawel Litwinski

marcelo@manuscrita.com.br

Patrícia Coelho

patricia@manuscrita.com.br

Paulo Segundo

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sirva-se: Silêncio Michel Melamed despido de máscaras

Amor anacrônico Quando os losers ganham caricaturas heróicas

Fegatello

Preparar, apontar... Fogo! Sonhos de amor numa noite de primavera

I want to rule the world

Filhos de artifício Remember, remember... The Fifth of November

A walk to remember November O desejo de que o outro se dê mal acompanhado do prazer que você sente quando isto acontece

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Mitologia e vingança A vingança pode ser um bolo amargo de tofu

In Dexter I Trust

Conto de fadas Conexões imperfeitas e vinganças requintadas

Tora! Tora! Tora!

Eu me mordo de ciúme

Amores conturbados

Entrevista: Daniel Daibem

Pelo menos 10 minutos

Grená Com quantas twittadas se cobre um festival?


o que temos pra hoje? colunas

188 Diálogos Notívagos Comigo Mesmo

190 Consultório Sentimental

192 Papo de Mãe

194 Cozinhando com Mademoiselle Bijou

seções

196 Sátiras - Tiras Sem Desenho

200 Duelo de Mixtapes



SILÊNCIO por THAMIEL DUAIK

Se esses parênteses Pudessem me proteger Trariam a força Que exerce a fusão E as palavras, Quase sempre treinadas Para ser o que são, Seriam mais de um vício Seriam a solução. Se esses parênteses Pudessem se conceber Teriam o volume De uma criança; Epitáfio secreto Lacrado no concreto Do meu olhar. O contingente de todo o mundo Seria a esperança de um único dia. E ninguém jamais saberia.

Este poema ficou em primeiro lugar entre as menções honrosas no II Concurso de Poesia OABSP e União Brasileira dos Escritores-UBE, em 2005.


por BIJOU MONTEIRO com colaboração de YASMINE COLUCCI

M

ais do raro é o jeito de Michel Melamed rir. E como ri. Presença solar que reconforta suas inseguranças, acalenta seus propósitos e elucida suas dúvidas. É exatamente assim que se manifesta. Conversou comigo como se fosse minha companhia mais constante, e o fez com a simplicidade de quem toma café em minha cozinha. Meu tempo com ele era curto. Uma pena. Ouvir o riso daquele sotaque cantado fazia cócegas em meus ouvidos. “Fiquei encantado pelo ‘mais do raro’. Isso me remete a não fazer o ordinário e a convidar os olhos ao delírio”, Michel fala de mansinho. Me vem à mente o que ele tem por ser um manuscrito. “A medida da vida é a paixão. Tudo só faz sentido quando procuramos o que é inédito, pressupondo o ris-


Michel Melamed

DESPIDO de máscaras co e o abuso. Quando falamos da intensidade das coisas, é pra matar ou morrer. Cada um tem a sua identidade no mundo e, no mesmo dia, alternamos nossas esferas para o que queremos oferecer”. Michel define melhor a revista do que eu mesma. Típico de quem pega as coisas no ar. Já que é novembro e as máscaras de Guy Fawkes são o dress code da nossa festa, Melamed, o convidado de honra, se permite divagar. “Nós somos milhares num baile de máscaras e em nossas incoerências. A máscara laica parece tátil, como se fosse capa entre as coisas. Ela está lá para aumentar o escopo da comunicação. As máscaras potencializam as pessoas que nelas se aprisionam. Há até quem em máscaras se soterre e a história delas está presente em todos os arquétipos. Já pensou em Hamlet, por exemplo, entregando jornal na sua casa? Palavras são traduções e não o sentimento em si”.


Eu, escritora, entendo perfeitamente o que Michel, artista e arteiro, diz. Nosso papo é metafórico, mais para ser sentido do que para fazer sentido, e tem cheiro de poesia improvisada. Muda o assunto e começamos a falar sobre dinheiro. Além de compor a tríade criada por Michel (“Regurgitofagia, Dinheiro Grátis e Homemúsica”, respectivamente), é o preço que se paga – ou que custa, se assim você preferir – para difundir a arte. “O ideal é não ser inflexível e negociar com os seus próprios limites. Fernanda Montenegro é o exemplo máximo de quem cruzou fronteiras, negociando consigo mesma. A questão financeira não pode ser cristalizada por nos testar o tempo todo. O passar do tempo, aliás, é astuto, e nós nos deixamos torturar por ele”. Se Michel padece de bloqueio criativo? “Não. Nem sei o que é isso. Me sinto como um latifundiário dos desejos e quero fazer do satélite ao pão de queijo. Vivemos seduzidos por muitas coisas que queremos fazer e eu ainda tenho muito para realizar. Sonhar é a melhor coisa do mundo e a realidade se torna brilhante ao sobrepor o sonho. Como seria possível realizar algo sem antes ter sonhado a respeito?” Concordo, obviamente. Ele, um tagarela eloquente, responde antecipadamente o que eu tenho pronto para disparar. Alguns chamariam de “leitura de pensamento”. Eu prefiro dizer que é presença de espírito. Se ele pode falar sobre o novo trabalho e o lançamento que se aproxima? Um pouquinho. “Esse projeto (‘Afinal, o que querem as mulheres?’) está no nível na fisicalidade, sendo mais emoção do que razão. Me dedico a ele desde fevereiro desse ano, escrevendo a série que e esta sendo dirigida pelo Luiz Fernando Carvalho. A ideia nasceu de um encontro dom o Luiz, sendo o meu segundo trabalho com ele. Sou muito apaixonado pelo que faço, o Luiz também e, desse encontro, nasce a paixão e o encantamento pelo mundo. A série é sobre homens e mulheres. O meu personagem é o homem-menino até ele constituir-se inteiramente como homem e crescer”.

Dinheiro Grátis


Mal sabe o Michel que esse é o desejo mais recorrer de muitas mulheres. Pensando melhor, ele sabe. Além da tal presença de espírito, Michel tem olhos tão atentos que parecem girar em suas órbitas, em todas as direções concebíveis. O mundo é um espetáculo que nosso homem-menino observa com lupa.

Campeões de Audiência

De tão reflexivo, fico em dúvida se Michel psicanalisa - mesmo que inconscientemente - em suas criações. “Eu penso muito sobre as coisas, mas em forma de metalinguagem e não psicanálise. Abordo as coisas de várias maneiras, mas sem nelas procurar atos falhos. Aprecio a vida de maneira ampla, como, por exemplo, pessoas com ou sem fé ou te com ou sem mascaras. No meu programa (‘Campeões de Audiência’), eu pego um tema e peço que muitos profissionais diferentes olhem para ele. Uma cadeira, se você pensar, pode representar um objeto para um arquiteto, um movimento para um sambista (mexer as cadeiras) e um cargo para um político (ocupar uma cadeira). A minha necessidade humana está ligada ao fato de ver as coisas se renovando, envoltas em novas perspectivas que me encantem”. A conversa está ótima e eu não quero que Michel vá embora. Ele também não quer ir. O lançamento de seu CD, também bastante próximo, aguça minha curiosidade. “O CD é baseado no meu espetáculo ‘Homemúsica’. Eu gosto de fazer música, já tive banda e agora só preciso terminar de colocar voz no CD”. Se a voz de Michel já soa cantada enquanto ele fala, me pergunto como será quando ele sair do estúdio. Resolvi guardar a inquietação comigo, no entanto.

Homemúsica

Agora sim é hora de se despedir. Michel tem seus projetos para finalizar e eu uma revista para editar. Acenamos um ‘tchauzinho’ ao cair da tarde, onde o riso solar dele cede espaço ao anoitecer. Esse entardecer revela não só que preciso de um café fresquinho, mas que Michel é manuscrito natural e visceral, o mais do raro em carne, alma e sorrisos. E até em presença de espírito, me acompanhando até a cozinha.


Amor

ANAC


por MAÇAO FILHO

D

uas e meia da manhã. Era pra eu estar com meus amigos agora. Dançando, bebendo, beijando alguém que provavelmente nunca mais verei, como se fosse o maior amor de toda a minha vida. Talvez até mesmo indo pra cama com esse alguém. Sendo impulsivo e inconseqüente, como muitos esperam que um rapaz solteiro, de vinte e um anos, seja num sábado à noite. Sendo quem eu era antes de você, enfim, aparecer. Aliás, falando nisso... Era pra ser hoje, lembra? Nosso aniversário de cinco anos de namoro. Tínhamos combinado aquela viagem para Garopaba. Só nós dois. Curtindo a praia, o mar e toda a liberdade que sempre se fez tão ausente quando mais precisávamos dela. Não consigo pensar em nada tão perfeito quanto isso. Seria um caso claro de felicidade irrevogável e mais do que merecida. Teria sido como você sempre disse que queria. Nós dois passando as noites na praia e depois vendo o amanhecer no mar. Não existe espetáculo mais bonito do que ver o sol colorindo as ondas de manhã cedo, você dizia. Sorrindo como sempre, claro. O céu em tons indescritíveis de amarelo, rosa e azul. Não importa quantas vezes você já tenha visto. Cada aurora é sempre como se fosse a primeira. E eu me encantava completamente pelo seu jeito de fazer as coisas mais simples parecerem tão incríveis. Não que fôssemos perfeitos. Claro que não tenho essa ilusão. Sempre estivemos um tanto longe disso e nessa viagem, com certeza, não seria dife-

CRÔNICO


rente. Perdi a conta de quantas vezes tivemos discussões idiotas por razões absurdas. E provavelmente uma ou outra acabaria acontecendo, mesmo lá, no nosso paraíso particular. Mas superaríamos, como fizemos tantas e tantas vezes antes, e depois riríamos juntos de toda a nossa infantilidade. E você me beijaria e diria eu te amo tanto, seu bobo. Teríamos, finalmente, algum tempo para aquelas aulas de violão que você sempre me prometeu e a correria de nossas agendas nunca permitiu. E eu poderia trabalhar naquele meu romance inacabado enquanto você surfasse. Nos encontraríamos ao cair da tarde, na casa de praia dos seus avós, que, por alguns sagrados dias, seria a nossa casa, o nosso canto. Só nosso e de mais ninguém, amor. Vê? Ainda não perdi o hábito de te chamar de amor. Nem sei se vou realmente ser capaz de fazer isso algum dia. E, sim, eu sei que não me faz bem algum ficar preso a nós dois, que a vida não pára e tenho de seguir em frente. Acredite, já ouvi todas as variações possíveis de clichês como esse. Todas mesmo. Afinal, já faz mais de um ano. E meus amigos, cada vez mais preocupados, têm medo de que eu não pare de esperar que você volte para mim. Acontece que eles não entendem. Nunca vão entender. Não entendem que o cara que eu era antes de você não vai voltar mais. Nunca vão entender que, sem você, o meu jeito de ser é te esperar. Foi assim desde quando nos conhecemos e assim continua sendo. Eles não sabem o que é encontrar em outro alguém um pedaço seu, até então desconhecido, e perceber que era isso que sempre faltou para que a vida fizesse sentido de verdade. Se soubessem, entenderiam que eu não tenho como aceitar que a nossa história tenha acabado. Eu ainda te amo. E continuo amando mais e mais, a cada segundo que passa, porque sei que não há nada e ninguém que nos possa afastar um do outro. A distância e o tempo podem me manter prisioneiro o quanto quiserem, mas o nosso amor nunca respeitou limitações e, certamente, não o fará tão cedo. Não importa o que possa acontecer enquanto te espero. Sei que ainda vamos nos reencontrar e isso me é mais do que o bastante. Ainda vou te abraçar e te beijar como tenho sonhado em fazer todas as noites nos últimos meses. Como eu fazia antes daquele acidente de carro te levar para um lugar além do meu alcance. Eu sei que vou. Isso é uma promessa, amor. Onde quer que você esteja, acredite em mim. Por que eu ainda acredito em nós dois. E, não importa quanto tempo leve ou quão interminável essa noite pareça ser. Ainda veremos juntos a aurora. Como se fosse a primeira vez.



LO


Quando os

OSERS ganham caricaturas her贸icas

por BIJOU MONTEIRO


E

u me pergunto o que Aretha Franklin sentiria se soubesse que sua versão adolescente se chama Amber Riley, sendo esta uma das vozes mais promissoras do seriado que encabeça essa matéria. Talvez Aretha sequer seja uma telespectadora, mas, caso você também não o seja, eis aqui um breve apanhado do que concerne Glee, a rebelião dos losers em forma de TV show. Era uma vez o professor Will Schuester, um misto genérico de Justin Timberlake e bom samaritano, que mantém um casamento infeliz (“Me arrependo de viver uma relação que não funcionava, permitindo que ela me deprimisse sem revidar”, ele mesmo define) com a namorada que conheceu na adolescência, sendo que ela, para não perder sua união fracassada, finge-se de grávida. Schue, como é carinhosamente apelidado, faz de tudo para viver sua adolescência tardia em plena vida adulta, mascarando seus limbos profissional e pessoal, ao montar a boy band The Acafellas, algo mais deprimente do que Another Level, onde somente Will canta e dança apropriadamente. Contudo, quando seu ego demanda algo mais deprimente do que apenas um quarteto falido, Schue restaura o Glee e, nele, revive sua velha infância. Nos tempos áureos de colégio Willian McKlinley, local onde leciona o Timberlake cover, o clube mencionado era frequentado por estudantes que sonhavam com o estrelato, mas, como nenhum ex-membro alçou voo, o Glee foi resgatado por Will e suas últimas esperanças de fugir do ostracismo. Para tal empreitada, o professor conta com a ajuda de Rachel, a judia narigudinha, megalomaníaca e virgem, que sonha em ser Barbra Streisand quando crescer;

U Can’t Touch This

Another Level - Be Alone No More


Finn, o bonitão acéfalo da escola, que se sente pressionado demais por ter que administrar o time de futebol, os ensaios do Glee e, ainda, as partidas noturnas de vídeo game; Quinn, a líder de torcida com ares de Barbie, namorada de Finn, presidente do “Clube do Celibato” e que, nas horas vagas, aterroriza Rachel e mais algumas contempladas do colégio; Puck, o delinquente adolescente e melhor amigo de Finn, também jogador de futebol americano e, para honrar sua fama de mau, colecionador de cheerleaders, tais como Quinn e suas coleguinhas saltitantes; Mercedes, a negra gordinha, estilosa e segura de si, que, embora sendo uma solista superior a Rachel, vive à sombra do cosplay de Betty, a Feia; Kurt, o gay recém saído do armário, tão caricato quanto uma personagem do Zorra Total. É apaixonado por Finn e incrivelmente bem aceito por seu pai, um mecânico machão, truculento e defensor ferrenho de seu filho único; Tina, a oriental oscilante entre ser uma harajuku girl e viver fantasiada de bruxa, comemorando o Halloween diariamente; Artie, o paraplégico gente boa, que sonha poder um dia dançar e, enquanto isso não acontece, namora Tina e toca guitarra para abstrair; Santana e Brittany, as cheerleaders esperta e burra, respectivamente, sendo a segunda a dançarina mais incrível do clube. Artie - Safety Dance

Formando o ‘dream team’ (sic), com a intenção de competir no concurso nacional de corais, tem início, paralelamente, uma novela mexicana nos moldes de ‘Malhação’, mas com nuances de Gilberto Braga e que, a todo instante, coloca em xeque a estabilidade do Glee.


A sucessão de fatos? Aperte os cintos porque o fast foward é rocambolesco. Quinn engravida de Puck e mente que o filho é de Finn; o casamento de Schue está por um fio e sua mulher forja estar grávida, já planejando adotar o bebê de Quinn; Mercedes se apaixona por Kurt, mas se desencanta o descobrir que ele só tem olhos para meninos; Rachel, que nesse ínterim já ficou com Finn, descobre a verdade sobre a gravidez de Quinn e planeja revelá-la para fisgar o bonitão; Kurt consegue uma vaga no time de futebol americano, visando impressionar o pai, ao som de Single Ladies; Sue Sylvester tenta, reiteradamente, acabar com o Glee. E eis o ponto alto da série. Todo enredo carece de um vilão, mas, nesse caso, como temos losers demais em cena, surge uma treinadora de cheerios austera, injusta, preconceituosa, feroz e intransigente, ou seja, uma hidra com muitas cabeças para que nenhum membro do Glee seja perdido de vista. Essa é a Sue de quem lhes falei. A graça não está na treinadora perseguir o clube para destruí-lo (e, assim, ter mais renda para suas cheerleaders), mas na atuação audaciosa de Jane Lynch. Cáustica, drástica e mordaz, ela é o refresco ardido de um seriado com dramas opacos, cheirando a Ploc de tutti frutti. Já tendo situado você, leitor manuscrito sobre a o assunto em pauta, é chegada a hora de avisar: Glee é um clube de minorias caricaturadas, expostas em contextos e dilemas banais e, de quebra, salvas por elos benevolentes que somente a música desperta. Não há dúvidas de que a arte direciona vidas, contudo, mesmo que falemos de uma obra teenager ficcional, é legítimo questionar o conteúdo (ou até a falta dele) na série que dissemina a Síndrome de Peter Pan como a salvação dos excluídos.

Single Ladies

Vogue



Glee é um festival interminável de personagens que se chantageiam emocionalmente, falsos moralismos e romantizações de questões tratadas quase que levianamente. Rachel, por exemplo, é a garota cafona, sedenta por aplausos e que, mesmo intragável, fica com os garotos mais bonitos da série, passando a perna nas cheerios; Mercedes é perseguida pelas líderes de torcida e, posteriormente, torna-se a fiel escudeira de Quinn, quando própria é expulsa de casa; Schuester é a figura paterna que defende os glees de Sue, a megera indomável, sem que isso o comprometa a deixar a zona de conforto que escora suas frustrações. O professor, aliás, ao ver seu casamento desmoronar, envolve-se com Emma, a conselheira paranóica do colégio e que, virgem aos quase 40 anos, oferece soluções enlatadas – e eficazes (?!) – aos estudantes que a procuram. Kurt é o gay que, ao assumir cedo sua orientação sexual, é prontamente acolhido pelo pai bronco e, ainda, tem seus luxos inteiramente bancados. Detalhe: pela modesta renda de uma oficina mecânica, veja bem. As cheerleaders, apontadas especialmente por Rachel como ‘imorais’, encontram no clube refúgio, felicidade e razões de viver. Glee é um antro digno de causar vergonha alheia em qualquer ser de fato pensante, no

entanto, em meio a cantorias intermináveis, quase passa batido que o contexto envolve losers buscando visibilidade, projeção social e a solução dos seus dilemas inconsistentes. A ideologia subliminar do clube (“Glee requer coragem, fazendo você ser fiel ao que importa”) traz – ao final de cada episódio – uma nova moral da história, como se alfabetizar seu público adolescente, com uma cartilha pouco plausível, fosse preciso. Esse é o eixo central: nossos jovens não merecem padecer no limbo da ignorância, sendo poupados, reiteradamente, do amadurecimento que lhes deveria ser inerente. A sucessão de dramas rasos, questionamentos vazios e soluções irrisórias, subestimam a linha que separa uma produção leve e despretensiosa de outra com desfechos boçais. Com edição supersônica, erros de continuidade e sequências explicadas a esmo para seus telespectadores, Glee parece um macarrão instantâneo, que até fica pronto em três minutos, mas só retarda a fome, ou, nesse caso, o crescimento de quem o acompanha.


Justiça seja feita, o referido freak show teenager merece que, ao contrário de seu roteiro, a parte exclusivamente musical seja ressalvada e com menções honrosas. Enquanto cantam, dançam e se espalham em cena, os glees são brilhantes, repaginando deliciosamente os clássicos da cultura pop/rock. O seriado, com exceção Rachel e seus solos enjoativos, hipnotiza quando Mercedes, Kurt, Artie e até Sue arejam a trama cantando Madonna, MC Hammer e até Billy Idol. Aliás, Glee certamente se pouparia do ridículo – mesmo propagando orgulharse de tal adjetivo – caso a série consistisse apenas em releituras musicais, e não se propusesse salvar os losers deles mesmos. Se estou dizendo que perdedores devem se conformar com suas condições? Não. Mas estou afirmando que não se vislumbra ascensão social/profissional induzindo jovens ao coma, ou seja, fazendo-os crer que a felicidade gratuita bate à sua porta quando se negligencia a vida adulta. A arte é feita para despertar pessoas de suas misérias e não deixá-las ainda mais tapadas, contentando-se com empregos ruins, relacionamentos falidos e retardamentos emocionais. Se Glee é a vingança dos derrotados (“Minha vida está uma lástima, mas pelo menos eu assisto Glee”), receio ter que avisar que Optimus Prime não aparecerá para proteger oprimidos dos decepticons. O seriado é uma tentativa de resgatar os antigos musicais e viabilizá-los de forma moderna, contudo, perdeu-se a noção de que nenhum musical massifica demência como estilo de vida. Você não resolve seus dramas adolescente ao identificar-se com as sucessivas baboseiras do TV show. Você apenas se resigna, entregando os pontos, e justifi-

4 Minutes

U Can’t Touch This

Dancing With Myself

cando-se ao dizer que ‘sonhar é conseguir’, assim como preceitua-se em Glee. Mesmo que de maneira equivocada, o raciocínio de Sue é que o clube não é uma família de geeks incompreendidos, mas um aglomerado de crianças que sonham-se como sneaker freaks de sucesso, longe do anonimato em que vivem. Glee é o retrato dos finais felizes que as minorias, presentes no enredo, gostariam de ter sem esforço relevante. Continuo sem saber se Aretha, de alguma forma, já se viu na TV ou se identificou com Mercedes, a Amber Riley citada inicialmente. Mas sei que pouco do seriado se salva – tal como Artie, Kurt, Sue e a própria Mercedes – e que, se a intenção de Glee era propagar que é chegada a hora dos losers mostrarem o seu valor, a tentativa apenas maquiou precariamente suas mazelas, varreu para debaixo do tapete sujeiras diversas e subestimou sua necessidade de amadurecer.


Renunciation by MISHA GORDIN

“People don’t know how to love. They bite rather than kiss. They slap rather than stroke. Maybe it’s because they recognize how easy it is for love to go bad, to become suddenly impossible... unworkable, an exercise of futility. So they avoid it and seek solace in angst, and fear, and aggression, which are always there and readily available. Or maybe sometimes... they just don’t have all the facts”.

Memorable quotes for “The Upside of Anger” (2005)


“E

u não vou me dobrar”, pensei, tentando não flexionar os joelhos um milímetro sequer. Tenho cá os meus brios. O grito, entretanto, eu não contive. Soou assombroso, soou como era. A dor acachapante partia de algum ponto nas minhas costas, logo acima do fígado. A lâmina não chegara a atravessar, de modo que eu não podia ver a ferida, tentar dimensioná-la. Uma típica abertura agressiva da Escola Romântica; essa de atacar o Rei no seu ponto mais frágil, seu “fígado”, o peão em f7. Foi um dos primeiros movimentos que ensinei a ele, bem lembro, quando ainda éramos crianças. Tempos depois ele se tornou um enxadrista muito melhor do que eu. Todo enxadrista é um grande estrategista, assim dizem.

FEGATELLO por PATRÍCIA COELHO


Quando ele puxou o punhal de uma só vez, foi aí que eu caí no chão. Ele chorava bastante, ao passo que me enrolava em um tapete gasto e imundo, debruçado sobre mim de tal modo que duas ou três de suas lágrimas escorreram pelo meu rosto, molhando o canto da minha boca e salgando a minha língua. Aquele gosto ácido-travoso. Desculpou-se muito, antes de empurrar o rolo que fez colina abaixo. Eu ouvi o carro arrancar logo em seguida. Depois não ouvi mais nada. Todo o sofrimento fez-me surdo. Uma das costelas se partiu no primeiro impacto contra as rochas que desciam até o rio. Outras duas um pouco mais adiante, enquanto a correnteza arrastava-me quilômetros à frente. Não se pensa em nada quando à beira da morte, eu posso afirmar. Não vi nenhum filme da minha vida passando em um segundo, não lembrei o rosto de nenhum ente querido me sorrindo. Um grupo de escoteiros, em um desses acampamentos de verão, encontrou-me na manhã seguinte, sobre algumas pedras próximas à margem. Foi minha mãe que contou aos policias sobre o bilhete de despedida deixado sobre a mesa. Os garranchos assumindo que um irmão atentara contra a vida do outro. Um filho morto. Ela entregou o papel amarrotado ao Delegado, com a tinta azul da caneta agora manchada pelo seu choro convulsivo; choro que só cessou quando lhe deram um daqueles barbitúricos que afetam a percepção das coisas. Saindo do hospital, onde fiquei internado por 35 dias (os mais morosos e difíceis da minha vida), eu soube que poucas horas depois de me julgar morto, meu irmão deu cabo da própria vida, consumido violentamente


pela culpa do fratricídio e pela tentativa de ocultação do cadáver que vos fala, como revelava em seu bilhete. É o fantasma chamado ilusão. Poder se vingar, dar na mesma medida, tentar remediar. Não existe tal coisa. Há quase cinco anos ele já não era o mesmo, eu podia sentir. Tudo mudou naquele fim de tarde quando dei carona para sua esposa e filho, meu único sobrinho. Foi minha cunhada quem ligou da escola, pega de surpresa pelo temporal na hora da saída, pedindo “um help” pro “tio”. Logo que entramos no carro, o pequeno afirmou - do auge de sua confiança infantil - não ter medo dos trovões; eles vinham em intervalos cada vez menores, anunciavam uma daquelas históricas tempestades de verão. Meu irmão estava preso do outro lado da cidade em um congestionamento mais histórico ainda. Eu não vi que o sinal estava vermelho, mas nunca admiti isso publicamente. O lusco-fusco, definitivamente, é um dos momentos críticos para um míope. Paguei regiamente o perito da seguradora, a fim de que ele garantisse, para todos os fins, que o freio havia mesmo falhado, exatamente como eu dissera. “Talvez o circuito eletrônico do módulo tenha queimado com o alagamento”, ele relatou, “afinal o ABS não é infalível”, arrematou. O caminhão acertou em cheio o lado direito do meu seminovo. A mãe estava virada para trás, atando o cinto de segurança de seu filho e, por isso, não estava usando o dela naquele momento. Eu sofri um arranhão superficial na testa e fiquei muito dolorido por uns dias, especialmente os joelhos. Mais nada. Os dois faleceram antes dos bombeiros e ambulâncias chegarem ao local. Todos eles descansam em paz e eu continuo vivo... nem tanto. Não poderia imaginar uma vingança mais bem-sucedida. Xeque-mate.


FO


Preparar, apontar...

OGO! por PAULO SEGUNDO

E

nquanto o filme “Tropa de Elite 2” prega que a corrupção, endêmica a qualquer forma de exercício de poder, é inescapável e sistêmica em nosso país, incitando uma espécie de Jihad civil, nossos candidatos, em plena campanha eleitoral, travestem-se de um cristianismo hipócrita ao levar a divindade para o rol da propaganda eleitoral, tornando temas verdadeiramente legítimos de discussão pela sociedade em escudos e lanças tanto dogmáticos quanto programáticos que visam, em última instância, a garantir a vitória eleitoral a qualquer custo. Enquanto o país sofre com altas taxas de criminalidade e sistema de saúde precário – não obstante inegáveis avanços nos últimos anos em variadas localidades –, a educação torna-se o pretexto mais conclamado para justificar o descalabro social, como se ela fosse a panaceia para todos os males, o emplastro machadiano que resolveria todas as mazelas. Raramente, reflete-se, mesmo que minimamente, acerca de quem são os educadores, para quê e em nome de quem educam ou ainda se discute sobre o papel que


essa atividade assume diante da sociedade multifacetada que nos engloba e digere e que vê suas autoridades questionadas em todas as esferas de atuação e conhecimento. Há algo de incômodo em toda explicação unilateral e monocausal. Há algo de incômodo na descrição de contextos inescapáveis. Há algo de incômodo na redução de questões polivalentes em dogmatismo pernicioso. E esta sensação de incômodo resulta justamente do fato de que elas tendem a se basear em verdades tidas como consolidadas e inegáveis, instaladas em um discurso pré-fabricado, sintético, ao qual as pessoas ou aderem ou são julgadas como revolucionárias, anarquistas, comunistas, pagãs ou ateias – valores que, em si, nada possuem de negativo, mas que são, correntemente, associados a graus variados de insanidade ou impropriedade. Num mundo em que a pluralidade cresce, o fundamentalismo, infelizmente, se destaca em defesa da unilateralidade e do obscurantismo. As questões que se levantarão são complexas e merecem uma abordagem bem mais aprofundada em relação ao que se fará aqui. No entanto, esperamos que ela fomente discussões profícuas que satisfaçam, em maior ou menor grau, minha sede de vingança. Em primeiro lugar, em que medida é possível afirmar que o período histórico em que vivemos é marcado pela pluralidade? Em segundo lugar, como é possível conceber o florescimento do fundamentalismo, aparentemente oposto à pluralidade, nessa mesma sociedade? E, por fim, quais as consequências psicossociais desta aparente contradição? Abordemos cada uma das questões de modo detalhado. Para isso, façamos um exercício de imaginação. Enxerguemo-nos em um vilarejo medieval, em um feudo – para os que gostam de referências temporais, tomemos o século X como exemplo. Somos camponeses. Sem possibilidade de mobilidade social, estamos presos a um modo de vida servil. Trabalhamos na agricultura e produzimos tanto para nossa sobrevivência quanto para o abastecimento do senhor feudal e do clero, que, em troca, nos garante “proteção” e “salvação”. Destituídos também de grandes possibilidades de mo-


vimentação geográfica, uma vez que os caminhos que levam a outros feudos e regiões costumam estar infestados de bandidos e animais nocivos e selvagens, praticamente vivemos nossas existências inteiras naquele ambiente, convivendo com os mesmos indivíduos e famílias, sob os mesmos costumes e rituais. Integramos uma mesma comunidade e, assim, vivemos sob a égide de uma mesma tradição, passada de geração a geração, considerada sagrada e inviolável. Nesse sentido, questionar-se, rebelar-se e opor-se à tradição é o mesmo que negar uma ordem de mundo constituída, é negar as próprias verdades com que se vive e convive há séculos, é contrariar a ordem divina, única explicação para o estado de coisas vigente. Em suma, trata-se de negar a própria identidade. Nesse sentido, o conflito com a tradição constituída consistia, em geral, apenas em um potencial, cuja manifestação prática era pontual, esparsa e, frequentemente, sufocada no curto prazo, uma vez que, para se poder questionar, torna-se necessário – ou, pelo menos, facilitador – travar contato com diferentes formas de pensar, agir e ser que funcionem como um novo paradigma, uma espécie de lente social que torne possível enxergar as limitações do estilo de vida em questão. Cerceada pela autoridade tradicional, a comunidade medieval vivia sob o “controle” de discursos, ações e identidades que lhes garantiam um sentido de pertencimento, uma visão de mundo parcial – e qual não seria? –, mas coerente para o contexto, uma normatividade engessante no que se refere ao modo de agir e, com isso, uma legitimidade para a própria estrutura social. As possibilidades são reduzidas ao ponto de quase se tornarem – ou, de fato, se tornarem – uma única para cada grupo social. Nessa perspectiva, o conceito de fundamentalismo não se adequa, na medida em que as possibilidades de resistência são mínimas. A tradição, totalitária, não precisa defenderse do que lhe é externo; logo, não necessita de uma reafirmação categórica. O advento da modernidade, com o Estado-nação e a imprensa, o desenvolvimento técnico-científico, especialmente no campo dos transportes e da comunicação e, por fim, a globalização criaram


– e ainda criam – um contexto totalmente diferenciado de vivência social, de modo que o contato entre tradições distintas obriga o ser humano a posicionar-se diante de diferentes representações, discursos e identidades não mais obrigatórios, mas possíveis. O local e o global se chocam e se complementam, e o indivíduo, inserido nesse embate, torna-se, inexoravelmente, reflexivo, em maior ou menor grau, sendo obrigado a constituir um projeto simbólico de identidade. O self, o “eu” precisa ser construído seletivamente. Com isso em mente, coloquemo-nos no lugar de um adolescente vivendo no Brasil atual (se você já for adolescente, ótimo. Uma atividade imaginativa a menos. Aproveite para verificar se o que digo faz sentido para você). Você nasce em determinada família e é educado sob certos valores e representações. É instruído a agir de determinadas maneiras e de ser e apresentar-se de acordo com certas premissas e paradigmas, tanto em termos de como se portar em público, quanto no que se refere a vestuário, ao modo de se dirigir aos mais velhos, etc. Então, você é inserido na escola, tendo contato com outras formas de atuação e visões de mundo. O mesmo ocorre na Igreja que você frequenta, no seu curso de Inglês, futebol ou dança. A internet e a TV fazem-no conhecer estilos de vida de outros locais e épocas, muitas vezes, mais interessantes para você. Aquela sensação de não pertencimento parece diminuir quando você encontra pessoas que pensam e agem de modo semelhante, em muitos casos, bem distantesde você em termos geográficos. Logo, você passa a questionar os valores locais diante dos valores externos. A seletividade começa e, enquanto você faz essas adaptações, surgem os conflitos, pois, em meio a esse processo de construção do self, as instituições em que você se encontra inserido iniciam um processo defensivo, baseado no temor de perder o controle sobre os seus membros e passam a tratar como nocivo e pernicioso todo discurso, toda ação e todo estilo que não encontre eco autoridade diante da potencial alternatividade, em suas bases ou verdades constiapela para o dogmatismo, executando explicações tuídas, tidas como inquestionáveis. unilaterais e monocausais, blasfemando e condeA reflexividade inerente ao indinando tudo o que lhe é extrínseco e fazendo panvíduo torna-se a foice que ceifa a fletagem contra o minoritário. Surgem as diversas tradição pré-constituída, e esta, a formas de fundamentalismo – religioso, político, fim de preservar-se sem perder sua econômico, cultural e o que quer que seja. O fundamentalismo reduz e simplifica todas as discussões, na medida em que assume premissas “verdadeiras” e “inquestionáveis” como sustentáculo de todos os argumentos. Como discutir acerca da união civil ou do casamento entre homossexuais, da adoção de crianças por esses casais, da possível descriminalização do aborto ou da legalização da maconha, se o argumento que embasa tudo o que é dito se reduz a “não ser a vontade de Deus”? A única maneira possível de discussão


seria questionar em que medida a vontade divina é, de fato, a apregoada aos quatro ventos ou, então, negar a própria divindade. De qualquer forma, a discussão se encerra, pois o caráter inquestionável da verdade fundamentalista não é explicado, não é elaborado; ele é simplesmente imposto e dado como um postulado intocável. Resistir a tais verdades implica ser excluído. O indivíduo que questiona a “vontade de Deus”, segundo os fundamentalistas, torna-se pagão, ateu e pecador, o que, para eles, é praticamente – ou exemplarmente – criminoso. Discordar é extremamente sadio e consiste justamente no motor da reflexividade, constituindo-se em um direito de todos – inclusive dos fundamentalistas em qualquer esfera de atuação; por outro lado, impedir e bloquear possíveis direitos e/ou deveres, pela incapacidade de admitir a alternatividade, é, certamente, excludente. Usando o exemplo inicial e aplicando raciocínio semelhante ao anterior, reduzir a solução das mazelas sociais, como desemprego e criminalidade, à questão educacional é atribuir aos professores e educadores de modo geral uma responsabilidade que não lhes é inerente. A educação não é a solução única para as questões sociais. É apenas um dos fatores relacionados a essas outras realidades, que, em última instância, dependem de elementos diferenciados de ordem econômica, política e cultural. Não se trata de uma verdade inquestionável. Não funciona como argumento de base, mas se trata de uma concepção constantemente invocada como premissa central para se discutir o assunto, como se fosse inegável e plenamente factual. Senso-comum e fundamentalismo podem fundir-se de maneira cruel e servir de alavanca para manipulação popular de toda sorte. Instituições de poder tentam tornar a pluralidade e a discórdia em crime, em pecado ou em insanidade e fundem tais verdades em senso-comum. A pergunta que fica é a seguinte: até que ponto vamos permitir que nos sejam ditados os caminhos que devemos seguir e que sirvamos de mão-de-obra gratuita, empregada para colocar placas que guiem outros a trilhar a mesma estrada, sem questionarmos se esse, realmente, é o trajeto em que acreditamos ser o certo, o satisfatório ou o lucrativo? Novamente, torna-se necessário refletir.


