Revista +Soma #21

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+SOMA . #21

“Essa foto vai ficar bem punk rock”, comenta o editor, ao ver o entrevistado posando à frente de uma caçamba cheia de entulhos. “Punk?”, ele pergunta. “Difícil ser punk hospedado em um hotel desses, com um celular de mil dólares na mão.” Ele ri, nós rimos. Sem se incomodar com a possibilidade de parecer fake, cínico ou caricato demais, MICHAEL STIPE continua se divertindo ao fazer expressões plácidas à frente de sacos de lixo no bairro dos Jardins, em São Paulo. Essa atitude fala tanto sobre a mente do líder do R.E.M. quanto a hora de entrevista que ele nos concedeu em outubro, com exclusividade, durante uma passagem rápida pelo Brasil para acompanhar a exposição de seu companheiro, o fotógrafo Thomas Dozol. Meses antes de morrer, em 1994, Kurt Cobain disse em uma entrevista: “Eles são os maiores. Lidaram com o sucesso como santos e continuam fazendo música boa”. A tranquilidade em lidar com o conflito insolúvel entre a vida de superstar e as raízes punk é um dos segredos da longevidade de ambos, Stipe e sua banda. Nas páginas seguintes, ele se abre com a mesma honestidade exibida à frente do lixo da elite paulistana, para analisar sua carreira – sem poupar discos e músicas que considera ruins –, o governo Obama, a mídia golpista (a de lá), sexualidade e, claro, o punk. Uma entrevista desde já histórica. A estética e o ethos do punk também foram e seguem sendo fundamentais, sob pontos de vista diferentes, nos trabalhos de CARLOS ISSA e SILVANA MELLO. Issa é um daqueles raros intelectos que unem visão, iniciativa, senso estético e qualidade musical, que ajudaram a alavancar toda uma cena de punk-art em São Paulo nos anos 1990. Hoje, envolvido em vários projetos musicais, consegue entregar uma música que dialoga com John Cage e The Ex na mesma medida, enquanto leva seu trabalho nas artes a novos patamares. Silvana é uma das expoentes do time da Choque Cultural atualmente, com um trabalho fortemente intuitivo, que já respirou ares mais agressivos e hoje reflete o equilíbrio e o amadurecimento da vida de mãe. Duas matérias complementares sobre a agitação artística paulistana.

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O DIY (do-it-yourself) também foi o que levou a inglesa Ruth Daniel a montar seu selo. Com o tempo, porém, ela percebeu que o ideal punk precisava ser atualizado. Baseada nos princípios da economia criativa, ela criou o conceito do do-it-together, e com ele o festival UNCONVENTION, que viaja o mundo com o objetivo de fortalecer conexões periféricas na música independente. Ela e o colega Andrew Dubber estão no Quem Soma desta edição. Um insight novo sobre um formato estabelecido também foi o que levou LUIZ TATIT e seu grupo Rumo a revolucionarem o formato da canção na virada dos 1970/80. Além de falar sobre a música derivada da fala, ele deu uma das entrevistas mais provocadoras da revista até hoje. A última edição da Soma em 2010 traz também: Bomba, ex-SP Funk, que lançou O DISCO de rap dançante do ano (encartado aqui); Akira Presidente, Caribou, Raquel Schembri e nossa tradicional lista de melhores do ano. Agora não tem mais jeito: começou a segunda década do século, e quem pensar pequeno vai morrer sem!

+SOMA


PROGRAMAÇÃO ESPECIAL NA RÁDIO-WEB DO ITAÚ CULTURAL Na nova série Estéreo Saci, personalidades do meio musical apresentam especiais sobre grandes nomes da música brasileira, destacando a vida, as histórias, os trabalhos e algumas curiosidades dos homenageados. A compositora pernambucana Lulina apresenta Dolores Duran, o rapper Parteum apresenta Tom Capone e o maestro Leandro Carvalho apresenta Villa-Lobos, mas a programação não para por aí.

Acesse itaucultural.org.br/estereosaci

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+CONTEÚDO

S M R C L S E L C B A Q S O Q M R

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h i a a o i n u a o k u e b u e e

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Loja Billabong Oscar Freire 9 R. Oscar Freire, 909 - Jardins TEL: (11) 3081 -2798


O projeto +Soma é uma iniciativa da Kultur, estúdio criativo com sede em São Paulo. Para informações acesse: maissoma.com KULTUR STUDIO . +SOMA Rua Fidalga, 98 . Pinheiros 05432 000 . São Paulo . SP kulturstudio.com REVISTA SOMA #21 Janeiro 2011 Fundadores . KULTUR Alexandre Charro, Fernanda Masini, Rodrigo Brasil e Tiago Moraes Editor . Mateus Potumati Editor Convidado . Alexandre Boide Repórter . Marina Mantovanini Fotografia . Fernando Martins Ferreira Projeto gráfico . Fernanda Masini Arte . Rodolfo Herrera, Jonas Pacheco e Natalia Lucki Conteúdo áudio-visual . Alexandre Charro, Fernando Stutz e Fernando Martins Ferreira Colunistas . Tiago Nicolas, Ricardo “Mentalozzz” Braga, Dr. Jacob Pinheiro Goldberg, Pedro Pinhel, Rafael Ccampos e Nik Neves. Gostaríamos de agradecer a Diego de Godoy, Eldon Masini, Amy Hairston, Chris Bilheimer e Chronic Town; Fred Finelli e Norópolis; Baixo Ribeiro e Choque Cultural; Neu Club; Fabrício Nobre e Goiânia Noise; Leo Vas; a todos os nossos colaboradores de texto, foto e arte, aos que enviaram material para resenha, anunciantes e aos pontos de distribuição da revista. Muito obrigado!

Capa . Michael Stipe por Eldon Masini

Agradecimento especial a todos que direta ou indiretamente colaboram para que a revista se tornasse realidade e nos apoiam desde o início.

Periodicidade . Bimestral Distribuição . Gratuita em lojas, restaurantes, galerias de arte, museus, centros

Todos os artigos assinados e fotografias são de responsabilidade única de seus autores e não refletem necessariamente a opinião da revista.

culturais, shows, eventos e casas noturnas. Veja os endereços em: www.maissoma.com/info Impressão . Prol Gráfica

Publicidade . Cristiana Namur Moraes . publicidade@maissoma.com Para enviar sugestões e material para review, entre em contato através do e-mail redacao@maissoma.com.

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Tiragem . 10.000 exemplares Errata: na edição 20, o texto do review do Superchunk diz que a banda é “um dos maiores nomes do selo Matador”. O correto, como saiu no título, é Merge.


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+COLABORADORES

Velot Wamba

André Maleronka

Daniel Tamenpi

Velot Wamba, 32, é a favor do

1/2 Crass, 1/2 créu. Editor na

Jornalista, pesquisador musical

céu pelo clima e do inferno pelas

revista Vice.

e DJ especializado em soul, funk

companhias. The Ex, João Antonio,

e hip-hop. Escreve o blog Só

Tina Modotti, Robert Crumb e

Pedrada Musical, onde apresenta

Jackson Pollock - tudo junto e

lançamentos e clássicos da

misturado. Crê que as ideias são

música negra.

imprescindíveis, os rostos não.

Raquel Setz

Marcos Diego Nogueira

Jornalista musical apaixonada

É jornalista, gosta de som alto,

por barulhos, experimentações

cerveja gelada e camisa xadrez.

e esquisitices em geral - e por melodias bonitas também, porque não tenho coração de pedra.


Amauri Stamboroski

Eldon Masini

Lost Art

Jornalista, cover do Jack Black e

Engenheiro de profissão, fotógrafo

Ignacio Aronovich e Louise Chin

orgulho de Ijuí. Durante o verão caça

na curtição e fã de R.E.M.

enxergam beleza no imperfeito ao

insetos para a sua filha, Ramona.

redor do mundo, juntos, desde 1993.

Rafael Campos

Alex Correa

Rafael Campos Rocha é cartunista,

Edita o blog Move That Jukebox,

artista plástico e professor de história

além de escrever na revista Noize

da arte, sendo absolutamente

e no rraurl.com. Acha How I Met

desconhecido em todas essas

Your Mother melhor que Friends e

atividades. É pai de Joaquim e

Family Guy melhor que Simpsons.

marido de Barbara e nasceu em São Paulo em 1970.


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COM LURDEZ DA LUZ POR TIAGO NICOLAS FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

DISCO DE RAP AMERICANO QUE VOCÊ ENTENDE TUDINHO De verdade, em detalhes, nenhum, mas o que mais decorei letra foi It Takes a Nation of Millions to Hold Us Back, do Public Enemy. DICA DE DISCO DE QUEM ENTENDE DO ASSUNTO PARA O PAPAI NOEL PRESENTEAR AS NOSSAS CRIANÇAS Os Saltimbancos Trapalhões, o original, eternamente louco!

DISCO MAIS SENSUAL QUE O RAP PODE SER Fico entre Doggystyle, do Snoop Dogg, e ATLiens, do Outkast. Snoop e Dre são os sons mais sexies do rap, e o 3000 e o Boi são os caras mais sexies desse mundo.

DISCO DE UM ROOMMATE PRODUTOR DE DUB In America, disco solo mais louco do Vitor.

DISCO QUE MELHOR CANTOU O CENTRO DE SÃO PAULO PRA VOCÊ Hip-Hop Cultura de Rua, que tem o som do MC Jack, “Centro da Cidade”, e Mamelo Sound System – Urbália, disco de rap temático sobre São Paulo, que tem “Cidade Ácida”.

A Luana, a.k.a. LURDEZ DA LUZ, anda, andou e sempre andará na companhia do seu filho, o inigualável Roge Kenan. Desde a adolescência, está na caminhada musical, começando no rock e já estabelecida no rap, seja ao lado do Mamelo Sound System ou em carreira solo. No meio dos dinossauros, gorilas e leões do filho, ela esconde uma discoteca sincera e chapada, que vocês podem conferir aqui.

DISCO DE UMA DIVA NACIONAL Elza Soares – Elza Pede Passagem, porque ela é uma rainha e todas as faixas nesse play são pra dançar muito, e Gal Costa – Legal, porque a capa é do Hélio Oiticica e porque tem aquele som “Língua do P”.

DISCO DE UMA BICHA RESPONSA Ney Matogrosso (1975), o primeiro álbum dele... Pra mim é meio difícil pirar no Morrisey...

DISCO DE UM AMIGO ROQUEIRO ALTERNATIVO De uma roqueira alternativa, pode ser Repentina – Repentina. Porque na agência Norópolis já não tem mais roqueiro alternativo, ou oficial, ou os “outra fita”, né? THE NEXT BIG THING 2010/2011 Tem um disco de 2008 que é louco demais e não foi muito falado, Amostra, do Raphão, produção do Rincon, então vai bombar em 2011! E o Espião vai lançar disco novo, o Ogi também, e eles vão bombar também! DISCO NACIONAL DO ANO PARA A SHUFFLE Lurdez da Luz – Lurdez da Luz. Porque o próprio nome diz: Lurdez é Dez.

2TIAGO NICOLAS É 1/6 DA CHAKA HOTNIGHTZ 17


OUT ofTIME. Uma hora com

Michael

Stipe

POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA . COLABORAÇÃO DE DIEGO DE GODOY E MATEUS POTUMATI . RETRATOS POR ELDON MASINI

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A

pontualidade britânica de MICHAEL STIPE

quase faz esquecer que ele é um cidadão da pequena Decatur, no estado norte-americano da Geórgia. No horário marcado, ele desce para o lobby do hotel onde está hospedado em São Paulo por conta da abertura da exposição fotográfica de seu companheiro, Thomas Dozol, que aconteceu no Espaço Soma entre outubro e novembro de 2010. 1 De barba branca e gorro de lã azul, no melhor estilo Bill Murray em A Vida Marinha Com Steve Zissou, leva uns bons três segundos para ser reconhecido (sucessos como “Stand”, “Everybody Hurts”, “The One I Love” e “Losing My Religion” certamente são identificados em menos tempo). Cumprimenta a todos cordialmente e, enquanto nossa equipe procura um lugar mais calmo para o bate-papo, se aboleta em uma das mesas. “Não podemos fazer aqui mesmo?”, pergunta. That’s him on the corner. Michael Stipe. O cara que há 30 anos nos ajuda a achar coisas escondidas dentro de nós mesmos, como definiu Eddie Vedder no discurso de introdução do R.E.M. ao The Rock And Roll Hall of Fame, em 2007. “Existem sentimentos muito profundos no meu coração que foram colocados pessoalmente por Michael Stipe”, disse ele à época. E alguém, por acaso, nunca se identificou com isso? É esse homem que está ali, ajustando a luminária no lugar onde escolheu para, em uma hora, resumir e destrinchar não só três décadas (e 14 discos) de R.E.M., mas também o gosto pelas artes, pelo punk, por ativismo político, religião e sexualidade.

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“O Peter Buck disse uma vez que nós éramos a face aceitável de coisas inaceitáveis. Esse foi o comentário mais puro que eu ouvi sobre o R.E.M., em comparação a outras bandas punks da época. Eu não saberia me expressar melhor.”

Bom, eu tenho 50 anos de idade. Sou fã de música, mas não vou a clubes toda noite ver qualquer banda que apareça. Acabo dependendo de amigos com muito bom gosto que dizem: “Você precisa ver essa banda”. Então, há muitas bandas de Athens que eu não conheço e não vi tocar. Mas adoro o Neutral Milk Hotel e a música feita por Jeff Mangum. Acho que, para um cara de 50 anos, estou indo bem. Além de música há uma grande comunidade de artes em Athens. Dentro do estado da Geórgia, que é relativamente conservador politicamente, Athens é uma espécie de ilha de pensamento liberal. É como uma ilha de brinquedos quebrados, onde todos os excluídos da sociedade se unem e criam algo próprio. ALGO COMO O QUE OCORRE EM AUSTIN, NO TEXAS?

O SOM DE ABERTURA DE ACCELERATE SE CHAMA “LIVING WELL IS THE BEST REVENGE”. PARA VOCÊ, O QUE SIGNIFICA VIVER BEM?

Eu vivo uma vida muito gratificante. Sempre fui cercado por boas oportunidades e também tive sorte. Mas trabalhei muito duro. Venho de uma família de trabalhadores. Acho que a ideia de viver bem é curtir o seu trabalho e poder fazer as escolhas que quiser para continuar gostando dele, em detrimento a fazer algo que lhe foi imposto. E COMO É UM DIA NA VIDA DO MICHAEL STIPE?

Eu tenho uma vida ótima, não posso reclamar. Gostaria de ter mais cabelo e não me incomodaria de ter 32 anos de novo. Mas obviamente ninguém pode ser o que é agora e ser jovem ao mesmo tempo. VOCÊ TEM CASAS EM NOVA YORK E TAMBÉM EM

Sim, Austin também segue essa linha. Acho que isso tem a ver com o fato de serem comunidades estudantis. No caso de Athens e a Universidade da Geórgia, há moleques de 17 e 18 anos que vêm de todas as partes do mundo. Na universidade, assim como em qualquer negócio ou instituição, há coisas boas, mas também há outras muito ruins, então não pense que estou levantando a bandeira da universidade, particularmente. Mas, como cidade universitária, ela traz uma energia nova a cada ano e uma grande comunidade internacional. Em Athens há uma história de pessoas que lutaram pelos direitos civis nos anos 60. Meu tio e o nosso empresário passaram por lá, e ambos lutaram na linha de frente pelos direitos civis. Então hoje em dia há um entendimento – não diria tolerância – e aceitação sobre pessoas que são diferentes, o que não se acha em todo lugar no meu país.

ATHENS. COMO CONCILIA RITMOS DE VIDA TÃO DIFERENTES NO SEU COTIDIANO?

Athens é mais uma casa de campo para mim. Tenho um jardim onde posso cultivar minhas próprias frutas e vegetais. É um ambiente muito tranquilo em comparação a Nova York, que é muito elétrica e emana uma energia diferente. Athens tem sua própria energia e às vezes é até mais intensa do que NY, porque em NY eu consigo desaparecer. Mas as duas se complementam muito bem. EM QUAIS ASPECTOS A CIDADE AJUDOU A DEFINIR O SOM DO R.E.M.?

É um lugar com o qual temos uma ligação emocional muito complexa. Athens, como comunidade, sempre incentivou muito a música e a criatividade, então foi fácil me desenvolver. O maior impacto em nós como banda foi ter um lugar onde nos sentimos à vontade, onde podemos relaxar e que podemos chamar de casa.

NÃO FOI EXATAMENTE O CURSO DE ARTES DA UNIVERSIDADE DA GEÓRGIA O RESPONSÁVEL PELA FORMAÇÃO DO R.E.M. NA REALIDADE, A CULPA FOI DAS COMUNIDADES E LOJAS QUE FICAVAM NAS REDONDEZAS DO CAMPUS UNIVERSITÁRIO. “EU ERA UM ‘SLACKER’ (DESLEIXADO, VAGABUNDO), SÓ QUERIA TRANSAR, FAZER MÚSICA E TER UMA BANDA (RISOS). E FIZ TODAS ESSAS COISAS”, CONTA STIPE. NÃO À TOA, ELE E PETER BUCK SE CONHECERAM EM UMA LOJA DE DISCOS POR ALI. NOS PRIMEIROS SEGUNDOS DE CONVERSA, UMA AFINIDADE PARA A VIDA TODA: O GOSTO PELOS QUATRO PRIMEIROS DISCOS DE PATTI SMITH.

OS DOIS LOGO SE TORNARAM COMPANHEIROS DE QUARTO E CHAMARAM OS AMIGOS MIKE MILLS E BILL BERRY PARA MONTAR UM GRUPO. O PRIMEIRO SHOW DO R.E.M. FOI EM ABRIL DE 1980. DURANTE AQUELA DÉCADA, ENQUANTO A MAIORIA DAS BANDAS PENSAVA EM SINTETIZADORES, ELES OLHAVAM PARA OS ANOS 60. APESAR DA VEIA POP, A BANDA FEZ QUESTÃO DE MANTER PROXIMIDADE COM O PUNK, COMO ACONTECEU NA TURNÊ COM O REPLACEMENTS, EM 1983, OU COM O MINUTEMEN, EM 1985. “MAIS OU MENOS NAQUELA ÉPOCA, PERCEBEMOS QUE TÍNHAMOS LIBERDADE PARA FAZER O QUE QUISÉSSEMOS”, DIZ STIPE. “NÃO PRECISÁVAMOS OBEDECER A GRAVADORA EM TUDO. ENTÃO, CHAMAMOS BANDAS DE QUE GOSTÁVAMOS PRA TOCAR CONOSCO.”A TURNÊ COM O MINUTEMEN ACONTECEU POUCO ANTES DO TRÁGICO ACIDENTE QUE MATOU O GUITARRISTA D. BOON, DE QUEM STIPE AINDA TEM UMA MEMÓRIA MUITO VIVA. “DENNES TINHA UMA PERSONALIDADE MARAVILHOSA, ERA MUITO AMOROSO E CHEIO DE ENERGIA. ELES ERAM FANTÁSTICOS AO VIVO E EU OS AMAVA.” O ASSUNTO ANIMA STIPE. NA ÉPOCA EM QUE VOCÊ ENTROU NA UNIVERSIDADE JÁ PENSAVA EM SEGUIR CARREIRA NA MÚSICA?

Antes de me mudar para Athens, aos 18 anos, eu gostava da comunidade punk de St. Louis, que era bem diferente de Athens. Eu morava com uma banda punk e todo mundo que eu conhecia queria fazer música. Isso era 1978. Quando cheguei a Athens, tudo que eu queria era conhecer pessoas com quem pudesse fazer música, conversar e conviver. Não fui aceito na universidade na primeira tentativa, então tive que fazer aulas à noite, o que me fez conhecer um grupo interessante de pessoas, que também trabalhava em restaurantes, lavando pratos e coisas assim.

ATHENS REVELOU ALGUMAS DAS BANDAS INDIE MAIS IMPORTANTES DOS ANOS 1990, COMO NEUTRAL MILK HOTEL E OLIVIA TREMOR CONTROL, E TAMBÉM TEM UMA CENA FORTE DE RAP. VOCÊ AINDA ACOMPANHA O QUE ACONTECE POR LÁ?

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POR UM BOM TEMPO, NOS ANOS 80, O R.E.M. PARECIA ESTAR DISTANTE DOS FÃS DE BANDAS COMO HÜSKER DÜ E SONIC YOUTH.

Nos anos 80 acho que nos ouviam, talvez no final da década – quando tivemos hits em rádios – as pessoas tenham perdido o interesse, por acharem que tínhamos ficado muito grandes. Mas ainda assim elas nos apoiaram, apesar de terem mantido certa distância. Nós éramos uma banda pop, assim como o Sonic Youth [se tornou pop], apesar de tudo. Temos uma atitude similar, apesar da sonoridade diferente. E ELES ASSINARAM COM UMA GRANDE GRAVADORA APENAS NOS ANOS 90, ENTÃO ATÉ LÁ ELES AINDA SEGUIRAM FAZENDO PARTE DO ETHOS INDIE/PUNK.

Sim. O Peter Buck disse uma vez que nós éramos a face aceitável de coisas inaceitáveis. Esse foi o comentário mais puro que eu ouvi sobre o R.E.M., em comparação a outras bandas punks da época. Eu não saberia me expressar melhor. KURT COBAIN DISSE QUE O ADMIRAVA PELA MANEIRA COMO VOCÊ LIDOU COM O SUCESSO. COMO É SUA RELAÇÃO COM O SUCESSO?

O que ele quis dizer foi mais sobre a nossa atitude em relação à indústria da música. Por exemplo, o fato de termos nos negado a aceitar patrocínios, a fazer clipes idiotas ou nos vestir de uma maneira que, segundo a gravadora, venderia mais discos. Então tudo que era importante no punk naquela época ainda é muito relevante para nós, após todos esses anos. Kurt e toda aquela geração de músicos se inspiraram no R.E.M. e no Sonic Youth como bandas que se desenvolveram no mundo da música e alcançaram um sucesso moderado ou grande, e ainda assim permaneceram puros e verdadeiros em relação ao que se propunham. Bem ou mal, esse ainda é o lugar onde nos encontramos 30 anos depois. Me orgulho do fato de termos cometido erros e nos responsabilizado por eles. Todos os fracassos foram unicamente nossos, não podemos culpar a gravadora, os fãs ou os críticos. Mas os triunfos também são nossos, e esses nós ficamos felizes de compartilhar com os fãs. (risos)

QUANDO O GRUNGE SURGIU, NO COMEÇO DOS ANOS 90, O R.E.M. JÁ ERA CONTRATADO DE UMA GRANDE GRAVADORA, A WARNER BROS. (COM QUEM ELES ASSINARAM EM 1988). ENQUANTO AS GUITARRAS GRITANTES ESTAVAM MUNDIALMENTE EM VOGA, HITS NA CONTRAMÃO FAZIAM CADA VEZ MAIS PARTE DO CARDÁPIO DO QUARTETO DE ATHENS (O QUE 22

DIZER DA COLORIDA “SHINY HAPPY PEOPLE”?). EM 1994, ANO EM QUE KURT COBAIN TIROU SUA VIDA, A BANDA LANÇOU MONSTER , COM RIFFS A TODO VOLUME. NÃO É POR ACASO QUE UM DOS SEUS DISCOS DE MAIS SUCESSO SE CHAMA JUSTAMENTE OUT OF TIME (TERMO SEM TRADUÇÃO LITERAL, QUE PODE SER TRADUZIDO COMO “NA HORA ERRADA” OU “NO TEMPO ERRADO”): NADA DEFINE MELHOR A HISTÓRIA DA MÚSICA DO R.E.M DO QUE ESSA EXPRESSÃO. EM SUAS RESPOSTAS, STIPE MOSTRA QUE TEM ORGULHO DE SUA OBRA COMO UM TODO E PARECE NÃO SE INCOMODAR COM NENHUMA PERGUNTA SOBRE MÚSICAS E ÁLBUNS. PELO CONTRÁRIO, SE EMPOLGA E RESPONDE COM RIQUEZA DE DETALHES. VOCÊS TALVEZ TENHAM SIDO OS PRIMEIROS A INCLUÍREM RIMAS DE RAP EM UMA MÚSICA POP (EM “RADIO SONG”, DO ÁLBUM OUT OF TIME, DE 1991). QUAL SUA VISÃO SOBRE ISSO HOJE EM DIA?

