SOUNDESIGN

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Maria Lucília Borges

Soundesign Mestrado em Comunicação e Semiótica Pontifícia Universidade Católica de São Paulo

Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial p a ra obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica - Intersemiose na literatura e nas artes, sob a orientação do Prof. Doutor - Sílvio Ferraz.

São Paulo - 2003

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Ao amigo Dorival Rossi que, em 1995, despertou-me o desejo por esta pesquisa. À professora e pianista Olga Frange de Carvalho, que foi sempre o estímulo para que eu nunca abandonasse a música. À memória de Paulinho Ferraz.

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Agradeço a todos aqueles que direta ou indiretamente contribuíram para que eu chegasse até aqui, seja pelo incentivo, pela desconfiança, pela troca de conhecimento, pelos elogios ou pelas críticas. Em especial, aos amigos Fernando Kozu, Paulo von Zuben e Marcos Battistuzzi, parceiros de análise semiótico-musical.

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RESUMO

E

ste trabalho propõe investigar as novas ressonâncias e variações do design e a sua conexão com a música, como reconhecer os traços de um no outro e as forças que ecoam entre si. Partimos do pressuposto de que a “revolução tecnológica” e o surgimento de termos como virtual, tecnologias da inteligência, ciberart etc. ampliaram as extensões sensoriais bem como os materiais sonoros criando novas relações entre objeto e usuário, compositor e material sonoro. A tecnologia ao mesmo tempo em que ampliou as possibilidades de criação, gerou uma crise no conceito de design. Se o ciberespaço passou a ser o espaço de relações em tempo real e a tecnologia novo suporte ou ferramenta de “projeto”, propomos investigar em que medida o design mudou de natureza e escapou ao seu lugar comum, “real”, para se desterritorializar em espaços virtuais, como o espaço da música e até que ponto podemos traçar essa aproximação. Antes de entrarmos no universo da música e entender as mudanças que se processaram particularmente no que se refere à notação musical e a escuta, é necessário antes entender as mudanças que ocorreram no design desde o seu nascimento, com a Revolução Industrial, até os dias de hoje, com a tecnologia, que fez emergir o conceito de virtual, para a partir daí buscar as relações entre essas duas “linguagens”. O objetivo principal deste trabalho é entender o que faz do design uma potência de produção e não mais reprodução, como pensar o design para além do projeto, do significado e da reprodução no qual ele seria como uma partitura, uma parte da música antes da sua realização. O design não estaria exclusivamente subordinado a uma forma visível e o que propomos é “escutar o design” e “ver a música”, o que não significa que para isso tenhamos que usar os sentidos apropriados para tal, ou seja, os olhos para ver e os ouvidos para escutar, mas ver com os ouvidos e escutar com os olhos, olhos e ouvidos que tateiam.

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he purpose of this work is to investigate the new resonance and variations in design and their connection to music, as well as recognize the traits of one in the other and the forces that echo among them. We start presuming that the “technological revolution” and the emergence of terms like virtual, intelligence technology, cyberart, etc, have amplified the sensorial extensions, as well as the sound materials, creating new relationships between object and user, composer and sound material. As technology amplified the possibilities of creation, it generated a crisis in the concept of design. If cyberspace became the new space for real time relations, and technology became the “project’s” new support or tool, we propose to investigate how the design changed its nature and fled to its common “real” place, to become without territory in virtual spaces, like the space of music, and how far we can trace this approximation.

T

Before we enter the universe of music and understand the changes that took place, especially in musical tone and hearing, it is necessary to understand the changes that took place in design from its birth, with the Industrial Revolution, until today, with technology, which gave rise to the concept of virtual, and then search for the relationship between these two “languages”. The main objective of this work is to understand what makes the design a production power rather than more reproduction, how to think of design beyond the project, the meaning and the reproduction in which it would be like a composition, a part of music before its realization. The design would not be solely subordinated to a visible form and what we propose is to “listen to the design” and “see the music”, which does not mean that for such we would need to use the appropriate senses, that is, eyes to see and ears to listen, but see with the ears and listen with the eyes, eyes and ears that feel.

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I n t ro d u c a o

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Parte 1 : Som de Imagem

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Parte 2 : Imagem de Som 71 imagem como “objeto” de execução 75 imagem como “objeto” de escuta 93 imagem como “objeto” visual

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Parte 3 : Soundesign

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Conclusao

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A n ex o s

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Bibliografia

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introdução


o pulso ainda pulsa

N

um dos seus mais belos textos John Cage diz que

“…antes de estudar música, homens são homens e sons são sons. No começo a gente pode ouvir um som e dizer imediatamente que não é um ser humano ou algo que se deva olhar; é agudo ou grave - tem um certo timbre e potência, dura um certo lapso de tempo e a gente pode ouvi-lo. A gente depois decide se é agradável ou não, e gradativamente desenvolve uma série de gostos e aver sões. Enquanto se estuda música as coisas ficam um pouco confusas. Sons já não são só sons, mas são símbolos: Dó, Ré, Mi, Fá, Sol, Lá, Si. Sustenidos e bemóis. Dois deles, mesmo separa dos por quatro ou mesmo cinco oitavas, têm o mesmo símbolo. Se um som tiver a desgraça de não ter um símbolo ou se ele parecer complexo demais, é ejetado do sistema: é um ruído ou nãomusical.” (Cage, 1985, p.96)

De acordo com a semiótica peirceana: enquanto estamos na posição do inter pretante emocional (quando o efeito que o signo - som - produz na mente do intérprete se efetua como uma qualidade de sentimento, quando o intérprete fica encantado ou mesmo irritado com um determinado som) ou energético (quando esse efeito é da ordem de um esforço mental, físico ou psicológico, quando aguça a curiosidade do intérprete em conhecer a proveniência daquele som, compreender a sua natureza), apenas distinguimos um som como agradável ou não, grave ou agudo. Quando começamos a estudar música e passamos da ordem de um interpretante puramente emocional, ou energético, para um interpretante lógico, que conhece as regras do sistema e portanto, sabe interpretá-las, os sons passam a ser símbolos, convenções. Uma vez que o interpretante dinâmico de um signo é potencialmente múltiplo, ou seja, em cada mente interpretadora (ou numa mesma mente1), um mesmo signo pode produzir diversos efeitos, que não se esgotam numa única ação, a cada contato um mesmo signo é capaz de produzir um novo efeito e assim indefinidamente2. Desse modo, o tema “música e design” ressurge nesse trabalho com um outro olhar, mais maduro, mais aguçado e mais curioso, com novas e instigantes questões sobre essa relação “in-comum”. Mais do que responder a essas questões, propomos buscar um lugar em que nossos “objetos” não estejam mais limitados à sua simples percepção enquanto fenômeno ou linguagem. A

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música e o design, se não assumiram um novo conceito, ao menos mudaram de natureza, investigar em que medida essa mudança acarreta um novo olhar sobre eles é um dos nossos objetivos. Esse questionamento teve início com o trabalho de graduação (Desenho Industrial - Programação Visual) intitulado “O Pulsar do Design” desenvolvido durante o ano de 1998 (UNESP/Bauru), o qual tentava responder questões surgidas a partir do contato com a obra de John Cage. A partir da leitura de um texto do designer Wilton Azevedo, que dizia que tanto o som quanto as partituras de Cage eram design (“ao ouvir o som de John Cage, ouve-se o som do design”) surgiu a questão: que relação existe hoje entre a música e o design? Ao mesmo tempo em que se perguntava se existia ou não alguma relação entre essas duas linguagens distintas, perguntava-se sobre o conceito de música, sobre o conceito de design, quando os dois se cruzavam, e sobretudo se era possível escutar desenhos quando se ouvia uma música e ler sons numa peça visu al. Que arte e design se encontravam numa linha tênue sendo difícil muitas vezes qualificar um objeto como arte ou simplesmente como “objeto de design”, isso já se tinha notado. O que não se sabia era que, muito antes de se ter questionado sobre esse tema, músicos como John Cage, György Ligeti, Iannis Xenakis, Luciano Berio, Pierre Schaeffer e tantos outros, operavam essa relação transitando entre sons e imagens sem nenhuma limitação. Conheciase, mesmo que tenramente, a tradução intersemiótica, e já se tinha experimentado essa tradução da pintura para o design, da poesia e pintura para a fotografia, mas até esse momento não se tinha questionado sobre a possibilidade de traduzir som em imagem e vice-versa, como havia feito Paul Klee: “Recentemente traduzi uma composição musical em linguagem plástica. Portanto agora posso imaginar também o inverso e me perguntar como nós, como indivíduos, com nossa estrutura, seríamos ouvidos na forma de música” - Klee, 2001, p.18)

Após um estudo superficial sobre estética, arte, música, design, tempo, virtual, chegou-se a conclusões (ou considerações) relevantes para o presente trabalho. Design e música não são mais vistos como “linguagens” totalmente independentes, desvinculadas. Arte (pintura, escultura, performance, instalação etc.), música (especialmente a música concreta, aleatória, eletroacústica e todas as que lançam mão de partituras não-convencionias), design (objetos de design, por exemplo, que nem sempre estão atrelados a uma função, no conceito da Bauhaus, a um uso), webdesign (webdesign tem um sentido muito amplo, exige-se, por exemplo, que um webdesigner seja também programador e não somente o artista que cria e desenha as páginas e que ao mesmo tempo tenta atrelar o visual, o design, à funcionalidade),

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webarte, design de produtos (movéis, por exemplo, especialmente aqueles que usam materiais alternativos resultando em objetos cujo conceito é muito mais importante que o design, ou “desenho industrial”, ou produto, em si), enfim, todas as formas de produção de informação (e sentido) e portanto, comunicação,3 não são mais vistas de forma isolada mas como parte de uma intersemiose. Todas essas linguagens estão entrelaçadas (ou “translaçadas”), se intercomunicando a todo momento. Num mundo dominado pela velocidade de informação é difícil, senão impossível, nomear as “coisas”, qualificar tal “coisa” como design, ou como arte, ou como música, sem incorrer em erro. “O nome das coisas não são as coisas”. O que nos diz o nome “design”? O que é afinal design? De.sign [diz’ain] s. desígnio, projeto m., esquema f:; plano, fim, motivo, enredo m., tenção f:; desenho, esboço m., arte f. de desenhar. // v, projetar, planejar; designar, destinar, assinar; desen har, traçar. (Michaelis, 1980)

E música? “Música é tudo aquilo que se ouve com a intenção de escutar música” (Bravo, 2001, p.50), essa definição de Luciano Berio complementa a de Cage: “música é sons, sons a nossa volta, quer estejamos dentro ou fora das salas de concer to” (Schafer, 1991, p.120). Talvez o que importa não seja o “nome” (quando a mente relaciona o signo com seu objeto), mas as reações que o signo desperta no “intérprete” e suas reverberações que vão encontrando seus destinatários. Música e design estão em toda a parte. O design está na música de Schaeffer, no som de John Cage, na arte de Paul Klee, na versatilidade das favelas, na criatividade dos ambulantes. O design implica um “olhar intencional” na vida mais cotidiana. O que faz de um urinol ou uma roda de bicicleta uma obra de arte, por exemplo, é o gesto de descontextualizá-los, de tirá-los do contexto habitual para o contexto do museu. As favelas possuem uma “estética” inovadora, original e criativa mas elas só podem ser consideradas design quando o olhar sobre elas impor essa condição, pois não há intenção no fazer, o que há é necessidade de sobrevivência com os materiais disponíveis. A intenção é o denominador comum que faz do ruído de carros e fábricas, música, e da configuração das favelas e dos camelôs, design. (Lembramos aqui a personagem de Björk, no filme “Dançando no escuro” no qual, desprovida de uma visão perfeita, pois sofria de uma doença degenerativa da visão, “viaja” ao som das máquinas da fábrica onde trabalha e faz dela um cenário onde a dança e os sons subsistem independentemente da visão: “As máquinas baru -

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lhentas saúdam você e dizem: nós damos o ritmo e embalamos você. Uma máquina sonora. Que som mágico! Um local repleto de ruídos que fazem você girar”.) Trata-se agora de uma geometria movente, onde os sem-tetos, os nômades, as populações informais não cercam territórios, mas os demarcam, e como tal não possuem marcos localizados no espaço que se organiza o tempo todo. Os camelôs e as favelas “quebram” a estrutura das cidades, impõem sobre elas a sua estrutura, forçam um espaço onde não há mais espaço, furam a noção de “programa”. Se a “ordem” tem um som, as favelas e os camelôs furam a “ordem” pelo ruído. Se isso gera uma “estética”, embora choque com a “organização” das cidades, é porque assim nos permitimos “ver”. O objetivo aqui não é, entretanto, definir conceitos de design, música, arte, (“Qualquer criança nos dirá: simplesmente esse não é o caso. Um homem é um homem e um som é um som.” – Cage, 1985, p. 97) embora gostaríamos de chegar ao final com uma posição definida a respeito dessas linguagens, com um novo conceito de design e música, pois como dizem Deleuze e Guatarri, “nunca co nheceremos nada por conceitos se não os tiver de início criado” (OQF?, 1992, p. 15). “Nossa tarefa é traduzir”. Novamente a tradução intersemiótica ou, como diz Augusto de Campos, “transleitura intersemiótica”, através da qual se pretende efetivar os conceitos discutidos no decorrer do trabalho, e sobretudo, transitar livremente entre essas linguagens, tornar visível o invisível (Klee, 2001, p. 43), permitir “ver-e-ouvir-através”, “assim como podemos ver através de alguns pré dios modernos ou ver através de uma escultura de tubos de Richard Lippold ou dos vidros de Marcel Duchamp” (Cage, 1985, p. 102).4 O que nos interessa agora não é somente a música e o design, mas o sonoro e o visual, no que podemos chamar de concreto. O objeto som, a música antes mesmo de se tornar música, e o objeto imagem que se manifesta de formas diversas, em suportes diversos, visível por ela mesma. O visível e o invisível. Para tanto, “a coisa mais sensata a fazer é abrir os ouvidos imediatamente e ouvir um som de repente antes que o pensa mento tenha a chance de transformá-lo em algo lógico, abstrato, ou simbólico. Sons são sons e homens são homens, mas agora nossos pés estão um pouco fora do chão.” (Cage, 1985, p. 98).

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p a rt e 1 : Som de Imagem

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O

que nos permite afirmar que música e design estão em toda parte? De que maneira essas linguagens se conectam? Elas habitam qualquer “território”?

Podemos afirmar, antes mesmo de uma investigação mais profunda, que está havendo uma crise no conceito de design, no que tradicionalmente se propôs. A popularização do vocábulo “design”, sobretudo em terras onde a língua materna não é o inglês, reduziu a sua amplitude semântica. Design passou a ser usado mais como adjetivo, como característica inerente às coisas, ou é tomado simplesmente como produto, ao invés de processo. A palavra design vem do inglês e significa desígnio, projeto, desenho (substantivo masculino), pro jetar, planejar; designar, destinar, assinar; desenhar, traçar (verbo) (Michaelis, 1980). Com o mesmo radical de desígnio (do latim designiu:s.m. intento, intenção, plano, projeto) é muito usado associado a esse vocábulo. “Definido no seu sentido mais geral como concepção e planejamento de todos os produtos feitos pelo homem, o design pode ser visto fundamentalmente como um instrumento para melhorar a qualidade de vida” (Charlotte & Peter Fiell, 2000. p. 06).

O decorrer da história do design nos revela que a sua existência remonta à Revolução Industrial, quando a produção mecanizada substituiu a produção de objetos manufaturados, e, consequentemente, a concepção e realização de objetos por um criador individual. Com a industrialização o design passou a ser um complemento da produção mecanizada e não possuía ainda “nenhum fundamento intelectual, teórico ou filosófico e por isso teve um impacto pequeno na natureza do processo industrial e na sociedade” (Ibidem). Movimentos como o inglês Arts & Crafts (1850-1914), no qual estava à frente o designer William Morris, começaram a surgir e a impor um pensamento teórico ao design. Este movimento objetivava aliar teoria e prática, e um retorno à manufatura com o intuito de resgatar a qualidade aos objetos produzidos industrialmente numa abordagem ética e simples do design. Sua tentativa não obteve sucesso mas influenciou fundamentalmente o Movimento Moderno. Embora tenham havido outros movimentos importantes como Aesthetic Movement, Jugendstil, Art Noveau, Deutscher Werkbund, Construtivism, De Stijl foi com a Bauhaus, no início do século XX (1919-1933), que o design se efetivou como uma disciplina capaz de unir aspectos intelectuais, práticos, comerciais e estéticos “através de um esforço artístico que explorasse novas tecnologias” (Ibidem). A Bauhaus introduziu novas formas de pensar o design que ecoaram mais tarde na Nova Bauhaus, de Chicago (1937) e na Hochschule für Gestaltung, Ulm (1953). “Ambos os institutos deram importantes contributos para o novo pensamento

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sobre a unificação da teoria do design com a prática em relação aos métodos industri ais de produção” (Ibidem). Face às transformações de ordem social, econômica, política, cultural e tecnológica os produtos, estilos, teorias e filosofias do design tornaram-se cada vez mais diversificados. “A pluralidade histórica do design do século XX, contudo, é também devida às alterações de padrões de consumo, de gosto, alterações de imperativos comerciais e morais de inventores, designers, fabricantes, progresso tecnológico e variações de tendências nacionais do design” (Ibidem).