Sonhos de

AMO numa noite de primavera por CRISTIANE SITA


OR

M

inha última noite, aqui. A brisa da primavera roça as flores, apenas chegadas na varanda. Meus olhos marejam, mas é preciso seguir em frente. De pé olhando a cidade adormecida, revejo meus passos. Choro. Deito. O cansaço me embala rapidamente em sono profundo. É então que te vejo. Eu, deitada, na cama em desordem, semi-nua, atordoada de sono, de olhos entreabertos. Tu, com a samba-canção a te ritmar, olhar compenetrado, sentado a minha frente, na poltrona, a buscar o soneto certo, indubitavelmente. — Perdeste o sono? — Achei os versos. É diferente.

Ergueste os olhos claros e profundos. Buscaste fazer teu sorriso mais bonito, numa fração de segundo que durou toda nossa vida. Olhasteme com a mais profunda ternura e cheio de embevecimento. — Encontras inspiração nas horas menos possíveis, amado. — Acordas quando te prefiro dormindo, vida: teu sono repara o que te causei e eu resto vaidoso.

Ri. Poderia permanecer a te olhar por toda uma vida. — Preciso deitar em teus braços para me reencontrar com Morfeu. — Se te dou meu corpo, dormes outra vez?

Assenti, sorrindo. Sentaste desajeitadamente, mas parecias cômodo. Enlaçaste-me com um braço e uma perna, deixando livre metade de ti para escrever. Cantarolaste baixinho, com tua timidez costumeira, mas deslocada em teu amor maroto. — Vais dormir, agora, vida.

Te obedeci, como teu tom demandava. Abro os olhos, envolta em breu. Não tivesse te obedecido, não fechava os olhos para os abrir aqui no vazio deste lugar. Levanto-me. É a despedida perfeita da vida que não é mais a minha. Acendo o cigarro e me dou conta que nos nossos encontros, eternamente oníricos, sempre falamos em segunda pessoa. Seria assim se houvesse, algum dia, olhos nos olhos? Penso se teu sonho, quase sempre tão real, vai comigo na nova jornada, então sinto uma carícia leve na pele. Alguém desavisado diria que é o frio da madrugada. Mas eu, eu sei que é teu paletó buscando enlaçar meu vestido, respondendo-me que vais comigo. Saudade tua, Chico. Sorrio.


I want

TO RULE

the world Felipe Neto: o dono da verdade


por HUGO MENDONÇA

A

nova geração, ou melhor, pelo menos a minha que nasceu nos idos dos anos 80, se vê pendurada em computadores, iPods, iPads, Blackberries e todos os gadgets que possam nos deixar permanentemente ligados à internet. Até os mais velhos – sendo que os mais jovens dispensam comentários – perceberam que o clichê “navegar é preciso” se tornou um algo importantíssimo, especialmente para que estejam em contato com o que acontece ao redor do mundo. Agora é assim: qualquer informação que caia na rede se torna obsoleta em poucos dias e, dependendo de como e por quem for feita a divulgação, em apenas algumas horas. Hoje você vê um vídeo, acha engraçadinho e


quando vai passar para sua mãe, seu pai, seus amigos e sua tia Martinha, vira motivo de chacota por se divertir de algo que já perdeu a graça há 15 horas. Os neologismos chegam chutando sua porta por meio de blogs, vlogs, tumblrs, memes, trolls, RTs e favoritar. Pessoas pedem para você “add”, para você “curtir”, para você “seguir de volta” e até assinar o “feed”. Palavras perdem letras ou as tem substituídas por outras, de uma forma que seu significado permaneça. Pensar, para muitos, se tornou algo maçante, complicado e inútil. Com a grande leva de informações e facilidades para obtêlas na internet, surgiram os formadores virtuais de opinião. Apareceram de súbito. Quando você menos esperava, criaram estardalhaço no Youtube, fazendo críticas ácidas, roteirizando veemência ao defender suas opiniões e sustentando discursos inflamados, tanto contra as fãs quanto contra figuras que despontam no cenário teenager. A argumentação, na maioria das vezes, é rasteira. Eles, os formadores virtuais de opinião, criticam não só com o intuito de mostrar seus pontos de vista, uma vez que, o alvo é apenas diminuir os gostos e as opiniões alheias, mas sem abrir discussões. O que eles não percebem, no entanto, é que os adolescentes criticados, que gostam de Justin Bieber, Fiuk, Cine e afins, são os mesmos adolescentes que os admiram. Os jovens Felipe Neto e PC Siqueira disseminaram os vlogs que embasam essa matéria. O estilo de ambos, vale ressaltar, é diferente. PC Siqueira é mais cult e tranquilo, demonstrando seus pontos de vista de forma clara e, além disso, evidenciando que o fato de ele não gostar de modas teen não o obriga a falar mal dos que gostam, procurando, por meio de ofensas gratuitas, ganhar mais visualizações em seu canal. Felipe Neto, por sua vez, em abordagem oposta, utiliza tom ofensivo e ameaçador, como um ditador que tem na lavagem cerebral sua tortura favorita.

alto de seus 22 anos de experiência, diminuir os fãs das bandinhas coloridas, do garotinho com voz de menina ou da historinha de amor entre a menininha insegura e o vampirinho que brilha no sol. Vendo as críticas a Justin Bieber em seu canal no Youtube, espectadores munidos de bom senso tendem a pensar que, de fato, um menino de 15 anos estaria em processo de mudança de voz e não faz sentido – sem trocadilhos com o nome do canal – chamá-lo de virgem castrado, quando o próprio autor do vídeo não aparenta ser um poço de testosterona.

Quando aborda os temas da cultura teen, Felipe Neto faz questão de, no

Que fique claro: não sou adorador dos alvos das críticas de Felipe Neto, mas também



não acredito ser válido que qualquer pessoa desmereça quem goste, por motivos que não transpareçam nada além de ira contra adolescentes que agem como, pasmem, ADOLESCENTES. De acordo com nossa sub-celebridade virtual, Stephenie Meyer, autora da saga Crepúsculo, partiu para o óbvio e colocou em sua personagem principal todas as inseguranças femininas. Diante disso, a revolta de nosso implacável Thor é direcionada para meninas que esperam o príncipe encantado. Querida garota, Felipe Neto não quer que você, com seus 12, 13 ou 14 anos, sonhe com o príncipe encantado. Ele quer que você perceba que, ao fazer isso, “no cotidiano que a gente vive, você vai acabar morrendo gorda, sozinha, virgem, cheia de pôster de Crepúsculo colado na sua parede e fedendo” (sic). Não há espaço para uma narrativa fantasiosa. Vampiros são seres que já existiam (?!) antes das histórias de Crepúsculo, logo, Stephenie não poderia criar outro tipo de vampiro que não fosse incapaz de amar, que veio para nosso mundo (?!) para “se alimentar, amar e ter prazer” (sic). Oi, vampiros não existem. O mais curioso é que, no vídeo em que Felipe Neto fala de trolls, explicando o que são e até os categorizando, ele se enquadra numa de suas próprias categorias: o troll terrorista, aquele que critica pelo simples fato de criticar algo que está fazendo sucesso. Seja um cantor, uma banda, um humorista ou um filme. É lamentável que nosso Mr. T saia por aí exalando masculinidade, achando que seus argumentos depreciativos sejam válidos. Mais lamentável ainda é que, pessoas com algum grau de discernimento,


idolatrem e concordem com a coleção de asneiras que pipocam no Youtube de tempos em tempos. Telespectadores, leitores, observadores, consumidores, todos começam a se cansar de argumentar. Logo, esses grupos recebem, absorvem e digerem qualquer informação sem nenhum senso crítico. O que faz sucesso é bom. O que está à margem é ruim. Ninguém faz mais questão de apurar o que de fato acontece. Tudo tem que chegar mastigado o suficiente para que você repita opiniões de famosos na roda de amigos no churrasco de domingo. Quando a discussão se acalora e alguém esboça conhecimento sobre o assunto, demonstrando não ter preguiça de usar sua massa cinzenta, é hora de balançar a cabeça ou dar uma fugidinha para o banheiro. Amigos, cuidado. Nessa fugidinha, o banheiro pode estar lotado e o Felipe Neto não vai estar lá para te salvar do papel de bobo que você estará prestes a fazer.



Filhos de

ARTIFÍCIO


por PEDRO SFEIR DEL GIUDICE

E

finalmente os dias de maternidade no hospital acabaram.

Elizabeth subia de elevador para seu quarto de hotel com um pequenino bebê ao colo. Se o nome do pai fosse conhecido, aquele seria o seu. A média de nove meses de sofrimento e toda a burocracia enfrentada culminavam para satisfação de um momento que, minutos dali, tomaria parte. Com um apito, o elevador parou. As portas se abriram e foi pelo corredor a mais feliz mãe do mundo. O recém-nascido dormia em seus braços, envolto em panos macios, confortáveis. Uma pequena luz amarela outra verde. O cartão magnético foi retirado e, após o baque da porta, os dois encontravam-se em um quarto iluminado, invadido pela opaca claridade daquelas nubladas manhãs. Elizabeth deitou seu filho adormecido à cama. Contemplou-o por um momento com doce olhar que só mães desprenderiam. Virou-se e foi ao banheiro. Ligou o chuveiro e olhou-se no espelho por tempo suficiente

para que o vapor da água apagasse seu reflexo. Estava animada. Não continha-se de tanta alegria, tanto entusiasmo. Sob água quente, lavou-se. Ensaboou com cuidado a cicatriz de sua cesariana; quase sentiu o gosto do arrependimento por ter subjugado-se mais uma vez tal quadro. Previu quelóides e mais uma cirurgia plástica que as tirariam dali, em alguns meses. Os partos costumavam ser mais fáceis. Mas é claro. A gravidez, também. Nada simples encarar tal jornada naquela idade. E verdade seja dita: era grande privilégio que Elizabeth ainda continuasse capaz de ter filhos. Anos já passavam em que nossa mãe alimentava grotesco medo pela esterilidade, por um resto infecundo de vida. Mas aquelas eram aflições que podiam esperar, pois a uma parede de distância deitava-se a razão da vida, querido, amado, esperado como nunca. Terminou o banho, enxugou-se. Nua, saiu do banheiro. Abriu o armário e, de uma mala, retirou um tripé e um suporte. Fuçou


mais a fundo, tirou uma câmera de vídeo e um volumoso saco plástico. Deixou o saco sobre a cama, dirigiu-se à janela, afastou as cortinas, empurrou os vidros. A criança continuava imóvel, em sono. Elizabeth perguntou-se sobre como seriam seus sonhos. Armou o tripé e instalou a câmera, voltada para fora, num ângulo panorâmico. O quarto ficava no vigésimo andar do hotel e, abaixo, a vista era de uma grande avenida, congestionada e populosa. Curvou-se e ajustou as lentes. Desdobrou um grande saco de lixo, estendeu-o sobre a cama e sob o bebê, que acordava calmo. Suspirou, deu passos e empunhou a faca do café da manhã de uma mesa que já não importa. Sentou-se ao lado do filho e, automaticamente, despiu seu pescoço. Pressionou a lâmina contra a pequena jugular. Estancou certa quantidade de sangue. Fixou no momento em que a vida vazava dos pequenos olhos. Voltou a embrulhar o corpo, cobriu o rosto do bebê, virou-o, despiu-o da cintura abaixo. Separou as pernas, introduziu a lâmina no pequeno ânus. Torceu, retorceu. Enfiou os

dedos, semi-estripou o mini-cadáver com as próprias mãos. Alcançou o saco plástico. No seu interior, dentre algumas, escolheu uma banana vermelha de dinamite. Introduziu-a, com o pavio para fora, nas entranhas do infante morto. Pressionou mais adentro o explosivo até que estivesse plenamente fixo. Trouxe o cadáver a colo, andou à janela. Carimbou sangrenta impressão digital no botão “REC” da câmera. Pequena chama materializou-se de um fósforo e dividiu-se pelo pavio desencapado. Elizabeth calculou cinco segundos, de olhos fechados. Em seguida, para frente e ao alto, arremessou o embrulho. Rapidamente debruçou-se sobre o parapeito para vislumbrar seu entusiasmante pico anual. Uma explosão de vermelho, de amor. Que certamente iria para a videoteca e para o álbum. E com um sorriso no rosto, perguntou-se: “Existe, no mundo, mãe mais feliz?”



Remember, remember...

THE FIF TH of November! por ANDRÉ OLIVEIRA


T

odos temos um conceito de liberdade, ligado ao de felicidade, dentro de nós. No entanto, podemos nos enganar fatalmente com tal definição, que utilizamos como parâmetro incontestável para nossa vida mundana. O que é a liberdade? Ela está definitivamente ligada à felicidade? Qual o verdadeiro caminho necessário a traçar e quais as provas de fogo que precisamos passar para conquista-la? Há uma alternativa amena e sem ônus que possa ser perfeitamente programada e delineada dentro de nosso conceituado sistema sociológico? Um cara discorreu sobre isso certa vez e publicou uma revista em quadrinhos intitulada “V de Vingança”, que ,não por acaso, é a referência dessa edição da Manuscrita. Vamos conhecer um pouco mais sobre ela: Alan Moore, um escritor de quadrinhos, teve um insight estupendo junto a seu amigo e parceiro David Lloyd e criou uma história intitulada “V de Vingança” ou “V for Vendetta”, no original. O enredo se baseia nos eventos acontecidos com Guy Fawkes na Inglaterra do século XVII, quando este foi flagrado com explosivos numa tentativa de explodir o Parlamento e executar o Rei Jaime I a fim de pôr em prática seus ideais libertários baseados em sua ideologia católica extremista. A figura de Fawkes serviu como diretriz ideológica para o andamento da obra, que tomou rumos muito maiores e criou um cenário que se passa em uma Inglaterra futurista dominada pelo fascismo, onde câmeras detectam cada movimento dos cidadãos, leis são ditadas e toda e qualquer ação que subentenda desobediência e anarquia são severamente passíveis das mais terríveis punições. Assim, as pessoas que não se encaixam nesse modelo de governo, como judeus, homossexuais, prostitutas e negros, são simplesmente ceifador do convívio social e/ou executados... As inspirações de Moore e Lloyd vão desde George Orwell até Aleister Crowley, passando por David Bowie, Batman e Eva Perón, resultando em uma história estarrecedora e densa sobre liberdade, vingança e opressão.


Um herói não convencional A figura de Guy Fawkes se torna “V.”, o personagem-título da obra, que usa uma máscara sorridente, um chapéu e uma capa, e cuja história começa em um campo de concentração onde fora vítima de torturas e submetido a testes científicos com drogas e substâncias químicas altamente instáveis, que afetaram diretamente seu comportamento e potencializaram sua personalidade que gritava por justiça. Dotado de uma inteligência e sabedoria fora do comum, V. começou a tecer maquiavelicamente sua vingança contra tudo e todos que eram responsáveis por tal sistema de manipulação. Sua vingança se inicia quando consegue escapar do campo de concentração, após conseguir confeccionar explosivos - que acabaram desfigurando seu corpo -, e, em seguida, se refugia no anonimato. Assim começa a traçar sua nada convencional e lógica Vendetta. Assim, V. abandona seu amor pela Justiça, justificando ter sido traído pela mesma, que se moldou à maneira dos então manipuladores detentores de poder e nos apresenta sua nova amante, a Anarquia.

Evey, a pupila A HQ foi concebida na década de 80, e o cenário é uma Londres futurista dos anos 90, onde o regime fascista impera e o maior símbolo do império e da força do governo é o prédio do Parlamento, que é o primeiro alvo da vendetta de nosso anti-herói - o fatídico dia 05 de novembro de 1997. Logo, aparece uma nova e fundamental personagem na trama, a então frágil e perdida Evey, uma garota de 15 anos que é salva das mãos de policiais por V. e acaba se tornando uma espécie de cúmplice e pupila do herói mascarado, que, aos poucos, por métodos nada convencionais, vai instigando a garota a sentir o verdadeiro espírito anárquico e entender o que são, de fato, os conceitos de felicidade, conhecimento e liberdade.


Evey vai, assim, desconstruindo seu mundo, até então baseado numa infância pouco feliz, devido à perda precoce de seus pais, fato que a obrigou a crescer em um albergue e trabalhar desde cedo em uma fábrica - uma vida cinzenta e sem nenhuma expectativa. Um mundo novo, cheio de conhecimento, livros, filmes e música, acaba fascinando a jovem garota, que, ao mesmo tempo, também se amedronta com as ações de V. em seus planos, o que gera um conflito interior que será fundamental para o crescimento da aprendiz.

Além da Vendetta Apesar de todo o contexto de “V de Vingança”, cuja trama é totalmente baseada no símbolo da vingança sobre a opressão, o grande trunfo da obra é lidar com conceitos que vão muito além de qualquer ambiente hostilizado por uma ditadura e é presente em cada ser denominado “humano”. A notoriedade da obra talvez se dê justamente por essa universalidade de conceitos e ideias. Por isso, merece aplausos pela forma honesta e cruel com que lida com fantasmas fundamentais que precisam ser enfrentados por todos os que querem ter a honra de se definir, mais que como ser humano, como “ser”, pura e simplesmente. Ao ler “V de Vingança”, a sensação provocada é de estar sendo torturado por chibatas que arrancam pedaços de nossa pele. Um tipo de redenção nada fácil, na qual conceitos e certezas escorrem por água abaixo e nossas muralhas ideológicas são implodidas. Aquele conceito de mundo perfeito, pink & blue, com pessoas simpáticas, sorridentes e extremamente felizes num churrasco de família no domingo simplesmente se torna fútil, falso e cruelmente vazio. No prólogo, David Lloyd já alerta que “V de Vingança” não se trata de descontração e alegria. A leitura não é nada agradável. Não, pelo menos, no sentido comumente dado à palavra “agradável”.


E uma vez dilacerados, cauterizados e cicatrizados, seguindo pelas páginas manchadas de pólvora, vamos entrando na alma de V. e, consequentemente, na nossa própria, percebendo o quão perdida a multidão está e o quão perversos, mesquinhos e manipuladores a famosa corja do poder vai nos moldando, mutilando e nos fazendo acreditar num teatro de bonecos o qual chamamos “sociedade”. No entanto, a maioria das pessoas simplesmente acha absurda a ideia de negar o mundo em que vive, o que julgam “realidade”, baseada em seus costumes e atividades premeditadas do cotidiano. Trabalho, família, entretenimento, impostos, mídia, drogas, relacionamentos: todos elementos que vão nos marginalizando coletivamente da realidade. Nesse sentido, optar por encarar a realidade requer coragem, audácia e muita responsabilidade. Assumir-se um ser que vive no mundo real é muito mais complicado do que parece ser. “O conhecimento, como o ar, é vital para a vida. Como o ar, não pode faltar”. E, em seguida, saca o punhal e crava, sem piedade: “Em meio ao clamor das insurreições, nós podemos facilmente esquecer por que lutamos... Não seria a dança? Ombros cheirosos? Pupilas dilatadas por desejo ou por vinho?” É fácil flagrar-se distraído no meio do caos, no meio do dia-a-dia repleto de distrações cada vez mais bruscas e sedutoras. Por outro lado, fazer uma vendetta contra si mesmo, por mais cruel, dura e fatídica que seja, traz a sensação de ter asas e saber exatamente o mundo em que vive nos faz se sentir como titãs, deuses do seu próprio universo. Assim, somos capazes de tomar posse de nossas vidas, driblando as amarras e lidando com o caos, entendendo que a verdadeira anarquia é fruto do autoconhecimento e do respeito mais puro e simples, ligado ao fato de SERMOS humanos.



Das páginas para a grande tela

A

versão cinematográfica homônima, dirigida pelos irmãos Wachowski (trilogia Matrix) foi uma adaptação bem sucedida com Hugo Weaving como V. e Natalie Portman como Evey e, apesar de não trazer toda a carga sentimental e voraz da HQ, vale a pena ser vista. Toda a caracterização das personagens e o cenário reproduzido são de encher os olhos. A trilha sonora é belíssima, e a direção de fotografia fazem de “V de Vingança” uma adaptação justa e digna da obra de Alan Moore. O filme data de 2006 e teve aceitabilidade significativa na mídia. Além do fato de ser uma grande produção, também conta com uma equipe técnica já ovacionada no meio cinematográfico, bem como um elenco bastante notório, que, além dos já citados, conta com Stephen Fry e John Hurt. A história da ascensão do regime totalitário, bem como de sua queda, causada pelos atos vingativos de V., são mostrados com muita semelhança à HQ. Os símbolos criados por Moore e Lloyd, como a bandeira rubro-negra - muito semelhante à suástica nazista -, tiveram representação interessante no filme. O “cabeça” do regime, Sutler (John Hurt), é uma referência visível a Adolf Hitler e muito se assemelha também ao Big Brother do livro “1984”, de George Orwell. O regime político e suas ações remetem diretamente aos incidentes da II Guerra Mundial, como a já comentada perseguição a homossexuais, negros, judeus e também deficientes físicos e outras minorias...

Trailer de V de Vingança

Tanto no filme como na HQ, existem os “dedos”fingers, em inglês -, que representa a polícia da trama, os responsáveis por capturar e punir os que se posicionam na contramão das regras ditadas, como, logo no começo, quando Evey é atacada por vários desses homens e é salva pela intervenção do herói mascarado. No regime nazista, havia a Gestapo. Muitos provavelmente já assistiram ao filme V de Vingança, e recomendo com “two thumbs up” que corram ler a versão original.


A walk to

REMEMBER NOVEM


R MBER

por PAWEL LITWINSKI










O desejo de que o outro se dĂŞ mal acompanhado do

PRAZER que vocĂŞ sente quando isto acontece


por ERIKA BUENO

S

e você não pertence à escala Madre Teresa de Calcutá (e afins) de evolução espiritual – e eu tenho certeza que não pertence – seja bem vindo ao clube dos vingativos. Assumidos ou não. Há os que admitam sua necessidade de desforra e façam “bom” uso dela, mas há os que adotam uma postura supostamente evoluída. Ou tentam. No entanto, a sensação de satisfação pessoal que ambos sentem ao praticar a vingança é a mesma. A dor de ter o orgulho ferido, de ser contrariado, ofendido, injustiçado, agredido física ou verbalmente, nos causa quase que, involuntariamente, a vontade de devolver o mesmo sentimento ao sujeito causador. A retribuição pode até ocorrer somente em pensamento, quando desejamos intimamente que o sujeito sofra


V for Vendetta

Eis que me fiz de santo quando na verdade era o demônio

Francis Bacon

A vingança é uma espécie de justiça selvagem

François de La Rochefoucauld

A vingança procede sempre da fraqueza da alma, que não é capaz de suportar as injúrias


algo semelhante ou pior. Mas a vingança, propriamente dita, requer atos concretos, ainda que hollywoodianos. Domingo. Seu maldito vizinho cai da cama com as galinhas e liga o rádio num volume socialmente inaceitável, às oito da manhã, apenas duas horas após sua chegada daquela festa maravilhosa. Todo o álcool que você ingeriu na noite anterior se transforma em imensos elefantes, dançando bem na sua cabeça. Você pode simplesmente ir até ele e pedir educadamente que abaixe o som, mas não. Você quer, você pre-ci-sa devolver na mesma moeda, então o heavy metal rola solto na madrugada de domingo para segunda, afinal, seu vizinho acorda muito mais cedo para o trabalho do que você. Não deixá-lo dormir é um prazer quase que sexual, afinal, ele interrompeu seu descanso e você tem o direito de devolver o tormento, “fazendo justiça”. E essa sensação de prazer e de “dever cumprido” é natural no ser humano. Não sejamos hipócritas: nós gostamos – e muito – quando nossos desafetos se dão mal. Acredito que essa necessidade de vingança surge do nosso próprio orgulho, do nosso desejo de superioridade. Até quem gosta de se vitimizar, no fundo, não curte estar na posição da vítima e, na primeira oportunidade, faz de tudo para devolver o mal-estar sofrido. E, justamente por causa do nosso orgulho, tomamos a vingança como justiça, ainda que sejam coisas totalmente diferentes. A justiça, teoricamente, é motivada pelo equilíbrio, por leis, pelo bom senso, pela análise imparcial de fatos, ainda que nem sempre ela seja feita. Somos justos quando pautamos nossas ações em atitudes adultas, coerentes e desprendidas

de sentimentos baixos. Já a motivação da vingança sempre se origina de raiva, ódio, ira, inveja e toda sorte de sentimentos pouco nobres, além de uma visão sempre parcial dos acontecimentos. Infelizmente, o ser humano está longe de pertencer a uma escala de evolução onde suas atitudes seriam pautadas exclusivamente na compreensão, na arte da conversa, do perdão e da capacidade de avaliar fatos de maneira imparcial. Quando atingirmos este nível, deixaremos, inclusive, de nos vitimizar diante de tudo e, principalmente, de darmos ouvido às picuinhas do nosso orgulho. Acredito que ser vingativo é parte de um processo de amadurecimento que todos temos que passar, pois ainda somos como uma criança que, por algum motivo, é contrariada pelos pais e responde com um escândalo digno de parar o shopping. A criança contrariada sente raiva e age espontaneamente porque é cronologicamente imatura, não tem experiência de vida, tampouco capacidade de avaliação sobre o que está acontecendo e porque seus pais a contrariaram. Adultos não. São psicologicamente infantis, ainda que tenham cem anos de idade. São frios e calculistas, objetivando a destruição do inimigo porque é inegavelmente mais fácil ser vingativo do que ser diplomata. Não é à toa que a história da humanidade é repleta de guerras e conflitos de toda espécie. Fato é que continuaremos assim, praticando nossas pequenas ou grandes vinganças, nos dando o direito de fazer justiça com nossas próprias mãos e nossos próprios pensamentos. Só não podemos esquecer que, cedo ou tarde, podemos ser as vítimas da vingança de outra pessoa.


Em menos de um mês, a primeira edição da Manuscrita alcançou ótimos números...


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Mitologia e

VINGANÇA por CRISTIANE SITA

O

Monte Olimpo é bem mais quente e vingativo que novela das oito, que, aliás, começa às nove. Falar de vendetta no mundo mitológico é chover no molhado. Os deuses, em sua maioria, são vingativos. A vingança rolava entre os próprios deuses e também atingia os meros mortais. Você é mais bonita que Afrodite? Ela a cega, a transforma em peixe e destrói seu cabelo. Enfim, Afrodite é super criativa. Você roubou uma pretendida por Poseidon. Prepare-se! Sua cidade se alagará, monstros marinhos atacarão seu navio e seus filhos nascerão defeituosos. A deusa grega da vingança é Nêmesis, um tipo de tia-avó de Zeus. Vocês se lembram que as famílias dos deuses são um pouco confusas e dadas a relacionamentos incestuosos, né? Para se ter ideia, Nêmesis pode ser tanto a tia-avó quanto a tia-bisavó, se é que este termo realmente existe. Sua missão de titia era, basicamente, colocar todo excesso por terra, devolvendo a ordem universal aos seus eixos. Nêmesis é considerada tão bela quanto Afrodite, sendo este termo hoje designado para falar do seu arqui-inimigo, mesmo que ele seja admirável. Sabe aquela criatura que você curte, mas que virou a pedra do seu sapato? É sua nêmesis. Vamos entrar um pouco na brincadeira mitológica e nos transportar para aquele tempo? Os antigos gregos se utilizavam de um ritual para evocar a deusa. Antes de mais nada,


tenha em mente que a irmã de criação de nossa deidade vingativa é Têmis, a deusa da ética; portanto, sua vingança tem que se embasar na consciência acerca de sua responsabilidade no problema. Nêmesis cobra a quem é de direito e pode sobrar pra você. Aviso dado, vamos chamar a titia. 1. Lambuze uma vela preta para Nêmesis, com azeite ou essência de patchulli, desde a base até o pavio, para restaurar o seu equilíbrio; 2. Coloque uma maçã num prato perto da vela; 3. Acenda a vela, sente-se e exponha tudo sobre o seu problema para a Deusa. Com suas próprias palavras. Depois, diga esta prece: “A mão de Nêmesis equilibra os pratos da Balança da Justiça. Ela desenreda as voltas dos fios dadas pelo Destino. Torna leve a carga deste problema, Grande Nêmesis! Guia-me até a solução. Se não pode haver harmonia, afasta-nos uns dos outros. Desenreda meus fios de Vida, Grande Nêmesis!” Reza a lenda que, depois disso, a justiça será feita. Se você quer se enredar no mundo mitológico, vista sua túnica branca e mãos à obra! Brincadeiras à parte, voltemos aos nossos deuses vingativos. A regra é clara: nenhum deles teve limite algum. Escolher uma pequena história sobre vingança seria disputála no palitinho. Mas, dentre todas as vinganças, há uma história pura e mágica que não tem, abertamente, a vingança como tema.

