Prevenção e Gestão de Conflitos em 12 passos - Ludovic Aubin

© 2021 Ludovic Aubin Coordenação Editorial Agência Med10x

Projeto Gráfico Noemi Costa

Capa Noemi Costa

Ilustração da capa: O julgamento de Salomão (1649), Nicolas Poussin (1594-1665), Museu do Louvre, Paris.

Revisão Agência Med10X

Aubin, Ludovic Título: Prevenção e gestão de conflitos em 12 passos/ Ludovic Aubin Formato: Livro Digital Veiculação: Digital ISBN nº 978-65-00-29093-6

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, armazenada em um sistema de recuperação ou transmitida de qualquer forma ou por qualquer meio eletrônico, mecânico, fotocópia, gravação, digitalização ou outro, exceto para breves citações em revisões críticas ou artigos, sem a prévia permissão por escrito da editora.

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Agradecimentos Esse livro se inspirou em muitas fontes. A primeira delas, foi o médico e terapeuta francês Jean-Yves Aubin, meu pai, que sempre me alertou sobre a importância de considerar as emoções nas relações humanas. Os conceitos de René Girard, antropólogo francês, tiveram igualmente uma influência fundamental no meu trabalho. Além deles, baseamos nossa abordagem da assertividade nos estudos dos psicólogos americanos Sharon e Gordon Bower.

Teve também papel fundamental em minhas reflexões a prática da respiração consciente, ensinada pelo mestre budista Thich Nhat Hanh. Agradeço, então, a todos eles pelas diretrizes e sugestões, sobretudo pelo compartilhamento de suas experiências e de seus saberes teórico-práticos.

Enfim, gostaria de agradecer aos alunos1 de todas as turmas que, através de suas inúmeras contribuições, permitiram-me compreender melhor os conflitos humanos.

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Agradeço também a Alex Chrystello que logo cedo acreditou nesse conteúdo e me ajudou a organizar os primeiros cursos online. Agradeço afinal a Jessyga Tavares.

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Sumário

Introdução.................................................................................................................................4 1. Por que se interessar pela gestão de conflito?.....................................................................6 2. Os conflitos, no passado e hoje.............................................................................................8 3. Os três padrões de atitude diante do conflito e da violência institucional.........................11 4. O que é um conflito?...........................................................................................................16 5. O mecanismo do conflito....................................................................................................19 6. O perigo dos conflitos.........................................................................................................26 7. Elementos de inteligência emocional.................................................................................28 8. Os comportamentos típicos em situação tensa ou conflitante..........................................38 9. A assertividade....................................................................................................................44 10. Elementos de inteligência relacional: ampliar nosso horizonte de observação..............51 11. A respiração consciente na gestão de conflitos...............................................................56 12. Métodos assertivos de gestão de conflitos: DESC, REVAC...............................................59 Conclusão................................................................................................................................70 Bibliografia................................................................................................................. ..............72 Biografia do autor.............................................................................................................. ......74

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Introdução

Durante vários anos de reflexão, estudos e trabalhos de campo em universidades, ONGs, associações, empresas e famílias, pude observar o quanto os conflitos, muitas vezes, fazem naufragar belíssimos projetos, acabam com relacionamentos, põem em risco a vida de empreendimentos, alguns que poderiam beneficiar um grande público, ou simplesmente trazer mais harmonia às esferas social e pessoal.

Com o passar dos anos, e após muito refletir sobre esses obstáculos, sistematizei um método de prevenção e gestão de conflitos que aplico há quase 20 anos, em diferentes países (França, Brasil, África etc.), com vários públicos: ONGs, professores, educadores, médicos, enfermeiros, advogados, fiscais de justiça, empresários, adolescentes, famílias etc. Esse e-book apresenta, de forma sintética, o conteúdo desse método, que apresento nos cursos a fim de que outros possam usufruir dos seus benefícios.

Assim, de maneira acessível, apresento aqui 12 pontos relativos aos conflitos: os vários tipos, os padrões de atitudes que eles desencadeiam, seus mecanismos, perigos etc. Para ilustrar os conceitos com os quais trabalho, utilizo exemplos, propostas de vídeos interativos, leituras, momentos de reflexão, depoimentos etc.

Em seguida, proponho dois métodos assertivos (chamados DESC e REVAC) que, embora simples, são profundos e demonstraram resultados muito significativos para melhor prevenir os conflitos e lidar com eles no dia a dia, nos vários setores da vida: familiar, profissional e social.

Claro, a abordagem tem seus limites. Para poder iniciar ou reiniciar um ciclo positivo (reciprocidade positiva) de harmonia, de reconciliação, é preciso que, das duas

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partes (ou mais) em conflito, ao menos uma queira, sincera e profundamente, melhorar a situação. Muitas vezes, é o orgulho que impede que cada uma das partes dê o primeiro passo.

As ferramentas que aplico e ensinarei, como todo conhecimento, são oriundas da reflexão de muitos pensadores, que inspiraram a presente proposta e a metodologia que utilizo. Gostaria de expor aqui algumas dessas fontes. Os autores que me influenciaram foram René Girard, Jean-Pierre Dupuy e Paul Dumouchel, no que diz respeito às questões antropológicas; Michael Emmons, Robert Alberti, Marshall Rosenberg (idealizador da CNV), William Ury (Método de Negociação de Harvard), Sharon e Gordon Bower, no que tange às questões metodológicas; e enfim, meu próprio pai, Jean-Yves Aubin (médico e terapeuta cognitivo-comportamental), no que tange à importância do estudo das emoções na prevenção e gestão dos conflitos.

Assim, partimos sempre de conceitos antropológicos amplos a fim de contextualizar as situações vivenciadas pelos participantes do curso. Em seguida, tratamos de suas situações de forma mais específica, segundo as particularidades de cada pessoa e/ou país. A abordagem é, então, ao mesmo tempo genérica e particular.

Podemos afirmar, hoje, que o método que será apresentado aqui, após anos de prática, possui uma dimensão universal, mas também concreta, pois se baseia e se inspira de experiências (dificuldades, desafios, conquistas e superações) vividas por muitos que desejaram, e desejam, ir além das tensões do cotidiano em busca de relacionamentos mais sadios e respeitosos, condição imprescindível para uma vida feliz.

Boa leitura!

Este ebook conta com alguns materiais extras, para exemplificar e explicar melhor o que está sendo apresentado no livro. Assim, você poderá aprofundar os conteúdos através de áudios, vídeos, depoimentos, trechos de filmes etc. Eles podem ser acessados com um clique no próprio texto, quando aparecer o símbolo ou lendo os códigos QR com a câmera de seu smartphone.

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1.

Por que se interessar pela gestão de conflito?

“Pessoas que se encontram em um conflito improdutivo ou destrutivo têm mais probabilidade do que outras de se tornarem infelizes.”

Arthur Pearlstein

Minha experiência como pesquisador, consultor e professor me mostrou, aos poucos, que devemos levar em conta a gestão de conflitos porque, simplesmente, eles estão onipresentes nas nossas vidas; são um fator considerável de sofrimento e um dos maiores obstáculos à felicidade, como também afirma o advogado A. Pearlstein (2012), em um de seus artigos sobre a busca da felicidade e a resolução de conflitos. A busca da felicidade está na pauta das sociedades modernas2. No entanto, os conflitos mal administrados são um dos principais obstáculos ao alcance desse objetivo maior que Aristóteles, na Ética a Nicômaco, já afirmava ser o objetivo supremo da busca humana.

Assim, consciente ou inconscientemente, de forma adequada ou inadequada, todos buscamos a felicidade. Ora, muitos dos nossos relacionamentos, até com entes queridos, parentes, familiares, filhos ou pais, amigos, passam por momentos de tensões, de mal-entendidos e até de conflitos. Portanto, é crucial saber preveni-los, identificar as situações de tensão, os comportamentos que vão aumentar o risco de crise, entender sua dinâmica e seus desdobramentos, as suas consequências pessoais e coletivas. É importante também avaliar o grau de sofrimento gerado por conflitos mal gerenciados.

E quando acontecem, ou já aconteceram, é importante tentar restabelecer e/ou curar a relação.

Pela experiencia que tenho com resolução de conflitos, embora seja importante identificar os sentimentos, as necessidades não satisfeitas e formular uma demanda clara3, isso tudo ainda não é suficiente para abranger e resolver todas as tensões. Existe

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Pearlstein relembra que a busca da felicidade é um direito fundamental do povo americano que se encontra no segunda parágrafo do primeiro artigo da Declaração de Independência de 1776.

3 Quem conhece a CNV reconhece aqui os tópicos dessa abordagem.

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um tipo de conflito (ou uma dimensão do mesmo) que envolve fenômenos paradoxais, ambivalentes, como rancor, ressentimento, ódio e rivalidade (que chamaremos rivalidade mimética – Girard, 1972) que fogem da compreensão abordada pela psicologia humanista (Farneti, 2009). Em outras palavras, a lógica da rivalidade 4, do orgulho, do ressentimento, é diferente da lógica das necessidades e dos interesses5. Cito o exemplo do Julgamento de Salomão para ilustrar o que estamos dizendo. Nesse julgamento, a rivalidade entre as duas mulheres é tão forte que uma delas (dominada pelo ciúme), aceita a proposta de Salomão: sacrificar um bebê a fim de que o conflito seja resolvido.

Explicaremos melhor a complexidade desse mecanismo no capítulo 5.

Por isso tudo, é fundamental observar e tratar com seriedade os conflitos de nosso dia a dia pois, como diz o ditado popular “os pequenos riachos se tornam grandes rios”. Da mesma forma, um conflito, por mais insignificante que pareça ser em determinado momento, pode crescer como uma bola de neve ao ponto de causar muita destruição pelo caminho.

Antes de entrar na descrição dos mecanismos dos conflitos, é importante nos perguntarmos se eles estão mais presentes hoje do que no passado. É fundamental também compreendermos a relação entre violência (e a evolução da violência) e os conflitos, o que trataremos a seguir.

Depoimento "A temática que o professor Ludovic oferece é de uma necessidade gigantesca na atualíssima Torre de Babel em que se encontra ancorada nossa comunicação. Seja no trabalho, no social ou nas nossas mais íntimas relações. O convite à escuta, à vontade e à ação para resolvermos nossos conflitos são uma chave preciosa na libertação de nossos presentes e atávicos desentendimentos."

Karla Melo, CEO Editora Confraria do Vento

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Iremos descrever esses fenômenos de desejo mimético e rivalidade mimética (Girard, 1961, 1972).

Embora técnicas de escuta e de reformulação possam ajudar a satisfazer (ao menos parcialmente) uma possível necessidade de reconhecimento ou consideração sentida pela pessoa.

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2.

Os conflitos, no passado e hoje “Enquanto a primeira metade do século 20 marcou um período de violência extraordinária, o mundo se tornou mais pacífico nos últimos 30 anos.”

Brennen et al

“Seja qual for o sistema político e social que se consiga lhes impor, os homens não alcançarão nem a felicidade nem a paz com que sonham os revolucionários, nem a harmonia dos balidos com que se assustam os reacionários. Eles sempre se entenderão o bastante para nunca se entenderem. Eles se adaptarão às circunstâncias que parecem as menos propícias à discórdia e inventarão sem descanso novas formas de conflito.”

René Girard

Essas citações revelam a contradição do momento que vivemos. Por um lado, o processo de civilização do Ocidente amenizou ou baniu certas formas de violência: como os castigos físicos e a pena de morte (Elias, 1973). Por outro lado, a tecnologia fez entrar a humanidade numa era apocalíptica (Anders, 1952) onde ela se tornou capaz de se autodestruir (ex.: bombas atômicas). Enquanto o processo civilizatório nos deixa mais intolerantes a certas formas de violência (por exemplo: a violência doméstica e escolar), a conflitualidade aumenta na mesma proporção, pois não se tolera mais práticas, condutas, palavras outrora consideradas normais e hoje consideradas ofensivas e inaceitáveis.

Costumo começar meus cursos perguntando para os participantes se eles acham que existem mais conflitos hoje do que nas sociedades do passado. É uma pergunta difícil, que requer uma resposta um tanto paradoxal. Na escola, aprendemos que a maior parte da História é composta por conflitos, alianças entre países contra um terceiro, guerras pelos recursos, pelas fronteiras etc. Hoje, é evidente que nossa sociedade passa também por muitos conflitos, em vários níveis (casais, famílias, grupos de amigos, comunidades, equipes gestoras, na política etc.). As nações encontram-se divididas. Isso tudo é conhecido e visível. Porém, será que isso nos revela algo positivo sobre as sociedades de hoje?

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Acredito que sim. Estamos com toda a certeza em uma era de revelações e de suspeitas. Hoje, as vítimas têm direitos, se empoderam e se organizam para poder reivindicá-los e denunciar os autores de violências6. O que acontecia escondido atrás dos muros das instituições ou das casas e era considerado fatalidade é hoje revelado ao público nas redes sociais, nas mídias. O que era contado pela única voz do Poder (a versão oficial do Estado em nome da segurança nacional), hoje é contestado, questionado. Claro, essa situação, pode gerar excessos, manipulações, exageros. Mas não devemos perder de vista o alcance histórico do momento. Esse fenômeno é profundo, inédito e com certeza irreversível. Por isso gera desconforto, turbulências, instabilidade e, justamente, conflitos, afetando nossa imagem do mundo como sendo um lugar angustiante, sem harmonia possível. No entanto, não podemos esquecer a radical novidade desse acontecimento: doravante, as vítimas têm direitos e o “Mal” precisa se esconder ou se vestir com as roupas do “Bem” para se perpetuar. Por essas razões, estamos, de certa forma, em uma sociedade mais conflitante porque a sua estrutura injusta, as suas hierarquias7

arbitrariamente

e

historicamente

mantidas,

estão

sendo

hoje

profundamente questionadas nem sempre de forma adequada ou construtiva.

Simultaneamente, a eventualidade de um colapso civilizacional gera um ambiente de suspeitas e acusações generalizadas que cria as condições de uma conflitualidade constante e quase onipresente.

Enfim, conhecemos o fenômeno de “judicialização da vida social”, ou seja, a expectativa de que a justiça resolva todos os nossos conflitos, o que pode acarretar a perda da capacidade de diálogo. Esses fenômenos se alimentam em círculos: quanto menos existe diálogo, mais a justiça deverá agir e vice-versa.

Consequentemente, percebemos que, na nossa sociedade atual, está cada vez mais difícil manter relações harmoniosas ou, pelo menos, de respeito, tanto na esfera

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Basta ver como o #Metoo liberou a palavra de milhares de mulheres vítimas de violência sexual em diversos setores e indústrias (cinema, jornalismo, medicina etc.)

7 René Girard analisou de forma esclarecedora um dos paradoxos fundamentais da modernidade: quando os obstáculos simbólicos das hierarquias antigas são derrubados (proibições, obrigações, tabus, respeito incondicional às figuras de autoridade), os sujeitos modernos ganham em mobilidade, em liberdade, mas correm também o risco de se confrontarem a um obstáculo vivo, ou seja, o outro, o colega, o igual, o par.