Movimentos como Pop Design, Anti-Design (anos 60), e Pós-Modernismo (início em 1978) surgiram como oponentes ao Movimento Moderno. Muitos trabalhos dos designers pós-modernos faziam referência a estilos decorativos anteriores e continham um caráter crítico, irônico, “que ridicularizava intencionalmente a noção de “bom gosto” através do uso de laminados de plástico com padrões arrojados e formas sarcásticas” (Ibidem. p.573). Com essas atitudes a Memphis, fundada em Milão (1981), popularizou o Anti-Design e ajudou a consolidar o PósModernismo nos anos 80. “Os Designs pós-modernos abraçaram o pluralismo cultural da sociedade contemporânea global e utilizaram uma linguagem de simbolismo partilhado, de modo a transcender limitações nacionais” (Ibidem. p. 575).

Nos anos 90, entretanto, o Pós-Modernismo foi perdendo o encanto sendo substituído por visões mais simples e racionais do design. O que se tornou fundamental nesse período foi a busca pelo “o que é essencial no design”. Muitos designers optaram por desenvolver uma expressão individual fora das limitações do processo industrial (Ibidem. p. 07), pois o design não é um processo eminentemente ligado à produção mecanizada, mas um meio de se conferir informação aos “objetos”. Se até certo ponto a Revolução Industrial e a produção mecanizada marca o nascimento do design, a chamada “Revolução Tecnológica” ou “revolução das tecnologias da informação e comunicação” (Philippe Quéau, in Morin, 2001, p.462) e o surgimento de termos como cibercultura, virtual, inteligência artificial, tecnologias da inteligência, ciberart etc. podem ser considerados um novo marco na história do design. Com a cibercultura1 passamos a dispor de “modelos men tais” e de instrumentos que nos tornam aptos à compreensão das novas complexidades. Segundo Quéau a simulação numérica e a realidade virtual permitem criar “experiências de pensamento” (Ibidem. p.461).

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“É possível elaborar universos conceituais, modelos abstratos extremamente bem acabados, e tirar partido do poder algorítmico disponível, não necessariamente para resolver os problemas mas, pelo menos, para compreender melhor a natureza e os limites de nossos próprios esquemas intelectuais. Por outro lado, a cibercultura baseia-se, em grande parte, sobre o sentimento de que se pertence à comunidade mundial dos internautas.” (Ibidem)

Particularmente as duas últimas décadas do século XX dão origem a uma nova configuração da realidade na qual “o ser humano previsível da cultura mecânica e visual dá lugar ao ser humano criativo e participativo da cultura virtual” (Pimenta, 1993). “(...) pela primeira vez a humanidade opera a noção de tempo real, e pela primeira vez desde o Neolítico diferentes linguagens passam a estar novamente integradas. (...) com a popularização dos cds simplesmente não há mais som sem movimento, música sem ação, ação sem luz e cor e assim por diante. O tacto presente na textura das pedras pré-históricas é substituído pelas tex turas das massagens de luz às quais as nossas retinas são submetidas.” (Ibidem)

O tato alerta para uma nova e diferente abordagem sensorial que é a articulação dos diferentes sentidos num único conceito. Passamos a articular as diferentes culturas, a diversidade do mundo e a própria História por essa via não mais visual, seletiva, hierárquica mas tátil, interativa. A tela dos computadores e o tubo da televisão fazem um trabalho de varredura equivalente ao processo de rastreamento ocular. A luz emitida pela tela faz uma espécie de “massagem” na retina e praticamente absorve o olho “substituindo nossa reali dade habitual por uma outra, virtual” (Pimenta, 1994). O sistema interativo de comunicação amplia, portanto, as extensões sensoriais e cria novas relações entre “objeto” e “usuário”. A tecnologia transforma a própria natureza do “espaço” e, consequentemente, da percepção desse espaço. O designer passa a operar em um espaço liso2: “É um espaço de afectos, mais que de propriedades. É uma percepção háptica, mais do que ópti ca. (...) Nele a percepção é feita de sintomas e avaliações mais do que de medidas e propriedades. Por isso, o que ocupa o espaço liso são as intensidades, os ventos e ruídos, as forças e as quali dades tácteis e sonoras, como no deserto, na estepe ou no gelo.” (MP, p.185).

O “design visual” entra em crise e vai abrindo espaço para uma nova concepção de design: o design virtual, “mais háptico que óptico”. O termo virtual tem sua origem mais distante na palavra indo-européia wiros que significa ímpeto masculino, energia guerreira, do fazer (Pimenta, 1996). A palavra Wiros foi se modificando e originou a palavra vir, no latim clássico, que significa homem

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guerreiro, herói, magistrado, aquele que julga e que pode estabelecer diferenças de padrão, e também originou a palavra inglesa world (Ibidem). De vir emergiu o virtualis que quer dizer potencialidade, energia, aquele capaz de realizações, de movimentar. O virtualis, por sua vez, originou o termo virtus (potencialidade, poder, geração, “algo que ainda não existe no plano material – como quando temos uma idéia ou desejamos algo” – Ibidem) de onde provém a raiz da palavra viri lidade (energia que ativa, guerreiro) e da palavra virtual, “o que existe em potência e não em ato”. (Levy, 1996. p.15). O conceito de virtual no design ou de um design virtual surge com a tecnologia mas pode ser observado em outros momentos na história do design à medida em que seus “objetos” atualizam forças que os atravessam. Segundo Pierre Levy (1996), “o virtual tende a atualizar-se, sem ter passado no entanto à concretização efetiva ou formal” (Ibidem). Não trata-se portanto de um design subordinado ao ciberespaço ou às mídias digitais, mas um design que responde a eles de forma inventiva, criativa e inovadora e que se vale deles para estabelecer novas relações para além do “projeto”. A tecnologia coloca o designer em contato com novas ferramentas de “projeto” que mudam a própria natureza de projeto, ou seja, projeto, processo e produto incorporam novos conceitos. Quando o termo virtual começou a fazer parte do nosso vocabulário habitual passamos a lidar com duas “realidades” diferentes (ou com dois conceitos diferentes de “realidade”): a nossa realidade habitual (aquela associada ao sentido de real, paupável, existente) e uma outra, virtual (associada à “não-presença”, no sentido ilustrado por Michel Serres em seu livro Atlas – Ibidem. p.20). A palavra realidade, do latim res (coisa) também surgiu na época medieval (Pimenta, 1996) e está associada ao conceito de real, aquilo que existe de fato. O real não é, entretanto, o contrário de virtual. O virtual opõe-se ao conceito de atual: “(...) o virtual é como o complexo problemático, o nó de tendências ou de forças que acompanha uma situação, um acontecimento, um objeto ou uma entidade qualquer, e que chama um proces so de resolução: a atualização.” (Ibidem. p.16)

A “não-presença” do virtual não implica a sua “inexistência”: o pensamento, a imaginação, a memória, um texto ou imagem na rede, a música, uma conversa telefônica não possuem um espaço fixo, demarcável, mas reconhecemos a sua existência. “Quando uma pessoa, uma coletividade, um ato, uma informação se virtualizam, eles se tornam “não-presentes”, se desterritorializam” (Ibidem. p.21). Nesse sentido o design muda de natureza e escapa ao seu lugar comum, para se desterritorializar em espaços virtuais, como o espaço da música. O ciberes-

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paço, espaço de relações em tempo real, e a tecnologia, suporte ou ferramenta para simulações em duas, três e quatro dimensões, ou seja, nova ferramenta de “projeto”, propiciam virtualizações no design mas não são suas determinantes, uma vez que o conceito de “realidade virtual” está ligado tanto ao ciberespaço (e consequentemente às novas relações de vizinhança, distâncias e fronteiras geográficas, relações pessoais, etc) e às mídias de comunicação virtuais (os computadores, por exemplo), quanto às virtualizações e atualizações que ocorrem, tanto no design quanto na música, independentemente da presença da tecnologia. “Face a uma tal mistura, de natureza dinâmica, tudo é plena potencialidade - tudo passa a ser virtualidade” (Pimenta, 1996). O signo do design passa a ser da ordem do virtual, da diversidade e da multiplicidade de relações entre todos os sentidos. E sendo “virtual” o design não possui uma forma, nem um lugar fixo, o espaço das relações é da ordem do vazio e não de lugar, o que torna possível uma aproximação entre a música e o design. “(...) os blocos precisam de bolsões de ar e de vazio, pois mesmo o vazio é uma sensação, toda sensação se compõe com o vazio, compondo-se consigo, tudo se mantém sobre a terra e no ar, e conserva o vazio, se conserva no vazio conservando-se a si mesmo.” (OQF?. 1992, p.215).

Todas essas mudanças no processo do design, geram crises de tempos em tempos que resultam em uma crescente complexidade nas formas de se pensar, conceber idéias, atribuir valores e atitudes às coisas. É sabido que a “crise” gera transformações. Transformações que resultam em novos conceitos ou novas formas de pensar os conceitos. Ao fazer certas afirmações talvez nos obriguemos antes a criar o conceito daquilo que estamos afirmando. Mas não somos filósofos (e nem temos a pretensão de sê-lo) a quem estaria delegada a tarefa de “fabricar” conceitos (“A filosofia, mais rigorosamente, é a disciplina que consiste em criar conceitos” – OQF?, 1992. p.13). E nem é nosso objetivo principal definir o que seja design e música hoje, mas adotar uma noção para guiar ao menos nos primeiros passos, esta pesquisa, chegar no final a um “consen so” e no meio do caminho tentar desvendar as questões que nos têm martelado constantemente. Se não buscamos conceituar a música e o design, tarefa reservada à filosofia, mas traçar possíveis relações entre eles, posicionamo-nos mais como cientistas que não buscam conceitos, mas funções dadas como proposições, os chamados functivos por Deleuze e Guattari (1992, p.153). 

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Particularmente havíamos declarado o design como “morto”, como uma fábula na qual nos fizeram acreditar, como algo distante (e de certa forma divino) do qual se ouve falar mas nunca se vê, ou como o céu que almejamos e o qual tentamos alcançar, mas quanto mais nos aproximamos dele, mais longe ele fica (quanto mais próximo mais longe). As facilidades em obter computadores pessoais, impressoras, scanners, softwares e livros que prometem transformar o consumidor em “designer gráfico” ou “webdesigner” com promoções do tipo “Aprenda design gráfico”, “Design para quem não é designer” etc mudaram a natureza dos trabalhos gráficos. O produtor tornou-se também o consumidor da sua própria produção gerando nas artes gráficas o que Alvin Toffler (um dos mais conhecidos futuristas americanos) denominou prosumers (Pimenta, 1993). O que seria apenas uma ferramenta de trabalho passou a determinar (e muitas vezes a limitar) as “criações” dos designers. A proliferação de softwares e computadores cada vez mais potentes ao mesmo tempo que abrem novas e instigantes possibilidades artísticas tornam-se muitas vezes um entrave à criatividade. O “design” se viu reduzido à tela dos computadores onde qualquer coisa que surge dali passou a levar o seu nome. Esse equívoco é facilmente percebido quando se faz um busca pela internet usando a palavra “design”, a grande maioria das referências que se obtém em nada corresponde ao seu conceito (visuais carregados, diagramações confusas, mau uso das cores, verdadeiros lixos que corrompem o seu significado). Na verdade foi o conceito de design que mudou (é o conceito das “coisas” que mudam e não a “coisa” em si) e/ou a nossa maneira de pensar o design. Se por um lado o conceito de design se reduziu à banalização do termo, por outro ele se diversificou e se conectou a outros meios incorporando diferentes “linguagens” (a justaposição de som e imagem, por exemplo, é comumente explorada pelos designers em sites interativos, cd-roms, videos). Nesse sentido não podemos (pelo menos não ainda) declarar a sua morte ou declará-lo como uma “utopia”, a menos que entendamos “utopia” não como algo impossível mas como possibilidade, como o não-lugar, onde subsiste o “vazio”3. Tanto o design quanto a música contemporâneos têm sido “vistos” por olhos equivocados e desconfiados (uma coisa não necessariamente ligada à outra: alguns se equivocam ao qualificar tal “coisa” como design - o que se qualifica muitas vezes como design não passa, na verdade, de “desenho digital” - e outros simplesmente se perguntam “mas isso é mesmo música?”). O design, talvez por estar mais diretamente ligado (numa visão banal deste) ao sentido da visão, está muito mais vulnerável à banalização. Já a música, pelo seu caráter icônico por natureza, intimida um pouco a “proliferação” de visões equivocadas.

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“O fundo do poço da vergonha”, dizem Deleuze e Guattari, “foi atingido quando a informática, o marketing, o design, a publicidade, todas as disciplinas da comuni cação apoderaram-se da própria palavra conceito e disseram: é nosso negócio, somos nós os criativos, nós somos os conceituadores! Somos nós os amigos do conceito, nós os colocamos em computadores.” (OQF?, 1992. p.19)4. Os chamados “rivais impru dentes” por Deleuze e Guatarri reduziram o Conceito a exposições de produtos, mercadorias que designam “uma sociedade de serviços e de engenharia infor mática” que substitui a Crítica pela promoção comercial: “O simulacro, a simulação de um pacote de macarrão tornou-se o verdadeiro conceito, e o apre sentador-expositor do produto, mercadoria ou obra de arte, tornou-se o filósofo, o personagem conceitual ou o artista.” (Ibidem. p.19)

Não trata-se aqui, entretanto, de designar o papel de “criador” de conceitos a este ou àquele. Se é a filosofia, ou as disciplinas da comunicação, ou a arte quem cria os conceitos e os atribui não é, ao nosso ver, a grande questão. O conceito, tal qual o pensam Deleuze e Guatarri em “O que é Filosofia?” (1992) é um lugar movente. Ele não é fixo, ou seja, ele não é o produto comprável, nem o conceito de um produto, conceito de um modo de vida. Este, o conceito do marketing, não nos interessa aqui para discutirmos a idéia de um conceito de design e um conceito de música. A grande questão ao nosso ver, é entender as novas ressonâncias e variações do design e as suas conexões com a música, como reconhecer os traços de um no outro e as forças que ecoam entre si. Existe, no entanto, uma questão que antecede: o que faz do design uma potência de produção e não mais reprodução? Como pensar o design para além da representação? Mas quando falamos em “representar” não estamos falando de design pois ele está longe de ser um “jogo de representação”, é antes, um “jogo de sensação”. Assim como a pintura, o design não narra uma história, ele quebra a narrativa, subverte a forma e a afasta de toda e qualquer identificação a tal ponto de confundirmos uma cafeteira com um vaso, uma fotografia com uma gravura, uma estante com uma escultura, linhas que se movem numa animação de computador com um mapa de uma cidade em movimento. Se há a representação já não podemos, ao nosso ver, chamá-lo de design, mas de imitação, clichê. O “design” que se ocupa em reproduzir referências passadas é o reflexo da estagnação, uma “esteira” que não é outra coisa senão a ilusão do movimento: “um entrave ocasional da matéria” (Klee, 2001. p.46). Design é movimento que transcende o tempo para um futuro sem forma que se atualiza no presente (ou assim desejamos que ele seja). Ele sempre vai além do que gostaria de representar. Pois, visto apenas como representação ele sempre será uma cópia mal ou bem feita, mas sempre limitada a não ser o original.