A fênix Ao narrar este mito, vocês concordarão que existe um quê de invencibilidade fazendo qualquer outra história parecer pequena. Obviamente, existem momentos em que tudo de que se precisa é aquele prazer simples, direto e mesquinho da vingança direta. Mas, para esses momentos mais delicados e que exigem finesse inpire-se nes-

ta criatura alada. A Fênix, esta sim, se vinga de salto alto, cala a boca de todo mundo e faz isso cheia de classe, sendo ela mesma. Vamos lá. A ave Fênix já foi citada diversas vezes pelo mundo das artes e, na atualidade, sua tradução mais presente talvez seja o nome da cápsula que resgatou os mineiros chilenos. Mas quem é a Fênix? Qual o seu simbolismo? Desta vez, cavoucaremos a origem deste mito e, com atenção, vocês entenderão os motivos da nossa escolha. Essa ave está ligada à mitologia e à simbologia de vários povos ancestrais. Sua lenda, aparentemente, remonta ao mito de Bennu, o pássaro sagrado dos egípcios, que a viam como uma grande garça que aparecia por aquelas bandas a cada 500 anos. Como todo mito, já até tentaram dar corpo à pobre ave, tornando palpável o incalculável. Arqueólogos encontraram o fóssil de uma grande garça de aproximadamente 5.000 anos e lá foi o povo acreditar que era Bennu. É uma ave única, sem pais, sem descendentes ou irmãos. Seu habitat seria Heliópolis, a cidade do Deus-Sol, ligada frequentemente à simbologia do amanhecer. o qual é ligado frequentemente a simbologia do amanhecer. Bennu, para os egípcios, é quase tudo. O grande pássaro é o sol, o grito, a ressurreição, Osíris, a primeira vida do Nilo. Além disso, seu grito é o criador do tempo, como o tic-tac do relógio. Para deixar mais poético, muitos egípcios acreditavam que Bennu era um mensageiro que trazia a essência vital da terra dos deuses aos heliopolitanos. Como vocês podem ver, era tanta atividade e tanto assunto para ela dar conta que, talvez por isso, a garça sumia e voltava só depois de 500 anos. Nessa época, o pássaro caía de boca nas piras de Rá e renascia de lá mesmo.




Na Índia se fala em Avalerion, outra ave bastante similar. Ela tinha pai e mãe, mas, assim que nascia o rebento, os pais se afogavam voluntariamente. Ultra-deprê. Esqueçamos.

e transformação de tudo que existe. Um sinal da vitória da vida e da inexistência da morte, tal como ela é atualmente concebida pela civilização ocidental.

Os árabes e suas especiarias já colocaram Cinomolgus em um ninho de canela preciosa. Haja mercantilismo, uma vez que sempre queriam matar a pobre, e ela nunca morria para se pegar a bendita canela. Não é bem disso que queremos falar. Apologia ao crime, não. Ainda mais aos ambientais.

Convoco vocês a traçar o mais doce dos paralelos. Em meio a sua dor, há os que acreditam que morrerão, que a sua dor é a mais sofrida e que uma era chega ao fim. Por outro lado, existem os que são realistas e sabem que precisam recomeçar. Para todos, no entanto, o caminho da vitória inclui se reinventar, se reconstruir e recomeçar. Pode ser um novo trabalho. Uma nova casa. Um novo amor. Uma nova perspectiva.

Para os chineses, a ave é um símbolo de felicidade, virtude e inteligência. Em essência, vemos os mesmos símbolos de morte e renascimento. Aos alquimistas, a ave representou, por muitas vezes, a pedra filosofal. Já aos Rosacruz, representa o encontro com a divindade. Para os maçons, o fogo divino. Os cristãos, no entanto, a adotaram como um dos símbolos da Ressurreição de Cristo.

Antes de finalizar um processo, qualquer que seja, existe um período de luto simbólico pela morte interna de algo. Neste momento, seu canto - ok, não é seu canto, estamos falando das suas palavras, da sua expressão, dos seus gestos, dos seus pensamentos, do seu sorriso ou da ausência dele -, todo este “canto” leva seus pares a sentir sua dor com você. Como com nosso passarinho gigante.

Numa citação atual, Dumbledore (de saga Harry Potter) tinha uma fênix chamada Fawkes. Aos que não viram a sacada, fica a dica: Guy Fawkes, o mesmo cara da Conspiração da Pólvora e que foi queimado na Noite das Fogueiras. Fawkes teve sua própria pira, assim como a fênix. Nossos queridos gregos viam a Fênix como algo bem próximo à Bennu egípcia: uma ave de crista brilhante, penas púrpuras, brancas (na cauda) e douradas (no pescoço). Um figurino de fazer inveja a Joãozinho Trinta. Tinha olhos anormalmente brilhantes. Consta até que o canto da Fênix era doce e que se tornava mais melancólico quando próximo da sua morte, podendo matar outros animais que se influenciassem com sua cantoria. Diante da perspectiva da morte, ela era considerada um símbolo de esperança, persistência

Então, quando o processo está perto de finalizar, você se deixa, finalmente, levar pela situação. Você aceita tudo e se deixa queimar por esta dor. Este segundo posterior à sua definitiva queima, em pira acesa, é a hora H de você executar sua vingança: RENASÇA DAS CINZAS! Recrie-se, reviva, relembre, reinvente, reconstrua. Devagar, encontre suas asas coloridas e ofuscantes. Olhe o mundo com seus olhos faiscantes. E levante vôo. Um belo e mitológico vôo da sua própria Fênix. Renascer das cinzas é dar uma banana pra quem te aborreceu. Garanto a você: nada pode ser mais vingativo e elegante do que persistir em existir, não obstante o desejo alheio de sua destruição. Sua existência é a resposta mais plácida e serena que um indivíduo maldoso se obriga a aceitar - e odiar -, corroído em suas entranhas. Além de vingança, é o mais belo ato de amor em relação a você mesmo: perdoe-se, dê-se uma nova chance. Hoje. Amanhã. Sempre. Vamos voar!



A vinganรงa pode ser um bolo amargo de

TOFU por JUAREZ CRUZ


A

superação é o que embasa a vingança em ‘Sympathy For a Lady Vengeance’, filme de 2005, do diretor sul-coreano Chan-wook Park. Indo muito além do clichê ‘olho por olho, dente por dente’, comum em filmes que se abordam o tema, é difícil não pensar e quão satisfeito você se sentiria ao colocar em prática sua vingança pessoal. E é exatamente nisso que Lee Geum-Já (Lee Yeong Ae) acerta em cheio. Aqui a protagonista é apresentada ao sair da prisão, onde permaneceu por 13 anos, condenada por ser cúmplice no sequestro de um garoto de 7 anos.Assim como Beatrix Kiddo (A Noiva), personagem de ‘Kill Bill’ Vol 1 & Vol 2, do diretor Quentin Tarantino (2003/2004), nos deparamos com mulheres que mudam suas personalidades bruscamente, em decorrência de ambas terem sido fieis e, ironicamente, traídas por seus respectivos companheiros. Não, não estamos falando de uma cópia ‘Kill Bill’, já que os orientais têm seu

peculiarmente pessoal de violência, ao contrário da caricatura muitas vezes impressa nos trabalhos de Tarantino. O traço fundamental, que diferencia os filmes mencionados, é que ‘Lady Vingança’ praticamente arranca risos de nervosismo, colocando o espectador em situações pesadas, por humor com puro sarcasmo. O único propósito traçado pelas protagonistas de ambos os filmes é vingarse a todo custo de quem lhe causou mal. Contudo, a forma que Lee Geum-Já arquiteta e executa seu plano se mostra bem diferente, muito mais inteligente e bem mais crível ao público, superando a violência mostrada na revanche pessoal de Uma Thurman. Tudo isso é feito longe de comparações, afinal, tanto a premissa maior quanto a falta de linearidade na narração dos filmes são fortes, carregados de peso e culpa. É aí que as semelhanças acabam. Exatamente pela certeza de vingança, por que não pensar que tudo sairia tão perfeito e muito bem orquestrado? Após


Trailer de Lady Vengeance

o ato, passamos ao nos perguntar se, o que sobrou e a força que a potencializou, é o que caracteriza a vingança e se a dor do arrependimento aparece até como motivação. É aí que nos deparamos com a redenção, nascendo e eclodindo de maneira eficiente na narrativa. Completamente certo do que vi, em todo o caminho na prisão, que foi grande parte responsável pela mudança da personalidade de Lee, concluo que essa vingança foi apreciada de maneira tão forte e eficaz que nos instantes finais, mostrou sua protagonista com marcas profundas - tais como a culpa - e sequer sua vingança consegue domá-la.



Sendo assim, ao me perguntar o quanto do filme se refletia em minha vida, me deparei me com todos as questões pessoais das quais já me vinguei e, mais ainda, se elas serão importantes para que, um dia, eu atinja a tal redenção. Já sei que o sabor é doce, mas a ingestão pode ser acompanha de um gosto diferente. Meio amargo, talvez. ‘Sympathy for a Lady Vengeance’ é capítulo final da “trilogia da vingança”, iniciada com o filme ‘Sympathy for Mr. Vengeance’ (2002) e ‘Old Boy’ (2003), também dirigidos por Chan-wook Park, mas funciona sem a necessidade de ver seus antecessores na ordem, um vez os filmes baseiam-se em personagens e narrativas independentes entre si. O mote que interliga a triologia é a vingança de seus protagonistas.

Em termos visuais, ‘Lady Vingança’ é o mais belo na sequência de filmes, tendo fotografia mais clean e narrativa suave, sem sobrecarregar a violência estética, presente em ‘Old Boy’. Contudo, sobra uma agressividade implícita onde quase tudo é apenas insinuado. Quando isso não acontece, no entanto, o pouco mostrado é amargo de se ver, quase tornando-se assustador. A trilha sonora do filme merece atenção especial por tornar, simultaneamente, a violência poética e lírica. Mas tudo sem desmerecer outros envolvidos, claro. Assim sendo, se você precisar de estímulo desopilante para começar seu processo de superação, confira ‘Lady Vingança’. Sua alma agradecerá, tenha certeza.


In Dexter

I TRUS D

exter, querido, como você está? Eu não costumo escrever para personagens, mas, sabe, eventualmente, acredito que você seja mais real, tangível e justo do que quem habita o mundo. Sua nova temporada está ótima, aliás. Finalmente temos de volta o Dexter instintivo do início da série, que lidava abertamente com o imprevisto, sem o ônus de ser casado com uma dona de casa insossa. Só quero ressaltar que, a despeito do que um psiquiatra forense diria, eu vejo você com um ótimo pai. Mas vamos ao que interessa. Quero tentar me safar do estereótipo de fã babona enquanto há tempo. Assim como você, detesto trivialidade.

por BIJOU MONTEIRO


ST


Resolvi escrever por ter observado muitos elementos incômodos ultimamente. Você mora do outro lado do mundo, numa Miami ensolarada, e talvez não tenha ideia que, aqui no Brasil, também encontramos delinquentes tão ou mais perigosos do que os caçados por você. A propósito, eis exatamente o ponto que me interessa. E se, por mera curiosidade empírica, você descobrisse que o solo tupiniquim pode acolher sua sede de justiça? Se os seus preceitos básicos (nunca seja pego e nunca mate um inocente) já livraram o mundo de Ice Truck Killer, Little Chino, Miguel Prado, Trinity e Boyd, eu tenho certeza de que posso lhe fazer uma oferta tentadora. Você não tem que matar ninguém, veja bem. Seria difícil conseguir acesso irrestrito aos registros legais, uma vez que verificar antecedentes criminais dos seus contemplados é sempre prioridade. No entanto, você, munido de seu avental de açougueiro e até daquele seu cutelinho esperto, poderia, perfeitamente, apenas pregar uma peça em quem merecesse. Uma brincadeirinha inofensiva, como as de Halloween, mas que deixa lições indeléveis na memória de quem ajuda a protagonizá-las. Para exemplificar minha proposta, selecionei sete arquétipos cada vez mais comuns, para a infelicidade de muitos, em nossos nichos sociais. Se o número é cabalístico? Talvez. A única certeza, no entanto, é que os pretensos sorteados, entre outras coisas, mentem egoisticamente para atingir suas metas. Agora chega de papo. Vejamos diretamente quem compõe a nossa lista.


1

O auto-piedoso

A vida está constante dívida por não ter sido mais branda com ele. O mundo é um teatro onde nosso infeliz encena suas tragédias e exige aplausos, uma vez que, não importa o que você já tenha enfrentado, ele sempre terá mazelas mais graves, urgentes e doloridas do que as suas. Egoísta, inconseqüente e mesquinho, nosso arquétipo se intimida com o brilho alheio e, imbuído de falsa notoriedade e orgulho ferido, rechaça quem não reverencia sua ode débil ao drama. O holocausto é bobagem aos olhos de quem se vitimiza, constantemente, par atribuir aos outros o ônus de seus melindres. Se fosse uma personagem, Hardy, personagem de Hanna Barbera, lhe cairia como luva.


Seus dilemas são sempre tão relevantes quanto o cabedal de Paris Hilton. O mundo é apenas uma grande platéia de súditos, ou seja, ser amigo dele incorre em rir de suas tiradas medíocres, mostrar-se conivente com seus desmandos e condescendente com as grosserias. Nas fotos da turma, ele só comenta as poses dele. Já nas reuniões de família, os presentes do referido ente devem ser sempre os mais caros. Singelo, para ele, é apenas um adjetivo simplório. Todos devem, reiteradamente, bajular sua permanente egotrip, caso contrário, ele usará contra você as suas próprias palavras. Para que fique mais claro, esqueçamos o legado dos Hilton e pensemos apenas em como seria conviver com a versão nacional do Quico.

O pequeno burguês

2


3

O babaca

A vida é um trem de luxo onde nosso arquétipo se recusa a embarcar. Imaturo, preguiçoso e acomodado, ele refestela-se na irrelevância, contentando-se com a constante procrastinação da vista adulta e, mais ainda, prolongando sua zona de conforto adolescente. Cerca-se do que é medíocre para não ser cobrado e, ao senti-se exigido, sua infantilidade lhe concede crueldade, sordidez e agressividade dignos de uma mente perfidamente fria. Crianças, embora fofas, têm traços vis e o babaca, ao conviver com infantos que não impulsionam sua evolução, perde seu viés de dignidade, se transforma em monstro. Se você espera atitude, tenha em mente que ele e as personificará com falta de hombridade e covardia. Como identificá-lo? Simples. Pense em versões genéricas de Michel Cera.


O pregador Ele se apresenta com sorriso encantador, vocabulário rebuscado e olhares de mistério. Versa, sempre mui democraticamente, sobra a importância de manter sua mente aberta e livre das ansiedades mundanas. Ele põe em prática o que eu denomino de papo Highlander, ou seja, encheção de linguiça prolixa, mas sempre de forma bastante aprazível. Não se engane.

4

No instante seguinte, ao vislumbrar que seu discurso não se sustenta, ele bate em retirada, visando, novamente, atrair pessoas que afaguem suas inseguranças sem questioná-las. Por trás de seu riso frouxo, o pregador esconde um compromisso unilateral, apenas consigo, onde não são permitidos questionamentos sobre a veracidade/aplicabilidade de suas intenções. A polidez, inicialmente usada, é apenas um artifício para que, inconscientemente, você se convença do que ele diz. Fraco, intransigente e calculista, nosso pregador fere quem o descobre como um falso messias. A personificação perfeita? Patrick Swayze, como Jim Cunningham, em Donnie Darko.


5

O canastrão Nosso arquétipo acalenta o desejo pulsante de ser o macho-alfa da matilha, seja ela qual for. Contudo, é tão dolorosamente consciente não possuir tal predicado natural que, diante da frustração, ele mente. A vida do nosso canastrão, por exemplo, é uma farsa. O fracasso dos cursos de suas esferas é sempre atribuído a terceiros e, não obstante, ele apresenta várias diferentes versões acerca dos fatos específicos, individualmente, confundindo pessoas que ele visa dominar. Seja por carência, complexo de inferioridade ou falta de escrúpulos, ele não hesita diante de jogar pessoas umas contras as outras, sempre eximindo-se do dolo, claro. Falta bom senso (ou seria senso do ridículo?) e sobra presunção de genialidade. A melhor metonímia? O Stifler, da saga American Pie.


O loser Esse sujeito teve plena estrutura familiar, foi bem educado e seu futuro prometia ser promissor. No entanto, nosso loser, com nuances de sociopatia, não aguenta ambientes (tais como o meio acadêmico) que o forcem a reconhecer méritos alheios. Flertar diretamente com a mediocridade é sempre menos pior, uma vez que pessoas tapadas tendem a ovacioná-lo como se o próprio fosse um rei. Ele destrata, desdenha e humilha quem o enxergam em entrelinhas e, mais ainda, quem atrai mais atenção do que ele. Seja um amigo mais engraçado ou uma namorada bonita, ele encontrará formas de puni-los morbidamente. O loser não sente remorso. Aliás, ele não tem sensações que revelem nobreza. Seu único ímpeto recorrente é a necessidade de adoração sem que, para tanto, ele seja merecedor. Se fosse um cosplay, certamente sairia fantasiado de Supla.

6


O alpinista social

7

Esse arquétipo ri de todas as piadas, não faz distinção entre pessoas e aceita tudo que lhe é proposto. Não, nós não estamos falando de quem tem carpe diem como premissa maior. A vida, para ele, é apenas uma grande rede de contatos onde, agradando aqui e puxando o saco acolá, nosso alpinista fica bem com o mundo intero e cheio de números preciosos em sua agenda telefônica. Os fins justificam os meios, logo, ele usa cabeças com degraus, associa-se à escória e faz política da boa vizinhança para que seu lucro seja garantido e nenhuma podridão sua venha à tona. Vale ressaltar, no entanto, que nosso alpinista não convive com jet setters e, tampouco, teria acesso irrestrito a tal casta. Por essas e outras, ele aglutina-se no lodo que o acolhe, e, assim, tenta comer a pizza pelas beiradas, jurando que chegará ao recheio dela impunemente. Capaz de toda e qualquer atrocidade rumo ao sucesso (sic), ele subestima regras físicas de ação e reação, sempre sendo atingido em cheio por elas. Ficou interessado? Então pense no Ripley, mas, nesse caso, sem nenhum talento.

Viu só que exercício tentador, Dex? Até sei que esses sete arquétipos também existem em Miami, mas garanto que somente aqui você os encontrará com riqueza de detalhes. Se você vier e quiser ficar aqui em casa, será um prazer. Te ensino um pouco de português e, em troca, você me mostra como afiar facas perfeitamente. Mas, como eu disse anteriormente, nada de matar os infelizes. Todos já morreram, em partes, ao fazerem de suas vidas exercícios obsoletos. E você bem sabe: basta dar um susto neles, por menor que seja, para que justiça diversão e surpresa perpetuem-se deliciosamente. Beijo da Bijou.


CONTO de fadas

VIVÊNCIA DO AMOR GASTO E REAL VERSUS


UTOPIADA NOMEADA ‘COISA BONITINHA’


por YASMINE COLUCCI

P

ercebo, a cada dia, que muitas pessoas não possuem interesse por arte. A cultura parece ser um tema relegado ao segundo plano, ou, talvez, só apreciado pela alta sociedade. Ir a uma peça de teatro passa a simbolizar um elitismo, mesmo que, muitas delas, atualmente, sejam gratuitas ou apresentem preços bem mais baixos que uma sessão de cinema. A arte, em geral, careça de uma reorientação temática ou de um envolvimento maior de seu público. Uma reorientação pelo fato de ela focar, geralmente, nos assuntos que geram uma boa bilheteria. Um maior envolvimento do público, uma vez que muitos indivíduos, sem nem ao menos terem assistido a uma peça, obra de arte, concerto ou filme, já o criticam sem conhecimento, o que leva a questionar se a arte não deveria passar por um processo de valorização desde a educação escolar. No entanto, não entrarei nessa questão. Quero abordar apenas a relação com os temas banalizados que vendem e trazem temáticas bonitinhas. Um dos gêneros de filme mais visto por mulheres é a comédia romântica, mostrando que as “coisinhas bonitinhas” são utópicas. Um dos pontos que mais me estressa nessas “coisinhas bonitinhas” é o fato de as pessoas serem cheias de qualidades e os defeitos serem imperceptíveis. As mulheres aspiram a seus príncipes em um cavalo branco, ou, quem sabe, ao seu vampiro em um Volvo prateado, que, na realidade, nunca aparecerão como no filme: bonitos, galantes, simpáticos, atraentes, românticos, poderosos e - vamos combinar - muito ricos. Claro que sabemos que a arte mostra tanto a realidade quanto a ficção, e, por mais que as comédias românticas estejam no âmbito real, elas têm se tornado cada vez mais fictícias, uma vez que tratam o amor de uma


forma espetacularmente maravilhosa. Assim, essas “coisinhas bonitinhas” acabaram sendo cruciais para uma boa bilheteria no cinema, já que as mulheres, em geral, apreciam essa idealização amorosa e deslocam-se em massa, arrastando seus “namorados-não-perfeitos” para assistir àquele filme. No final, ele tem o mesmo resultado de todos os outros filmes: os pombinhos ficam juntos, lindos, felizes e muito ricos. Eles vivem o perfeito “american dream”, e o filme traz a moral de que você pode ser tudo o que quiser, e o amor é a chave para qualquer problema. Sinceramente, ao sair de um cinema ou de uma peça de teatro com esse ideal, passa-se a desejar aquele amor e todas aquelas concepções, tendo em vista que a realidade não é assim e, geralmente, cria-se um desejo pelo que não é seu. Nós sofremos, perdemos e, algumas vezes, vencemos. Geralmente, nada cai de paraquedas, e os príncipes/princesas não vêm com um manual de instrução e formato perfeito para a sua personalidade. Logo, esses filmes são lucrativos, pois se caracterizam como aquilo que as pessoas desejam ver e sentir, justamente por não possuírem esse grande amor. A realidade dolorosa não pode ser estampada em seus rostos. Isso, em geral, não causa boa aceitação. Além disso, esses filmes são “bonitinhos”, e o bonitinho agrada, não causa dor nem pânico e é perfeito até para os maiores momentos de fossa. O amor nos filmes é tratado como o maior objetivo da vida das pessoas - não que eu ache que não seja -, porém, ele condensa um tom mágico de “bonitinho” que causa uma grande emoção ao vê-lo. Este é outro ponto do “bonitinho” o qual é “sem-noção” e irritante: os apaixonados parecem que perdem suas vidas longe dos outros, como se não existissem, e enfrentam todo o seu orgulho - e o mundo - para ficarem juntos. As personagens completam-se. Elas são aquilo que chamamos de “cara metade”, e isso ocorre pelo simples fato de que elas foram escritas por uma pessoa que pensou em todos esse detalhes. Há casos em que a personagem do filme é desejada por


pessoas da vida real, porque, por exemplo, o mocinho de um determinado filme seria o homem perfeito. ÓBVIO, né? Ele foi feito para ser o homem ideal para que as pessoas assistam ao filme e aspirem a esse personagem na realidade, porém, elas precisam lembrar que as outras personagens - as quais podem representá-las também possuem seus padrões perfeitos. Não tem algo mais irritante do que aquelas menininhas fantasiando seus príncipes, ou, pior, quando as menininhas crescidinhas ainda continuam a fantasiar. Acredito que essa seja a mensagem desses filmes: levar as pessoas a terem esperança sempre, ou como diz minha avó, que toda “panela tem sua tampa”. O pior é que muitos indivíduos acabam aguentando pessoas frenéticas e compulsivas as quais gritam no meio do filme porque o personagem tal apareceu e ele é o sonho de consumo delas. Assistir a um filme da série “Crepúsculo” na estreia - ou em qualquer dia - leva qualquer ser humano a querer tornar-se um serial killer. Quando Taylor Lautner (o Jacob) tira a camisa - praticamente o filme todo -, os gritos acontecem, como se aquelas pessoas nunca tivessem visto um homem sem camisa. Edward, então, é chamado de perfeito pelas garotas e de frouxo pelos rapazes. No final das contas, o desejo por um príncipe forte, destemido e protetor passou para um vampiro efeminado com uma imortalidade irresistível. Por conseguinte, as opiniões e a posição das mulheres perante esses filmes e mesmo dentro deles mudaram em demasia. A mulher, a qual, antes, era construída como frágil e sem atitude alguma, passou a ser mais forte e determinada. Diante disso, as personagens masculinas transformaram-se. A era Sr. Incrível do filme “Os Incríveis” - homens fortes, frios, ponderados e protetores de suas damas, isso mesmo, porque a dama é uma posse - chegou ao fim. Agora, os homens podem chorar, gritar, escandalizar, romantizar, ou seja, podem soltar toda sua sensualidade e seu lado sensível. Podemos perceber este contraste, ao visualizar esses vídeos:


Trecho do Musical Brasileiro de “A Noviça Rebelde”. Essa peça é baseada no musical homônimo da Broadway, bem antigo no que se refere à data. A moça de 16 anos precisa da orientação do rapaz e de sua presença ao seu lado para lhe amparar de todo mal. A mulher não precisa se posicionar. Ela precisa, apenas, amar e ser amada por alguém que lhe sustente e dê proteção. O homem, portanto, é superior a ela.

Já o filme “Plano B”, com Jennifer Lopez, mostra uma mulher cansada de não arranjar o tal homem ideal, que, por sinal, só surge nos filmes, e decide engravidar por uma doação de espermas. Essa nova concepção mostra uma mulher independente, segura de si, que prescinde da proteção constante de um homem. O homem desse filme, lançado neste ano, é sensível, desmaia com a namorada no hospital, tem seus medos e fragilidade e está do lado da amada para apoiála, e não, para ser o cão de guarda dela.

Já faz um bom tempo, mas principalmente na atualidade, é possível encontrar filmes que abordam as relações amorosas homossexuais. Por mais que haja preconceitos, a sociedade ficou mais aberta, e, finalmente, viu que o amor deve ser abordado em todas as suas formas e é bonito em qualquer orientação sexual. Um ótimo exemplo é o filme “O Segredo de Brokeback Mountain”, que aborda a relação amorosa e cheia de conflitos entre dois homens, um dos quais não consegue aceitar a situação e teme ir de encontro à sociedade, e o outro, que assume a paixão de modo escancarado, desejando ser feliz e não se importando com as concepções sociais.


Assim, pode-se afirmar que foi necessária essa mudança nas personagens e nas histórias, uma vez que a sociedade teve novas concepções em relação à mulher e ao homem. Apesar de as mulheres ainda sofrerem com o machismo nas áreas de trabalho e em regras sociais, elas conquistaram seu espaço e, hoje, são totalmente independentes se quiserem. Elas têm direito de fazer o que apreciam e não podem ser julgadas por isso. Por exemplo, hoje, não se julga da mesma maneira que antigamente uma mulher que engravida e cuida de seus filhos, sozinha, e, um homem que se preocupa com sua estética, tornando-se, por exemplo, um metrossexual. Ainda bem que houve a causa feminista para auxiliar nessa mudança no perfil da mulher. Contudo, as ideologias feministas e machistas ao extremo causam-me fúria tanto quanto as “coisas bonitinhas” retratadas nas artes, em geral. Primeiro, porque há um contra-senso entre elas e as “coisas bonitinhas”. Estas geram dependência, tendo em vista que o amor é egoísta, exigindo atenção, carinho e respeito entre, apenas, duas pessoas. Elas são dependentes uma da outra, como se fossem gêmeas-siamesas e, portanto, não agiriam de forma depreciativa umas com as outras, escancarando seus pensamentos machistas e feministas. – caso tenham, de fato. O machismo exacerbado estressa qualquer mulher, pois ela é vista como objeto, e, o homem tornase o rei da cerveja, do futebol e da conquista de mulheres; logo, ele precisa ser “tranquilão” e não deve se tratar esteticamente. Já o feminismo, quando exagera, rebate isso de uma forma absurda, sugerindo que mulheres devam aderir a campanhas de não depilação ou que homens sejam vistos como seres nojentos que só visualizam sexo e tratam qualquer mulher como símbolo deste. Calma, sabe? Podem existir pessoas assim, porém, hoje, tudo mudou muito, a sensibilidade masculina tornou-se um desejo feminino, e a capacidade da mulher é respeitada por eles. Outro ponto importante é que essas historinhas de amor podem ser sufocantes para amigos, já que algumas pessoas, quando namoram, vivem em função da “coisa bonitinha” que é o amor, tornando muito difícil se separar do amado/amada, e sua vida pessoal, anterior ao namoro, vai para o espaço. É nesse ponto que abro uma questão para quem quiser me responder: por que há pessoas que fazem isso? Qual é a graça de acabar com sua vida pessoal quando se namora? Eu sei que é necessário dividir o tempo, todavia, algumas pessoas abandonam sua vida particular e seus planos com amigos a fim de ficar somente com a pessoa amada. E depois que ocorre uma eventual separação, perde algo que dificilmente é quebrado: a amizade.


Por fim, acredito que um filme com uma temática amorosa real não venderia, apesar de achar que deveriam ser quebrados esses estereótipos contidos nos filmes românticos de que tudo terminará bem, como em um conto de fadas. Entretanto, os indivíduos buscam a utopia do par perfeito ou da alma gêmea. Entendem que amor pode ser o pilar para que a vida deles se tranquilize e seja mais fácil de lidar. O amor estruturaria todos os outros pilares. Sem ele, parece que o funcionamento dos deveres/afazeres fica mal sucedido. Seria, então, o amor verdadeiro a solução de tudo? Bem, é essa a mensagem que esses filmes passam, e é nisso que se baseia a minha maior definição para as “coisas bonitinhas”. Por isso me revolto. O amor não é solução de tudo, ele auxilia na solução dos problemas, tendo em vista que a pessoa, quando ama e é correspondida, está mais feliz e suscetível a enfrentar os problemas do mundo; no entanto, estes não acabarão, e as realizações não virão facilmente porque se está apaixonado. Não seria um prêmio da loteria para resolver os problemas financeiros. O amor não é um vilão e não serve para criar um combate entre as pessoas amadas, bem, pelo contrário, serve para unir e melhorar cada um, inclusive, suas concepções de mundo. Talvez, daqui para frente, esses filmes sirvam como uma lição ou um auxílio para que os indivíduos percebam que não é o personagem tal, por exemplo, o Edward de “Crepúsculo” que é perfeito, mas, o que você pode extrair dessa perfeição que seja comum a suas características e que você, com isso, melhore a sua vida. Aí, sim, o amor fica mais fácil, no momento em que tudo, pelo menos, parece bem dentro de você mesmo.

Regurgitofagia

Termino mostrando um trecho da peça “Regurgitofagia”, de Michel Melamed, em que ele mostra a verdade nua e crua dos casamentos e do amor. Esse é o desfecho da minha VINGANÇA às “coisas bonitinhas”, que, por sinal, são bem “irritantezinhas”. Elas irritam por terem seu foco apenas na pessoa amada e servem para, quem sabe, trazer uma esperança no telespectador em relação ao amor. Este amor, sinceramente, não chegará aos pés dos vistos no cinema.


CONEXÕES

por GILBERT ANTONIO

D

efinitivamente, há certas sutilezas escancaradas e vinganças inconscientes nas relações humanas. Há muito ‘amor amado’ para que não se possa odiar depois. Tais sutilezas estão nas entrelinhas, subsistem e coexistem com requintes de crueldade. Disfarçadas ou não, se esgueiram sutis e comungam de prazeres que demandariam sessões homéricas de psicanálise. Parecemos vingar-nos, primeiro, porque se pôs fim à nossa separação; depois, porque o nosso vazio não foi preenchido; em seguida, porque não fomos correspondidos e tampouco nos foi dada a distinção do mérito e do direito de salvação e satisfação. Passamos a nomear os que devem ser punidos, elegemos os que parcialmente recebem a expiação da culpa e são também eximidos do pecado. Abertamente e notoriamente, passamos a segregar de forma


IMPERFEITAS

e vinganรงas requintadas


dantesca os níveis de ocupação desse inferno pessoal e inexoravelmente intransferível. Embora possamos odiar inconscientemente a vingança, somente a transpomos quando nos tornamos objeto e motivo da própria. Pretensiosamente, desejamos ocupar o papel de vingadores, de vitimarmos o nosso amor, de, igualmente, travestirmos de alegorias mundanas nossos sonhos, nossas expectativas e nossos pretensos ideais de justiça. Somos ardilosos, sutis e sorrateiros quando nos vingamos. Usamos a palavra com maestria e precisão cirúrgica e parecemos prescindir da culpa, da moral cobiçada e existencial. O filósofo Martin Buber, consciente, nos diz que “existe a culpa real, que há valor no “coração sentido que censura”, e que a reparação, a reconciliação, a renovação exigem uma consciência “que não foge da visão das profundezas, e que quando censura procura o meio para atravessá-las”. “O homem é o ser capaz de se sentir culpado e capaz de iluminar sua culpa”, diz Buber. A vingança explícita ou implícita antecede a culpa, a reflexão. Instintiva, elenca sua existência justificada na preservação e manutenção da honra, dos direitos – exercidos ou não. Arma-se de um pretenso direito adquirido e pode ser cozida em fogo brando. Sem pressa, silenciosa e assustadoramente real. Traz consigo certa crueldade latente, visceral e sedutora. Goza-se de um prazer que transcende os escrúpulos, as raias da realidade. Direitos se tornam subjetivos e só se vislumbra o ato, a vingança pura, simples, dissimulada e/ou totalmente declarada. O que ela – a vingança – está dizendo é que a liberdade e a prática começam quando reconhecemos o que é possível – e o que não é. Parte-se do pressuposto de que essa vingança está nos dizendo que, se chegarmos a conhecer a natureza da nossa insatisfação e


atitude, poderemos impor nosso destino sobre a anatomia de nossas intenções e ações. Sob essa perspectiva, novas abordagens e variações sobre a vingança e sermos vingados acontecerão: Seremos vingados quando silenciarmos sobre essa geração que raciocina demais para poder ser feliz e bonita. Uma linha tênue irá separar e, ao mesmo tempo, conectar os motivos e suas respectivas origens. Desvanecerse-ão os paraísos artificiais e, igualmente, os arquétipos caricatos. Passaremos a nos vingar do prazer coletivo quando vivermos à margem, quando representarmos a antítese da vigência e da unanimidade tacanha. Será aliada à doce vingança a ironia fina, estudada, inteligente e perfectível. A vingança igualmente se travestirá de vergonha alheia. Será vaidade despretensiosa, calculada e simetricamente ajustada. Gozaremos desse prazer sempre que as máscaras caírem, que a verdade vier à tona, sempre que formos reconhecidos pela atitude, pela intrepidez, pela postura e pela honradez. Sim, nos vingaremos sempre que a justiça for feita, conquistada e estabelecida. E, também, quando a palavra encontrar seu Norte e definir a idiossincrasia das relações humanas. Seremos vingados quando a unanimidade cega reconhecer que errou, que elegeu candidatos adaptados às necessidades individuais e/ou de um grupo de interesses escuso. É chegado o momento em que devemos optar: curiosidade pela descoberta infinita da vida, de seus prazeres sensíveis, de suas alegrias selvagens, ou a vingança eminente da vergonha eterna. Culpa – opte você! Faz-se silêncio.