É interessante porque, após todos esses anos, me parece que nós fomos os primeiros a colocar o rap no rock and roll, assim como o Run DMC colocou o rock and roll no rap. Eu só fiz aquilo porque sempre gostei do Boogie Down Productions e do KRS-1, e achei que ficaria interessante colocá-lo no nosso disco. Adoro o flow, a voz e o humor dele. Essa história aconteceu por acaso. Anos depois, alguns membros da comunidade hip-hop vieram me dizer que não tinham ideia do que aquela gravação significaria. Naquele tempo a MTV não tocava muitos artistas negros, com exceção de Michael Jackson. Já com Q-Tip (na música “Outsiders”, de Around The Sun, de 2004) a história foi diferente. Eu compus um rap – na verdade achei que fosse um rap mas não era, estava em um flow diferente –, mas não me via cantando essa parte e recorri a alguém que faria o trabalho direito. O engraçado é que Around the Sun é um disco que as pessoas amam odiar. Outro dia fui a um restaurante em Nova York e estava tocando “The Outsiders”. No começo não reconheci e fiquei curtindo o som, até me dar conta de que era eu. E aí veio a parte do rap, com o Q-Tip, e é um puta som maravilhoso! E “LOSING MY RELIGION”? VOCÊ SE SURPREENDEU COM O FATO DE UMA SIMPLES CANÇÃO SOBRE AMOR TER SIDO INTERPRETADA COMO RELIGIOSA?

Na passagem de um século a outro, as pessoas parecem sempre questionar temas como fé e religião. A igreja organizada, neste século que começa, precisa trabalhar duro para se tornar mais inclusiva como instituição – e não estou falando especificamente sobre a igreja católica


Me orgulho do fato de termos cometido erros e nos responsabilizado por eles. Todos os fracassos foram unicamente nossos, não podemos culpar a gravadora, os fãs ou os críticos. Mas os triunfos também são nossos, e esses nós ficamos felizes de compartilhar com os fãs. (risos) ou protestante, mas de todas as religiões organizadas. Elas têm que fazer um grande esforço para não se tornarem algo do passado. “Losing My Religion” tem um significado muito diferente, mas aconteceu a nove anos do fim do século, e se transformou em uma metáfora por engano. O significado de algo pode ser mal-interpretado e essa má-interpretação pode ter mais poder do que o sentido original. Foi o que aconteceu. Eu compus uma canção muito simples de amor, sem pensar em algo mais poderoso do que isso. Mas essa música se tornou um ponto importante na história da cultura pop da época. Fico feliz por ter feito parte disso. JÁ NEW ADVENTURES IN HI-FI (1996) FOI UM ÁLBUM GRAVADO NA ESTRADA. NA ÉPOCA VOCÊ DISSE QUE ALGUNS BANHEIROS DE HOTÉIS TINHAM A ACÚSTICA PERFEITA PARA GRAVAÇÃO. E FUNCIONOU, É UM DOS ÁLBUNS MAIS QUERIDOS PELO PÚBLICO. JÁ PENSOU EM REPETIR ESSA EXPERIÊNCIA?

Nós fizemos uma coisa bem idiota em termos de divulgação do álbum e, quando ele foi lançado, houve um mal-entendido: ficou parecendo se tratar de um disco ao vivo. Na verdade, nós queríamos dizer que fizemos algo diferente, gravando as bases das faixas ao vivo, em passagens de som ou outros lugares. Depois pegamos essas gravações e fizemos um híbrido entre ao vivo e estúdio. Nunca havíamos feito nada parecido. Mas, se você conhece a história da música “Benny and the Jets”, um dos grandes hinos pop feitos por Elton John, sabe que foi uma gravação de estúdio feita com som de plateia. Isso é fantástico. Então não foi nada sensacional o que fizemos, em termos musicais. Se eu faria de novo? Com certeza. Gosto muito desse disco, é um dos meus favoritos. Existe só uma música que eu gostaria de ter trabalhado melhor, mas nunca vou dizer qual é. (risos) MAS E OS BANHEIROS DE HOTÉIS?

Isso foi mais uma tentativa de fazer com que as pessoas entendessem o processo. Mas banheiros em geral são muito bons para cantar.

R.E.M.

4POR ED COLVER

MIKE MILLS E PETER BUCK GOSTARAM DESSE PROCESSO OU SÃO MAIS MÚSICOS DE ESTÚDIO?

Se dependesse do Peter, nós faríamos um disco em 43 minutos (risos). Pode-se dizer que partes do nosso próximo disco também foram feitas ao vivo. Digo, estamos gravando em estúdio, mas houve momentos em que a inspiração veio e os microfones não estavam exatamente preparados. Captamos coisas mágicas assim. DEPOIS QUE BILL BERRY SAIU DA BANDA, VOCÊ GRAVOU DOIS ÁLBUNS, UP (1998) E REVEAL (2001), QUE TÊM UMA ATMOSFERA BEM DIFERENTE DAS JÁ EXPLORADAS PELA BANDA. SÃO DISCOS MAIS CLIMÁTICOS, QUE SEMPRE PASSARAM UMA IMPRESSÃO DE TEREM SIDO SUBESTIMADOS...

Up foi muito longo. Eu sempre olho para os discos um ano depois de lançados e penso “gostaria de ter feito isso e aquilo de forma diferente”. Faz parte de ser artista, você faz algo e ama o resultado, mas depois fica mais crítico. Acredito que tanto Up como Around the Sun poderiam ter 23


um ou dois sons a menos. Sendo bem honesto, a banda se perdeu em algum momento no estúdio, e dá pra perceber nos discos. Reveal eu considero um disco mais sólido, simplesmente porque nós tínhamos uma ideia. É uma ideia pura e simples, mas que não perdeu o foco. Soa melhor como álbum, pra mim. Eu não acho que fomos bons durante toda nossa carreira. Creio que existem momentos em que você mira uma estrela, mas acerta em um pequeno planeta, entende o que eu quero dizer? Às vezes nós tentamos e a coisa não funciona. Eu ficaria triste se um artista que eu gosto fizesse algo muito idiota ou bobo. Entendo que as pessoas não gostem de certos discos, e isso não me incomoda muito. Apesar de tudo, tenho muito orgulho das músicas, gostaria muito de ouvir alguém como a Taylor Swift fazendo uma versão de “Aftermath” ou algo assim. Seria ótimo ouvir um artista pop pegando alguns desses sons e reinterpretando como se fosse deles. Não precisa ser exatamente a Taylor Swift, só citei porque acho ela uma cantora muito boa (risos). O QUE VOCÊ PODE ADIANTAR SOBRE O PRÓXIMO ÁLBUM, COLLAPSE INTO NOW?

Não posso falar sobre ele, porque ainda não falei com ninguém. Só posso dizer que estamos muito animados com as músicas e com o processo de estúdio. Deve sair no fim de março. Eu aprendi uma lição muito dura falando sobre um álbum antes que ele saísse. Acho que foi em Around the Sun, quando eu disse que seria um disco cheio de raiva, com letras inconformadas, e as pessoas pensaram no Clash. Quando o álbum saiu, o que viram foi uma revolta mais madura, que vem de um lugar mais profundo. Não é a fúria de alguém de 20 anos de idade que quebra janelas, mas a de um cara de 47 anos que está olhando o mundo e percebendo que nos últimos 25 anos nada mudou muito. E tudo o que eu fiz como ativista político, tudo o que tentei mudar na política praticamente não deu resultados. É uma revolta diferente. Além do mais, esse disco foi escrito durante o governo George W. Bush e eu rezo, se houver um Deus no céu, para que a política americana nunca volte à escuridão daquele tempo. FALANDO EM POLÍTICA, O OBAMA ENFRENTA TAXAS DE REPROVAÇÃO MUITO ALTAS E TEM SIDO RETRATADO COMO UM PRESIDENTE ISOLADO E PERDIDO. O QUE VOCÊ ACHA DO GOVERNO DELE ATÉ AQUI?

Quem dissemina a ideia de que o povo americano está desapontado com Obama? A mídia. E o que a mídia americana fez a favor da política ou de algum progresso nos últimos vinte anos? Nada. Eles já jogaram essa administração pelo ralo, porque isso rende boas manchetes. Talvez esperassem que o Obama criasse asas, esticasse os braços, abrisse as mãos e resolvesse de uma hora pra outra os oito anos de economia desastrosa de Bush e Cheney. Eles faliram a infra-estrutura do nosso 24

país e o sistema financeiro estava corrompido, em colapso, por culpa também de Clinton, Bush Pai e Reagan. O governo Obama assumiu um puta pepino, e nenhum canal de TV falou isso. Ninguém disse “vamos parar de criticar e tentar resolver o que foi corrompido nos últimos anos”. Isso sem falar nas duas guerras. E há pessoas que são contra o nosso presidente só porque ele é negro. O fato é que a mídia tem sido muito injusta com esse governo e eu fico furioso com isso, como ficava com a administração Bush. Mas ainda existe um grupo de jornalistas que pensam em como a sociedade pode se desenvolver, discutem sobre economia ou questões culturais, como as diferenças entre homens e mulheres no mesmo trabalho, ou estatísticas como o número de pessoas negras que estão na cadeia em relação ao total. Ainda somos adolescentes como cultura e país, cometemos erros horríveis. Um deles é o racismo incrível, do qual nem podemos falar. Outro é a inabilidade de discutir questões de classe. [Os conservadores] gostam de definir os Estados Unidos como nação cristã. Para quem se intitula democrático, isso é um insulto tremendo. Posso continuar nesse assunto por dias, mas não são ideias que vieram da minha cabeça, elas estão aí, claras como água. LETRAS COMO A DE “LOSING MY RELIGION” OU “SUSPICION” NÃO FALAM SÓ DE AMOR, MAS ATINGEM ESTADOS DOLOROSOS DE AMOR. POR QUE ISSO ACONTECE? TEM A VER COM A FORMA COMO VOCÊ FOI CRIADO, OU COM O FATO DE SER GAY NOS EUA?

Eu não escrevo letras autobiográficas, minha tendência não é essa. Vejo alguém conversando do outro lado da sala e penso em uma história,

R.E.M.

4POR ANTON CORBIJN

levando em conta a forma como ela reage às outras pessoas – “Suspicion” veio de algo assim. Vejo alguém brigando em uma boate e isso se torna “Fascinating” ou qualquer outra música. Tenho facilidade em escrever canções mais obscuras, tristes. Essa é uma parte da resposta. A outra é que eu não me identifico como gay, mas como queer, que é uma diferenciação importante a ser feita no século XXI. QUAL A DIFERENÇA ENTRE OS DOIS?

Simplificando, é o entendimento de que existem muitas variações de sexualidade. As pessoas não são sexuais de um jeito binário, não se dividem apenas entre gays e héteros. Se um travesti se apaixona por uma mulher, isso faz com que ela seja lésbica ou, como “ela” é um homem, na verdade é hétero? Considero um pensamento antiquado querer identificar “isso é isso e aquilo é aquilo”. O termo queer abrange tanto quem é gay como quem é hétero, e as variações que existem entre esses dois conceitos. É apenas um outro jeito de olhar a sexualidade. Tem uma terceira parte da sua pergunta que eu ainda preciso responder. Acho que a minha sexualidade


contribuiu muito para minha escolha de trabalhar com criação. Quando decidi ser cantor e ter uma banda punk, eu não sabia que tinha essa voz, não sabia que sabia compor, só sabia que era algo que eu tinha que fazer. E fiz. Acho que me sentir um outsider, alguém diferente do que a sociedade esperava de mim desde pequeno, me levou a explorar minhas características de forma diferente. Isso é uma coisa positiva. Eu gostaria de abraçar e encorajar todas as pessoas que se sintam outsiders, ou mesmo aquelas que não se sentem assim, a seguir sua voz, ouvir a si mesmos, e viver uma vida realmente verdadeira.

SÃO SETE HORAS DA NOITE, E OS 60 MINUTOS QUE TERÍAMOS COM MICHAEL STIPE CHEGAM AO FIM. MESMO ASSIM, ELE AINDA ABRE SEU IPHONE PARA MOSTRAR O QUE TEM ESCUTADO. “PRA MIM, O ÁLBUM DO YEAH YEAH YEAHS FOI O MELHOR DO ANO PASSADO, JUNTO COM O DO GRIZZLY BEAR”, DEFINE. SOBRE O SEGREDO PARA SE MANTER 30 ANOS NA ESTRADA, STIPE É TAXATIVO: “É PRECISO AMAR E RESPEITAR OS COMPANHEIROS DE BANDA, APESAR DE SER CANSATIVO MANTER O COMPROMISSO QUE TEMOS EM FAZER SEMPRE ÁLBUNS COMPLETOS, E NÃO APENAS SINGLES”. ELE SE LEVANTA DA CADEIRA E COLOCA-SE À DISPOSIÇÃO DO FOTÓGRAFO. “VAMOS LÁ FORA?”, SUGERE. NA RUA, FAZ POSE EM FRENTE A UMA CAÇAMBA DE ENTULHO E, APÓS ALGUNS CLIQUES, CORRE PARA A ESQUINA, ONDE MAIS ENTULHO E SACOS DE LIXO SE AMONTOAM. “ISSO AQUI É LEGAL, NÃO É?”, RI DE SI MESMO, E CHEGA A BRINCAR COM A ATITUDE PUNK EM UM HOMEM “HOSPEDADO EM UM HOTEL DE LUXO E COM UM CELULAR DE MIL DÓLARES NA MÃO”. ATITUDES COMO ESSA FAZEM PENSAR QUE, PARA ESTAR “OUT OF TIME” É PRECISO, ACIMA DE TUDO, ESTAR À FRENTE DO SEU TEMPO . 2SAIBA MAIS www.remhq.com

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o mundo singelo e amargo de

raquel schembri

POR MARINA MANTOVANINI . FOTOS ACERVO DA ARTISTA

R

Na primeira vez que bati os olhos nos quadros da artista RAQUEL SCHEMBRI, senti uma estranheza oportuna e desafiadora. Na série em questão, a artista retratou a inocência das crianças, mas fugiu do senso comum ao incluir nas singelas pinturas discretos detalhes amargos, que simultaneamente embaralhavam os sentimentos e davam vazão a um imaginário cruel e ingênuo. As cores calmas e as pinceladas muito bem executadas de tinta acrílica escondiam a pouca experiência, especialmente nas telas, da jovem mineira de Belo Horizonte. 1

aquel Schembri não segue nenhum padrão. Ao contrário da maioria dos artistas que sempre tiveram propensões às artes plásticas, ela passou a adolescência sem produzir um único desenho, e chegou até a pensar em cursar biologia antes de entrar no curso de artes da Escola Guignard. “Na escola, eu adorava fazer a parte de apresentação dos trabalhos, fazia os cartazes, as capas dos trabalhos. Durante a adolescência eu tinha certeza de que ia ser médica. Minha mãe e meu avô eram médicos. Sempre admirei muito eles e, dos 16 anos até entrar no cursinho preparatório para vestibular, decidi que queria ser bióloga.”

4GÊMEOS 27


Quando usei pela primeira vez o spray, não tinha

O rumo da história mudou exatamente durante o cursinho, quando fez amizade com uma menina que passava as aulas desenhando nas carteiras. “Foi aí que eu despertei novamente para o desenho. Ficávamos rabiscando as carteiras. A gente só fazia isso. E, no final das contas, ela queria fazer artes plásticas e eu biologia, mas acabou que ela fez design e eu fiz artes plásticas.” O tempo na faculdade também não foi um dos mais promissores para o desenvolvimento do trabalho artístico de Schembri. Ela ficou praticamente dois anos sem pintar e desenhar e quando o curso terminou, ainda tentou outros caminhos. “Fiz pós-graduação em ensaio de moda, trabalhei com diversas coisas diferentes. Isso foi muito importante pra mim, porque percebi o que eu não queria fazer da vida, e o que realmente me alimentava. Me dei conta de que, entre viver de arte e trabalhar para pagar as contas, eu preferia o caminho que mais me trazia felicidade. Pedi demissão e me posicionei como artista plástica.”

descobrindo o muralismo

“Lembro que foram os stickers do Xeréu que chamaram a atenção do meu olhar para as ruas. Na minha adolescência eu via em tudo quanto é canto as carinhas dele, mas na época não tinha ideia de quem as fazia. Ficava pensando o que ele queria dizer com aquilo e por que colar os stickers.” Os muros e as paredes entraram em sua vida em 2003, quando o amigo Ramon Martins a convidou para um passeio pelas galerias a céu aberto e reabriu a visão dela para o desenho. “O Ramon um dia me levou pra conhecer uma galeria. Mal sabia eu que ele estava me levando pras ruas do centro da cidade. Daí ele me mostrou uns graffitis e me contou quem eram as pessoas que faziam. Me interessei pelo processo e começamos a pintar juntos. Foi aí que tive a oportunidade de conhecer e pintar com vários grafiteiros de Belo Horizonte e comecei a encarar a parede como um suporte para o meu trabalho.”

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Mesmo apresentando traços simples e muitas linhas nas paredes de BH, o processo de criar no concreto desenvolveu o traço tímido, leve e contido da artista, que encontrou no spray uma chance de inovar e ganhar a autoconfiança exibida hoje nas telas. “Quando usei pela primeira vez o spray, não tinha Montana, não tinha esses sprays cheirosinhos, de válvula macia. A válvula era muito dura e eu não tinha controle, então era uma coisa muito gestual. Eu tinha que fazer um desenho do começo ao fim, era uma coisa grande, não tinha como ficar pensando demais, não tinha como desmanchar depois. Eu tinha que ter uma postura diferente, não dava pra ficar pensando demais, era livre.”

esses sprays cheirosinhos, de válvula macia.

A válvula era muito dura e eu não tinha controle,

então era uma coisa muito gestual. Eu tinha que fazer

um desenho do começo ao fim, não tinha como ficar pensando demais, não

tinha como desmanchar depois. Eu tinha que ter

uma postura diferente, não dava pra ficar pensando demais, era livre.”


via de mão dupla

Outra característica das pinturas de Raquel é a dualidade: a temática dos muros é completamente diferente do que ela apresenta em canvas. Essa dupla personalidade artística é um ponto a favor, e mostra sua versatilidade e capacidade de composição ao criar imaginários distintos para cada suporte. A maneira como ela lida com os materiais também interfere muito nas obras. A relação entre a artista e as tintas motiva as diferentes construções pictóricas em seus trabalhos. Nas paredes, é recorrente o uso de bichos (peixes, pássaros, lobos e cachorros) em muros abandonados e destruídos, que são pintados com pigmentos, tintas próprias para parede, nanquim e outros materiais variados,

como guache, acrílica, spray e carvão. Os desenhos invocam os animais como seres sagrados, lembram que também somos animais e questionam o lugar a que pertencemos. “Quando pinto em paredes, prefiro escolher lugares sujos, que têm uma memória do lugar e que tenha elementos com que eu possa interagir – seja com sujeira, manchas, arquitetura ou objetos. Uma parede branca, limpa, não me atrai. Sem falar que, quando pinto em casas abandonadas ou lugares que vão ser destruídos, sei que minha pintura vai ser destruída também, então já faço com desapego e não me cobro tanto, me permito ‘errar’ mais. Dessa forma, fico mais a vontade e vou evoluindo.” Nas telas, ela exibe retratos monocromáticos a partir de fotografias que tira nas ruas ou que coleta de amigos e na internet.

Um dia [na Coreia] eu estava pintando e vi

essa menina voltando

da escola. Ela olhou pra

parede e, quando viu meu trabalho, fez uma cara

tão boa de surpresa. Foi tão espontâneo e foi um

presente pra mim, porque

eu vi que posso causar esse

tipo de reação em alguém. ”

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A pincelada matemática explora um mundo como o do animador japonês Hayao Miyazaki, em que as ideias significam mais do que aparentam. Outra característica de Schembri é fugir da feminilidade e tentar criar retratos que contenham um tom mais agressivo, para não fazer parte do clichê menininha. “Só quando fui organizar meu trabalho para fazer um portfólio é que percebi que na maioria das vezes pinto animais na rua e jovens em telas. Sei que gosto de brincar com a dualidade, que está tão presente atualmente: o caos e o silêncio, o íntimo e o distante, a natureza e o concreto, o doce e o amargo, a destruição e a criação, a duplicidade dos indivíduos.”

alemanha: mente de principiante

Com a intenção de repensar o trabalho que vem apresentando nos últimos cinco anos, Raquel

4MENINAS BANANAS

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está fazendo especialização em Munique, na Akademie der Bildenden Künste München, por meio de uma bolsa que ganhou do DAAD. Por essa escola já passaram alunos como Kandinsky, Frank Von Stuck, Paul Klee e o próprio Guignard. Fora as possibilidades de estudar com artistas bem-sucedidos no Velho Mundo como Karin Kneffel e Gerhard Richter, ela se empolga com as transformações que vão acontecer em seu trabalho daqui para a frente. “São tantas mudanças à minha volta que é impossível não evoluir. Tenho enxergado meu trabalho de outra perspectiva, como eu nunca tinha olhado antes. Acho que tudo isso é construtivo, é muito melhor você saber que tá perdido do que achar que se encontrou e o seu trabalho ficar sempre na mesma, não tentar outros caminhos. Acredito que a arte serve também como um convite pra despertar essas novas formas de ver as coisas, seja causando estranhamento, questionamento ou admiração. Poder dar um stop na inércia, nos vícios de pensamentos. Quando trabalho penso nisso, principalmente quando pinto nas ruas, na cidade. Quando não tô trabalhando também (risos).” As crises realmente têm vindo para o bem, e a artista tem conseguido resolver amarras relacionadas, principalmente, à maneira como lida com a suavidade de seus traços minuciosos. Começar do zero e refazer o que já existia são os novos desafios de Schembri, que está vivendo em pleno inverno alemão na cozinha de alguns amigos enquanto procura um outro lugar para morar. A solidão e a frieza experimentadas no cotidiano em Munique se refletem nos rabiscos mais duros e insólitos que ela anda fazendo – tormentas de quem tem alma de artista.