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pessoal como na esfera profissional (entre colegas; gerentes, funcionários e clientes; pacientes e profissionais da saúde, professores e alunos, patrões e empregados).

Além das razões já mencionadas acima, encontramos também uma demanda cada vez mais forte pelo respeito aos direitos individuais, à liberdade de expressão e à crítica das figuras de autoridade tradicionais. Todo mundo quer ser ouvido, respeitado, levado em consideração e exige a exemplaridade das elites. Cada um tem agora acesso fácil a todas as informações (e, por vezes, a toda desinformação!) do mundo e considera ter tanta legitimidade quanto os profissionais para expressar sua opinião sobre diferentes assuntos da atualidade.

Outro (macro)fator importante é a aceleração social do tempo8 que gera ansiedade e impaciência generalizadas, provocando condições adversas a uma gestão apaziguada dos conflitos.

De certa forma, isso tudo é positivo e ao mesmo tempo, preocupante: não existe mais verdades estabelecidas e definitivas. No entanto, esses fenômenos geram um novo tipo de sociedade onde a angústia e o estresse afetam significativamente os sujeitos e onde situações tensas e rivalidades surgem, que podem se tornar conflitantes. Se não forem bem tratadas, essas situações podem enfraquecer, ou mesmo prejudicar, a convivência e os vínculos entre as pessoas, gerando uma perda de respeito mútuo, de comprometimento e confiança, aumentando ainda mais o desânimo e até o desespero. É preciso agir! E existem propostas para isso!

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Estudada e teorizada pelo sociólogo alemão Hartmut Rosa (2019).

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3.

Os três padrões de atitudes diante do conflito e da violência institucional

“Violência que fala é já uma violência que procura ter razão; é uma violência que se coloca na órbita da razão e que começa já a negar-se como violência.”

Paul Ricœur

Embora seja importante não confundir conflito e violência, é igualmente importante ver como um pode levar à outra. Várias culturas têm medo do conflito por causa do seu potencial violento. Sabe-se que conflitos mal resolvidos podem se tornar violentos. Por isso, existem culturas onde ele é camuflado, onde a paz e a harmonia são aparentes, enquanto o fermento da violência continua aumentando até explosões repentinas.

Existem, de fato, várias concepções filosóficas do conflito. Ele pode ser considerado como uma patologia, uma anomalia, algo periférico ao estado normal das coisas, como também pode ser visto como o motor das mudanças sociais e históricas (por exemplo, a visão da História na teoria marxista). Ele se encontra igualmente nos alicerces da sociedade e da cultura, como mostra a história de Rômulo e Remo, exemplo de um conflito fundador.

Essas concepções evocam três padrões principais de atitudes dos grupos, instituições ou organizações em face dos conflitos.

1. Um primeiro padrão é aquele que nega, ignora ou minimiza a existência de tensões e da violência na própria organização. Acredita-se que reconhecer esses fenômenos iria piorar os mesmos (por medo da violência, negam-se os conflitos!) ou danificar a imagem que a instituição quer manter aos olhos do mundo. Essa “escolha” é arriscada, pois além de gerar muito sofrimento, deixa serem instaladas situações que 12

podem produzir mais violência. Trata-se de um cálculo errado acarretando, portanto, o efeito inverso.

De fato, é possível perceber hoje essa atitude de negação em grandes instituições como, por exemplo, a Igreja Católica9 (ou os Boy Scouts of America), onde condutas erradas que aconteceram no passado (por exemplo, abusos morais ou sexuais) de alguns responsáveis, estão sendo reveladas e colocadas à luz do dia de forma muito rápida, indo além do controle da própria instituição.

Essa violência pode ser “descendente”, ou seja, dos representantes da instituição para os usuários (alunos, pacientes, clientes) ou “ascendente”, aquela que vai dos usuários - ou cidadãos – direcionada para os “representantes”. Mas esta última é um fenômeno novo, diante do qual as sociedades contemporâneas encontram-se por enquanto sem resposta.

Esses dois movimentos podem entrar em uma dinâmica de violência anômica10 perigosa. Quando a violência ascendente (por exemplo, um aluno insultando um professor) não é levada em consideração nem tratada de forma adequada pelos representantes da instituição, pode gerar conflitos internos e alimentar o quadro geral da violência anômica. Por isso, dizemos que esse tipo de violência gera conflitos, mas também se alimenta deles, através de um círculo caracterizado como destrutivo.

Uma grande lição dos tempos atuais é que, cedo ou tarde, as coisas estão sendo reveladas. Podemos criticar, com razão, a tecnologia e as redes sociais. Todavia, nesse aspecto, percebemos que o Twitter e outras redes sociais também participam de um movimento histórico, profundo e, com muita probabilidade, irreversível, no que diz

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Ver também esse artigo.

A violência anômica é aquela onde há ausência de lei. Ela gera o caos e se alimenta dele.

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respeito à revelação e à denúncia da violência institucional até então normalizada ou velada.

2.

Um segundo padrão de atitude consiste em incentivar ou fomentar os

conflitos, as tensões, competições e disputas usando estratégias, linguagem irônica, manipulando colegas, funcionários ou membros do grupo, tendo prazer em ver as pessoas competindo. Esse incentivo à competição pode ser de duas maneiras: com intenções positivas a fim de aumentar a produtividade ou criatividade, acreditando que do conflito surge a inovação; ou com intenções negativas, visando dividir para melhor governar. Existem pessoas ou grupos que gostam de conflitos, de intrigas, e de certa forma ficam viciados nas sensações e sentimentos gerados por essas relações. Acham a vida sem conflitos “um tédio”.

Essa atitude poderá levar às mesmas consequências da primeira atitude, ou seja, gerar desgaste, desconfiança e eventualmente violência.

3. Enfim, um terceiro padrão, mais raro, porque mais difícil, requer um trabalho constante de consciência e vigilância assim como de aceitação do que geralmente não queremos ver. Essa atitude é aquela que reconhece a existência quase inevitável do conflito e se propõe tratá-lo de forma construtiva e produtiva. Ela vai gerar menos sofrimento, será uma fonte de aprendizagem pessoal e coletiva, acarretando uma diminuição da violência, além de cumprir objetivos morais e estratégicos. Ela também se revela mais eficiente: aumento da produtividade e da criatividade. Podemos aqui citar o exemplo do “assédio moral” em uma empresa. Nesse caso, é muito importante que a chefia não apenas aja o quanto antes para pôr fim a tais acontecimentos como também apoie a vítima, reconhecendo seu sofrimento e evitando, assim, que além da dor oriunda da situação, adicione-se ressentimento contra a instituição como um todo11.

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Nossa relação com conflitos e violência é semelhante à nossa atitude em relação ao lixo. Tendemos a não querer vê-lo, jogamos fora ou o acumulamos em certas regiões da sociedade. Só que, em sociedades complexas e hiperconectadas como a nossa atual, não existe mais (se já existiu!) espaços alheios, radicalmente separados. Por isso, podemos falar de um processo de autointoxicação tanto em relação à violência quanto em relação à poluição.

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A figura abaixo resume o que acabamos de expor:

Figura 1- Três padrões de atitudes diante dos conflitos (fonte: Ludovic Aubin)

Existem, então, conflitos necessários e conflitos desnecessários? Como distinguir uns dos outros?

Eis outra pergunta que costumo fazer aos participantes dos meus cursos. Minha resposta é simples: quando “tentamos de tudo” para mudar uma situação e não conseguimos chegar a um acordo de mudança por consentimento, adesão ou cooperação da outra parte, talvez seja preciso, sim, que haja um conflito para redefinir as bases da relação a fim de que, por exemplo, uma situação insustentável possa ser denunciada, exposta. A questão que decorre é: com que intenção, com que visão do outro e que métodos utilizaremos para entrar no conflito com o intuito de tentar resolvêlo?

No entanto, existe uma grande quantidade de conflitos que são desnecessários, que surgem simplesmente devido à falta de atenção, cuidado, habilidade ou escuta.

Ocorrem por negligência ou ignorância dos efeitos que nossas atitudes provocam nos outros. Esses conflitos são desgastantes, geram grande perda de tempo e de confiança, 15

sobretudo quando acontecem entre pessoas de boa vontade. Isso frequentemente afeta nossa confiança na humanidade.

Assim, em vez de querer negar ou camuflar o conflito, não seria mais sábio considerar que o conflito é “inevitável”, inerente às relações humanas, ao menos no estado atual da nossa evolução humana e espiritual? Logo, as questões são: de onde vem o potencial conflitante dos seres humanos? E o que fazer com ele?

Momento para refletir a) Dentre as três atitudes citadas nesse capítulo, qual é aquela utilizada na instituição com a qual você trabalha? Como você se sente em relação a isso? b) Você tem a impressão de ter banalizado, normalizado os conflitos na sua vida? c) Você consegue diferenciar os conflitos úteis, necessários e os conflitos inúteis, desnecessários?

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4.

O que é um conflito?

“O conflito é pai e senhor de todas as coisas.”

Heráclito (500 a.C.)

O conflito é um choque de, pelo menos, duas forças complementares. Cada uma dessas forças forma um obstáculo para a outra. Essas forças (sujeitos ou agentes) disputam geralmente um mesmo objeto.

O conflito pode ser aberto ou latente (fala-se, nesse caso, de “tensões”). É importante poder identificar o objeto da disputa, para que a dinâmica do conflito possa ser analisada, como veremos mais adiante.

Quais são os conflitos mais comumente encontrados? São justamente os “conflitos de objeto” que podem ser (aparentemente) insignificantes ou, ao contrário, vitais: um brinquedo entre crianças, ou uma criança no meio de um conflito entre adultos (por exemplo, no momento de um divórcio ou em casos extremos como no Julgamento de Salomão) etc. Pode também ser um objeto total (ou meta-objeto) como um território.

Porém, existem conflitos onde o objeto é mais imaterial, abstrato ou simbólico: conflitos de valores, de crenças, de definição, de interesses.

Certas situações geram conflitos internos como no caso do conflito de lealdade (nos divórcios, nos movimentos sociais etc.). O conceito de conflito de lealdade define o sofrimento interno de uma pessoa vendo dois modelos amados ou admirados por ela em conflito. Por exemplo, um filho vendo os pais brigando. Ele sente amor e lealdade por seus dois modelos existenciais e, vendo esses dois modelos em conflito, desenvolve um conflito interno. O mesmo acontece, por exemplo, em uma igreja ou um movimento social onde os membros (fiéis, militantes) assistem, impotentes, ao conflito entre dois líderes.

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Em ambientes horizontais (ex.: organizações com gestão compartilhada) onde as relações são igualitárias (assim como em casais ou grupo de amigos), podem existir conflitos quanto aos limites e ao domínio de cada um dos membros. São ambientes altamente sujeitos a mal-entendidos e a uma comunicação contraditória, como as injunções paradoxais do tipo: “seja autônomo, seja proativo!”. Se a pessoa for proativa demais, ela pode ser vista como uma ameaça! Se ela não quiser se impor e demorar um pouco para se envolver, poderá ser vista como “preguiçosa”, “acomodada” e será, talvez, alvo de comentários que a levarão ao desânimo e a se distanciar da organização.

Esses conflitos podem evoluir para formas mais “puras”, mais abstratas ainda, como o conflito ontológico ou metafísico. O conflito ontológico é aquele que opõe protagonistas que deixam de brigar pelo ter, mas sim, pelo ser, no que se refere à definição “do que é” e “do que não é” certo, correto, real etc. Essa categoria remete às dimensões mais simbólicas da realidade e da sociedade. É o caso dos conflitos ideológicos, filosóficos ou religiosos. Este tipo de conflito geralmente não tem solução imediata.

Na sua forma banal, cotidiana, ilustra-se, por exemplo com frases como as seguintes, contextualizadas durante uma reunião: Um fala: “O problema é o seguinte...”

E o outro responde: “Não, o problema é...” O que revela um conflito sobre a definição do problema e sua natureza.

E a querela continua: “Para resolver, basta fazer tal coisa” E o outro responde: “Não! Não é isso. Você tem que...”

Esse esboço de diálogo mostra um conflito sobre 1) a natureza e definição do problema e 2) sobre os métodos de resolução do problema – mal definido! Será que, nesse caso preciso, o problema não viria exatamente da maneira de definir e expressar a percepção do problema? Uma simples falta de tato pode dar início a uma sequência de 18

conflitos completa, com seus desdobramentos individuais e coletivos. Por exemplo, pode-se compartilhar com um colega: “você viu como ele foi arrogante durante a reunião?” A partir desse pequeno comentário, é possível que se crie a imagem negativa de alguém (um “rótulo”).

O conflito ontológico se encontra vinculado ao conflito metafísico, ou seja, aquele que nenhum objeto material (físico) pode resolver, apaziguar. Podemos citar, nessa categoria, o choque de civilizações, definições de Deus, o terrorismo político ou religioso etc. As visões messiânicas da história ilustram esse tipo de conflito que aparentemente é sem solução a não ser através de uma conversão íntima (do coração) dos seus protagonistas, que acarretaria uma saída da rivalidade metafísica, destruidora.

Por que falamos de rivalidade mimética metafísica? Porque, nesse tipo de conflito, existe uma fascinação paradoxal para com o rival: deseja-se ter razão contra o rival, ao ponto de aceitar destruir o mundo comum (exemplo: partidos políticos brigando e esquecendo os interesses da nação). Os envolvidos, nesse caso, acabam tendo dificuldades para sair do conflito porque este assume uma dimensão estruturante de suas identidades, uma função existencial, um hábito.

Momento para refletir a) Na organização em que você trabalha, existem conflitos? b) Você consegue identificar as partes envolvidas e os objetos disputados? c) De que tipo de objeto se trata? d) Em que grau se encontram esses conflitos (tensões, latentes, abertos, verbais, físicos)? e) Você percebe alguns hábitos comportamentais que facilitam o surgimento desses conflitos?

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5.

O mecanismo do conflito “Não vemos que não vemos. Não percebemos que ignoramos.”

F. Varela, H. Maturana “Por que reparas tu no argueiro que está no olho do teu irmão e não vês a trave que está no teu olho? Ou como dirás a teu irmão: Deixa-me tirar o argueiro do teu olho, estando uma trave no teu? Hipócrita, tira primeiro a trave do teu olho e, então, cuidarás em tirar o argueiro do olho do teu irmão.”

Evangelho de Mateus (7:3-5)

Para termos um conflito, precisamos de, ao menos, dois ingredientes principais:

Suscetibilidade

Falta de tato

(“ego” a flor da pele)

Temos, assim, duas frentes para diminuir o risco de conflito: • •

mais tato na maneira de se expressar; sensibilidade menos “egocêntrica”.

A resolução de conflito passa, portanto: • •

por uma mudança interna (conversão da intenção); pelo exercício da capacidade humana de diálogo.