Tora! Tora!

TORA! por ANDRÉ OLIVEIRA


A

ira está ligada à risada, pois ela expressa o visceral da exposição dos sentimentos. É uma expurgação da raiva, um soco na própria cara, é ver-se livre para enfrentar tabus de maneira infame e ridícula. A culpa se esvai na gargalhada, e a sensação de ter dado um soco e quebrado alguns narizes é impagável. O quão bom é se imaginar atirando aleatoriamente em vidraças, jogando tomates naquele cantorzinho “modáfôquer” ou se acabar em uma guerra de travesseiros? A sensação do “ufa!” é indescritivelmente boa, como Paul Vitti, em “Máfia no Divã”, tentando extravasar sua frustração com a ajuda de seu analista:

Cena de Máfia no Divã

Esse “feel better”, depois de jogar pra fora a ira presente em cada um de nós como um instinto natural, é inevitavelmente humano, ou mais, é algo sagrado da natureza. E é da natureza do mundo o furor, a fúria, a ira, a raiva. O planeta tem nervos, um núcleo incandescente à flor da pele. Tudo veio do nada, que provocou o famigerado, renegado e tão perturbante “Big Bang”, e a catarse cósmica teve sua gênese, impregnando-se desde os diabos-da-tasmânia até as travestis ensandecidas mostradas por Caco Barcellos. A fúria que vem da natureza fascina e atordoa cada vez mais. Os filmes-catástrofe, que lotam salas de cinema, exemplificam essa ligação entre nós e o resto do mundo, uma vez que viemos todos do mesmo grão enfurecido de caos e vida que ainda propaga suas vibrações a todo canto. Assistimos às cenas, boquiabertos, num misto de entusiasmo, empatia e pavor que nos fascina e faz a adrenalina correr louca pelas veias. Além, é claro, da verossimilhança aterradora de que aquilo pode realmente acontecer, como o hipercalórico “2012” bem mostrou: Não ter fúria é não ter nada e não ter nada é anular-se, abdicar do dom de “ser”. Negar a existência é negar a fúria. E não há como ser nada sem pressupor um tudo. Acho que deu um nó no cérebro, não?

Cena de 2012


E essa fúria intrínseca ao mundo, se analisada entre nós, humanos, deixando de lado a natureza, provoca uma erupção de discussões sobre as maneiras que nós encontramos, atordoados no caos, para vomitá-la. A confusão de ser racional, consciente e com um inconsciente no total underground da mente, faz o tal nó ficar ainda mais apertado e enfurecido, nos dilacerando. Não conseguimos canalizar maneiras menos dolorosas de expurgar o que nos é natural, e essa angústia abre um baú enorme de transtornos e problemas que nos assombram e mutilam o tempo todo por conta dessa carência de glamour próprio. Dá pra ver que não é muito produtivo mandar engolir, digerir ou introduzir algo em orifícios carentes de luz solar, como o enfezadinho Collor sugeriu ao nobre colega. Não há como fugir da inquietação pra dentro de si. Só nos resta, então, fatalmente, TER que lidar com isso, de uma maneira ou de outra. E isso não é uma preocupação inédita entre nós, gentalha. Pelo contrário, estamos sempre atrás de entretenimento, de maneiras mais eficazes de nos expandir, de botar pra fora nossos instintos enfurecidos e nossa coleção de ônus vai aumentando ferozmente. Um dos melhores cúmplices que nos ajuda a catapultar essa fúria é algo que 99,9% das pessoas têm em si, em maior ou menor grau - o humor -,já citado no início de nossa conversa como válvula de escape emocional.

Brindar à infâmia, rasgar o verbo com sarcasmo, ou rir da própria desgraça são alguns dos artifícios para não termos que voltar à bestialidade e sair por aí se dilacerando como lobos ou leões no Coliseu. O “panis et circenses” foi se aprimorando ao longo de nossa evolução antropológica, substituindo gladiadores por palhaços e leões por ogros simpáticos no cinema. Assim, além de nos “esvaziar”, acabamos também lidando com tabus, traumas e desilusões a ponto de transformá-los em piadas e diminuí-los, nos achando ridículos, rindo de nós mesmos. A comédia sempre teve grande audiência, como as supracitadas catástrofes naturais, que nada mais são que as catástrofes pessoais. “Rir é o melhor remédio” é um dos clichês mais coerentes e saudáveis e é muito pertinente que tomemos com frequência boas doses de gargalhadas, que abusemos do sarcasmo e da ironia para evitar os cânceres da alma.


A fúria melódica

M

uitos usam a música para expurgar e o fazem de maneiras distintas, porém com o mesmo objetivo intrínseco: lidar com a inquietude. Seja um metal freak ou um punk descabelando num inferninho da vida, a funkeira “watermelônica” aos bruscos “creus” ou o pastor dilacerando Satanás em suas pregações. Um grito, um clamor, um F#CK ecoando nos caóticos guetos que traduzem o êxtase perturbado dos manifestos humanos.

Tenacious D - Beelzeboss

E também há quem se esquive pelo caminho oposto, seja na serenidade de um Chopin ou Vivaldi, ou um hindu no êxtase de seus mantras hindus, no sertanejo e sua viola melancólica em um “rancho fundo bem pra lá do fim do mundo”, ou num amargurado ‘tarjaprêtico” todo cagado ao som de Radiohead ou Aimee Mann submerso em seu iPod colado ao travesseiro ou, enfim, nos bucólicos boêmios acompanhados de seus vinhos ao som de um Belle & Sebastian, Simon & Garfunkel ou os urbanos e noturnos blues... Nossas frustrações, indagações, inquietudes e dilemas, tudo o que está impregnado em nós, a eterna trindade que nos dilacera, entre a fé, a razão e o desespero...

Cena de Magnolia


por THAMIEL DUAIK

P

intemos o seguinte quadro: você está saindo há pouco tempo com uma pessoa, cujo temperamento e caráter lhe são quase que inteiramente desconhecidos, despertando em você, a despeito disso, um sentimento especial. Decide certo dia levá-la a um restaurante em que ela nunca esteve. Ao chegar, enquanto você apresenta o local, é interpelado por alguém que você conhece de seu último relacionamento, e que, nada tendo feito que o desabonasse, era até digno de sua simpatia. Você apresenta a pessoa à sua companhia, informando-a que ela e o seu amigo fazem a mesma faculdade, mas em universidades diferentes. Inicia-se uma conversa que o mantém ao lado de sua companhia, mas a quilômetros do assunto tratado, uma vez que sua profissão nada tem a ver com a deles; sua educação, é claro, o faz ouvir silenciosa e atentamente o que eles conversam, apesar de parte do esforço por entendêlos ser em vão. Eis que então acontece algo que você entende, mas torce para ter se equivocado: Sua companhia questiona o conhecido sobre a qualidade de ensino do seu curso, manifestando o desejo de se transferir para lá, em parte porque o irmão dela mora na mesma cidade onde fica aquela universidade. O amigo, após recomendar com certo entusiasmo a possível escolha, se dispõe, amigavelmente, a apresentar suas instalações. E, imbuído desse espírito fraternal, vai além. Embora saiba que o irmão de sua companhia mora na mesma cidade, oferece sua humilde residência, que ficaria ao lado da universidade, para que ela possa pernoitar quando de sua visita, perguntando antes, contudo, se você


Eu me

mordo de

CIÚME “Through negation of what is not love, love is” Jiddu Krishnamurti


autorizaria o convite. Você, ciente de que, embora goste dela, nada de oficial (e muito pouco de extra oficial) tem com a pessoa, procura sair dessa com “bom humor”, brincando com o seu já não tão amigo, sem, por óbvio, contar que não estão namorando. Sua companhia nada diz ao amigo (da onça). Nem sim, nem não. Seu peito aperta. A raiva começa a dar sinal de vida dentro de você, e uma dúvida se instala em seu ser: Mantenho o ar tranquilo ou empalo o cidadão em praça pública? Sem saber qual a melhor solução, cuida por manter as aparências, mantendo no rosto um sorriso tão espontâneo quanto o de uma estátua de cera do Madame Tussauds. Sem ter mais assunto, o cidadão, Judas Iscariotes, pergunta a ela se ela vai num evento de nome estranho, e antes que você entenda a empáfia do desgranhento, ela responde “certeza”, replicado por um “então a gente se encontra por lá”... Perguntando a ela sobre o tal evento, vem você a saber que se trata de uma semana de disputas esportivas entre várias universidades da região, que como qualquer festa de faculdade, redunda no previsível: Putaria – e deslavada. Pelo menos, antes de ir embora, o cidadão lança o que pode – não sem muita condescendência de sua parte – ser uma atenuante genérica: Lamenta que a namorada foi para a cidade dos pais e o deixou sozinho. Que bom que ele lembra que tem uma! Despedidas falsas, socos imaginários, cada um pro seu canto. Ah, quase ia me esquecendo de um detalhe crucial: Como ele ficou à disposição de sua companhia, pediu, ao final, que você anotasse o novo celular dele... tendo sua companhia tomado a iniciativa e anotado o número também. Se ao final deste texto você pintou o mesmo quadro que eu, dividimos uma mesma opinião: A imagem final é detestável. O ciúme é dos primeiros sentimentos a serem definidos pelo pensamento humano, sendo tão antigo quanto o próprio homem; sua importância, contudo, na dinâmica das relações humanas é controvertida, havendo, de um lado, quem o considere uma necessidade fundamental de um relacionamento, uma das várias expressões do


amor, e, no extremo oposto, quem o encare como uma terrível manifestação de egoísmo, a síntese de uma personalidade deturpada, o grande câncer que condena de morte qualquer sentimento, por mais genuíno que seja. Interessante é perceber que, qualquer que seja a posição, ela sempre beneficia de alguma forma o relacionamento e a vida de quem a adota - todos nós conhecemos casais que se comprazem e se confortam em receber um do outro manifestações de ciúme, como também sabemos de pessoas que tem verdadeira ojeriza de qualquer espécie desse sentimento. Num primeiro momento, portanto, o ciúme parece ser, concomitantemente, um bem e um mal da natureza humana. Para saber, contudo, o real papel do ciúme em nossas vidas e na vida de seu (in) feliz destinatário, é necessário observar e entender um pouco mais aquilo que o pressupõe, a sua razão de ser: o relacionamento humano, amoroso, familiar ou simplesmente afetivo – não existe ciúme de si mesmo. A partir daí, talvez possamos compreender se o ciúme é, nos dizeres de Stendhal, um tributo ao amor ou uma ofensa à sua virtude. A explicação mais aceita ou, ao menos, a mais conhecida para a questão sobre o porque do homem relacionar-se, é a formulada por Aristóteles; para o Estagirita, o homem é o ‘zoon politikon’, o animal político por excelência, que tem em sua relação com seus semelhantes uma manifestação de sua natureza, muito além do mero instinto gregário manifestado por várias espécies de animais. Para saber mais do assunto, conversei com João Paulo Correia Lima, Psicólogo, Mestre em neurociência pela USP e exDiretor da Associação Brasileira de Medicina Psicossomática, entidade sem fins lucrativos que tenta resgatar a Medicina

às suas origens históricas, tal como idealizada por seu pai, o grego Hipócrates. Segundo ele, a Medicina Psicossomática “é o nome de um movimento que considera a pessoa na sua integralidade bio-psico-social. É conceber a pessoa que o profissional da saúde atende, seja qual for a sua especialidade (médica ou não), como um todo que compreende seu corpo, suas emoções e o meio em que vive”. O termo “psicossomática”, aqui, deve ser afastado de seu conceito comum. “O sentido de ‘psicossomática’ como doença causada pelos afetos já é antiquado. Mesmo a OMS [Organização Mundial da Saúde] já diz que toda doença é psicossomática. Antigamente as pessoas consideravam apenas uma causa para as doenças, então, ou era ‘psíquica’ ou era ‘somática’. Hoje, sabemos que em todas as doenças existem e coexistem os fatores biológico, social e psíquico”. O ciúme, afirma o Psicólogo, tem chamado atenção dos estudiosos desde a antiguidade. Já como objeto de estudo científico, é tão recente como as próprias ciências psíquicas. “De início, chamava a atenção somente como fenômeno mórbido, quer dizer, os famosos delírios de ciúmes, onde a pessoa fica tecendo histórias de traições e desconfianças, sem fundamento real, e é capaz de atos de muita violência em relação ao objeto desse ciúme. Porém, só recentemente foram desenvolvidas teorias capazes de situar o sentimento na sua dimensão cotidiana”. Uma delas é a denominada “psicologia evolucionista”, que dialoga com biologia e cultura, investigando como os estímulos ambientais interagem com a mente para produzir os comportamentos observáveis. Para João Paulo, o ciúme pode ser analisado tanto como um sentimento em si mesmo ou como um sintoma. No primeiro caso, ele é uma reação instintiva, “um


indicador inato de que relações importantes para a pessoa estão correndo perigo, ou seja, em risco de perda. Isso pode ser um sintoma, por outro lado, quando vem acompanhado de condutas violentas, situações imaginárias, suspeitas fortes e obsessivas”. Ainda assim, segundo João Paulo, o ciúme pode ter sim uma função positiva. “É um dispositivo para chamar a atenção, como a dor, por exemplo. A dor incomoda, chama a atenção, e você fica motivado a fazer algo. O ciúme é o mesmo”, trazendonos indícios de problemas outros que nos mobilizarão para novas auto-descobertas, e nos farão procurar algo que nos altera e nos sensibiliza. “O problema é justamente o ‘algo’ que a pessoa escolhe”, pondera João Paulo. “Algumas pessoas escolhem caminhos positivos; outras ficam desorientadas e ao invés de protegerem seus relacionamentos, infernizam seus parceiros de tal modo que se tornam aversivos e o relacionamento altamente destrutivo”. Mesmo assim, popularmente o ciúme ainda é recebido como benéfico, o que pode ser extremamente prejudicial nos casos realmente doentios. “Isso acaba trazendo certa ‘normalidade’ ao ciúme, fazendo as pessoas aceitarem situações perigosas como normais”, adverte João Paulo. Nem todos os estudiosos do ciúme conseguem avistar esse lado amigo. Wimer Bottura Júnior, Médico Psiquiatra e Psicoterapeuta, em seu livro “Ciúme – entre o amor e a loucura” lançado pela Editora República Literária, afirma que o ciúme é sempre doença, qualquer que seja a intensidade de sua expressão. Para Wimer, “o ciúme funciona como um remédio que faz mais mal do que a própria doença a ser curada. Enquanto gastamos tempo e energia para corrigir os danos causados pelo remédio, deixamos de cuidar da verdadeira doença que vai se agravando e, fatalmente, necessitará de abordagens terapêuticas mais drásticas no futuro.” Segundo o Psiquiatra, o ciúme vem, via de regra, justificado por comportamentos pretensamente racionais, mas que em si mesmos são motivados por grandes conflitos emocionais, que acabam passando desapercebidos. “É difícil entendermos que por trás de uma boa razão existe uma emoção ou sentimento e que a racionalidade,


quase sempre, esconde os verdadeiros motivos de uma atitude ou tomada de decisões”. Assim, dissimulamos nossos sentimentos em comportamentos cuja sutileza, aos olhos comuns, tomaria ciúme por nobreza. “Quantos maridos, por exemplo, mostram-se prestativos e cuidadosos com a esposa, aparentemente em pequenas e inocentes atitudes? Controlam os canhotos do talão de cheques, fazem as compras da casa com a maior dedicação, marcam e desmarcam consultas no dentista, e por aí afora. Poderíamos dizer que atos deste tipo expressam a mais singela cooperação no casamento. Racionalmente, estes maridos se justificam, seja porque suas esposas não gostam de fazer contas ou, ainda, porque gostam de ser paparicadas. Uma outra leitura, no entanto, pode ser feita além da margem da racionalidade, a partir de uma possível fantasia de ciúme. Estes maridos podem acreditar que, controlando os cheques, podem também controlar suas mulheres, seus gastos, com quem gastam, saem ou se estão traindo ou não”. Nesse sentido, o ciúme pode ser um monstro de mil faces. Maridos que mudam totalmente suas atitudes para com a esposa com a chegada do primogênito; outros que rejeitam o filho por considerálo uma ameaça; homens e mulheres que não conseguem lidar com o sucesso de seus companheiros; mães que concorrem com as próprias filhas em tudo; irmãos cuja principal razão de viver é disputar entre si a atenção dos pais. E todos agindo em nome do amor. “Infelizmente é assim, num ambiente meio disfarçado e inconsistente, no qual muitas pessoas não saberão diferenciar os sentimentos que determinam suas escolhas e comportamentos. Acreditar, pura e simplesmente, na racionalidade leva-nos a uma insatisfação sem fim; não conhecer a emoção ou sentimento que está mobili-

zando um pensamento ou comportamento, leva-nos a graves erros”. Assim, Wimer traz um conceito um pouco mais pesado do sentimento que estamos discutindo: “O ciúme é um sentimento do aspecto da emoção medo que, posteriormente, se mistura às características de raiva. Se o medo não é eliminado ou protegido logo de início, o organismo irá associá-lo de imediato à raiva e se encarregará da defesa do indivíduo. Se a raiva não resultar na solução da ameaça, entrarão em cena comportamentos mais elaborados: passo a passo vai se construindo um castelo de ciúme, sustentado em sua base pela desconfiança e pelo controle”. E há, acreditem, quem possa afundar ainda mais o pé nessa lama. O Indiano Jiddu Krishnamurti (18951986) foi um dos grandes pensadores do século passado; em razão de suas idéias e suas atitudes caminharem em absoluta consonância entre si, ele se tornou um expoente em si mesmo, além de qualquer filosofia, religião ou seita formalizada. Realizava palestras apresentando-se não como autoridade, mas um homem apresentando suas opiniões a outros. Apesar disso, a força de suas idéias não trazem simples preleções - são tapas na orelha. E não é por acaso que ele abre esta matéria. “A vida são relações que se expressam no contato com coisas, pessoas, idéias”, sendo que “as relações são espelhos em que nos descobrimos. Sem relações não existimos”. Por isso, completa Krishnamurti, “compreendendo as relações, teremos capacidade para enfrentar a vida de maneira completa, adequada”. Todavia, se formos perguntados a respeito do motivo pelo qual nos relacionamos, a resposta será que todos nós buscamos o prazer e não a dor, buscamos ser feliz, e, nos relacionamentos, encontraríamos o ensejo para alcançar essa felicidade.


Para Krishnamurti, contudo, este movimento em específico, da busca pelo que nos apetece e conforta, conquanto resuma quase todos os fundamentos de nossos atos, seria na verdade, mais uma de tantas maneiras que encontramos para fugir de nós mesmos. O ciúme, neste sentido, seria mais um desdobramento de nossa muito bem velada repulsa pela introspecção, pelo auto-conhecimento. Krishnamurti é contundente: “em nossa solidão, em nossa desgraça, procuramos servir-nos uns dos outros, fugir de nós mesmos”. “Só estamos em relação com alguém enquanto essas relações nos agradam, enquanto nos proporcionam um refúgio, enquanto nos satisfazem. No momento em que ocorre qualquer perturbação, causadora de desconforto para nós, abandonamos essas relações. Em outras palavras, só há relações enquanto estamos satisfeitos”. Para aqueles que vêem no ciúme um bem, a exteriorização do sentimento que temos pelo outro, demonstrá-lo implica em assumir publicamente o amor - quem ama cuida, diz o velho bordão. Se eu gosto de você e você de mim, então é público e notório que possuímos o sentimento um do outro, tornando-nos verdadeiros proprietários do direito de sermos, eternamente, destinatários exclusivos do sentimento e do afeto do outro. Propriedade, em sua definição jurídica, é a relação exclusiva entre um sujeito e uma coisa, em que uma de suas principais características é poder ser exercido em oposição a todos que não tenham o objeto, contra todos – erga omnes. Silvio Rodrigues, um dos maiores jurisconsultos que este país já teve, traz uma definição jurídica de propriedade que não poderia ser mais oportuna: Uma vez estabelecida a propriedade, em favor de alguém, sobre certa coisa, “tal direito se liga ao objeto, adere a ele de maneira integral e completa, como se fosse uma mancha misturada à sua cor, como se fosse uma ferida ou uma cicatriz em sua face”. Levinho, né?... Na vida afetiva, valemo-nos por inteiro deste conceito ao assumirmos e iniciarmos um relacionamento, presumindo o direito de protegê-lo de qualquer ameaça que possa perturbá-lo. Nosso amor, assim, implica em nos tornamos proprietários não apenas do sentimento do outro, mas também de sua vida.


Amar está invariavelmente ligado à idéia de desejo, de posse. E o ciúme é justamente um dos resultados da perturbação deste pretenso sentimento. Com o convívio, esquecemo-nos do sentimento que tivemos, e relacionar-se passa ser administrar a posse que julgamos ter sobre a outra pessoa, seus sentimentos, sua vida. Assim, segundo o pensador indiano, o ciúme não está ligado ao amor, mas única e tão somente à posse, que segundo ele, como já dito, é mais um meio de fuga: “servimo-nos das nossas relações como um meio de auto-esquecimento; e enquanto essas relações não nos mostram o que somos realmente, estamos satisfeitos. Eis porque aceitamos o domínio de outra pessoa”. “Quando minha mulher ou meu marido me domina, isso não revela o que sou, sendo uma fonte de satisfação. Se minha mulher não me domina, se é indiferente o que realmente sou, isso causa muita perturbação. Quem sou eu. Um ente vazio, rígido, confuso com certos apetites – e tenho medo de enfrentar esse vazio. Por isso aceito o domínio de minha esposa ou de meu marido, porque me faz sentir muito perto dele ou dela, e não desejo ver-me tal qual sou. E esse domínio dá um sentimento de relação, esse domínio gera o ciúme: se não me dominais, é porque estás com os olhos noutra pessoa. Por isso, tenho ciúmes, porque vos perdi; e não sei como me livrar do ciúme, o qual está também no plano do cérebro”. Em uma palestra proferida em Bombaim, Krishnamurti explicita este conceito: “O amor é um processo do pensamento? O amor é uma coisa da mente? Na realidade, para a maioria de nós, ele é. Não digam que não - é um absurdo fazê-lo. Não neguem o fato de que o seu amor é uma coisa da mente. Ele por certo é; do contrário, vocês não possuiriam,

vocês não dominariam, vocês não diriam ‘é meu’. (...) Vocês podem pensar na pessoa a quem amam, mas pensar na pessoa a quem amam é amor? Quando vocês pensam na pessoa a quem amam? Vocês pensam nela quando ela se foi, quando ela está longe, quando ela os deixou. Mas quando ela não os perturba mais, quando vocês podem dizer ‘ela é minha’, vocês não têm de pensar nela. Vocês não têm de pensar nos seus móveis; eles são parte de vocês - o que constitui um processo de identificação destinado a evitar que vocês sejam perturbados, a evitar problemas, ansiedade, tristeza. Assim, vocês só sentem falta da pessoa a quem dizem amar quando estão perturbados, quando estão sofrendo; e enquanto possuem a pessoa, vocês não têm de pensar nela, porque na posse não há distúrbio. Mas quando a posse é perturbada, vocês começam a pensar e dizem ‘eu amo essa pessoa’. Logo, seu amor é uma mera reação da mente, não é? O que significa que o seu amor não passa de uma sensação, e a sensação sem dúvida não é amor. Vocês pensam na pessoa quando vocês estão juntos? Quando vocês possuem, retêm, dominam, controlam, quando podem dizer ‘ele é minha’ ou ‘ele é meu’, não há problema. E a sociedade, tudo quanto vocês construíram ao redor de si mesmos, os ajuda a possuir para evitar que vocês sejam perturbados, para vocês não pensarem nisso. O pensamento vem quando vocês estão perturbados – e vocês estão fadados a ser perturbados enquanto seu pensamento for aquilo que chamam de amor. (...) Logo, o que chamamos de nosso amor é uma coisa da mente. É porque as coisas da mente ocuparam o nosso coração que não temos amor”. Concluindo, Kishnamurti sentencia: “O homem que ama não é ciumento. O ciúme é coisa do cérebro, mas o amor não pertence ao cérebro; e onde há amor não há domínio”.


Surpreendentes palavras! Krishnamurti não nos traz um prognóstico muito promissor, cujo enfrentamento já é, de início, perturbador será que de fato não sabemos o que é o amor? Senhoras e senhores, Erich Fromm: “O amor não é um sentimento que qualquer um possa cultivar sem maiores problemas, independentemente do seu grau de maturidade. (...) Todas as suas tentativas de amar estão fadadas ao fracasso, se ele não procurar ativamente desenvolver sua personalidade como um todo a fim de atingir uma orientação produtiva; essa satisfação no amor individual não pode ser alcançada sem a capacidade de amar o próximo, sem verdadeira humildade, coragem, fé, disciplina. Numa cultura em que essas qualidades são raras, alcançar a capacidade de amar é necessariamente um feito raro”. O livro “A arte de amar”, que abre com estas palavras, foi escrito em 1956 pelo psicanalista alemão, mas traz premissas ainda hoje revolucionárias, permanecendo além de seu tempo. Se o amor é arte, requer conhecimento e esforço, vale dizer, a dedicação obstinada à altura de todo nobre ofício. Creio que o maior desafio do diálogo entre amor e o ciúme é o de reconhecer em nossos relacionamentos a primazia da liberdade, sobre o outro e sobre nós mesmos. Parece-me muito difícil na prática, máxime em situações como a narrada no início dessa matéria, que a propósito, aconteceu com um amigo (que não sou eu), cessar as vozes e sussurros de nossos medos em nossas vidas; tornarmo-nos infensos ao impulso avassalador da posse sobre tudo o que nos cerca. O outro, com o qual nos relacionamos, quer queiramos ou não, possui um atributo, algo que, mais do que uma característica, é um valor que lhe é imanente – ele é livre. Foi, é e sempre será. Gostará de nós enquanto assim o quiser; estará conosco enquanto assim desejar. Olhar para nossos relacionamentos aceitando esses fatos talvez seja o antídoto não apenas contra o ciúme, mas, principalmente, contra toda falta de amor próprio. A melhor resposta, nesse caso, talvez seja a mais simples – cabe a nós escolhermos se desejamos construir nossos relacionamentos com base no medo ou na liberdade. Esta última com certeza nos trará maiores desafios, mas que certamente só serão enfrentados uma vez.


Livros citados nesta matéria

Sobre o amor e a solidão Jiddu Krishnamurti Editora Cultrix - R$ 22,00

Ciúme - Entre o Amor e a Loucura Wimer Bottura Jr. Editora República Literária

A Arte de Amar Erich Fromm Editora Martins Fontes

Direito Civil. Vol. 5 Silvio Rodrigues Editora Saraiva


Amores

CONTUR


RBADOS


por CRISTIANE SITA

“E

u estava aterrorizada. Não sabia muito bem o que fazer. Ele gritava tanto e parecia tão angustiado que resolvi obedecê-lo. Qualquer acusação, ou pergunta que ele fizesse, eu apenas respondia: ‘Você tem razão, eu sou uma vagabunda’. Depois de quarenta horas seguidas, troquei o número do celular e passei cinco dias na casa da minha irmã. Recebi um e-mail pedindo perdão, mas aquilo era um fato cíclico e repetitivo. Depois de dois anos, eu cansava da mesma história e finalmente desistia da relação.” Clara, dentista, 34 anos. “Eu devo ligar para ele em intervalos regulares para contar como, com quem e onde estou. No começo achei tudo isto uma graça, mas agora este cuidado todo me parece obsessivo. Tenho webcam ligada 24h no meu quarto e GPS no celular. Ele controla todos os meus passos, até meu sono. Diz que eu posso ficar doente ou ser assaltada, mas ele sempre acredita que estou com um alguém imaginário. Colocar aliança depois de dois meses juntos parece uma loucura pra todo mundo, mas eu simplesmente achei que isto detivesse sua insegurança. Não vejo escapatória e pra me ver livre das discussões, acho mesmo que vou casar com ele.” Patricia, relações públicas, 40 anos. “Faz cinco meses que abandonei a relação e a idéia doente de voltar com ele. Achei que estivesse livre, mas hoje, olhei pela janela e vi seu carro estacionado em frente ao prédio. Ficou lá por duas horas inteiras. Tive medo. Medo. Com ou sem ele, depois de conhecê-lo, eu sinto apenas, medo.” Catarina, arquiteta, 28 anos. Estes não são trechos do roteiro de regravação de “Dormindo com o Inimigo”. São relatos reais, com nomes protegidos, de mulheres de várias faixas etárias que simplesmente tiveram o azar de conhecer – e amar – um homem doente. A bibliografia do assunto varia em sua


denominação. Alguns os chamam misóginos. Outros acreditam que são possuidores do “amor patológico”. A misoginia, em sua etimologia, significa ódio a mulheres. O amor patológico é, basicamente, uma compulsão, um vício, e, como toda adicção, torna-se uma obsessão. Ambos, de qualquer maneira, resultam em um comportamento doentio. Os homens descritos acima são pessoas absolutamente normais aos olhos da sociedade, não demonstrando sua obsessão abertamente nos setores de suas vidas. São amigos queridos, profissionais bem sucedidos, filhos amados. No máximo, eram considerados ciumentos demais. Talvez um pouco conservadores ou radicais. Nunca perturbados, psicopatas ou sociopatas, mesmo que um dia eles cheguem ao turning point e agridam seriamente alguém. A fim de entender se estes homens - com comportamentos muito parecidos aos olhos de suas parceiras - são misóginos ou compulsivos por amor, falamos com duas psicoterapeutas. Cada uma delas especializada num dos assuntos para tentar traçar um paralelo e decodificá-los. Obviamente, a mulher que estiver num relacionamento conturbado não conseguirá fechar um diagnóstico, mas poderá ter pistas para saber se deve ou não procurar ajuda profissional. Para permanecer, ou para escapar, literalmente, de seu relacionamento.

Quem chamamos? Para falar de amor patológico, Taty Ades. Escritora e psicanalista, com foco em amor patológico. Seus livros são: ‘Hades – Homens que amam demais’, ‘Deus no divã’ e ‘Escravas de Eros’. Para falar de misoginia, Rita Maria Brudniewski Granato. Especializada em psicologia clínica, psicanálise, hipnose e terapia floral. Escreve em revistas eletrônicas e sites. Ministra palestras e cursos.


MANUSCRITA - Ao falar com as mulheres envolvidas em relacionamentos conturbados, a maioria delas os “diagnostica” como misóginos. No livro Hades, da Taty, eles são doentes de amor patológico. No site da Rita, eles nos parecem bastante com os misóginos. Há um componente misógino? O misógino possui um componente compulsivo? Taty - É muito importante esclarecer a dife-

rença entre o misógino e o homem que ama demais. O misógino odeia a mulher, não consegue se conformar com o avanço da mesma na sociedade, acredita que a mulher ideal ficou em outro século. Seria a dona de casa que não trabalha, obedece ao marido e não tem prazer sexual. Existe um contexto preconceituoso nesses homens, que sentem raiva da mulher e são a favor do abuso físico e emocional das mesmas. Acho extremamente importante a revista tocar nesse assunto. A misoginia vem crescendo muito e precisamos ficar de olhos abertos. Amar demais é um termo usado em psicanálise para definir pessoas que se amam de menos, e sofrem processos de repetição de um padrão doentio. Quando criança, ele viveu em um lar desestruturado, presenciou um casamento fracassado de seus pais, brigas, abuso de álcool e vícios. Esse homem, quando adulto, repetirá padrões dos pais por dois motivos: um, para reviver o familiar e, outro, para tentar modificar o que foi ruim na infância. Ele, então, busca mulheres problemáticas para poder se relacionar e, entre o casal, se estabelece um vínculo simbiótico e doentio, um jogo onde duas pessoas são co-dependentes, se alimentando uma da outra, num processo parasita e muito perigoso. Amar demais é tão perigoso quanto beber demais ou jogar demais, já que todo comportamento compulsivo pode ser fatal e requer tratamento. O perigo do amor obsessivo está na impulsividade que pode levar ao crime passional. Já o perigo da misoginia está ligado ao planejamento de atos cruéis contra a mulher, onde

cada passo pode ser calculado e há o sadismo presente no agressor.