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O movimento do qual falamos é o que move o mundo, seja nas artes, na ciência, ou mesmo na política, não qualquer movimento, mas um movimento circular, porém em espiral, onde a cada volta novas idéias surgem e vão tomando forma. A Bauhaus, berço do design moderno, foi uma dessas idéias que exerceu grande influência no mundo, “em todas as escolas ciosas de progresso” (Mies van der Roche, citado por G. Warchavchik, in Gropius, 1972. p.14). O sonho de se criar uma Universidade de Arte germinou antes, nas mãos de William Morris, cujo nome está ligado à Red House de Bexleyheath, “a famosa casa vermelha, de 1859, uma das datas primeiras da nova arquitetura”, e do pintor Henry van de Velde, que realizou o esboço original da Bauhaus, em 1902, para depois ser efetivada por Walter Gropius. O pintor Henry van de Velde atuou como conselheiro artístico das indústrias e criou um “atelier expe rimental de arte industrial” onde se desenvolviam novos modelos e novos tipos de técnicas. Atelier que mais tarde denominou “Seminário de Arte Industrial”, fazendo surgir daí a “nova Escola de Arte Industrial de Weimar”, em 1906. Essa nova escola tinha como metodologia fundamental ensinar os alunos a buscar soluções para as relações espaciais através do modelado. A Primeira Guerra Mundial interrompeu os trabalhos de van de Velde na Alemanha, que se viu obrigado a deixá-la, indo para a Suíça e, mais tarde, para a Holanda. Walter Gropius foi indicado por ele, ao término da Guerra (1918), como o único nome capaz de substituí-lo na Alemanha. Gropius assumiu a direção da Escola de Weimar que, mais tarde, teve que transferir-se para Dessau (onde lhe foi oferecido pleno apoio) dadas as perseguições reacionárias imperantes na “nova democracia européia” de Weimar, na Alemanha do pós-guerra. Fez jus à indicação de van de Velde reunindo na Bauhaus os mais representativos nomes da história das artes do século XX como Paul Klee, Gerhard Marks, Lyonel Feininger, Johannes Itten, Oskar Schlemmer, Wassily Kandinsky, Adolf Mayer, Lothar Schreyer, Georg Muche e Laszlo Moholy-Nagy dentre outros (Gropius, 1972. p.11-13). “Uma equipe de altitudes nas artes contemporâneas, como jamais se reuniram, como nunca mais houve oportunidade de ver reunidas, para um trabalho artístico e didático, plasmador de ge rações a responderem pela convicção de que todos esses mestres se achavam imbuídos” (Ibidem. p.13)

No currículo estavam incluídos o estudo e o uso de materiais: pedra, madeira, metal, argila, vidro, cor, têxteis, “servindo de instrução ao problema das formas, em três partes: observação, representação e composição”. À observação cabiam “o estu do da natureza, a análise dos materiais”. À representação, “a geometria descritiva,

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a técnica da construção, o desenho de projetos e a feitura de modelos para todas as modalidades de construção”. À composição, “a teoria do espaço, a teoria da cor e a teoria do desenho”. Paralelamente eram desenvolvidas atividades culturais através do teatro experimental, da nova tipografia e da pintura com Herbert Bayer e Josef Albers. Ali se processavam técnicas e pesquisas “como as monta gens, a pintura sobre vidro, as construções espaciais aplicadas a superficies etc” (Ibidem. p.13). Gropius já possuía seu próprio ponto de vista dentro da arquitetura antes da Primeira Guerra Mundial, o que é percebido (como o próprio Gropius relata) no edifício Fagus, de 1911 e na exposição do Kölner Werkbund, de 1914. Mas foi em consequência da Guerra que suas idéias tomaram forma pela primeira vez. Diante da interrupção causada pela Guerra, surgiu uma necessidade de transformação, de mudança intelectual, a fim de que fosse ultrapassado “o abismo entre realidade e idealismo” (Ibidem. p.29). Para Gropius seria necessário, antes de tudo, “demarcar novamente a meta e o campo de atividade do arquiteto”, o que “só seria alcançado com o preparo e a formação de uma nova geração de arquitetos em contato íntimo com os modernos meios de produção em uma escola pio neira, que deveria conquistar uma significação de autoridade”. Uma escola onde os colaboradores e assistentes “não trabalhassem como um conjunto orquestral, que se curva à batuta do maestro, e sim independentemente, ainda que em estreita cooperação, a serviço de um objetivo comum” (Ibidem. p.30). Não bastaria, no entanto, que essa “nova geração de arquitetos” criasse “objetos” e edifícios bonitos para atenuar a desarmonia do moderno meio-ambiente, era necessário sobretudo buscar novos valores, criar e instigar a criação de “métodos artísticos próprios”, sem correlação com “estilos” anteriores, capazes de expressar as idéias, o pensamento e a sensibilidade da época. A Bauhaus foi inaugurada em 1919 com o objetivo de “exercer uma influência viva no design” e não de criar um “estilo” que se propagasse pelo mundo como muitos acreditam, pois isso significaria, segundo Gropius, recair no academicis mo estéril e na estagnação, contra o qual precisamente a Bauhaus foi criada (Ibidem. p.33). Sua ambição era estabelecer uma relação entre o artista criador (arrancálo do seu “distanciamento do mundo”) e o mundo mecanizado (trazê-lo ao “mundo real do trabalho”), e, opondo-se à idéia de l’art pour l’art, criar objetos e construções para a produção industrial, buscando, no entanto, impedir (ou ao menos reduzir) a escravização do homem pela máquina. Para ele a “feiúra” e a “desordem” do ambiente caótico pós-industrial era consequência da “nossa incapacidade de colocar necessidades fundamentais do homem acima dos imperativos econômicos e industriais”. A ambição humana, “dominada pelas maravilhosas pos -

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composition VIII

Kandinsky

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sibilidades da máquina” reduziu o homem a uma “ferramenta industrial”. A difícil tarefa da Bauhaus era equilibrar essa relação, reconhecer o elemento humano como fator dominante e “humanizar a influência da máquina” (Ibidem. p. 118). Após um longo período de l’art pour l’art o design surgiu como “uma nova lin guagem visual que substitui conceitos individualistas, como “gosto” e “sentimento” por conceitos de valor objetivo”. Gropius no livro “Bauhaus: Novarquitetura” (Perspectiva, 1972) fala do design como o “denominador comum” que faltava à compreensão das artes plásticas naquele período. Se na música o “denominador comum” da época era o sistema de doze tons através do qual “foi criada a músi ca mais grandiosa” segundo Gropius, e na arquitetura a “secção de ouro”, os “módulos da Antiguidade grega”, a “triangulação” dos mestres-construtores góticos eram o “denominador comum” ou “chaves ópticas” que permitiram aos antigos mestres-construtores estabelecer uma configuração arquitetônica, faltava às artes plásticas essa “chave comum”. (Ibidem. p.88). Alguns dos artistas que ensinaram na Bauhaus, como Johannes Itten e Wassily Kandinsky, tentaram “reintroduzir o espiritual na arte”, enfatizando o uso da intuição e da experiência subjetiva no processo criativo através de aulas sobre teorias da cor, forma, contraste e história da arte. Itten “acreditava que os mate riais deviam ser estudados para descobrir as suas qualidades intrínsecas e encorajava os seus alunos a produzir construções inventivas a partir de ‘objets trouvés’” (Charlotte & Peter Fiell, 2000. p. 84). Dois desses artistas, Paul Klee e Oskar Schlemmer, exploraram, na pintura e na dança, respectivamente, o que podemos assinalar como uma primeira aproximação música-design. Paul Klee que ensinou na Bauhaus de 1921-1931, além de pintor, tinha sido músico. A música não era seu objetivo profissional (embora tenha participado eventualmente de alguns concertos inclusive como solista) mas influenciou fundamentalmente seu trabalho como pintor. Para ele os sons e as cores eram igualmente fascinantes, uma forma de se compreender o mistério da vida. Os músicos que mais apreciava eram os clássicos Mozart, Beethoven e Bach que considerava à frente do seu tempo. Sua identificação com Bach, por exemplo, vinha da necessidade de expressar plasticamente o que Bach expressou na música através de formas de expressão autênticas e modernas que ficaram esquecidas durante o século XIX (Günther Regel, in Klee, 2001. p.17). Sua obra é recheada de analogias entre a música e as artes plásticas. Não tratase, entretanto, de representar elementos musicais na pintura, mas de “tornar visíveis” formas não visíveis, como o ritmo. “Klee procurava, por assim dizer, um equivalente visual para aquilo que a música era capaz de tornar audível” (Ibidem.

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ancient sound, abstract black

Paul Klee

p.19). Para ele, tanto a música quanto a pintura eram artes temporais, pois o espaço da pintura era também um conceito temporal: “Quando um ponto se torna movimento e linha, isso implica tempo. A mesma coisa ocorre quando uma linha se desloca para formar um plano. Igualmente no que diz respeito ao movi mento dos planos para formar espaços” (Klee, 2001. p.46).

Klee desenvolveu na pintura alguns conceitos próprios da música como variações de temas, sendo que em algumas obras desenvolveu vários temas simultaneamente enfatizando uns, através de relações claro-escuro, uso das cores e contraste, em detrimento de outros que permaneciam em segundo plano. O posicionamento de Klee em relação à arte visava o objetivo de “tornar visível a riqueza infinita e a diversidade milagrosa do que é transitório, do devir, percebido em todo o seu mistério” (Günther Regel, in Klee, 2001. p.20). Ele tornou visíveis forças sonoras no espaço da pintura o que faz com que não só suas pinturas como também seus desenhos lembrem partituras como as “partituras auditivas” de György Ligeti.

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homem no espaço

Oskar Schlemmer

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O trabalho do pintor e escultor Oskar Schlemmer, responsável pelo departamento de teatro da Bauhaus, era baseado na figura humana como um modelo determinado por fórmulas matemáticas e geométricas. Numa época que considerava a vida como produto da mecanização (Bauhaus and Oskar Schlemmer. 2000), Schlemmer desenvolveu um impulso insistente em reduzir figura e gesto ao menor número de formas e movimento. Destacou três elementos no teatro: homem no espaço, luz em movimento, e arquitetura. No início de 1914, iniciou um projeto que denominou Ballet Triádico. A peça, que estreou em 1922 (Stuttgart, Alemanha), reuniu dança, figurino, música, luz e movimento em três sequências distintas. É menos um ballet no sentido convencional que uma multidisciplinaridade, o que se pode chamar de “trabalho constru tivista da arte” (Abstraction in Dance. 2002). Não estava interessado, contudo, em teatro da representação, mas em um teatro da abstração. Schlemmer nomeou a peça “Triádico” porque foi literalmente composta de múltiplos de três: três atos, três cores, três dançarinos, três formas. A peça foi dividida em três movimentos musicais, e o ballet como um todo refletiu a fusão dos três elementos dança, figurino e música. A coreografia deriva do caráter distinto de cada figurino. Schlemmer analizou e isolou

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os gestos principais do movimento do corpo humano e reduziu-os a um grupo básico de formas elementares (elipse, linha reta, diagonal e círculo). Os figurinos e os passos da dança foram desenhados baseados nessas formas. Concentrando-se na forma e movimento, Schlemmer explorou a relação espacial do corpo com o ambiente arquitetônico e a relação das formas com o som. Um dos figurinos que mais chamam a atenção é o da espiral cuja coreografia escapa, num certo momento, causando um “estado de suspensão”. Seu trabalho nesse projeto tornou-se a base fundamental para a sistematização da dança e dos elementos a ela relacionados: forma, gesto, espaço, cenário que ele ensinou na Bauhaus enquanto esteve na direção do departamento (1923-1929) ( Ibidem). Trata-se de uma relação música-design que explora os sons das formas no espaço da dança. 

Os artistas exploram espaços diversos (sonoros, visuais, táteis) em busca da “incomunicável novidade” e ultrapassam suas fronteiras descobrindo no “abismo” novas formas de vivenciar a visão, a escuta ou o tato. Esta é uma função da arte: instigar formas de percepção. Quando falamos em arte estamos nos referindo a todas as “fendas” que nos permitem vivenciar o novo que se desfaz em sensações. Segundo Deleuze (FB, 1981) “A sensação é vibração” que vai além da emoção, ela vai onde “existe imobilidade para além do movimento”, ritmo para além da duração. A sensação vai além do fenômeno, ela transborda fenômenos por todos os lados. Os grandes artistas provocam processos e se inserem na obra como agentes, não como autor. Num mundo interativo “o espectador”, “o leitor”, “o ouvinte” assumem uma nova natureza, também interativa, a de “interator” que “re-age” com a obra, que se insere nela e a constrói em conjunto, que explora espaços flutuantes e os atualiza à medida em que interage com ela. O que se verifica hoje é um esforço por “eliminar todo espec tador, e com isto todo espetáculo” (FB, 1981) a exemplo de Francis Bacon. Nos anos 60 e 70, entretanto, deixamos de entender a arte meramente como objeto e passamos a lidar com a conformação e percepção do espaço. Os artistas centravam-se na preocupação com a experiência individual do observador. Alteravam a organização do espaço e exigia do observador uma visão em deslocamento e não mais meramente contemplativa. Não tendo mais o ponto de vista introduz-se na observação o tempo de deslocamento, que exige um esforço do observador. O entendimento de uma obra de arte exige tempo, não se dá instantaneamente:

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[5] Essa idéia do “espaço do olho que escuta” foi lançada pelo compositor François Bayle (Bayle, 1993) a partir do conceito de música acusmática, denominação atual de música eletroacústica que, segundo Rodolfo Caesar (2000), tem sido preferida por grande parte dos compositores “pelo modo de apresentação em concertos sem apoio da visualidade”. Segundo Caesar “ouvir rádio também é acusmático. Conversar pelo tele fone, ou sem olhar para o interlocutor, ou simplesmente apagar a luz também.” (Ibidem.). O termo “acusmático” era o nome dado aos discípulos de Pitágoras que recebiam as lições do mestre atrás de uma cortina, sem vê-lo, somente a voz do mestre lhes chegava aos ouvidos (Schaeffer, 1993, p. 83). A partir desta idéia Pierre Schaeffer desenvolveu o conceito de acusmático na música no qual “proíbe simbolicamente toda relação com o que é visível, tocável, mensurável” (Ibidem. p.84). François Bayle, que ampliou esse conceito na música, considera-o para “designar músicas que vão além dos seus índices sonoros, suas causas instru mentais, e que põem em jogo uma escuta ativa interessada nos efeitos e nos sentidos” (Bayle, 1993).

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“Feuerbach não diz que para o entendimento de um quadro é necessária uma cadeira? Para que a cadeira? Para que o cansaço das pernas não atrapalhe o espírito. As pernas ficam cansadas por causa da demora em pé. Em cena, portanto, o tempo. Personagem: o movimento. Só o ponto morto em si é atemporal.” (Klee, 2001, p.46)

Na Pop Art havia uma fascinação pelo objeto e pela cultura de massa. Andy Warholl, Roy Lichtenstein e tantos outros influenciaram substancialmente o design nos anos 60 numa época em que o cotidiano era a “musa inspiradora da arte”. Nesse período a arte dependia do espectador, do observador não como alguém de fora do mundo, observando o mundo, mas como alguém inserido no meio cuja visão é sempre parcial, sempre relativa (fenomenológica). Tratase de uma arte fenomenológica porque pressupõe um observador inserido numa relação complexa que não se dá a ele de imediato. O sujeito e o objeto estão intrinsecamente relacionados e a partir do seu esforço receptivo e da sua experiência ele dá conta desse objeto. Ao inserir o observador no mundo a Fenomenologia ressalta a sua percepção, ela não é dada pelo seu posicionamento a priori. A percepção a partir da experiência é resultado de um trabalho não de um dado. O artista tem que “negociar” com o mundo e nessa tentativa incorpora a complexidade de lidar com esse mundo. O uso da “cadeira”, que para Paul Klee era necessário para o entendimento de uma obra de arte, “revela uma especialização do espectro de sintonização visual. Tal especialização manifestou-se na música e em muitas outras atividades.” Contudo, “os computadores e os satélites realizam exatamente o movimento contrário, ampliando todas as zonas sensoriais a escalas até então inimagináveis.” (Pimenta, 1993). As mudanças de escalas provocadas pelo avanço das tecnologias resultaram em uma nova apreensão do tempo e do espaço. Não cabe mais distinções categóricas entre “artes do tempo” e “artes do espaço” e também não é mais necessária a “cadeira” para o entendimento de uma obra de arte pois o “espec tador”, que passa a ser “interator” se confunde com a obra, entra num “estado de suspensão”, quando se perde a noção de tempo e espaço. O espaço do qual falamos é o espaço do olho que escuta, um possível espaço onde a música e o design se cruzam. Não mais exclusivamente numa relação visual mas sobretudo sonora, o que faz com que o próprio conceito de design amplie suas extensões para além da visão, da função, da reprodução5. A apropriação das novas tecnologias como suporte ou ferramenta de produção tornou-se cada vez mais frequente não só pelos designers e artistas como também pelos músicos. Mas a cada mergulho em universos desconhecidos o

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design vai perdendo a fina camada de ordem que ainda o recobre e adquirindo uma nova como numa troca de pele. Qual é a nova “ordem” (ou “des-ordem”) do design? Como identificar o design nessa malha de objetos tanto visíveis quanto sensíveis, objetos voláteis que se interpolam e se afastam como num jogo de sensações? Se por um lado a tecnologia tornou possíveis feitos antes inimagináveis, por outro provocou novas visões “utópicas” acerca do futuro das artes. Mas se pensarmos essas utopias como coisas perfeitamente realizáveis não haverá limites para o desenvolvimento tecnológico que cada vez mais influenciará e por vezes determinará os procedimentos e os modos de composição musical e do design. Os computadores apenas automatizam operações, sendo também limitados e limitantes no seu modo de operação. Tanto o design, quanto a música e a arte acreditavam ter encontrado nas novas tecnologias novas possibilidades para mergulhar no “caos” da criação e fugir dos clichês e das opiniões que cerceam o vôo livre de suas idéias artísticas. No entanto, nessa luta contra os clichês acabaram substituindo um clichê por outro (“as reações contra os clichês engendram clichês”- FB, 1981), pois a tela é, de antemão, um lugar já trabalhado e previsto pelos designers programadores. Segundo Deleuze e Guatarri: “O pintor não pinta sobre uma tela virgem, nem o escritor escreve sobre uma página branca, mas a página ou a tela estão já de tal maneira cobertas de clichês preexistentes, preestabelecidos, que é preciso de início apagar, limpar, laminar, mesmo estraçalhar para fazer passar uma corrente de ar, saída do caos, que nos traga a visão.” (OQF?, 1992. p.262)

Da mesma maneira, a tela do computador e os softwares, já estão cobertos por clichês. É necessário buscar alternativas não de destruí-los ou transformálos, o que fatalmente recairia na criação de outros, mas de sair do campo provável, previsível a fim de extrair “o improvável do conjunto de probabilidades” (FB, 1981). Até mesmo a arte abstrata, cercada por clichês presentes como “imagens atuais ou virtuais” antes mesmo de ela existir, quando tentou fugir da figuração criou novos clichês, não deixou de ser “representação”. Representação tratada aqui como signo. Se pensarmos sob o ponto de vista da semiótica peirceana, a representação existirá sempre que existir a ação de signos. Segundo a semiótica peirceana o signo, que é usado como sinônimo de representação (“Algumas vezes, Peirce utilizou o termo representamen, no lugar de signo, para designar o primeiro membro da tríade” – Santaella, 2001, p.191), representa alguma coisa a alguém, ou seja, representa seu objeto e desperta na mente desse alguém um outro signo, um efeito, chamado de interpretante.