Quando pinto em

paredes, prefiro escolher lugares sujos, que

experiência onírica na coreia do sul

Os trabalhos de Raquel já percorreram galerias brasileiras e de países como Itália, Montevidéu, Nova York e Londres, mas foi na Coreia do Sul que a artista viveu momentos que fizeram com que ela questionasse seus trabalhos antigos, visse a importância de valorizar a cultura de cada lugar e constatasse como a beleza plástica de um momento cria situações memoráveis. “Na Coreia, participei da exposição Haenggung Dong People, em Suwon, uma cidade perto de Seul. Fiquei lá por um mês. A cidade tem um milhão de habitantes, mas fiquei numa parte que era circundada por uma muralha construída no século XVIII. Lá é um universo paralelo. É outro ritmo, bem mais tranquilo do que do lado de fora. É um lugar mais tradicional, a arquitetura é mais típica coreana, templos, palácios, e dentro dessa área tem uma galeria de arte, a Spacenoon, e a ideia desse projeto era a criação de trabalhos que envolvessem as pessoas da região. Participaram onze artistas coreanos, uma artista meio coreana, meio australiana, eu e um alemão. Entre fotografias, telas e vídeos, eu optei por fazer pinturas nas redondezas da galeria. Foi muito legal, pois parte do projeto era pesquisar sobre o lugar, interagir com as pessoas, e eu vi como eles valorizam a cultura e a tradição. Eu sempre via apresentações na rua de dança, música e lutas. E isso é tão rico! No mundo inteiro tá acontecendo uma diluição e desvalorização da cultura de cada lugar. É foda ver como eles mantêm a deles.” Um dos momentos mais significativos para Raquel foi a reação de uma menina ao ver um dos trabalhos dela nas paredes de Suwon. “Um dia eu estava pintando e vi essa menina voltando da escola. Ela olhou pra parede e, quando viu meu trabalho, fez uma cara tão boa de surpresa. Foi tão espontâneo e foi um presente pra mim, porque eu vi que posso causar esse tipo de reação em alguém. É isso que eu acho muito legal sobre trabalhar na rua – você pega as pessoas mais despreparadas e elas te dão um retorno fundamental.”

têm uma memória

do lugar e que tenha

elementos com que eu possa interagir – seja

com sujeira, manchas, arquitetura ou objetos. Uma parede branca,

limpa, não me atrai.”

4PURPLE EYE

2 SAIBA MAIS: flickr.com/photos/raquelschembri 31


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Eu odeio Carlos Issa com seu jeito de artista! POR VELOT WAMBA . RETRATO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA . IMAGENS ACERVO PESSOAL DO ARTISTA

em que punk rock/ hardcore e artes plásticas no Brasil não se misturavam – ao menos, não harmonicamente. O termo “artista” carregava uma maldição e uma impostura inerentes. Arte era arte, punk era punk. Simples e estúpido assim. Algo estranho, tendo em vista o que se passa hoje, mas era nesse meio árido, a São Paulo de 1996/97, que CARLOS “CACÁ” ISSA, desde então personagem central na música mais progressista da capital bandeirante, operou uma mudança de estado de ânimo e sensibilidade em parte da cena independente que causaria efeitos extraordinários. 1 ERA UMA ÉPOCA

O título da matéria, verso único de um “funk carioca” de um dos maiores frasistas daquela cena, Fernando Ramone (baixista dos primórdios do Forgotten Boys e mais tarde guitarrista do Biônica), sintetiza sarcasticamente o espírito daquele tempo. Não que ele desgostasse do Cacá, pelo contrário: assim como este escriba, a sentença encerra o choque da ação empenhada por ele naquele contexto, que, de uma forma ou de outra, acabou por nortear a ação de todo um cenário artístico.


Existo sobre a integridade do futuro. / Estou no futuro. / Vivo a idade exata do planeta. / Depois disso, flutuo.

4FLYERS E CARTAZES COM ARTE DE CARLOS ISSA

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O NOME DA AÇÃO ERA DRAGA: “[Começou] em 1997,

no 8ª DP (minúscula casa de shows então existente nos Jardins). Era a ‘Nossa Tarde’, uma tarde que o Carlinhos (Dias, então guitarrista do Againe) organizava. Eu perguntei se dava pra fazer algo por lá e tinha um segundo andar que não usavam pra nada, com uma mesa de sinuca abandonada e banheiro. Reformamos tudo, mudamos radicalmente o espaço”, explica Cacá. Exposições de rápida duração – muitas vezes apenas o tempo dos shows do dia, que reuniu gente vinda de escolas de artes e do punk rock. Eis a motivação e o modus operandi de Cacá: “Tinha um monte de desenhos a serem mostrados e alguém tinha que fazer alguma coisa. E eu me via como o único capaz de montar uma exposição, porque trabalhava com isso na Bienal, montava salas com nomes tops na arte internacional. Mas, se era pra fazer, vamos fazer diferente. Uma exposição dura um mês, dois meses? Não, pode durar uma tarde. Uma exposição precisa de uma escritura de montagem? Não precisamos de nada pra montar, era uma estrutura mínima: prego e martelo e resolvemos.” Foi desse “precisar fazer algo” que despontaram nomes como Jon Gall – artista estadunidense que se tornou vocalista do Auto no mesmo período –, Cris Siqueira (vocalista do Go Hopey), E.T. (baixista do Muzzarellas), além de, entre outros, o argentino Tomás Spicolli (Delmar/7Magz), Rafael Lain e Carlos Dias. Lain hoje é um ganhador do prêmio Nam June Paik; Carlos Dias é um dos nomes fortes das artes no século XXI, expôs no MAM da Avenida Paulista e ganhou individual na Choque Cultural. A primeira exposição do artista foi na Draga, “e bem a contragosto”, como explica Cacá: “Porque chamar alguém de artista naquela época era algo ofensivo (risos). Ele não queria ser artista – fazia os desenhos dele pra passar o tempo. Mas pra mim ele era totalmente artista”. O depoimento de Carlos Dias sobre o período é exemplar: “Flyers, capas de disco e fita eu sempre gostei de fazer. Realmente o termo artista plástico não me agradava, porque associava a quem era formado e, na maioria das vezes, meio ‘arrombado’. Mas isso era preconceito de moleque. O Cacá foi realmente um cara de visão, de enxergar meu tracinho de Bic e saber que aquilo era uma parada legal. Com o Cacá e o Jon, vi que era possível fazer algo legal, mas não sabia o quê, e realmente não queria muito a alcunha de artista plástico.” A hoje videomaker Cris Siqueira expôs outro traço importante sobre Cacá, ao afirmar que “[A Draga teve um] impacto incrivelmente positivo, no sentido de apreciação estética mesmo, sem pretensão de ganhar dinheiro ou ‘acontecer’, sem o ciclo da fama, só um monte de gente jovem produzindo arte sem a intenção, ou o sonho, ou a aspiração de transformar a arte em ‘sucesso’.

Mais de dez anos depois ainda acho impressionante que o Cacá soubesse disso e de forma tão clara em 1997/98. Sou eternamente grata pela confiança que ele depositou na minha prática artística ‘amadora’, e acho que nunca conseguiria ter abraçado essas experiências como modo de vida se não fosse pela Draga”. Esse surto criativo teve como epicentro a casa da rua Havaí, no bairro de Perdizes, onde Cacá morava com amigos egressos da cena punk/hardcore. Algumas edições da Draga ocorreram por ali mesmo. “Tudo que achei que deveria ser exposto, vi na Havaí, porque as pessoas iam lá. O Carlinhos [Dias] sempre estava por lá desenhando, o Tomás [Spicolli] também, e tinha a mesma vibe dele – produção compulsiva, desenho super original e meio fora de lugar pra época. Quem fazia a contraposição das artes plásticas era o Jon, que era formado e já tinha exposto. E todos se davam super bem. Essa mistura era totalmente legítima”, explica Cacá. Dessa forma, hoje parece difícil que essas exposições tivessem outro nome, como relata um Cacá empolgado: “Uma espécie de embarcação – você joga todo mundo ali e vai embora. E é uma embarcação totalmente urbana, deformada, não tem forma de barco: é reta, chapada, e tem a função de fazer o fluxo do rio correr – tirar o entulho do fundo do rio e jogar pras margens, pra todo mundo ver. Eu ficava viajando nessa imagem, uma máquina punk, industrial, sem design nenhum. E, foneticamente, o nome lembrava Dadá, o que me agradava”. Cacá produziu os cartazes mais interessantes desse período, com um estilo fatalmente devedor ao do dadaísmo, mas que acabou por criar todo um universo pictórico em preto-e-branco que informa muito sobre sua produção musical. E, assim como nas artes plásticas, essa outra faceta de seu trabalho 35


Hoje há uma ponte tranquila entre artes plásticas e punk rock, mas naquela época nem tanto. Era até meio ofensiva a relação... É, não tinha nada a ver. Não se falava de arte pro pessoal do hardcore e vice-versa. E eu convivia com os dois meios. Até o Jon e a Fernanda achavam estranho fazer exposição em bar, com bandas etc. O que me dava certeza total do que estava fazendo era essa coisa do “vamos lá fazer”, e o Hans Richter (autor do livro Anti-Arte), que tinha a ver com exposição punk. Os dadaístas tinham muito a ver com aquilo tudo.

inspirou muita gente, como um dos mais bem cotados músicos paulistanos, Maurício Takara (Hurtmold, SP Underground, M.Takara 3): “Conheci o Cacá em 1995/96. Ou seja, eu tinha uns 14 anos. Pouco tempo depois, ele estava começando o Auto, e foi aí que eu comecei a ter mais contato com a arte dele. O Auto desde o começo já era uma das minhas bandas favoritas de SP, e ainda é. Eles sempre tiveram uma sonoridade e uma estética bem peculiares em relação às bandas locais da época. Várias vezes eu acabei tocando com eles em shows. Além da música, uma marca grande do Cacá foi a forma de tratar a estética visual, que dialogava com e complementava de forma única a música deles.” “Dá pra compor com qualquer coisa. Não vejo diferença entre compor com sons ou com imagens. Com palavras, não: pra mim é um lance mais sério, é um sonho, um projeto”, explica Cacá, que mesmo assim se aventurou na poesia com um livreto de tiragem limitada chamado Estridor, de 2001, com versos como “Ei, você! / que do futuro / me vê, / vá se foder” ou “Existo sobre a integridade do futuro. / Estou no futuro. / Vivo a idade exata do planeta. / Depois disso, flutuo”. Seus poemas são rápidos, assim como as letras do Objeto Amarelo, seu projeto musical mais duradouro e produtivo: “Eu tenho a manha de ficar sozinho olhando pro teto” (de “Lucro”), “A referência chegou primeiro trazendo alguém que não conheço” (de “Referência”) ou “O hardcore tem setenta anos, é negro, se chama John Lee Hooker”, (de “Senta a Pua”). Foi com esse agitador cultural/artista visionário sempre atuante, ciente que “John Cage facilita muito mais as coisas que o Ramones”, que conversei entre um café e outro em uma padaria localizada próximo à saudosa rua Havaí dos tempos de Draga. Na verdade, o “universo Carlos Issa” abarca muito pouca coisa para além de seu umbigo. Felizmente, porém, a repercussão é perene e vibrante. 36

Os seus cartazes de show, os elementos geométricos, a letraset, têm uma estética própria e um pensamento de objeto de arte. Seu estilo já era aquele nos tempos de faculdade? Não, eu fui o primeiro influenciado pela Draga. Comecei a desenhar por causa do Carlinhos, do Jon... Ok, desenhei a vida toda, tem artistas na minha família, mas fazer pra valer foi porque vi eles produzindo. Até então tinha toda uma cerimônia envolvida na coisa, e com eles vi que isso tudo podia ser deixado de lado e que o resultado ia ser tão foda quanto. E eu precisava fazer cartaz porque minhas bandas estavam começando nessa época – o Auto começou ali, e o Objeto Amarelo dois anos depois. Precisava fazer flyer, cartaz, capa de disco. A primeira banda banda com que você tocou foi o Auto? Foi, de 1997 até hoje. Parou quando o Jon voltou para os EUA em 2001 e agora voltou. Eu morava na Havaí e todos moradores eram músicos. Minha namorada na época (Carol Pfister, também baixista do TPM e editora do zine Água) tinha uma banda, o No Class. Comecei a conviver com essas pessoas e viajar pra ver os shows... Era um meio mais punk/hardcore... Era só punk/hardcore. Começou a aparecer equipamento na casa – morávamos eu, Carol, Jackson (ex-guitarrista do Kangaroos in Tilt) e o André (Maleronka, colaborador da Soma e editor da revista Vice). O André tinha o Againe, e eles ensaiavam lá. Eu tava meio desempregado, estudando, ficava vendo aquilo ali e voltei a tocar guitarra. Tentei fazer banda a adolescência toda, mas não achava ninguém e nem tocava porra nenhuma. De repente caí nesse universo e comecei a tocar na sala de casa. Passou uns dias, o Ramon (guitarrista, ex-Strada) me viu fazendo uma barulheira e me chamou pra tocar com ele. A gente decidiu montar uma banda, eu na guitarra e ele no baixo. Daí chamei um amigo pra bateria, o Jon. Só que ele começou a fazer umas vozes, e eu tinha uma bateria eletrônica. O Ramon então chamou o Fusco pra bateria e rolou o Auto.


4FOTOS DA DRAGA NA RUA HAVAÍ

O Ramon depois decidiu sair e entrou o Marcílio (ex-Pig Machine e In-tense, atual Similar). E antes do Auto você era um cara que curtia Sonic Youth, a cena no wave de Nova York... Sim. Ficava tocando [a música] “Death Valley 69” – era esse tipo de som que eu queria fazer. Eu tocava o que sabia, mas a partir de umas bases a gente ia fazendo música, e saía aquilo ali.

“Não vejo diferenca entre compor com sons ou com imagens. Com palavras, não: pra mim é um lance mais sério, é um sonho, um projeto.”

Mas você tinha noção de que estava fazendo punk rock/hardcore. Claro, o punk foi fundamental. Antes de escutar essas coisas mais sérias eu escutava Ramones, The Clash, Sex Pistols. Foram essas coisas que me levaram pra cena nova-iorquina dos anos 80. O Objeto Amarelo começou quando? Em 1999. Eu gravei e saiu em 6 meses, foi um pessoal da Argentina que lançou. Fui pra lá montar uma exposição com o Tomás e o Jon, mostrei a gravação e eles adoraram. Paguei uma metade e eles a outra. Fiz a arte do disco quase toda lá, cheguei em São Paulo e já mandei pra prensa. E começou como um projeto seu desde o início? A ideia de banda veio depois? Era uma época em que eu tocava em várias bandas: Prendedor, Similar, TPM, Auto. A gravação nasceu de um tempo em que a casa ficou vazia. Pude ficar um tempo sozinho e tinha recebido uma grana da Bienal, comprei uns equipamentos. Eu já mexia com [o gravador de 4 canais] Tascam e bateria eletrônica. Calhou de ser a única semana em cinco anos que a casa ficou vazia. Fui mexendo nos equipamentos e precisava de som para testar, daí fui preenchendo, tocando um tempão, e saíram um monte de músicas. As suas colagens, seus trabalhos mais conhecidos, surgiram da relação com a música, né? Capas de disco, cartazes. Claro. Porque tinha a ver com a arte das bandas dos anos 80 que eu curtia. Eu achava aquela estética demais mesmo, letraset etc.

4FOTO POR SAMUEL ESTEVES

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Só com o tempo foi aparecendo algo que eu posso chamar de meu. Lembro que lá em 2005/2006 você ficou aborrecido com esse formato banda, que soava bem punk rock... Não estava incomodado com o estilo, era porque estava engessado, a coisa não ia pra frente. Eu compunha, mas a gente improvisava muito, e essa parte era incrível. O problema com o Objeto era a questão de todo mundo morar longe, em uma cidade com pouca mobilidade. No Auto agora estamos enfrentando o mesmo problema. E daí veio o lance com o Akin (DJ, MC e produtor paulistano)? Fiz colaborações com o Lain, com o [Ricardo] Carioba. Com o Akin é a mais produtiva, talvez, a que mais traz frutos interessantes. Teve o Dia, o Acabou Namoro, o Músico Japonês de Protesto. Mas o Acabou Namoro, por exemplo, nem chegou a existir de fato, né? Tudo existiu. Dada a dimensão que dou pras coisas, todos eles existiram. O que precisa pra existir? Gravação? Mas nunca teve nada lançado... Teve, depois que um amigo colocou um som em rede nacional (referindo-se à faixa “Brasileiro”, que levei ao ar em uma edição do programa de rádio Coquetel Molotov, de Recife). Minha noção de “agora existe no mundo” é mostrar pros amigos. Nunca tive ambição maior do que mostrar pros amigos – e em geral eles nem gostam (risos). Mas você chegou a ter uma boa exposição na mídia e em shows com o Objeto no início... Você fala de tocar no Eletronika? No Goiânia Noise? Todo mundo fez isso. E o Objeto tomou uma pancada na cabeça com o lançamento do PanzerTunel, que era um disco pra se descobrir na loja. E a Bizarre fez um esquema de divulgação fantástico, mas acabou ficando antipático. Não era pra ficar falando que era genial, falando tanto, criou antipatia. Você anda tocando como nunca nos últimos meses e sempre acaba lançando algo. O Objeto Amarelo sempre teve como característica ter gravações e apresentações ao vivo bem distintas. Tudo isso me leva à pergunta: tocar ao vivo ou gravar? Como você encara esses dois momentos da música? Acho que prefiro o estúdio, mas não dá pra comparar – são universos diferentes. Na verdade, são inimigos inconciliáveis. Gravar é uma experiência radicalmente diferente de tocar ao vivo. O estúdio é uma experiência menos imprevisível, um pouco mais controlada. 38

Posso enxergar o resultado a partir de ângulos diferentes, voltar pro começo e acrescentar novos capítulos, sentenças, ilustrações. Posso editar, enfim. Se fosse um panóptico, o estúdio seria a torre do guarda, e o palco, a cela que retém alguém que vai ser preso antes e julgado depois. Todo esforço de um show está na poda de um espinheiro. É impossível reproduzir a experiência do estúdio no lugar da apresentação. Mudam o espaço e o tempo, mudam as pessoas, a arquitetura, o equipamento, seu humor, sua vontade. O som vem desse contexto: se as peças mudam, o som muda. Isso é muito claro pra mim. Conduzo o Objeto dessa maneira, adaptativa e dialógica, também contando sempre com qualquer hospitalidade que possa existir no mundo. Aprendi com o Auto que, pra continuar me divertindo, tinha que criar um mecanismo de adaptação permanente. O Objeto Amarelo é resultado disso: eu posso tocar com qualquer equipamento, em qualquer situação. Porque esse esquema nosso de show é meio de guerrilha, né? Foi bastante difícil criar esse dispositivo de adaptação pro Objeto, vindo de uma realidade de banda e composição – mesmo tendo tocado John Cage já no primeiro show. O repertório surge e dá o bote, vira uma bandeira; as canções são sua marca e moral pro mundo, e elas atropelam tudo, passam por cima dessas diferenças de um jeito meio irresponsável. Nesses últimos anos, esse dispositivo fez os shows ficarem

“Minha nocão de ‘agora existe no mundo’ é mostrar pros amigos. Nunca tive ambicão maior do que mostrar pros amigos – e em geral eles nem gostam (risos).”


depois. Esse disco também explica os shows do Objeto, como eles soam e são apresentados hoje em dia. Na minha opinião, os shows derivam formalmente desse disco, de uma música chamada “PanzerTunel”, que emprestou nome pro álbum. Dá pra estabelecer um elo entre o Dia e o Afasia? Depois de passar dois anos intensos com o Dia, desde a época do lançamento até o período das colaborações, toda “ruidagem” livre e abstrata que aparece em qualquer outro projeto contém essa experiência e esses sons. Isso acontece no Objeto Amarelo e agora no Afasia.

novamente instigantes: a concentração durante a performance é total, a percepção do lugar e das pessoas atingiu um nível bem mais integral.

4TRABALHOS RECENTES DE CARLOS ISSA

Em 2003/2004, você criou um projeto noise eletrônico, Dia, e lançou um álbum por conta própria e outro em parceria com o Cine Vitória, projeto do Guilherme Darisbo (importante músico experimental brasileiro), chamado Cinedia. O que te levou a dar essa parada no Objeto Amarelo e cair de cabeça em um trabalho mais abertamente noise? Na verdade, o Dia não é eletrônico: eu uso uma mesa analógica de oito canais ligada nela mesma. Os outputs que saem dela voltam e são conectados nos inputs, é só isso. Não tem nenhuma fonte de som chegando na mesa, nada conectado, guitarra, bateria, voz, computador, nada de input externo. A coisa é circular, e a distorção imensa vem de uma faísca, um micro-som qualquer, que se transforma numa massa sonora gigante quando passa pela retroalimentação gerada nesse sistema que eu montei. Quando vira Kardia, com o Maurício Takara, a gente microfona as peças da bateria e esse som captado mergulha na massa sonora. Aí tem input, mas não é mais só o Dia. Com o Cinedia, a mesma coisa: no lugar da bateria acústica do Kardia, o Darisbo usa tapes, fitas cassetes e um Tascam. Sobre mudar do Objeto pro Dia, parar um e mergulhar no outro? Isso não aconteceu, porque essa distorção que perfaz o som do Dia é resultado de várias tentativas anteriores. Ao longo dos anos, tentei encontrar esse som usando guitarra e depois computador. Essas tentativas estão espalhadas nos discos do Objeto, principalmente no PanzerTunel, que se tornou uma espécie de caixa de conceitos, ou rascunhos de vários projetos que surgiram

E como foram esses três últimos discos como Objeto Amarelo, que você lançou em 2010? Um é ao vivo na União Fraterna (no festival Guifest), o outro é o Trapézio, de estúdio. E o último foi gravado como item de uma exposição, que tinha a ver com arte reproduzível, múltiplos... Mas são produções diferentes. Cacá também participou de exposições na Argentina, França, Inglaterra e Espanha. Colaborou com artistas como Leandro Lima e Gisela Motta e chegou ao New Museum, em Nova York. Lançou fitas cassete com o Auto e o projeto Músico Japonês de Protesto, uma miríade de publicações independentes e, antes da guinada radical no fim dos anos 90, foi DJ roqueiro em casas noturnas paulistanas. Numa matéria para a extinta revista Bizz, o maestro Júlio Medaglia, ligado ao universo popular e erudito desde os anos 60, foi convidado a escutar uma faixa de artistas diversos e opinar. Radiohead, com “Paranoid Android”: “Não tem muita graça. Se isso aí aponta caminhos, quero ir pra Jacarepaguá. Se são jovens, nasceram velhos. Manda escutar Mutantes”. Four Tet, com “She Moves She”: “Vai ficar assim a noite inteira? É um ‘bolerorock’ sem Ravel”. Objeto Amarelo, com “Tonta Maria Morta”? Bom, essa vale a descrição inteira: “Estou curtindo o som, as mudanças de andamento. Muito bom. É gente que tem coragem. Não deve fazer sucesso em meio à imbecilidade da música brasileira feita hoje, né? Não deve ter muito sucesso, né? Mas a mim emociona. Essa turma quer fazer música. Eles precisam desenvolver um pouco mais as ideias, se informar, ouvir um pouco mais o rock da virada dos 60 para o 70.” Coragem pra fazer música e arte não faltam à Carlos Issa. É bom ficar de olho. 3

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POR IG ARONOVICH E LOUISE CHIN / LOST ART

SAL ONART Por motivos bastante semelhantes, as portas de salões de cabelereiros nos chamaram a atenção. Fechadas nas manhãs de domingo, elas revelam um mundo habitado por celebridades como Vera Fischer, John Travolta, Latino, e mais uma multidão de personagens anônimos. Começamos a buscar os salões em diversas partes da cidade e percebemos que geralmente um único artista é responsável por grande quantidade de portas e muros num determinado bairro. MANIFESTAÇÕES ARTÍSTICAS NÃO RECONHECIDAS, formas de arte em processo de extinção e outros temas que não têm destaque na mídia mainstream nos atraem. Há anos documentamos esses assuntos: assim foi com “Car Parts”, ensaio sobre esculturas feitas com sobras de peças automotivas inutilizadas, comuns em oficinas espalhadas pelo Brasil (lost.art.br/ carparts.htm e lost.art.br/carparts2.htm).