Rita - Nos relacionamentos conturbados

pode existir o parceiro que é misógino, ou seja, ele tem ódio inconsciente das suas parceiras. É muito comum, a companheira do misógino ter transtorno de dependência emocional e não conseguir sair da relação. A dependência emocional, como toda dependência, está relacionada a um transtorno chamado TOC, Transtorno Obsessivo Compulsivo. O misógino também desenvolve este transtorno, pois tenta controlar a parceira e como, é difícil o controle total, torna-se frustrado e furioso, iniciando os ataques compulsivos contra ela.

Por que a misoginia se manifesta basicamente com a parceira, excluindo o julgamento depreciado das outras mulheres do seu convívio? Taty - A misoginia, como falamos, é um preconceito, portanto está ligada a todas as mulheres, assim como a homofobia aos homossexuais e o anti-semitismo aos judeus e negros, mas, quando a “presa” está próxima, é uma maneira mais fácil de poder manipulá-la por puro sadismo e ódio.

Rita - Há um desequilibro de poder. Em to-

dos os relacionamentos encontramos uma luta pelo poder, mas para o misógino é o grande tema do relacionamento, onde a negociação e o respeito pela parceira são escassos.

Amor patológico, não seria um nome consignado a um erro de linguagem, já que o grande problema é o não amar verdadeiramente nestas relações? Taty - O termo amar demais (que é amar

de forma errada e patológica) surgiu com a psicoterapeuta e escritora Robin Nordwood, que escreveu o best-seller Mulhe-


res que Amam Demais. Após esse livro, houve uma conscientização maior do amor patológico como doença e a necessidade de tratamento. Surgiram os grupos anônimos (MADAS), onde mulheres desabafam diante de outras. Esses grupos se alastraram pelo mundo todo, assim como o nome amar demais, como referência ao amor doentio. (Em seu livro, Taty sugere a criação de grupos anônimos masculinos, os HADES, homens que amam demais).

O misógino pode amar? Rita - Se o misógino odeia suas parceiras, por sua formação psíquica, como ele poderia amar? Ele necessita controlar a parceira, em relação ao que ela pensa, sente, se comporta e com quem ela se relaciona. O amor liberta e constrói. O controle ou a possessividade aprisionam e destroem a parceira. O relacionamento torna-se destrutivo.

dades mais comuns a este sintoma? Ele pode existir isoladamente, como único sintoma? Rita - A misoginia é um transtorno psíqui-

co, onde o misógino esta envolvido num conflito entre a necessidade do amor de uma mulher e o medo profundo e arraigado do sexo feminino. Suas necessidades de intimidade com uma mulher estão misturadas, com o medo que ela possa aniquilálo emocionalmente, como foi em sua história pregressa. Suas experiências infantis é que geraram esse medo latente, inconsciente. O relacionamento dos pais, entre si e com ele, é que podem estar relacionados com a forma que o misógino atua.

O amor patológico pode existir isoladamente, como único sintoma? Como reconhecer o “amor patológico”? Taty - Os principais sintomas de amar

Você considera a misoginia uma doença psiquiátrica? Quais as comorbi-

demais são: baixa auto-estima, ciúme exagerado, sensação de desespero ao estar longe do outro (abstinência, tremores,


dor no peito, agitação, insônia), perda de trabalho, amigos, metas e objetivos. O outro se torna o centro de tudo. Depressão, síndrome do pânico, tentativas ou ameaças de suicídio e suicídio, também configuram outros sintomas.

Nota-se que nestas relações, a mulher entra em conluio com o homem que ama demais ou que age de maneira misógina. A mulher também é doente, ou pode apenas ter uma participação fragilizada nesta história? Taty - É importante perceber que, quan-

do uma mulher está co-dependente, ela também é doente. Temos um casal doente que se une inconscientemente para estabelecer um jogo de padrão doentio. Nesse caso, observamos muitas mulheres que justificam agressões dos homens e dizem que poderão mudá-los, sendo muito difícil a conscientização em terapia, devido uma negação muito forte.

Temos também casos de mulheres que percebem no homem um agressor, mas não possuem condições de sair de casa, seja por estarem ligadas a ele de forma financeira ou por medo de partir e sofrerem perseguição, temendo perder os filhos nessa luta contra o agressor. Nesse caso, temos um problema social: mesmo com a lei Maria da Penha, que deveria ser aplicada em abusos físicos e verbais, muitas mulheres fazem boletins de ocorrência, sem ter apoio algum da justiça. Mesmo assim, é importante ressaltar que, havendo qualquer agressão, a mulher deve fazer o boletim de ocorrência e buscar sair de casa o mais rápido possível, lembrando sempre que o agressor repetirá a agressão, podendo cometer atos terríveis, cada vez piores.

Rita - O misógino é diferente do homem

que ama demais. Os dois possuem a necessidade de controle da parceira, mas o primeiro ataca a companheira e o segundo entra num processo autodestrutivo que se expande para todas as esferas de


sua vida (social, financeira e afetiva). Uma mulher normal dificilmente se relacionaria com um misógino.

O objeto de amor destes homens costuma comportar-se em uma corda bamba, pendendo do amor ao ódio, ambos em proporções bastante parecidas. A mulher está numa espécie de Síndrome de Estocolmo ao amar um homem que funciona como sequestrador de seus atos? Taty - Sim, muito bem colocada a ques-

tão. É justamente isso, amar quem te espanca, te humilha, te deprecia, gostar de quem te agride de uma forma doentia. Costumo chamar esse processo de cegueira emocional.

Rita - As relações conturbadas são regi-

das pelo sadomasoquismo, amor-ódio, dominador-dominado, etc. Isto é, a mulher, a fim de experimentar os bons momentos, tolera muito sofrimento e, assim, ela perde de vista o que realmente está acontecendo entre eles. Há uma distorção da realidade para se ajustar a visão do parceiro. Essa relação é a mesma dos dependentes químicos em relação à droga ou ao álcool.

Em sua opinião, há possibilidade de permanecer na relação e conseguir desenvolvê-la até uma condição saudável do amor? Taty - Isso dependerá do diagnóstico desse

homem que maltrata a mulher. Se ele for um sociopata (ser que não sente culpa ou remorso, e está com o outro por puro parasitismo e sadismo), é impossível que esse relacionamento seja saudável. Caso esse homem seja uma pessoa doente que possui um vício, por exemplo, o de beber demais, é possível que, com o tratamento correto, ele pare a adicção e, dessa forma, também as agressões contra

essa mulher. O importante é saber que a mulher sempre terá que se tratar junto ao parceiro. Lembrando que estar ao lado de um doente é também estar doente. Elas devem analisar todo o histórico de vida e fazer terapia para, enfim, decidir se querem ou não continuar com esse homem.

Rita - Se os parceiros estiverem dispostos

a se tratar, pode haver uma conscientização dos transtornos, uma administração de suas compulsões, mas, para isto, precisa realmente estar disposto a trabalhar em prol de sua recuperação. Freqüentando grupos de ajuda mútua, terapia e muita literatura. Estes transtornos são, muitas vezes, crônicos. Sendo assim, a recuperação se faz um dia de cada vez e por toda a vida, como em casos de diabetes, onde paciente tem de vigiar e controlar seu transtorno pela vida toda e não ter conseqüências mais graves, que podem ser fatais.

Aparentemente, alguns homens não têm esta relação doentia com todas suas parceiras, tendo um comportamento mais “normal” em alguns casos. Existe um gatilho para detonar este comportamento? Taty - Sim, o ciúme é o maior gatilho e ele vem devagar, aparece de mansinho e, de repente, se torna paranóico, obsessivo, doentio. As desconfianças viram certezas e a paranóia vira uma doença terrível, onde o ódio e a depressão tomam conta do indivíduo.

Rita - Normalmente, o paciente já vem

apresentando sinais e sintomas desse transtorno, mas são qualitativamente menores e, dependendo da relação, esses sinais e sintomas podem se exacerbar.

Existem estudos que ligam os vícios - como alcoolismo, por exemplo - ao cromossomo 11, tornando a influ-


ência genética decisiva. O amor patológico é uma compulsão como as outras do ponto de vista clínico?

Taty - Sim, exatamente igual. Tanto que,

uma compulsão levará a outra. Podemos perceber que uma mulher que ama demais irá se atirar em compras e doces de forma compulsiva. Um homem irá partir para o álcool e sexo promíscuo. Os vícios são diversos e podem até disfarçar o problema inicial (no caso, o amor patológico). Dessa forma, vários homens que sofrem da patologia de amar demais, acabam sendo tratados apenas como alcoólatras e o problema real não é detectado. A dopamina, feniletilamina e ocitocina, são produtos químicos, todos relativamente comuns no corpo humano. Em pessoas que não amam demais, com o tempo, o organismo vai se tornando resistente aos seus efeitos - e toda a loucura da paixão desvanece gradualmente - a fase de atração não dura para sempre. O casal, então, se vê frente a uma escolha: ou se separa ou habitua-se a manifestações mais brandas de amor - companheirismo, afeto e tolerância – e permanece unido. Porém, no caso do amor obsessivo, percebemos a presença forte da feniletamina, com uma resistência maior do que o normal. A abstinência de uma pessoa que ama demais, é semelhante a abstinência do viciado em cocaína, com tremores, vômitos, pânico, sudoreses, terror noturno, insônia e até delírios.

Partindo deste pressuposto genético, a compulsão é controlada e nunca curada?

Auto-estima é um antídoto? Taty - Certamente, a auto-estima é o

que permitirá à pessoa saber estar sozinha com ela mesma, sem necessitar da presença de outrem para preencher seus vazios. A auto-estima elevada é um sinal de boa recuperação do paciente que sofre por amar demais. A vida começa a seguir seu rumo, as metas são traçadas e as escolhas dos parceiros são feitas de forma saudável.

Rita - Sim, uma mulher que se gosta, independente emocionalmente, não irá se relacionar com um misógino.

Há como perceber o turning point que levaria a agressões? Você acredita que em casos como o de Eloá e Mércia, o amor patológico ou a misoginia dominava a cena? Taty - Sim, o ciúme é sempre o sinal a ser

notado antes de uma tragédia. Ele vem acompanhado de possessividade, brigas, agressões verbais, que poderão virar físicas e necessidade de humilhar o outro em público, com cenas de escândalos. Nesses casos citados, não creio no amor patológico, creio na frieza dos réus, verificando a conduta de premeditação dos crimes e o sadismo envolvido nos mesmos.

Rita - Eu precisaria de mais dados dos ho-

mens que assassinaram suas namoradas, pois podem existir outros transtornos envolvidos, como a sociopatia, o narcisismo, etc., para lhe responder esta pergunta.

Taty - Sim, a compulsão, pelo padrão de

repetição de um relacionamento doentio, estará sempre presente, pois a necessidade de sentir a adrenalina e dopamina dessa relação é constante. A pessoa que consegue se livrar do inferno de amar demais, precisará estar sempre atenta e controlar seus impulsos para não voltar ao padrão anterior.

Há como detectar um homem que ama demais ou um misógino a olho nu, antes do envolvimento? Taty - Infelizmente, não, mas, em pouco

tempo de relacionamento, já é possível perceber se o parceiro é um possível HA-


DES (homens que amam demais). Ele se mostrará desesperadamente apaixonado e agirá como se o mundo dele não tivesse sentido algum sem a mulher que está ao seu lado. O perigo é a confusão da situação com o tão buscado romantismo, por isso, muita atenção em atitudes exageradas de amor.

Rita - Sim, no início tudo são flores, ele é simplesmente maravilhoso. Dias depois, ele já começa a dar sinais do controle excessivo dos pensamentos, ações, vestimentas, etc. Uma parceira independente, adulta, com boa auto-estima fica sempre atenta.

Recado pras mulheres que se envolveram ou estão envolvidas com um ‘Hades’. Taty - Seja saudável, primeiramente,

reconhecendo que seu parceiro está doente. Perceba se este fato te empolga ou desagrada. Caso note que a relação com um ser doente te faz mal, mas é impossível sair dela (sem nem você sabe direito o motivo), busque ajuda urgente. Psicoterapia e grupos anônimos do MADA são ótimos. Se o HADES te agredir, tanto verbal-

mente, quanto fisicamente, busque ajuda não apenas psicológica, mas da justiça também. Mesmo a lei não sendo colocada em prática da forma que deveria, é melhor que você intimide o agressor, deixe registrado a sua queixa e saia de perto o mais rápido possível. Lembre-se que amar não é sofrer. Amar é sentir paz e tranqüilidade, então vamos acabar com a auto-mutilação, certo? Aprenda a se amar e, quando sentir que está pronta, busque o saudável, afinal, você merece.

Recado para mulheres que se envolveram ou estão envolvidas com um misógino. Rita -Eu orientaria essas mulheres a

procurarem ajuda psicológica, para que elas não repitam esse tipo de relacionamento conturbado, ou consigam sair dele ou viver melhor com ele. Se a mulher muda, também as circunstâncias podem se alterar. No entanto, se ela continuar a se comportar da mesma forma e fizer as mesmas escolhas, é evidente que o resultado será o mesmo.



Lendo a entrevista, uma mulher, que já se envolveu ou está envolvida com um homem obsessivo, pode achar difícil definir o que ele é. Não importa. Procure ajuda. O mais importante é saber que não, você não é culpada por todo este inferno. Você não falhou, está doente e precisa de ajuda. Não odeie o homem que te maltrata: ele também é doente. Quem olha de fora, acredita que é impossível alguém entrar em uma relação assim e acha que estes filmes hollywoodianos exageram. No entanto, é importante saber que, uma fragilidade momentânea, pode abrir a porta para um homem destes e desenvolver todo um processo de loucura numa mulher anteriormente “normal”. Fique atenta. Sempre. O amor não é um fado português para ser tão sofrido. Ciúme excessivo não é uma gracinha. Controle desmedido é assustador. Agressões, quaisquer sejam elas, devem ser levadas em consideração, inclusive as verbais. Exigência de disponibilidade 24horas não é saudável. Nada disso é amor. O amor é outra coisa. Se, em algum momento, o seu amor acredita que você, deveria agradecer a ele por te amar, como na canção de Jay Vaquer e, pior de tudo, você concorda: procure ajuda. Para quem já traçou este caminho, afirmo que há luz no fim do túnel. É preciso ter coragem de acender o interruptor. Às claras, você consegue descobrir todas as sombras que só existem porque há luz. E todas as cores maravilhosas que a vida tem. Não há sentido em aprender a conjugar a vida em terceira pessoa do singular. Mais divertido e mais saudável é aprender a conjugar a primeira pessoa do plural. Respire fundo, olhe para dentro de você e perdoe-se. Pegue a estrada de volta pra casa. A sua casa, você mesma. Ame-se. É a melhor vendetta, sono sicura.

Contato - Taty Ades tatyades22@gmail.com homensqueamamdemais.wordpress.com

Contato - Rita Maria Brudniewski Granato www.ritagranato.psc.br

Jay Vaquer - Pode Agradecer



entrevista

DANIEL

DAIBEM por AMANDA SOUZA

E

le educa os ouvidos dos ouvintes para que saibam apreciar o jazz diariamente no Sala dos Professores, na Eldorado FM (SP). E foi tambĂŠm numa sala, mas dessa vez, a da sua casa, que ele falou sobre o seu universo cheio de tons, semitons altissonantes, que encantam seus ouvintes e quem quer que seja que se ponha a conversar por alguns minutos com ele.

Fotos: Amanda Souza


N

uma tarde calma de quinta-feira, toco a campainha do apartamento de Daniel Daibem e sou recebida pelo próprio, com um tímido (porém simpático) sorriso. O apresentador do Sala dos Professores (no ar de segunda a sábado na Eldorado FM, de São Paulo, às 19h30min) e o cabeça do Hammond Grooves (trio de jazz composto, além de Daibem, por Wagner Vasconcelos (bateria) e Daniel Latorre (órgão Hammond) me convida a me sentar no sofá da sala de seu apartamento simples, mas com a marca musical de seu dono em pequenos detalhes, com uma linda guitarra semiacústica no colo. “É nova, acabei de trazer de Nova York, comprei do pai do (John) Pizzarelli.” Enquanto se quebra a tensão inicial que costuma pontuar os inícios de entrevista, Daibem vai brincando com os acordes enquanto fala. Guarda a guitarra e vai até a cozinha. Nesse curto percurso, mais uma vez não consegue ficar em silêncio: cantarola, o tempo todo. “Não é fácil conviver comigo. Sou daqueles caras que ouvem a mesma música quarenta vezes”. Ele é assim. Aos 37 anos, tem música transbordando pelos poros, fraseados que interpelam a todo tempo frases soltas e momentos elucidativos. Nasceu com ela, descobriu-a em um respiro. E foi ela a grande responsável por trilhar o seu caminho, sempre pautado pela sua autodisciplina. E ainda descobriu que sabe ensinar como funcionam suas intrincadas dobradiças como poucos. E, só para complementar, além de difundi-la e ensiná-la, agora ele a produz, depois de um longo momento de fomentação e estudo. Este é Daniel Daibem, que, num agradável papo, fala do seu amor à música, explica o que é a linguagem do jazz e nos conta um pouco mais da sua trajetória como apresentator e músico e o que pensa das personagens que compõem a cena peculiar em que se transformou o jazz paulistano nos últimos anos.


MANUSCRITA - De onde surgiu sua vontade de trabalhar no rádio? A música te levou ao rádio ou foi o rádio que te levou a amar a música? DAIBEM - Nunca tive vontade de trabalhar no rádio na verdade. Foi a paixão pela música que me levou a trabalhar nele, que, para mim, é apenas uma ferramenta, assim como a caneta ou o computador. Nunca tive essa visão glamourizada do rádio. Quando eu era moleque, lá em Bauru, me lembro que havia um programa de rádio AM chamado “Programa do Netão”. Eu tinha por volta de 12 anos, a minha irmã 11, e as empregadas, lá em casa, tinham por volta de 15, 16 anos. Então, todo mundo curtia a mesma coisa, que, na época era Michael Jackson [cantarola um trechinho de “We are the world”] e outros artistas dentro do nicho do pop dos anos 80. A lembrança mais viva que eu tenho é que, durante à tarde, ligávamos para a rádio para pedir músicas, mas a minha relação com o rádio se resumia a isso apenas. Lembro-me também que meu pai, sempre socialista, se candidatou várias vezes a vereador. Sujeitos como Plínio (de Arruda Sampaio) e Lula costumavam se hospedar em casa quando iam a Bauru. Meu pai, em tempos de campanha política, botava um alto-falante em seu corcel amarelo e eu ia, durante o trajeto, fazendo a locução: “Pense bem! Vote bem! Vote Daibem!”. O que queria, desde sempre, era vir pra São Paulo. Eu não queria fazer faculdade, e sim morar em São Paulo. Para isso, tinha que arrumar uma “desculpa”, que foi fazer faculdade. Fiz Radio e TV na FAAP, pois esse é um curso em que não se precisa levar cadernos (risos). Eu me lembro que na primeira semana do curso, havia um cartaz no painel de avisos da faculdade, que dizia: “Se você gosta de rock, venha trabalhar com a gente”. Era da antiga 89FM (de São Paulo), na época em que ela ainda era “a rádio Rock”. Insisti

para fazer o estágio por uns 6 meses e, quando entrei lá, nunca mais saí desse meio. Após este estágio, fui contratado. Em seguida, passei a operar a mesa (de som) às madrugadas e, posteriormente, comecei a fazer locução. Naquela época, fui “iniciado” pelo Fábio Massari (também ex-VJ da MTV) e o Tatola. Eu nem pretendia fazer locução, na verdade. Mas como eu tinha desenvoltura pra falar de rock, me botaram lá. No começo foi ridículo. Até hoje, tenho as fitas do meu primeiro dia e acho horrível. O único que me incentivou, na época, a continuar a despeito das críticas que recebi foi o Edgard (Piccoli, ex-locutor da 89FM e ex-VJ da MTV), que me disse: “você está estreando numa rádio da capital, que está em quarto lugar no IBOPE e sabe que tá correndo um grande risco. Mas abrace-o”. Ninguém falou que eu não poderia; então, fui fazendo! (risos). Depois, a 89FM foi ficando muito pop, e isso foi fazendo com que eu não me sentisse mais bem por lá. Fui ficando displicente (coisa de moleque), pois queria ser demitido. Daí, faltei na cobertura do velório dos Mamonas Assassinas (em 96) e fui, então, demitido de vez. Em seguida, fui pra Brasil 2000, que tinha uma programação totalmente alternativa. Enquanto estava na Brasil 2000, comecei a estudar guitarra na Escola Groove (de Leyve Miranda). Nessa época, meu gosto musical estava se apurando mais e comecei a ouvir a Eldorado FM. Mas achava a locução muito careta. E lá fui eu perguntar se tinha alguma caga pra mim, dizendo que gostava da rádio e era ouvinte, mas que pretendia fazer um trabalho mais descontraído. E me disseram que estavam procurando alguém justamente com o meu perfil, que não fosse bobo e nem careta demais. Daí, depois de alguns meses, fui contratado, mas comecei manso, falando apenas o nome das músicas e a hora, pois não pretendia apavo-


rar ninguém. Mas, aos poucos, a Eldorado foi entendendo meu estilo, pois passaram a precisar de alguém que tivesse não apenas um bom trabalho vocal, mas que também soubesse conversar a respeito de música, pois há muitos radialistas que são apenas profissionais da voz, mas não entendem do conteúdo que propagam. Já eu tinha ido parar no rádio fazendo o caminho oposto: porque entendia (e gostava) do assunto. Já na TV, fiz no comecinho de 1994 o programa “Hollywood Rock”. Eu tinha o cabelo até a cintura e o apresentava junto com Alessandra Marques. Depois, fiz algumas vinhetas (escrevendo e atuando) do VMB (Vídeo Music Brasil, da MTV). Paralelamente, estudava guitarra na Groove e parei de tocar. Só voltei a tocar de verdade depois de oito anos, quando senti que estava devidamente aprimorado na técnica.

O que o moleque Daniel Daibem ouvia em Bauru? Nasci em 73. Em 1975, quando já tinha consciência da minha existência (risos), eu ouvia... [cantarola, estalando os dedos] “comprei um quilo de farinha, pra fazer farofa, pra fazer faro-fá-fá!”, a trilha do Barbapapa (desenho que era exibido na Rede Globo), “Biquini de bolinha amarelinha”, [cantarola novamente] “tomo um banho de lu-á! Fico branca como a ne-ve!”, aqueles disquinhos que minha mãe e minha avó tinham em casa. Eu não gostava de Elis Regina, achava tudo chato, pois era criança. Depois, com uns 10, 11 anos, comecei a ouvir Michael Jackson, Ultraje a Rigor, o Rock da geração 80. Mas o 80 New Wave eu não gostava, pois depois de 86 eu virei metal total, ouvindo coisas como o AC/DC. Eu não gosto muito do timbre dos anos 80. Até, dentre os artistas que eu gosto, não aprecio o que eles fizeram durante os anos 80. É muito aquela bateria [reproduz, imitando

o som] “Tuntz-Tuntz-Tu-Tu-Tu-Tuntz!”, é um exagero de teclados e efeitos. Não tem dinâmica, é tudo com muita pressão, tudo muito alto. Nos anos 90, voltou-se a usar instrumentos analógicos, como fez o Lenny Kravitz, por exemplo. Então, isso aproximou a música pop do timbre antigo, que eu tanto aprecio, e acho louvável.

E o primeiro instrumento que você tocou foi a guitarra? Não, foi o violão, que ganhei de presente de minha mãe, quando tinha nove anos, pra que a gente o tocasse na igreja, naquela coisa de “lá-menor-dó-maior”. Mas aí não rolou. Meu professor passou os acordes básicos e eu fui me desenvolvendo. Tirava os acordes de blues, tentava imitar o AC/DC de ouvido. Até os 27 anos, fui acreditando que tinha talento, mas sempre soube que talento não é tudo, é apenas o sinal de que você pode fazer bem alguma coisa. Foi quando, indo a alguns shows, eu passei a perceber que gostava muito de algumas coisas (principalmente dos anos 70), mas não dominava algumas harmonias, o que me levava a crer que eu não poderia participar dessas jams e pensei: “então, deve ter alguma coisa errada nisso tudo”. Cheguei a pensar em comprar um computador e ser uma “banda de um homem só”. Foi quando me deu uma luz e pensei: “não posso gastar dinheiro com uma máquina, preciso investir em mim, no meu amadurecimento. Foi quando me indicaram a Escola Groove, perto de onde eu moro e que tem uma filosofia que ia muito ao encontro do que sempre busquei, da disciplina, da rigidez, do estudo. Entrei lá e nem pesquisei preços, logo já fiz a matrícula. Ele (o Leyve) me pediu pra tocar um pouquinho e assim o fiz, todo envergonhado. Instantes depois, ele deixou a guitarra de lado e passou a executar os fraseados “de boca”. Foi quando concluí:


“Ahhh, é por isso então que gosto do George Benson! Então a música é isso: não é o instrumento!”. E o curioso é que, depois disso, achei gravações minhas marcando os fraseados das músicas com a boca já moleque [reproduz algumas marcações]. Ou seja, já intuí desde cedo o que o Leyve viria a me ensinar anos depois. Fiquei durante oito anos indo lá todos os dias, só aprimorando minha técnica e aprendendo com a rigidez dele, que nada mais é do que um grande amor à música que ele tem, já que deixou de tocar para ensinar os outros.

Você me parece ser muito exigente consigo mesmo. Pra caramba. Eu não sossego. Mas é bom. Sou capricorniano, rígido comigo mesmo. Mas estou procurando melhorar esse traço da minha personalidade. Minha namorada sempre usa um verbo da meditação que é “oscilar”. Se você está fazendo uma coisa, levanta, vai fazer outra. Porque depois, quando você voltar praquela primeira atividade, você irá fazê-la com leveza. Se você fica só nela, insistindo, você perde toda e qualquer noção a respeito disso. Já me propuseram a viajar sem violão, por exemplo. Fiz, deu certo, mas achei a música em outras coisas, como no metrô.

Como foi essa relação tão rígida sua consigo mesmo durante seu período de estudo? Ah, foi ótima. Eu ia religiosamente à Groove todos os dias e à terapia quinzenalmente. Sempre mantive uma postura de contenção, que era o oposto do que fazia, por exemplo, na rádio, em que prezava fazer um trabalho mais descontraído. Sempre tocava timidamente, obedecendo à “hierarquia”. Por mais que muitos

ali já me conhecessem por conta do meu trabalho na rádio, eu me colocava sempre no meu devido lugar de aluno e, muitas vezes, tinha gente que não me reconhecia lá por conta disso. O Leyve sempre me pedia pra eu apresentar os eventos da escola e eu o fazia comedidamente. Até que, um dia, no meu penúltimo ano de Groove, ele me disse: “Será que você não pode apresentar daquele jeito, aquele jeito da rádio?”. Daí ele adorou e, depois de um tempo, comecei a ficar mais solto e a música também começou a vir de novo dessa forma, “sem amarras”. Hoje, mesmo tendo terminado meus estudos, vou com bastante frequência à Groove, e pretendo realizar um trabalho com eles voltado justamente à educação musical. Se um dia for fazer algum trabalho pra TV, é no Leyve que penso pra ser o diretor musical desse projeto. E ele já topou. E não penso em fazer isso por vaidade, não. E sim porque eu acho que as pessoas têm que aprender a ouvir esse tipo de música, que é um idioma que deve ser aprendido e cujas regras deve-se conhecer. Senão é muito fácil que elas falem coisas como “Não, eu não gosto de jazz”. É óbvio que não gosta, isso não lhe foi mostrado como deveria!. Eu já tenho uma ideia pronta, com 12 programas que já estão roteirizados, que seguirão a mesma linha do “Sala dos Professores”, em que mostrarei a definição de conceitos básicos como música, melodia, harmonia. Mostrarei também que a noção de “improviso” é um vocabulário, que não é algo que você inventa, é algo que já existe. A diferença para o programa da rádio é que, na TV, tudo terá começo, meio e fim. Também haverá uma banda tocando e a inserção de vídeos dos mestres, dos “professores”. Eu gostaria que, posteriormente, isso virasse uma série em DVD. E, atualmente, há algumas emissoras pleiteando realiza-lo, mas ainda não há nada definido. Fora isso, eu gosto de fazer TV ao vivo, até mesmo porque sinto saudades de quando fazia rádio


ao vivo (o Sala dos Professores é gravado semanalmente). Mas se fosse todo dia, já não sei se ia gostar tanto, porque me acostumei a trabalhar em casa, na minha própria rotina... (risos)

Foto: Divulgação

Qual é o legal e o chato de trabalhar em casa? O que funciona e o que é difícil? Por enquanto só tem a parte legal, a chata ainda não descobri (risos). A gente precisa administrar o horário, e, quanto a isso, ando meio displiscente nesses últimos tempos, fazendo um monte de coisa e não fazendo nada ao mesmo tempo. O meu estudo está desregrado, por exemplo. Mas ao mesmo tempo é legal, pois você não se obriga a fazer coisas excessivamente pautadas em regras.

Eu estou vendo que você tem uma bateria em casa. Está estudando mais um instrumento? Na verdade, a bateria está ali no quartinho pela guitarra. Eu estudo bateria pra aprimorar o estudo da divisão rítmica da guitarra. Olha o George Benson [diz, apontando para um CD do guitarrista no chão da sala, e cantarola o fraseado de uma de suas músicas, destacando importânciaa marcação da bacteriana música]. Não tenho a menor pretensão de tocar bateria. Talvez um dia, mas não pretendo.

Como começou o “Sala dos Professores”? Há quatro anos, eu já era locutor de horário na Eldorado, mas não poder escolher o que iria tocar era algo que me incomodava muito, achava um saco. Além disso, havia a obrigação de trabalhar durante os finais de semana e de gravar publicidade de graça, já que o locutor contratado de

qualquer emissora é obrigado a gravar também vinhetas publicitárias sem cachê. Porém, começaram a chegar pedidos para que eu gravasse algumas delas (e não qualquer outro locutor) sem que ganhasse nada a mais por isso. Cheguei ao meu diretor e disse: “Dessa forma não dá mais. Mas o mais importante dessa frase não é o ‘não dá mais’, e sim o ‘dessa forma’. Como vocês acham que podem me aproveitar aqui?”. Daí surgiu a chance de eu fazer apenas o “Sala” gravando-o uma vez por semana. Inicialmente, ele soava meio artificial pois não era ao vivo. Hoje não tenho mais essa sensação, pois me acostumei. Mas, como a gente grava todos os programas da semana em um único dia, eles estão totalmente sujeitos ao meu humor daquelas horas em que passo ali, gravando.

Qual é o critério para escolher os artistas que você põe pra tocar no “Sala”? O “Sala” é um programa propositalmente curto, porque visa tratar de um único assunto por dia, já que a ideia é ouvir música conscientemente. O nome “Sala dos Professores” já foi proposital, justamente porque, nele, só entra a “velha guarda” que ensinou a gente, desde Cartola, passando por Count Basie e Wes Montgomery. Não há muito segredo, não: é uma lista pequena com os nomes que têm esse “vocabulário” da música, que é a música


negra americana, o jazz. Porém, ele também foi aplicado à música brasileira, no que diz respeito ao improviso, a você usar seu conhecimento para brincar... aquilo de nunca se tocar a mesma coisa do mesmo jeito, mas sabendo que você não está inventando, e sim tocando dentro de uma regra, chamada groove. Qual é o groove? É o groove de samba, de jazz...

