39 poemas e contos contra o racismo acidi

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os estilistas, que deixaram de desenhar roupas por se sentirem desinspirados, os escritores, que deixaram de descrever paisagens e até o pintor, que perdeu o seu emprego, pois não sabia o que pintar sem cores. Todo o mundo estava reduzido a cinzento, os animais, que se regulam muito pelas cores necessárias para distinguir frutos venenosos ou nos rituais de acasalamento, estavam desorientados, os pavões já não atraíam as fémeas com as suas cores exuberantes e a população andava ainda mais infeliz, agora que até o céu tinha perdido o seu azul. No entanto, houve quem não notasse esta agitação toda, como os amantes que estavam no parque, que tinham tanta cor dentro deles, que nem ele reparou que os caracóis dela perderam a cor de avelã, nem ela reparou que o casaco comprido e o chapéu dele, semelhante a uma cartola, se confundiam, agora, com o espaço envolvente. Também alguns animais, como as salamandras e os peixes abissais, não se aperceberam da confusão no reino animal, uma vez que já viam em tons de cinzento. É de salientar que nas tragédias existe sempre quem consiga ficar feliz, como alguns daltónicos, que finalmente se sentiram compreendidos... Durante longas e caóticas semanas, foi este o cenário que se viveu por todo o planeta. Muitos estudiosos e letrados procuraram, incessantemente, apurar a causa do mundo ter perdido a cor e estar reduzido a tons monótonos e iguais de cinzento. Procuraram em todos os livros e enciclopédias, experimentaram e reviram todas as fórmulas da física e da química, formularam absurdas teorias, outras mais lógicas e nada concluíram. O que eles desconheciam, no meio de todo o seu conhecimento, é que a causa e também a solução para este fenómeno bizarro não estava na ciência nem nos objetos palpáveis. Já nada era possível de distinguir, não existia diversidade, todos os humanos eram iguais. A senhora da mercearia já não tinha justificação para desviar o olhar quando o vizinho do pintor por ela passava, uma vez que eram ambos cinzentos e iguais agora. Por estes dias cinzentos, o pintor, quando cruzava a rua a caminho do seu estúdio, na esperança de conseguir conceber alguma obra cinzenta, ouviu um diálogo entre a senhora da mercearia e o seu vizinho ao qual não pode deixar de prestar atenção, embora muito disfarçadamente. Passava o pintor por eles, levando consigo o seu guarda-chuva e impermeável cinzentos, quando ouviu o seu vizinho dizer à senhora da mercearia: — Como distingue agora as maçãs verdes das vermelhas? — Conheço-as como a palma da minha mão. – Respondeu, vagarosa e friamente a mulher. — E como distingue agora a palma da minha mão da sua?- Insistiu em tom de desafio o vizinho do pintor. O olhar da senhora da mercearia desviou-se do seu interlocutor por instantes mas, desta vez, não denunciava uma atitude de desprezo, mas sim de arrependimento. Cobriu as suas mãos no avental, outrora, cheio de manchas de fruta e voltou a fitar aquele homem que a perturbava, agora, ainda mais. — Não preferia o tempo em que conseguia distinguir as suas vistosas maçãs verdes das vermelhas? – Perguntou-lhe o homem. Hesitante, tirou as mãos do avental cumprimentou-o e disse, em poucas palavras: — Sim, descobri que o que sinto falta não é da sua cor, mas da sua diferença de cores. O pintor já nada mais ouviu deste diálogo sobre maçãs e finalizou o caminho até ao estúdio, não sem passar pelo jardim para verificar, mais uma vez sem sucesso, se a sua rosa preferida já havia deixado de ser cinzenta. Chegou ao estúdio, pousou o que trazia despreocupadamente no chão e sentou-se em frente a uma tela cinzenta. O seu olhar era vazio como o objeto para o qual olhava. O silêncio do monstro cinzento impedia(112)


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