Embora os artistas e a localização mudem, os retratos sempre mantém a mesma linguagem: são reproduções toscas, involuntariamente desproporcionais (também não é nada fácil reproduzir rostos em portas com relevos ou paredes irregulares). O resultado é sempre curioso e carrega um senso de beleza autenticamente popular, que estabelece um raro elo de ligação entre o universo pictórico brasileiro e o do restante da América Latina. A Galeria: Salon Art é nossa forma de homenagear a arte perdida de artistas como César dii Almeida, 36, pintor desde os 23, que cobra aproximadamente R$ 200 para pintar uma porta com aerógrafo. E, com isso, seguir enxergando o belo no imperfeito.

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2SAIBA MAIS lost.art.br/salonart.htm cesardialmeida.com.br 49


POR MARINA MANTOVANINI . RETRATO E REPRODUÇÕES POR FERNANDO FERREIRA MARTINS

uma entrevista com SILVANA MELLO

subjetividade humana 50

MUITAS VEZES a arte nasce da simples

vontade do artista de colocar para fora e expressar sentimentos e ideias pessoais. Esses artistas, que não explicam sua arte por meio de referências de escolas artísticas ou por influências de outros, traduzem melhor suas obras quando falam sobre o caminho que percorreram até encontrar a linguagem dos seus trabalhos. A bagagem artística veio da vida, e ensinou a eles como desenvolver suas emoções pelos traços e desenhos. O conhecimento provém unicamente da experiência, da captação do mundo externo e interno pelo sentidos, por isso em seus trabalhos é possível observar uma espontaneidade natural, em que a produção (in)consciente das obras é voltada para a concretização de um ideal de beleza e harmonia. A artista plástica gaúcha SILVANA MELLO se enquadra nesse perfil, e seus trabalhos em suportes como azulejo, tela, bordado e vídeo-animação refletem suas histórias pessoais e a trajetória conturbada de sua vida. Ao me deparar com ela para realizar esta entrevista, encontrei uma mulher de 42 anos muito bem resolvida, que conseguiu deixar para trás alguns fantasmas, mas que continua se reavaliando por meio de seus desenhos. 1

Como era o lance de ser punk em Porto Alegre? A primeira vez que vi os punks foi em uma festa em Porto Alegre. Fiquei doida com o jeito deles, com a aparência, aquela coisa desencanada, e fiquei instigada para saber quem eram eles. Nessa época eu andava com a galera do surf, mas não me identificava com o estilo de vida das meninas e, no dia seguinte à festa, cortei o cabelo e fiz um moicano. Eu conhecia o Cachaça, que já fazia uns fanzines, e ele me levou pra conhecer a galera punk. Eu achava aquilo a coisa mais incrível do mundo, porque tinha uma ideologia, e você não era o que você tinha, não tinha essa. Lógico que tinha toda uma parte visual, mas era muito pessoal, você se montava do jeito que queria. Eu botava fogo nas minhas roupas e riscava tudo com o A de anarquia, fazia uns fanzines com os amigos, fazia umas colagens.


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Mas ao mesmo tempo tinha o outro lado, tinha muita droga, a gente tomava muito remédio, cola, anfetamina, ninguém tinha dinheiro pra cocaína. Eu ficava três, quatro dias acordada bebendo, usando drogas, debatendo os conceitos do punk e tendo ideias, mas depois da doideira ninguém realizava nada, porque todo mundo tava muito cansado e ia dormir. Você já ilustrava os fanzines? Não, eram mais umas fotos, colagens e as ideias que a gente colocava no papel. Na real, a gente fazia os fanzines pra vender e conseguir dinheiro pra beber. Tinha a ideia de mudar as coisas, mas 52

era mais de estar junto com amigos que pensavam como você. Foi aí que começou a sua relação com a música? Naqueles tempos, no Sul, o punk pra gente tinha a parte paralela da música, mas não era a coisa mais importante. A parte mais importante era a coisa da consciência do movimento, muito mais do que a música. A música era estar ali ouvindo um Discharge e um Exploited, uma coisa mais pra complementar, não era o principal. O que te instigou a andar de skate? Na minha infância eu andava de skate Bandeirante, que ganhei da minha mãe. Sempre gostei de umas coisas mais radicais, também tinha mobilete, e desde aquela época a gente já ficava o dia inteiro na rua andando de skate, aquela coisa bem anos 70 mesmo. A gente descia as ladeiras perto da minha casa, tinha uma que era conhecida como a ladeira da fábrica da Brahma, meio como a ladeira da morte aqui em São Paulo, e a gente ficava curtindo. Mas era mais coisa de criança, porque andar mesmo eu só comecei quando conheci os punks e a gente ia pros campeonatos de skate

pra fazer festa e curtir. Resolvi começar a andar e montei o primeiro skate com uma amiga. O apelido dela era Cicuta. A gente passava a noite bebendo cerveja e andando de skate na avenida Osvaldo Aranha, mas era uma época bem difícil pra andar de skate, porque a polícia era muito repressora e a gente apanhava deles. E mulher também apanhava? Apanhava, e eles ainda passavam a mão, né? No peito, na bunda. Depois que a gente começou a ficar mais esperta tinha aquela coisa de policial homem não poder revistar a gente, mas eles apreendiam os skates e a gente tinha que ir na polícia pra resgatar. Como era andar de skate nos anos 80 em um universo tão machista? Sempre teve umas meninas andando de skate, mas muito pouco. Nunca senti tanto esse lance machista em Porto Alegre porque eu também tinha muitos amigos homens. Lá não tinha muita coisa pra fazer, então andar de skate era o esquema. Quando vim morar em São Paulo, gostava de andar em uma pistinha na Zona Norte, e tinha uns meninos que nem cumprimentavam, pegavam muito mal.


Até nas festinhas as mulheres ficavam separadas dos homens. Mas eu acho que é muito mais uma questão de se impor. Eu não dava brecha pra ninguém, ficava na minha, andava escutando walkman e não fazia amigos – eu tava lá pra andar. Quando rolou o Lava você ainda andava de skate, né? Sim, mas a primeira banda em que eu cantei foi a No Violence. Era uma banda de homens e eu fazia a segunda voz. O Rui me chamou muito mais porque achava que eu tinha atitude do que pela minha voz. Fiquei uns dois anos, e aí chegou num ponto em que eu queria ter uma banda com meninas, porque via minhas amigas tocando e fiquei a fim. Aí a Eliane, do Dominatrix, a Lu, uma outra amiga e eu montamos a banda. No começo a gente fazia uns covers, porque eu achava que as bandas de minas tocavam mal, e eu gostava mesmo de hardcore. Foi só depois que eu comecei a ver as letras e a prestar mais atenção nos sons de mulheres que a gente começou a compor também. Nessa época você já traçava uns desenhos pras capas de discos e pôsteres. Como começou a história com o desenho? A primeira lembrança que eu tenho é de uma vizinha que desenhava uns personagens tipo Pica-Pau e Bidu e me ensinava, ia me mostrando como fazer. É louco porque ela fazia uma casinha, e até hoje eu faço uma casinha parecida com a dela. Mas, quando rolou o punk, eu desacreditei de tudo no mundo, não fazia nada, achava tudo uma merda, que não tinha futuro. Mas aí comecei a achar que a galera se drogava demais e era tudo demais, mas ninguém trabalhava e pensava no futuro. Comecei a perceber que quando você tá careta ninguém te engana, mas quando tá drogado você é usado. Eu virei straight edge, parei com tudo e vim morar em São Paulo. Quando cheguei, a primeira coisa que fiz foi procurar um curso pra estudar arte. Entrei na Escola Panamericana, e uma amiga disse que não era muito legal e realmente ela tinha razão – o curso te transformava em copista, você usava mesa de luz e copiava. Lembro que eu fazia um desenho e o professor podava. Aí larguei e fui fazer uns cursos livres, comecei a trabalhar na Bienal como montadora da Brasil +500 com o Carlos Issa e o Flip. Depois passei pra desmontagem e aí pra curadoria da Brasil +500 no Ibirapuera. 53


A primeira lembrança que eu tenho é de uma vizinha que desenhava uns personagens tipo Pica-Pau e Bidu e me ensinava, ia me mostrando como fazer. É louco porque ela fazia uma casinha, e até hoje eu faço uma casinha parecida com a dela 54

Eu ficava lidando com a produção, ia nas casas desses emprestadores de arte, e comecei a ver que não era nesse lado das artes que eu queria trabalhar. Meu último trabalho fixo foi no Arte Cidade do Senac, e quando saí de lá comecei a freelar com ilustração de revista, camiseta, shape de skate, entre outras coisas. E, quando fazia os pôsteres, você se inspirava em caras como o Frank Kozik? Eu até vejo o estilo dele naqueles meus trabalhos, mas era uma coisa que todo mundo fazia. Por exemplo, ia rolar um show e tinha cinco, seis pôsteres e flyers diferentes, desenhados por outras pessoas. Era tudo colagem, e a inspiração vinha mais das bandas e do tema da festa. Em relação ao Kozik,

eu gostava do trabalho dele muito mais pela música do que pela arte em si. Mas desde o começo você já tinha uma linguagem retrô. Vou te falar que até tentei abrir meus horizontes na arte, fui fazer um curso no M.U.B.E de arte abstrata, porque eu queria sair do lance de ser muito realista, mas não rolou. Acaba sempre ficando com a mesma linguagem. É isso que eu faço. E acho que essa referência vem da época em que eu morava no Sul. Lá todo mundo era meio sessentista, eu já frequentava brechó nos anos 80, sempre usava uns visus meio fantasia, e nessa época não era uma coisa de tendência. Acho também que tem muito desse conceito vendido na minha infância de american way of life: você vai conseguir, vai ser bonito, tipo propaganda de margarina, e isso me fazia sonhar com uma família mais estruturada que a minha. E qual foi o seu primeiro trabalho com animação? Fiz uma historinha de 45 páginas em nanquim no papel canson, baseada em uma música do Jailbreaker. Mostrei a parte de desenho pro Jimmy Leroy, que na época era diretor de arte da MTV, e eles compraram a ideia e fizeram uma animação. Aí eu pensei: “Vou viver disso”.


Comecei a fazer mais vinhetas, e todo mundo naquela época que era da arte fazia umas vinhetas pra MTV. Resolvi que queria aprender a animar e fui fazer um curso de flash no Senac com o Carlinhos. Teve também o clipe em animação da música “Igloo”, que você fez pro Lava. Sim, fiz tudo em flash, fotocópia. Dava bastante trampo, mas não era tão difícil. Eu colocava um desenhinho no flash e animava aquela coisa meio durinha. Parecia stop motion. Como você pensa no roteiro desses curtas? Meio que surge, não é muito programado. Acho que vem sempre pela simplicidade, porque a minha intenção com arte é que todo mundo entenda. Admiro outros tipos de trabalhos, como arte conceitual, mas não é a minha cara, pra mim é mais uma coisa de vivência. Não fico mirabolando nada e também não curto pretensão. Eu faço o que quero. Como apareceram as primeiras exposições? Meu trabalho começou a aparecer mais e eu comecei a expor alguns trabalhos nas casas de show. O Cacá tinha uma casa nos Jardins, a 8ª DP, e rolava uma festa, a Draga, e sempre tinha banquinha com as camisetas e uns trabalhos. Aí teve um evento no Hangar e as meninas me chamaram para expor. Foi pra essa expo que fiz os primeiros bordados. Várias pessoas viram e gostaram, me deram uns toques. E aí teve a Most, e o Farofa e o Flip me convidaram para colocar umas peças lá. O bordado é uma marca sua. Como rolou essa história? Eu trabalhava muito com as obras do Arthur Bispo do Rosário na Bienal e resolvi bordar. Mas não pensei nele, acho que foi algo que ficou no meu inconsciente, usar um material mais artesanal. Nessa ocasião, peguei três bordados pequenos, eu nem tinha bastidor, meio que estiquei na raça e fiz. E pintar em azulejos? Eu fui pro México, e lá qualquer garagem tem alguma imagem sacra pintada em azulejo. Quando cheguei no Brasil, peguei um MDF, colei os azulejos e pintei. No final das contas, virou parte do meu trabalho. Nessa minha última exposição, “Mulheres e Casas”, eu não fiz tanta pintura em azulejo e o pessoal cobrou isso.

Em 2006 você participou de uma exposição na Galeria Choque Cultural, e foi no mesmo ano que acabou o Lava. Foi aí que tudo mudou? Eu perdia muito tempo com a banda. Eu adorava, mas ficava com a parte de marketing e no tempo livre fazia camiseta, adesivo, capa de disco, e era tudo na mão, tudo na caneta, uma por uma, bem underground. Eu gastava muito do meu tempo entre o trabalho fixo e o Lava. Além do que, eu tava cansada de tocar em lugar sujo, às 4h da manhã. Fomos viajar pra Curutiba, chegamos lá e era um lugar pequeno, todas as bandas foram dormir na casa de uma menina, mexeram nas minhas coisas. Era legal antes, mas eu já tava de saco cheio. Queria ficar em casa, dormir cedo, ter uma filha. Aí fiz a primeira expo na Choque, venderam algumas coisas e eu pensei: “Acho que vai dar pra viver da minha arte e pagar as contas no final do mês”. Os seus primeiros trabalhos têm muitas referências da época em que você andava de skate, do rock, mas hoje trilham por um caminho mais feminino e suave. Queria que você falasse sobre essa evolução. Mudou bastante. Comecei a ver também a durabilidade do trabalho. Antes eu pegava um lance no lixo pra fazer umas colagens, mas hoje em dia tenho uma preocupação maior, quero que as peças durem pra sempre. Os bordados eu estou até colocando na tela. E também procurei um tecido com mais durabilidade, não chega a ser um canvas porque não é maleável pra costura, mas já é bem mais forte. São coisas que você começa a pensar, porque o seu trabalho muda e as pessoas que compram esperam esse cuidado. 55


Como meu pai foi ausente, eu sempre tive que aprender a me defender, tomar conta de mim. Queria que as coisas fossem diferentes pras mulheres, mas ainda não são.Acho que a gente já evoluiu muito, já tem muita liberdade, mas ainda não é tão de igual pra igual.

Tem peças minhas que vão pra colecionadores, tem que rolar mesmo esse esmero. Hoje os temas dos meus trabalhos são menos agressivos, as cores mudaram muito. Antes eu usava só preto, branco, vermelho, porque me bastava, mas hoje coloco mais e isso tem muito a ver com o nascimento da minha filha e de eu estar muito bem. Tenho uma vida mais tranquila com a minha família, e na Choque Cultural tenho o reconhecimento que queria. E também não quero mais me expor tanto na minha arte. Antes eu colocava o que estava vivendo, e agora quero me preservar mais, quero sair do meu universo. No começo você falou sobre a agressividade. Os seus personagens são delicados, mas realmente tem esse lance mais crítico, mais subversivo. Na segunda exposição que fiz na Choque, pintei crianças pegando fogo, porque era uma época que tava rolando muito ataque de homens bomba. Eu ficava assistindo na CNN e tava perturbada com toda essa história, queria fazer alguma coisa com esse tema. Ao mesmo tempo, li um livro religioso que falava sobre as crianças no paraíso e mostrava felicidade. Então eu fiz isso, coloquei as crianças felizes, mas pegando fogo. Era a minha mensagem. Mexer com crianças incomoda as pessoas, né? Teve uma exposição que eu fui convidada pra fazer junto com outros artistas, pra pintar uns objetos. Cada artista recebeu alguma coisa, e eu fiquei com uma geladeira, mas a curadora não se ligou no que eu fazia e eu pintei umas crianças em situações mais perigosas.

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Era agressivo, tipo a criança colocando o dedo no ventilador, e em outro desenho ela colocava a mão dentro do liquidificador. A curadora surtou, achou um horror. Mas era o que eu fazia na época, sinto muito se ela não se preocupou em pesquisar o meu trabalho antes de me convidar. A sua arte é realmente baseada naquilo que você está vivendo no momento. Você sempre consulta suas memórias e sentimentos pra criar. Acha que isso é o que atrai tanto as mulheres pro seu trabalho? Sim, a maioria dos colecionadores que compram as minhas peças são mulheres. A arte sempre foi uma terapia pra mim, pra botar pra fora o que eu tô sentindo naquele momento e tirar uma coisa bonita de algum sofrimento. E isso é muito feminino, acho que é uma coisa que eu tenho vontade de fazer, de falar com a mulher por meio dos meus desenhos. Você tem trabalhos em que coloca os homens em atividades que antes eram apenas das mulheres, como lavar uma louça ou cuidar de um filho. Qual é a importância de expressar na sua arte uma mudança de padrões? Como meu pai foi ausente, eu sempre tive que aprender a me defender, tomar conta de mim. Queria que as coisas fossem diferentes pras mulheres, mas ainda não são. Acho que a gente já evoluiu muito, já tem muita liberdade, mas ainda não é tão de igual pra igual. Quero que as mulheres sejam respeitadas, que a gente ganhe igual, que as funções da casa sejam divididas igualmente. Eu não acho que meu trabalho vai mudar o mundo, mas cutucar ajuda de uma certa forma. Na primeira vez que expus os bordados, criei os desenhos com uma estética anos 50, e era uma série que criticava o papel da mulher em casa, tipo todo o trabalho sempre sobrava pra mãe. E veio de ver minha bisa, minha avó e minha mãe passarem por isso, de a mulher sempre ter que assumir tudo. A maioria das mães das minhas amigas criaram os filhos praticamente sozinhas. Você teve banda e sempre teve uma relação forte com a música. Qual é o papel dela hoje na sua vida? Ela influencia ou modifica o seu trabalho? De certa forma sim, mas mais como um acompanhamento do que como uma influência. É mais um item que precisa estar junto na hora de criar. Vou pro ateliê e coloco algumas coisas de punk, claro, mas tô curtindo mais os anos 70, tipo Fletwood Mac, umas coisas mais calminhas, como Tommy Guerrero e Ray Barbee. O som me ajuda a criar, mas aprendi que o silêncio também é importante, e que tem alguns momentos em que eu prefiro o silêncio absoluto pra colocar as ideias no lugar. 3

2SAIBA MAIS choquecultural.com.br


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CEZAR BERGER JUNIOR Cezar Berger Junior ou BERJE, alcunha que usa para assinar seus desenhos, tem 20 anos e estuda Design Gráfico na universidade Belas Artes, em São Paulo. Os rabiscos começaram cedo e seus desenhos têm grande influência dos quadrinhos, animações, cultura do skate e gravuras de livros. Admirador de artistas brasileiros como Bruno 9li, Luciano Scherer, Calma e Renan Cruz, Berje abusa dos detalhes, sem perder a autenticidade de desenhos com ares pop.

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/BERJEEE


FERNANDA BRENNER A paulistana Fernanda Brenner, 24 anos, até tentou trabalhar com outras coisas, mas o plano dela no momento é ser artista full-time. Apaixonada por Basquiat desde a infância, adota para si a liberdade vista formal do artista nova-iorquino. Enquanto cria desenhos e colagens em papel ou madeira, Thelonius Monk e Coltrane não saem da vitrola. “Nunca planejo nada antes, vou criando da mistura de texturas e dos diferentes materiais que eu uso: canetas, tinta, fitas adesivas, entre outros”, conta Fernanda.

4WWW.FLICKR.COM/PHOTOS/FERNANDABRENNER

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PAULA GABBAI Formada em Arquiteta e Urbanismo pela USP, Paula Gabbai seguiu outro caminho ao escolher nas artes plásticas a sua maneira de viver. Multimídia, ela atua criando desenhos, ilustrações, design, fotografias e artes aplicadas. No seu currículo, há ilustras para livros, revistas e projetos conceituais.

4PAULAGABBAI.BLOGSPOT.COM

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POR RAQUEL SETZ . FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA . IMAGENS ACERVO PESSOAL

No fim de 1975, o então estudante de Música e de Letras LUIZ TATIT estava em um sítio com seus companheiros de Grupo Rumo. Ouvindo o samba “Minha Nega na Janela”, de Doca e Germano Mathias, interpretado por Gilberto Gil, eles se deram conta de que as melodias das canções têm origem na entoação da fala cotidiana. Para Tatit, foi uma dupla reviravolta: a questão da entoação se tornou a mola criativa do Rumo (que se manteve na ativa de 1974 até 1992) e serviu de base para o extenso trabalho de análise semiótica da canção brasileira que ele vem desenvolvendo desde então. Como precisa conciliar vida acadêmica e produção musical, tempo não é uma coisa que Tatit tem de sobra. Mesmo assim, ele me recebeu em sua casa em uma sexta-feira, véspera de feriado, para uma entrevista de mais de uma hora e meia, em que deu uma aula sobre a canção no Brasil, além de comentar seu mais recente disco solo, o delicado Sem Destino, de 2010, e de quebra revelar a quedinha secreta do crítico José Ramos Tinhorão pela Jovem Guarda. 1

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4GRUPO RUMO NO SESC POMPÉIA NOS ANOS 1980

Ouvindo Sem Destino (lançado em maio de 2010) e comparando o disco aos outros de sua carreira solo (Sem Destino é seu quarto disco-solo de estúdio) com os trabalhos do Rumo, percebi que houve uma transformação: no começo era experimental e complexo, e com o tempo foi ficando cada vez mais próximo da canção “convencional”, com métrica definida e rimas. As canções que eu faço agora são mais digeríveis, mais agradáveis à audição e até mais simples, não têm tanto impacto musical. Na época do Rumo, tinha um sentido de manifesto: mostrar como há fala por trás da canção. Explicitar a entoação era uma coisa um pouco dura, até porque as pessoas não estavam acostumadas a ouvir. Soava como se fosse uma declamação, mas não era, as notas eram todas precisas. Hoje, inovação não é mais um valor. O valor agora é a música ser gostosa, ser boa de ouvir. Foi ficando naturalmente assim.

“Sem Palavras” é um texto que não foi pensado pra virar letra de canção. Como foi o processo de musicá-lo? Fui à exposição da [artista plástica] Edith Derdyk, que trabalha com fios e páginas de papel. A [poeta] Alice Ruiz fez um texto que está no livro sobre a exposição. Eu comprei esse livro e vi o poema. Fazia tempo que ela me mandava letras pra melodizar, e eu não conseguia me envolver com os temas. Achava bem construídas, mas não dariam canções interessantes. Eram muitas vezes temas de exaltação, falando da própria parceria. De repente, vendo isso que não tinha sido feito para ser letra, resolvi melodizar. Foi difícil, mas consegui fazer uma melodia que se adaptou às acentuações daquilo que ela estava dizendo. Ficou um pouco experimental, o arranjo também foi feito nessa linha, mas gostei do resultado, foi um bom jeito de iniciar uma parceria.