Mas, afinal, o que é o groove? O groove é a célula rítmica. É ela que te apoia. Artistas como Al Jarreau e Michael Jackson, por exemplo, pensam no groove quando cantam [cantarola um trecho de “Billie Jean”]. O groove por tanto, é a regra. O (Gilberto) Gil falou exatamente isso quando foi ao meu programa: “o tema é a ética, é o groove. O improviso é quando dá o troço!”, mas o “troço” tem que “dar” dentro de uma regra, de um ritmo. Se você tá solando um funk e resolve dar um acento de baião, é como se você estivesse jogando bola e, de repente, pegasse a bola com a mão. Então, eu procuro explicar através desses mestres as regras desse idioma deles, como, por exemplo, a forma AABA (Em que A é uma melodia e B é sempre outra). Por exemplo, em “Garota de Ipanema”, temos [cantarola]: “Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça, é ela menina, que vem e que passa, num doce balanço a caminho do mar”. O segundo “A” é a mesma melodia, não é? [cantarola]. Mas, em seguida, a melodia muda, sendo, portanto o “B” da música [cantarola]: “Ah, por que estou tão sozinho... ah, por que tudo é tão triste... ah, a beleza que existe...”. E daí, vem o último A, que retoma as melodias iniciais: [cantarola mais uma vez] “Ah, se ela soubesse que quando ela passa, o mundo inteirinho se enche de graça e fica mais lindo por causa do amor...”. Então, quando acontece o improviso, ele tem que pensar sempre nos A’s e nos B’s [vai cantarolando pra exemplificar]. Então, cada vez que

você repete essa forma de AABA, você está tocando em Chorus. É isso que se chama. E dentro dele, você improvisa, dependendo do tamanho do assunto que se tem pra desenrolar ali. Por essa razão, há standards que duram três minutos e outros que duram, sei lá, quinze. Tudo depende do que se tem para improvisar.

Tem muita gente que rotula o “Sala” como um programa de jazz. E não é. Ou, no fundo, ele é? Na verdade o “Sala” usa o jazz como idioma, como linguagem não como alvo. Porque você pode, da mesma forma que faz um jazzista, pegar uma música do Cartola, do Dominguinhos, apresentar o seu tema e improvisar sobre ele também.

Como é que você definiria o “Sala” em pouquíssimas palavras, então? O programa é um serviço de utilidade pública pra fazer com que as pessoas que ainda não gostam gostarem mais da música, e fazer com que as que gostam, gostarem dela ainda mais, fazê-las entender melhor como funciona o “sistema operacional” da música. Fazê-las entender que, no improviso, você inventa o texto, mas as palavras já existem. Johnny Alf dizia: “já foi tudo inventado”. E foi mesmo. Se até na natureza as coisas acontecem assim, por que na música seria diferente?

Você já foi abordado diretamente por alguém que tenha dito que não gostava de jazz, mas aprendeu a apreciá-lo com o seu programa? Como foi isso? Isso acontece quase que diariamente. Já houve gente que me contou que os filhos, de seis anos de idade, sentados no banco


de trás do carro, pediam pra fazer silêncio na hora em que o programa começava, por exemplo. Houve também casos de gente mais velha, que nunca havia entendido o que era o jazz e passou a senti-lo com o programa. É preciso mostrar as coisas simples, para que as pessoas entendam como tudo acontece: é como assistir a um jogo de rúgbi: se você não sabe as regras daquilo, vai achar um saco assisti-lo. Com o jazz acontece exatamente a mesma coisa. Muita gente que diz que não gosta dele, na verdade, não o entende.

Quem é o público do “Sala”, hoje? A Eldorado tem o público chamado “Classe A/B 25+”, mas obviamente isso não significa que não haja pessoas de idades variadas que a ouça também. Eu acho que, hoje, o meu público é composto, primordialmente, por gente interessada em conhecer um pouco mais de música. Eu sinto isso na “Casa do Saber”, um local onde dou cursos ocasionalmente sobre como ouvir jazz: há casais mais velhos, jovens universitários, gente muito variada, o que acho muito legal.

E como o jazz foi parar na sua vida, já que você era um “metaleiro” nato? Porque na real tá tudo lá, né. O jazz é a grande mãe, é o alimento. O AC/DC, é, na verdade, uma banda de blues de 12 compassos, como a gente pode, por exemplo, perceber no fraseado do Angus Young (guitarrista) [cantarola, estalando os dedos para marcar os compassos]. Às vezes a gente encontra nela um fraseado do Duke Ellington. Depois, comecei a ouvir muita soul music, que também consiste em tocar temas de jazz, só com mais pressão. E daí fui chegando aos acordes do jazz. Uma coisa foi puxando a outra, e fui parar lá. O que gosto mesmo é o jazz

dos anos 60, do boogaloo. Ouço tudo, gosto de muita coisa, mas é nos anos 60 que sempre fico. É dos anos 60 que se pegou aquilo que, posteriormente, foi aplicado a uma maneira popular. O (Wilson) Simonal, por exemplo, que eu acho f..., é um jazzista, pois cantava suas músicas cada vez de um jeito. O Emilio Santiago também canta brincando com as divisões rítmicas, como um jazzista faria, assim como o Johnny Alf. Já ouviu-o cantando “Desafinado”? É f..., incrível, ele canta de um jeito único, fazendo as divisões de uma forma que ninguém soube fazer.

O que você ouve da MPB? Gosto de quase tudo... Simonal, Benjor, Jackson do Pandeiro, Dominguinhos, Elis, Leny Andrade...

E das grandes divas do jazz? O que você ouve? Gosto da Ella (Fitzgerald) por sua pureza, da Sarah (Vaughan) pelo seu conhecimento e da Billie pela maldade que carrega na sua interpretação, aquela malícia, que vêm em parte da sua vida difícil, acredito. Todas são boas, não tenho nenhuma preferida. Gosto da Esperanza Spalding, da Diana Krall... todas são muito boas.

Como surgiu a ideia de levar o “Sala” para o palco do Bourbon Street? Fizemos um programa mensal lá por 5 anos, com o patrocínio de um whisky cuja distribuidora queria aliar a marca a algum projeto cultural. Esse whisky era conhecido por promover noites de apresentação da bebida, em que o demonstrador exibia todos os maltes separados para que fossem degustados separadamente para que, quando se tomasse o whisky pronto,


se aprendesse a distinguir todos os sabores. Por essa razão, a assessoria da marca chegou até mim, pois, na real, acabo fazendo a mesma coisa no rádio com o “Sala”. Levei, nesses cinco anos artistas como Bocato, Johnny Alf, Leny Andrade, Gilberto Gil, Ruby Wilson, John Pizzarelli, Ed Motta, Paulo Moura, Marcos Valle, Michel Legrand, Hermeto Pascoal... Só não consegui levar, por questões de cachê, o João Gilberto, o Paulinho da Viola e o Jorge Benjor. Mas praticamente todos os artistas que queria desde o início do projeto, consegui levar. Alguns artistas me surpreenderam pela falta de diálogo e vontade na hora de contribuir com o andamento do programa. Outros, me surpreenderam pela disciplina, carinho e disposição em desenvolver a minha proposta de destrinchar a música, como o Ed Motta, o John Pizzarelli e o Bernard Purdie (baterista).

Como surgiu o Hammond Grooves? O trio é fruto de toda essa minha trajetória de estudo e descoberta que te contei. Passei anos buscando a sonoridade de um Hammond, mas era muito difícil encontrar alguém no Brasil que o tocasse. Até que um dia fui apresentado, na noite de São Paulo, ao Daniel Latorre, que tem uma raiz roqueira, mas há anos já estuda jazz e música brasileira. No início, foi muito difícil me apresentar a essas pessoas como músico, porque eles nunca tinham me visto tocar. Sei que tem uma parte dos músicos que pensam até hoje que uso o meu nome pra entrar na noite e fazer “fama”. Mas esses caras não entendem que fui trabalhar no rádio justamente porque sempre gostei de música assim como eles, entende? Eles não entendem que estou fazendo um favor de explicar pras pessoas como é a música que eles tocam pra que o público, quando for vêlos tocar, não fique desdenhando, conversando ou achando que está numa balada.

O Wagner Vasconcelos entrou no projeto naturalmente, a princípio fazendo sub (substituindo um outro músico que estava oficialmente no trio), mas acabou ficando e, hoje, após três anos de convivência, já estamos muito familiarizados, tanto que estamos já começando a fazer nossas composições autorais. Eu consegui convencer esses caras até a ensaiar (risos), coisa que não gostavam muito de fazer. Agora, eu posso dizer que sou músico profissional, já que me divido entre o Hammond e a Eldorado, basicamente. Consegui chegar ao que sempre sonhei, mas isso não quer dizer que devo parar por aqui. Muito pelo contrário. Eu quero é me aprimorar mais e mais.

Tocar na noite não é fácil. Como é lidar com o mau comportamento do público em geral, que têm o péssimo hábito de falar alto enquanto a banda está lá no palco, tocando? Imagino que não deva ser agradável... É péssimo, ridículo. Quando isso acontece, geralmente é a banda que está no lugar errado ou é a pessoa que foi ao bar errado. E, infelizmente, isso acontece muito. Uma

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vez, topei tocar em um evento por apenas 40 minutos por um gordo cachê, para animar o ambiente enquanto as pessoas conversavam. Mas eu tenho consciência de que não posso me especializar nesse tipo de atitude e acho que comecei a aprender a dizer “não” a propostas que tenham enfoque diferente do tocar para um público que seja apreciador da minha música. Ontem fui conversar com um dono de uma casa que parece se enquadrar naquilo que almejo. Ele me contou que, na semana passada, pediu duas vezes para uma mulher ficar quieta e ainda tomou uma esguichada de cerveja na cara, pois a mulher ficou indignada e foi embora. Esse é um caso clássico de pessoa que foi ao lugar errado. Aqui em São Paulo, há um tempo, havia bons lugares para tocar, em que as pessoas faziam silêncio durante as entradas, mas isso já não acontece mais em vários deles. Sei que há boa vontade da parte de muitos dos donos de bares ou casas de show, mas acho que falta rigidez. Não basta apenas colocar um cartaz no salão pedindo silêncio. É necessário que realmente se exija isso na prática, como acontece nos bares em Nova York. Lá, antes de a banda começar a tocar, explica-se que o silêncio e fundamental a avisa-se que nada será servido enquanto a apresentação estiver acontecendo. Acredito que a gente ainda vai chegar a esse nível.

Você me disse, antes de começarmos a entrevista, que acabou de chegar de Nova York. O que foi fazer lá? Fui com um grupo de turistas que compraram um pacote de uma agência especializada em “turismo de conhecimento” querendo conhecer o universo do jazz. A programação foi muito legal: de manhã, na suíte do hotel, eu ligava o IPod e o DVD e ficava fazendo o que eu faço no programa: explicando o idioma do jazz. À tarde, os turistas saíam para fazer compras e, à

noite, íamos assistir a algum show. Foram sete dias de shows e vivência com o jazz e já marcamos mais duas viagens como essas para os meses de maio e setembro do ano que vem. Eu ganho pra viajar e ainda faço uma programação dessas... (risos)

E o que falta, na sua opinião, para que as noites musicais de São Paulo fiquem no mesmo patamar das de Nova York, no que tange ao território do jazz, obviamente? Acho que a palavra é “respeito”. Quando se fala em respeito, a gente acha que ele é apenas pra coisas “nobres”, mas não é. Respeito tem que ter em que qualquer coisa que se faça. É para o cara que frita a cebola que vai entrar no prato que, por sua vez, tem que chegar antes que o segundo tema da noite acabe. Porque na hora em que o cara anunciar a penúltima música, a sobremesa tem que estar pronta, porque a garçonete, nessa hora, vai trazer a conta, porque você foi lá para fazer isso (ver o show e jantar) e, na hora em que acabar aquele set, você tem que ir embora, porque vão entrar as outras pessoas que também foram lá para assistir ao show e jantar, elas não foram para encompridar a balada e ficar conversando. Respeito é o dono do bar oferecer equipamento de som de qualidade aos seus músicos. Respeito é saber honrar com os horários, e é assim também que se forma um público. Se você botar no seu flyer que o show começará às 21h45min, e o show realmente começar às 21h45min, na semana seguinte, o público quase que todo certamente já estará na casa às 21h30min. É essa a objetividade do americano que devemos aprender. Com relação à formação do público, aí acho que é algo que vai demorar mais; não vai ser de uma hora pra outra que o público vai chegar ao bar ou a casa de shows pra “sentir” a música, entendê-la. Pra isso, deve haver um trabalho educacional como o que, por exemplo, o “Sala” faz.


Como você enxerga a postura do músico brasileiro atualmente? Você acha que ele se respeita? Ou ainda vigora o maléfico hábito de se sujeitar a quaisquer condições de trabalho ou imposições superiores, que desmerecem a sua arte? Há muitos músicos que se sujeitam a tocar em qualquer pocilga ou com qualquer grupo mesmo, topando qualquer parada, simplesmente usando o argumento de que precisam trabalhar. Há também o cara que vai tocar teclado com o Zezé de Camargo por um ótimo cachê, mas o faz com raiva. Ele está enganando a quem fazendo isso? A ele mesmo. Tudo se resolve quando se começa a dizer “não”. Você, sabendo dizer não, pode recusar um bom cachê hoje, mas amanhã vai estruturar sua carreira com amor. Eu falo pros meus amigos: se eu não tivesse aprender a dizer não, hoje não estaria aqui, neste apartamento [aponta para o teto], e sim naquela cobertura ali, do outro lado, apresentando o Fantástico. Não entenda isso como uma reclamação, longe disso. E sim uma afirmação de que hoje consegui já deixar muito claro o que faço e o que pretendo. Ninguém me liga, por exemplo, perguntando se eu animo festas de casamento, porque sabe que vou dizer não. Agora, se o casamento for de um cara que curte jazz, aí eu topo. E, nisso, certamente, o músico gringo se difere: ele sabe dizer não com muito mais facilidade que o músico brasileiro. Outra coisa, é saber se vestir bem pra tocar: se o Ron Carter vier tocar no SESI, você vai perceber que os caras sobem no palco alinhados. Isso não é vaidade, e sim respeito. O que falta é o selfrespecting. Autorrespeito e respeito com o próximo. “The respect that you want is the respect that you give” (O respeito que você quer é o respeito que você dá). Não é isso, meu?

É. É isso, Daibem.

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Para ouvir o“Sala dos Professores” online:

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Hammond Grooves: Todas as quintas no Madeleine, às 21h45 Rua Aspicuelta, 201, Vila Madalena, São Paulo.


Pelo menos

10 MINUTOS por CRISTIANE SITA

Q

uem acredita que pré-estréias são glamorosas: esqueça. São apenas parte do ofício do jornalismo e todo mundo vai como se estivesse cobrindo o acidente do metrô em Pinheiros. A sessão é tão barulhenta quanto o cinema de domingo com as crianças. Sim, críticos de cinema falam como gente que nem a gente. Infelizmente, se escuta a mesma ladainha operária de “acordei às cinco, hoje” de qualquer outra repartição. Os “lançados” parecem mais ansiosos do que, nós, os espectadores, ávidos que deveríamos ser pela novidade. E - desculpem-me os chatos - Arnaldo Jabor merece, ao menos, dez minutos de algo ansioso e alegre. Estivemos na pré-estréia de seu novo filme, que já está em cartaz no Brasil. ‘A Suprema Felicidade’ conta a história de Paulinho, um carioca, dos oito aos dezenove anos de idade. Fala de um Rio de Janeiro pós-guerra, romântico, malandro, inocente e humano. Sim, como disse Jabor, ele mesmo, em carne-e-osso: “Não queria fazer filme de transformers”. Então fez um filme sobre gente, sentimentos e memórias. Vale olhar cuidadosamente algumas cenas com carinho, como o balé do bloco de rua, que Jabor “fez porque quis, porque gosta de musicais”; a sequência entre Paulinho e o avô, Seu Noel, observando estrelas; e, por fim, a cena onde Mariana Lima interpreta um monólogo, na pele de Sofia. O filme é de um lirismo delicado e comovente. Há de se ressaltar o cuidado espantoso com o figurino, e, mais do que


tudo, uma impressão pessoal: a sonoplastia impecável. Tenho cá para mim, que filmes brasileiros são barulhentos ao limite e todo mundo parece meio surdo de tanto que se grita. ‘A Suprema Felicidade’ tem, inclusive, momentos de silêncio. Ninguém esbraveja. As músicas estão bem inseridas no contexto. Confesso que o instrumental de “Todo Sentimento”, no trombone de Seu Noel, roubou-me uma lágrima. A escolha dos atores foi bastante feliz, em especial, do par romântico central, que possui a delicadeza necessária para representar a inocência da descoberta do amor, ainda quando eles próprios já foram vendidos pela vida frustrada (e errante) de seus pais. A postura do casal de atores, na coletiva, foi de simpatia e quase timidez. Mas vamos contar a real: Tammy Di Calafiori é uma boneca, delicada e linda, e Jayme Matarazzo é um principezinho que faria muito orgulhosa a vovó Maysa. Jabor é espetáculo à parte. Chegou com notável bom-humor e se, não estava supremamente feliz, esteve bastante alegre. Não havia um rastro de pretensão no consagrado e adorado diretor e jornalista. Ao ser perguntado sobre um compasso poético que o sangue adquirira no contexto do filme, fez cara de estranhamento e sorriu: “Nem tinha me dado conta. A gente precisa deixar o filme acontecer por ele mesmo, sabe?”. Empáfia ali não existe, tanto que chegou a propor algo diferente: “Vocês podiam me contar o que vocês acharam, ao invés de perguntar”. Para encher os olhos da infinidade de mulheres que o acham sedutor, confirmou que acha que “na vida é meio assim mesmo, as mulheres são estrelas e os homens são platéia”. Só digo uma coisa: #beijometwitta. Quando vinha embora, dirigindo pela cidade de São Paulo, tive algumas sensações. O Rio de Janeiro é mesmo lindo. O Jabor é o máximo. Será que o grande amor da vida de verdade parece mais com a Deise ou com a Marilyn? Ou será que é uma coisa Marília Margarida que mistura as duas? Enfim, tive nostalgia de ouvir de novo o vozeirão do Arnaldo, não o do futebol.

Trailer de A Suprema Felicidade

Eu tive duas horinhas de uma certa alegria e comoção durante o filme. Depois uns quarenta minutos de uma felicidade quase legítima na coletiva. Se você quer saber a diferença entre alegria e felicidade, pergunta ao Seu Noel. Se você quer entender os dez minutos da suprema felicidade do nosso título, veja o filme, tá? E, enquanto isso não acontece, busque a sua própria felicidade.



GRENÁ por MARCELO SAYEG


— Não acredito que você fez isso, cara! Que loucura!

do eu estava crescendo não tinha nome, era normal.

— Fiz! E foi bom pra caralho! – disse rindo de puro deleite.

Meu pai fazia isso comigo muito antes dos moleques. O babaca bebia e me erguia de cabeça pra baixo pelo tornozelo. Na frente de todos os amigos dele, praquele bando de retardado dar risada.

— Mas Marcão, você poderia ter sido preso, malandro! Porra, já faz tanto tempo, você não precisa disso, deixa essa ideia maluca pra lá! — Ah, pára, Fernando. Não me vem com esse papinho de merda pra cima de mim. No fundo você queria fazer a mesma coisa!

Esse é o Fernando, amigo meu desde meus anos mais pueris. É um cara bacana, de bom coração e meio perdido na vida. Já fez umas 3 faculdades, sem terminar nenhuma, pulando para lá e para cá. A única constante na vida dele é a merda da terapia, que também nunca termina. Ele paga um babaca para ficar lá parado, que nem um boneco, enquanto ele conversa consigo mesmo. Fica chafurdando na própria merda. A merda que foi a infância dele. Numa infindável ladainha lamuriosa, que mais parece uma esteira de academia: dá uma sensação de movimento, mas não te leva a lugar nenhum. Eu já prefiro uma abordagem diferente. O lance todo é que nossa infância foi pior que a inquisição espanhola. A gente era caçado todo santo dia no colégio. Santo dia não, porque santo dia é feriado, mas você entendeu o ponto. Os moleques não nos davam um dia sequer de paz. Eu era o magrela, ele o gordinho. Mas isso não era o problema. O problema é que a gente era diferente. E eu também era diferente dele. Comigo a merda tinha começado bem antes. Hoje em dia, tem até termo apropriado para o que acontecia: bullying. Quan-

Era do tipo machão, fazia karatê e o escambau, aí chegava em casa e gostava de me encurralar em algum canto e ficar me dando socos. De brincadeira só pra ele. O idiota achava que ia me fazer mais macho. Pensava que ia me ensinar a ser homem ou alguma baboseira dessas. Uma vez quase me afogou, numa de suas lindas aulas lúdicas. Me abraçou com força, já inebriado pelo álcool, e ficava me afundando na piscina, sem me dar tempo de respirar. Passei um pânico do caralho. Muitos anos depois o pobre diabo veio me falar que fazia aquilo porque tinha medo que eu virasse veado. Vai ser burro assim no inferno! Como se aquilo fosse me prevenir de ser, caso eu fosse. A ignorância é tanta que o cara não percebia que, se eu fosse veado, ele só teria me deixado mais recalcado e problemático ainda, nutrindo uma vida mentirosa e morrendo de medo de me assumir. Quanta besteira! O babaca acha que é o quê? Opção? O sujeito que é veado ele já nasce veado, ele não vira um dia na vida e pensa: “Porra, vou começar a gostar de macho, parece supimpa!”. Ele já gosta desde pequeno, admitindo ou não! Aliás, não sei por que raios chamam a coisa de opção sexual. Não é opção coisíssima nenhuma! O cara já nasce com isso. Devia se chamar algo do tipo natureza sexual, ou inclinação sexual inata, sei lá! O nome que as pessoas dão pras coisas causa um problema infernal no mundo! O pior de tudo é que, com o passar dos anos, o babaca do meu pai virou um puta cara legal. Chegou até a me pedir descul-


pas pelo lance todo. Aí você pensa: “Pô, bacana da parte dele ter reconhecido.” E eu digo, “agora que já fez a merda, meu irmão, é fácil pedir desculpas!”. Não posso nem mais odiar o cara, isso é uma tremenda duma sacanagem. Tenho que me ater a odiar só aquele pai que não existe mais. Mas voltando ao que interessa. O lance foi que meu pai fez a parte dele pra me deixar com medo do mundo. Me tornar retraído, acuado, introspectivo. E eu levei isso pro colégio, que mais parece uma briga campal para ver quem tem o falo maior. Um bando de babaquice, se você quiser minha opinião. Eu não entendia aquela disputa ancestral, achava tudo muito bobo, não queria fazer parte. Só desejava que me deixassem em paz. Para aumentar meu infortúnio, eu não tinha a menor aptidão pra esportes. Até tentava, mas era uma negação expoente. Aptidão eu tinha para uma coisa: escrever. Eu gostava de observar as pessoas, entender como elas pensavam, não via nada de sedutor em ficar apontando aquilo que, consensualmente, era considerado como defeito nos outros. Com o tempo, começou a acontecer uma coisa curiosa. Eu me tornei mais amigo das meninas. Achava o universo delas interessante. Como eu gostava de escrever, acabei me destacando nisso. A professora de redação ficava me enchendo de louros pelas minhas páginas. Também, ela pedia uma redação e eu tascava logo dez páginas! No fim, eu era o moleque que escrevia e andava com as meninas. Não tardou muito pra isso me render a linda alcunha de veadinho, como você pode deduzir. Ou ainda melhor, me apelidaram de Marquixa. Preciso explicar? Mal eles, e elas, sabiam que, na verdade, eu tinha um tesão ardente por boa parte daquelas meninas. Na época, acho que poderia ter comido todas, se elas ti-

vessem dado alguma brecha. Mas não foi isso que aconteceu. Hora de apanhar, Marquixa! – eu ouvia isso todo dia. Uns seis ou sete moleques se juntavam para me dar porrada. Todo dia. No meio do colégio mesmo e ninguém dava a mínima. Com o tempo, comecei a me esconder no banheiro durante o intervalo. Os filhos da puta me caçavam até lá. Eu não queria brigar, só queria ficar na minha, observando aquele rebanho de moleques idiotas e meninas escandalosas. Me divertia. Todo dia era uma luta para parecer invisível. Falar o menos possível, rezar pra ninguém encanar em qualquer olhada minha ou algo que eu dissesse. Você não imagina o enorme esforço que é tentar se fazer de invisível. Ainda mais pra mim que sempre fui observador, que queria ficar olhando pras pessoas, mas tinha que olhar pro chão e torcer para não aparecer o tênis de ninguém logo na frente. Com o coitado do Fernando era bem parecido, a diferença é que o pai dele dava uma força e a mãe também. Eu nem quero falar da minha mãe, dá licença! Os filhos da puta uma vez, num aniversário meu, conseguiram se superar no quesito humilhação. Organizaram a maior ovada da história do colégio. Outro ritual completamente ignóbil e que eu simplesmente não entendia. Bando de néscio! O pior é que se você os chamar de néscio, é bem provável que um deles responda algo do tipo “Não, eu sou o Danilo.” Jogaram trinta e seis ovos na minha cabeça, isso mesmo, trinta e seis, camarada. Tá achando pouco? Então some isso a um quilo de farinha e outro meio quilo de pó de café Satisfeito? Ah, e quase esqueci de mencionar que eles me fizeram simular um coito com um poste de rua. Tá dando risada, filho da puta?


Quando eu estava com meus quinze para dezesseis anos, resolvi dar um basta naquela merda. Eu e o Fernando nos inscrevemos juntos numa academia. Era pra puxar ferro e ficar parecendo um monstro, assim neguinho pensaria duas vezes antes de mexer com a gente. Eu tinha repetido o primeiro colegial e mudei de colégio. Também, vá lá, eu nem ia mais no colégio, devo ter cabulado um mês consecutivo. Ir para o colégio era um terror indizível. Eu era deixado na porta, dava uma de que tava entrando e depois saía andando. Botava capuz, óculos escuros, fazia um baseado e percorria as ruas ouvindo Riders on the Storm, do Doors. Me achava foda, emancipado, muito melhor do que aquela corja de babacas. A gente se dedicava na academia e, depois de um ano, eu já estava de um tamanho legal, e não tinha mais tanto beócio querendo me encher a paciência. Só que era muito difícil ganhar massa muscular. O Fernando ganhou muito mais rápido. Aquela banha toda se transformou em músculo mais rápido do que eu conseguia acreditar. Sempre achei que ele tinha tomado bomba. A verdade é que ele nunca tomou, mas eu tomei. Eu simplesmente não agüentava mais ter que comer um cavalo por dia pra ganhar meio grama no final do mês, essa que é a verdade. Aí tomei mesmo, o acesso era fácil. Em academia é sempre simples, está sempre ali, sendo esfregado na sua cara. Aqueles caras enormes, com braços que pareciam minhas coxas. Eu me sentia um rato e estava farto de me sentir inferiorizado. Tinha me sentido assim a vida inteira e aquela era a minha hora. Foi o paraíso! Parecia que eu tinha colocado uma bomba de encher bola de capotão nos braços! Cresci que foi uma maravilha! Me sentia bem pra caralho, neguinho me respeitava e evitava ficar olhando muito pra mim.

Só que não resolveu. Um dia eu estava numa casa noturna dessas quaisquer. Outro ritual humano meio idiota. E um temerário esbarrou em mim e resolveu invocar. Por baixo de quilos e quilos de musculatura protuberante, eu estremeci. Não esperava que aquilo fosse acontecer comigo nunca mais. Fugi. Fiquei puto comigo mesmo. Semana seguinte comecei a fazer boxe. O Fernando na terapia. Eu socava aqueles sacos de pancada como um bicho. Tinha nascido praquilo e não sabia! Tinha tanta raiva dentro de mim que cheguei a ficar com a mão em carne viva sem perceber. Sangrava meu ódio, minha cólera. Era bom pra caralho! Comecei a evoluir bem rápido, treinava com afinco, com determinação. Eu gostei do lance todo. Curtia subir num ringue e desferir pancadas, estudar o oponente, pesquisar como ele pensava, como ele reagia aos meus movimentos. Coisa de gente observadora. Nem lembrava que algum dia eu fui o menino que gostava de escrever. Nem lembrava que tinha sido o menino sensível que entendia as mulheres, que gostava de arte, poesia e o cacete... não, não, disso eu nunca gostei. Bater era meu gozo máximo. Era minha libertação. E bati. Bati até não sobrar mais suor em mim. Todo dia eu treinava, não via a hora de subir naquele ringue e provar pro adversário que o macho ali era eu. Esses rituais humanos! Aquilo era um jogo, um jogo prazeroso, de poder e inteligência. Um xadrez brutal. E eu adorava! Virei Marcão. Filho da puta de Marquixa é o caralho, agora eu era o Marcão, e neguinho pedia pra eu pegar leve lá em cima. Um belo dia, na academia, um cara me veio com um papo estranho:


— Ô, Marcão, você já pensou em fazer uma grana lutando?

Nunca tinha passado pela minha cabeça, é verdade. Aquilo ali era por puro prazer. Mas gostei da ideia. — Olha, acho que pode ser interessante, mas não demora muito tempo pra um profissional começar a fazer grana com isso? — Pra um profissional leva, mas tem as lutas clandestinas, não é nada do que falam. A parada é organizada, parece profissional. Só é diferente porque a grana vem na hora e as apostas rolam soltas! – o cara me explicou.

Fiquei meio temeroso com aquela ideia. Eu gostava de lutar e ali, na academia, já não tinha ninguém que fosse desafiador, mas, daí partir pra luta clandestina, parecia um salto pra humanidade do Neil Armstrong! — Ah, parceiro, não sei não. Esse lance de luta clandestina pode ser perigoso, fora o caráter ilegal de toda a organização. – eu confessei hesitante. — Que nada, Marcão, você tem uma ideia muito errada do que é luta clandestina. Elas são organizadas por figurões, a policia sabe onde é, mas leva propina da boa pra fazer vista grossa. Não nego que elas sejam um pouco mais violentas, mas ninguém morre nem nada. Faz assim, você topa ir assistir uma luta comigo? Sem compromisso, só pra você ver como funciona! — Topo. Ver não machuca! — Maravilha, parceiro. Eu já falei de você pra um bam-bam-bam lá. Te apresento o cara e se, você achar que pode entrar numa dessas, já fica bem encaminhado. O resto a gente combina depois.

Um galpão atrás de um conhecido prostíbulo de luxo, esse era o lugar. Mal

acreditei ao entrar. O negócio era realmente profissional. Ringue bem acabado, iluminação com laser, holofotes bem posicionados. A platéia era servida por meninas em trajes sumários, todas contratáveis. Em mesas redondas, com bebida à vontade, a platéia se deleitava como no auge do império Romano. Nada de bandalheira. Só tinha engravatado com contas em paraísos fiscais. A luta era boa, mas tinha regras, nada de sacanagem. Não podia nada abaixo da cintura, mas uma cotovelada aqui e outra ali passava numa boa. A luta só acabava quando um combatente caísse, independente de round. Dois meses depois, eu já tava lá em cima. O tal bam-bam-bam era o dono do bordel. Sujeito boa praça, bem político, conversava com todo mundo, fazia uma social que eu nunca consegui fazer por não ter paciência. Patrocinou tudo pra mim; eu dava cinco por cento pro camarada que me engendrou e o resto era meu. O dinheiro começou a entrar bem rápido. Ganhei as cinco primeiras lutas e já era considerado um lutador nato, um cara a se temer. Adorei aquilo tudo. Virou minha vida, quem eu era. Certo dia, depois de uma luta, saí pra comemorar com o pessoal. No meio da noite, avistei uma miragem. Meu sangue subiu pros punhos. Eu só via vermelho. Era um dos babacas que me chamava de Marquixa, talvez o próprio que havia me apelidado pel primeira vez. Não tive dúvida. Bati no ombro dele e disse: — E aí, babaca, lembra de mim?

Senti o joelho do cara dobrar de susto, bem na minha frente. O rosto ficou todo branco. O sorriso murchou mais rápido que foda de coelho. — Não, não tô lembrado não, amigo. De onde? – respondeu o imbecil, querendo fugir feito uma mocinha.


— Amigo é o caralho! Eu sou o Marcos, que você chamava de Marquixa, seu otário! Lembrou agora, Daniel? Me chama de Marquixa agora, seu filho da puta! – esbravejei já dando um empurrão no cara. — Calma, brother, pô, a gente era moleque, moleque é assim mesmo. Eu não fazia por mal, desculpa aí, não precisa disso! — Ah, mas precisa sim! Moleque é o caralho, não fez por mal o meu rabo!

Só sei que logo depois me deu uma vontade meio doida. Eu estava no carro, ainda com adrenalina e serotonina escorrendo pelas têmporas, quando vi que minhas mãos estavam completamente ensanguentadas. Era uma mistura do meu sangue com o do mais novo banguela. Peguei uns papéis e limpei o sangue das mãos, olhei praquele papel parecendo um teste de rorschach do inferno e resolvi guardar como lembrancinha.

Dei uma porrada tão forte na cara do sujeito que senti o nariz dele se destroçar sob minha mão esquerda.

Com os dias, o vermelho do sangue ia escurecendo, ganhando uma nova tonalidade, mais escuro e amarronzado. Achei bonito.

Eu era canhoto, isso me ajudava. Nêgo nunca esperava uma porrada de mão esquerda. Deitei o cara no chão e enchi ele de porrada. Gritava loucamente, feito um bicho.