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“Mas o signo só pode representar o objeto porque o objeto determina o signo” (Ibidem) sendo portanto, o segundo na relação triádica (o signo é o primeiro, e o interpretante, o terceiro). Na relação triádica, o signo é a mediação entre o objeto e o efeito causado na mente do interpretante, a ação do signo só é completa quando o signo é interpretado, ou seja, quando ele determina um interpretante, que por sua vez é “determinado pelo mesmo objeto que determina o signo” (Ibidem). Peirce chama a ação do objeto sobre o interpretante de “determi nação mediada” e o interpretante, “representação mediada” do objeto (Ibidem. p.191-192). “Na relação triádica, há, portanto, dois vetores: (1) o vetor de representação que aponta do signo e interpretante para o objeto, pois o interpretante, mediado pelo signo, também representa o obje to através do signo. (2) O vetor de terminação que vai do objeto para o signo e do signo para o interpretante. Em ambos os vetores, o signo ocupa a posição de mediador, sendo um elemento de síntese. Em suma, o signo é determinado pelo objeto, mas ele, simultaneamente, representa o obje to. O signo determina o interpretante e, ao determiná-lo, o signo transfere ao interpretante a tare fa de representar o objeto pela mediação do signo.” (Ibidem. p. 192)

A partir do momento em que a fotografia passou a retratar “fielmente” a realidade, a pintura teve que recriar novas formas de representação. Se, segundo Deleuze, não há como fugir do figurativo, não bastava à arte abstrata criar uma anti-figuração e sim uma outra figuração. O “como” se estabelece a relação entre as idéias presentes na mente do artista, seja ele designer, pintor, escultor ou músico, e o suporte e/ou a(s) ferramenta(s) de trabalho é que define a arte como sendo arte, não importando de que maneira ela se manifeste. De um modo geral o artista mergulha no caos sem medo, sem restrições, a fim de lutar contra os clichês que já recobrem a “tela” ou a própria memória e “apressar a destruições para produzir uma sensação que desafia qualquer opinião, qualquer clichê” (Deleuze e Guatarri, 1992, p. 263). A arte não luta contra o caos mas com o caos, “mas, se ela se bate contra o caos, é para emprestar dele as armas que volta contra a opinião, para melhor vencê-la com armas provadas”. Enquanto os homens “comuns”, os falsos artistas, os imitadores (“que remen dam o guarda-sol com uma peça que parece vagamente com a visão”), se escondem embaixo de uma espécie de “guarda-sol” que os protege contra o caos, onde se sentem seguros e onde podem afirmar ou reafirmar suas opiniões os artistas simplesmente o rasgam para que uma fresta de luz possa nos trazer de volta os sentidos. (OQF?, 1992, p. 261-62). Em “Lógica da Sensação” (FB, 1981) Deleuze fala dessas “fendas” como “marcas livres”, como forças soltas,

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marcas acidentais que fazem saltar a “figura”. Figura vista aqui como forças sensíveis que se manifestam num futuro, atualizações, que não existem de antemão no quadro. Segundo ele, o que está no quadro não é a figura, mas figuração, representação. A figura é sensação que não se esgota num presente fugaz, ela suspende o tempo e como tal ultrapassa os sentidos, pois é imprevisível dentro de um quadro de possibilidades. Deleuze define a tela como um quadro de possibilidades no qual o artista “passeia” e deixa-se levar pelo acaso, por essas forças livres que o arrasta. No entanto esse “acaso” do qual trata Deleuze não é um jogo de probabilidades, mas um jogo de possibilidades do qual o artista se vale. É um jogo livre que, ao mesmo tempo que arrasta o artista se deixa manipular. “É na manipulação, ou seja, na reação das marcas ma nuais sobre o conjunto visual que o acaso se torna pictórico ou se integra no ato de pin tar” (FB, 1981) caso contrário, qualquer pessoa que jogasse tinta numa tela seria chamada de artista e suas “manchas”, “arte” (“arte abstrata”). Num mesmo sentido, quando John Cage diz que “música é sons à nossa volta quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto” se levarmos ao extremo essa máxima qualquer ruído pode ser considerado música e o mundo todo uma orques tra de ruídos. Como ficaria então a música de Beethoven, Bach, Bartók, Stravinsky, Varèse, Shoenberg, Schaeffer, Xenakis, Berio...? Para que a música seja música, ou para que os sons, mesmo os sons mais concretos, sejam ouvidos como música implica uma escuta intencional, ou seja, que os sons sejam ouvidos com a intenção de escutar música, seja um Bach, um Stravinsky ou o ronco das máquinas. Isso implica uma relação imprevisível a cada escuta. O design, assim como a arte e a música, é também um campo de possibilidades que exige inovação constante, atitude criativa e não imitativa. Até mesmo as formas padronizadas devem ser revistas constantemente a fim de não serem superadas (Gropius, 1972, p.119). Quando questionamos a postura do “design” hoje, e até preconizamos a sua decadência nos vimos de certa forma impelidos a encontrar um novo “lugar” para ele, um “lugar” onde ele possa existir livremente independente de associações a conceitos, produtos, forma, função, e onde todos os sentidos estejam trabalhando a seu favor. O que se vê hoje, com o avanço da tecnologia, pode ser comparado ao período pós-revolução industrial no qual a produção industrial inundou o mundo provocando reações dos artesãos e dos artistas “contra a ausência da boa forma e da qualidade”. Morris foi um dos que protestaram contra as máquinas mas, segundo Gropius, “só bem mais tarde, algumas personalidades, que almejavam o desenvolvimento da forma, reconheceram nesta confusão que arte e produção só voltari -

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am a harmonizar-se de novo quando também a máquina fosse aceita e posta a serviço do designer” (Ibidem. p.33). Os artesãos, além de terem se tornado técnico, artista e comerciante em uma só pessoa, foram perdendo aos poucos seus discípulos que migraram gradativamente para as fábricas (Ibidem. p.34). Com a tecnologia o artesão hoje seria o usuário final do aplicativo, aquele que do mina a “máquina” e os softwares, que forja tutoriais e se utiliza dos plug-ins para “criar” “produtos” cujos resultados impressionam pela precisão técnica, mas são carentes de conceito e facilmente identificáveis com esta ou aquela “técnica” deste ou daquele programa, pois tudo o que ele fizer já está previsto pelo programa. Não trata-se aqui, entretanto, de fazer uma apologia contra as máquinas e/ou contra a tecnologia, de atribuir a elas as consequências de uma estagnação ou da “ausência da boa forma e da qualidade” no design, na arte ou na música, mas ao contrário, ressaltar o espírito inventivo dos artistas que nada mais são que “exploradores de espaços”, sejam visuais, sonoros ou táteis, espaços cujas margens eles ampliam, à medida que se tornam limitantes, resultando em novas e infinitas formas de vivenciar os sentidos, de existir dentro de um mundo visual, sonoro ou tátil. O grande artista é aquele que não imita, que não reproduz formas já existentes, ele mergulha em “espaços” (entendendo o “espaço” não como “lugar” mas como “possibilidade”) nunca antes explorados e faz ecoar em nosso espírito as forças sensíveis que vão muito além da “representação” de sentimentos, da “representação” do belo, são forças que suspendem o tempo num sem tempo surdo. O homem nunca conseguirá atingir a perfeição, a “representação” perfeita, a cópia perfeita do original, “Sempre que o homem acreditou ter encontrado a “beleza eterna”, recaiu na imitação e esterilidade.” (Gropius, 1972, p.111). Ao afirmarmos na abertura do trabalho que “música e design estão em toda a parte”, buscamos neste capítulo apresentar uma visão geral de como se deram as mudanças no design desde o seu surgimento com a Revolução Industrial, quando começou a surgir uma conceituação do design, até os dias de hoje, com a tecnologia, que fez emergir o conceito de virtual. Enfatizamos a Bauhaus, como escola importante na difusão de um pensamento do design e destacamos dois nomes fundamentais, Paul Klee e Oskar Schlemmer, que nos permitem, através de seus trabalhos em íntima relação com a música, buscar uma primeira aproximação entre a música e o design. Ao mesmo tempo em que buscamos situar o leitor no contexto do design e apontamos algumas relações com a música, de hora em hora surgiam questões que até este ponto

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ainda permanecem em aberto. Apontamos também alguns “contras” da relação do design com a tecnologia que de certa forma provocou uma crise no seu conceito. Antes de respondermos às questões que motivaram essa pesquisa, é necessário entender também como se deram as mudanças na músi ca, principalmente no que se refere à sua relação com a imagem, seja como representação visual (partituras) ou como imagens mentais.

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e um modo geral não há “original” em música, a partitura, que poderia ser pensada como sendo seu “modelo”, não é o som fixado no papel, é um artifício usado para registrar as idéias musicais do compositor. Ela é apenas uma parte da música, que nunca se completa. Inúmeras vezes o compositor faz diversos rascunhos da mesma obra à medida em que vai tendo novas idéias no decorrer da criação, de tal forma que podem ser encontradas várias versões de uma mesma peça. Nunca saberemos qual é efetivamente a “original” porque na verdade o “original” não existe, todas as versões “representam” processos. Em obras mais antigas, reproduzidas pelos copistas, encontramos várias versões de uma mesma obra, mas nunca saberemos se trata-se de erro do copista ou se foi o processo criativo do compositor o responsável pelas diferenças em cada versão. De qualquer modo, por mais “rígida” que seja a notação, cada vez que a peça for tocada, seja pelo próprio compositor ou por um mesmo intérprete, ela sempre será uma outra música. É desta maneira que podemos dizer que se há um “original”, um modelo, ou protótipo no design, o mesmo não pode ser encontrado na música, sobretudo se pensarmos a música como performance, ela é flutuante, sua existência é sempre provisória pois “está sempre no futuro, não tendo um espaço fixo no presente nem no passado. Ela se atualiza no presente mas é no futuro que ela se encontra” (Ferraz. comunicação pessoal. 2002). A busca pelo “ideal” na música é sempre uma busca vã, embora estimulante, pois não há um “ideal” em música cuja interpretação é sempre uma cópia. “A forma em música precisa ser sempre inventada” (Ibidem) pois ela é uma “dimensão futura”: à medida em que se ouve uma música ela vai se desfazendo, perde-se pra sempre. Mesmo que numa segunda audição o ouvinte guarde alguns detalhes acústicos, já que a música tem alguns recursos pra não se perder tanto, ela sempre será uma dimensão futura, pois sua existência é sempre um provisório. No design e em outras artes, entretanto, isto não ocorre com tanta frequência, uma vez que eles subsistem quase sempre num suporte fixo. A forma no design, embora esteja ali, “presente”, a princípio pré-fixada, também precisa ser inventada pois falamos de um design como potência ativa e operacional, algo que escuta1 mas que também toca sendo também flutuante. Nesse sentido referimo-nos a tudo o que depende da dimensão do tempo pra se fazer e se desfazer de tal forma que o retorno seja sempre diferente: isso ocorre na arquitetura, como quando percorremos algumas ruas ou corredores, que se “desfazem” à medida em que os percorremos, pois quando retornamos, ou mudamos o campo de visão, eles não são exatamente como os vimos da primeira vez; alguns sites também têm essa característica de se “desfazer” (http://www.pianographique.com), os caminhos são tão imprevisíveis

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que mesmo sendo programados, o retorno implica diferentes e inesperadas situações; os grafites de rua também nunca são fixos, mudam constantemente e a idéia é justamente ser mutante, não ser fixados. Entretanto, para que existam num futuro, como categoria virtual, é necessário captar as forças e tornálas sensíveis, ou seja, que as forças ajam sobre o “corpo” impondo a condição da sensação para que a pintura, a escultura, o design existam num futuro. Eles possuem virtualidades que se atualizam mas essas virtualidades estão quase sempre subordinadas a uma forma “presente”, acessível a outros sentidos, sendo possível tocá-la, senti-la. Quando se trata do suporte pode-se dizer que o design, a pintura, a arquitetura são fixos, mas quando trata-se do processo de se fazer design, pintura, arquitetura, podemos afirmar que também são mutantes assim como a música. Quando falamos em música referimo-nos não somente ao som que ouvimos mas a todas as suas “partes”: música enquanto som, música como notação (partitura), música executada por um intérprete e música enquanto escuta. Contudo, nenhuma dessas partes constitui o seu todo pois, como potência do futuro, a música está sempre por acontecer. Podemos falar de reencontro, mas não de memória em música: “A memória na música é do passo-a-passo e não a memória à distância. A memória à distân cia na música seria a do reencontro. Não há ali uma fundação do tempo como memória plena. Mesmo as estrias do tempo traçadas por uma percussão rítmica, que nos faz prever cada novo passo da música, é falsa pois a sequência de beats pode muito bem trazer um engano, um erro, e se desfazer sem que nada esteja previsto: os breques do samba, as viradas do jazz e do rock...” (Ibidem. 2002)

Numa primeira abordagem sobre “imagem de som”, a música das partituras possui algumas relações que vão além da pura reprodução do som anotado. Uma dessas relações é a de anotar o que se canta (notação como registro) da qual se utilizou o compositor Béla Bartók, um dos maiores especialistas em canção folclórica cujo material de composição eram canções transmitidas via oral que ele recolheu em viagens pela Hungria, países vizinhos, Turquia e norte da África. Suas peças são dotadas de complexidade estrutural e força emocional muito diferente do “vago pastoralismo” de outros compositores que também se inspiraram em canções folclóricas (Griffiths, 1987, p. 57). Criar sobre o próprio papel que se torna o ambiente de criação, faz da escritura um jogo de projeções de idéias, como nas escritas enigmáticas do barroco cujas figuras são espelhadas no plano visual, ou seja, no papel, e não no plano sonoro. Beethoven disse numa carta ao Arquiduque Rudolph (Viena, 1823) que o compositor

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deveria ter uma pequena mesa perto do piano para que pudesse anotar as idéias que lhe surgissem ao piano. Deste modo não somente ele teria a imaginação fortificada como também aprenderia como fixar no momento a maioria das idéias antes que elas sumissem. Escrever sem piano era, para Beethoven, igualmente necessário. A partitura constitui-se também como lugar de transmissão, no qual o compositor anota os sons para que possam mais tarde ser lidos e reproduzidos por algum intérprete (notação como transmissão). Ao buscarmos uma aproximação entre música e design, pensamos de imediato na música das partituras que se constituem verdadeiros designs gráficos, especialmente as partituras de Cage, Xenakis e Ligeti. No entanto, estamos certos de que é possível pensar o design enquanto música, o design para além do projeto, do significado e da reprodução no qual ele seria como uma partitura, uma parte da música antes da sua realização, e pensar a música enquanto design, ou seja, o design não estaria necessária e exclusivamente subordinado a uma forma visível: escutar o design e ver a música, o que não significa que para isso tenhamos que usar os sentidos apropriados para tal, ou seja, os olhos para ver e os ouvidos para escutar, mas ver com os ouvidos e escutar com os olhos, olhos e ouvidos que tateiam.

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istoricamente a partitura surgiu da linguagem escrita, nos mosteiros da Idade Média para preservar as orações latinas dos cantos gregorianos. Segundo Jourdain, para ajudar os monges cantores que sabiam pouco latim, os escribas inseriam acentos ocasionais acima das sílabas (Jourdain, 1998, p.238). No século VIII, os acentos se tornaram linhas onduladas que indicavam o modo como as sílabas deveriam ser cantadas. Mais tarde inseriram uma linha horizontal como referência para as marcações que eram escritas acima, abaixo, ou na linha. Depois foram acrescentadas mais linhas até nascer o que hoje conhecemos como pauta musical. À primeira vista, as partituras medievais são parecidas com as partituras convencionalmente conhecidas, mas existem algumas particularidades como a inexistência de separação de compassos, o formato das notas (formas quadradas, às vezes inclinadas formando losangos), e os neumas, que representam várias notas, formando uma figura melódia (na verdade essas figuras quadradas representavam os neumas, e não efetivamente as notas musicais). Cada neuma estava ligado a uma sílaba e não havia divisão de tempo, nem acentuação, o andamento seguia a naturalidade do latim falado (Jourdain, 1998, p.239). Com a gradativa importância dos instrumentos musicais (“os primeiros teclados por exemplo, que eram bas tante diferentes do teclado linear e contínuo do piano e a disposição das cordas, que per mitiam imaginar pequenas sequências sonoras baseadas muitas vezes em jogos de sime tria na sequência dos dedilhados” – Ferraz. comunicação pessoal. 2002), a partitura aos poucos foi se desvencilhando das palavras, e logo surgiram formas de anotar a duração e as primeiras diferenciações de tempo. No entanto ela “não anota um som. Indica antes certas operacionalidades de um instrumento (seja uma harpa ou uma voz)” (Ferraz. comunicação pessoal. 2002). Paralelamente à criação do relógio mecânico, quando a marcação do tempo passou a determinar o ritmo não somente na música mas no próprio cotidiano, as notas foram subdivididas matematicamente.