Nesse disco há mais uma parceria entre você e o Itamar Assumpção, “Quem Sabe” (“Dodói” já tinha saído em Ouvidos Uni-vos). Foi só no fim da vida que ele se aproximou? Sim. Ele sempre foi muito recluso, muito na dele. Na época áurea do Lira Paulistana, fizemos alguns shows e conversávamos na passagem de som, atrás do palco, mas nunca tive muita convivência com ele. No ano 2000, quando ele já estava doente, lembro de ter encontrado com ele num show da Zélia Duncan e ali ele me propôs fazer algumas composições juntos. Ele estava muito excitado nesse dia e prometeu que ia me ligar pra passar algumas coisas. Achei que fosse ficar naquilo mesmo, que ele esqueceria no dia seguinte. Mas não. Ele passou a ligar constantemente e me passava letras pelo telefone. Ele não parava de produzir, até com um certo sentimento de urgência. Me passava umas letras bem curtinhas, que ele falava que era pra fazer um mantra. Por isso, “Quem Sabe” tem essa conotação, é quase uma vinheta que se repete. Ele só ouviu a primeira que eu fiz, “Entre Elas”, e depois falou: “Não precisa mandar, não. Depois que a gente terminar umas doze passa pra Zélia ou pra Ná [Ozzetti], elas gravam e a gente fica com um disco de parcerias”. Mas o projeto ficou no meio do caminho.

A faixa “Quem Gostou de Mim” foi feita para um espetáculo de dança? Foi. O Jonas (Tatit, filho de Luiz) fez a trilha sonora de uma peça da Juliana Moraes sobre a Ofélia, personagem de Hamlet, do Shakespeare. A peça retratava o momento em que o Hamlet vai embora e a Ofélia pira. É uma peça toda experimental, mas tinha que ter uma canção para expressar o que a Ofélia sentiu depois da partida do Hamlet. O Jonas já tinha uma melodia e pediu pra eu colocar letra. Reli Hamlet e criei a letra sobre loucura, desprezo, solidão. Ficou uma letra bastante simples, porque todas as canções populares são sobre a solidão, separação. Sobre o Rumo, vocês tiveram o insight de que a melodia da canção popular é baseada na entoação da fala cotidiana no fim de 1975, mas o grupo já existia desde 1974 e tinha uma tendência experimental. No que consistiam essas primeiras experiências? Nossa necessidade era encontrar uma forma de a música ficar aparentemente diferente. Então tentamos tudo: tirar instrumento e deixar só a voz, usar elementos de música erudita. Essas experiências que depois o Arrigo levou mais adiante, e pra valer, de colocar música serial, tudo isso a gente já tinha tentado, 67


“As canções que eu faço agora são mais digeríveis, mais agradáveis à audição. Na época do Rumo, tinha um sentido de manifesto: mostrar como há fala por trás da canção. Soava como se fosse uma declamação, mas não era, as notas eram todas precisas. Hoje, inovação não é mais um valor. O valor agora é a música ser gostosa, ser boa de ouvir. Foi ficando naturalmente assim.”

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só que de forma mais amadorística. E nada contentava a gente. A primeira canção que sentimos que tinha elementos entoativos interessantes e que ao mesmo tempo era agradável de ouvir foi “Ah!”. Foi essa que configurou a linha do Rumo. Depois vieram outras que deram certo e outras mais duras, até que tudo amoleceu. O último disco do Rumo, Rumo ao Vivo, que é de canções inéditas, já é muito mais tranquilo de ouvir que os primeiros. Mas todos têm entoação do mesmo jeito. O Rumo ao Vivo foi o melhor trabalho do grupo? Eu acho. É o mais bem acabado. O primeiro é o mais impactante, mesmo pra nós, mas acho aquele disco uma confusão em todos os sentidos: sonoridade horrível, dezenove canções. Por trabalhar com a fala cotidiana, o Rumo acabou usando sotaques e expressões tipicamente paulistanas nas canções, o que é raro. A gente não tem muito exemplo disso na música popular porque o Rio é o padrão, o padrão Globo que está generalizado para o Brasil inteiro. Adoniran, explicitamente, trouxe essa bagagem do italiano do Bixiga. A própria ideia de falar errado é resultado da imigração italiana. No italiano usa-se “i” e não “s” para fazer plural. Para os imigrantes italianos, fazer plural com “s” é uma coisa esquisita, por isso eles omitem. No Rio não, lá é um absurdo você falar “dois pastel”, porque os imigrantes principais do Rio são os portugueses. A partir dos anos 70, começou a haver uma influência forte da linguagem coloquial baiana, por causa do movimento tropicalista, da expansão de nomes como Caetano, Gil, Novos Baianos. Na verdade, são poucos os artistas paulistanos que atingem projeção nacional. Tem a Rita Lee e mais um ou dois.


Nos anos 80, o Rumo foi colocado sob o rótulo “Vanguarda Paulista”, assim como Arrigo Barnabé, Itamar Assumpção, Premeditando o Breque. Há pontos em comum entre esses vários artistas? Sim. Todos estavam imbuídos da ideia de novidade, e os três principais – Rumo, Itamar e Arrigo – trabalharam com entoação. O Arrigo por causa da ideia de narrar o que estava acontecendo como se fosse uma história em quadrinhos. Ele usava aquela voz rouca, como um locutor de rádio estilo Gil Gomes. O Itamar o tempo todo falava nas músicas, tinha a voz principal e as outras comentando por trás. Aliás, há um pouco de confusão nos arranjos do Itamar pela quantidade de vozes. E o Rumo com a teoria, explicitando a entoação.

4TATIT COM O FILHO JONAS NO VOCAL, EM 2010

Algumas músicas suas, “Felicidade” principalmente, apresentam um personagem que me lembra Woody Allen, o neurótico urbano que é uma figura triste e ao mesmo tempo engraçada. A partir da canção “Esboço” (gravada no disco Rumo ao Vivo), muita gente pensa em Charles Chaplin, porque o personagem é meio clown. E tem mesmo uma melancolia irônica, que o Woody Allen também tem, e um humor depressivo. É como eu sinto as coisas, nunca estou plenamente feliz. Não consigo manifestar em uma canção uma felicidade perfeita, sem conflitos, como fazem o Jorge Ben e o Dorival Caymmi. Nas minhas canções, mesmo quando a coisa vai bem, há problemas e, quando vai mal, há ironia. Queria conversar um pouco sobre a canção. Pra começar: o que define a canção? A fusão de melodia e letra. Todas as vezes que se aborda canção sem ter melodia e letra como núcleo, alguma coisa está errada. Analisar letra de canção como poesia fica uma coisa esquisitíssima. Não dá pra comparar uma letra do Chico Buarque com uma poesia do Drummond. Foram pensadas de jeitos diferentes. E o interessante é que o Chico tem consciência plena disso: ele falou que nunca na vida escreveu um verso, então como pode ser considerado poeta? E, de fato, ele só escreveu versos com melodia. A mesma coisa do lado musical: uma canção não é melhor porque tem mais acordes. Algumas músicas do Tim Maia são muito melhores que as do Tom Jobim e só têm três acordes. As melhores músicas do Brasil são do Roberto Carlos, a meu ver.

Então a canção brasileira não é só Chico Buarque e Tom Jobim, é também Tati QuebraBarraco, Ratos de Porão. Claro. O rap, por exemplo, é canção absoluta, porque não é uma extensão da fala, é a própria fala. No documentário Palavra (En)cantada, você diz que a canção tem como referência a literatura e a música que já passaram. Isso era um pouco mais específico. Os autores antigos, quando queriam fazer versos de verdade, imitavam a poesia parnasiana que tinham lido nos livros escolares do primário. Sobretudo Cartola, Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça, esse pessoal do morro. Os mais urbanos, como Noel Rosa e Ismael Silva, não tinham esse problema. Sempre cito “Jura”, do Sinhô, que é super prosaica, com letra coloquial, mas na segunda parte ele diz “Daí então dar-te eu irei um beijo puro na catedral do amor”. Então eles não podem ser avaliados do ponto de vista poético, fica até ridículo. Hoje isso não acontece mais, porque todo mundo se manca e porque a escolaridade é mais elevada. Nesse mesmo documentário, Chico Buarque diz que há indícios de que a canção esteja se esgotando. Concorda? A canção só acabaria se deixássemos de falar. Enquanto houver pessoas falando uma determinada língua, essa língua produzirá canção. E isso está ficando cada vez mais forte. Basta ver na internet: as pessoas não param de produzir canção. No livro Todos Entoam, você lembra da época dos festivais e afirma que “dou-me conta, hoje, que a partir desse momento comecei a ler o mundo pelas canções”. Você acredita que as canções são um bom parâmetro para entender o que acontece no mundo? O que dá para perceber sobre o momento atual a partir da produção que está por aí? A noção de diversidade, que hoje está muito presente na canção, é um espelho do que estamos vivendo. O leque se abrir é a regra. Tem, por exemplo, a voz da periferia nos raps e em alguns funks, a voz da grande mídia na Ivete Sangalo, que representa uma das poucas coisas que ainda congrega muita gente num estádio, a voz do experimentalista, a voz do romântico, do sambista, do roqueiro. Tem também a voz dos que gostam 69


“A noção de diversidade é um espelho do que estamos vivendo. O leque se abrir é a regra. Tem a voz da periferia nos raps e funks, a voz da grande mídia na Ivete Sangalo, a voz do experimentalista, a voz do romântico, do sambista, do roqueiro. Tem também a voz dos que gostam de misturar vários gêneros. Conseguimos ter muito mais acesso a como é o Brasil pela canção do que pela literatura, pela música erudita, pelas artes plásticas.”

de misturar vários gêneros em uma mesma produção. Conseguimos ter muito mais acesso a como é o Brasil pela canção do que pela literatura, pela música erudita, pelas artes plásticas. A mistura de gêneros que o tropicalismo pregava hoje é quase uma regra. É muito difícil ouvir um gênero puro. Exatamente. Quando escrevi o livro O Século da Canção, mostrei que a importância da bossa nova e do tropicalismo foi o fato de terem criado gestos estéticos que, a partir de então, seguimos aqui no Brasil. O gesto tropicalista é o da mistura e o da bossa nova, a triagem. A MTV fazendo programas acústicos é um gesto bossa nova, por exemplo. Você também conta que não concordava, nos anos 90, com as críticas que sempre culminavam em “esse lixo que toca no rádio”. Essa história de achar que é lixo musical vem dos anos 60 e 70, época em que os críticos exigiam novidade. O que não fosse novidade era desprezível. No entanto, as grandes populações que vivem nas grandes cidades e no meio rural precisam de conteúdos afetivos que não estão na música que os críticos querem ouvir. Por exemplo, músicas do Amado Batista, do Waldick Soriano ou dos sertanejos de hoje são músicas que falam ao coração das pessoas. Não há nação que viva sem músicas passionais do tipo sertanejo, ou o bolero e o samba-canção de antigamente. As músicas de embalo, como a axé music, são como as marchinhas dos anos 30: praticamente só têm refrão, a levada é gostosa e a marcação do compasso nunca é desobedecida – justamente pra não perder o ritmo da marcha, pra ser uma dança clara que qualquer pessoa pode dançar. Isso é uma necessidade de alegria. Não é porque essas músicas fazem sucesso que os autores finos não aparecem. São faixas de consumo diferentes. E uma coisa muito interessante no Brasil é que há intercâmbios. O Arnaldo Antunes, por exemplo, que está em uma faixa de 100 mil discos no máximo, atingiu 1 milhão na época dos Tribalistas. 70

Você ouve esses estilos que geralmente são criticados, como tecnobrega, axé? Eu não ouço música de maneira geral, porque tenho pouco tempo pra isso. Agora no carro estou ouvindo mais, deixo uma pilhazinha de CDs lá. Mas acho todas essas experiências com canção muito interessantes. A diferença entre o comercial e o não-comercial é que no comercial existe uma tendência a repetir muito o mesmo formato, e aí fica sem graça. Isso não quer dizer que não apareçam melodias maravilhosas, como “É o Amor”. A gente não gosta, ou pelo menos não aprecia de cara, a interpretação do Zezé di Camargo & Luciano porque eles cantam a duas vozes, com um acompanhamento banal, então foram estigmatizados pela elite. Mas esse rapaz fez uma canção extraordinária como qualquer canção do Roberto Carlos ou do Tom Jobim. Bastou a Maria Bethânia cantar que já passou para um grau mais elevado. Daqui a pouco, “É o Amor” vai virar a coisa mais chique do Brasil. Num ensaio de 1983, você elencou fatores que atrapalham a efervescência cultural: o obscurantismo político (censura), o obscurantismo econômico (crise) e o obscurantismo da comunicação (quando a mídia não arrisca e deixa de apostar no novo para investir no já consagrado). Visto que vivemos em uma democracia, estamos em um momento econômico legal e os artistas não precisam mais de gravadora ou da TV Globo, atualmente não há entraves pra produção cultural? Hoje o problema é concorrência. Não existe mais entrave pra chegar aos ouvidos do público, mas não existe público. Parece exagerado, mas não é: todo mundo que gosta de música pode fazer um trabalho. Então, quando você termina um CD, todos os seus vizinhos também terminaram e querem que você ouça e comente o deles também. Tinha uma época em que eu ganhava de dois a três CDs a cada show. Em 2007, fiz um show no Sesc pra umas 450, 500 pessoas, e ganhei cinquenta CDs.

Nos seus estudos, alguma vez você pesquisou o fenômeno das “earworms”, canções que grudam na cabeça e não saem mais? O que faz uma canção ser pegajosa? Música marca uma época. E, às vezes, por causa de alguma remissão àquele tempo a música vem à cabeça. Mas isso eu só pensei especulando. Tem uma história engraçada a respeito disso. Uma época, o [José Miguel] Wisnik viajou com o [José Ramos] Tinhorão pra fazer uma série de palestras. Numa palestra em Porto Alegre, o Tinhorão fez um discurso arrasador contra a Jovem Guarda, demoliu tudo, como se aquilo fosse um lixo, não se salvasse ninguém. No dia seguinte, o Wisnik acordou e ouviu alguém cantando muito alto no banheiro: “Se você quer brigar / e acha que com isso estou sofrendo”. Ele pensou que estava sonhando. De repente sai o Tinhorão, que estava no banheiro se barbeando e cantando. Quer dizer: ele demoliu a música, mas adora, no sentido de que, corporalmente, não consegue evitá-la dentro dele. Essas incoerências são maravilhosas. 3

2SAIBA MAIS luiztatit.com.br


4GRUPO RUMO NO COMEÇO DOS ANOS 1980

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CARI

BOU

matemática aplicada à dança

POR AMAURI STAMBOROSKI JR . RETRATOS DIVULGAÇÃO

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I ndo do krautrock ao pop psicodélico

e à dance music em uma carreira de dez anos, o canadense Dan Snaith não parece perder muito tempo se entediando, apesar da aparência nerd (legitimada por um PhD em Matemática). Sob a alcunha de Caribou – ex-Manitoba, nome abandonado após uma ameaça de processo do vocalista da banda punk Dictators –, o músico se apresentou em São Paulo em outubro, no festival FourFest, acompanhado de sua banda. No palco, duas baterias, guitarras, baixo, sintetizadores e um sem-número de fios ligando tudo a um computador que disparava os samples do novo álbum do artista, Swim, lançado em 2010. Ao contrário do psicodélico Andorra, de 2007, o novo disco é voltado para as pistas de dança e, segundo Snaith, está sendo tocado até em Ibiza. 1


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“Sempre tive interesse em música de transe, de diferentes maneiras: krautrock, compositores minimalistas do século XX, free jazz, John Coltrane. Gosto do processo de repetição, que te coloca em uma espécie de transe. E não tem maneira melhor de atingir isso do que dançar em um clube, onde está tudo escuro.” Você compõe e grava seus discos como um artista solo, mas se apresenta com uma banda. Eu nunca penso em como o disco vai soar ao vivo – não quero que a ideia de um show limite as possibilidades do que pode aparecer no álbum. Temos bastante controle sobre o nosso som no palco, usamos vários objetos diferentes para disparar os samples das camadas mais eletrônicas enquanto tocamos, mas ainda é algo espontâneo. Não estamos tocando com uma trilha de fundo, a música sempre fica diferente, podemos adicionar as texturas na hora em que quisermos. Quando você lança um disco novo, tem que ensaiar muito para fazer ele soar bem ao vivo? Como é o processo de traduzir a música de um álbum para um show? Todos os membros da banda participam nessa hora. Eu envio para eles por e-mail os arquivos abertos das músicas, com as faixas de gravação separadas. Cada um sugere o que quer tocar e nós aprendemos as nossas partes antes de começar a ensaiar. Para tocar o Swim, nos reunimos por três semanas, ensaiando todo dia, para tentar fazer as coisas de jeitos diferentes, para ver o que funcionava melhor. Desde que começamos a turnê, as músicas evoluíram e já estão tomando rumos diferentes. Estamos sempre evoluindo. Cada um de seus álbuns parece focado em um estilo específico – krautrock em The Milk of Human Kindness (2005), psicodelia anos 60 em Andorra (2007) e agora dance music em Swim. Como você decide o que vai fazer em seguida? Eu nunca penso especificamente nisso, nem tento fazer as faixas ficarem parecidas, não tenho um conceito. Cada disco documenta um ano da minha vida, e as coisas que me atraem mais ao longo daquele período acabam entrando no álbum. E o que te inspirou em Swim? Eu queria fazer um disco diferente de Andorra, daquele pop psicodélico. Tinha a ideia de fazer uma

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música fluida, dinâmica, em que tudo se comportasse como uma onda. Outra coisa que me influenciou foi ir a clubes, ver gente como [o DJ de Detroit] Theo Parrish discotecando em Londres, ouvir músicas realmente estranhas, mas ao mesmo tempo animadas e dançantes. É um ambiente para o qual eu nunca compus nada, e é muito excitante imaginar as pessoas indo para um lugar ouvir as suas faixas em um equipamento que custa US$ 1 milhão. É incrível pensar que ainda existe isso numa era em que as pessoas costumam ouvir música nos falantes de seus laptops. É o último refúgio dos audiófilos, e um espaço para o qual vale fazer música ambiciosa. Como tem sido a recepção do disco nas pistas? Eu pensava que o álbum ficaria preso entre dois mundos – quem gostou de Andorra não curtiria, e as pessoas que gostam de dance music nunca ouviriam, afinal não foi lançado pelo [selo alemão de eletrônica] Kompakt. Mas estou impressionado, as pessoas vêm me contar que ouviram as músicas tocando em Ibiza (risos). Vamos lançar um disco de remixes com vários produtores de eletrônica agora, e eles estão adorando. Quem participou desse projeto? Tem gente como James Holden, Gold Panda, Motor City Drum Ensemble, Junior Boys, Fuck Buttons, Ikonika, Nite Jewel, Walls. É uma lista louca, e ela aconteceu porque eu estava muito animado com a ideia de colaborar. Toda vez que ouvia um disco de que gostava, mandava um e-mail para o artista. Foi quase uma desculpa para poder ter contato com esse pessoal. Quando você começou a carreira, ainda com o nome de Manitoba, recebeu dos críticos o rótulo de IDM (Intelligent Dance Music), mas em Swim você criou algo que se relaciona com a dance music tradicional. O ato de dançar inspirou o que você queria fazer nesse disco? Com certeza, sim. Sempre tive interesse em música de transe, de diferentes maneiras: krautrock,

compositores minimalistas do século XX, free jazz, John Coltrane. Andorra é uma exceção – tudo é conciso, todas as faixas são canções. Gosto do processo de repetição, que te coloca em uma espécie de transe. E não tem maneira melhor de atingir isso do que dançar em um clube, onde está tudo escuro. O que eu gosto na dance music é que os elementos rítmicos funcionam como um trem carregando a música, e você coloca todo o resto em cima dele. Você pode brincar com isso e criar um monte de sons estranhos em torno do ritmo. Quando você começou a ouvir dance music? É algo mais recente ou você ouvia quando era adolescente? Comecei a descobrir a música eletrônica com artistas como os Chemical Brothers, nos anos 90. Na época eu ouvia bandas como Yes e Genesis, e foi algo que mudou meu mundo completamente. Ao longo dos anos, passei a ouvir mais ou menos, dependendo da época, mas os últimos dois anos foram ótimos para a dance music. Quais são os melhores discos de dance dos últimos anos? Nunca são álbuns, especialmente no caso da dance music. Tem duas faixas, acho que são de 2009 ou 2008, do Theo Parrish, “Love Triumphant” e “Going Downstairs”, que são bons exemplos de dance music muito estranha. Ao mesmo tempo, descobri artistas como Charanjit Singh, um produtor indiano. Ele tem um disco de 1982, Ten Ragas To a Disco Beat, que soa como Derrick May, é algo que antecipa todo o tecno de Detroit. Tudo foi composto em TR 808 ou TB 303 (sequenciadores clássicos da Roland). É fenomenal. Estamos também em uma boa época para redescobrir essas coisas perdidas, que estão sendo relançadas agora. Você falou sobre música de transe, free jazz, krautrock, mas como fez para mudar disso para o pop psicodélico em Andorra? Foi um desafio, aprender a realmente compor música. Quando você trabalha com músicas baseadas em loops, você improvisa, segue o fluxo, mas em Andorra eu precisava sentar e pensar em toda a música de uma vez só, algo em que todas as partes se encaixassem. Foi um processo difícil


“O que eu gosto na dance music é que os elementos rítmicos funcionam como um trem carregando a música, e você coloca todo o resto em cima dele. Você pode brincar com isso e criar um monte de sons estranhos em torno do ritmo.” para mim. Mas eu amo muito esse tipo de música, exemplos óbvios como os Beach Boys, os Zombies, compositores maravilhosos. E acho que alguns desses elementos mais pop ainda estão presentes em Swim. Você foi obrigado a trocar de nome artístico após uma ameaça de processo por parte do Handsome Dick Manitoba. O que levou você a escolher Caribou? Nós estávamos em turnê, e foi um momento meio frustrante. Estávamos no meio do Canadá e tínhamos um dia de folga. Sentamos no campo chapados de ácido para pensar em um novo nome para mim. Aí veio um urso falante e me disse que o nome seria Caribou (uma espécie de rena canadense). Foi o que aconteceu. Mas eu adorei. Porque Manitoba era um nome bem canadense, de uma província, então não foi uma mudança tão drástica para mim. Eu queria manter um nome canadense. Em uma entrevista você falou sobre seu trabalho como matemático, e disse que não poderia explicar a sua tese de PhD para alguém que não é da área, mas que ao mesmo tempo tem uma abordagem intuitiva em relação ao tema. O mundo da matemática e o da música são tão distantes, afinal? Eu não sou um dos grandes matemáticos vivos, mas não seria estranho dizer que muitos de nós temos uma abordagem intuitiva. Muitas vezes você vê um conceito, mas tem que explicá-lo, saber se ele funciona de verdade. E aí você começa a mexer com os números, começa a “sujar as mãos”, como dizemos. Com a música, para mim, não é tão diferente – você pega os instrumentos, começa a brincar com eles, vê aonde podem te levar e se a sua “tese” vai funcionar ou não.