A partir daí comecei minha caça. O esquema era fácil. As mídias sociais eram meu oráculo de Délphos. Que ferramenta do caralho! Só pode ter sido inventado por alguma deidade mal intencionada!

— Bate em mim agora, seu veado do caralho! Vai, reage! Tá vendo isso aqui? Tá vendo? Essa aqui é a canhotinha da providência arrancando todos os dentes da sua boca!

Descobri todos eles. Acompanhava os chamados posts todo dia. Aí algum babão resolvia anunciar aos ventos pra onde ele sairia em tal noite. E eu só me rejubilava.

O pessoal ao lado ficou escandalizado. Os seguranças vieram correndo, mas não conseguiam me tirar de cima do cara. Minha sorte é que eu estava com o meu treinador e o resto da equipe. Eles deram um jeito de não chamarem a policia. Saí de lá eufórico. Todo mundo me perguntando porque eu tinha feito aquilo e eu só respondia “Porque eu precisava.”

Certo, eu não queria ser preso, mas queria sentir os ossos deles quebrando embaixo da minha mão. Então desenvolvi um sistema. Eu chegava na arena da noite, munido de uns seiscentos paus, numero par, pra não dar briga. Mandava chamar o chefe da segurança da noite e dizia:

Foi aí que eu tive a ideia. Aquela que o Fernando repreendeu lá no começo. Eu resolvi protagonizar uma caçada. Quebraria de porrada, um a um, todos os filhos da puta que tinham feito da minha vida no colégio um inferno. Chame do que quiser, dê o nome que preferir. Chame de ressentimento, mágoa, loucura, karma – talvez -, terceira lei de Newton, o que for! É tudo uma questão de nome, novamente!

— Boa noite, parceiro. O negócio é o seguinte: tem um cara aí dentro hoje que me sacaneou muito forte. Descobri que ele vinha aqui e quero quebrar o cara de porrada. O problema é que eu sei que vocês também tem que fazer seu trabalho, isso eu não julgo, mas quero bater nele até cansar. Eu tenho aqui comigo seiscentos paus. Você pode ficar com tudo e mandar seus amiguinhos me deixarem em paz ou você pode distribuir entre eles. Fica a seu critério.


Na primeira vez que fiz isso, o sujeito fez uma coisa inteligente. Eu cruzei com o futuro Slot e dei um belo de um encontrão no ombro dele. O cara me estranhou, eu peguei a bebida da mão dele e a joguei na cara. Aí o pobre coitado resolveu querer me dar um soco. Rir é bom nessas horas, mas eu só via vermelho. Peguei a mão do cara, torci e olhei na cara dele. Veio o momento mágico: o filho da puta me reconheceu! O olhar mudou na hora. Acho que ele percebeu a chuva de muqueta que levaria na fuça. Nisso, os seguranças chegaram e o chefe deles já foi falando: — Pode ir parando com isso aí! A gente vai ter uma conversinha agora. Pessoal, traz os dois lá pra cima!

Nos arrastaram pra uma sala reservada. Tinha cara de ser depósito ou o que valha. Chegando lá, o chefe da segurança me encarou e, com um olhar meio cúmplice, disse que a gente ficaria ali dentro até que fizesse as pazes. Sujeito inteligente, não queria se comprometer. Sabia que eu cobriria o cara de pancada, mas se eximiu da responsabilidade. Olhei bem pro filho da puta, que, a essa altura sustentava a feição de raposa perseguida. — E aí, babaca, lembra de mim? – vociferei entre dentes. - Decerto se lembra do moleque em quem você fazia questão de bater todo dia!

O sujeitinho apertou os olhos, fingindo só me reconhecer naquela hora. — Marqui... Marcos!?

Ah, eu não me aguentei. Parti pra cima do cara! Ele ainda tentou me acertar umas porradas, o que só me deixou mais violento. Dei uma, duas, três. Tinha que tomar cuidado pra não desmaiar o cara antes da hora. Eu queria curtir aquele momento.

— Tá sentindo o rostinho quebrado, tá, neném? Calma que tem mais!

Peguei a cabeça do sujeito e meti num engradado de cerveja. Não, não deu pena. — E agora, seu filho de uma puta, me chama de veadinho agora! Chama! Agora é a hora de VOCÊ apanhar! Olha só, uma e quarenta e cinco da manhã, hora de filho da puta apanhar!

Deitei o cara e comecei a distribuir, sem dó. O rosto dele já tava parecendo aquelas tortas de morango, com gelatina. — Isso daqui é pelos anos que você me fez ficar com medo! Pelos anos que eu tinha que fugir de todo e qualquer contato social! Essa aqui é a canhotinha da terceira lei de Newton meu irmão! – eu gritava.

Nessa altura, eu nem ouvia mais o que o babaca tentava balbuciar. Dei uma bem dada no queixo dele, pra desmaiar o cara. Deixei o sujeito com face de torta de morango lá, todo estiradão, inconsciente. Na porta estava o chefe da segurança. — Valeu, parceiro, terminei lá. O cara tá todo zoado, mas não matei não, sou lutador profissional, sei bater só pra machucar. Tem algum papel aí pra eu limpar minha mão? — Tem sim, pega ali no banheiro. Entre nós, tá tudo certo. Eu não sei de nada e você também não. Pra você eu só fiz o meu trabalho, combinado? — Combinado. — Posso só te perguntar uma coisa? — Pode. — O que que esse coitado fez pra você? Porra, olha o teu tamanho. Ele é louco? — Pois é. É louco. E eu precisava disso.


Fui até o banheiro, peguei os papéis e guardei no bolso depois de olhar o rorschach do inferno.

Era mirradinho, mas se sentia no direito de me zoar só porque tinha a proteção do bando! Enfim, sós!

Peguei um a um. Sempre no mesmo esquema. Consultava o oráculo, escolhia a arena, o babaca e ia atrás. Seiscentos paus no bolso e um papinho jóia com o chefe da segurança. Comecei a sugerir pros caras fazerem a mesma coisa que o outro tinha feito. Era só me jogar numa sala qualquer com o coitado, sob o lindo pretexto de fazer as pazes, que o resto eu me encarregava e ninguém tinha visto nada.

E assim foi a coisa. Fui pegando todos. Até que um dia me senti traído. Eu tava guardando o melhor pro final. Fui atrás do responsável por organizar a tal ovada. O cara que me forçou a simular um coito torpe e débil com um poste de rua. Na frente de todo mundo, pro mundo rir da minha cara, da minha fraqueza. Guardei pro final. Salivava!

Comecei a me divertir um pouco com a coisa toda. Eu escolhia minha hora de atacar, esperava o momento exato. Escolhia a forma de aproximação. O que foi? Vai me chamar de psicopata? É tudo nome! É tudo merda! Teve um com quem eu resolvi fazer uma coisa inusitada. O cara estava com aquelas calças bem largas, com parte da cueca xadrez à mostra. Não deu outra. Fui lá e abaixei as calças do cara no meio de todo mundo. Escolhi exatamente o momento em que ele esse em cima de alguma garota. Foi sublime! — Você ta louco, mano?! — Tô! – marretada no nariz! Sangue em profusão escorrendo na camiseta do chorão! — Pára tudo! Separa! Separa! Levem os dois lá pra cima!

Era meu momento de glória, como se eu estivesse à caminho de um pódio e o filho da puta pro matadouro. — Agora vocês entram aí e só saem quando fizerem as pazes!

SHOWTIME! Esse daí eu fiz questão de estapear que nem mulher de malandro! Era o Mariavai-com-as-outras dentre os canalhas.

O filho da puta tinha virado um almofadinha, desses bem babacas, que acha que a merda dele tem cheiro de água de rosas. O oráculo me apontou uma arena mais dispendiosa. Só seiscentos paus não ia dar, mas valia a pena mesmo assim. Chegando lá segui meu ritual de sempre, com a única diferença dos novecentos paus no bolso. Eles que se entendessem com a quantia ímpar. Papo agradável com o chefe da segurança. Arena de almofadinhas. Procurar o babaca. Babaca encontrado. Estava com uma loirassa dona de um corpanzil e tanto! A cachinhos de ouro não desgrudava do boneco Ken dela por nada. Um puta saco esperar aquilo tudo. Aí eu pensei -“Bem, já que esse é o último eu vou logo dar uma bicuda no balde. Vou enfiar a mão no traseiro da Barbie ali. Isso deve fazer o Adônis de polímeros virar machinho.” Caminhei com um meio sorriso no rosto, queria erguer a Barbie no ar! Foi o que fiz. A loirassa soltou um grito esganiçado e olhou pra trás. Traição! Essa é a palavra: TRAIÇÃO! Era a Carol. Uma de minhas melhores amigas do tempo de colégio. Ela vivia me enaltecendo, dizendo que eu era sensível, que tinha futuro, que aqueles moleques


eram um bando de babacas, inclusive esse aí, o Pedro. Me defendia deles, por vezes. Era uma loira bonita, um pouco acima do peso na época de colégio, mas com olhos azuis que pareciam perfurar sua alma. Se é que você acredita nisso. Não podia ser! Como ela podia ter feito uma coisa dessas? Eu não conseguia entender. Vi uma mão voando em minha direção. Meio que em câmera lenta. Aliás, tudo estava em câmera lenta. Aqueles olhos me perfurando. Vagabunda! Vagabunda! Fui inundado por sentidos. Levei uma na cara. O som voltou e não tinha mais câmera lenta não, meu irmão. Dei uma bem dada no estômago, dobrei o bonequinho que nem uma bisnaga de pasta de dente. — Marcos?! É você? O que você ta fazendo? Pelo amor de Deus, pára com isso!

Dei mais uma no vagabundo. Os seguranças começaram a descer, tinham uma pequena multidão pra atravessar. — Porra, Carol! Como você pôde, cara?! Como você pôde? Você tava lá! Você viu tudo que esse idiota me fez passar! Você viu ele me humilhando, me ralhando e me batendo! Um filho da puta, é isso que ele é, e você sabe! — Má, isso faz muito tempo, a gente já amadureceu. Ele não é mais aquela pessoa! Ele mudou Má, pára com isso!

Nisso, vi um dos amigos do babaca, tentando me atingir. Nem pensei, meti uma no queixo e o capanguinha de merda desmoronou que nem bebum na sarjeta. Os seguranças chegaram e começaram a nos arrastar. A Carol começou a vir junto, tentando me convencer, falando um monte de merda de como ele havia mudado, que não era mais um idiota, que ela o amava e o caralho!

Fiquei ainda mais puto! Porra, amava? Como assim?! Os seguranças a barraram e começaram a subir a escada só com nós dois. O sujeitinho parecia meio em pânico, tentava ainda puxar ar enquanto olhava pra minha cara, incrédulo. Nos jogaram dentro da sala. Agora era só eu e ele. Deixa aquela vagabunda traidora lá embaixo. “Vamos ver se ela vai te amar depois de eu te dar um tratamento estético, by Marcão, cem por cento de desconto!” – pensei. Olhei pra cara do filho da puta. — E aí, Pedrinho, preparado pra levar a surra da sua vida? – eu disse.

O moleque tremia de cima a baixo. Quase tive uma ereção. Minha mão esquerda parecia moldada em aço. O tratamento estético ia começar. — Olha, Marcos... – dei a primeira porrada, bem no narizinho moldado pelo Pitanguy. — Cala sua boca, seu filho da puta! Não quero ouvir nada de você não! Você não tá aqui pra falar, tá aqui pra acertar contas com sua bagagem kármica, meu bem! – mais uma bem dada, no olho.

Começou a jorrar sangue do supercílio da franga. Que nenenzinho mais frágil, nunca vi supercílio tão sensível! O bicho cambaleou de um jeito débil. Quase ri. — Desculpe pelo que eu te fiz passar na infância. Você tá certo, eu era um filho da puta, um babaca. Eu me alimentava de status, sustentava uma reputação de ser machão para sobreviver. — CALA A BOCA, MALANDRO! – dei uma no baço que o cara caiu no chão, todo torto.


— Olha, Marcos, eu entendo sua raiva, só quero que você saiba que eu não sou mais daquele jeito. Deixei aquilo pra trás, aquele não era eu. — FODA-SE, CARA! Eu não deixei nada pra trás não! ESSE AQUI SOU EU E ESSA É MINHA CANHOTA MOENDO SEUS OSSINHOS PURIFICADOS PELO TEMPO!

No que eu fui dar mais uma, o cara tentou se defender com a mão direita, apoiando a esquerda ainda no chão. Uma defesa de merda, eu diria. O problema é que um anel de prata no dedo anelar dele perfurou minha alma, que nem os olhos da Carol. A Carol que me achava um escritor incrível. A Carol que dizia que eu ainda seria alguém na vida... Bem, de certa forma ela tava certa. Eu me tornei alguém na vida. Me tornei um lutador. Um lutador que ia quebraria a cara do noivinho dela. E eu bati, bati... bati. Mas não consegui bater com gosto... a vagabunda tinha estragado minha noite de glória. Tinha estragado minha sobremesa. O cara já tava inconsciente e eu ainda batia. Minha cabeça tava a mil. Larguei o cara no chão, todo ensangüentado, desacordado. Tive uma sensação esquisita percorrer minha espinha e encher meu rosto de sangue. Comecei a ver tudo meio turvo. Meus olhos estavam molhados. Foi estra-

nho. Não lembrava como era isso. Suspirei fundo por duas vezes e me pus de pé. Vi uns papéis por ali e fiz meu rorschach maldito, aquele que mudava de cor, que deixava o vermelho virar outra coisa. Fui embora. O cara não morreu. Fiquei sabendo depois graças às benditas mídias sociais. Hoje estou aqui, no vestiário me preparando pra entrar pra mais uma luta. Não estou com tanta vontade de lutar hoje. Mas, ei, eu também tenho que ter meu ganha pão, não é mesmo? Fico me perguntando se eu deveria realmente ter quebrado todos esses caras. Me indago se eu devia ter raiva ou agradecê-los. Afinal, tanto meu pai quanto eles fizeram de mim o que eu sou hoje, um lutador de sucesso. Sabe-se lá o que poderia ter acontecido se assim não fosse. Talvez eu fosse um escritor falido, um coitado que só fala baboseiras. Talvez eu devesse agradecê-los. Agora eu não enxergo mais tudo vermelho, alguma coisa mudou. O vermelho abriu espaço pra uma outra cor, mais gasta, virou outra coisa. Não sei. Deixa isso pra lá, eu não tenho tempo pra ficar pensando sobre essas coisas. Daqui a pouco essa porta aí vai abrir e eu tenho que caminhar para quem eu sou. Talvez algum dia eu ainda escreva sobre essa merda toda.





Com quantas

TWITTADAS se cobre um festival?


por MARCELO SARAVÁ

N

o epicentro de uma enxurrada de shows internacionais inédita no Brasil, concentrada no segundo semestre de 2010, havia o SWU – Starts With You, um festival aos moldes dos europeus, que pretende se firmar como o maior evento de música anual. Nesta primeira edição, em uma fazenda na região de Itu, São Paulo, se apresentaram dezenas de atrações, divididas em três dias. Um jornalista só não daria conta de cobrir tudo... Mas eis que um manuscrito, que não é nem nunca foi jornalista, aproveitando que iria para o SWU de qualquer jeito, resolveu fazer uma matéria sobre o festival. E como resenhas já foram feitas por tudo quanto é veículo impresso, o Marcelo Saravá decidiu se apropriar da linguagem do Twitter para uma reportagem diferente. Num exercício de estilo, ele tentará definir o SWU em 140 twittadas, depois em 70, em 35, 17, 8, 4 e, finalmente, apenas uma twittada. Você pode escolher qual cobertura prefere ler, ou conferir todas e comparar...


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SWU: Starts With You. Peraí: Não seria SWY? Não basta darem nome em inglês, ainda complicam com fonéticas anglo-saxônicas? Só no Brasil. Mas o que Starts With You (Começa com Você)? A Sustentabilidade. Um objetivo que, no festival, se mostrou insustentável. @vyktorb O SWU é um festival que prega a sustentabilidade pois só tem condições de ir quem é sustentado pelos pais. O SWU foi feito na Fazenda Maeda, no meio da estrada entre Sorocaba e Itu, em SP. Paulistano acha longe. Paulistano é tudo meio mimado. Em países como Inglaterra, França, Espanha e outros, festivais acampáveis, durando dias, são sempre feitos longe das capitais. O problema é o investimento. Seus gastos não acabam quando você compra o ingresso. O SWU é contra o desperdício, mas não o de dinheiro. Decidi bancar o alto investimento de tempo e dinheiro que era ir ao SWU por dois motivos: Mars Volta e Queens of the Stone Age. Faria portanto bate e volta de SP a Itu no primeiro e no último dia, se não tivesse uma esposa que decidiu ir ao dia 2. Assim, vi os 3 dias. Principais atrações dia 1: Rage Against the Machine, Mars Volta, Los Hermanos, Mutantes, Infectious Grooves, Macaco Bong, Black D. Chalks. E mais DJ Marky, Crystal Method, Killer on the Dance Floor, The Twelves, Steve Angello, Dave “Switch” Taylor, Glocal e Brothers of Brazil. Lendo o line-up agora, vejo que tinha também Mallu Magalhães. Claro, né, o marido na labuta, ela também quis ganhar o dela. Alguém viu? Dia 2: Kings of Leon, Dave Matthews Band, Joss Stone, Regina Spektor, Sublime With Rome. Por respeito a vocês, não vou colocar o resto. Nos outros palcos: DJ Isso, DJ Aquilo, banda que imita Nação Zumbi, banda que imita Rage Against, artista rouco que faz parte da nova MPB. Dia 3: Linkin Park, Pixies, Queens of the Stone Age, Incubus, Avenged Sevenfold, Cavalera Conspiracy, Yo la Tengo, Tiesto com 2 pingos no E. E o Cansei de Ser Sexy, que como ninguém mais dá bola, foi rebaixado à Série B (Lê-se palquinho das bandas novas). Cansaram de ser Hype. Caso eu tenha esquecido de citar alguma atração, o que pareceria uma “puta falta de sacanagem” da minha parte, garanto: Foi intencional. A maioria das bandas que tinha vontade de ver, inclusive QOTSA, RATM e Mars Volta, eu já vi no Brasil ou fora. As expectativas não mudaram. Não vou dizer que “não estou mais na idade” de acampar em shows, isso é pura babaquice. Mas como fui ao SWU “casado”, pagamos um hotel. Ficamos num Ibis em Sorocaba. No final, foi um bom negócio: O hotel é na Raposo Tavares. De lá para o SWU, era 1 ou 2 músicas do Ramones. Partimos de Sampa sábado dia 09 às 13 horas. Tomamos café-da-manhã na estrada às 14h - Minha última refeição até a meia-noite.



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Nosso quarto de hotel. Meda. Muita Meda. Minha intenção era chegar a tempo de ver o Black Drawing Chalks, uma das poucas bandas novas brasileiras decentes. Peguei a Raposo Tavares que, apesar de ser feriado e apesar do SWU, estava calminha, calminha (dica pra quem for ano que vem). A intenção seria ir sozinho, parar o carro no tal bolsão de Itú, pagar 50 reais, xingar a mãe e pegar o transfer por mais 6 reais até o SWU. O estacionamento é assim: 100 reais. C/ 4 ou + neguinhos no carro, cai pra 50. Bolsão: 50 reais. C/ 4+ no carro, cai pra 30. Mega-promoção. Saindo do hotel, vi 5 carinhas. “Entra ai, a gente racha o estacionamento.” Total: 6 cuecas num Ford Fiesta. O gente mala! Mas economizei. Mal-sinalizado. Passei a noite anterior estudando o google mapas, e mesmo assim me perdi 2 vezes. Já começo o festival xingando... Já havia perdido o Black Drawing Chalks e temia perder também o Infectious Grooves. E os malas do meu lado. A previsão do tempo não era de chuva. Não haveria sexo na lama. Poooxa... Mas em compensação, fui recebido por poeira e muito frio. Finalmente! O SWU é um exemplo para o ministério da saúde. Quer reduzir a taxa de alcoólatras? Cobre 6 reais por breja. Além das pessoas terem que fazer lotação nos fuscas pra pagar menos no estacionamento, ainda tem que rachar a cerveja. Sustentacrueldade. Cheguei no fim do Infectious Grooves (emoticom de tristeza). Mas a tempo de ouvir sua melhor canção: Violent & Funky. O SWU começou bem. Com o groove de baixo mais impressionante dos anos 90, Violent & Funky ao vivo começa funk e ao final vira rockabilly. E o show vira festa. Ao fim, Infectious Grooves homenageia a outra banda de Mike Muir (Suicidal Tendencies) e acaba. Vi só duas músicas. Não faltou mais nada. Anoitece. No palco ao lado, surgem os Mutantes. Abrem com Vida de Cachorro. A música mais fofa da língua portuguesa, talvez? Há 3 anos, Mutantes fizeram show gratuito em SP, quando Zélia Duncan e Arnaldo Baptista ainda estavam na banda. Não dá para comparar um megashow só dos Mutantes, primeira apresentação em décadas, com uma simples participação no meio de um festival. Dito isso, o outro show foi muito melhor. Dito aquilo, não importa: o Sérgio continua inspirado na guitarra, e o set list foi impecável. Para ser apoteótico, só faltava a vocalista que substituiu a Zélia Duncan dar à luz em pleno palco.



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Os shows principais eram divididos em dois palcos semelhantes, um do lado do outro. Acaba um show ali, começa outro aqui. Ponto pro SWU. Olha que lindo, os palcos estão de mãos dadas! Pela primeira vez, presencio o quanto Los Hermanos são venerados. Não há, hoje em dia, nada parecido no Brasil. Não no rock, pelo menos. Olha, colocaram o Fidel Castro nos vocais! Se há uma banda brasileira que consegue convencer gente do Amapá a vir até Itú e enfrentar o frio, é Los Hermanos. E eles não fazem feio. E então, no meio do show, alguém grita zoando: Toca Anna Júlia. E não é que, tantos anos depois, eu já havia esquecido deste crime da banda? E canção vai, e canção vem, e eu não consigo parar de pensar: Eles cantavam Anna Júlia. Diferente do sem-sal Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante tem o poder de hipnotizar com a voz, a melodia, a simpatia. Eles cantavam Anna Júlia. O show foi bom, mas para mim foi apenas um aperitivo. Logo entraria o Mars Volta. Mensagem de sustentabilidade no telão: FAÇA XIXI NO BANHO. Chegar cedo no show para ficar perto da grade, ou chegar tarde e empurrar todo mundo, perdeu o sentido desde o advento da maldita área VIP. O show do Mars Volta começa com o som baixo, mas logo o baixo faz a terra tremer. O Mars Volta não faz nenhuma questão de projetar carisma. Sempre foi um grupo umbilical, pedante, ensimesmado. A melhor banda da década. Cara... eles cantavam Anna Júlia! Quem nunca esteve numa rodinha não entende a solidariedade e companheirismo que rolam lá. Ninguém quer machucar ninguém. Todos se ajudam. Me sinto meio ridículo nas rodinhas, pulando feito louco, enquanto protejo meu celular no bolso com todas as minhas forças. Quando vi o Mars Volta no Tim Festival, eles tinham apenas 1 CD. Eram “A nova banda dos caras do At the Drive-In.” Só uma promessa. Foram 3 músicas em 40 minutos. Uma tortura para quem queria mais. A esperança era que agora eles mostrassem um pouco de cada um dos 5 CDs. No SWU eles tocaram 5 músicas em 1 hora. Se ao menos a organização tivesse dado 2 horas pros caras, eles tocariam 6. O bom de se ouvir Mars Volta em casa é que dá para passar para a frente as partes chatas.


Foto: Daniel Teixeira/AE


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Os fãs de Mars Volta que disserem que foi o melhor show da vida deles, sinto muito, estão mentindo. Eu amo os caras. Mas queria mais. Fim do Mars Volta, começa o esmaga-esmaga: Agora todo o festival se concentra frente a um só palco, esperando o Rage Against the Machine. Quando surge o RATM, já estamos todos caíndo em uníssono, uma massa bêbada de corpos desafiando as leis da física, ocupando o mesmo espaço. Ver o RATM perto da grade que separa plebe e VIPs é um exercício de equilíbrio. Primeiro show do Rage na América Latina. Só podia dar merda. E deu. Foi necessário parar o show até o povo se acalmar um pouco. 1998, Tibetan Freedom Concert. RATM. Escorregador de lama. A gente rolava barranco abaixo, depois subia desviando dos outros que caiam. Foi a mistura perfeita de som de primeira linha e olimpíadas do Faustão. Agora, de volta ao SWU: Tecnicamente, foi o show mais perfeito do festival. O quarteto estava em ótima forma e tocou tudo o que sua legião de seguidores desejava. Nunca vi tanta mulher bonita em um festival. Calma, @amordaminhavida, calma, você também não pode reclamar dos homens, né? Meia-noite. Corro pra lanchonete. No tempo que levaram para me atender, eu poderia ter escrito todos esses twittes. Apenas 50 minutos para sair do estacionamento. Uma mão no volante, a outra jogando joguinho no iphone. Eles tocavam Anna Júlia! Melhor frase escrita com o dedo na sujeira do vidro de um carro: RAGE AGAINST RESTART. Dia 2, quem manda é a patroa. Quer ir mais tarde, sem ver Sublime? Tudo bem! Quer sair mais cedo, sem ver Kings of Leon? Ei, boa idéia! Novamente chego no meio de um show que não queria perder. No caso, da doce Regina Spektor. Musicalmente, o show da pianista é semelhante aos seus Cds. O bônus de vêla ao vivo é o carisma, a fofura. Ela é uma música de pelúcia! Proposta para a cantora, em seu próximo álbum: Defina logo se você é Bjork ou Tori Amos. Ou nenhuma das anteriores. Não acredita que estava frio em Itú? Pergunta pra Regina Spektor! Ela é russa! Como eu sou o tipo de cara que vai a este tipo de festival PARA VER OS SHOWS, não consigo entender quem vem para socializar ou catar homem. Você chega nos restaurantes e não pode escolher nada. Eles dizem: - Acabou. Só tem tal coisa. É pegar ou largar. Organização nota 10, SWU. Quer economizar nos comes e bebes no SWU? Compre uma garrafinha de leite com chocolate e beba aos poucos. Fora que não tem fila pra comprar.


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Se a cerveja fosse mais barata, a gente estaria mais bêbado e mais apto a aceitar este tipo de absurdo. Não foi o caso. Passei fome. Nessas horas dá vontade de mandar a produção do SWU sentar num lápis de Itú. Sobre a Joss Stone, duas palavras: Queixo caído. Dave Matthews Band. Conheci a banda quando não era famosa no Brasil. Por muito tempo detestei. Recentemente, comecei a adorar. Vai entender. Regina Spektor, Joss Stone e Dave Matthews são uma ótima sequência para se curtir ao lado da pessoa amada. Se ela não for pagodeira, claro. Pode-se dizer que, dentro da linha musical que adotaram, os integrantes do Dave Matthews Band são virtuosos. Não no mal sentido. Trata-se de instrumentistas talentosíssimos que compõem arranjos multirrítmicos, com influências de country, rock, funk, música irlandesa. Assim, o show é repleto de canções cantaroláveis, mas com espaço para trechos instrumentais interessantes e ainda solos de bateria. E o papel do Dave Matthews nisso tudo? Costurar as melodias com berros roqueiros e sussurros roucos. Dar sentido às partes. Completá-las. Hora de adotar um velho hábito judeu: Sair antes do fim. Aqui no SWU, isso é vital para conseguir sair do lugar em menos de 40 minutos. Não vi o show do Kings of Leon, mas posso fazer uma resenha mesmo assim. O Kings of Leon chegou, tocou Molly´s Chamber, tocou Sex on Fire, tocou meios-sucessos e bateu recordes de bocejos entre os presentes. Imagens da Sustentabilidade (link aqui). Dia 3. Desta vez tudo calculado para não perder nada desde o Cavalera Conspiracy. Saímos cedo, para chegar lá com folga. O vendedor de bilhetes do transfer que vai do bolsão ao SWU se chama Elviro. Quando eu tiver um filho, vai se chamar Natasho. Consigo chegar às 5 da tarde, ou seja, finalmente eu veria tudo o que desejava. VERIA. Se estivesse com meu ingresso. 5h10. Pego o ônibus de volta ao bolsão. 25 minutos para ir, 25 para voltar, mais a espera. Adeus, irmãos Cavalera. Duvido que esteja no carro. Deve estar em Sorocaba. Com minha esposa. Que está no cinema vendo Tropa de Elite 2 e não atende o celular. Boa, Deus. Muito boa. No dia do Queens of the Stone Age. Ra. Ra. Ra.


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Provavelmente perderei Cavalera Conspiracy, Avenged Sevenfold e Incubus. Tudo bem. Bem não, mas... tudo, menos perder o Queens. Até que estou com sangue frio. Escrevendo enquanto o ônibus-tartaruga segue. Paciência. Não tenho opção. Comprar de cambista não é opção. Yo La Tengo já vi uma vez, num show pequeno, intimista, no SESC Pompéia. Foi bom. Foi o suficiente. O Queens começa às 9h. Tenho quatro horas para achar essa droga e voltar. Vai dar. Não vai dar. Vai dar. Não vai dar. Sou um cara extremamente otimista. Mas a merda do ingresso não deve estar no carro. Lá vou eu para Sorocaba. 5h35. Achei. Estava no Carro. Só vou perder o Cavalera. Ufa! Leitor, desculpa pelo anti-clímax. Tá chateado? Eu tô contentão! Tem nuvem no céu. Será que é hoje que Itu vira Woodstock? No SWU, a única coisa gratuita é o pôr-do-sol. A Maeda é de fato uma fazenda. Enquanto me aproximo, vejo alguns quadúpedes. Ei! Eu podia vender leite fresco no festival! Aqui se pode recarregar a bateria do celular com energia das suas pedaladas numa bike. Legal, né? E um pouco ridículo também. O show tá chato? Tem roda-gigante. Chego bem à tempo de ver o Avenged Sevenfold entrar no palco. Com Mike Portnoy, ex-Dream Theater, na bateria. Sempre um prazer. Em termos de figurino, o A7X é uma banda indecisa. Um é emo, o outro punk. Já o vocalista acordou achando que era Bruce Dickinson. - Ei, não empurra! Não empurra Pô! - Empurro sim. O A7X deixa todas as músicas melhores ao vivo. Crédito especial ao vocalista pelo feito. Eu achava a banda legal. Agora sou fã. O show do A7X provou que em 2010 ainda é possível gostar de metal sem se sentir ridículo. E o estilo foi bem representado no festival. Quem mais se deu bem pelo SWU ser no meio do nada foram as operadoras de celular. Às vezes não temos noção do quanto certa banda é famosa por aqui até ver todo mundo cantando a letra junto. Para mim, foi o caso do Incubus. Numa das músicas, o Incubus definiu o clima do festival: I haven´t felt the way I feel today for so long... Não entendeu? Google translate! O Incubus pegou o público já aquecido no show do Avenged Sevenfold e manteve a energia alta, com alguns momentos epifânicos (Are you in?)


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Todo show tem “aquela” música que você quer ouvir e não tocam. Até agora, isso não aconteceu no SWU. O esquema de rodízio de palco funcionou muito bem todos os dias. Até o show do QOTSA. Atraso de uma hora. Justo no QOTSA. E, finalmente, depois de 1h de xingamentos ao SWU, Queens of The Stone Age chegam com Feel Good Hit of the Summer. Dane-se o mundo. Pensando agora, com o QOTSA foi mais ou menos como com o Mars Volta. Ambas vieram ao Brasil quando ainda eram promessas. O QOTSA foi atração vaiada do Rock in Rio 2001 (apesar do show ter sido maravilhoso), antes do terceiro disco torná-los gigantes do rock. No SWU, o set list do QOTSA foi estranho: 2 de um CD, depois 3 de outro, ai 2 de outro etc, em blocos. E o primeiro disco, ignorado. O som estava perfeito. Chegavam ao público massas sonoras que fisicamente projetavam-nos para trás. Rock cru, pesado, barulhento. O que me decepcionou foi a reação fria do público. E quando o público está frio, o show perde toda a força. O que houve de errado? Só no final a galera acordou, atropelada pela sequência Go With the Flow, You Would Know e Song for the Dead. Rodinhas, finalmente! Por causa do atraso, o show do QOTSA foi mais curto do que deveria. Justo o do QOTSA. Eu e minha grande boca: O Queens fez o que os outros não haviam feito: Não tocou “aquela” música. Mas valeu. Menos de dois minutos depois do QOTSA sair do palco, surge o Pixies. O berro do Frank Black em Tame deve ter sido ouvido a 4 cidades dali. O Pixies é uma banda importantíssima e veneradíssima. Mas desde seu retorno, eles batem cartão nos shows. Tocam, thank you, saem. Para piorar, o palco do Pixies (e do Incubus e do Cavalera) tinha um som nítidamente pior do que o outro. Ou seja: Show do Pixies, nota 6. É claro que, com o repertório deles, é impossível não se entregar em alguns momentos. Mesmo ao presenciar a sombra de uma ex-grande banda. Por fim, Linkin Park. Vi duas ou três músicas antes de ir embora. Eu ficaria. Até gosto deles. Mas em Sorocaba uma esposa me aguardava. Toda banda sempre aprende uma só palavra quando vem pra cá: Obrigado. Dúvida: Por que ninguém ensina que a gente fala VALEU, não obrigado? O SWU é superlativo como a mitológica Itú. Mas comparado ao inglês Glastonbury, nosso festival é liliputiano. Não conheço as questões econômicas envolvidas. Mas o Brasil ainda é inocente em termos de grandes espetáculos. Não sabemos fazer dinheiro. Houve muitos shows bons no SWU. Para mim, pelo menos, nenhum foi imperdível. Mas sei que muita gente discordaria.


