39 poemas e contos contra o racismo acidi

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O homem invisível que falava com pássaros

Autora: João Afonso Ribeiro Costa Vilas Boas 12 anos

Perto da minha nova casa existia uma praceta. E da minha janela, conseguia acompanhar tudo o que ali se passava. Depressa aprendi a reconhecer cada uma das pessoas que ali passavam todos os dias. Sabia de cor os seus horários e hábitos. A senhora que ia sempre passear o cão. O menino que andava de skate. O senhor que gostava de se sentar num banco a ver quem passava, a olhar para as árvores, a falar com os pássaros. Isso era o que mais me fascinava. Escolhia sempre o mesmo banco, e esse banco ficava no recanto mais bonito da praceta. E ele parecia uma pessoa sozinha, mas feliz. Fiquei curioso com ele. Quem seria aquele homem? Com o tempo, fui-me aproximando dele. Primeiro fazendo de conta que era por acaso, que ia a correr atrás da bola. Depois, comecei a sentar-me no banco do lado. Nunca trocávamos uma palavra, mas eu sempre sorria para ele. Até que ganhei coragem e, passadas semanas, sentei-me no mesmo banco e apresentei-me. Tive de insistir, porque pareceu-me que ele não me tinha ouvido. Nunca vou esquecer o sorriso que me fez quando lhe estiquei a mão dizendo o meu nome. Hesitante, perguntou-me se o estava a ver. Não entendi a pergunta e disse que sim, que o via perfeitamente. Aliás, que o via todos os dias da minha janela. Foi quando ele esticou a mão e disse o seu nome com dificuldade: Samuel. Ficamos amigos naquele momento. Samuel estava reformado, e, em vez de ficar em casa, preferia ir para a praceta, ver o movimento das pessoas e das árvores. Revelou-se um grande contador de histórias. O que eu mais queria saber era se ele realmente conseguia falar com os pássaros. Algum poder especial devia ter: vivia rodeado deles, que pousavam perto dele, ou mesmo nos seus ombros. Falou-me da sua juventude em Moçambique, da época em que vivia livre na natureza, em que os seus animais de estimação eram muitos daqueles que aqui só encontramos no jardim zoológico e, por isso, tinha aprendido a linguagem dos pássaros. Falou-me do pai que nunca conheceu, da sua mudança para Portugal há muitos anos atrás, quando a família para quem trabalhava lá teve de voltar para cá. Veio com eles para Portugal, na esperança de poder descobrir o seu pai, de quem tinha apenas uma foto: era um homem branco. Mas nunca o conseguiu encontrar. Em vez disso, decidiu seguiu os seus senhores e esteve com eles até que estes morreram. Sempre o trataram como igual. Nunca deram importância à cor da sua pele. Tinha herdado o tom negro chocolate da sua mãe. Mas desde que aqueles tinham «partido», Samuel nunca mais se sentiu em casa em lugar nenhum. Moçambique tinha ficado para trás, já não conhecia ninguém, e Portugal parecia-lhe agora um lugar estranho, onde as pessoas o olhavam de lado, com desconfiança. Tudo porque ele não era branco. Depois começou a achar que ninguém o via. Foi quando se lembrou do dia em que uma mulher se esbarrou nele e, em vez de lhe pedir desculpa, disse-lhe que ele não devia andar ali, que ele não era gente. Então convenceu-se que as pessoas não o viam por causa do feitiço que aquela mulher lhe tinha lançado, ao decidir que ele não era gente.

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Um tempo depois, lembrando a primeira vez em que nos falámos, disse-me: «Aquela tarde mudou a minha vida. Se tu me conseguias ver, é porque, afinal, eu não era mais invisível. Durante muito tempo, achei que me tinha acontecido qualquer coisa estranha, porque parecia que as pessoas não me conseguiam ver. Primeiro fiquei triste, depois comecei a achar divertido poder fazer coisas que ninguém via. Passado um tempo, canseime e percebi que os animais me conseguiam reconhecer. Então comecei a falar com eles. Tornaram-se os meus amigos, os únicos com quem conseguia comunicar. Até que tu chegaste, por alguma razão viste-me e, ao falares, conseguiste quebrar o feitiço que aquela mulher me lançou. Foi como se tivesse voltado a nascer. Naquele dia, ao dizeres o meu nome em voz alta, voltei a ser gente de novo.»


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