2SAIBA MAIS myspace.com/cariboumanitoba 75


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MPC vi pela primeira vez com o Nuts ou o Zé [Gonzales]. Era como eu pensei, o jeito que funcionava. Em 99 catei e aprendi sozinho. Quando tinha dúvidas dava uma ligada pro Zé. Fiz o disco do SP Funk assim. Antes a gente fez um contrato com o DJ Hum pra coletânea Rima Forte, [na qual] entrou nossa música “Fúria de Titãs”. Quem se destacasse ganhava um disco inteiro. Fomos nós. E eu achava que a gente tinha que ter a nossa cara de produção. Hoje esse é um lado que curto muito e quero trabalhar. E em qualquer estilo – agora teve uma música minha que foi pro Exaltasamba. Da hora. É uma música minha com o Oscar, que era do Broz. Ninguém queria trabalhar com o moleque do Broz, aí passaram pra mim. Eu faço. Lógico, o moleque canta pra caralho! Eu sei qual é a do Broz. Se fosse outro cara do Broz eu não fazia, mas como era aquele que vi cantando na TV e falei “Ó que zica esse moleque”. Cantando R&B não tem, nunca vi assim no Brasil. Eu não tenho preconceito na música. Não quero nenhum limite. Quero fazer música boa, que chacoalha. Músicas fáceis de cantar, mas inteligentes, com letra boa.

“EU NÃO TENHO PRECONCEITO NA MÚSICA. NÃO QUERO NENHUM LIMITE. QUERO FAZER MÚSICA BOA, QUE CHACOALHA. MÚSICAS FÁCEIS DE CANTAR, MAS INTELIGENTES, COM LETRA BOA.” Depois dos discos do SP Funk você fez aquela batida do som do D2 com o Catra. É, eram alguns samples e um beat. Ele retocou o sample com o Caldato produzindo. É igualzinha, os breaks, a ponte. E eu nem sabia que ia ter o Catra. A parte dele é só uma ponte, e aquela base... Ele ia comer aquela base. Podia fazer um remix, comigo, com ele e o D2. Na minha versão da batida, ia ficar doido. Hoje o rap tá com um nível bom, várias pessoas fazendo bem várias coisas diferentes. No rap agora, ou você é bom ou nem faz, tá ligado? Imagina o Sabotage hoje em dia. Ele era o cara, mas vou te falar que agora tá nascendo uma safra boa. Mas ele era o cara, “number one”. 78


De flow, de tudo, de conceito. Ele ia ser rap até os 50 anos. Tinham que fazer um filme da história dele. Se fizerem direitinho, a hora que sair é estouro. E hoje tem vários caras. O Criolo [Doido] é fodido, tá no meu disco. Agora, essas tretas de Cabal e Emicida, isso é uma merda. O Cabal é foda. Sempre acreditei nele, mas às vezes a gente tem que pensar direitinho no que vai fazer. Tem que entender melhor o Brasil. Tem que entender melhor o Brasil, exatamente. É outro ritmo. Tem outros jeitos de fazer a mesma coisa. Essas musiquinhas... Música de picuinha não é música de carreira, tio. Você não vai ser lembrado por isso. A “Hit ‘Em Up” do Tupac não é a música pela qual ele ficou conhecido. Você tem sempre que estar atrás da música que vai te fazer ser reconhecido. E teu disco vem como? O disco não é todo dançante, tem minhas viagens de base, o que eu gosto de fazer. Chama Mr. Bomba De Ponta A Ponta, porque sou eu que tô fazendo tudo. Fiz várias músicas, várias produções, pra chegar até as que vão pro disco. Várias ficaram de fora. Quando eu lançar tem amigos que vão falar: “Cê é louco!”. Tem a “Biriri”, que é foda. Um amigo meu tinha acabado de cumprir uma sentença de um ano e dois meses. Aí ele veio com umas gírias novas. Quando escutei essa falei “Biriri? Isso é rap, e do mais cabuloso”. Fiz a música, fui feliz no refrão, nas ideias. E quem abraçou o foi o gueto, o submundo. A molecada começou a fazer vídeos e postar no YouTube. Já viu que tem três nego veio? Aí chega tipo uma tia, ela tá filmando, é um Natal, deve ser 2007. Foi no final de 2007 que lancei e estourou – foi só dar na mão de dois DJs “xis”, do gueto mesmo, que tocam no centro pra toda galera do gueto que vem curtir rap e funk. Daí que meu rap tocou no funk, é o único que tocou – eu tenho carimbo do funk. Já fiz vários bailes funk, e eu era o único de rap. Faz o “Biriri”, faz mais duas – vai mudando de acordo com a aceitação. Tem músicas estilo “Biriri”, que é o “tranco”. Botei esse nome porque as bases são tudo meio no tranco: catei a batida do crunk, do dirty south e coloquei os timbres de funk, no ritmo do rap – ninguém sabe de onde vieram aquelas percussões, mas é isso. Por isso deve ter dado algum estalo nos DJs de funk, que começaram a tocar. Tem três ou quatro com essas batidas. Tem umas duas lentas, lentas mesmo. Não sei se vai encaixar na pista, mas acho que são minhas preferidas atualmente, uns balanços nervosos. A “Gênesis”, que abre o disco, é estilo SP Funk – é o que a gente vai fazer, ano que vem vamos nos juntar, lançar disco ou mixtape e marcar datas.

“Pique Meninão”, a música do DJ QAP com o Maionese (ambos membros do SP Funk) e mais outro MC é nesse pique “tranco” e é foda também. É foda pra caralho. Esse estilo aí, no baile vai que nem uma luva. Tava trocando ideia com o D2. Ele disse que tava tentando escrever letra pra passar batido, pra nego se ligar mais na música. Música pra dar certo no baile tem que passar batido. Não é pra escrever um livro ou uma tese sobre um tema. Pra mim tem que ser singelo o bagulho

Porque o espaço do funk é muito grande, inclui samba, axé – é mais festeiro, e o Brasil é festeiro. Aí entra aquela discussão do que é intelectual e o que é brega, povão. É foda, tem uma barreira fodida, é pouca gente que não torce o nariz. Na mídia prevalece quem tem um lance mais intelectualizado, não quem tem um lance mais povão, como o Catra, que conseguiu, como Calipso, que conseguiu. Eu sou fã de tecnobrega, de funk, e o rap tem muito que aprender com esses caras.

“FUNK É HIP-HOP. É CONQUISTAR ESPAÇO PRA TODO MUNDO. CONSEGUIR QUE O FÃ DO EMICIDA ESCUTE E GOSTE DO MENOR DO CHAPA. SE A GENTE CONSEGUIR ISSO, AÍ VAI SER DA HORA, O RAP VAI TOMAR MESMO. NA MARRA, SEPARADO, NÃO VAI. PORQUE O ESPAÇO DO FUNK É MUITO GRANDE, INCLUI SAMBA, AXÉ – É MAIS FESTEIRO, E O BRASIL É FESTEIRO.” – se você consegue fazer um som como o “Biriri”, que pode ser pra criança, pra adulto, pra sacanagem, pra ladrão, é isso. Eu falei pros caras quando eles estavam fazendo “Pique Meninão”: “Porra, vocês tão esculachando”. Mas deu certo, os caras ouvem. Em baile de ladrão tem uns caras que se mordem, dá pra perceber os caras incomodados, mas toca muito. Com tanta gente boa fazendo rap e o funk dominando São Paulo, o que você vê de perspectiva? Agora quero ver como vai ser essa retomada. Porque pra mim é dividir espaço, fazer show junto. Funk é hip-hop. É conseguir espaço pra todo mundo. Conseguir que o fã do Emicida escute e goste do Menor do Chapa. Se a gente conseguir isso, aí vai ser da hora, aí o rap vai tomar mesmo. Na marra, separado, não vai.

Alguém vai ter esse estalo – porque os caras colocam uns raps, mas são uns raps toscos, mas se fizesse uma fusão com os caras... Se eu tivesse baile hoje, tinha tecnobrega, funk e rap numa mesma noite, só pra neguinho começar a olhar pra isso aí. É tudo gueto, música do gueto.

2SAIBA MAIS myspace.com/misterbomba

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POR DANIEL TAMENPI FOTOS POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

Em 2010, o rap brasileiro rendeu ótimos frutos. Um dos mais comentados foi a estreia em disco do carioca Paulo Ferreira, mais conhecido como AKIRA PRESIDENTE. Com um nome que mistura o apelido de infância, baseado no animê de Katsuhiro Otomo, febre entre os jovens no final da década de 80, e o lado boa-praça e bem relacionado que rendeu a alcunha Presidente, o MC lançou seu primeiro disco, Meu Sotaque, Meu Flow, no meio do ano, e vem marcando presença em shows por todo o Brasil. Em suas apresentações, Akira está sempre impecável, usando ternos e adereços estilosos e demonstrando energia de sobra. Nesta conversa com a SOMA, ele narra sua transformação de advogado a rapper, fala sobre seu disco e comenta a evolução do rap no Brasil. 1

Conta pra gente a sua história. De advogado a rapper? Como isso aconteceu? Passou antes pelo moleque que gostava de rap, que fez Faculdade de Direito, mas a vontade pessoal pesou mais. Esse período foi muito bom pra mim. Estudava, trabalhava em escritório e fazia rimas. Isso me ensinou a ter disciplina com horários, prazos, lidar com pessoas diferentes e, acima de tudo, saber me impor e defender com argumentos aquilo em que acredito. Daí veio a ideia do terno nos shows? Tem a ver com isso, mas a real mesmo é que eu nunca tive muita roupa... Nunca tive aqueles conjuntos becados do rap, e ao mesmo tempo tinha muito terno por causa do trabalho, e gostava de me arrumar assim. Quando comecei a me apresentar quis passar esse lado da minha história e trouxe isso pro show. Mas acho que acima disso tudo vem do respeito ao público. Temos que estar bem apresentados para o público. Vejo os músicos de jazz, gafieira, sambarock, até o próprio início do movimento funk, nos bailes black, era todo mundo arrumado, na beca.

Você começou a aparecer pro público acompanhando o Marechal, logo que ele saiu do Quinto Andar. Como isso ajudou na sua formação como MC? Foi um aprendizado teórico e prático, porque eu estava bem no início mesmo, rimando há pouco tempo, e rolou essa oportunidade. A gente ficava o dia todo enfurnado fazendo rima, estudando música, fazendo beats. Foi a minha primeira vivência dentro da música, conhecendo gente que trabalhava com música. E como rolou essa parceria com o pessoal do Pentágono e o Time do Loko? Também pelo Marechal, quando o Pedro [Gomes] levou o Emicida pro Rio pra participar da Liga dos MCs. A sintonia foi muito boa, ficamos em contato e em seguida ele me chamou pra dar uma força no documentário Freestyle: Um Estilo de Vida. O Apolo (MC do Pentágono) estava junto fazendo a captação de áudio, e conversamos bastante também. Falei da minha vontade de começar a gravar uns sons e eles me deram um voto de confiança, me 80


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O seu álbum é um dos mais musicalmente variados do rap neste ano. Você usa vários estilos de produção, do mais underground ao mais pop, passando por ragga, samba e outras influências. Isso foi uma coisa pessoal ou algo pra atingir públicos diversos? Como foi meu primeiro disco, queria fazer uma coisa com a minha cara. Tenho um gosto bem amplo mesmo. Vou em show de jazz num dia, baile funk no outro, numa quadra de escola de samba na tarde seguinte e num forró na favela à noite, e isso tudo me agrada. Então dificilmente vou fazer uma parada com uma pegada só. O Apolo enxergou isso. Não é questão de agradar a todos e nem a pretensão de ter um disco completo – sei que as pessoas vão gostar mais de umas músicas e menos de outras. Se nego escutar e pirar em quatro faixas e gostar das restantes, pra mim tá ótimo, porque realmente elas são bem diferentes entre si. Eu não faço o rap que falta pro rap, mas o rap que me falta, entendeu?

“V fu ag s o n n j p um v ra à n a es um nk d az how u e o n u qu a m u d o m ta co a n ia z rd la q o , b nu de e pe fa a. it f u o o f g a m e z E e qu al ad er nt , e rr s de ad ut il t ó r e r ã e a a g s a o e u o is m pr só m d so na ui am de , i e b f n o . a fa r Eu pa fic tu av te a lt ap n ra ilm do el e a, , ão d e m a en ma f a c nt e te s aç om e n o r o de a o u p ?”

Você foi o primeiro campeão da Batalha do Real (a mais tradicional batalha de MCs do Brasil), na época em que esse tipo de competição estava desabrochando. Hoje, anos depois, como você considera esse título e qual a importância que as batalhas tiveram pra evolução do rap no Rio e no Brasil? Foi foda. Eu era um moleque que tava começando, fazia uns freestyles sem compromisso, e de repente fui nadar com os tubarões e ganhei (risos). Porque todo mundo que tava ali já tinha uma história no rap. As batalhas de MCs têm um papel fundamental, porque dão uma exposição democrática. Tem coragem? Se inscreve e batalha. Isso dá um nível de exposição muito grande, te faz não começar totalmente do zero. Mas você só mostra noventa segundos do seu trabalho, não passa da segunda página. Então, se não aproveitar essa exposição, de nada adianta. O ideal seria voltar na outra batalha e já estar com um single pra distribuir ou vender e mostrar o seu trabalho. Mas às vezes nego se acomoda. Batalha toda semana e acha que tem show toda semana, mas não é assim. A batalha pra mim deu, acima de tudo, um cartão de visitas, além de postura em palco e presença com o público.

ra

chamando pra passar uma semana no estúdio em São Paulo e gravar duas músicas. De duas viraram sete. Fiquei cinco dias, e foi uma loucura de trampo, mas ali a gente viu que eu tinha um caminho que poderia ser explorado como MC, e eles tinham uma estrutura de trabalho muito boa: um estúdio, uma visão profissional. Foram as pessoas certas, na hora certa. Tudo fluiu muito bem. Continuamos na ideia, veio o EP e depois o álbum. O Apolo e o Pedro foram as pessoas que olharam pra mim e falaram: “Vamos te produzir, vamos gravar um disco e ver no que dá”. Existe o Akira antes e depois deles.

Na faixa “Minha Área”, o beat desconstrói um tamborzão do funk carioca e faz um rap com essa essência. Fala um pouco da importância da cultura do funk carioca pra você e como isso influencia o seu trabalho. Antes do rap eu cantava funk, tinha uns dez “raps” de funk, tá ligado? Entre 93 e 97 essa foi a minha vida: baile funk. Faz parte da nossa vida como carioca, da nossa cultura. A geração anos 90 no Rio de Janeiro era muito ligada ao funk. Não tinha como eu fazer rap e esquecer das minhas raízes. Apesar de não ter uma proposta de agregar o funk no meu rap, ele combinando é fundamental. E o tamborzão é louco, porque quem é de fora ouve e acha que é uma coisa só, mas não é. Em cada área tem um tamborzão diferente. E essa foi a proposta pra “Minha Área”, o Apolo foi desmembrando e construindo em um formato pro rap, pra minha área de música, e eu fiz uma rima sobre o mundo ser a minha área. Estão saindo diversas matérias sobre o seu trabalho na mídia. Boa parte delas te compara com o Marcelo D2. O que você acha disso? É bom, não no sentido de ser comparado, mas de colocarem que você está no caminho certo. Eu vejo como uma forma de elogio. Tem quem não goste do Marcelo, mas o cara tem resultado em toda a caminhada dele. Mas eu não vejo meu trabalho tão próximo do dele, em produção musical, em conceito mesmo. Acho que o estilo carioca de rimar é que acaba me aproximando mais dele.

Você faz parte de uma nova geração no rap brasileiro que tem um discurso e uma postura menos sisudos que a anterior, e aborda temas do dia-a-dia de uma maneira menos violenta. Você acha que isso é a evolução do rap como cultura de massa? Acho que o rap não tá evoluindo por nossa causa, tá evoluindo naturalmente, como aconteceu nos EUA. Lá foi assim também, começou com esse discurso dos excluídos e a coisa foi andando até o momento em que eles deixaram de ser excluídos e começaram a cuidar dos próprios negócios. Hoje no Brasil o rap passa pelo seu melhor momento. Atinge diversos públicos, diversos gostos e tem cada vez mais nomes nacionais. Você pega Emicida, Flora, Rincon e Akira: são quatro nomes que falam coisas diferentes, mas se complementam. Os temas estão mais abrangentes, assim como o público. O rap no Brasil tá quebrando certas correntes, tá parando de ter que se explicar, tá chegando na grande mídia com dignidade, não é mais aquela coisa de cinco minutinhos mal interpretados. Você consegue se expressar sem ter que se justificar. O Ogi tem as viagens dele, eu tenho as minhas, e mesmo assim tá todo mundo junto, não tem mais essa de braço cruzado e cara feia pros outros. Acredito que esse seja o caminho certo. 3

2SAIBA MAIS myspace.com/akirapresidente 83


+QUEM SOMA

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. UNCONVENTION . Por Mateus Potumati . Foto por Fernando Martins Ferreira

esde os 10 anos de idade, Ruth Daniel já sabia o que queria da vida: trabalhar com música. Crescer em Manchester, Inglaterra, parecia perfeito para seus objetivos. Uma das cenas mais famosas dentro de uma indústria tão desenvolvida como a britânica, a cidade tinha tudo que ela precisava. Depois de tocar em algumas bandas, Ruth montou um selo, o Fat Northerner. O trabalho se desenvolveu para fora dos limites da cidade, e ela foi tendo planos mais ambiciosos. Para avançar, tocar em festivais gigantescos como o South By Southwest, em Austin, ou no Midem, em Cannes, parecia obrigatório. Com isso em mente, ela investiu em levar bandas ao SXSW por dois anos consecutivos (o festival texano é como um grande showcase de selos e bandas, que pagam para participar na maioria dos casos). Depois da experiência, porém, Ruth parou para avaliar. Não demorou muito para ela perceber que tocar em meio a outras 3 mil bandas tinha um retorno muito pequeno, em vista do alto investimento. Conversando com colegas de 84

outros selos e bandas, viu que a opinião era generalizada, mas que as pessoas não enxergavam outras perspectivas para quem estava começando. Foi então que ela decidiu fazer algo a respeito: “Sentia falta de um evento que fosse menos focado nos aspectos comerciais e que promovesse carreiras realmente sustentáveis”, ela diz. Um projeto assim só faria sentido se saísse completamente do convencional. E assim nasceu a Unconvention. “A minha ideia, inicialmente, era apenas reunir pessoas que procuravam algo diferente e quisessem compartilhar ideias, trabalhar em conjunto e colaborar umas com as outras. Em vez do do-it-yourself de costume, queríamos promover o do-it-together”. Em 2008, ela reuniu em Salfood, cidade vizinha de Manchester, uma rede de pessoas envolvidas com “grassroots music”, como ela diz (conceito por vezes traduzido como “música independente”, mas que se refere mais a música embrionária, pioneira, pré-mercado): jornalistas, donos de casas noturnas, produtores,

donos de selos. Entre os palestrantes convidados da primeira edição estava o renomado pesquisador musical neo-zelandês Andrew Dubber. Radicado na Universidade de Birmingham, ele edita um blog com reflexões sobre a indústria musical. “Meu blog chamou a atenção deles, e logo vi que tínhamos valores parecidos sobre os rumos da música – e habilidades complementares. Então fui chamado para fazer parte da família.” O que era para ser um evento de networking de uma única edição cresceu, ganhou o apoio do British Council e virou um festival itinerante, que já esteve na Colômbia, Índia e passou pelo Brasil (Goiânia e São Paulo) em novembro. “O Unconvention é um evento que mira especificamente na infraestrutura da música pré-mercado ao redor do mundo. A ideia é colocar pessoas juntas para trabalhar, que possam ser úteis umas às outras. Você pode levar o cara que produziu o Jay-Z, mas não sei como isso seria produtivo para a maioria das pessoas.” Dubber


complementa: “É um olhar para pessoas que encaram a produção musical em menor escala, que é mais fácil de controlar”. Em cada lugar, o festival tem um formato diferente. Em Goiânia,

todos os lugares aonde vamos, conseguimos fazer as coisas acontecerem. Isso é uma prova de como as pessoas que trabalham com grassroots music são fortes e proativas”, avalia Ruth.

“MINHA IDEIA, INICIALMENTE, ERA REUNIR PESSOAS QUE PROCURAVAM ALGO DIFERENTE E QUISESSEM COMPARTILHAR IDEIAS, TRABALHAR EM CONJUNTO E COLABORAR UMAS COM AS OUTRAS. EM VEZ DO DO-IT-YOURSELF DE COSTUME, QUERÍAMOS PROMOVER O DO-IT-TOGETHER.”

Em Goiânia, especificamente, os dois se surpreenderam com o trabalho dos coletivos ligados ao circuito Fora do Eixo. Dubber: “Já ouvimos coisas incríveis sobre o Brasil, a respeito de como os coletivos se organizaram, a rede que se criou. Isso é único, nunca ouvi falar de nada parecido. Estamos tirando muitas lições daqui”. A postura de aprendizado constante, por sinal, é uma marca da Unconvention. “É prova de uma teoria que eu tenho há muito tempo”, diz Dubber. “Quando você tenta ensinar algo a alguém, acaba aprendendo muito mais, especialmente com grupos. O festival também é uma plataforma educativa.” E as conexões estão acontecendo: a Unconvention avalia as experiências colhidas pelo mundo e quer unir os coletivos. “Algumas lições daqui seriam muito interessantes de levar para a Co-

dentro da programação do XVI Goiânia Noise, eles gravaram e produziram um disco com bandas locais, que está disponível em um site. Tudo foi feito em um dia, em um processo colaborativo que envolveu dezenas de pessoas. “Em

lômbia”, diz Ruth. “Voltaremos lá em maio do ano que vem e vamos tentar unir esses coletivos.” “E algumas coisas que aprendemos na Índia talvez sejam úteis por aqui”, emenda Dubber. Com olhos atentos à importância dos alinhamentos periféricos no mundo contemporâneo, ele conclui: “Não pensamos de forma simplória, em simplesmente levar bandas para o Reino Unido, porque não é lá que esse tipo de ação se encontra. Queremos fazer conexões entre diferentes partes do globo.” Assim, a Unconvention se posiciona para exercer um papel fundamental, que pode fortalecer em escala mundial iniciativas transformadoras, que venham a resgatar algo quase perdido na música de mercado. Como bem define o próprio Dubber: “a capacidade de fazer da música uma força culturalmente significativa para realizar coisas boas”.

2SAIBA MAIS unconventionhub.org 85


POR MENTALOZZZ, COM COLABORAÇÃO DO DR. JACOB PINHEIRO GOLDBERG

Coisas que Gostamos de Guardar

FOTO POR FERNANDO MARTINS FERREIRA

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Depois dos relançamentos de raridades em CDs na década de 90, a onda agora são os relançamentos em vinil 180 gramas. Até a Polysom voltou, e é só procurar e poder pagar para ter um Tábua de Esmeralda cabaço, cheiroso e gordinho.

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REDERICO CESQUIM é consultor de aeromodelismo (tinha uma turbina no quintal da casa quando eu visitei o cara) e também colecionador de LPs, mas está aqui na Seleta porque é um dos responsáveis pelos relançamentos de títulos raríssimos da música brasileira pelo selo Shadoks, da Alemanha. Esses relançamentos fazem a alegria de guardadores de LPs, limitados a 500 cópias numeradas a mão pelo próprio alemão, que mora em uma ilha na Europa e é o idealizador da Shadoks. Na falta do original, esses discos são a única maneira de desfrutar da audição analógica de músicas que só estavam disponíveis em versão digital.