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As partituras eram uma forma de registro das idéias musicais dos compositores, uma mediação entre o compositor e o intérprete, ao mesmo tempo em que desempenharam papel essencial na comunicação entre os músicos. Estes não precisavam mais viajar longas distâncias para conhecer outros estilos, pois tinham acesso a eles por meio da escrita musical. Foi somente por volta do século XI que a partitura se tornou efetivamente espaço da criação, e não

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somente espaço de registro. A partir deste momento passou a figurar como imagem, como figuras sequenciais que eram a base da composição musical. Esse tipo de escrita marcou um longo período em que as composições eram realizadas a partir de regras determinadas sobre o próprio papel. Entretanto, as partituras tradicionais limitam o abuso de melodias e ritmos mais complexos que mesmo quando são registrados, são tão rebuscados que os músicos mal podem interpretá-los, como em algumas partituras de John Cage nas quais usou a notação tradicional. A notação em partitura de canções folclóricas fez com que Béla Bartók buscasse maneiras de detalhar sua notação, o que “contribuiu para dotá-lo de extraordinária habilidade em matéria de variação musi cal” (Griffiths, 1987, p.55). Através desse vocabulário universal, os compositores puderam, finalmente, “eternizar” suas idéias musicais. Em contrapartida, a rigidez com que são anotadas, seguindo as convenções musicais que organizam sons em modos, escalas, séries, acaba por cercear a livre interpretação dos músicos, que ficam presos às orientações dos compositores. Além disso, por mais eficaz que possa ser o sistema “o máximo que qualquer idéia musical consegue é mostrar quão inteligente foi o compositor que a teve; e o modo mais fácil de descobrir o que era a idéia musical, é você se colocar num tal estado de confusão que passe a pensar que um som não é algo para se ouvir mas, sim algo para se olhar.” (Cage, 1985, p.97). Trata-se aqui de uma primeira relação música-imagem: som não como objeto sonoro, mas como notas, objetos musicais abstratos.

detalhe de “Freeman Études”

John Cage

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detalhe da parte para piano de “Prozession”

Stockhausen

detalhe de “Kontakte”, para piano, percussão e fita gravada

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o século XVII o sistema tonal substituiu o sistema modal e o seu bidimen sionalismo, que vigorou na Idade Média com o sistema grego do tetracorde, com o canto gregoriano e com os cantos populares. Embora o sistema modal tenha enriquecido a arte musical, continuou a considerar “o som no seu desenvolvimento no tempo” (Luigi Russolo, in Menezes, 1996, p.52). As construções musicais eram horizontais pois não havia o acorde, que surgiu do desejo da união simultânea de diversos sons, no início perfeita (acorde perfeito consonante) e, mais tarde, complexa e dissonante, o que caracterizou a música contemporânea.

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A busca pela perfeição, pureza e “limpidez” dos sons retardou, segundo Russolo, o progresso da música em comparação às outras artes: “Os gregos, com sua teoria musical matematicamente sistematizada por Pitágoras, e com base na qual era admitido somente o uso de poucos intervalos consonantes, em muito limitaram o campo da música, tornando assim impossível a harmonia, que ignoravam” (Ibidem.)

Para John Cage (1985, p.31) o atraso da música em relação às outras artes “é a sorte dela”, pois através das suas experiências a música pode tirar deduções e “combiná-las com experiências necessariamente diferentes que surgem de sua natureza especial”. Durante séculos o músico preocupou-se em combinar sons e compor suaves harmonias negando o ruído. Com a invenção das máquinas, no século XIX, e o surgimento de sons ásperos e repetitivos o ruído passou a ser visto menos como incômodo e mais como uma possibilidade de revolução musical sendo aos poucos incorporado às composições, notadamente no período da Primeira Guerra Mundial. Nasce com ele uma nova “forma” de vivenciar a escuta musical. No momento em que as máquinas se multiplicaram e passaram a fazer parte do “universo” do homem, seja no campo ou na cidade, criou-se uma “concorrência” da grande variedade de ruídos produzidos por elas e o som puro. Os sons que antes “acariciavam” os ouvidos tornaram-se monótonos. Os sentidos passaram a buscar experiências mais amplas a fim de poder viver a experiência da vida que se modifica a cada instante.

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“Para exercitar e exaltar a nossa sensibilidade, a música foi se desenvolvendo em direção à mais complexa polifonia e em direção à maior variedade de timbres ou de coloridos instrumentais, buscando as mais complicadas sucessões de acordes dissonantes e preparando vagamente a cri ação do ruído musical” (Luigi Russolo, in Menezes, 1996, p.52)

Com a complexidade introduzida pelo ruído do século XX, os materiais musicais tornaram-se cada vez mais numerosos. O que antes tinha sido ejetado do universo da música (no período Tonal particularmente) passou a ser matériaprima para as composições contemporâneas. Da busca pelas formas dissonantes ao uso do ruído em seu estado puro, manipulado por meios eletroacústicos, a música foi ganhando novas e diferentes “representações” que fogem a toda e qualquer convenção da tradição musical. O compositor contemporâneo libertou o intérprete das “obrigações” impostas pela partitura como transmissão, (muitas vezes ele eliminou também o intérprete), fazendo deste um co-autor da obra ao mesmo tempo em que desvinculou a música da noção de “representação de sentimentos”, uma vez que, segundo Cage, “o máximo que se pode conseguir com a expressão musical de sentimentos é mostrar como era emotivo o compositor que a teve. Se alguém quiser ter uma idéia de quão emotivo um composi tor demonstrou ser, ele tem de se confundir tão completamente quanto o compositor o fez e ima ginar que sons não são sons mas Beethoven e que homens não são homens, mas sons.” (Cage, 1985).

As mudanças no pensamento musical já haviam começado antes da Primeira Guerra Mundial com Schoenberg, que “começou a compor sem temas ou tonali dade”, Stravinsky, que “introduziu uma nova concepção de ritmo”, e atitudes radicais de Debussy, Bartók, Berg e Webern. Mas, segundo Griffiths (1987, p.97), estas revoluções mantinham ainda vínculos com a tradição, “como extrapolações de tendências já existentes na música ocidental”. Depois da guerra é que efetivamente pôde-se assistir a uma ruptura com o passado. Na período anterior à guerra (por volta de 1909) surgiram os manifestos futuristas em cujo movimento Luigi Russolo foi o “mais persistente e influente dos compositores” defendendo “a arte do ruído”, uma música onde os sons e ruídos das máquinas e fábricas eram o “personagem” principal (Griffiths, 1987, p.97). Russolo não tinha, no entanto, formação musical, suas idéias eram efetivamente muito mais criativas e valiosas que seu “talento” como compositor. Apesar disso, suas idéias radicais e seu “intonarumori” (entoadores de ruídos) - “engenhocas mecânicas destinadas a produzir uma variedade de estampidos, estalos, roncos, rangidos e zumbidos” - influenciaram compositores como Stravinsky, Honegger e Varèse (Ibidem.).

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detalhe de “Projection II”

Feldman

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Edgar Varèse criticava o uso imitativo dos ruídos do cotidiano por Russolo, mas buscou em suas idéias caminhos para criar uma nova música “em contraste com as evocações pastorais e literárias do romantismo” (Ibidem. p.101). O som, foi seu ponto de partida “transformado, submetido a contrações, expansões, espaçamen tos, filtragens, alterações espectrais” (Ferraz, 1998, p.52). Segundo Ferraz, Varèse transformou matéria em material (material sonoro), é o material que gera a forma musical: “a forma é visível, pois ela é o próprio tratamento, as transformações mesmas do som” (Ibidem.). Trata-se de uma noção espacial de música na qual os corpos sonoros movem-se livremente no espaço. Seu pensamento ressonou em Iannis Xenakis e Karlheinz Stockhausen, que desenvolveu obras ora com uma supremacia da forma ora tentando fugir da sua hegemonia. Ambos propuseram “uma escuta não mais fundada nas relações entre os sons, mas sim na sensibilização ante as transformações de um som” (Ibidem. p.53). Som tratado como objeto sonoro, segundo Schaeffer, livre de associações a outros signos a não ser ele mesmo, som que independe da escuta individual (a escuta não determina a natureza do som, se for gravado ele será o mesmo som independente se for ouvido por diversos “ouvidos” ou por um ouvido particular). O conceito de objeto sonoro, definido por Pierre Schaeffer, deriva da experiência acusmática, na qual um som é ouvido sem que o ouvinte veja a fonte que o produziu. O objeto sonoro existe quando há uma “escuta cega dos efeitos e do conteúdo sonoros” (Schaeffer, 1993, p.86). A partir daqui pode-se começar a pensar em um “design” dos corpos sonoros e não mais exclusivamente no “design” dos registros dos sons, pois à medida que o ruído passou a fazer parte do novo cenário acústico, a idéia de música como uma “sucessão de alturas num espaço de tempo medido” começou a ser repensada, sobretudo quando surgiram os gravadores. Os músicos não dependiam mais exclusivamente das partituras como “memória do efêmero sonoro” (Garcia, 1998, p.44). O aqui-agora passou a ser gravado. Mozart, Bach, Beethoven e tantos outros foram transferidos das salas de concerto para nossas salas de estar. Uma orquestra ao alcance de todos, para ser ouvida em qualquer tempo. Além de registrar sons “para criar objetos novos, ou seja, novas músicas” o gravador também “é, antes de tudo, uma máquina para analisar os sons, para ‘descontextualizá-los’, para reescutar a música tradicional com um ouvido dife rente”. O gravador coloca o ouvido fora dos contextos habituais (Schaeffer, 1993, p.40). É uma nova escuta que vai se redesenhando e, consequentemente, um novo “território” de composição. O som, movente, instável, que se esvanece no ato da escuta, já que ela não é capaz de retê-lo, conserva-se, como um quadro, quando é possível voltar e “olhá-lo” novamente. Ele dura o tempo do suporte e torna-se independente do “autor” e do “espectador”.

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detalhe de “Circles

Luciano Berio

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Desde que o russo Leon Theremin inventou, nos anos 20, um instrumento inusitado que leva o seu nome (theremin)1 e mais tarde, em 1964, quando o engenheiro americano Robert Moog criou o primeiro sintetizador, que a música (ou a “idéia” de música) nunca mais foi a mesma. A partir do moog2 (Palavra, 1999. p. 24) multiplicaram-se as possibilidades de produção de materiais musicais, iniciando uma revolução sonora, especialmente com a música concreta, na França e paralelamente, nos EUA, e eletrônica na Alemanha. A música eletrônica – em cujo processo de composição o músico fabrica sons sintéticos, ou seja, sintetiza os sons (criando novos sons) e os encadeia suprime a tradição de música no papel. Não há mais notação gráfica, pois os sons não podem ser reproduzidos, por serem experimentais. Quando há partitura ela é apenas um mapa sonoro (guia), um acompanhamento visual do som para o ouvinte, chamado de audio-partitura, que tem em Ligeti um dos seus precursores. Não se pode falar, entretanto, de experimentação na música eletrônica ao contrário da música concreta. Nesta o músico é ao mesmo tempo luthier, intérprete e compositor: capta os sons (sons já existentes, ruídos), processa-os e os encadeia, buscando extrair deles as suas potencialidades musicais. Diante da variedade e complexidade do material sonoro utilizado pela música concreta, não era possível “traduzi-la” para o papel, apenas fixála em suporte físico, que só foi possível com o gravador. Ela é, portanto, concreta não apenas porque usa sons concretos, os ruídos, mas porque captura a instabilidade e efemeridade do som, tornando-o repetível. Já que não era possível a notação pela grafia em papel (partitura), a música concreta dependia unicamente do ouvido para ser apreciada e analizada (Caesar, 2002). A músi ca eletroacústica, uma espécie de meio termo entre essas duas vertentes, não sendo nem uma coisa nem outra, mas uma nova forma de se fazer música, processa sons captados e sintetizados, encadeia-os e os justapõe a sons acústicos (instrumentais). “Thema - Omaggio a Joyce”, de Luciano Berio e “Gesang des junglinge”, de Stockhausen mostram uma quebra nas fronteiras entre a música concreta e eletrônica, nos procedimentos utilizados na composição e no resultado alcançado. A música eletroacústica é resultado da revolução da informática, quando o computador passou a auxiliar a composição e tornou possíveis manipulações eletroacústicas que vão além da simples justaposição de sons. A informática ampliou o material sonoro e criou novas relações entre o compositor e o material sonoro, assim como ocorreu no design, quando novas relações entre “objeto” e usuário surgiram com o sistema interativo de comunicação.

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detalhe do manuscrito de “Imaginary Landscape #1”, para executantes de gravações de frequências eletrônicas (1 e 2), percussão (3) e piano preparado (4) John Cage 

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O sampler3, que surgiu na década de 80, ainda hoje é um dos instrumentos mais usados pela música eletrônica atual, aquela das “raves”, dos DJ’s e da cultura “club”. A música eletrônica da cultura club tem sua origem nos anos 20, com a música concreta e eletrônica, quando essas invenções possibilitaram diversas pesquisas no campo sonoro. “Imaginary Landscape #1” (1939), de John Cage, na qual transformou rádios em instrumentos, “Symphonie pour un Homme Seul” (1950), de Pierre Henry, considerada a primeira peça de música concreta e “Telemusik” (1967), de Stockhausen, na qual usou ondas de rádio como instrumentos musicais, são consideradas primordiais para o surgimento da música eletrônica atual com todas as suas vertentes (techno, house, ambi ent, big beat, drum’n’bass, trip hop etc.) (Ibidem). Depois desses mestres surgiram na década de 70 a disco music, que popularizou o som do sintetizador e a cultura dos clubs e DJ’s, e o grupo alemão Kraftwerk, que foi o primeiro supergrupo da música eletrônica (no conceito atual). Eles difundiram a idéia original da música eletrônica de que a música é muito mais importante que o artista. Com o desenvolvimento tecnológico a música eletrônica club cresceu e se diversificou em novos estilos musicais, ampliando a noção de design na música. Essa nova prática musical abre espaço para os “estrangeiros no território da música”, ou seja, os “produtores non-musicians” que, por serem não-músicos, estão livres para explorar e compor novos espaços de escuta (Fonseca, 2002). De certo modo, como diz Deleuze a respeito de Godard (CO, 1992, p.56), trata-se de “estar na própria língua como um estrangeiro, traçar para a lin guagem um espécie de linha de fuga”. Os DJ’s, numa “relação empática e sensível com o público” é capaz de “captar o estado de ânimo da pista e combinar criteriosamente as faixas, forjar grooves, criar intervenções, cortar e colar a sua non stop music” (Fonseca, 2002). Esses artifícios usados pelos “produtores techno” (“prática do time-stretching, que gerou faixas e versões prolongadas, os remixes e extended mixes”) induz o ouvinte a perceber enquanto dança “os diversos aspectos dos sons e da sonoridade, em exposição dilatada, numa escuta minimal” (Ibidem). Segundo o compositor Rodolfo Caesar (2002) “as primeiras tentativas de siste matizar aportes para a escuta de músicas feitas com as novas tecnologias vieram, coin cidentemente, do inventor da mais radical de todas as músicas, a musique concrète”. Quando Pierre Schaeffer propôs o termo “música concreta”, em 1948, fez uma distinção entre música abstrata e música concreta na qual “pretendia assinalar uma ‘inversão’ no sentido do trabalho musical” (Schaeffer, 1993). Ao invés de anotar idéias musicais para serem executadas por determinados instrumentos, conforme a tradição musical, propunha recolher sons concretos, potencialmente musicais, e extrair-lhes o que tivessem de música em estado latente. Ao

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justificar a escolha do termo “concreto” para a música que inaugurava, nota um paralelo entre pintura e música. A arte figurativa busca referências no mundo exterior, num dado visível, enquanto que a essência da arte não-figurativa conduz facilmente para a abstração (“a arte não reproduz o visível, torna visível” - Klee, 1987). Ao contrário do que se pode imaginar como conceito de concreto e abstrato na música, o que se poderia pensar como sendo abstrato é, na verdade concreto. A música seguiu caminho inverso da pintura: esta, buscou primeiramente referências no mundo exterior para aos poucos ir evoluindo para a abstração, já a música partiu da abstração de “valores musicais”, para tornar-se concreta, figurativa, quando passa a buscar no mundo “natural”, os objetos sonoros, os ruídos. Nesse contexto, Schaeffer propõe quatro modos de escuta: o ouïr, o écouter, o entendre e o compreendre. Não há limites para o “ouvir” pois o mundo está repleto de sons. “Nenhum som teme o silêncio que o extingue. E nenhum silêncio existe que não seja grávido de som.” (Cage, 1985). Ouvir é “perceber pelo ouvido”: quando um som chega aos nossos ouvidos e tomamos consciência da sua existência instintiva e indiretamente pela reflexão ou pela memória. É através da consciência que um fundo sonoro adquire realidade. O ouïr é indicial e faz referência a uma imagem (imagem da sua origem). Está ligado à percepção de fontes sonoroas, quando associamos um som à sua origem e assim distinguimos um som proveniente de um aparelho de som (uma música), do som do ar condicionado, da chuva que cai lá fora, do ônibus que passa. Entretanto, podemos ouvir um som mas não escutá-lo, ou seja, ouvi-lo sem nos aplicarmos à sua percepção. Écouter estaria ligado ao sentido de “entender melhor”, visa algo além do próprio som que se apresenta à percepção. Não faz referência, portanto, a nenhuma imagem, mas ao som em si mesmo, tornando possível distinguir um som do outro no que se refere às suas qualidades sonoras. Nesse sentido apresenta uma certa iconicidade, estando ligado à qualidade de sensação. É o modo como os músicos ouvem quando tocam um instrumento e avaliam se está afinado ou não, ou quando ouvimos nosso aparelho de som e avaliamos se o som está bom ou não o que nos leva a aumentar o volume, a reforçar os graves. O ouvido seleciona o que quer ouvir, assim como o olho. Nessa seleção privilegia alguns sons em relação a outros. Sons habituais muitas vezes se destacam do fundo sonoro e passam a ser percebidos como incômodos, mas basta surgir outro som para os substituirmos, ou seja, para nossa atenção ser redirecionada. Quando nos aplicamos à percepção de um som para entendê-lo, para conhecer sua natureza (não mais como um interpretante emocional que permanece no âmbito da qualidade de sensação, da pura emoção, mas como interpretante energético, que