De forma mais detalhada, conforme comentamos, para poder falar de conflito, é preciso que haja um “objeto disputado” por, pelo menos, dois protagonistas. Os objetos podem ser aparentemente “insignificantes”12 (um brinquedo para duas crianças) como também os mais valorizados (minérios ou petróleo, disputados por empresas internacionais). O objeto também pode ser um ser humano na rivalidade amorosa ou

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“Insignificante”, aqui, está com aspas porque o objeto sempre tem um significado especial para as pessoas envolvidas, embora possa não ter o mesmo valor para um observador externo.

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uma criança, cujos pais estão se divorciando. “Objeto” aqui é uma palavra que não tem uma conotação pejorativa ou negativa. É simplesmente “o que é disputado” e tem valor para os envolvidos. A dinâmica do conflito gera literalmente uma ilusão13 que faz com que, para quem fica de fora, a energia e os meios usados pareçam desproporcionais.

Uma ocasião frequente de conflito nas organizações (sobretudo em organizações mais horizontais, democráticas ou sociocráticas) é a da tomada de decisão, quando dois atores (ou mais) têm um vínculo entre eles e precisam tomar uma decisão que envolve algo importante na vida deles e da organização. Porém, por vezes, aquele que toma a decisão pode ter sua legitimidade questionada pelo(s) outro(s). Nesse caso, a decisão que tem por vocação prevenir e arbitrar um conflito, pode ter o efeito inverso, agravandoo.14 Muitas vezes, a rivalidade torna-se o modo normal de relacionamento entre duas pessoas. Quando isso ocorre, conforme vimos, o objeto passa em segundo plano. Nessas circunstâncias, qualquer objeto pode desencadear/gerar/ser uma ocasião de conflito. O que prevalece é a relação de forças (que gera um campo de forças) e que, a exemplo de um buraco negro no universo, engole e desintegra os objetos passando nas suas proximidades.

Mas será que é possível falar de mecânica do conflito? Claro! Embora o conflito não seja uma máquina, quando se observa a diversidade dos conflitos, percebemos que existem padrões e sequências repetitivas. É muito importante compreender esses padrões para podermos ter mais soberania em relação aos mesmos.

O que observamos com muita frequência na dinâmica do conflito é uma mudança de atitude em relação ao objeto. Embora no início o objeto do conflito pareça ser a coisa

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A palavra iludir significa “estar preso no jogo”, estar tomado pelo jogo, pelo que está em jogo, o prestígio, a honra etc. Existe um campo de forças, de energias, próprio ao jogo criado pelos jogadores e que retroage neles.

14 Decisão, decidir, conforme lembra Girard (1982), vêm do latim decaedere que tem por significado “cortar a garganta da vítima”. Uma decisão é um ato sacrificial que tem por função/efeito pôr fim ao conflito. Quando aquele que decide não tem legitimidade suficiente para decidir, a decisão tem como consequência piorar o conflito ao invés de resolvê-lo. É o que Girard chama de crise sacrificial. O mesmo acontece na política.

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mais importante do mundo, aos poucos a atenção dos sujeitos tende a focar mais no “outro” (que forma então um obstáculo fascinante) do que no “próprio objeto”. O que prevalece então são as críticas e os julgamentos para com o outro e não o zelo cuidadoso para com o objeto. Trata-se da fase de esquecimento do objeto. Sabe-se que a consciência só pode focar em um objeto a cada vez. A atenção oscila, portanto, entre o “objeto”, o “outro” e “si próprio” (o sujeito fica focado no seu próprio sofrimento, rancor, frustração, ao mesmo tempo que fica excessivamente interessado em cada um dos gestos do outro, atribuindo-lhes intenções)15. Provavelmente, o mesmo acontecerá com o outro em relação ao sujeito.

A etapa seguinte possível é a destruição do objeto, situação-limite muito bem ilustrada no texto bíblico do “Julgamento de Salomão”16, onde um conflito opondo duas mulheres (que pode ser definido como “o conflito humano fundamental”), encontra-se sem solução, sem possibilidade de ser decidido. A condição idêntica das duas mães17 faz delas duplas na linguagem de René Girard, ou seja, espelho uma da outra. Um dos recém-nascidos morre durante o sono, enquanto o outro sobrevive. As duas mulheres dizem ser mãe da criança sobrevivente. As acusações de uma para com a outra continuam, agravam-se rapidamente e de forma semelhante, transformando as mulheres em rivais miméticas que ninguém, se não fosse inspirado por uma intuição maior, poderia distinguir. É preciso, em determinados casos, uma grande sabedoria como a de Salomão para destrinchar a mentira e a verdade.

15

Jean-Jacques Rousseau descreve da forma seguinte essa fase do esquecimento do objeto e a prevalência dada ao rival (obstáculo): “As paixões primitivas, que tendem diretamente para a nossa felicidade, se preocupam apenas com os objetos que se relacionam com elas e, tendo apenas o amorpróprio por princípio, são todas amorosas e gentis em sua essência; mas quando, desviados de seu objeto por obstáculos, estão mais preocupados com o obstáculo para removê-lo do que com o objeto para alcançá-lo, então mudam de natureza e se tornam irascíveis e odiosos” Rousseau juiz de Jean-Jacques (Primeiro Diálogo).

16 17

Ambas são da mesma classe social, compartilham o mesmo espaço e tiveram filhos ao mesmo tempo.

22

Figura 2: Afresco do julgamento de Salomão, Wallfahrtskirche Frauenberg, Estíria

A proposta astuciosa dele, para resolver o conflito (num primeiro momento insolúvel), é literalmente destruir, sacrificar o objeto. Uma delas concorda com a proposta de morte da criança: “Nem minha, nem sua!” A outra recusa a proposta: “Deixe a criança com ela para que possa viver!”. Esta última prefere se sacrificar, no sentido de renunciar ao que mais ama, para que a vida seja possível. “É ela a verdadeira mãe! Doem a criança para ela”, conclui Salomão. A segunda mulher é a que tem os verdadeiros sentimentos maternos.

Este episódio foi fundamental para R. Girard (1978, p. 260) na sua compreensão de duas atitudes radicalmente opostas e inconciliáveis e que, no entanto, têm o mesmo nome: sacrifício. Há nesse exemplo dois tipos de sacrifícios: sacrifício do outro e sacrifício de si (ou do que se tem de mais precioso). O sacrifício do outro é a forma antiga, violenta, arcaica, que preserva ou restaura temporariamente a ordem cultural sempre ameaçada pelas rivalidades e instabilidades internas de uma comunidade ou sociedade. A outra forma de sacrifício é caracterizada pela segunda mulher, que ressignifica por completo o sentido do primeiro sacrifício (na sua versão antiga), ou seja, é melhor morrer (renunciar ou dar o que temos de mais precioso) do que matar. Essa será também nossa alternativa nos conflitos do dia a dia?

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Quando não tem um “Salomão” para arbitrar e decidir o conflito, existe a probabilidade que este se alastre, se difunda dentro do grupo em função dos laços de afinidades e de solidariedades dos protagonistas. Se um dos dois protagonistas tiver muito mais apoio do que o outro, o outro sofrerá ou poderá sofrer hostilidade, provavelmente se encontrará isolado e será tratado como a “ovelha negra” ou o “bode expiatório” do grupo. Esse mecanismo chamado de mecanismo do bode expiatório (Girard, 1972) é um poderoso regulador dos conflitos coletivos e interpessoais, a nível micro e macro. Segundo Girard, se não existir um cuidado especial, toda e qualquer instituição pode produzir seus bodes expiatórios e nossa tarefa ética é exatamente resolver os conflitos sem recorrer a esse mecanismo (do bode expiatório).

No entanto, se os dois protagonistas possuírem mais ou menos o mesmo peso, se o conflito estiver mais ou menos equilibrado, poderá acontecer uma cisão, uma divisão no grupo, formando assim duas partes ou dois clãs rivais ou até inimigos podendo levar a conflitos destruidores.

Um irá, por exemplo, ficar no mesmo local, usufruindo do espaço, e o outro irá reivindicar seus direitos, saindo para fundar ou criar outro movimento, outro grupo, outra associação, entrando talvez em uma competição com o primeiro grupo. Essa situação poderia criar um conflito de lealdade (como o mencionado acima), na comunidade dos membros de uma igreja, de um sindicato ou de uma associação.

**************

O trabalho que fazemos em relação ao conflito é um trabalho de consciência, não de julgamento. Nossa liberdade em relação aos conflitos está na nossa capacidade de cultivar uma maior consciência em relação a eles. De fato, o conflito envolve várias dimensões do ser humano: contexto, situações, percepções, interpretações das situações, emoções (que decorrem das interpretações), os comportamentos (e as consequências deles); as relações humanas (e seus paradoxos e ambivalências) etc. Logo, o conflito é um fenômeno que, por envolver a totalidade dos aspectos que compõem o

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ser humano, requer vigilância, cuidado, paciência, determinação e criatividade para poder transformá-lo.

O conflito desafia, portanto, nosso entendimento pois mescla as categorias de diferenças e semelhanças entre as partes em conflito através de uma dialética complexa, uma interpenetração do “eu” e do “outro” que o conceito de psicologia interdividual tenta explicar.

Momento para refletir Nos ambientes onde você trabalha ou vive, você consegue... a)

Identificar a relação paradoxal que, por vezes, você mantém com o

outro? b)

Perceber como o objeto tende a passar ao segundo plano?

c)

Perceber como, finalmente, o objeto tende a ser esquecido, até mesmo

danificado, prejudicado ou destruído? d)

Perceber a dimensão contagiante do conflito? E a decisão radical que

precisamos tomar: prejudicar o outro, a relação, e consequentemente a si próprio, ou renunciar a algo para preservar as condições da convivência?

Recomendamos Sobre a temática da rivalidade mimética: A Querela dos Antigos e Modernos https://pt.wikipedia.org/wiki/Querela_dos_Antigos_e_Modernos Os Criacionistas contra os Evolucionistas https://www.comciencia.br/dossies-1-72/200407/reportagens/04.shtml Na cena 3 do ato II da peça de teatro de Molière “Le Bourgeois Gentilhomme” 25

Rivalidade no Santo Sepulcro: https://www.youtube.com/watch?v=zWkGQ7OxMLg Guerra entra gangues rivais. Não se sabe mais qual é o objeto: https://www.lemonde.fr/m-le-mag/article/2021/05/28/un-frere-mort-et-un-autre-en-prisonla-guerre-des-bandes-a-evry_6081799_4500055.html Rivalidade mimética entre grupos terroristas: https://www.lemonde.fr/afrique/article/2021/05/21/au-nigeria-l-etat-islamique-engagedans-une-lutte-a-mort-face-a-boko-haram-et-son-chef_6081061_3212.html Rivalidade entre famílias, passando por várias gerações (vendeta): Exemplo no cinema: Abril despedaçado, de Walter Salles (2001)

Sobre a temática do bode expiatório: -A música de Chico Buarque Geni e o Zeppelim; -https://www.youtube.com/watch?v=jWHH4MlyXQQ / - A música francesa de G. Brassens “Hécatombe”; - Cenas descrevendo a crueldade de um salão parisiense, na obra Sodome e Gomorra, de Marcel Proust (capítulo 2); -Freaks (A Parada de Monstros), filme de Tod Browning (1932); -Malena, filme de Giuseppe Tornatore (2000); - Exemplo de um ritual de bode expiatório na Antiguidade: o Pharmakos.

- Um homem não consegue encontrar o seu rival, sai na rua e agride um adolescente que andava (artigo em francês). https://www.20minutes.fr/justice/3015875-20210407-bourg-bresse-parvenant-retrouverrival-dechaine-ado-demonte-pneu -O perigo da inibição e do ressentimento: O que os americanos chamam de shame-rage spiral. Adolescentes que sofrem bullying podem acumular ressentimentos e armar planos de vingança contra “o mundo”, tido por responsável pelo seu sofrimento: “não sofrerei sozinho”. A meu ver, o caso de Saudades, SC, tem a ver com esse fenômeno. https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/2021/05/04/autor-dos-crimes-em-escola-primariade-sc-sofria-bullying-e-maltratava-animais - O Caso Dreyfus. Processo que dividiu a França, no início do século 20.

Ver o filme de Roman Polanski: O Oficial e o Espião Ver a curta metragem A Peste da Janice: https://portacurtas.org.br/filme/?name=a_peste_da_janice 26

Do mecanismo do bode expiatório às rivalidades miméticas: Nas guerras de descolonização, o colonizador cumpre a função política do bode expiatório unindo, contra ele, vários grupos compondo a sociedade colonizada. Durante esse momento de união, parece que não existe nenhum problema a não ser a presença do colonizador. Depois de expulsar o ex-colonizador e conseguir a independência, não existe mais inimigo comum externo e, frequentemente (re)aparecem as rivalidades internas entre os grupos. É provável, então, acontecer uma guerra civil para assumir o poder (Tajiquistão, Argélia). É possível perceber o mesmo fenômeno ao término de uma ditadura e da morte do ditador (Iraque, Líbia etc.) É o caso também de alianças políticas. Quando vários partidos se unem para barrar um presidente em função, a distribuição dos cargos depois da conquista do poder pode ser problemática.

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6. As causas e os perigos dos conflitos “Compreender a guerra é compreender o ser humano.”

Anônimo

Entre as causas geralmente mencionadas para explicar os conflitos, podemos citar as diferenças entre as pessoas ou grupos. “Não conseguimos nos dar bem, porque somos diferentes demais uns dos outros”; “nossos valores são diferentes demais para conseguirmos conviver juntos”. De fato, conviver com pessoas que têm valores e prioridades muito diferentes representa um grande desafio. Mas não será porque compartilhamos algo em comum, ou seja, um determinado espaço ou o desejo que cada um possui de fazer prevalecer sua visão, que o conflito ocorre?

Outro exemplo: se o valor “respeito” não for de fato algo prezado por nosso interlocutor, a relação poderá gerar conflito e existe o risco de imitarmos a falta de respeito dele. Entraríamos, então, numa reciprocidade negativa com risco de envolver e contagiar outras pessoas. É assim que ciclos de vendeta entre grupos rivais podem começar: um desaforo, um olhar “enviesado”, um gesto interpretado como sendo hostil ou desrespeitoso etc. Por isso, lidar com conflitos é saber considerar e gerenciar essa mistura complexa de diferenças e semelhanças, ou seja, é compreender o papel fundamental da imitação nas relações humanas.

Outra explicação comum para justificar os conflitos é a falta de recursos, a escassez (de alimento, de água, de terra etc.). Essa explicação foi rejeitada por Paul Dumouchel (1979) quando mostrou que mesmo tendo abundância objetiva de recursos, é possível surgir rivalidade, concorrência e competição. Estas, por sua vez, irão gerar escassez! Para prejudicar o rival ou antecipar a posse dos recursos por ele, observamos que o ser humano é capaz de adquirir o máximo possível antes do rival, gerando, por um lado, abundância para poucos e, por outro, escassez para muitos. Na lógica da guerra, por exemplo, para prejudicar o inimigo, o ser humano é capaz de destruir uma região ou um país cobiçado por ambas as partes, gerando escassez para todos.