Você entrou nessa pela grana ou pela música? O meu interesse pelo LP Vida e Obra de Johnny McCartney – disco de 1971 do Leno, da dupla Leno e Lilian, que fazia sucesso na Jovem Guarda – foi responsável por tudo. Esse disco é uma lenda, é bem rock and roll e tem a participação do Raul Seixas, mas foi censurado. A CBS não o lançou, saiu apenas um EP bem raro, com quatro músicas, do qual eu só consegui um exemplar recentemente. Você conhecia o disco ou só queria porque é raro? Eu conhecia porque, na década de 90, alguém achou esses tapes e lançou em CD com uma tiragem de mil cópias, e eu tive a sorte de ter uma em mãos. Você gostou tanto que resolveu lançar em vinil? Na época eu estava trocando meus três LPs psicodélicos originais do Ronnie Von por uma prensagem em 180 gramas que saiu na Europa, e na troca com um gringo mandei de presente uma cópia do CD do Leno. O gringo ficou louco, achou muito bom, e pediu pra eu fazer contato com o Leno pra tentar reeditar lá fora em CD. Achei o cara através de uma amiga no Orkut, e ele topou, então fomos atrás das fitas masters e demais burocracias e lançamos em CD, mas o LP já está por vir.

Como você virou o braço direito da Shadoks aqui no Brasil? Escrevi um e-mail pra saber sobre o relançamento anunciado por eles do LP Por Favor Sucesso, do Liverpool, e o dono me respondeu que não faria mais relançamentos brasileiros, “porque lancei o raríssimo álbum duplo Paêbirú, creditado a Lula Cortês e Zé Ramalho, e fui processado, quase quebrei e perdi o interesse”, então eu falei pra ele que faria a ponte com os artistas, e que, como a gravadora deles acabou, seria mais fácil. Ele topou e nós lançamos. Qual o lançamento mais recente? Acabamos de relançar o LP do Bando. As cópias, limitadas a 500, já estão por ai. Fiz também uma entrevista com o Bando, que está no encarte.

parecer do dr. jacob pinheiro goldberg O resgate do passado é uma das manifestações mais importantes do psiquismo humano. Quando se vive um processo de amnésia, pessoal ou coletivo, como no caso da música, é como se desperdiçássemos um patrimônio precioso para o presente e para o futuro. A preocupação de recuperar esse acervo é um contributo comunitário social, mas também manifestação de maturidade. Somente o neurótico acredita que pode enterrar o passado. Apesar de as pessoas usarem a expressão “virei a página”, nossa vida não é um livro, é uma dinâmica de carne, sangue, osso e memória.

Por que você não lança aqui no Brasil? Aqui as gravadoras nem respondem aos meus pedidos. Ninguém sabe resolver o emaranhado jurídico.

2SAIBA MAIS recordcollector.com.br 87


+QUADRINHOS

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RAFAEL CAMPOS

4RAFAELCAMPOSROCHA.BLOGSPOT.COM


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NIK NEVES

4INUTILPROJECT.COM


Verdadeiros mestres em seus respectivos gêneros, Otis Redding e Jay-Z são donos de discografias capazes de fazer inveja à qualquer lenda da música, de qualquer época, desde os remotos tempos dos gramofones. Ambos souberam, como poucos, inserir fragmentos das próprias almas em seus trabalhos. The Blueprint – cuja tradução é “a impressão digital” – representa o auge da criação do rapper de NYC, e é sem dúvida o mais pessoal de seus discos. Otis Blue: Otis Redding Sings Soul também é – discutivelmente – o principal LP da carreira do formidável Otis Redding. O “blue”aqui simboliza certa tristeza, a tal melancolia que assola gênios em seus ofícios e propicia a criação de obras-primas como esta pérola da soul music. Jay-Z e Otis Redding fazem uso de suas experiências pessoais, suas influências diretas (Jay-Z reverenciando o legendário Notorious B.I.G., e Otis homenageando o mitológico Sam Cooke) e do poder de síntese de cada um para contar suas respectivas histórias. Os resultados são autênticos e cativantes, em agressivos, marcantes e irreversíveis tons de azul.

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Otis Redding – Otis Soul . Otis Redding Sings Soul (STAX, 1965)

Gravado no distante ano de 1965, Otis Soul: Otis Redding Sings Soul é a obra-prima da carreira de um dos maiores fenômenos da musica soul de todos os tempos. O terceiro álbum de estúdio de Otis Redding é também seu trabalho mais autoral: quase um quarto do álbum é dedicado a versões de clássicos do prolífico Sam Cooke – assumidamente a maior influência de OR. Confira, por exemplo, a belíssima “A Change Is Gonna Come” e tire suas próprias conclusões. Sua versão para a clássica “(I Can’t Get No) Satisfaction”, dos Rolling Stones, originalmente composta por Mick Jagger e Keith Richards como um tributo ao próprio Otis, é um dos momentos sublimes do LP. Outra faixa que também ganha vida própria na voz de Otis é a bonita “My Girl”, dos Temptations. A versão original de “Respect”, famosa na voz de Aretha Franklin, é cria do mestre, mas o grande destaque do disco fica por conta da lindíssima “I’ve Been Loving You Too Long”, uma das mais tristes canções do gênero desde seu surgimento. Triste como o destino de Otis Redding, que morreria pouco tempo depois, num trágico acidente aéreo que tirou ainda as vidas dos músicos da formação original dos Bar-Kays, sua banda de apoio. Um fim prematuro e melancólico para um dos maiores fenômenos da musica soul, um artista cujo legado influencia artistas de diversos gêneros há mais de quatro décadas. Otis Blue!


Jay-Z . The Blueprint (ROC-A-FELLA, 2001)

POR PEDRO PINHEL

OBRAS BLUE

MUSIC

PRIMAS

Trinta e seis anos após o lançamento de Otis Soul: Otis Redding Sings Soul, outro fenômeno da música pop apresentava suas cartas ao mundo. O segundo LP do rapper Jay-Z evidenciou que o hip-hop de Nova York (e norte-americano) tinha um novo rei, e o trono de Notorious B.I.G. seria finalmente ocupado por um hustler à sua altura. Cinco anos após a ótima estreia com o hoje clássico Reasonable Doubt, o discurso antes pretensioso do rapper parecia enfim começar a fazer sentido. As produções então inovadoras e explosivas dos jovens Kanye West e Just Blaze foram fundamentais para que discurso e música se completassem, e a ausência das chatas participações especiais que costumam inflar discos de rap possibilitou a concepção de um disco completamente autoral, no qual Jay-Z discorre sobre seus temas preferidos: a juventude nos projects do Brooklyn, os tempos de trafica, a superioridade no mic, o talento para a pegação, relacionamentos passados e o gosto por hábitos sofisticados. O LP é uma espécie de raio-X da personalidade do HOV, e algumas das faixas do disco – o mais soul, sem dúvida, da discografia de Jay-Z – são clássicos instantâneos: “Izzo (H.O.V.A.)”, com o hipnótico sample dos Jackson 5, “Girls, Girls, Girls”, incorporando o folclórico bragadoccio do MC quando o assunto são as menininhas; “Heart of The City”, que conta com os vocais de Mary J. Blige no refrão, e a preferida do autor destas linhas, a grudenta “Song Cry”, em que Jay associa os tempos de novo rico a uma possível incompatibilidade amorosa com a gata das antigas – pô, quem aí nunca ficou milionário e teve crises com a ex em função disso logo depois? The Blueprint retratou a persona do rapper de forma nua e crua, e os frutos são colhidos até os dias atuais – Jay-Z hoje é unanimidade quando o assunto é hip-hop, pincelando criativos tons de azul em um gênero que tem se acinzentado a cada ano que passa.

2PEDRO PINHEL FAZ O RADIOLA URBANA E O BLOG ORIGINAL PINHEIROS STYLE. 93


+ESPECIAL CARA, QUE ANO!

MELHORES DE 2010

2010 deve ter tido mais shows no Brasil do que a década de 90 inteira, teve Copa do Mundo e eleições. Sem falar nos discos, quadrinhos, games, livros, séries, filmes e nas exposições incríveis aqui e no mundo. Será um ano para guardar na memória, mas como a gente sabe que a memória às vezes derrapa na curva, vamos começar a treinar ela desde já, nas listas de melhores do ano dos colaboradores da Soma. 1

2MELHORES GAMES . RAFAEL ARGEMON (JORNALISTA) Limbo Call of Duty: Black Ops Red Dead Redemption Mario Galaxy 2 Super Meat Boy

2MELHORES . TIAGO NICOLAS (CHAKA HOTNIGHTZ, COLUNISTA SOMA) Mais um elo dessa corrente linda, eleita presidente Valdir, meu sobrinho Cee-Lo Green - Lady Killer Ilha do Medo Muro de Berlim

2MELHORES . RAQUEL SETZ (JORNALISTA) Melhor disco post-mortem – Pretobrás II e III, de inéditas de Itamar Assumpção Melhor disco de banda que ressuscitou – My Father Will Guide Me up a Rope to the Sky, do Swans Melhor jeito de rir da vida – Tudo Pode Dar Certo, do Woody Allen Melhor evento bizarro – Festival de viking metal Thorhammerfest Melhor sensação – ouvir “Tonight Tonight” ao vivo no meu aniversário

2MELHORES . NIK NEVES (QUADRINISTA E COLUNISTA DA SOMA) Quadrinhos . Wilson, Daniel Clowes Mais quadrinhos . X’ed Out, Charles Burns Música . “Topp Stemning På Lokal Bar”, Casiokids Esporte . Internacional bi-campeão da Libertadores Disco . Congratulations . MGMT

2MELHORES PRECIOSIDADES TRAZIDAS PELO CARTEIRO. GILBERTO CUSTÓDIO JR. (BLOG LAZER GUIDED MELODIES) Pretend (We’re In Love), Amanda Applewood (Too Young To Die – 7”) Weathercraft, Jim Woodring (Fantagraphics – Graphic novel) Gemini, Wild Nothing (Captured Tracks – LP) Innerspeaker, Tame Impala (Modular Recordings – LP duplo) Wilson, Daniel Clowes (Fantagraphics – Graphic novel)

2MELHORES . MARCOS NOGUEIRA (JORNALISTA) Paul McCartney e sua missa no Morumbi – melhor show do ano e da vida de muita gente Michael Stipe fazendo pose em uma caçamba de lixo em São Paulo Final inédita da Copa do Mundo de futebol Brothers, do Black Keys – melhor disco do ano e da vida de muita gente Life, autobiografia de Keith Richards contando o quanto Mick Jagger se tornou chato nas últimas décadas

2MELHORES . HELENA SASSERON (CHICKS IN CHARGE) Broken Social Scene @ Paramount Theater (Seattle, WA) Tropa de Elite 2 – Chocante e corajoso! Guided by Voices @ ShowBox (Seattle, WA) Arcade Fire, The Suburbs – Lindo! Shows Indie no Brasil – Até que enfim!

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4FOTO IGO ESTRELA

2MELHORES DECLARAÇÕES SEM NOÇÃO DE 2010 . ALEXANDRE BOIDE (SOMA) “Tenho força suficiente para quebrar a perna do Robben” – Felipe Melo, após o jogo contra a Holanda “Bateu na cabeça dele e fez até barulho. Um negócio pesado. Devia ter uns dois quilos.” – Indio da Costa, sobre suposto objeto jogado na cabeça de José Serra. “Ela é a favor de matar as criancinhas.” – Mônica Serra, sobre Dilma Rousseff “Faça um favor a SP: Mate um nordestino afogado.” – Mayara Petruso, após o resultado das eleições presidenciais “Vou xingar no Twitter hoje, muito. Sério.” – Membro não-identificado da Família Restart

2MELHORES . DAIGO OLIVA (FOTÓGRAFO DO G1) Os discos de Masshysteri, Wavves, Red Dons, Young Offenders e Holger Suarez e Loco Abreu em Uruguai x Gana Gordon Matta-Clark no MAM Morre Jay Reatard, morre Saramago. Zé Alencar continua vivo. Menina escroque que perdeu o emprego por falar mal de nordestinos no Twitter.

2MELHORES DISCOS . DANIEL TAMENPI (DJ E JORNALISTA) The Roots . How I Got Over Erykah Badu . The New Amerykah Pt. 2 + Show do ano. Blundetto . Bad Bad Things Gorillaz . Plastic Beach Gonjasufi . A Sufi And A Killer

2MELHORES . RODOLFO HERRERA (SOMA) Mensagem do ano . Casem, eu recomendo. Show . Les Savy Fav, Nouveau Casino, Paris Show . Catatau e o Instrumental, Espaço Soma Jogo . Red Dead Redemption Livro . Less and More: The Design Ethos of Dieter Rams

4MELHORES . MARINA MANTOVANINI (SOMA) Escutar incessantemente o disco Brothers, do Black Keys O maior clichê do ano e o mais foda também: Paul McCartney, Up and Coming Tour Dobradinha Pharoah Sanders e Ornette Coleman no Sesc Pinheiros. Exposição “Kurosawa – Criando Imagens para Cinema”, no Tomie Ohtake Entrevistar o Mark Lanegan e, de quebra, assistir à passagem de som

4MELHORES / GASTRONOMIA . NATALIA LUCKI (SOMA) Melhor larica . Ritz Burguer com bolinho de arroz Melhor lanchinho . Coxinha do Velloso Melhor bebida . Mate com leite do Rei do Mate da Avenida São João Melhor fejuca . Feijoada da Bia Melhor sobremesa . Cheesecake da Z-Deli

2EXPOSIÇÕES NO ESPAÇO SOMA EM 2010 . JAY, FODIDO E XEROCADO, FÊFE TALAVERA, ENTRE (OUTROS)

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+ESPECIAL MELHORES

DE 2010

4MELHORES . PEDRO PINHEL (RADIOLA URBANA) Show . Erykah Badu, para aquela meia dúzia que não chorou com o Macca. Disco . John Legend & The Roots . Wake Up! . Disco do ano. ?uestlove rules. Filme . Maradona . Emir Kusturica . Maradona louco, Kusturica xarope. Uruguai na Copa do Mundo . Latinos bem representados. LeBron James no Miami Heat . Campeões da NBA? Possível fiasco?

4MELHORES DISCOS . FERNANDO MARTINS (SOMA) Ariel Pink`s Haunted Graffiti . Before Today The Smiles and Frowns . The Smiles and Frowns Ty Segall . Melted Hypo . Coco Douleur The Walkmen . Lisbon

4MELHORES . EDU MONTEIRO (FOTONAUTA) Sophie Calle com a exposição “Cuide de Você”, no MAM-RJ Georges Rousse ao vivo no Paraty em Foco Gordon Matta . Clark no Paço Imperial Luis Gonzales Palma no II Fórum Latino-americano de Fotografia de São Paulo Renato Gaúcho como técnico do Grêmio

4MELHORES . ARTHUR DANTAS (MTV PÚBLICA) Quadrinhos . Caeto - Memória de Elefante Disco 1 . Davi Bernardo - Nova Fronteira Disco 2 . Satanique Samba Trio - Bad Trip Simulator 2 Show . Lançamento de Emicídio, com Emicida e convidados, no Estúdio Emme (SP) Filme . Rodrigo Siqueira - Terra Deu Terra Come Política . 2010 foi Dilmais!

4MELHORES SHOWS . AMAURI STAMBOROSKI JR. (JORNALISTA) Show que ninguém viu . Bonifrate na Casa do Mancha Melhor show surpresa . Lou Barlow no Espaço Soma Quesito “transcendência” . Ornette Coleman no Sesc Pinheiros Melhor banda de nostalgia . Pavement Lançamento de disco mais emocionante . Emicida no Estúdio Emme

2MELHORES . ANDRÉ MALERONKA (VICE) Política no Twitter Tatuagens caseiras Buni & the Lucky Bastards (eternidade) Meus vasos de plantas dando certo Drinques improvisados

2MELHORES . MATEUS POTUMATI (SOMA) Discos . Gonjasufi, Kanye, Ariel Pink, Jay-Z, Deerhunter. Shows vistos . Dinosaur Jr, Pavement e Paul McCartney em SP, Jay-Z e Public Enemy em NY. Shows perdidos . Ornette Coleman, Pharoah Sanders, Massive Attack, Mummies, Emicida no Emme. Quadrinhos . Breakdowns, Memória de Elefante, Ranxerox, Jimmy Corrigan. Política . Ter ajudado a eleger a linda da Dilma.

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2EXPOSIÇÕES NO ESPAÇO SOMA EM 2010 . THOMAS DOZOL, RIMON, BILLY ARGEL, FÁBIO ZIMBRES

2MELHORES ARTISTAS FEMININAS . SEAN EDGAR (JORNALISTA, PASTE MAGAZINE) Sharon Van Etten . A estrela indie do Brooklyn arrebentou mais corações do que uma franquia de fast food. Robyn . A rainha europeia da disco music não sairá do trono tão cedo. Janelle Monae . Esta diva em gestação fundiu funk, rock e hip-hop para criar a festa bêbada perfeita. Holly Miranda . Com os amigos do TV On The Radio, criou um disco pop temperamental e rebuscado. Kelli Scarr . A cantora favorita do Moby mostrou a que veio em sua estreia intimista e folky. 2MELHORES COISAS NA TV EM 2010 . JARMESON LIMA (COQUETEL MOLOTOV) The Walking Dead (Fox) Afinal, o que querem as mulheres (Globo) Parks and Recreation (Sony) Glee (Fox) Central da Copa (Globo)

2MELHORES . LUCIANO MATOS (EL CABONG) Os ótimos discos de estreia de Tulipa, Baiana System, Karina Buhr, Do Amor, Marcelo Jeneci e Garotas Suecas. A profusão de bons shows internacionais no Brasil A música baiana pós-axé A circulaçao de artistas “independentes” se concretizando pelo país A eleição de Dilma

2MELHORES . TIAGO MORAES (SOMA) Show 1 . Low Barlow no Espaço Soma Show 2 . Ray Barbee no Espaço Soma Show 3 . Virada Hip-Hop com A Filial, Akira Presidente, Rincon Sapiência, Stefanie, Kamau e Akin Exposição 1 . Mostra Transfer em São Paulo Exposição 2 . Individual de Carlos Dias na Choque Cultural

2MELHORES . JONAS PACHECO (SOMA) Black Mountain com Wilderness Heart Satanique Samba Trio aos 45 do segundo tempo com Bad Trip Simulator #2 Duas vezes Dinosaur Jr no Comitê Club Voltar a ter bicho de estimação em casa Uruguai na Copa do Mundo

2FUNERAIS QUE ABALARIAM O BRASIL . GUILHERME BARELLA (NEU) Roberto Carlos Lula Sílvio Santos Pelé Didi Mocó

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+REVIEWS

1DISCOS

2ITAMAR ASSUMPÇÃO

2THE NATIONAL

CAIXA PRETA Selo SESC 2010

HIGH VIOLET Lab 344 2010

Itamar Assumpção é um desses artistas de que todo mundo já ouviu falar, mas pouca gente ouviu de fato. Além de não tocar em rádio ou TV, achar seus discos é uma tarefa difícil. Por isso, o lançamento de sua Caixa Preta (todos os discos de carreira e mais dois de inéditas, produzidos a partir de guias que ele fez antes de morrer) é um marco. Por um preço acessível, agora é possível conhecer toda a trajetória do artista. Beleléu Leléu Eu, estreia com a Banda Isca de Polícia, apresenta o personagem Benedito João dos Santos Silva Beleléu, um malandro paulistano que trocou a malemolência pela fúria. Às Próprias Custas S.A., gravado ao vivo, é seu trabalho mais difícil, cheio de silêncios, sussurros e minimalismos. Em Sampa Midnight, ele aposentou Beleléu, enxugou a Isca e focou nas letras. Intercontinental! Quem Diria! Era Só o que Faltava!!! foi o primeiro trabalho por uma grande gravadora, a Continental, com canções cativantes como “Sutil”, “Adeus Pantanal” e o sambão “Maremoto”. No começo dos anos 90, Itamar desfez a Isca e montou a Orquídeas do Brasil, formada apenas por mulheres. Com elas, gravou a trilogia Bicho de 7 Cabeças, trabalho delicado tanto musicalmente como nas letras, várias em parceria com Alice Ruiz. Em 1995, misturou Isca com Orquídeas e gravou Ataulfo Alves por Itamar Assumpção – Pra Sempre Agora, que desconstrói o samba do compositor mineiro. Pretobrás foi seu último trabalho em vida, com arranjos repetitivos, circulares. Foi essa a direção seguida no ótimo disco que gravou com o percussionista Naná Vasconcelos (Isso Vai Dar Repercussão) e nas composições que integram os discos de inéditas Pretobrás II e III. No volume II, produzido por Beto Villares, o trabalho de estúdio salta aos ouvidos: programações, samples, recortes e edições, em uma estrutura de quebra-cabeça. Já o terceiro ficou na mão de Paulo Lepetit, que, com músicos da Isca, criou um disco cheio de arranjos funkeados. Se alguém ainda duvidava da habilidade de Itamar como letrista, basta ouvir “Je T’aime Mais que o Jerome”, “Que Tal o Impossível” e a profética “Anteontem (Melô da UTI)”, composta quando ele já estava com câncer. 3POR RAQUEL SETZ.

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O National realizou a proeza de transformar a ansiedade e a paranoia dos primeiros anos do novo século em uma carreira bem-sucedida – ajudados, em grande medida, pelas letras quase mórbidas e os vocais cavernosos do vocalista Matt Berninger. High Violet, recém-lançado no Brasil pela Lab 344, é um disco mais irregular que o excelente Boxer, seu predecessor de 2008, mas isso não quer dizer que lhe faltem bons momentos. O coro de vozes espectrais de “Afraid of Everyone” e as cordas etéreas na abertura de “Vanderlyle Crybaby Geeks” mostram o grupo incorporando mais elementos sonoros à sua cornucópia de tristeza. A mixagem do disco parece mais suja e obscura que os trabalhos anteriores da banda, com a voz de Berninger se enterrando em diversos momentos ao longo do disco. A climática “Runaway” é um dos destaques, ao lado de “Bloodbuzz Ohio” e “Conversation 16” (faixas que ganham muito com a bateria precisa de Bryan Devendorf). Ao final, High Violet é um retrato particular, ao mesmo tempo sóbrio e deprimente, da vida de classe média nas grandes cidades dos anos 00 – e transformar a “História da Vida Privada do Ocidente” em música é um feito que já vale todos os louros que o National vier a ganhar. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.


2GAROTAS 2WOIMA COLLECTIVE TEZETA Kindred Spirits 2010 Woima Collective é o novo e sensacional grupo do alemão Johannes Schleiermacher, sax tenor do The Poets Of Rhythm. O projeto surgiu depois de excursões para o Marrocos, da qual voltou com pencas de discos, fitas e ideias extraídas de conversas com Mulatu Astatke sobre música africana. Com tudo isso na cabeça, ele se juntou com mais dez amigos que dividiam a mesma paixão pela afromusicalidade e formou a banda com nome inspirado em um ritmo tribal da Guiné. Tezeta é o resultado desse encontro. Em três dias de ensaio e dois de gravações ao vivo no Lovelite, misto de club e estúdio em Berlin, mesmo local onde gravam Jimi Tenor e Afrobeat Academy, o coletivo cravou doze faixas certeiras, que nos levam a viagens intensas sem sair de casa. A banda conta com uma sessão rítmica de respeito, teclado, guitarra, baixo e um combo de cinco metais que incorporam diferentes estéticas à música africana. Na faixa “No Way But Still Walking”, por exemplo, o dub e seus efeitos alucinógenos visitam a Etiópia; em “Marz”, a faixa de abertura, encontra-se com o groove do funk. Uma verdadeira celebração à beleza hipnótica dos ritmos e das escalas africanas. 3POR DANIEL TAMENPI.