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se aplica à compreensão do fenômeno, embora não tenha a mesma experiência colateral de um intepretante lógico que conhece o código), agimos como se estivéssemos olhando uma paisagem pela janela “que não deixa de existir quando paramos de olhar” (Cage, 1985), onde elementos que nos fisgam, impele-nos a destacá-los do fundo para uma avaliação mais precisa quanto à cor, textura, forma. E essa análise será ainda mais precisa quanto maior for o conhecimento a respeito do assunto (quando estivermos na posição do interpretante lógico). O entendre é, portanto, a escuta do especialista, do técnico de som aquele que escuta um som e o caracteriza com termos que ele usa apenas para designar detalhes, harmonicidade, curva espectral, granulosidade, espessura. etc., toda uma série de palavras que tem função específica a qual pode ser explicada verbalmente. O compreendre corresponde a estruturas de referências, quando ao escutar um som, o intérprete o relaciona a uma referência externa, a uma imagem que não tem nenhuma relação com o que foi ouvido, quando ouve uma música eletroacústica, por exemplo, e diz que lembra filme de terror, ou quando associa uma determinada música a um evento (“nosso último encontro”), ou quando associa a melodia com estado de espírito do compositor (“o compositor é triste porque a melodia é triste”). Tem portanto um caráter simbólico, estando ligado ao que Schaeffer denomina “escuta banal”. Esses quatro modos de escuta são agrupados da seguinte forma: o écouter (1) e o compreendre (4) estariam ligados a referências externas, ao objetivo ou “intersubjetivo”, e o ouïr (2) e o entendre (3) a experiências interiores, ao subjetivo. Numa outra posição: o entendre (3) e o compreendre (4) estariam ligados ao abstrato, onde “todo o esforço é de enxugamento e consiste em não reter do objeto senão qualidades que permitirão colocá-lo em relação com outros, ou de referenciá-lo com sistemas significativos” (Schaeffer, 1993), o écouter (1) e o ouïr (2) “ao con trário, seja em se tratando de todas as virtualidades de percepção contidas no objeto sonoro, seja de todas as referências causais no bojo do evento, a escuta volta-se para um dado concreto, como tal, inesgotável, embora particular” (Ibidem.). Assim como Peirce, que define que todo pensamento se dá em signos (não se refere, entretanto, somente aos elementos mentais mas também aos naturais), numa gradação de três a que denominou categorias (primeiridade, secundidade, terceiridade: “Analiso a experiência, que é a resultante cognitiva de nossas vidas pas sadas, e nela encontro três elementos”), mesmo que haja predominância de uma sobre as outras duas, Shaeffer afirma que, mesmo dando ênfase a um dos tipos de escuta não deixamos de percorrer o ciclo das quatro etapas: “Em toda escuta manifesta-se, portanto, o confronto entre um sujeito receptivo - dentro de certos limites - e uma realidade objetiva, de uma parte; de outra parte, valorizações abstratas, qualifi -

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4. compreendre

1. écouter

• Para mim: sinais • Diante de mim: valores (sentido - linguagem)

• Para mim: indícios • Diante de mim: acontecimentos exteriores (agente - instrumento)

1e4 Referências exteriores

• Em referência a outras • Emissão do som. noções, sonoras ou não, Reconhecimento das emergência de um sentido fontes 3. entendre

2. ouïr

• Para mim: percepções qualificadas • Diante de mim: objeto sonoro qualificado (sentido - linguagem)

• Para mim: percepções brutas, esboços do objeto • Diante de mim: objeto sonoro bruto

• Seleção de certos aspectos particulares do som. Qualificação do objeto

• Recepção do som. Identificação do objeto.

3 e 4 abstrato

1 e 2 concreto

Quadro das funções da escuta proposto por Pierre Schaeffer (Ibidem. p.102)

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2e3 Experiência interior

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cações lógicas, que se destacam em relação ao dado concreto, o qual tende a organizar-se em torno delas, sem contudo, deixar-se a elas reduzir. Cada ouvinte colocará diferentemente a ênfase sobre cada um dos quatro pólos, como resultado dessa dupla tensão, e porá em relevo somente aquele que melhor corresponde à finalidade explícita da sua escuta; aparecerão assim especialistas em cada função da escuta. Não vamos aqui cometer o erro de acreditar que algum desses especialis tas (por exemplo, o ouvinte de música) só exerça a função que corresponde ao objetivo evidente da sua atividade (no caso, a escuta voltada para o significado musical). Para empregar uma lin guagem consoante com a nossa descrição, digamos que nenhum especialista poderia de fato de eximir-se de ‘percorrer’, repetidas vezes, o ciclo completo das quatro etapas.“ (Ibidem.)

Ao definir os quatro modos de escuta, Schaeffer fez um paralelo entre as escutas que denominou como natural e cultura, e banal e prática. A escuta natural é inerente aos homens e aos animais, é a escuta “primitiva” que serve-se do som como “informativo do evento”. Os animais, que têm o ouvido mais apurado que os homens, não ouvem melhor por razões físicas, mas porque se atêm mais facilmente aos indícios do som, à sua origem, às causas do evento sonoro. Aqui encontram-se o écouter (1) e o ouïr (2) (concreto). Na escuta cul tural, menos geral que a escuta natural pois está relacionada a contextos históricos e geográficos, há um afastamento do evento sonoro (sem deixar de ouvi-lo) para reconhecer os significados do som. Ela compreende o entendre (3) e o compreendre (4) (os abstratos). A escuta prática ou especializada “escolhe deliberadamente o que ela quer entender e elucidar, na massa das coisas dadas ao ouvi do” (Schaeffer, 1993) e acaba perdendo o caráter geral que tem a escuta banal, na qual estamos sempre disponíveis aos eventos sonoros. Por não ter a mesma experiência colateral do ouvinte especializado, que lhe proporciona ouvir detalhes, nuances, qualidades, precisões do evento sonoro, a escuta banal acaba sendo superficial mas “tem o mérito de poder ser ‘aberto’ a muitas direções que a ‘especialização’ a seguir lhe impediria” (Ibidem.). É a “experiência colateral” do ouvinte, bem como sua atividade perceptiva (do sensorial ao mental), que o torna “especialista” em tal ou tal escuta, e faz com que cada qual ouça um mesmo som de maneira diferente como no exemplo citado por Schaeffer em “Tratado dos Objetos Musicais”: “Tomemos um acústico, um músico e um índio do Velho Oeste. O mesmo galope de cavalo será entendido por eles de maneiras bem diferentes. O acústico terá imediatamente uma idéia da cons tituição do sinal físico (faixa de frequência, diminuição devida à transmissão etc.); o músico se voltará espontaneamente para os grupos rítmicos; o pele-vermelha pressentirá o perigo de uma aproximação hostil, mais ou menos numerosa ou distante.” (Ibidem.)

Após o advento da música eletrônica e da música concreta anotar som passou a ser uma arte necessária, pois os compositores precisaram inventar uma

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nova partitura para lidar com um novo instrumento: o gravador. A partir daí surgiram inúmeras e imprevisíveis maneiras de anotar o som. “O que se escrevia eram modos de tocar instrumento e modos de relacionar notas e sonoridades” (Ferraz. comunicação pessoal. 2002). Dentro desta multiplicidade de “representações” dos materiais musicais introduzida pela música experimental do século XX, as notas deram lugar a desenhos que tecem visualmente o som tornando possível afirmar que “escutamos” desenhos quando ouvimos uma música e “vemos” sons numa peça visual, pois o que define a escuta musical não são as questões sonoras mas o próprio ato da escuta que não implica necessariamente na presença do som (Ferraz, 1999). Embora a música esteja no âmbito da primeiridade, da pura qualidade de sensação, não podemos excluir sua capacidade de evocar imagens (imagens mentais), mesmo sendo as imagens próprias da secundidade. Deste modo, seria óbvio pensarmos uma aproximação da música com o design sob o ponto de vista exclusivo da “representação”, das partituras, mesmo sendo elas, partituras não-convencionais. É possível pensar essa relação para além da “figuração”, pensar a música como design, design dos corpos sonoros, que nasce da escuta das propriedades e potencialidades do som.

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“Walden Variations”

William Duckworth

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I ma g em co mo obj et o v is ua l

iante da descrição dos modos de escuta propostos por Pierre Schaeffer, observa-se que a relação com uma imagem (notação) se dá preferencialmente no nível do compreendre (4) mas a escrita aparece também no nível do entendre (3) para descrever o som. Esta idéia de descrever o som só surgiu no século XX e tem John Cage como um dos seus pilares. Cage foi aluno de Henry Cowell e Arnold Schoenberg, quem muitas vezes o recriminou pelo seu descaso com a harmonia dizendo-lhe que isso era o mesmo que defrontarse com o muro ao que ele respondia: “nesse caso devotarei minha vida a bater a cabeça nesse muro” (Cage, 1985). O pensamento de Russolo sobre “a arte dos ruídos” de certa forma encontra eco em Cage, que desde cedo interessou-se pelos sons indeterminados o que o estimulou a pesquisar sobre silêncio e ruído. Uma de suas peças mais famosas, 4’33” (1952), mostra o resultado dessas pesquisas. O intérprete entra no palco, faz o gesto de quem vai tocar e fica 4’33” em silêncio. O ruído do público e do ambiente vira música que demonstra que o silêncio não existe, ou seja, ele só existe em função do som.

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Essa peça reflete a sua definição de música: “música é sons, sons à nossa volta quer estejamos dentro ou fora das salas de concerto” (Schafer, 1991, p.120). Tal como previu Russolo em relação à música do futuro, a nova paisagem sonora passou a fazer parte do universo da música. Há uma desterritorialização da escuta, da música e da paisagem sonora que coloca música na paisagem e paisagem na música. A música sai do seu território o que implica em ser submetida aos padrões da paisagem sonora, e a escuta da paisagem sonora como música implica em ser submetida às regras da escuta musical (Santos, 2002). Entretanto, mesmo que não queiramos ouvir, “a música é sempre espaço de escu tas possíveis”. E se não há intenção, se o ouvinte não quiser, a música - seja na paisagem sonora, ou na tradição musical - não comunica (Ferraz, 1999). Da mesma forma que há uma desterritorialização da música, e consequentemente da escuta, nós, que transitamos de lá pra cá no zigue-zague caótico das cidades, também nos desterritorializamos. Perdemos nossos pontos fixos e transitamos através de linhas de força que nos puxam e nos deslocam a todo momento, o ouvido perde a referência, pois nada é previsível. Com a música experimental do século XX, os sons do ambiente não são mais vistos como intrusos. Assim como na pintura, escultura e arquitetura, que empregam materiais transparentes, o ambiente mutável, instável, passa a fazer

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partitura auditiva de “Artikulation”

Györgi Ligeti

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parte da obra, os sons do ambiente também não são mais vistos como interruptores de uma obra musical, ao contrário, passam a fazer parte dela. Assim, cada execução de uma peça musical, é única e imprevisível, pela imprevisibilidade dos ruídos que nos rodeiam. E cada peça musical é também única e imprevisível, pela imprevisibilidade do intérprete. Este torna-se um co-autor da obra através do uso de processos indeterminados em composições como Music of Changes e Williams Mix, de John Cage. Observa-se essa tendência a uma “abertura para o mundo” na obra de Erik Satie, que exerceu grande influência no pensamento de Cage, com a chamada musique d’ameublement (música-mobília), “uma música que pretende integrar-se ao ambiente como um cenário, sem chamar a atenção sobre si mesma” (Terra, 2001, p. 100). Como Satie, o propósito de Cage era criar uma música que não excluísse os ruídos do ambiente, que possibilitasse um “ouvir-através de uma peça de música assim como podemos ver através de alguns prédios modernos ou ver através de uma escultura de tubos de Richard Lippold ou dos vidros de Marcel Duchamp” (Cage, 1985, p. 102). Cage pensava a música como sons, como eventos puramente musicais, livres de associações a convenções, a regras, ao tempo medido. Além de possibilitar uma desterritorialização da escuta através de composições onde o acaso e o ruído são dominantes, suas partituras são peças gráficas com desenhos que tecem visualmente o som, que em certos momentos não têm mais relação com a partitura, surgindo daí uma nova concepção de música: o design na música. Cage previu que enquanto a música contemporânea continuar mudando, os sons serão libertados das idéias abstratas sobre eles e passarão a ser “fisicamente, singularmente eles mesmos” (Cage, 1985), ou seja, conheceremos mais e mais não o que pensamos que seja um som, mas o que ele realmente é em todos os seus detalhes acústicos, e então, deixaremos esse som existir, ele próprio, mutável, num ambiente sonoro mutável. Como o próprio Cage nos diz a respeito de Christian Wolff: “as janelas de sua música estão abertas”, e é assim que se deve proceder com a música hoje, deixar as “janelas abertas” (“deixar o signo falar”) para que esses sons mutáveis, em ambientes mutáveis, interfiram na música, gerando novas e imprevisíveis possibilidades de sons. Para isso, Cage nos propõe o exercício profundo de “ouvir inesperadamente, da mesma forma que quando estamos resfriados, tudo o que fazemos é inesperadamente espirrar,” antes que o pensamento transforme os sons em algo lógico, abstrato ou simbólico (Ibidem).

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partitura de “Polytope”

Iannis Xenakis

detalhe de solo para piano de “Concerto para piano e Orquestra”

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John Cage

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A busca de uma aproximação entre a vida e a arte, defendida por Cage, o conduziu a recusar “a estrutura como meio de organização de sons” (Terra, 2001, p. 101) e através de operações de acaso, baseadas no I Ching (Livro das Mutações) criou composições e execuções indeterminadas. O intérprete, partindo de sua conscientização, foi libertado das regras e muitas vezes a música libertou-se também da presença do intérprete, fazendo uso de instrumentos (gravadores de som, amplificadores, microfones, alto-falantes etc.) que não determinam a natureza do que foi feito. De um lado temos John Cage e suas pesquisas no campo do silêncio e ruído, “sua preocupação com a mobilidade que o conduz a uma nova concepção de tempo musical” (Ibidem), e a sua noção de mutação (adquirida através do I Ching), que deriva de uma atitude diante do mundo que enfatiza os processos em lugar dos conteúdos da experiência (Ibidem). Num outro pólo encontramos a figura do compositor e arquiteto Iannis Xenakis, o chamado “arquiteto da música” que usou a matemática como base de suas composições. Uma das mais célebres figuras contemporâneas não só por ter sido arquiteto do espaço construído, colaborando por 12 anos com Le Corbusier, em Paris - durante suas primeiras experiências como compositor de um novo gênero musical - mas sobretudo pela tendência a apropriar-se de um estilo demiúrgico, através das suas filosóficas especulações, seu conceito de simetria, sua idéia de massa e do espaço-tempo. Quando colaborou com Le Corbusier como arquiteto em Paris, começou a desenvolver princípios da arquitetura na composição musical. Um exemplo disso é a sua primeira obra “Metastasis” (1955), considerada a mais importante, na qual estabelece o conceito de composição sonora a partir de massas sonoras ultracalculadas. Na partitura desta peça, Xenakis transpôs a imagem de um projeto gráfico arquitetônico (projeto do Pavillon Philips, construído para a Feira Mundial de Bruxelas, em 1958) para a imagem da partitura (não concebeu uma “imagem de som”, mas uma “imagem de partitura”). Esta obra faz uma analogia entre o efeito dos glissandos dos instrumentos de corda e a estrutura arquitetônica. Algumas das suas partituras são tão complexas que é quase impossível decifrá-las, como a partitura de “Polytope” (1967), o que faz delas um elemento à parte da música. Xenakis usou princípios matemáticos para gerar notas a partir da relatividade de Einstein, inventou um espaço-tempo homogêneo no qual o tempo não se distingue da altura. (Revista Submarino, 2001). Foi também um dos precursores no uso do computador como ferramenta de composição. Os computadores eram usados como auxiliares nos cálculos de suas composições de

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Hexagramas do “I Ching”