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O conflito gera um estresse para as pessoas envolvidas nele e, caso se estenda no tempo, ele afetará a saúde moral, mental, psicológica e física das pessoas. Conforme a famosa Lei de Lavoisier: “nada se perde, nada se cria, tudo se transforma”. Assim, a energia desencadeada pelo conflito terá consequências nas pessoas envolvidas (podendo se transformar em doenças crônicas, autoimunes ou comportamentos autodestrutivos) e nas suas relações.

Se o conflito for “deixado solto”, ele é capaz de se transformar em violência.

Conforme vimos, esta é prejudicial por sua dimensão destrutiva: do objeto, do outro e daquele que a desencadeou. Numa linguagem própria ao mestre budista vietnamita Thich Nhat Hanh, o “eu”, o objeto e o outro, “intersão”. Assim sendo, não há como tirar proveito e prejudicar o outro sem, em um nível ou em outro, se autoprejudicar. .

Momento para refletir a) Você já observou os efeitos do conflito sobre você ou sobre alguém? b) Quais foram as consequências concretas? Como foi o desfecho? c) Você observou o “gosto amargo” da vitória antiética num conflito? d) Você já observou esse interser do eu, do outro e do objeto?

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Recomendamos Vídeo intitulado “Imitose”, do grupo de comédia Os Barbixas: https://www.youtube.com/watch?v=iwjYwHmYO5g

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7- Elementos de inteligência emocional “O Homem quer controlar o mundo, no entanto não controla nem seus pensamentos; Será que o Homem quer controlar o mundo justamente porque não controla seus pensamentos?”

Anônimo

A proposta da inteligência emocional é trabalhar com as emoções e não contra elas. Para esclarecer esse ponto, é crucial saber diferenciar emoção e comportamento, pois nisso encontra-se uma “chave de ouro” para apaziguar os conflitos. De fato, muitas vezes não fazemos essa distinção. Por não fazermos essa distinção, não conseguimos acolher “algo” legítimo vindo do outro e reagimos com dureza a um comportamento “agressivo” (ou sentido como tal). Por exemplo: podemos “acolher” (reconhecer ou validar) a raiva de alguém sem aceitar seu comportamento, percebido como sendo agressivo. O que está em jogo, nesse acolhimento, é evitar que nos tornemos um obstáculo-fascinante para o outro18. Vamos ver isso em detalhes nesse capítulo.

Primeiramente, é muito importante distinguir duas coisas:

a-

Ter emoções e sentir emoções

b-

Emoção e comportamento

a- Ter e sentir emoções O tempo todo, temos emoções de mais ou menos forte intensidade. Basta um cheiro de cozinha penetrar nossas narinas e desencadear a memória agradável de um jantar para revivermos a alegria daquele momento. Quer seja por estímulos externos e/ou por memórias de situações passadas, associadas a momentos agradáveis ou desagradáveis, temos emoções. O fato de lembrar desencadeia as mesmas emoções que tivemos 18

Na rivalidade mimética, os dois protagonistas constituem um obstáculo fascinante um para o outro.

Assim, acabam esquecendo ou destruindo o objeto. Por isso, nessa abordagem, buscamos não magoar ou humilhar o outro, para que ele não se torne um rival. Por exemplo, é aconselhável evitar o uso do “imperativo”. Quando dizemos “Calma!”, raramente essa palavra acalma alguém agitado.

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durante a situação real. Somos continuamente atravessados por emoções. Se deixássemos de ter emoções, a vida cotidiana se tornaria difícil, até inviável. Paul Ekman (2007) afirma que elas são: •

Automáticas;

•

Instantâneas;

•

Não conscientes (pelo menos nos primeiros momentos).

Um dos objetivos da inteligência emocional (D. Goleman, 1997) é, portanto, o de cultivar a habilidade de identificar, o mais cedo possível e com precisão, as emoções desagradáveis e perigosas (raiva, ódio, ciúme, orgulho etc.). Essa habilidade aumenta o leque de possibilidades de ação, assim como a liberdade e o espaço entre o momento do surgimento da emoção e a resposta comportamental que ela desencadeia.

Isso é possível através, por exemplo, de técnicas de “atenção plena” (mindfulness), definida como: a arte de prestar atenção ao que está acontecendo no corpo e na mente, a cada momento, sem julgamento, com uma motivação benevolente (J. Kabat-Zinn, 1996)19.

A atenção plena leva a uma postura ética e prática fundamental. Ao distinguir entre emoções e comportamentos, abrimos uma brecha, uma porta para novas possibilidades de ações. Uma emoção pode ser detectada, observada, identificada, reconhecida, nomeada, acolhida através das suas manifestações cognitivas (o conjunto de pensamentos associados a ela) e fisiológicas (a maneira como ela se expressa através do corpo e de seus processos: sensações desagradáveis, respiração curta ou ofegante, alteração do ritmo cardíaco etc.).

19

Neste ponto, a atitude desenvolvida pelo Mindfulness tal como definida pelo especialista Jon KabatZinn é muito importante. Mindfulness, ou Atenção Plena, “é a consciência que surge quando se presta atenção aos pensamentos, sentimentos, sensações, propositalmente, no momento presente, sem julgamentos, a serviço do autoconhecimento e da sabedoria” (1996).

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Essa postura de observação bem-intencionada e curiosa (características do mindfulness) gera uma transformação do objeto observado (a emoção). Em outras palavras, a observação modifica o seu próprio objeto. Não adianta querer negar ou cancelar a emoção. Enquanto energia potencialmente forte, querer esconder e negar a emoção seria semelhante a querer tampar um vulcão ou parar o fluxo de um rio possante.

Isso geraria uma série de danos sérios, como os efeitos psicossomáticos citados acima.

O que começamos a entender nesse processo, é que a emoção não é o comportamento. O comportamento é a sua manifestação visível, observável com efeitos objetivos no mundo e, logo, deixa de nos pertencer para afetar os outros. Disso provém a distinção ética entre a emoção/sentimento e o comportamento. Qualquer emoção/sentimento (e os pensamentos que lhes são associados) são legítimos e, portanto, totalmente aceitáveis. No entanto, nem todos os comportamentos que são a manifestação deles, são aceitáveis, adequados ou eficientes.

Essa afirmação vale para si mesmo e para os outros e permite reavaliar toda uma série de hábitos (cognitivos e comportamentais) que buscam justificar, racionalizar ou legitimar o comportamento (potencialmente inadequado) por causa da legitimidade da emoção. Existem, por exemplo, pessoas que pensam e falam: “Eu sou sincero, digo as coisas. Defendo meus direitos. Não vou mudar.”

Segue agora um exemplo concreto para demonstrar o que estamos afirmando:

Quando se fala de uma pessoa como sendo “invejosa” ou “ciumenta”20, reduz-se a pessoa a um certo tipo de comportamento repetitivo, identificável (opinando sobre a vida alheia, criticando, intrometendo-se) que, por sua vez, é a manifestação de sentimentos, pensamentos etc. Cometemos, então, um erro de redução, de confusão,

20

A inveja e o ciúme não são sinônimos, embora sejam sentimentos complementares.

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pois misturamos ora os sentimentos, ora os comportamentos das pessoas, com sua personalidade. Ao invés de distinguir entre sentimento (a inveja) e o comportamento (a cobiça, a hostilidade, a agressividade por não conseguir possuir o objeto), condenamos moralmente a pessoa, impedindo a mesma de olhar e aceitar o sentimento. Resumindo: a inveja como sentimento pode (deve!) ser reconhecida e aceita (pois dificilmente conseguimos impedir que ela surja em nós); porém, o comportamento desencadeado por ela (hostilidade, palavras que minam o trabalho ou a reputação de alguém) pode (deve!) ser trabalhado, pois este entra no campo das relações sociais.

De fato, a inveja, nas suas manifestações comportamentais é perigosa, pois potencialmente destrutiva. Não é à toa que o autor George Foster, no seu artigo de antropologia comparada Anatomy of Envy (1972), notou que a inveja e o medo da inveja são fenômenos humanos universais. Observamos que a expressão “medo da inveja” reforça a confusão entre sentimento e comportamento, pois não é a inveja enquanto sentimento que é perigosa e, sim, o comportamento que procede desse sentimento que é perigoso. Entendemos melhor porque a “escolha” (inconsciente) da maioria das culturas (e não só da cultura judaico-cristã) foi de “criminalizar” a inveja, numa confusão dessas duas dimensões: o sentimento e o comportamento que procede dele.

Por outro lado, a inveja é difícil de ser aceita por aquele que a sente, pois isso o levaria a reconhecer a superioridade do seu modelo em relação a ele próprio. Podemos concluir que é mais eficiente e válido trabalhar com as emoções do que contra elas, embora seja extremamente desafiador. No entanto, isso parece ser uma condição imprescindível para o “autoconhecimento”.

Constantemente “temos” emoções. Antônio Damásio (1995), fiel à tradição espinoziana, reconhece a centralidade dos afetos na vida subjetiva e social ao ponto de mostrar que uma ausência de afetos e emoções é sinal de patologia, podendo prejudicar gravemente a capacidade do sujeito para viver em sociedade e para tomar decisões racionais. Razão e emoções não se opõem, mas precisam entrar em diálogo. Uma 34

racionalidade ampliada leva em consideração as emoções. Apesar da importância de levar em consideração as emoções que nos movem, ou pelas quais somos movidos (do latim movere, mesma raiz de emoções, comover), muito raramente paramos para sentilas.

Assim, não basta “termos” emoções. Precisamos ficar mais conscientes delas, ou seja, é fundamental “senti-las”, percebendo sua qualidade e intensidade, nomeando-as, acolhendo-as, observando-as. Quando uma emoção surge, paramos e focamos a atenção para dentro de nós. Somos, então, capazes de identificar sensações, pensamentos associados à emoção, podemos nomeá-las e estas se tornam sentimentos. Podemos doravante dialogar internamente com os sentimentos e comunicá-los (manifestá-los) de forma mais adequada, como veremos posteriormente.

b. Comportamento e emoção21

Abordaremos agora a diferença fundamental entre comportamento e emoção.

Mas por que é tão importante saber diferenciar emoção de comportamento?

Fazer essa diferenciação é algo essencial porque a emoção é uma vivência ainda interna, íntima. Conforme vimos, a palavra emoção remete “ao que gera um movimento”, ou seja, à fisiologia do corpo e a cognição.

É um fenômeno perfeito para quem quiser estudar as interações complexas entre cognição, fisiologia e relações sociais. Porém, ainda assim, podemos dizer que a emoção é uma vivência interna que não impacta de forma imediata na relação com o outro. Por

21

Essa parte deve muito às conversas e diálogos que tive com meu pai, o médico e terapeuta Jean-Yves Aubin. Um agradecimento especial a ele que, anos atrás, me apresentou essas ferramentas e que nunca deixei, desde então, de utilizar (assim como a lista de emoções que as acompanha).

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isso, todas as emoções são aceitáveis, talvez até mesmo legítimas, embora algumas vezes sejam baseadas em percepções equivocadas ou errôneas. Uma emoção pode também diminuir em intensidade ou, com sua releitura, fazer com que interpretemos diferentemente a situação.

No entanto, o comportamento, que na nossa linguagem é a expressão da emoção, impacta diretamente nas relações sociais. Essa é a razão pela qual o comportamento deve ser avaliado em função de critérios éticos, morais e de eficiência. Existem comportamentos danosos para si e para os outros. Existem também comportamentos antiéticos e ilegais. Outros são adequados, eficientes, fonte de bem-estar para si e para os outros. Esses últimos comportamentos são chamados “assertivos”. Ora, como não são espontâneos nem inatos, precisam ser aprendidos e praticados. Afirmamos isso porque é raro uma pessoa saber identificar e expressar seus sentimentos com clareza sem ter passado por um processo de educação, de “alfabetização emocional”.

Por isso, iluminemos com consciência a sequência: pensamentos automáticos, emoções e comportamentos. Tentemos, em seguida, aumentar o tempo entre emoções e comportamentos para sair da repetição dos padrões. A famosa citação de Viktor Frankl (1988) diz tudo: “Entre o estímulo e a reação, há um espaço. Neste espaço está nosso poder de escolher nossa resposta. Na nossa resposta está nosso crescimento e nossa liberdade.”

Ilustremos essa sequência pela tabela seguinte (Figura 3), servindo de base à análise funcional de Aaron Beck. Os itens 3 e 4 desta tabela serão detalhados em seguida (Figura 4).

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1-Contexto

2-Situação / fatos

3-Pensamentos automáticos / interpretação

4-Emoções

5-Manifestações

6-Consequências

Tudo que ajude a entender a importância da situação (o que aconteceu antes, quem estava presente durante os fatos, etc.).

Uma interação breve que pode ser situada e datada.

“Como eu percebi os fatos?”

Descrevê-los da forma mais objetiva possível.

Descrever, contando com as nossas limitações e evitando qualificar.

As frases interiores (o discurso mental que surgiu no momento da situação/dos fatos).

* Ver a coluna 4 da tabela abaixo (Figura 4: Emoção)

a-Fisiológicas Sensações agradáveis ou desagradáveis

a-Pessoais

b-Comportamentais Expressão visível da emoção (inibição, agressividade, fuga, estratégias etc.)

b-Interpessoais

* Ver a coluna 3 da tabela abaixo (Figura 4: Interpretação da situação)

Figura 3: Análise funcional de Aaron Beck

As tabelas abaixo detalham os pontos 3 e 4 citados acima, ou seja, como interpretamos as situações com as quais nos deparamos e as emoções que elas podem desencadear em nós:

3- Interpretação da situação

4-Emoção

Observado e julgado pelos outros

Vergonha

Falta / culpa

Culpabilidade (sentimento de culpa)/ vergonha

Feio / sujo

Asco / nojo

Ferida (física ou moral)

Dor / sofrimento

Sofrimento de outra pessoa

Piedade / compaixão

Espera / repetição de uma situação

Impaciência

Perda dos pontos de apoio

Dúvida

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Desejar o objeto de outra pessoa ou um

Inveja

traço da personalidade /querer ser a outra pessoa Medo de perder o objeto em prol do rival

Ciúme

Dar/receber/intercambiar

Alegria

Alguém de belo, de bom, de talentoso

Admiração

Encontro

Amor

Superar a si mesmo e aos outros

Orgulho

Imprevisto

Surpresa

Perigo/ impossibilidade de agir / falta de certeza

Medo/angústia

Desconhecido

Apreensão/ansiedade/medo

Injustiça / agressão

Raiva/revolta/medo

Traição

Ódio/rancor/raiva

Perda / separação

Tristeza / pena

Não satisfação de um desejo

Decepção / frustração Figura 4: Autor: Dr. Jean-Yves Aubin

A análise funcional é uma ferramenta aparentemente simples. No entanto, é muito útil, pois ajuda no discernimento entre os fatos em si (coluna 2) que se inserem num contexto maior (coluna 1) e a interpretação dos fatos (coluna 3 - o discurso interno, as frases, a maneira como se julgou, avaliou, qualificou os fatos). Esses pensamentos permitem “rastrear” e identificar a emoção a eles associada. Em seguida, podemos identificar as emoções (coluna 4) e as suas manifestações fisiológicas (coluna 5ª sensações agradáveis ou desagradáveis).