SUECAS ESCALDANTE BANDA American Dust 2010 Você poderia esbarrar no Garotas Suecas durante os anos de ouro do funk oitentista, na sala de estar de Rita Lee nos anos 1970 ou até no meio de uma conversa de bar com Tim Maia e Roberto Carlos – de fato, a banda não parece pertencer a 2010. Mais do que um trabalho autoral, Escaldante Banda é uma ode saudosista à época mais rica da música brasileira. O naipe de metais, que já começa efervescente – ou escaldante, melhor dizendo – na abre-alas “Tudo Bem”, dá o tom requintado (e um pouco requentado, é verdade) que marca grande parte do disco. Os vocais graves de Guilherme Saldanha, que já se sobressaem naturalmente, acabam atropelando o instrumental em alguns momentos, como em “Ninguém Mandou”, carta aberta e frustrada sobre a rotina das grandes cidades, ou “Ela”, que alterna entre carência e paixão. Na verdade, o sexteto paulista se sai melhor quando se propõe a fugir da zona de conforto proporcionada pelas principais faixas do disco. Deixando o piano de lado, Irina Bertolucci assume os versos de “Sunday Night Blues” com uma rouquidão quase sexy, acompanhando o momento em que MPB e Blues trocam carinhos. Apesar de ter a intenção de deixar uma mensagem de boa-noite, a lullaby acaba transmitindo uma outra impressão: a de um trabalho bem feito, mas que poderia ser melhor. 3POR ALEX CORREA.

2THE GREENHORNES “****” Third Man Records 2010 Por trás de um grande homem existe uma grande banda. Pode não funcionar exatamente como regra, mas no caso de Jack Lawrence e Patrick Keeler se aplica facilmente. A dupla é responsável pela cozinha do Raconteurs, projeto bem-sucedido de Jack White, que hoje passa por um pequeno hiato. Lawrence e Keeler aproveitaram a folga para retomar sua banda original, o Greenhornes – empunhando baixo e bateria ao lado dos companheiros Craig Fox (voz e guitarra), Brian Olive (guitarra) e Jared McKinney (teclados). Mesmo tendo ficado um bom tempo sem lançar disco (foram oito anos desde o anterior, Dual Mono), o quarto trabalho dos Greenhornes, apelidado de “four stars”, mantém a toada sessentista que acompanha a carreira do grupo, que atingiu seu auge em 2005, quando, ao lado de Marvin Gaye e Mulatu Astatke, emplacou duas belas canções na trilha sonora de Flores Partidas, de Jim Jarmusch. “Saying Goodbye”, a faixa inicial, deseja boas-vindas com sua veia pop e seu refrão simples. Na seguinte, “Underestimator”, o Woodstock moderno é montado para que o ouvinte já esteja completamente ambientado quando a bateria e os teclados de “Better Off Without It” aquecerem seus corações. A partir daí é um petardo atrás do outro – intercalados com canções mais tranquilas, como “Cave Drawings” –, que remetem a Gun for You, disco de estreia do quinteto, como “Need Your Love”. Com vocais atraentes, guitarras e teclados espertos e a tal cozinha tão especial, o Greenhornes instiga novas ouvidas, sempre apresentando influências saborosas de identificar ao longo dos seus 35 minutos. 3POR MARCOS DIEGO NOGUEIRA. 99


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2HEDZOLEH SOUNDZ HEDZOLEH Soundway Records 2OFEGE TRY AND LOVE Academy LPs 2DICK KHOZA CHAPITA Matsuli Music 2010 De alguns anos para cá, a música africana vem sendo objeto de intensa pesquisa. A quantidade de coletâneas e relançamentos dedicados ao continente é impressionante, e o que mais chama a atenção é a qualidade e a originalidade de gravações registradas com equipamentos precários, que às vezes nem chegaram a ser lançadas na época. Em 2010, três discos se destacaram; o selo Academy LPs relançou o psicodélico Try And Love, gravado em 1973 pelos então adolescentes do Ogefe e praticamente desconhecido fora da Nigéria. Com oito faixas que fundem rock ocidental hippie a ritmos africanos, o disco tornou-se um clássico do afro-rock na época. Ótimas harmonias com toques psicodélicos, em que se destacam a guitarra virtuosa da dupla Berkley Jones e Felix Inneh e as levadas quebradas do baterista M-Ike Meme. As letras misturam o inglês com línguas locais e são cantadas por toda a banda, com timbre vocal adolescente. Outro destaque foi o lançamento do álbum da banda Hedzoleh Soundz, pioneira na mistura do highlife (ritmo tradicional de Gana) com estilos ocidentais como rock, jazz e funk. Na década de 70, o grupo era residente do Club Napoleon, onde conheceu o trompetista Hugh Masekela, que os contratou como banda de apoio e gravou com eles dois álbuns em parceria. A banda viajou o mundo, mas nunca conseguiu lançar um trabalho próprio. Hedzoleh foi gravado no começo da década de 70 e traz parcerias com Masekela e composições do grupo. Os sons são encharcados de batuques tribais, tendo como base as tradições rítmicas de Gana, juntando a instrumentação tradicional africana com instrumentos de base ocidental. O último grande destaque foi o recente lançamento de um álbum perdido do lendário baterista, arranjador e compositor de afrojazz Dick Khoza. Chapita foi gravado em 1976, com a banda do Pelicano, tradicional clube de música em Soweto. O encontro foi idealizado e financiado por Rashid Vally, produtor e empresário responsável por trabalhos seminais de Abdullah Ibrahim e outros grandes nomes sul-africanos. São cinco faixas longas e hipnóticas, que combinam jazz e afro-funk, rendendo trilhas com grooves e breaks sensacionais. Um prato cheio para produtores sedentos por samples ainda desconhecidos. 3POR DANIEL TAMENPI.

100

2HOLGER SUNGA Trama 2010 Transformar o blasé paulistano em festa pode ser uma tarefa das mais ingratas. Engajado em limpar um pouco do ranço dos modernos locais, o Holger tenta trazer um pouco de brisa praiana aos ex-enfumaçados salões noturnos da capital paulista com seu álbum de estreia, Sunga. Alinhado com a neo-world music de grupos como o Vampire Weekend, o quinteto faz axé para descolados, com leve sabor de Maresias indie. De certa forma, é mais uma guinada musical na carreira do grupo: em outras encarnações, já foi post-rock (quando alguns dos integrantes faziam parte da banda projeto:) e folk (sob a alcunha de That’s All Folks). Em 2009, lançou seu primeiro EP, Green Valley, com seis faixas influenciadas pelo indie lo-fi dos anos 90. Assim, a correção de rota em direção ao “Atlântico negro” que une África e Caribe não é uma surpresa, e o Holger parece resolver relativamente bem o desafio, especialmente em momentos menos roqueiros como “Beaver”. Ao lado do afro pop, a outra grande influência do disco são os norte-americanos do Passion Pit – os falsetes e os synths do grupo de Massachusetts convergem macios em “Toothless Turtles”, melhor música do disco. Depois de superar o desafio de organizar o caos que por vezes toma conta dos shows da banda, resta agora a Sunga um novo obstáculo: provar que os amores de verão atravessam bem seu primeiro inverno. 3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.


D E T E R Ç A A S E X TA , D A S 1 2 H À S 2 0 H . S Á B A D O D A S 1 3 H À S 1 9 H RUA FIDALGA, 98

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APOIO:

DETALHE DA OBRA DE FABIANO “LOKINHO”

APRESENTA:

VOLCOM FEATURED ARTIST

APO FOUSEK, PACOLLI, FABIANO LOKINHO, PJOTA, JIM PHILLIPS, TODD BRATUD, MIKE ZEPEDA, HOVIN WANG, DEVON GREEN E OUTROS.

DE 3 A 22 DE DEZEMB RO

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2SATANIQUE SAMBA TRIO BAD TRIP SIMULATOR #2 Independente 2010 Satanique Samba Trio: a fronteira final e inexplorada da música brasileira, criando o melhor da música de invenção desde 2002. Não conhece os álbuns Misantropicália e Sangrou? Ok, Bad Trip Simulator #2 é o ponto ideal para ouvir o trabalho do SS3 (como é conhecido pelos iniciados), já que é o melhor e mais bem acabado trabalho do grupo de Brasília. Partindo de premissas eruditas de compositores como Anton Webern, o baixista Munha (compositor, arranjador e um dos mais subvalorizados inventores brasileiros) vira do avesso o samba, incorporando dissonância, distorção e ritmos compostos. Alguém pode se lembrar de Tom Zé e seu Dança Êh Sá de alguns anos atrás: pois o SS3 trabalhou com ambições muito semelhantes antes dele e com melhores resultados. A música do SS3 é convictamente desconfortável, hermética, um universo em si mesmo. Temas curtos, com andamentos diversos e rápidos, dão lampejos de balanço e melodia, elementos caros ao samba, para depois miná-los um a um, criando uma atmosfera em que não há alívio para o ouvinte em nenhum momento, colocando a contemplação passiva como um norte inviável. Nada na música do quinteto (apesar do Trio do nome) lembra convenção: o grupo coloca em suspenso um momento da música e possibilita uma estética que dialoga ativamente com o passado e não encontra pares no presente. É de se aguardar que algum estrangeiro mais ousado, tal qual David Byrne em relação a Tom Zé, descubra o grupo e dê o reconhecimento a um trabalho tão vibrante quanto o do SS3, para que ele enfim conquiste alguma audiência local.

3POR VELOT WAMBA. 102

2VAMPIRE WEEKEND CONTRA Lab 344 2010 O segundo álbum do quarteto americano Vampire Weekend, lançado no Brasil em novembro pela Lab 344 (às vésperas de uma turnê da banda pelo país) retoma a trilha percorrida pelo grupo no seu disco de estreia, Vampire Weekend, de 2008. As influências africanas – sempre filtradas pelo escopo da world music – permanecem importantes, mas o novo disco mostra que as lições aprendidas com luminares do art rock oitentista como David Byrne e Peter Gabriel vão além da pilhagem cultural. Contra é um disco de uma época em que ainda fazia sentido pensar em álbuns, obras autocontidas e autorreferenciadas. Menos abrasivo que seu predecessor, todas as faixas do disco ganham cuidado especial, sempre com a intenção de “alta arte”, ou pelo menos o limite elegante que se assume para a arte no rock mais careta. Não são só os detalhes, como os violinos fechando a ótima “Giving Up The Gun” ou o vibrafone e o cravo de “Taxi Cab”: a atmosfera diletante do disco segue até em seus momentos mais “globais”, como “Diplomat’s Son”. Mesmo as faixas mais animadas, como “Cousins”, “Holiday” e “California English” vão além das estruturas mais simples de hits do primeiro disco, como “Mansard Roof”. Compensando o risco com hype (o disco ficou em primeiro lugar na Billboard), o Vampire Weekend entrou para um dos clubes mais selecionados do novo rock: o daqueles que sobrevivem ao primeiro disco sem se repetir.

3POR AMAURI STAMBOROSKI JR.

2PARTEUM A AUTORIDADE DA RAZÃO (EP) Independente 2010 Que o MC/produtor Parteum é um cara ambicioso ninguém duvida. Seja em sua carreira solo ou com o grupo Mzuri Sana, a “normalidade” e as tendências nunca foram o alvo de suas ambições musicais. Ponto fora da curva do hip-hop nacional, Parteum alcançou um novo patamar em sua trajetória com o lançamento do EP A Autoridade Da Razão, recriando alguns temas antigos, como “A Força da Sugestão”, e apresentando alguns trabalhos inéditos, como a canção que dá nome ao EP, uma de suas melhores letras desde sempre. Inicialmente as letras de Parteum eram mais confusas do que profundas, o que pode ser um sinal claro de falta de assunto. Não é o caso aqui, certamente: este novo trabalho ganha vulto ao finalmente tornar-se, de fato, profundo e fartamente comunicativo, sem abandonar as produções ricamente lapidadas que lhe valeram a aura de produtor predileto dos produtores. Com o aumento de seu poder de comunicação – artigo escasso na seara dos MCs que se aventuram por caminhos mais tortuosos e optam conscientemente por criar uma música de amplitude e não de massas – o MC bota seu trabalho entre o que de melhor foi produzido em 2010 e cria expectativa para seu próximo álbum, previsto para 2011. Destaque para a futurística faixa “O Interior”, encerrada com uma fala do avô do MC que explica qual a proposta estética evidente de Parteum: conhecer a tradição e criar o espaço necessário para a criação de um rap verdadeiramente progressista. A Autoridade Da Razão foi gravado em três estúdios distintos e masterizado por engenheiros do estúdio Sterling Sound, em Nova York.

3POR VELOT WAMBA.


1LIVROS

2RAFAEL MORALEZ E 2CAETO MEMÓRIA DE ELEFANTE Quadrinhos na Cia 2010 Deve ser difícil fazer algo assim. Não exatamente pelo lado do desenho, arte em que o quadrinista paulista Caeto tem talento e linguagem próprias, e que explora melhor a cada novo trabalho – mas na qual, seja dito, ainda tem chão a percorrer se o objetivo é dialogar com virtuoses como o francês David B, o espanhol Jaime Martin ou R. Crumb. Porém, se na arte as apostas de Caeto já são altas, elas atingem níveis astronômicos no que diz respeito ao tema. Nesta estreia em livro, o autor pôs na mesa tudo que tinha: sua vida inteira, ou o que viveu dela até aqui. Fanzineiro desde 1998, quando fundou o Sociedade Radioativa, Caeto vem produzindo HQs autobiográficas há alguns anos, com resultados surpreendentes. As memórias reunidas aqui são o ponto alto desse processo: o autor detalha minuciosamente tudo que viveu entre 2004 e 2007, com constantes digressões à sua infância e adolescência. Isso não seria particularmente atrativo ou original em termos literários, caso a vida de Caeto não fosse carregada de conflitos dramáticos profundos, que ele expõe com talento e coragem raras no Brasil. O maior desses conflitos, a relação com o pai, é revelado aos poucos e se torna o fio condutor da narrativa. Retratado como um homem letrado, mas distante e temperamental, ele deixou a família durante a adolescência de Caeto. Só bem mais tarde o filho ficou sabendo que ele tinha trocado a mãe por um homem, que tivera vários casos homossexuais e que tinha contraído o HIV. Depois que o pai se muda para o interior, Caeto se vê obrigado a enfrentar a vida em São Paulo sozinho, se dividindo entre vender quadros na rua, ter uma banda e fazer bicos para sobreviver. Essas situações alternam o drama de alguém sem perspectivas, sempre prestes a ser engolido pelo monstro urbano de São Paulo, com um senso de humor amargo, que gera risos na mesma medida em que gera mal estar. Se os resultados em termos narrativos às vezes são irregulares – a parte da banda e da vida noturna por vezes fica repetitiva e desinteressante –, Memória de Elefante atinge algo raro em romances brasileiros contemporâneos, o que dirá de quadrinhos: a capacidade de, a partir de uma história pessoal, contar uma história relevante sobre o Brasil dos últimos anos. Não é pouco. 3POR MATEUS POTUMATI

1VOCÊ ENCONTRA ESTE LIVRO NA LOJA DA SOMA.

RODRIGO BUENO PEIXE PELUDO Conrad 2010 Não julgue um livro pela capa, é o que dizem. No caso deste Peixe Peludo, o ditado não poderia estar mais errado: título, arte e textura (a capa do livro tem pelos, literalmente) alertam com precisão para o que está por vir. E se trata de algo tão desagradável quanto a ideia de se deparar com o ser escamoso e cabeludo da capa. Não que isso seja ruim: Rafael Moralez é um especialista no desagradável. Desde seus anos de Produto do Ócio, fanzine que editava em Londrina, Moralez revela talento cirúrgico para tocar em assuntos e fazer comentários que o bom convívio em sociedade convenciona evitar. No seu livro de estreia, ele emprestou o traço do amigo Rodrigo Bueno (que exerce um papel fundamental ao entender e traduzir suas ideias) para criar um libelo rabugento, sujo, em fluxo de consciência e sem objetivo nenhum além de causar incômodo. O tal peixe é um saxofonista paulistano, que anda à deriva pela cidade, falando a primeira coisa que lhe vem à cabeça sobre assuntos aleatórios ou cenas que vê: o público dos teatros da Praça Roosevelt, o pai da namorada, enredo de escola de samba, mulheres grávidas, a criação do mundo. Como num improviso disléxico de saxofone – me pergunto se é essa a analogia –, as palavras são regurgitadas no papel com velocidade nauseabunda, às vezes tentando o humor, mas invariavelmente caindo em sarcasmo puro. Se a livre associação nem sempre produz bons momentos, ela às vezes rende pérolas como “o perdedor tem a função social de apaziguar qualquer espírito infeliz”. E assim, ao dar vazão a seu alter-ego temporário e indigesto, Moralez fala um pouco com cada um de nós. 3POR MATEUS POTUMATI. 103


+REVIEWS

1FILMES

2GOG

2EMIR KUSTURICA MARADONA POR KUSTURICA Europa Filmes 2008/2010

A RIMA DENUNCIA Global Editora 2010 Da mesma forma como Chuck D. encarna o rapper politizado no cenário estadunidense, por aqui quem carrega tal carga simbólica é GOG. Com uma sólida carreira construída ao longo de duas décadas à margem da grande indústria do entretenimento, o MC de Brasília certamente foi um horizonte no início da carreira de rappers como MV Bill. O maior mérito de seu livro A Rima Denuncia é mostrar através de 48 letras o poder de intervenção de suas rimas bem informadas que, dispostas em ordem cronológica, de certa forma contam a história de parcela basilar do rap brasileiro, inclusive definindo boa parte da “gramática” do gênero. Outro ponto a favor foi a forma como o poeta, professor e ativista Nelson Maca transcreveu as letras do MC para o livro, mimetizando procedimentos da poesia escrita e redimensionando assim a obra do MC. O “negro drama” social da lírica de GOG é exposto de forma racional, informando e convocando com frequência o ouvinte à mobilização, criando uma estética muito particular para seu trabalho de agitação e propaganda. Se comumente trabalhos agitprop são acusados de terem pouca vigência estética, GOG guarda um ou dois trunfos na manga que o colocam em alta conta, como na hoje histórica música “Brasil Com P”, em que o MC praticamente recria a história brasileira pela voz dos vencidos – tal qual um Veias Abertas da América Latina, de Eduardo Galeano – somente com vocábulos iniciados com a letra P. Em um contexto de poucas obras que dão conta do rap nacional, este livro em primeira pessoa por um de seus protagonistas é essencial. 3POR VELOT WAMBA.

Pelé pode ter sido o maior jogador de futebol de todos os tempos, mas Diego Armando Maradona foi certamente o mais folclórico. Neste documentário dirigido pelo premiado diretor sérvio Emir Kusturica, o camisa 10 argentino é exposto como o homem por trás do mito – fãs esperando um filme com golaços e lances incríveis poderão se decepcionar com o conteúdo do material. O diretor, também o narrador do filme, afirma ser “o Maradona da direção (de cinema)”, possivelmente por ser tão irregular e cheio de altos e baixos quanto genial. A película, que em nenhum momento apresenta qualquer tipo de linearidade narrativa, enfatiza o gol contra a Inglaterra nas quartas-de-final da copa de 86 (“o gol do século”), cria livres associações entre a vitória contra os ingleses e uma suposta vingança pela Guerra das Malvinas, e pesa bastante no tom politico, mostrando um hilário encontro com Fidel Castro, um agressivo discurso anti-George W. Bush e anti-imperialista, e as várias críticas à politicagem da FIFA. Animações mostrando Diego dando dribles desconcertantes em personalidades inglesas e americanas, como Margareth Thatcher, o príncipe Charles, Tony Blair e o próprio George W. Bush, tudo ao som de “God Save The Queen”, dos Sex Pistols, são os momentos mais esdrúxulos do filme. A idolatria de Kusturica encobre fatos conhecidos a respeito de Maradona, e parece isentá-lo de muitas de suas presepadas, como o envolvimento com a cocaína e com a máfia napolitana, que em nenhum momento é citada. A abordagem do tema (drogas) é feita de maneira muito subjetiva, com Maradona afirmando que se sentia “como em um sonho do qual não se pode acordar”. A mulher Claudia e as duas filhas são também retratadas pelo diretor. Verdadeiras guerreiras nos piores momentos do craque, elas são o principal argumento para a aparente melhora de Diego, que as celebra e agradece ao longo de todo o documentário. Mas a cereja do bolo de Kusturica é a abordagem da Igreja Maradoniana, uma seita de devoção total e completa ao ex-jogador, que o compara Deus e submete seus fiéis a hilários rituais de iniciação, que vão de um surreal gol de mão em um campo de futebol (o batismo) à celebração de um enlace matrimonial em que padre e noivos repetem à exaustão palavras de idolatria e tudo termina em total arruaça, em uma suposta comemoração de gol envolvendo noivos e convidados. Quase inacreditável. Não para Emir Kusturica, possivelmente o perfeito seguidor dos dogmas maradonianos.

3POR PEDRO PINHEL. 104


+ENDEREÇOS Sesc . sescsp.org.br Escola Guignard . guignard.artesplasticas.art.br

Shadoks . psychedelic-music.com

Akademie der Bildenden Kunste Munchen . adbk.de

Goiânia Noise Festival . goianianoisefestival.combr

Soma . maissoma.com

British Council . britishcouncil.org

MCD . mcdbrasil.net

Sterling Sound . sterling-sound.com

Choque Cultural . choquecultural.com.br

Midem . midem.com

South by Southwest . sxsw.com

Converse . converseallstar.com.br

MTV . mtv.com.br

Volcom . volcom.com

Coquetel Molotov . coquetelmolotov.com.br

Nike Sportswear . nikesportswear.com.br

Unconvention . unconvention.wordpress.com

Element/Nixon . elementskateboards.com

Pintar . pintar.com.br

Universidade de Birmingham . bcu.ac.uk

foto por: andré calvão

A PINTAR APOIA O ESPAÇO SOMA

EM 2010 ESSA PARCERIA TORNOU POSSÍVEL A EXIBIÇÃO DE TRABALHOS DE VÁRIOS ARTISTAS INICIANTES. E DE ALGUNS NÃO TÃO INICIANTES ASSIM.

NA FOTO: Thomas Dozol durante a montagem da exposição

I’ll Be Your Mirror que aconteceu no Espaço Soma do dia 27.10 ao 27.11.10.

Materiais artísticos . Livraria . Molduraria . Cursos . Cybercafé

Pompeia 11. 3873 0099 Jardim Paulista 11. 3885 5143 Higienópolis 11. 3661 9685

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P H O T O B Y: F E L I P E M O R O Z I N I

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/ ROGER MANCHA , LUCAS XAPARRAL & KLAUS BOHMS


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E L E M E N T S K AT E B O A R D S { C O M . B R} {FACEB O O K . COM / E L E M E N T S K AT E B O A R D S B R A S I L } @ E L E M E N T B R { TW I TTE R}

ADVO CATE S S E R IE S P OR F E L I P E M OTTA A K A M OTTI L A A

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