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SWU: Starts With You (Começa com Você). Ou com seu pai, que vai pagar a conta. O SWU foi feito na Fazenda Maeda, em Itu, SP, aos moldes dos grandes festivais europeus. Inclusive no quesito friiiiiiiiiiiiiiiiooooooooo... O problema é o investimento. Seus gastos não acabam quando você compra o ingresso. O SWU é contra o desperdício, mas não o de dinheiro. Poucas bandas fariam eu ir ao SWU. Coincidentemente, duas delas estavam lá: Mars Volta, Queens of the Stone Age. Faria portanto bate e volta de SP a Itu no primeiro e no último dia, se não tivesse uma esposa que decidiu ir ao dia 2. Assim, vi os 3 dias. Principais atrações dia 1: Rage Against the Machine, Mars Volta, Los Hermanos, Mutantes, Infectious Grooves, Macaco Bong, Black D. Chalks. Dia 2: Kings of Leon, Dave Matthews Band, Joss Stone, Regina Spektor, Sublime With Rome. Por respeito a vocês, não vou colocar o resto. Dia 3: Linkin Park, Pixies, Queens of the Stone Age, Incubus, Avenged Sevenfold, Cavalera Conspiracy, Yo la Tengo, Tiesto com 2 pingos no E. Caso eu tenha esquecido de citar alguma atração, o que pareceria uma “puta falta de sacanagem” da minha parte, garanto: Foi intencional. Ficamos num Ibis em Sorocaba. Nosso quarto de hotel. Meda. Muita Meda. Ir sozinho de carro ao festival significa pagar de 56 a 100 reais. Não se iluda: Indo com muita gente no carro continua caro. Mal-sinalizado. Passei a noite anterior estudando o google mapas, e mesmo assim me perdi 2 vezes. Já começo o festival xingando... Já havia perdido o Black Drawing Chalks e temia perder também o Infectious Grooves. Comida cara e bebida cara já são praxe em festivais. Mas lembrem-se: Há sempre um cúmulo. Cheguei no fim do Infectious Grooves. Mas a tempo de ouvir sua melhor canção: Violent & Funky. O SWU começou bem. Ao fim, Infectious Grooves homenageia a outra banda de Mike Muir (Suicidal Tendencies) e acaba. Vi só duas músicas. Não faltou mais nada. O SWU prega a sustentabilidade. Até houve algumas ações interessantes neste sentido. Opa, vai começar o show. Fui! Anoitece. No palco ao lado, surgem os Mutantes. Abrem com Vida de Cachorro. A música mais fofa da língua portuguesa, talvez? O Sérgio continua inspirado na guitarra, e o set list foi impecável. Os shows principais eram divididos em dois palcos semelhantes, um do lado do outro. Acaba um show ali, começa outro aqui. Ponto pro SWU.


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Se há uma banda brasileira que consegue convencer gente do Amapá a vir até Itú e enfrentar o frio, é Los Hermanos. E eles não fazem feio. Diferente do sem-sal Marcelo Camelo, Rodrigo Amarante tem o poder de hipnotizar com a voz, a melodia, a simpatia. O show do Mars Volta começa com o som baixo, mas logo o baixo faz a terra tremer. O Mars Volta não faz nenhuma questão de projetar carisma. Sempre foi um grupo umbilical, pedante, ensimesmado. A melhor banda da década. Tocaram 5 músicas em 1 hora. Se ao menos a organização tivesse dado 2 horas pros caras, eles tocariam 6. O bom de se ouvir Mars Volta em casa é que dá para passar para a frente as partes chatas. Os fãs de Mars Volta que disserem que foi o melhor show da vida deles, sinto muito, estão mentindo. Eu amo os caras. Mas queria mais. Primeiro show do Rage na América Latina. Só podia dar merda. E deu. Foi necessário parar o show até o povo se acalmar um pouco. Você já esteve em um show onde o espaço entre dois corpos era tão inexistente que você literalmente tinha o braço imobilizado? E, como se não fosse o bastante, o som falhou no meio do show. Como os músicos tinham retorno, eles nem perceberam, continuaram tocando.


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Tecnicamente, foi o show mais perfeito do festival. O quarteto estava em ótima forma e tocou tudo o que sua legião de seguidores desejava. Hoje, a vida foi cheia de som e fúria. Nunca vi tanta mulher bonita em um festival. Calma, @amordaminhavida, calma, você também não pode reclamar dos homens, né? Meia-noite. Corro pra lanchonete. - Me vê um... - Não tem. - Tá, então um... Tamém não. E por ai vai. Há um balcão. Você se posiciona estrategicamente no meio dele. As atendentes só atendem quem tá na ponta. O que? Fila? É marca de tênis, né? Apenas 50 minutos para sair do estacionamento. Uma mão no volante, a outra jogando joguinho no iPhone. Novamente chego no meio de um show que não queria perder. No caso, da doce Regina Spektor. Musicalmente, o show da pianista é semelhante aos seus Cds. O bônus de vêla ao vivo é o carisma, a fofura. Ela é uma música de pelúcia! Não acredita que estava frio em Itú? Pergunta pra Regina Spektor! Ela é russa! Joss Stone comanda uma apresentação impecável musicalmente. Sim, há uma banda atrás dela. Ninguém viu, mas tem. Regina Spektor, Joss Stone e Dave Matthews são uma ótima sequência para se curtir ao lado da pessoa amada. Se ela não for pagodeira, claro. Outra coisa em comum entre Matthews, Stone e Spektor, os três grandes nomes do dia: Todos parecem se divertir no palco. E nós ainda mais. No programa ‘Altas Horas’ houve uma jam entre Regina Spektor e Dave Matthews. Viva o YouTube! Dave Matthews merecia fechar a noite, não a banda dos filhinhos de papai. Tem gente que não entende o conceito de “vestir-se para show de rock no rancho fundo bem pra lá do fim do mundo e no frio.” Mulheres, claro. Não vi o show do Kings of Leon, mas posso fazer uma resenha mesmo assim. O Kings of Leon chegou, tocou Molly´s Chamber, tocou Sex on Fire, tocou meios-sucessos e bateu recordes de bocejos entre os presentes. Imagens da Sustentabilidade (link aqui). Dia 3. Consigo chegar às 5 da tarde, ou seja, finalmente eu veria tudo o que desejava. VERIA. Se estivesse com meu ingresso.


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Perdi mais que uma hora, e um show inteiro, por causa do meu descuidado. Não seria desta vez que eu veria Cavalera Conspiracy. No SWU, a única coisa gratuita é o pôr-do-sol. Perdeu a chave do carro, do trailer, da barraca de acampar? Sem problema, há um chaveiro 24h. Pô, acho que no meu bairro aqui não tem! A Oi fez um espaço para troca-troca. Sim, é isso mesmo que você está pensando: Um lugar para fazer troca de peças de roupa. Chego bem à tempo de ver o Avenged Sevenfold entrar no palco. Com Mike Portnoy, ex-Dream Theater, na bateria. Sempre um prazer. O A7X deixa todas as músicas melhores ao vivo. Crédito especial ao vocalista pelo feito. Eu achava a banda legal. Agora sou fã. O show do A7X provou que em 2010 ainda é possível gostar de metal sem se sentir ridículo. E o estilo foi bem representado no festival. Numa das músicas, o Incubus definiu o clima do festival: I haven´t felt the way I feel today for so long... Não entendeu? Google translate! Após 1h de atraso, Queens of The Stone Age chegam com Feel Good Hit of the Summer. Dane-se o mundo. O som estava perfeito. Chegavam ao público massas sonoras que fisicamente projetavam-nos para trás. Rock cru, pesado, barulhento. O que me decepcionou foi a reação fria do público. E quando o público está frio, o show perde toda a força. O que houve de errado? Só no final a galera acordou, atropelada pela sequência Go With the Flow, You Would Know e Song for the Dead. Rodinhas, finalmente! Por causa do atraso, o show do QOTSA foi mais curto do que deveria. Justo o do QOTSA. Faltou Make it wit chu. Faltou Regular John. Faltou todas do primeiro álbum. Quero um show só deles, sem festival. E do Mars Volta também. O Pixies é uma banda importantíssima e veneradíssima. Mas desde seu retorno, eles batem cartão nos shows. Tocam, thank you, saem. Para piorar, o palco do Pixies (e do Incubus e do Cavalera) tinha um som nítidamente pior do que o outro. Ou seja: Show do Pixies, nota 6. Por fim, Linkin Park. Vi duas ou três músicas antes de ir embora. Eu ficaria. Até gosto deles. Mas em Sorocaba uma esposa me aguardava. O SWU é superlativo como a mitológica Itú. Mas comparado ao inglês Glastonbury, nosso festival é liliputiano. No geral, o SWU foi um bom festival. A escolha dos artistas foi ótima e transformou o festival de fato no maior do ano. Papai Noel, fui um bom menino. Se houver SWU ano que vem, por favor faça eles trazerem o System of a Down e o Tool. É pedir muito?


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O SWU - Lê-se éssi dábliu ú - foi um festival feito no meio do nada para ser mais fácil tirar nosso dinheiro em estacionamento e bebida. Poucas bandas fariam eu ir ao SWU. Coincidentemente, duas delas estavam lá: Mars Volta, Queens of the Stone Age. Acabei por ver todos os 3 dias de show, que somavam quase 70 apresentações em quatro palcos. Dia 1: Rage Against the Machine, Mars Volta, Los Hermanos, Mutantes, Infectious Grooves, Macaco Bong, Black D. Chalks, Brothers of Brazil. Dia 2: Kings of Leon, Dave Matthews Band, Joss Stone, Regina Spektor, Sublime With Rome. Por respeito a vocês, não vou colocar o resto. Dia 3: Linkin Park, Pixies, Queens of the Stone Age, Incubus, Avenged Sevenfold, Cavalera Conspiracy, Yo la Tengo, Tiesto com 2 pingos no E. Ficamos num Ibis em Sorocaba. Nosso quarto de hotel. Meda. Muita Meda. Você pode ir de carro e gastar até 100 reais de estacionamento, ou pegar um ônibus de São Paulo, 60 reais ida e volta. Sentiu o drama? Chegar ao festival parece fácil, não é. Uma placa mal posicionada me fez pegar a estrada errada e perder o show do Black Drawing Chalks. Comida cara e bebida cara já são praxe em festivais. Mas lembrem-se: Há sempre um cúmulo. Cheguei no fim do Infectious Grooves. Mas a tempo de ouvir sua melhor canção: Violent & Funky. O SWU começou bem. Mutantes, com uma nova vocalista, deixam o ambiente mais setentista, mas próximo da imagem que os organizadores tentaram vender: Woodstock. Os shows principais eram divididos em dois palcos semelhantes, um do lado do outro. Acaba um show ali, começa outro aqui. Ponto pro SWU. Se há uma banda brasileira que consegue convencer gente do Amapá a vir até Itú e enfrentar o frio, é Los Hermanos. E eles não fazem feio. O Mars Volta tocou 5 músicas em 1 hora. Se ao menos a organização tivesse dado 2 horas pros caras, eles tocariam 6. Primeiro show do Rage na América Latina. Só podia dar merda. E deu. Foi necessário parar o show até o povo se acalmar um pouco. Tecnicamente, foi o show mais perfeito do festival. O quarteto estava em ótima forma e tocou tudo o que sua legião de seguidores desejava. O SWU é bom para dietas: Demora tanto para você ser atendido, que você desencana de comer e volta para os shows. Dia 2, Regina Spektor: Um combo de Bjork e Tori Amos com a meiguice de uma garotinha de cinco anos de idade. Não dá pra resistir. Josssssssssssss Sssssssstone. Jossssssss Ssssstone. O nome derrete na boca quando a gente fala. Jossssssssss...


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Regina Spektor, Joss Stone e Dave Matthews são uma ótima sequência para se curtir ao lado da pessoa amada. Se ela não for pagodeira, claro. Outra coisa em comum entre Matthews, Stone e Spektor, os três grandes nomes do dia: Todos parecem se divertir no palco. E nós ainda mais. Dave Matthews merecia fechar a noite, não a banda dos filhinhos de papai. Não vi o Kings of Leon. É que se era para dormir, preferia fazê-lo no quentinho do meu hotel. Dia 3. Planejo tudo para chegar cedo. Chego lá e estou sem ingresso. Resultado: Perco o Cavalera Conspiracy. Para largar mão de ser burro. No SWU, a única coisa gratuita é o pôr-do-sol. O Avenged Sevenfold provou que em 2010 ainda é possível gostar de metal sem se sentir ridículo. E o estilo foi bem representado no festival. Numa das músicas, o Incubus definiu o clima do festival: I haven´t felt the way I feel today for so long... Não entendeu? Google translate! Após 1h de atraso, Queens of The Stone Age chegam com Feel Good Hit of the Summer. Dane-se o mundo. O som estava perfeito. Chegavam ao público massas sonoras que fisicamente projetavam-nos para trás. Rock cru, pesado, barulhento. O que me decepcionou foi a reação fria do público. E quando o público está frio, o show perde toda a força. O que houve de errado? Por causa do atraso, o show do QOTSA foi mais curto do que deveria. Justo o do QOTSA. O Pixies é uma banda importantíssima e veneradíssima. Mas desde seu retorno, eles batem cartão nos shows. Tocam, thank you, saem. Por fim, Linkin Park. Vi duas ou três músicas antes de ir embora. Eu ficaria. Até gosto deles. Mas em Sorocaba uma esposa me aguardava. No geral, o SWU foi um bom festival. A escolha dos artistas foi ótima e transformou o festival de fato no maior do ano.


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Fui à Itu, no SWU, que busca a sustentabilidade do patrocinador, ver Mars Volta, Queens of the Stone Age e outras bandas. Dia 1: Rage Against the Machine, Mars Volta, Los Hermanos, Mutantes, Infectious Grooves, Macaco Bong, Black D. Chalks, Brothers of Brazil. Dia 2: Kings of Leon, Dave Matthews Band, Joss Stone, Regina Spektor, Sublime With Rome. Por respeito a vocês, não vou colocar o resto. Dia 3: Linkin Park, Pixies, Queens of the Stone Age, Incubus, Avenged Sevenfold, Cavalera Conspiracy, Yo la Tengo, Tiesto com 2 pingos no E. Eu e a esposa nos hospedamos em Sorocaba, o que já é uma graninha. E ainda assim, tinha que pagar o estacionamento. O que já é uma granona. Comida cara e bebida cara já são praxe em festivais. Mas lembrem-se: Há sempre um cúmulo. Perdi o Black Drawing Chalks, cheguei no Infectious Grooves, bem na melhor música, Violent & Funky. Duas grandes bandas brasileiras, uma das antigas e outra... hã... “das recentes”: Mutantes e Los Hermanos. Adivinha qual tinha público mais cativo. Acertou. Em seguida, Mars Volta e Rage Against the Machine. Entre mortos e feridos, eu fiquei com a lombar dolorida e a voz esganiçada. Se valeu? Ô! O SWU é bom para dietas: Demora tanto para você ser atendido, que você desencana de comer e volta para os shows. Dia 2: O piano virtuoso e brincalhão de Regina Spektor. A sensualidade de Joss Stone. Por fim, Dave Matthews. Kings of Leon? Passo. Dia 3. Perco o Cavalera Conspiracy por burrice: Deixei o ingresso no carro, no bolsão de estacionamento, há 25 minutos de ônibus do SWU. O metal do Avenged Sevenfold e o rock “alternativo” (ha!) do Incubus são aperitivos para a barulheira do Queens of the Stone Age. O QOTSA faz um show quase perfeito, maculado pela fria recepção do público e a brevidade forçada do set, devido a atrasos. Pixies são um bando de cães andaluzes que perderam a mente do macaco que foi ao céu na máquina de ossos do planeta de som. Oi Linkin Park. Toca logo as famosas que eu tenho que ir embora. Não? Tá, tô indo. Se valeu ir? Foi caro, mas valeu. Foi o que eu esperava? Não. Foi decepcionante? Também não. Agora é ver se vai mesmo rolar ano que vem.


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Fui para Itú ver o SWU, que era vendido como “o Woodstock brasileiro”. Esta bobagem é uma das várias coisas insustentáveis do festival. No primeiro dia vi, entre outros, Mars Volta e Rage Against the Machine. Eu tenho ainda o hematoma para provar que estive lá. Dia 2: Regina Spektor, Joss Stone, Dave Matthews. - O que, você não viu o Kings of Leon? - Sim. Tenho um certo orgulho bobo de dizer que sim. Dia 3. Grandes apresentações dos metaleiros do Avenged Sevenfold com Mike Portnoy e do Incubus tocando sua coletânia praticamente inteira. Em seguida, Queens of the Stone Age. Sick. Sick. Sick. Antes de ir embora, ainda vi o Pixies fazendo um show para pagar as contas e o Linkin Park rapando e berrando e seguindo a canção. 3 dias de ingresso: 600 reais. Estacionamentos: 150 reais. Hotel: 240 reais. Gasosa: 90 ida 78 volta. Quer que eu calcule a comida também? Tudo isso e eu nem andei na roda-gigante...

Passei 3 noites no meio do nada, sentindo frio, por causa do Mars Volta e do QOTSA. O Mars Volta foi nota 8. O QOTSA foi nota 9. Pelo preço que paguei, deveriam ser dois 10. Mas houve um punhado de bons momentos, graças a artistas como Dave Matthews Band, Mutantes, RATM, Regina Spektor, Avenged Sevenfold. Acabaram minhas piadas com sustentabilidade.

Em um feriado de outubro de 2010, dormi em Sorocaba, vi grandes shows e descobri que no SWU o que é de Itú mesmo é a conta.



Que tal ajudar a Natalie Portman em sua vinganรงa? Ela vai xingar muito no Twitter da

twitter.com/RevManuscrita


JOÃO PAULO SÁ em


diálogos notívagos COMIGO mesmo Miopia Não os olhos. O olhar. Não a cabeça. A mente. Não o nome. O âmago. Não o traço. O contraste. Não a imagem. A ideia. Não a lágrima. A dor. Não a morte. A perda. Não o dado. O saber. Não a palavra. O sentido. Não o emprego. A vocação. Não o trabalho. A arte. Não a revista. O manifesto. Não o dinheiro. A fortuna. Não a vingança. A cura. Não o alguém. O afeto. Não a carne. O prazer. Não a porra. O gozo. Não o corpo. A essência. Não o compromisso. O amor. O amor. Por que não?


AMANDA SOUZA em

Mande suas dĂşvidas sobre o universo afetivo para o email: amanda@manuscrita.com.br


CONSULTÓRIO sentimental Qual motivo que leva um homem que diz que realmente te ama a ficar com outra? Domenica, ariana, 59 anos Impossível dizer que há apenas um único motivo, e seria, inclusive, leviano de minha parte tentar apontá-lo. Acredito que os homens que têm esse tipo de atitude, a grosso modo, se dividem em dois grandes grupos: o dos mentirosos natos e o dos levianos. Aquele que pertence ao grupo dos mentirosos, o faz por pura falta de caráter mesmo. Usa essa frase, que tanto almejamos ouvir, no momento em que percebe que estamos mais fragilizadas, pra nos encantar e nos deixar de quatro para, posteriormente, nos fazer de capachos. O mentiroso diz que ama porque quer te manipular, e faz isso como um vilão dá um pirulito na mão de uma criancinha inocente. Já aquele que pertence ao grupo dos levianos não faz isso porque tenha exatamente maldade dentro de si, e sim porque acredita piamente que gosta de você, e não percebe que tal ímpeto se deva não a impulsos do coração, e sim do seu membro sexual, ou talvez a um impulso maior, provindo de sua pura precipitação mesmo. Há homens que acreditam piamente que “eu te amo” equivale a um “estou apaixonado por você HOJE”. E o nosso maior defeito, certamente, é acreditar neles.

Estou com sérias dificuldades para encontrar um homem normal, aquele que queira namorar, viajar e vencer comigo os dias terrivelmente chatos. Onde eles estão? Como identificá-los?

Graziella, ariana, 28 anos

Amiga, se eu soubesse onde eles estão, juro que ia sair vendendo coordenada pro Google, pra ficar bem milionária e ter vários deles só pra mim! Piadinhas marotas à parte, cara Grazi, o negócio é o seguinte: a cada dia que passa, tenho mais certeza de que os homens são a personificação mais fiel do que tem se tornado a raça humana nos últimos tempos: uma baciada de gente egoísta até não poder mais. Os homens (em sua grande maioria, claro) muitas vezes se colocam em um pedestal, e de lá não saem jamais, a não ser que uma bigorna ACME despenque do céu e faça panqueca dos seus miolos. E o pior: se reivindicamos qualquer migalha de sua atenção que saia do mínimo que ele de dispôs a oferecer, o mundo acaba! Alegar egoísmo e falta de companheirismo da raça masculina é praticamente o mesmo que quebrar três dentes da frente num único soco pra muitos deles. Os poucos que restam que fogem a esse padrão ou já estão amarrados pra sempre em nome de Jesus, ou gostam de brincar com a mesma coisa que a gente ou ainda não vão com a nossa cara. Talvez a grande solução não seja esperar nada deles. O que vier, nesse caso, é lucro e motive de comemoração.

Tem uma coisa que me choca: estar com alguém e pensar em outra pessoa. Isto vale à pena? Por que algumas pessoas insistem em fazer isso? Mirela, publicitária, leonina, 35 anos Depende muito do que seja “pensar em outra pessoa”. Se “pensar em outra pessoa” for pensar em alguém e sentir tesão, assim como sente pelo companheiro (a), acho perfeitamente normal, visto que o ser humano é bígamo por instinto, e movido por seus hormônios. Agora, se “pensar em alguém” for um subterfúgio de escape para alguém que está insatisfeito, imerso num presente que não lhe apraz, acho que isso é um sinal de falta de coragem pra enfrentar a vida e assumir o que realmente deseja, uma preguiça inefável de impetrar mudanças em situações que lhes são cômodas. Além de, é óbvio, ser um desrespeito sem nome manter ao seu lado uma pessoa que não lhe desperta mais a admiração, nem o suspiro característico de quando amamos alguém. Numa relação, o outro tem que habitar não só o seu plano sensível, e sim imperar também no inteligível. Senão, tudo fica muito sem graça.

Por que o meu ex-namorado se paralisou diante do amor, em 10 segundos foi do amor ao pânico, me deixou falando sozinha e virou ermitão? Carol, fisioterapeuta, geminiana, 26 anos Oi? O que você falou que deixou o moço assustado? Brincadeira... Nem sempre a gente precisa falar alguma coisa pra deixar um sujeito em pânico não. Comigo aconteceu uma situação parecida: amava a pessoa loucamente, fazia planos com ela e, no momento em que eu podia JURAR de joelhos na frente de Nossa Senhora de Fátima que tudo estava mais do que perfeito, eis que ele... desapareceu. Nunca mais atendeu minhas ligações, não respondeu às minhas mensagens, nem pedidos de esclarecimentos. Ou seja: nunca entendemos o real nível de maluquice do outro até que ele nos fira profundamente. E, nesse caso, não nos cabe fazer muita coisa senão termos em nossa mente que sempre agimos com correção e transparência no trato com o outro, e que o surto alheio em nada, absolutamente nada, é culpa nossa. E não cabe a nós também interferir no processo de evolução de ninguém: nossos caminhos são determinados pelas escolhas que fazemos. E, se o outro opta por se fechar em sua concha, que fique lá e saia quando achar que é o momento certo. E que tenha a consciência de que o mínimo que ele nos deve é um pedido de perdão, por ter causado tanta dor e confusão na nossa vida. E devemos entender também que a nossa vida não para até que superemos nossa dor. Isso, sim, é o fundamental.


VERA MONTEIRO em


papo de MÃE Quando se ama pela metade Mais uma edição, uma nova empreitada e um tema que pode até parecer inusitado, mas, na prática, demanda um olhar apurado. Hoje abordaremos sentimentos que quase são, mas não são e, nesse ínterim, o ‘quase’ pode se tornar bastante doloroso. Muitas pessoas casam, têm filhos, depois se separam, tornam se casar e ter mais filhos. Mudam os parceiros, mas não os filhos. O ventre é sempre o mesmo. Sendo assim, por que, muitas vezes, mesmo que de forma inconsciente, fazemos diferença entre um filho e outro, demonstrando mais afeto pelo da segunda união ou pelo da primeira? Essa parcialidade não se justifica, mesmo quando carregamos mágoa do que nos atingiu e, posteriormente, passou.

bastante comuns de que, pouco tempo depois, quando a mulher percebe que está grávida, volta-se inteiramente ao filho biológico, passando, assim, a negligenciar a criança adotada. Agora eu pergunto: onde está o amor? Qual a diferença entre o filho natural e o que foi gerado no coração? Quando se tem uma criança nos braços, pouco importa como ela veio ou de quem veio. Só o que basta é saber que o pequeno ser, tão incrivelmente frágil, de alguma forma nos escolheu para protegê-lo e garantir que apenas o melhor do nosso amor lhe seja proporcionado. Nossa juventude está carente de afeto, ou seja, gritando, cada vez mais alto, por diálogo, paciência e limites. Se a missão é fácil? Não, nem um pouco.

Nossos filhos não são responsáveis pela união que não deu certo. Eles são frutos de um momento de amor. Por menos que verbalizem o que sentem, pensem ou queiram, estão, a todo o momento, registrando o que acontece ao seu redor.

Muitas vezes, os pais desconhecessem seus rebentos e se perguntam se geraram um ser ou um monstro.É tarefa árdua, mas, ainda assim, deve se questionar até que ponto os pais colaboraram para ambos resultados.

Não são apenas os filhos naturais, ou de uniões diferentes, que estamos abordando. Vamos falar, inclusive, daqueles gerados por uma outra pessoa e acolhidos por nós: os adotivos.

Amar vale a pena. Contudo, o que não vale é discriminar filhos, sejam eles adotivos ou naturais, da primeira ou da segunda união, ou mesmo de uma relação extraconjugal.

Muitas vezes, ao não conseguir engravidar ou por mera voluntariedade, adota-se um bebê. Já ouvi relatos

Amor não se explica. Apenas se sente. Amor não pode ser vivido pela metade.


BIJOU MONTEIRO em


COZINHANDO com Mademoiselle Bijou Reza a lenda que pimentas são o adstringente da alma, purificando, protegendo e livrando do mal quem as consome. Há outra história, no entanto, preceituando que, quem oferece resistência à iguaria, bom sujeito não é. Nesse coquetel festivo de Guy Fawkes, consideraremos válidas ambas as superstições narradas e, como delicioso refresco, celebraremos com canapés incendiários por natureza, mas livres de pólvora em sua receita. Uma bela geleia de pimenta! Remember, remember de anotar corretamente os ingredientes e fazer parte dessa festa manuscrita.

Ingredientes:

Geleia de pimenta

1 óculos de natação 1 máscara cirúrgica 1 par de luvas descartáveis 10 pimentas vermelhas dedo de moça, frescas e sem sementes. 3 pimentões vermelhos e sem sementes 1 colher (de chá) generosa de amido de milho 3 xícaras (de chá) de açúcar 200 ml de água em temperatura ambiente

Modo de fazer: Não é brincadeira. Lidar com pimentas irrita pele, olhos e nariz. Tudo coça simultaneamente, causando um desespero que não é de Deus. Assim sendo, aceite a minha sugestão, faça como eu fiz e, antes de iniciar o preparo, coloque os óculos de natação (ou qualquer coisa que proteja seus olhos, inclusive o Ray-Ban safado que você comprou na 25 de Março), uma máscara cirúrgica (pode ser substituída por um lenço amarrado na cara, caso você curta o estilo bandoleiro) e luvas descartáveis (não tem versão genérica desse item, lamento). Preparado o cenário, lave e corte tanto as pimentas quanto os pimentões, tirando as sementes de ambos. Feito isso, bata os ingredientes picados com 200 ml de água no seu liquidificador. Coloque essa mistura numa panela e leve ao fogo, até que levante uma certa espuminha. Em seguida, acrescente as três xícaras (de chá) de açúcar e aquela colherada de chá (generosa) de amido de milho, mexendo continuamente para que o creme não empelote.

Nossa geleia ganha vida quando a receita ferver até acabar a espuma formada. Quando isso acontecer e a mistura atingir ponto de geleia, sendo possível ver o fundo da sua panela, a receita estará prontinha, mas, por favor, não seja esganado(a). Já ouviu sua avó dizer que comer bolo quente dá dor de barriga? Pois é. Não preparamos um bolo, mas a premissa da indigestão é a mesma. Reflita a respeito. Para que mosquitinhos marotos – especialmente com as ondas de calor – poeirinhas ou pelinhos voadores não grudem na geleia, tampe-a parcialmente enquanto ela esfria. Com torradas, biscoitos salgados ou até acompanhando carnes suculentas, essa receita fará a alegria de quem acha que a vida precisa de sabor, audácia e bravura. Se a iguaria não lhe apetecer, relaxe. Você se encaixa perfeitamente – e padece – nas lendas narradas acima. Bon appetit!


SÁTIRAS Tiras sem desenho por MARCELO SARAVÁ




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apresenta

DUEL de mixt C

hegou a vez delas... Depois dos marmanjos suarem no ringue (vide a primeira edição), as mulheres da Manuscrita puxam suas Hattori para presentear nossos leitores com ótimas seleções musicais. Agora é com você. Aproveite faixa por faixa e escolha a vencedora de cada batalha. Podemos receber seu voto por email, pelo Twitter ou nos próprios comentários do Issuu. Basta dizer o nome da autora da mixtape. Vale lembrar que estas garotas fazem até a Uma Thurman tremer de medo...

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Vencedores dos duelos da edição passada: André Oliveira, Juarez Cruz e Thamiel Duaik


LO xtapes


Patrícia Coelho We Want War - These New Puritans Kiss With A Fist - Florence + The Machine You’re So Vain - Carly Simon Don’t You Want Me - The Human League 2 Wicky - Hoover One Way Or Another - Blondie You Oughta Know - Alanis Morissette Disfarça e Chora - Cartola e Leci Brandão Volta Por Cima - Silvia Machete La Vie En Chose - Bluebell

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DUELO 1

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Amanda Souza Ney Matogrosso - Coisas da vida Elis Regina - Medley Milton Nascimento Gilberto Gil e Os Mutantes - Domingo no Parque Maria Rita - Não vale a pena Móveis Coloniais de Acajú - O Tempo Novos Baianos - Mistério do Planeta Zeca Baleiro - Bicho de 7 Cabeças Arnaldo Antunes e Edgard Scandurra - Judiaria Paralamas do Sucesso e Titãs - Diversão Cazuza - O tempo não pára


Cristiane Sita Adagio For Strings - Tiesto I’m Outta Love - Anastacia Hush Hush, Hush Hush - The Pussycat Dolls It’s Raining Men - Geri Halliwell Strong Enough - Cher Lady Marmalade - Christina Aguilera In Your Eyes - Kylie Minogue L’Amour Toujours - Gigi D’Agostino Padre Nuestro - E Nomine You’ve Got the Love - The Source Ft. Candi Staton

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DUELO 2

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Erika Bueno U2 - Elevation Chumbawmba - Tubthumping New Radicals - You get what you give Blink 182 - All the small things Lou Bega - Mambo No. 5 Vengaboys - We like to party! Aqua - My oh my Rednex - Cotton eye Joe Offspring - Pretty fly Foo Fighters - Monkey wrench


Bijou Monteiro She’s Not Me - Madonna Good Luck - Basement Jaxx Feat. Lisa Kekaula Storm Coming - Gnarls Barkley John The Revelator - Depeche Mode Tear You Apart - She Wants Revenge Off & On - Roisin Murphy Disco Lies - Moby These Boots Are Made for Walkin’ - Nancy Sinatra The Hand That Feeds - Nine Inch Nails U Can’t Touch This - MC Hammer

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DUELO 3

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Yasmine Colucci The Pussycat Dolls - I don’t need a man Pink - So What Lady Gaga - Poker Face Rihanna - Rude Boy Madonna - Material Girl Cobra Starship - Good Girls Go Bad 30 Seconds to Mars - Buddha for Mary Britney Spears - Womanizer Sara Bareilles - Love Song Glee - Bad Romance


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