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Depoimento "O curso foi transformador, pois me ajudou a ver a situação de maneira mais clara dentro da complexidade das circunstâncias. Significou uma luz na noite escura."

Fernanda Patrícia Soares Souto Novaes, Médica Pediatra, Professora

Na coluna 5b identificamos o comportamento (fuga, inibição, agressividade ou estratégia22), que são a manifestação de uma emoção. Enfim, descrevemos as consequências pessoais (6a) e interpessoais (6b) do comportamento. Seguem alguns exemplos dessas consequências, relacionadas a três comportamentos: inibição, agressividade e manipulação.

Consequências possíveis Inibição23

Agressividade

Manipulação

-Insônia

-Desgaste energético

-Cansaço mental

-Desânimo

-Desgaste relacional

-Desconfiança

-Enxaquecas

-Isolamento social

-Clima “pesado”

-Frustração

-Sentimento de culpa

-Desgaste relacional

-Baixa autoestima

-O agressivo pode se tornar o

- Violência

-Doenças psicossomáticas

bode expiatório

(adoecimento) -O inibido pode se tornar o bode expiatório Figura 5: Elaboração do Autor

22

Descrevemos em detalhes esses comportamentos no próximo capítulo.

Segundo os trabalhos da Escola de Palo Alto (Califórnia), logo que existe interação, seres humanos que se encontram na presença uns dos outros, “não podem deixar de se comunicar”. O silencio do inibido comunica algo para as outras pessoas, que irá retroagir sobre o inibido, reforçando seu comportamento ou o modificando.

23

39

As colunas 1, 2, 5 e 6b da figura 3 descrevem fenômenos externos (objetivos). As colunas 3, 4 e 5a descrevem vivências internas, subjetivas.

A seta indica que, logo que o comportamento penetra a esfera interpessoal, a sequência recomeça. Ela volta a alimentar o contexto futuro e as situações que dele procederão.

Assim, é possível ter conflito sobre a percepção dos fatos: “Não aconteceu assim!” versus “Sim, aconteceu dessa forma!”

Ou sobre a interpretação dos fatos: “Ok, aconteceu desse jeito, mas não foi o que quis dizer” versus “Sim, foi intencional”

Momento para refletir a)

Você compreendeu a diferença entre ter emoções e sentir emoções?

b)

Você é agora capaz de distinguir emoções e comportamentos? Por que

é tão importante fazer essa distinção? c)

Comente a afirmação seguinte:

Sentir emoções requer tempo, lucidez, vocabulário para nomeá-las e ter mais soberania sobre elas.

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8. Os comportamentos típicos em situação tensa ou conflitante “Além da fuga, existe outra forma de escapar da inibição da ação: a luta. A violência é a forma de expressão mais frequente, geralmente ineficaz, mas que tem a grande vantagem de servir de válvula de escape. A fala também pode desempenhar esse papel, e há trocas verbais que nada têm a invejar a uma expressão mais física de violência.”

Henri Laborit, La légende des comportements.

Chegamos aqui a um ponto crucial de nossa jornada rumo a uma maior compreensão da dinâmica dos conflitos e descoberta das formas alternativas de lidar com eles. Refiro-me aqui à coluna 5b de nossa tabela (figura 3). O biólogo francês Henri Laborit estudou os diversos comportamentos animais em situação de estresse (ou de tensão) 1- A agressividade 2- A fuga 3- A inibição (da ação) 4- As estratégias (negativas; inadequadas ou arriscadas; e positivas) Embora o estresse e os conflitos humanos envolvam uma complexidade maior do que os conflitos animais de forma geral (possuindo, por exemplo, dimensões subjetivas, existenciais e morais), os padrões fundamentais são os mesmos. O conflito é exatamente uma situação geradora de tensões e estresse. Por isso, é de suma importância conhecer esses padrões para poder identificar os nossos, ou seja, como tendemos a reagir em situação de conflito.

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Figura 6- Os 4 tipos de comportamentos em situação de tensão.

Apresentaremos agora cada um desses comportamentos:

1. A agressividade, verbal ou física, é o confronto, a luta, o ataque. Literalmente, agredir significa “andar rumo a”. A agressividade, quando costumeira em uma pessoa, acaba definindo a mesma. Fala-se, então, de pessoa agressiva. A pessoa agressiva se sente no seu direito, ou pelo menos, parece lidar bem com o sentimento de culpa que eventualmente possa sentir por ter machucado alguém. A raiva (a emoção) que a move, e o comportamento, formam um só. Já que sente que a emoção é legítima e não distingue a emoção do comportamento, ela não percebe nenhum problema em seu comportamento agressivo. Acha que ele é válido, legítimo e não percebe o quanto esse comportamento contribui para gerar um ambiente desgastante.

Em outros casos, a agressividade pode ser o resultado de um déficit de habilidades sociais, ou de uma sensibilidade exacerbada, descontrolada. A pessoa tem dificuldade em esperar para lidar com a raiva e age de forma impulsiva. Nesse caso, pode haver, em seguida, um sentimento de culpa que pode levar à inibição, em um movimento pendular que acaba sendo cansativo para a pessoa e seu entorno. A pessoa possivelmente se tornará presa dessas oscilações cognitivas e comportamentais, sem nunca criar um

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espaço interno de acolhimento, auto-observação e amadurecimento. Fala-se, nesse caso, de perfil passivo-agressivo.

A agressividade pode também caracterizar pessoas determinadas em não deixar acontecer injustiças direcionadas a elas ou aos outros. A energia (a emoção) que as move, é a raiva. De fato, esta emoção (sentimento) está relacionada ao senso da justiça/injustiça. No mais, o problema ético-moral que surge quando se recorre à agressividade está ligado aos seus efeitos colaterais desgastantes, destruidores e paradoxalmente causadores potenciais de injustiça. Será que o agressivo, por exemplo, não está se enganando de pessoa? Será que, ao expressar assim sua raiva, ele não está desqualificando o outro, menosprezando-o, humilhando-o, gerando rancor e/ou raiva no outro?

Repetimos: a emoção (raiva) pode ser legítima, mas o comportamento pode ser questionável, inaceitável. Além disso, a interpretação (da situação) que gerou a raiva (ou qualquer outra emoção) pode estar equivocada, pode ser parcial, seletiva, sofrendo distorções cognitivas. Consequentemente, isso pode acarretar comportamentos

ilegítimos, inadequados, incompreensíveis para o outro ou, ainda, errados24.

2. A fuga

Trata-se aqui do distanciamento físico da zona de estresse, do conflito gerador de emoções. Ela é diferente da inibição. A energia que podia ser voltada para a agressão (contra o outro) é utilizada para fugir. Em termos humanos, a fuga é ambivalente. Ela pode ser necessária para nossa preservação moral e física. Porém, por vezes, em termos de crescimento e amadurecimento, precisamos enfrentar desafios e obstáculos. Se cada vez que encontrarmos um obstáculo, optarmos pela fuga, deixaremos de aprender e crescer.

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No entanto, a agressividade (ou a pessoa agressiva) pode possuir qualidades (coragem, determinação, senso de justiça) que precisam ser consideradas e valorizadas, quando queremos praticar a assertividade.

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Em termos comportamentais, a fuga não tem conotação positiva, negativa ou moral. Por exemplo, a fuga do animal certamente não terá impacto em sua autoestima!

Ele não será apontado como “covarde” pela sua espécie, mas no caso do ser humano pode ter essas consequências. No entanto, no Elogio da Fuga, Laborit25 defende a ideia de que existem certas situações pelas quais não valem à pena sofrer ou adoecer. O autor promove a ideia que, em certos casos, é melhor se afastar do que persistir em querer mudar determinada situação, ou pessoas que não desejam mudar26.

Resumindo: segundo as pesquisas de Laborit, quando um animal se encontra em uma situação de estresse, ele pode atacar (agressão) ou fugir. Porém, quando por algum motivo, ele não pode nem fugir nem atacar, ele se encontra em uma situação de inibição da ação.

3. Na inibição, toda a energia que podia ir para a fuga ou a agressividade, volta-se para o próprio organismo. Esse comportamento, que Laborit estudou em detalhes com animais, assume, conforme já disse, formas específicas quando se trata do ser humano.

No caso dos seres humanos, ele pode gerar as condições para o surgimento e/ou desenvolvimento de doenças psicossomáticas, autoimunes, com pensamentos associados (geralmente negativos) e um estado geral de desânimo, depressão e baixa autoestima; tendo o inibido a impressão de estar em um impasse. Quando esse comportamento se torna um hábito comportamental, ou seja, uma característica da pessoa, pode então se tornar perigoso.

Diante de uma situação de conflito ou de tensão com o outro, existe uma dimensão moral associada à inibição e que é especificamente humana: um sentimento de culpa ou de vergonha: “Não posso falar, não posso ser sincero, vou magoar, machucá-

25

Ver o artigo Henri Laborit and https://www.ncbi.nlm.nih.gov/pmc/articles/PMC3984888/

the

inhibition

of

action:

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Na segunda sessão do curso “Prevenção e gestão de conflitos”, uma aluna vem me ver e diz: “Ludovic, depois da primeira sessão, resolvi sair do meu trabalho” Fiquei preocupado e me sentindo culpado. “Não se preocupe. Foi a melhor coisa que fiz. Há anos que estou aguentando e tentando mudar o comportamento de meu patrão, mas ele não vai mudar! Ele sempre foi assim. Estou exausta. Agora ingressei num curso que sempre quis fazer e estou me realizando.”

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lo.” Logo, a inibição está relacionada com a (auto)censura, a omissão, e provoca frustração, impressão de “ser covarde”, com consequências prejudiciais na autoimagem e na saúde (por exemplo, baixa qualidade do sono).

A inibição é geralmente uma característica das personalidades observadoras.

Estas podem tender a valorizar demasiadamente a observação do mundo, dos outros, a empatia, a compreensão dos outros, a forma como funcionam, omitindo a autoobservação ou, ao menos, a observação dos próprios sentimentos, necessidades e demandas.

Nas formas extremas, ou quando essa postura observadora se estende demais, o inibido pode entrar em um túnel, um impasse, um labirinto que vai afunilando, trazendo a sensação de não poder mais sair. Essa situação gera angústia, dificultando ao inibido a visão de possíveis soluções, ou a possibilidade de pedir ajuda. Esse pode ser um momento perigoso, pois a raiva guardada pode se voltar contra si mesmo sob a forma de pensamentos e de comportamentos hostis (autoagressão).

O paradoxo da inibição (ou passividade) é que, pelo medo da violência, esta pode favorecer a violência.

4. As estratégias podem ser negativas; inadequadas ou arriscadas; ou positivas.

Elas podem ser, portanto, destrutivas, desagregadoras ou, ao contrário, agregadoras, resolutivas. Entre as estratégias negativas, encontra-se a manipulação. A manipulação envolve uma série de atitudes e comportamentos, determinados pela intenção de beneficiar a si mesmo, inclusive prejudicando o outro ou tirando proveito dele se for necessário. Alguns exemplos de comportamentos manipuladores podem ser a mentira, a vingança e a chantagem. O manipulador acaba usando esses comportamentos de forma comum e frequente, recorrendo a todos os meios possíveis (gentileza, doçura, pressão, cobrança, assédio, pedido de desculpas, boatos, mentiras, violência psicológica, sedução, falsos elogios etc.) para alcançar seus fins. O lema “o fim justifica os meios” é a sua ética.

E é ele quem define esse fim.

Sobre esse assunto, gostaria de inserir um pequeno comentário:

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Para se proteger de um manipulador, é de suma importância registrar os eventos, anotar, ficar com provas físicas, conversar com terceiros competentes (“bem resolvidos”) para sondar se estamos “inventando” ou se realmente a pessoa está tendo conosco um comportamento estranho, manipulador ou até mesmo perverso.

Entre as estratégias inadequadas ou arriscadas em situação de tensão, encontramos ainda a ironia, o humor, o resguardo (ou evitamento). Estas podem ser mal interpretadas pelo outro, interpretadas como agressivas ou podem só protelar os problemas que vão, portanto, engrossando.

Entre as estratégias positivas encontramos a mediação, a escuta atenta, a CNV e a assertividade. Esta é, de fato, outra forma de comportamento possível diante de um conflito. Podemos considerá-la como uma estratégia positiva pois acreditamos que seja o caminho mais adequado e construtivo, aquele que menos provoca danos. Por essas razões, dedicaremos um capítulo exclusivo à “assertividade”, a fim de refletir sobre seu papel positivo nas relações conflituosas.

Momentos para refletir a. Você consegue identificar em que comportamento você se enquadra com mais frequência? b. Você consegue identificar com mais clareza o padrão de pensamentos / emoções/ comportamentos. c. Você percebe como seria proveitoso encontrar alternativas para evitar a repetição de padrões?

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9. A assertividade “Os estudos mostram que a assertividade melhora a autoestima, reduz a ansiedade, vence a depressão e aumenta a capacidade de realização, o nível de aceitação pessoal e a habilidade de se comunicar com os outros.”

Alberti R. e Emmons M. (2008)

A assertividade é deixar de nos sentirmos culpados por nossos sentimentos, mas nos sentirmos responsáveis por nossos comportamentos e corresponsáveis pelas situações nas quais estamos envolvidos. Segundo os autores clássicos dessa noção, ela é a atitude “que promove igualdade nas relações humanas, permitindo que possamos agir de acordo com nossos interesses, defender nossas posições sem ansiedade, expressar nossos sentimentos de maneira honesta e tranquila, além de exercer nossos direitos pessoais sem negar os dos outros” (Alberti e Emmons, 2008, 14).

Apresentaremos, agora, a origem da assertividade, as qualidades de uma pessoa assertiva, os propósitos e princípios desse comportamento estratégico, no sentido nobre da palavra “estratégia”, ou seja, um comportamento elaborado em função de uma adequação entre o fim e os meios usados para alcançá-lo.

De onde vem a assertividade?

A assertividade, como conjunto de técnicas e métodos de comunicação, nasce principalmente na segunda metade do século XX, sistematizada por vários psicólogos americanos e caracterizada como sendo o comportamento que mais atende às exigências éticas, sociais e psicológicas das sociedades democráticas contemporâneas. Nestas sociedades, por serem igualitárias em direitos, cada um precisa: 1) manter sua autoestima sem afetar a dos outros; 2) aceitar a competição social e as regras da meritocracia sem cair nos comportamentos-armadilhas que identificamos no capítulo anterior.

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Além dessas figuras inspiradoras da assertividade, existem algumas obras que considero como fundadoras desse conceito: o livro de Alberti e Emmons (2008) pode ser visto como um clássico; o de Marshall Rosenberg (2006), fundador do conceito de CNV, e o de William Ury (2018), sobre os Métodos de Negociação, são obras complementares da assertividade.