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“música estocástica, na qual a forma musical se torna análoga a um processo estocás tico, ou seja, governado pelas leis da probabilidade, como numa sequência de lances de dado.” (Griffiths, 1987, p.156). Em comum essas duas figuras anticonvencionais têm, além do acaso, a busca por uma música livre da tradição musical européia, por um processo de composição único, que define caminhos nunca antes permeados, que resultam em verdadeiras obras de arte, onde imagem e som são de tal forma inter-relacionados que quase não se distingue onde um começa e o outro termina. Ao contrário do que se pode pensar, o fato de Xenakis ter utilizado o computador como auxiliar nos cálculos das suas composições musicais não o fez fugir do acaso, pois “o acaso tem leis, conforme a teoria das probabilidades já provou” (Santealle, 2001, p.123). Além disso, o computador segue regras próprias programadas de antemão, o que torna suas composições prováveis, embora incertas. O acaso, tanto em Xenakis, quanto em Cage, surge como força que os arrasta, mas quando torna-se gesto, ou quando o gesto se repete (como no caso do pintor Pollock, por exemplo) passa a ser representação, “clichê”. Como diz Pierre Boulez (1992, p.119): “o gesto, quando é repetido, leva rapida mente à gesticulação”. O acaso na música de Cage e Xenakis é sensação somente num primeiro momento de encantamento (e estranhamento) que ele provoca, depois torna-se probabilidade, “fetiche do gesto”. O que não diminui a importância da obra desses dois “cientistas” da música. Saindo do plano exclusivamente visual da música, ou seja, da música anotada sobre o papel, temos na música acusmática, “gênero específico da música eletroacús tica” (Garcia, 1998, p.40), uma peça talvez fundamental para traçarmos essa relação música-design. A música acusmática, segundo o compositor François Bayle, discípulo de Pierre Schaeffer, nos instiga, de certa maneira, a questionar se os elementos que realizam em geral o sonoro em musical (acentos, influências, relações, correlações, polifonias, policromias, poliritmias) têm a ver com a emergência formal de um sentido (Bayle, 1993). Bayle fez parte do grupo de discípulos de Schaeffer que participou na produção do “Tratado dos Objetos Musicais” mas levou mais adiante o que se propunha ali. Schaeffer buscou em Husserl o conceito de objeto para definir seu conceito de objeto sonoro. Em Husserl a percepção do objeto está relacionada às vivências individuais mas as transcende na identidade (transcendência do objeto), ou seja, essa percepção não é consequência de uma experiência particular, ela pode ser generalizada. A percepção fenomenológica do fenômeno sonoro analisa o fenômeno quando nos aparece à mente (consciência) e não a priori,

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numa visão preconcebida, ela não prioriza a fonte sonora, concentra-se nas qualidades do fenômeno percebido, no “signo” em relação a si mesmo. Schaeffer propôs o que denominou “escuta reduzida”: “descondicionamento dos hábitos da escuta que visam geralmente à percepção de algo que está além do som” (Garcia, 1998, p.29). Buscava uma unidade para o objeto como a unidade das notas musicias, “complexa e delimitável apenas na intencionalidade da percepção” (Ibidem.). Essa unidade que Schaeffer buscava poderia tanto ser uma unidade autônoma em um conjunto sonoro quanto o próprio conjunto. Segundo Garcia “todo objeto é uma estrutura que vai estar contida em uma estrutura maior que pode também ser identificada como um objeto”, pois o que define o objeto é a intenção da escuta (Ibidem. p.30). Mais do que denifir um conceito de objeto sonoro Schaeffer criou uma poética do sonoro, um guia para os compositores de música experimental. Entretanto, para os compositores das gerações seguintes “todo objeto sonoro é potencialmente um objeto musical” não havendo distinção entre objetos convenientes e não convenientes à música (Ibidem. p.32). Dentre algumas críticas à obra de Schaeffer (que não entraremos em detalhe) Bayle ressalta que um dos méritos de sua obra foi ter usado a fenomenologia para falar de fenômeno sonoro, ter-se libertado dos condicionamentos da linguagem musical para criar uma nova poética musical. Nesse sentido, Bayle, através das ciências cognitivas e da semiótica peirceana repensou o conceito de objeto sonoro de Schaeffer atribuindo-lhe a denominação de imagem-de-som ou i-som e, consequentemente, ampliou seu significado. “A prática acusmática nasceu do recurso da gravação sobre o rolo, disco ou fita para facilitar, reaproximar no tempo e no espaço, defasar o ato musical.” (Bayle, 1993). Depois de um longo período em que o código musical determinou e muitas vezes limitou a criação musical, com o surgimento de diversas formas de se anotar um som o design das partituras passou a influenciar as composições. “A música acusmática constrói seu código a partir da percepção sonora pura e o repertório de imagens sonoras mentais são o seu material básico” (Garcia, 1998, p.44). Ela conta com as imagens mentais auditivas suscitadas na mente do sujeito ouvinte (ou observador) e do próprio compositor, além do som original (objeto), mediados por técnicas e tecnologias que permitem fixar sobre suporte sensível, descontinuidades energéticas, imprimir a forma e seu contorno. A imagem audível se adapta à representação do aspecto variado do ambiente com a colaboração psicológica do observador, mas “o desvelamento da imagem acústica não corresponde a um quadro de dimensões de índices visíveis” (Bayle, 1993). Ela permite perceber a dimensão do espaço acústico através do ouvido, mas todos os sentidos se aguçam à percepção do “espaço do olho que escuta”.

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Com as novas tecnologias ou “tecnologias da inteligência” surgidas na chamada “revolução tecnológica” que para o filósofo Philippe Quéau “não é uma simples revolução técnica, mas algo de muito mais profundo, comparável ao que foi o apare cimento do alfabeto” (Philipe Quéau, in Morin, 2001, p. 462), as relações entre imagem e som tornaram-se cada vez mais tênues. Os “objetos” tanto no design quanto na música adquiriram vida própria por meio da interatividade que desloca o usuário da posição passiva, de mero observador, para inseri-lo na obra, a fim de (inter)reagir com ela, que se torna sensível e vulnerável aos seus comandos. Para Garcia, “essa relação primeira sempre esteve próxima à questão do suporte. A partitura é uma interface visual, uma tradução do sonoro, cujas leis da visualidade influenciaram historicamente o pensamento musical” (Garcia, 1998). Tanto músicos quanto artistas visuais se valeram dessa relação som-imagem em seus trabalhos operando traduções ou inspirando-se nos procedimentos da linguagem em questão para obter como resultado uma nova poética de relação, na qual o gesto do artista é tão importante quanto a obra em si (gesto e obra se “confundem”). Essas “representações” do sonoro no entanto, nem sempre se concretizam num suporte físico, como nos mostra Bayle, permanecendo como “imagens metais” que se efetivam na música através da percepção do “espaço geográfico acústico”, independente do espaço visual (paupável). “A semiótica parte do pressuposto de que representações cognitivas são sig nos e operações mentais ocorrem na forma de processos sígnicos” (Santaella et. Nörth, 2001, p.26). Nesse sentido, torna-se necessária uma investigação cada vez mais profunda (e infinita) sobre a natureza e os processos desses signos, que por sua ação inerente de “proliferar” continuarão crescendo e encontrando seus destinatários, que produzirão novos signos-interpretantes, que por sua vez conduzirão a uma corrente sem fim de posturas (coincidentes ou não) sobre um mesmo signo: a relação som-imagem.

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s relações entre a música e o design não se resumem à simples apresentação visual das partituras ou sobreposições de sons e imagens em vídeos ou sites interativos. As partituras, interfaces visuais que influenciaram durante muito tempo o pensamento musical, como vimos são uma forma de registro dos sons, uma parte da música que nunca se completa. Elas não são, entretanto, meras representações, mas intervenções visuais no mundo dos sons e ruídos. O design tem um conceito amplo que perpassa outros conceitos como a arquitetura. A palavra design significa entre outras coisas “projeto arquitetônico” e nem sempre quando se fala em design refere-se ao design da Bauhaus. A Bauhaus marcou o design como a primeira escola a introduzir a questão da tecnologia como problema, mas subordinou a tecnologia a um uso racional. Trata-se de uma escola formalista, que estabeleceu uma espécie de “cartilha” sobre o plano de formação de designers e arquitetos (Cf. Gropius, 1972, p.93-96). Alguns artistas que ensinaram na Bauhaus, como Paul Klee e Oskar Schlemmer, “quebraram” de certa maneira o formalismo do método de ensino estabelecido por Walter Gropius, seguindo regras não acadêmicas e introduzindo um “pensamento musical” no design. Em sua obra, Klee “tornou visíveis” o movimento e o ritmo na tela quando introdu ziu o tempo na pintura mas trata-se de um tempo fixo a princípio (quando se trata do suporte e não do processo pictural), no qual exerce a força do espaço. No Ballet Triádico, de Schlemmer, o movimento se representa na dança das formas mas, embora tenha-se proposto um teatro da abstração, é representativo e estrutural: o ponto é um ponto, uma extremidade da linha, a linha é uma linha, uma extensão do ponto, não há dobras entre eles, a não ser pela espiral, momento de “suspensão” da peça. A apresentação sobre o design na Bauhaus serve-nos aqui como guia e contraponto entre o design formal e o design que chamamos de virtual. Há pelo menos duas tendências no design: uma delas pensa o design como um crescente processo de formalização onde os meios de comunicação, os mo delos computacionais, servem para criar formas ou processos mais orgânicos. Outra tendência é a de um design diagramático onde o conceito é mais importante que o acúmulo visual. Nesse sentido o design tende a integrar esse processo numa aparição visual que tende a trabalhar mais pela integração dos elementos do que pelas suas tensões, contrastes, rupturas, contradições. Ou seja, uma das tendências é a do design entendido como o procedimento da Bauhaus que se reflete nos dias de hoje no design industrial, a outra é a noção de design enquanto projeto, esquema, diagrama que nada tem a ver com design ou desenho industrial: trata-se de um design que lança questões sobre como apresentar hoje processos complexos, moventes, indeterminados, informais.

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Diagrama de Foucault

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O design do qual tratamos aqui e que buscamos relacionar com a música é um design ativo, um design que escuta e que também toca pois todo diagrama é uma operação e toda escuta é ativa, é movimento. Um design virtual e dia gramático, potencialmente possível de atualizações, que provoca sensações que subsistem entre o abstrato e o funcional, sensações “que transbordam qual quer ação possível ou nos deixam sem reação” (CO, 1992, p.68). Quando ele se esgota não temos design mas imitação, clichê, ou mera reprodução, porque é previsível. Diagrama é o nome dado por Foucault a uma nova dimensão informal da sociedade de disciplina moderna (FO, 1998, p.59), e diz respeito a “matérias não-formadas, não-organizadas, e funções não-formalizadas, não-finalizadas” (Ibidem, p.58). Ele é um mapa, mapa dos relacionamentos de forças, da densidade e intensidade, uma cartografia que se define por funções e matérias informais, ou seja, o diagrama não faz distinção de forma “entre um conteúdo e uma expressão, entre uma formação discursiva e uma formação não-discursiva” (Ibidem). No diagrama o que interessa não é a forma, já que ele não é estrutural, mas as relações de forças, relações estratégicas, multipontuais e difusas, que passam por todos os pontos ou “antes por toda e qualquer relação entre um ponto e outro” (Ibidem, p.61), que o definem como móvel e não-localizável, aquilo que está entre a causa e o efeito, a ação e a reação, o que afeta e é afetado. Segundo Deleuze “todo diagrama é uma multiplicidade espaço-temporal” (Ibidem, p.59), e se diferencia da estrutura “na medida em que as alianças tecem uma rede flexível e transversal, perpendicular à estrutura vertical, definem uma práti ca, um procedimento ou uma estratégia distintos de qualquer combinatória, e formam um sistema físico instável, em perpétuo desequilíbrio, em lugar de um ciclo de troca fechado” (Ibidem, p.60). Ele age como uma causa imanente, causa dos agenciamentos concretos, uma causa que atualiza seu efeito ou que se deixa atualizar pelo efeito que a diferencia. “Se os efeitos atualizam é porque os relacionamentos de forças ou de poder não são senão virtu ais, potenciais, instáveis, evanescentes, moleculares, e somente definem possibilidades, probabili dades de interação, na medida em que eles não entram num conjunto macroscópio capaz de dar uma forma à sua matéria fluida e à sua formação difusa” (Ibidem, p.62)

Os diagramas surgem para quebrar os dados figurativos e probabilísticos. São marcas livres, ao acaso, traços involuntários, irracionais, não representativos, não ilustrativos, não narrativos. “Mas não são significativos nem significantes de antemão: são traços assignificantes. São traços de sensação, mas de sensações confusas (as sensações confusas que trazemos ao nascer, dizia Cézanne)” (FB, 1981). Essas

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marcas quase cegas e mudas, embora nos façam ver e falar (FO, 1998, p.58), adquirem vida própria e passam a não mais depender da nossa vontade, nem da nossa visão. Introduzem um outro mundo dentro do mundo da figuração e retiram o “quadro” da organização ótica que o tornava figurativo de antemão (FB, 1981). Muitas vezes, contudo, com o intuito de fugir do figurativo, da representação, o diagrama é tão sobrecarregado que torna-se inope rante, o que o faz permanecer no figurativo (Ibidem). A função do diagrama é “sugerir” e introduzir “possibilidades de fato” (Ibidem). O design como expressão diagramática é movente, instável, mutante, difuso, não reproduz modelos preexistentes mas os inventa ou reinventa, desfaz conceitos existentes e faz emergir novos conceitos, conceitos inesperados que surgem do improvável dentro de um campo de possibilidades, ou introduz possibilidades de fato. Pois segundo Deleuze: “(...) o diagrama é profundamente instável ou fluente, misturando incessantemente matérias e funções de maneira a constituir mutações. (...) Ele não funciona nunca para representar um mundo preexistente, produz um novo tipo de realidade, um novo modelo de verdade.” (FO, 1998, p.59)

O design, portanto, não tem forma, nem lugar fixo, assim como a música. Se ele não precisa de um lugar fixo e demarcável pra existir, não deixa de ser uma verdade dizer que ele é como o “céu”, um espaço sem fronteiras, sem contornos, sem medidas, onde o que existe são formas fluidas e moventes (como as nuvens), “corpos sem superfícies” (Brissac, in Parente, 1993, p.250). O fato de o design ter adquirido uma característica de diagrama, difuso e não localizável, quando muitas vezes não se pode “vê-lo” (ver com os olhos), não significa que ele tenha deixado de existir, ao contrário, ele coloca em ação os outros sentidos e se desterritorializa em territórios “alheios”, assumindo nova natureza, uma natureza sonora e por vezes tátil, que não se vê exclusivamente com os olhos, mas com os ouvidos. O design passou a uma outra ordem não mais do “quanto mais próximo mais longe” mas do “tão longe tão perto”. A pro ximidade é de uma outra natureza. Como diz Deleuze (CO, 1992, p.58): “perceber é subtrair da imagem o que não nos interessa”. Somos bombardeados o tempo todo por imagens e sons que vêm de todos os pontos, mas muitos desses sons e dessas imagens nos passam despercebidos. Estamos o tempo todo filtrando essas informações visuais e sonoras que nos vêm de diversos pontos do “espaço”, o que faz com que “sem pre haja menos na nossa percepção” (Ibidem). Quando o design passa da pura

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David Carson

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imagem para o sonoro-visual, o que foi possível graças à tecnologia, que possibilitou inter-relações entre som e imagem e ampliou as possibilidades criativas, ele devolve à imagem a sua capacidade plena de comunicar, faz com que percebamos tudo o que ela tem, e não percebamos menos, faz com que a percepção seja igual à imagem (Ibidem). A passagem da pura imagem (fixo, sedentário) para o sonoro-visual (movente, nômade) no design marca sua aproximação com a música. Quando os design ers passam a se utilizar da tecnologia como ambiente de criação, a navegar num espaço liso, como nômades onde os vetores os levam para todos os lugares ou pra lugar nenhum, há uma “convergência dos sentidos” (Santaella, 2001, p.213), quando se perde a distinção entre original e cópia. Não importa mais quem veio antes mas a potencialidade do signo que, sendo nômade, “ao tecer, ajusta a vestimenta e a própria casa ao espaço exterior, ao espaço liso aberto onde o corpo se move” (MP v.5, 1997, p.181). O espaço liso, no qual “os pontos estão subordinados ao trajeto” (MP v.5, 1997, p.184), o que lhe confere uma ca racterística nômade, é o espaço das relações entre a música e o design. O espaço estriado, ao contrário, é fixo pois “as linhas, os trajetos têm tendência a ficar subordinados aos pontos: vai-se de um ponto a outro” (Ibidem), o que não significa que o espaço liso esteja relacionado única e exclusivamente ao movimento, pois ele existe também num suporte fixo (basta olhar os quadros de Francis Bacon). Segundo Deleuze: “O espaço liso é ocupado por acontecimentos e hecceidades, muito mais do que por coisas for madas e percebidas (...). Enquanto no espaço estriado as formas organizam uma matéria, no liso materiais assinalam forças ou lhes servem de sintomas. É um espaço intensivo, mais do que extensivo, de distâncias e não de medidas.” (Ibidem, p.185).