No curso, apresento a assertividade num aspecto um pouco diferente dessa abordagem psicológica, embora complementar. Para mim, a assertividade vai além da visão ocidental contemporânea citada acima. Ela pertence a uma tradição ética muito mais vasta.

Assim, gosto de ver a assertividade como a aplicação, na vida cotidiana, de princípios profundos que se forjaram nas lutas não violentas pelos direitos civis. Aqui estão alguns exemplos de figuras que inspiraram a assertividade: 1) Gandhi, que lutou de forma não violenta contra a dominação do império britânico, na Índia; 2) Rosa Parks e Martin Luther King, que lutaram contra a segregação racial nos Estados Unidos nos anos 1950-60; 3) ou ainda Thich Nhat Hanh, que lutou em prol da paz e da reconciliação durante as guerras do Vietnam (primeiro com a França e, em seguida, com os EUA).

Todas essas pessoas e obras (e várias outras) formam uma matriz metodológica assertiva. Há muitas outras pessoas, mais ou menos conhecidas, que nunca deixaram de acreditar no ser humano, na luta incansável pela dignidade sem cair no ódio contra o opressor, ou seja, sem reduzir a pessoa aos seus atos opressores e repetir, assim, a eterna roda do sofrimento e da violência.

Quais são as qualidades de uma pessoa assertiva?

Sendo as relações humanas, às vezes, explosivas, as qualidades a serem desenvolvidas para se tornar uma pessoa assertiva são comparáveis às qualidades de um desarmador de mina: intenção positiva, coragem, precisão /tato, determinação, paciência, controle emocional, vigilância, interesse pela tarefa.

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Podemos também nos inspirar das qualidades de um equilibrista focado em um objetivo, concentrado e relaxado, muito atento a cada passo, estando aqui e lá, tentando não cair para um lado (inibição), para o outro (agressividade) ou para trás (manipulação).

Fugir? Fica difícil!

A assertividade pode ainda ser caracterizada como sendo um “egoísmo altruísta” pois, de certa forma, o “inibido” não está sendo egoísta o suficiente, no sentido nobre da palavra (cuidar de si, não omitir seus sentimentos e necessidades; ter autoempatia). Ele precisa pensar mais no seu bem-estar. Em muitas ocasiões, ele se omite, encontrando desculpas para o comportamento do outro. O agressivo, por sua vez, precisa ser mais altruísta, pensar mais nas consequências do seu comportamento no outro.

O propósito da assertividade Os limites (as regras) têm como função facilitar a convivência, ou seja, evitar conflitos. Assim, um dos objetivos da assertividade é estabelecer regras, minimizando o risco que possa se tornar uma ocasião de conflito.

O comportamento assertivo é, portanto, aquele que alcança uma dupla meta: 1- Libertar o sujeito, permitindo a expressão de seus sentimentos 2- Sem ofender o outro

Em outras palavras, trata-se de evitar as armadilhas: sem censura, sem agressão.

Essa dimensão ética também tem um aspecto pragmático e estratégico, no sentido nobre da palavra. Uma pessoa que não se sentiu ofendida por nossas palavras ou atitudes, é uma pessoa que tem menos probabilidade de se tornar nosso rival ou nosso inimigo. Trata-se de uma maneira de reconciliar ética e eficiência, diminuindo a ocorrência de atritos e conflitos.

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Uma boa maneira de fazer isso é cuidar do outro (uma atitude respeitosa faz com que ele não se torne um rival ou um inimigo) pois, por estarmos interconectados a um nível que talvez não consigamos imaginar, o bem-estar do outro determina direta ou indiretamente o nosso.

Podemos concluir que cada comportamento em situação tensa tem suas vantagens, desvantagens e seus riscos. O agressivo precisa observar mais! O inibido precisa agir mais! Enfim, existe uma responsabilidade ética ao tomar conhecimento dos princípios da assertividade: temos que ter cuidado para não os utilizar na intenção de manipular as pessoas. São ferramentas poderosas!

Princípios da assertividade “O fim não justifica os meios!” A noção de pessoa é central na assertividade. É possível criticar (e discordar de) opiniões, ideias e valores. Porém, distinguimos esses aspectos da pessoa em si, que não se reduz a nenhuma deles.

A atitude assertiva é comparável à do médico que cuida de seus pacientes, independentemente da sua condição socioeconômica ou do seu passado. Segundo Illich (2006) e Girard (1999), encontramos raízes dessa ética na concepção que se tem de Deus nos Evangelhos, onde Ele “faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos.” (Mateus 5:45) 27. Essa ética parece chocante! Como tratar de forma igualmente respeitosa os maus e os bons? Para compreender melhor, precisamos resgatar a noção de pessoa. A pessoa é a dimensão divina, não condicionada, imaculada do indivíduo. A dimensão de Luz que nós, sujeitos comuns, não conseguimos enxergar.

Talvez precisemos treinar, educar nosso olhar sobre os outros e sobre nós mesmos como, por exemplo, com a ajuda de grandes mestres realizados, que conseguem enxergar essa

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Percebemos igualmente essa ética na Parábola do Bom Samaritano, ou na epístola aos Gálatas: “Nisto não há judeu nem grego; não há servo nem livre; não há macho nem fêmea; porque todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gálatas 3:28).

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dimensão no outro. Gandhi, por exemplo, falava de lutar contra as ideias imperialistas, mas não alimentava ódio contra seus “irmãos britânicos” 28. Já que o acesso a esses mestres é difícil, temos a possibilidade de desenvolver esse olhar através da leitura, meditação, oração, pedindo ajuda para desenvolver a paciência, a bondade, a lucidez etc.

Assim, a assertividade procura desenvolver o respeito comum. Por exemplo, quando se tem dificuldade de relacionamento com alguém, não é preciso amar a pessoa (ou gostar dela29), mas é possível, sim, respeitá-la. Respeitar tem a ver com o comportamento; amar envolve sentimento e, portanto, emoção. Assim, podemos afirmar que não se pode forçar uma emoção, mas é possível “modelar e moderar” um comportamento. Pode-se também criar as condições para que uma “emoção positiva” surja, assim como lapidar um comportamento para que ele não seja hipócrita, pois é possível ser sincero e respeitoso30.

Ser assertivo envolve, então, ter um mínimo de humildade. Trata-se de um processo de acertos e erros. A assertividade é um ideal. Não significa ter sucesso toda vez que surge uma situação tensa ou conflitante. Significa reconhecer quando nós erramos e saber pedir desculpas (em relação ao nosso comportamento, não em relação a nosso sentimento). Por outro lado, é saber apontar o comportamento problemático do outro, não seu sentimento. Ou seja, trata-se de não reduzir a totalidade da pessoa aos seus comportamentos. Ela é muito mais do que isso! É difícil, pois ficamos presos, apegados à

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No ocidente, a corrente filosófica chamada “personalismo”, de Emmanuel Mounier, Denis de Rougemont e Jean-Marie Domenach, pode ajudar a fundamentar a assertividade. Ela foi muito ativa durante os anos 30, foi uma tentativa notável de escapar às diversas tiranias e alienações da época: o nazismo, o fascismo, o stalinismo e o capitalismo, resgatando a noção de pessoa como sendo irredutível a qualquer definição ou uso instrumental dos sujeitos em prol de um ideal maior.

29 Aliás, podemos nos perguntar: o que significa gostar/não gostar de alguém? Quais os sentimentos associados a essas expressões?

30 A assertividade pode ser vista como a versão moderna e metódica da busca da palavra justa considerada fundamental em várias tradições. No evangelho de Mateus (15:11), lemos: “O que contamina o homem não é o que entra na boca, mas o que sai da boca, isso é o que contamina o homem.”

No Budismo, a Palavra Correta pertence ao Caminho Óctuplo da Liberação que leva do samsara ao Nirvana (extinção do sofrimento): “Abster-se de mentir, de falar em vão, de usar palavras ásperas ou caluniosas. Ao invés disso, falar a verdade, ter uma fala construtiva, harmoniosa e conciliadora.”

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forma. Por isso, é sempre bom nos questionar e duvidar das nossas certezas: uma dúvida serena.

A assertividade permite também lidar com pessoas manipuladoras, que criticam, chantageiam, julgam e argumentam. Essas atitudes fazem com que a pessoa se sinta culpada. No entanto, existem várias ferramentas e “dicas” para lidar com esse tipo de comportamento. Vejamos algumas:

Primeiro: deixar claro que, quando tomamos todo o cuidado para não prejudicar o outro, quando não cometemos uma falta intencional, não há objetivamente culpa. Pode haver sentimento de culpa, mas é exatamente isso que precisamos trabalhar.

Segundo: deixar a pessoa falar e focar na respiração consciente (ver capítulo 11).

Terceiro: deixar a liberdade para que a outra pessoa pense como desejar: "Você pode pensar assim / você tem todo o direito de pensar assim / respeito sua visão / entendo que possa não gostar da minha decisão."

Quarto: reafirmar com tranquilidade nossa posição: "Mas já tomei minha decisão / Mas pensei muito e sinto que é o melhor caminho para mim e, a médio e longo prazo, para nossa relação..."

Quinto: se a pessoa voltar a criticar: "Entendo que não esteja gostando", "como já falei, pode discordar, mas já tomei minha decisão”. Deixar a pessoa discordar, “resmungar” etc.

Não esquecer a necessidade de se afastar, de cortar as relações com a pessoa que manifesta um comportamento tóxico (neutralidade bem-intencionada).

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Dessa forma, os estudos mostram que a assertividade é o conjunto de comportamentos (respeito, sinceridade, autenticidade etc.) que traz mais bem-estar às pessoas (Alberti e Emmons, 2008), em comparação com outros comportamentos que foram citados (fuga, agressividade, inibição ou estratégias negativas ou inapropriadas).

Para podermos compreender melhor a essência da assertividade, é importante apresentar alguns elementos de inteligência relacional, para que possamos ampliar nosso horizonte de observação.

Momento para refletir

a. Você pode nomear alguns princípios da assertividade? b. Você percebe o benefício e o bem-estar que se pode obter ao aplicar os princípios e métodos da assertividade?

Recomendamos...

•

O filme Mon oncle d´Amérique (Meu tio da América), de Alain Resnais, que apresenta as pesquisas do biólogo Henri Laborit sobre a inibição e seus efeitos.

Recomendo um trecho no Youtube (em espanhol): https://tinyurl.com/yz5uxy3j

•

Filme Gandhi, de Sir Richard Attenborough.

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10- Elementos de inteligência relacional: ampliar nosso horizonte de observação reconsiderando a imitação

“A tendência para a imitação é instintiva no homem, desde a infância. Neste ponto distinguem-se os humanos de todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para a imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros conhecimentos, e nela todos experimentamos prazer.”

Aristóteles, Poética IV. “Em geral, podemos observar que os espíritos humanos são espelhos uns dos outros, não só porque refletem as emoções uns dos outros, mas também porque estes raios de paixões, sentimentos e opiniões podem refletir-se muitas vezes.”

David Hume Tratado da Natureza Humana (1739)

A fim de ampliar nosso horizonte de observação, gostaria de retomar e ampliar a noção de imitação e mostrar como ela é crucial para um maior entendimento dos conflitos.

Gostaria de ilustrar a importância da imitação com um experimento de pensamento: uma briga infantil. Vamos imaginar uma cena que cada um possa ter presenciado: duas crianças de mesma idade, rodeadas por vários brinquedos, porém brigando por um brinquedo específico. Um adulto chega e faz as seguintes perguntas: - “Quem viu primeiro o brinquedo?”

Essa pergunta tem relação com a anterioridade do desejo. Os dois respondem simultaneamente: - “Eu!” Cada um apontando para si mesmo. O adulto continua: - “Quem começou a briga?”

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- “Ele!” - Respondem ao mesmo tempo as crianças, apontando agora na direção do outro.

Na perspectiva da teoria mimética, do início do ciclo até o fim, encontramos a imitação. No início do ciclo, temos a escolha de um brinquedo interessante. Sabemos por experiência que o brinquedo facilmente acessível não desperta muito tempo a curiosidade de uma criança. Por vezes, na hora de receber um presente, a embalagem é mais interessante que o presente em si! A embalagem é o obstáculo. O que dá valor a um objeto, nós sabemos, é a dificuldade que se tem para acessá-lo e o adquirir. Entre crianças, muitas vezes, o brinquedo digno de interesse encontra-se na mão do outro.

Azar? Acaso? Não! diria Girard. Um objeto se torna desejável quando o outro o possui, poderia possui-lo ou parece estar interessado por ele.

Embora esse outro possa ter um interesse moderado para com o objeto, quando a “primeira criança” quer colocar a mão no brinquedo, este último se torna interessante.

Temos, neste caso, uma mediação dupla. Cada criança é modelo (mediador) do desejo do outro e, portanto, se transforma simultanea e automaticamente em obstáculo. Aquele que despertou ou reforçou nosso desejo também é o principal obstáculo impedindo o acesso ao objeto e, de fato, fazendo com que ele tenha ainda mais valor. Mas, e se ele se desinteressasse do objeto? É provável que nós também nos desinteressássemos...

Tragédia do desejo mimético quando o outro se transforma em modeloobstáculo! Modelo porque obstáculo. Obstáculo porque modelo...

Nesta fase, o objeto passa em segundo plano. Cada sujeito foca sua atenção no obstáculo fascinante que o outro representa. É a fase da acusação mútua. Cada um acusa o outro com sinceridade e na mesma intensidade da resistência, força e indignação demonstradas pelo outro (ou que este parece demonstrar), acusando o rival de ter se interposto entre ele e o objeto.

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A partir da teoria mimética é possível mostrar o caráter tragicamente infantil das brigas adultas.

Desenvolver uma inteligência relacional, é perceber e sentir que o “eu” (cada um de nós) não é uma entidade separada. Enquanto seres sociais, miméticos, cada movimento ou atitude dos outros (verbal ou não-verbal) percebidos por nós, nos afeta.

Sabemos desde Aristóteles31 que o pequeno anthropos é o mais imitativo (mimético) dos animais. Em 1961, no seu primeiro livro, René Girard defende a ideia de que o que define o ser humano, o desejo32, é imitativo (mimético). Longe de ser algo inato, íntimo e único (meramente biológico ou psicológico), ou então, longe de se enraizar no objeto em si, o desejo é essencialmente relacional, social e mimético, acontecendo principalmente entre os sujeitos. Essas são as conclusões da psicologia interdividual forjada por René Girard e o psiquiatra Jean-Michel Oughourlian (Girard, 1978, 307-369). Não existe, nessa abordagem, entidade indivisa e homogênea chamada self: o “eu” é integralmente constituído pelo(s) outro(s), cujos comportamentos, atitudes, aspirações, sugestões, desejos imitados acabam sendo incorporados e esquecidos como tais (imitados) pelo sujeito dando a este a impressão de agir espontaneamente, livremente. A teoria mimética afirma que como cada um é um nó único de configurações miméticas, não existem dois nós exatamente iguais. No entanto, o mecanismo mimético é o mesmo para todos.

Em 1995, a descoberta dos neurônios espelho por G. Rizzolatti e V. Gallese, veio comprovar a natureza estruturalmente social do ser humano intuída pelos maiores pensadores (Aristóteles, na antiguidade; e R. Girard, na contemporaneidade). Essa descoberta mostrou que as células cerebrais, chamadas de neurônios-espelho, refletem o mundo social exterior: elas se ativam quando você realiza uma ação e quando você só faz observar alguém realizá-la. Vittorio Gallese (2003) específica: 31

Capítulo IV, Origem da poesia. Seus diferentes gêneros. Aristóteles, Poética IV, 2 tome III p.31, tradução de Marcel Jousse, citado par Jean-Michel Oughourlian na Genèse du désir, Carnets Nord, Paris, 2007, p.

79.

32 Condizendo, nesse sentido, com a visão espinoziana do ser humano.

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Nós descobrimos no cérebro de macacos uma classe de neurônios pré-motores que disparam não apenas quando o macaco realiza ações com a mão estendida em direção a um objetivo, como, por exemplo, para agarrar objetos, mas disparam também ao observar outros indivíduos (macacos ou humanos), realizando ações semelhantes. Nós os chamamos de neurônios-espelho. A observação da ação faz com que o observador ative automaticamente o mesmo mecanismo neural disparado pela execução da ação.

A inteligência relacional proposta aqui consiste, portanto, em aceitar a imitação como parte constitutiva da condição humana. Isso significa aceitar que é normal ver no outro um modelo (um espelho) e perceber que também podemos ser modelos para ele. É aceitar também sentir a inveja e o ciúme (e deixar de se sentir culpado por isso) como sentimentos decorrentes da condição humana, que se encontra constantemente em situação de imitação dos desejos uns dos outros. Como consequência, se o outro é nosso modelo e se tanto o desejo dele como o nosso convergirem para o mesmo objeto, automaticamente nós nos transformaremos em obstáculos um para o outro. Viraremos modelo/obstáculo um para o outro.

Nossa liberdade não consiste, portanto, em deixar de desejar ou de imitar. Isso seria amputar o ser humano de uma dimensão essencial dele (o desejo) e de uma aptidão natural e indispensável (inclusive automática!) para todas as aprendizagens das quais ele é capaz : a imitação. No entanto, a liberdade consiste em ter cuidado na hora de escolher nossos modelos. Imitar os desejos dos nossos amigos e desejar possuir os objetos deles (ou até o ser deles, nas formas ontológicas da inveja), seria extremamente perigoso e levaria

a

conflitos

sem

fim

transformando

nossos

irmãos

humanos

em

modelos/obstáculos (rivais e/ou inimigos). Na contramão desse perigo, existem modelos cuja imitação só traz frutos positivos, doces, e não amargos, pois só querem nosso bem.

O Buda para os budistas; o Cristo para os cristãos; uma avó bondosa que só quer nosso bem; pais, amigos e professores “bem resolvidos”, são modelos que podem nos inspirar no caminho rumo à assertividade pois o olhar que põem nos outros irmãos humanos é um olhar de compaixão, compreensão, amor, perdão...

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Momento para refletir a) Você percebe a importância da imitação na sua vida? b) Quais as reflexões, ou insights, que isso lhe traz? c) Você percebe as vantagens em analisar as situações na perspectiva da “teoria mimética”? d) A distinção modelo / rival / obstáculo, ficou clara?

Recomendamos 1) Segue um vídeo que uso muito nos cursos a fim de ilustrar o desejo mimético e a rivalidade mimética entre duas crianças. Basta escanear esse QR Code:

ou clicar nesse link: https://youtu.be/vB36k0hGxDM?t=5 2) Uma cena do filme “O Grande Ditador”, de Charles Chaplin.

https://www.youtube.com/watch?v=dLyd7v0RwNI

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11- A respiração consciente na gestão de conflitos “A respiração é a ponte que conecta a vida à consciência, que une o seu corpo à sua mente.

Sempre que sua mente ficar dispersa, use sua respiração como um meio para apaziguá-la novamente.”

Thích Nhất Hạnh, O Milagre da Atenção Plena

Nós estamos acostumados a correr a ponto de não conseguirmos parar. Mesmo quando não há necessidade, continuamos correndo, nem que seja "na nossa mente". É, portanto, crucial saber parar “mente e corpo”. Por que e como?

Vimos o quanto as emoções são importantes. Vimos também que nossa liberdade não está em termos ou não emoções, desejos; em imitarmos ou não alguém. Essas dimensões do ser humano não podem ser canceladas ou eliminadas. No entanto, quando uma emoção (como o ciúme, a raiva, o medo, o orgulho, o rancor, a frustração etc.) surge em nós, o que podemos fazer é aprender a: 1. Parar, sentar:

Essa imagem mostra um empresário que parece estar frustrado por não conseguir dar conta de todas as demandas diárias, que podem se transformar em autocobranças.

Isso pode gerar conflitos internos e externos. O melhor, nesse caso, não seria parar, sentar-se e respirar para discernir mais claramente o que é prioritário, secundário ou fútil.

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Isso permitiria encontrar soluções e palavras assertivas, para comunicar as decisões aos colaboradores.

2.Voltar a respirar conscientemente, seguindo e desfrutando da respiração. Para ajudar, contar 5 vezes na inspiração e 7 na expiração (Penman, 2016). Tentar por 3 minutos.

Respiramos cerca de 20000 vezes por dia, porém raramente o fazemos conscientemente. Negligenciamos algo fundamental!

O mestre budista e poeta Thich Nhat Hanh estudou e ensinou a vida toda sobre a respiração consciente. Ele considera a respiração como o eixo central da prática meditativa, essencial para reencontrar o equilíbrio e a lucidez e, logo, fundamental na gestão de conflitos. A respiração consciente é comparada, pelo mestre, a uma âncora ou um porto seguro. Nesse texto, ele faz uma analogia entre a respiração e um cinto de segurança: “É como quando você está voando em um avião. Sempre que ocorre uma forte turbulência, o cinto de segurança evita que você seja jogado pela cabine. A respiração consciente é o seu cinto de segurança na vida cotidiana - ela o mantém seguro aqui no momento presente. Se você sabe como respirar, como sentar-se calmamente e em silêncio então você tem o cinto de segurança e está sempre seguro.”

Thích Nhất Hạnh, Paz é toda respiração: uma prática para nossas vidas ocupadas

Seguem dois exercícios ensinados por Thich Nhat Hanh para acalmar o corpo e a mente. Praticados 10 vezes cada um, irão trazer imensos benefícios para o reencontro do equilíbrio:

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Thich Nhat Hanh

Inspirando, sei que estou inspirando Expirando, sei que estou expirando Inspirando, me acalmo (corpo e mente) Expirando, eu sorrio 3. Poder relembrar a dimensão vital e simbólica da respiração, pois respirar nos conecta com tudo o que está vivo, instantaneamente.

4. Dirigir a atenção “para dentro” e observar as sensações e pensamentos (identificando-os, reconhecendo-os, nomeando-os, porém, evitando comentá-los, julgálos).

5. Deixar fluir (pouco a pouco a emoção se transformará).

6. Assim, haverá mais opções para expressá-la de forma adequada.

A respiração consciente é, portanto, uma aliada essencial e poderosa na nossa prática de prevenção e gestão de conflitos.

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Momentos para refletir 1. Você tem dificuldade para desacelerar seu ritmo cotidiano?

2. Você tem consciência de o quanto um ritmo de vida acelerado pode ser prejudicial para a qualidade de suas relações?

3. Percebe o quanto pode ser proveitoso instituir uma rotina de, pelo menos, cinco minutos diários para sentar-se e respirar, desfrutando o momento presente?

Recomendamos O documentário Walk with me sobre o cotidiano de Thich Nath Hanh. Acessível em: https://www.documentarymania.com/player.php?title=Walk%20with%20Me

O livro A arte de respirar, de Danny Penman (2016)

O e-book Breathology

Exercícios de atenção plena acompanhando o livro de Mark Williams e Danny Penman Atenção Plena: Mindfulness (2015) https://sextante.com.br/atencaoplena/ ou aqui

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12- Métodos assertivos de gestão de conflitos: DESC, REVAC “O método DESC pode ajudá-lo a estruturar as conversas difíceis com sucesso.“ Monette Anderson (Coach, CEO, WASHINGTON SOCIETY OF Certified Public Accountants)

Com a tabela preenchida (figura 3), possuímos o material necessário para realizar os métodos DESC e REVAC. Apresentaremos, agora, esses dois métodos em detalhe e observaremos os vários contextos em que podem ser aplicados.

1. O DESC

O DESC foi criado pelos psicólogos americanos Gordon e Sharon Bower. Trata-se de um método assertivo para prevenir ou gerenciar uma relação conflituosa que se estende ao longo do tempo, com pessoas com quem convivemos ou trabalhamos.

Resumiremos aqui as principais etapas que aconselhamos seguir antes de falar com a pessoa com a qual estamos em conflito. Assim, antes de elaborar o DESC, é essencial:

➢ Ter tempo para se acalmar. Podemos comunicar isso ao outro: "Quando você fala assim, eu me sinto muito irritado. Prefiro me afastar para respirar e me acalmar, para não correr o risco de piorar a situação". ➢ Determinar o local do encontro. ➢ Determinar o momento. ➢ Ter clareza sobre com quem realmente ocorreu a situação conflituosa e com quem você vai falar: superior, colega, subordinado? A estratégia e as palavras deverão ser adaptadas. ➢ Esclarecer qual é a nossa intenção profunda em querer falar com a outra pessoa

(dimensão interna). Este ponto é absolutamente crucial e requer tempo e introspeção: •

O que eu realmente quero quando vou ao encontro do outro para falar com ele?

•

Quero obter desculpas? ter a última palavra? vingar-me? humilhar etc.?

63

•

Será que não estou mantendo com essa pessoa uma relação de rivalidade (embora talvez nem queira; de irritação prazerosa, de fascinação negativa, com pensamentos do tipo “não quero pensar nele, mas não consigo deixar de fazê-lo!”).

•

Será que ele não assume o papel de bode expiatório?

•

Eu quero mesmo resolver o conflito?

➢ Determinar o objetivo (dimensão objetiva): mudar o outro ou obter uma mudança na situação problemática? ➢ Saber quais são as expectativas para o encontro.

•

Relembrando: o DESC busca o

A liberação de sentimentos desagradáveis, expressando para o outro o que incomoda e faz sofrer.

o

A mudança da situação-problemática

➢ Avaliar e comparar os riscos entre ser inibido, tornar-se agressivo ou assertivo.

Esses pontos são fundamentais porque determinam como o resultado da reunião é vivido.

DESC significa: 1.

Descrever a situação;

2.

Expressar nosso sentimento, nossa intenção, nossas necessidades, o que

aceitamos e não aceitamos. Levamos também em conta o ponto de vista (ou opinião) da outra pessoa; 3.

Sugerir alternativas;

4.

Formular as Consequências e/ou Concluir

a -DESCREVER A SITUAÇÃO Para descrever a situação, é necessário observar os fatos. Vamos ver a diferença entre:

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"Eu gostaria de lhe falar sobre o que aconteceu ontem, quando você me agrediu verbalmente."

"Eu gostaria de falar com você sobre o que aconteceu ontem, quando você foi agressivo comigo"

e: “Eu gostaria de falar com você sobre o que aconteceu ontem. Quando você entrou no escritório e me disse: “Este trabalho está uma droga!”, eu me senti triste e magoada (Expressão do sentimento. Ver “E”).

Notamos as diferenças entre essas três formas de se expressar. Na primeira, a pessoa qualifica o comportamento da outra e assume que foi agredida (“você me agrediu”); na segunda reduz-se o seu comportamento com o verbo ser: “você foi agressivo”. Com muita probabilidade, esse comentário irá gerar uma resposta defensiva/agressiva.

A terceira descreve fatos (“quando você entrou no escritório e me disse...”) e introduz a expressão do sentimento que decorreu disso: “eu me senti triste e magoada”.

Esta última frase obviamente não será recebida da mesma forma pelo nosso interlocutor como as duas primeiras, porque falamos dos fatos sem acusar nem julgar, ao contrário da primeira frase.

Nas etapas fundamentais do DESC, após a descrição dos fatos, é importante expressar os sentimentos que eles acarretaram em nós, a nossa intenção, nossas necessidades etc:

b- EXPRESSAR

Nossas emoções (sentimentos): "Eu me senti...”; “Eu (me) sinto... »

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Nossa intenção: "Minha intenção não é querer ter razão, me vingar ou [...]. Só quero compartilhar e me comunicar com você... » Esse ponto é realmente fundamental. Se não estiver claro na nossa mente e no nosso coração, é melhor pararmos por aqui o processo e ficarmos com tempo suficiente para alinharmos a nossa intenção33.

Nossas necessidades: "Eu preciso... »

Empatia: perceber a situação a partir do ponto de vista da outra pessoa: "Eu entendo que você possa estar com raiva, que você não concorde etc."

Cuidado! Uma postura de empatia permite baixar a tensão, mas não deve nos levar a aceitar tudo!

O que aceitamos e não aceitamos “Você tem o direito de discordar / de não gostar...”; "mas eu não aceito...; mas eu não concordo com...”.

c- SUGERIR ALTERNATIVAS

“O que sugiro / proponho, é que façamos da forma seguinte: ....”

Aqui apresentamos soluções, demandas, pedidos, formas alternativas de se comunicar ou conviver. Também deixamos ao outro a liberdade de concordar ou discordar. Claro, deixamos tempo suficiente para ele pensar etc.34

33

Durante um curso, uma aluna veio falar comigo: “Ludovic, não consigo ir além desse ponto.” Ela tinha sido traída profissionalmente por uma amiga (ao menos era assim que tinha vivido a situação) e queria ainda se vingar. Respondi: “Então é melhor se cuidar primeiro, transformar esse ódio e essa intenção de vingança, antes de querer escrever de forma assertiva.” Ela concordou.

34 Para alimentar a criatividade do tópico “S”, ver a lista de exemplos abaixo.

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Quando não quisermos renunciar à nossa demanda sem deixarmos de ser respeitosos, entramos no campo da negociação muito bem trabalhado por William Ury (2018).

d- FORMULAR AS CONSEQUENCIAS (OU CONCLUSÃO)

Nesta etapa, formulamos as consequências positivas ou negativas (no primeiro DESC, é melhor falar de consequências positivas) da implantação das alternativas. Assim, concluímos a fala de forma esperançosa, reforçando o quanto foi importante poder falar com nosso interlocutor.

Caso o primeiro DESC não surta efeito, é importante considerar outras etapas, inclusive um recurso judicial. O processo assertivo é um processo em degraus, por etapas sucessivas.

No entanto, se percebermos a boa vontade de nosso interlocutor, é encorajador e poderemos chegar a uma solução aceitável. Se a pessoa não responder às nossas sugestões e não propuser nada em troca, cabe-nos tomar nossas decisões: distanciamento (fuga no sentido nobre35), ruptura da relação, proteção, apelo à Justiça ou a uma autoridade hierárquica superior (para apresentar uma queixa, por exemplo).

Exemplos de soluções alternativas conflitos

Às vezes, ficamos sem inspiração para preencher o tópico S do DESC (Sugestões de Alternativas). Seguem algumas ideias que poderão servir para formular as propostas de resolução de conflitos, que podem começar da seguinte forma:

35

Exemplo: no caso de uma mulher convivendo com um parceiro manipulador e perverso, será difícil mudar essa pessoa. Nesse caso, é preciso se proteger, distanciando-se fisicamente e recorrendo à polícia, caso necessário.

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O que eu lhe proponho é...

1. Um rodízio no exercício do poder e das responsabilidades; 2. um rodízio na possessão de objetos; 3. uma co-construção das regras aceitas por todos ou pela maioria. Uma elaboração das consequências caso elas não sejam cumpridas. 36 4. a separação dos processos de decisão; 5. a definição de um espaço claro de autonomia relativa de cada um.a; 6. a distribuição clara das tarefas, atribuições e funções; 7. um sorteio; 8. a identificação de uma zona mínima comum de interesses; 9. formas alternativas de organização: holocracia, sociocracia; 10. implantação de círculos de justiça; 11. uma cerimônia de renovação; 12. Identificação e recurso a um mediador legítimo (nomeado ou eleito antes do conflito); 13. Boicote de alguma prática abusiva ou de uma relação tóxica.

Podemos propor alternativas ao nosso interlocutor. Porém, às vezes, nós é que precisamos dar o primeiro passo em direção ao outro para lhe mostrar que estamos dispostos a resolver a situação, sem esperar que o outro concorde ou faça também o mesmo, sem esperar um retorno imediato”? Seguem alguns exemplos:

36

As regras são obstáculos (limites) simbólicos que previnem a transformação de cada um.a em obstáculo fascinante (ou rival). São acordos sobre as regras, sobre o modo de gestão (empresarial, sociocrático, participativo etc.), sobre os estatutos. Paradoxo: a definição das regras para prevenir conflitos pode ser fonte de conflitos. Temos aqui um problema antropológico fundamental: Por quem e como serão definidas as regras de convivência numa sociedade/comunidade humana?

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1. Alimentar as reciprocidades positivas (dar, sorrir, ser prestativo.a), tendo a esperança e a confiança que o que damos ao outro nos “voltará em dobro”; 2. Identificar e tentar resolver o quanto antes os “pequenos” conflitos que podem se tornar grandes e fora de controle (“os pequenos riachos, formam os grandes rios!”); 3. Sacrificar (no sentido de renunciar) às minhas ideias, certezas, a minha vontade de querer ter razão; 4. Perdoar de forma autêntica e sincera.

Esta lista, obviamente, não está completa. Ela pode ser enriquecida e aumentada de forma constante.

Depoimento “Eu enfrentava um problema crônico em meu trabalho, um amigo sugeriu o curso do Ludovic e resolvi fazer. Como era um caso bem grave, se eu errasse na estratégia, agravaria o problema. Então fiz o curso e nele aprendi a fazer o DESC, um método incrível para solucionar conflitos que considera os diversos desdobramentos, avaliando ações, sentimentos, impactos, consequências, riscos, enfim um método com análise profunda do caso. Se eu fosse resolver da forma que resolvia anteriormente meus conflitos, teria gerado inimizades, várias, mas seguindo as orientações do Ludovic, resolvi o conflito sem esse efeito colateral. Resolvi de forma assertiva, harmônica e eficaz. Fiquei muito feliz pelos resultados que gerou em minha vida pessoal e profissional. Consegui resolver um problema que me atingia, atingia meus colegas e atingia a organização onde trabalho. Indico!”

Erika Aleixo Funcionária Pública

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Após expormos o método DESC, apresentamos o segundo método, chamado REVAC. 2. O REVAC

O REVAC foi sistematizado por mim (Ludovic Aubin) em parceria com funcionários da Secretaria da Fazenda (Trésor Public) de Valência (Drôme – França) durante um curso sobre Prevenção de conflitos que facilitei em junho de 2009, com a finalidade de adequar os métodos assertivos à realidade cotidiana deles. Frequentemente, no período de arrecadação dos impostos, esses agentes chegam a sofrer insultos e ameaças. Ao mesmo tempo, eles recebem, da chefia, a orientação de não responder a essas provocações e agressões (ver Primeiro padrão de atitude da nossa tipologia: negação do conflito – capítulo 3). Essa atitude institucional acarreta inibição nos funcionários e, como consequência, problemas de saúde, licença médica, rodízio de agentes com baixa autoestima etc. A margem de manobra é aqui estreita. Deve-se evitar a agressividade em direção ao usuário, sem cair na inibição. Eis o propósito do REVAC!

Ao longo dos anos, constatamos que o REVAC se adapta a contextos muito mais diversificados do que esses casos específicos. Esse método contempla, de fato, qualquer situação tensa que é breve e durante a qual nos sentimos dispostos a responder de forma assertiva em tempo real. Esta é a principal diferença entre o REVAC e o DESC, pois este último envolve um tempo maior de reflexão e elaboração entre a situação e a fala assertiva.

Resumindo: o REVAC é um método para lidar com comportamentos agressivos em situações curtas e únicas. A sigla possui os significados abaixo:

➢ REspirar com consciência37, deixando a outra pessoa falar ou gritar. Respirar, de fato, protege-nos do estresse.

37

Ver o capítulo 10: “A respiração consciente na gestão de conflitos”

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➢ (se) REconectar-se38 ao que tiver de mais estável, de mais seguro em nós (imagens, lembranças, memórias agradáveis). ➢ Validar a emoção, o pensamento (ou sentimento, valor, crença) da pessoa: o "Eu entendo que você não esteja satisfeito / que você esteja com raiva”; o "Você tem o direito de pensar que.../você pode pensar que..."

➢ Afirmar-se para manter e preservar sua dignidade (autoestima). Esse ponto é importantíssimo! o "Mas eu não concordo com você." o "Mas eu não aceito ser insultado/tratado assim."

➢ Concentrar a atenção no objeto, propondo algo positivo: o "Para melhor ajudá-lo e resolver o problema, preciso de calma." o Aqui comunicamos nossa intenção, colocamos o objeto de volta no centro das atenções e expressamos uma necessidade. Muitas coisas importantes em uma única frase!

Apresentamos o significado do DESC e do REVAC, assim como as etapas sugeridas por esses dois métodos, em situação de conflito. Enumeraremos, agora, alguns exemplos de aplicação concreta desses métodos.

Exemplos de aplicações de métodos DESC e REVAC

Seguem exemplos de situações em que esses métodos estão sendo aplicados (por mim, como consultor e mediador de conflitos) ou pelos alunos que participam do curso de gestão de conflitos:

38

Agradeço aqui minha amiga, médica e professora, Fernanda Patrícia Soares Souto Novaes que sugeriu esse segundo significado à sílaba “RE”.

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a- Em situações de mediação de conflitos. Neste caso, devemos aplicar a análise funcional (tabelas das figuras 3, 4 e 5) para a mesma situação de conflito, com ambas as partes envolvidas, separadamente. Em seguida, o DESC pode ser utilizado por cada um a fim de que seja apresentado à outra parte. Para a mediação, recorremos a outras ferramentas complementares. b- Em contexto de divórcios para melhor lidar com o/a ex-parceiro/a e assim resgatar ou preservar um diálogo sereno e proteger assim o filho comum, caso exista; c- Em conflitos institucionais; d- Em conflitos familiares; e- Com pacientes usuários de drogas39. f- Com ONGs; g- Na redação de cartas, e-mails ou qualquer tipo de mensagem escrita ou oral que tratem de assuntos delicados. Aqui, o DESC é mais adaptado.

Gostaria de fazer um breve comentário a respeito dos meios digitais de comunicação. Resolver conflitos envolve uma certa relação apaziguada ao tempo. O que isso significa?

DESC e meios de comunicação digitais Os meios digitais são muito velozes. Assim, os e-mails ou mensagens WhatsApp podem ser redigidos rapidamente e com menos cuidado que uma carta manuscrita e viajam à velocidade da luz. Além disso, resolver conflitos envolve todas as dimensões da comunicação humana. Ora, essa forma de comunicação apaga parcialmente ou totalmente o não verbal e o para-verbal. Todavia, essas dimensões da comunicação podem ser importantes para amenizar a força das palavras e, portanto, esses meios modernos criam, muitas vezes, as condições adversas à prevenção e resolução serena dos conflitos.

39

Fiquei surpreso com a pertinência de evocar a temática do conflito com esse público. De fato, a “Gestão de Conflitos” ecoou tão forte com os usuários de droga ao ponto de poder abordar situações passadas dolorosas que aconteceram, por exemplo, com o pai ou com a mãe, no passado (Oficina realizada em janeiro de 2021, em uma clínica de Camaragibe-PE).

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Por isso, certos assuntos não devem ser tratados nos grupos Whatsapp ou por lista de e-mails, pois há o risco de expor pessoas e gerar conflitos sérios, desagregadores.

Quando queremos escrever uma mensagem a uma pessoa sobre um assunto delicado, é sempre bom escrever um rascunho e “deixar a noite passar”. Em seguida, retomamos no dia seguinte e lemos para nós mesmos o conteúdo da mensagem que havíamos escrito na véspera. Como receberíamos a mensagem se ela nos fosse direcionada? Se nos sentirmos bem, respeitados.as, há probabilidades que o outro se sinta assim também. Caso contrário, podemos rever e lapidar as palavras até alcançar a meta da palavra justa (libertadora e respeitosa).

DESC, REVAC, escuta e reformulação

A escuta e a reformulação são duas atitudes e ferramentas eficientes para minimizar as tensões e superar mal-entendidos. Às vezes, a reformulação “você me parece estressada? Estou enganado.a?” pode ser suficiente para a pessoa se abrir, reconhecer o estresse, mudar o tom e o registro da comunicação. O DESC e o REVAC podem servir para isso. O REVAC nos lembra a importância de respirar, relaxar, criar um espaço interno (paciência, acolhimento da irritação, por exemplo, na hora de escutar certas palavras etc.) para melhor escutar e ouvir o outro. Sendo a lógica estruturalmente idêntica entre DESC e REVAC, a ideia permanece a mesma: podemos ajudar o outro a descrever os fatos, expressar os seus sentimentos, esclarecer suas intenções, necessidades, sugestões e demandas. Podemos imaginar as consequências e acolher o outro (validar os sentimentos do outro), sem aceitar necessariamente sua forma de se expressar (afirmar-se). Enfim, ajudamos a relembrar o que é importante: o objeto (concentrar).

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Recomendamos Assistir aos vídeos abaixo. São depoimentos de participantes desse curso de “Prevenção e Gestão de Conflitos”. Eles falam da importância, para suas relações, da aplicação dos conceitos, ferramentas e métodos que foram aqui expostos.

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Conclusão

A assertividade, como a entendemos e trabalhamos, propõe (na medida do possível) uma visão complexa e balanceada do ser humano, sem ser excessivamente ingênua ou otimista sobre as relações humanas nem excessivamente pessimista ou cínica. Ela é um “caminho do meio” entre ingenuidade excessiva e cinismo desesperado.

O gosto pela polêmica, a arrogância, o desprezo, além de cansativos para quem os pratica (porque o coloca numa posição tensa), raramente conseguem fazer com que o outro adira a visão promovida dessa forma.

As emoções e paixões potencialmente destrutivas existem de fato (ódio, raiva, ressentimento: fontes do mal moral nas tradições filosóficas antigas) e permanecem assim enquanto não forem identificadas e transformadas. Se forem deixadas soltas (ou alimentadas) serão efetivamente destruidoras das relações e do nosso mundo comum.

Mas essa não é a totalidade do potencial humano.

A bondade gratuita, a gentileza, o cuidado, o amor, a paciência, embora pareçam raros, existem igualmente e passam na maioria dos casos despercebidos (uma gentileza “amostrada” se corrompe automaticamente!). O trágico e a beleza da humanidade, eis o que a assertividade associada a um trabalho de consciência (a partir do mindfulness e da teoria mimética) propõem enxergar no dia a dia, simultaneamente, incansavelmente.

Outro ponto importante: a assertividade não deve se tornar dogmática. Ela é baseada em princípios que devem nortear a ação e dialogar com nossa inteligência e criatividade. Se isso não acontecer, ela corre o risco de engessar, robotizar nossas atitudes e finalmente ter os efeitos contrários daqueles que almejamos. Afinal, é um trabalho do sentir, do coração.

Enfim, a assertividade não vale só para dizer coisas difíceis, vale também para elogiar o sucesso de alguém e dizer o quanto ficamos feliz pelo seu êxito.

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Quando se compara as diversas respostas comportamentais em situação tensa ou conflituosa, aquela que gasta menos energia e que mantém relações mais harmoniosas é a assertividade. Ao contrário das outras respostas, esta não é um comportamento espontâneo. É difícil, é preciso treinar, mas vale a pena!

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Indice de figuras

Figura 1- Três padrões de atitudes diante dos conflitos (fonte: Ludovic Aubin) ........................... 15 Figura 2: Afresco do Julgamento de Salomão, Wallfahrtskirche Frauenberg, Estíria .................... 23 Figura 3: Análise funcional de Aron Beck .......................................................................................... 37 Figura 4: Lista de interpretações e emoções. Autor: Dr Jean-Yves Aubin ...................................... 38 Figura 5- Consequencias dos três comportamentos .....................................................................42 Figura 6- Os 4 tipos de comportamentos em situação de tensão.................................................36

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Sobre o autor: Ludovic Aubin é sociólogo, francês. Tem doutorado em sociologia (IEDES-Paris 1 Panthéon-Sorbonne, 2012) e pós-doutorado pela UFPE (PPGS-LAERURAL, Capes/PNPD). Especializado nas relações entre conflitos, crise contemporânea e desenvolvimento sustentável (com foco na agroecologia), foi professor na Universidade Católica em Angers (França) de 2002 a 2010 e facilitador com diversos públicos de profissionais (professores, enfermeiros, advogados, médicos, editores, fiscais de justiça, empresários etc.) de 2003 a 2010.

Atualmente, mora e trabalha no Brasil desde 2010. De 2010 a 2015, trabalhou com vários centros de capacitação brasileiros.

Além disso, pratica a meditação desde 1998, segundo a tradição do mestre budista Thich Nhat Hanh, cujo ensinamento principal é baseado na respiração consciente para voltar ao aqui e agora. Essa atitude de atenção plena (mindfulness) permite observar, com lucidez e sem julgamentos, o que acontece dentro e fora de nós, momento após momento, com uma curiosidade bem-intencionada, a fim de agir de forma mais adequada.

Contatos: E-mail: ludaubin@gmail.com WhatsApp: 81 98808-1506 Site: https://ludovicaubin.com.br/ Instagram: @ludaubin

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