O design deixa de representar uma marca, um produto para se apresentar enquanto qualidade que subsiste entre o real e o imaginário, o visível e o invisível, o sonoro e o não-sonoro, sem passado nem presente mas entre um e outro. Passa a ser uma potência de produção e não mais reprodução. Nesse sentido, o “reencontro” [ver “image de som”], próprio da música, é possível também no design, pois o retorno se dá sempre de forma diferente, e se podemos falar de “reencontro” no design, é possível também falar de um design sonoro. As questões sonoras no design não implicam necessariamente na presença do som. Alguns designers, como o americano David Carson, cujo trabalho apresenta íntima relação com o pensamento de John Cage, dialogam com questões sonoras no design. A frase “a intuição é instrumento da invenção”

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resume o trabalho de Carson (surfista e sociólogo de formação), um dos mais revolucionários designers gráficos dos últimos tempos. Revolucionou o design gráfico nos anos 90 criando um estilo “não-canônico”, anticonvencional, “ruidoso” e aparentemente caótico, e encontrou adeptos (nem sempre bem sucedidos) em todo o mundo entre os jovens designers ansiosos por romper com a tradição e por inventar uma nova estética. Considerado “mestre da tipografia” e “rei da comunicação” seu trabalho comunica em um nível que desvia a lógica e a razão, e vai direto onde é possível entender sem pensar. Nesse sentido seu trabalho mostra-se como a música ou o pensamento de Cage, movendo-se para além das fronteiras antes que o pensamento tenha a chance de transformá-lo em algo lógico. Ao romper fronteiras ele continuamente reinventa a relação entre design e tipografia e tem mudado e influenciado subs tancialmente o design gráfico desde os anos 90. Sua carreira começou no fim dos anos 70, “seu estilo era uma releitura do caótico trazido pelo movimento Merz, que teve como expoentes construtivistas Schwitters e Lissitsky” (Design Gráfico, 2002). Nessa época a plataforma Macintosh se afirmava como a ferramenta ideal para o design, e surgia o postscript, que acabou com as limitações dos bitmaps e formas digitais. O estilo grunge que se afirmava como forma de expressão musical também acabou influenciando seu trabalho (Ibidem). O projeto gráfico desenvolvido para a revista “Beach Culture”, que recebeu mais de 150 prêmios de design gráfico no mundo inteiro, é considerado seu ápice criativo. A partir do sucesso obtido com esse trabalho Carson passou a pri vilegiar a liberdade e a intuição no design o que consolidou seu estilo aleatório de cortar palavras, romper com a linearidade da leitura, privilegiar a imagem e fazer do texto imagem, de introduzir o ruído no texto e na imagem, fazer sobreposições e fusões de textos e imagens. Sua “filosofia” encontra eco no pensamento de Cage, pois para ele é necessário abrir os olhos e esperar pela surpresa do inesperado ou do não-planejado o que produz resultados muito melhores do que os esperados: “Não se inspire olhando catálogos ou anuários, olhe à sua volta, veja ao seu redor, prepare-se para a surpresa”. Carson não subordina a tecnologia à razão que controla, para ele não há hierarquização entre razão, emoção, tecnologia, qualquer coisa pode detonar o insight ou ser o agente condutor do design, o que não determina que ele será mais ou menos funcional. O trabalho de Carson é intuitivo e contribui com uma concepção de design não mais guiada pela razão como o design na Bauhaus mas pela intuição. Sendo livre, deixa-se guiar pelo acaso, e o resultado são traços involuntários, diagramáticos e moventes, que se diversificam a cada página, a cada olhar.

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“A razão mais importante para se ir de um lugar a outro é ver o que existe entre eles.” (Juster, 2001, p. 120). O que existe entre a música e o design é o que chamamos soundesign. O soundesign não é música nem design, nem som, nem imagem, mas um entre os dois. Ele está na fronteira ou é a própria fronteira entre a música e o design, entre som e imagem, uma fronteira onde o contorno é imperceptível. Ele é o E que os separa, “que os arrasta um e outro numa evolução não paralela, numa fuga ou num fluxo em que já não se sabe quem corre atrás de quem, nem para qual destino” (CO, 1992, p.61). É nesse entre que se dão as relações entre a música e o design, onde é possível buscar traços de um no outro e as forças que ecoam entre si. O soundesign não é uma simples sobreposição e/ou sincronização de imagens e sons, ele existe independentemente da existência (física) ou não de uma imagem, pois pressupõe a memória visual sem a qual não haveria o ato de olhar. A mera sincronia entre som e imagem, onde um representa o outro não é outra coisa senão clichê no qual imagens e sons sem contexto e sem referência, a não ser a própria referência, podem até causar um certo encantamento, mas se esgotam num primeiro “olhar”1 [Katia Maciel (In Parente, 1993, p.254) define clichês como não-imagem, fragmentos de imagens sem contexto, que não possuem outra referência senão a própria imagem]. O soundesign surge de um processo não-estrutural que “borra” o estrutural em falsos sinais de “narrativa”, e de certo modo pressupõe intenção mesmo que por vezes seja guiado pelas leis do acaso. Ele escapa do clichê quando as imagens se fazem representar por sons e “os sons tomam o poder sobre uma série de imagens” (CO, 1992, p. 56) como estrangeiros dentro da própria língua, não como “nativos” que reproduzem simulacros de sons e imagens em sincronia. Nesse sentido podemos falar de soundesign como um novo conceito de design, um conceito ampliado, que se faz nos interstícios entre a música e o design. Alguns sites interativos operam com esse “conceito” de soundesign como o “Pianographique” (http://www.pianographique.com), “LeCielEstBleu” (http://www.lecielestbleu.com) e “Femur” (http://www.femur.com.br) nos quais é possível perceber essa relação entre som e imagem não como jogo de representação mas como jogo de sensação. Embora a matéria-prima (os algorítmos) seja sempre a mesma, ou seja, embora haja uma lógica programada por trás das mídias digitais, é possível ultrapassar essas fronteiras e subverter a lógica estabelecida pelo programa, fazendo com que a repetição, inevitável já que é programada de antemão, ocorra mas de um modo diferente. São três

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exemplos que se assemelham quanto à programação mas em muito se dife rem quanto ao efeito que provocam em cada usuário particular. No “Pianographique” e no “Femur” a lógica é a mesma: cada letra do teclado está associada a um som e a uma imagem ou movie específico, que surge na tela quando o usuário literalmente começa a tocar. Ele não somente interage com a obra como também torna-se um co-autor (ou compositor) dela. Essa idéia reflete a postura de Cage quanto à liberdade do intérprete que muitas vezes tornou-se co-autor de suas peças. No “Pianographique” os resultados são tão imprevisíveis que, mesmo que o usuário memorize a sequência das imagens associadas ao teclado, o som passa a envolvê-lo de tal forma que ele abstrai a lógica e deixa-se levar pelo acaso. O som toma então o poder sobre as imagens (há uma soberania do som), que surgem na tela como efeito não como causa. O que guia o processo é o som, o resultado visual é consequência. Esse site reúne vários estilos musicais como jazz, rap, techno, world music, rock, além de experiências com a voz. Todas as combinações são possíveis resultando em “colagens” audiovisuais que compõem e recompõem o trabalho indefinidamente. No “Femur” (seção “Entre”) de certo modo ocorre o inverso, a lógica é bem mais simples e previsível o que torna fácil a memorização das sequências. Isso faz com que muitas vezes o usuário se perca na “construção” das imagens através do teclado e o som acaba ficando em segundo plano, como fundo sonoro. Nesse caso, são as imagens que envolvem o usuário e influenciam o seu toque, o som é o efeito.

O resultado plástico são desenhos “abstratos” que remetem a “partituras auditivas”. Enquanto no “Pianographique” o usuário deixa-se guiar pelo som, no “Femur” são as imagens que o conduzem. Ambos colocam em ação todos os sentidos, como diz Santaella: “dá-se, assim, uma convergência dos sentidos, na qual o sonoro, o visual, o tátil, o muscular se fundem em uma introvisão global aquém das distinções perceptivas.” (Santaella, 2001, p.213). Parafraseando o texto na home do “Pianographique”: “se você pode mover mais que um dedo está no lugar certo”.

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“LeCielEstBleu” reúne uma série de animações que se distinguem das animações desses dois sites citados pelo modo de operação. Nesse caso, as imagens estão subordinadas ao movimento do mouse que vai determinar sons e movimentos diferentes na tela. Na animação “Big Bang”, que faz uma alusão à expansão do universo, o usuário assume o papel de “maestro” conduzindo a “orquestra” com o mouse. De acordo com o movimento do mouse os quadros branco e preto se expandem ou se retraem em movimentos aleatórios um em relação ao outro, ao mesmo tempo em que o som vai aumentando ou diminuindo conforme os movimentos se tornem mais ou menos intensos. Já a animação “Cellos” é um ballet “digital” onde os bailarinos são delicados desenhos a traço, que realizam movimentos suaves na tela quando são tocados pelo mouse (que também é um movie de um “bailarino”). Como nos demais, há toda uma programação por trás, mas por mais previsível que seja, a suavidade dos movimentos e o som do cello (cada “bailarino” está lincado a uma sequência melódica) acabam por envolver o usuário, que novamente abstrai a lógica e deixa-se guiar pelo movimento e pela música. Aqui também ele se torna um “maestro”, um “compositor” e de certo modo um “coreógrafo”, pois conforme o mouse, e consequentemente o “bailarino principal”, toca os demais muda-se a sequência de passos e a distribuição dos “bailarinos” no “palco”. Tomando emprestado o que Deleuze fala sobre Godard (CO, 1992, p.68), o design da era virtual, assim como o cinema moderno, rompe de certa forma com o que Deleuze chama de “ligação sensório-motora” e estabelece uma situação “óptica e sonora pura”, quando não somente a ação e a “narração” desmoronam mas as percepções e as afecções mudam de natureza. Segundo Deleuze quando a percepção se torna puramente óptica e sonora “a imagem atual, cortada de seu prolongamento motor, entra em relação com uma imagem virtu al, imagem mental ou espelho” (Ibidem, p.69). Nesse sentido, o entre a música e o design, o soundesign, que está relacionado a processos, ao espaço liso, não demarcável, não estriado, entre o formado e o não-formado, implica que a música mesma já está entre o som musical e o não-musical. O entre já está dentro da música, não só entre a música e o design, entre a música e outra coisa, entre o que se entende por música e por não-música, mas a própria música já é entre, está no que escapa, no que escorre, no que é fluido, no que conecta com outras coisas. O soundesign não está somente na fronteira entre a música e o design mas na fronteira da música e na fronteira do design, em tudo o que escapa ao formalizado, ao programa, ao repetitivo. Está no limite da forma, do processual, no que se transforma, nos espaços de articulação dentro da própria música e nos espaços de relações do design. A peça “Thema – Omaggio

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a Joyce”, de Luciano Berio, com a qual o músico se afirmou como pioneiro e explorador de novas formas de conceber e pensar a música, serve-nos para exemplificar o soundesign na música, o entre da própria fronteira da música. Mestre em transformar literatura em música, como obras de Joyce, Proust, Brecht, Beckett, e.e.cummimgs, Calvino e Sanguinetti, suas peças são poesia viva, orgânica, visceral, sons e emoções primárias que irrompem muitas vezes de um instrumento natural humano (a voz), abrindo caminhos para novos comportamentos vocais. Para Berio, assim como, inúmeras vezes, encontramos mais poesia na prosa do que na poesia propriamente dita, não há mais necessidade em reconhecer como música apenas o que se encaixa nos parâmetros preestabelecidos por uma certa cultura musical. “Música é tudo aquilo que se ouve com a intenção de escutar música” (Bravo, 2001, p.50), ao considerar a música como qualquer som, desde que haja a intenção de escutar música, as possibilidades musicais multiplicam-se indefinidamente. Através de recursos eletroacústicos, que nos dão uma noção mais concreta de um texto poético que a simples leitura em público não nos seria suficiente, Berio explorou todas as possibilidades musicais das palavras levando-as “a um esta do em que pudesse assimilar e condicionar completamente o fato musical” (Berio, in Menezes, 1998, p. 122). Seu objetivo nesta obra foi buscar uma integração entre palavra e som sem que fosse notória a passagem de um para o outro, sem que um prevalecesse em detrimento do outro, criando uma continuidade entre eles, e sem deixar evidentes diferenças de condutas lógico-semânticas (no caso do texto literário) e musicais. “Omaggio a Joyce” surgiu na verdade como um projeto de emissão radiofônica realizado por Umberto Eco e Luciano Berio, programado para ir ao ar em 1958, o que não ocorreu por ter sido considerada uma experiência muito audaciosa para a época. A idéia do programa surgiu quando Eco e Berio pesquisavam sobre Alan Poe e James Joyce, notadamente sobre as onomatopéias presentes em suas obras. A obra de Joyce foi apresentada a Berio por Eco e a partir daí inicia-se a criação do programa de rádio em homenagem ao escritor irlandês. Conduziu o experimento a partir da gravação de uma voz feminina lendo um texto poético: a abertura do Capítulo XI de “Ulysses” de James Joyce, intitulado “Sirenes” (Sereias). Desde a escolha do texto (extremamente elaborado do ponto de vista sonoro) até o processo de elaboração musical, tudo foi meticulosamente pensado a fim de resultar uma obra que, antes de tudo, integrasse a materialidade vocal e a estruturação musical.

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Bronze by gold heard hoofirons steely ringing Imperthnthn thnthnthn. Chips, picking chips off rocky thumbnail, chips. Horrid! And gold flushed more. A husky fifenote blew. Blew. Blue bloom is on the Gold pinnacled hair. A jumping rose on satiny breats of satin, rose of Castille. Trilling, trilling: Idolores. Peep! Who’s in the…peepolgold? Tink cried to bronze in pity. And a call, pure, long ant throbbing. Longindying call. Decoy. Soft word. But look! The bright stars fade. O rose! Notes chirruping answer. Castile. The morn is breaking. Jingle jingle jaunted jingling. Coin rang. Clock clacked. Avowal Sonnez. I could. Rebound of garter. Not leave thee. Smack. La cloche! Thingh smack. Avowal. Warm. Sweetheart, goodbye! Jingle. Bloo. Boomed crashing chords. When love absorbs. War! War! The Tympanum. A sail! A veil awave upon the waves. Lost. Throste fluted. All is los now. Horn. Hawhorn. When first he saw. Alas! Full tup. Full throb. Warbling. Ah, lure! Alluring. Martha! Come! Clapclop. Clipclap. Clappyclap. Goodgod he never heard inall Deaf bald Pat brought pad knife took up. A moolit nightcall: far: far. I feel so sad. P.S. So lonely blooming. Listen! The spiked and winding cold seahorn. Have you the? Each and for other plash and silent roar. Pearls: when she. Liszt’s rhapsodies. Hisssss. (Ibidem, p. 123)

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Nesse trecho do Capítulo XI, que é uma exposição dos temas que farão parte da composição do capítulo propriamente dito, Joyce compôs com as palavras, como se compusesse uma sinfonia, ora usando palavras dotadas de sonoridade ora inventando novas sonoridades vocais. Não há significado discursivo, senão pela própria musicalidade, pois Joyce pretendeu ressaltar a musicalidade das palavras usando a técnica onomatopaica. “Quatro horas da tarde em Bachelor’s Walk, Dublin. No bar do Ormond Hotel, Miss Douce e Miss Kennedy, duas garçonetes, conversam atrás do balcão. Uma, de volta de férias na praia, bronzeada; a outra, exibindo pináculos da cabeleira de ouro. Bronze com ouro - começa o episó dio em que linguagem e música se tornam muito próximos, e onde os mais variados sons, lá de fora e do bar, vão repetir-se, enquanto o tema sonoro principal aparece sucessiva e alternada mente. Assim, na cavalgada do vice-rei, passando naquele momento, os cascos dos cavalos, pro tegidos por ferraduras, “açoferretinam”; alguém do bar lasca pedaços da unha (“Hórrido”, diz uma delas); as xícaras de chá tilintam na bandeja; Blazes Boylan, flertando com Miss Douce, pede-lhe para “sonner la cloche” (“ricochetear a liga”), isto é, esticar com força a liga para que se ouça o estalido que faz na coxa; “impertinente”, diz ela; buzinas; barulho do trânsito na rua; alguém lembrando o som da ária “Rosa de Castilha”; o afinador do piano dedilhando as teclas.” (Mutran, 1999, p.9)

Além da melodia de timbres (Klangfarbenmelodie) que Joyce compôs, usou artifícios musicais nas palavras que, entretanto, “nunca podem aspirar à condição da música porque estão sobrecarregadas com muitas camadas de sentido” (Mutran, 1999, p.9). Imperthnthn thnthnthn………………………………………trillo Chips, picking chips………………………………………staccato Warbling. Ah, lure!…………………………………appoggiatura Deaf bald Pat brought pad knife took up……………… martellato A sail! A veil awave upon waves………………………glissando

Joyce construiu nessa abertura uma trama polifônica através do entrelaçamento de acontecimentos e pessoas e transpôs para a literatura um fenômeno tipicamente musical: a “fuga per canonem”. Após constatar tais características nesse trecho de “Ulysses”, especialmente o tema e a polifonia, Berio buscou eliminar qualquer expressão enunciativa e significativa. As palavras, e suas qualidades sonoras, foram os materiais usados por Berio nessa composição. Ao invés de compor para instrumentos, de pensar o timbre dos instrumentos no momento da composição, Berio pensou no timbre das palavras, das consoantes, das vogais. Aqui as palavras são instrumentos que têm suas qualidades exploradas por meio eletroacústicos.

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 Sobreposição da gravação em inglês em três camadas com variações contínuas e independentes de tempo e dinâmica, além de efeitos de reverberação e delay

Pontos em evidência do caráter musical das onomatopéias que resultam espontaneamente da constante oscilação das relações de tempo e dinâmica

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Outras duas gravações foram feitas, através da tradução do texto para o francês e para o italiano, a fim de explorar outras qualidades sonoras dife rentes do Inglês. Percebe-se nessas duas outras gravações qualidades próprias de cada língua, no que diz respeito às formas de articulação e sonoridade das consoantes e vogais (o encobrimento de certas vogais no discurso fluido do francês e a evidência das vogais no discurso cantado do italiano). Berio iniciou o processo efetivamente de composição mixando as gravações dos textos com o objetivo de simular a idéia de “fuga per canonem” do texto de Joyce, mas decidiu filtrar somente certos fonemas na composição da música propriamente dita que foi composta entre 1958 (quando foi feita a primeira parte do programa) e 1959 (quando o programa foi ao ar). Num primeiro momento Berio reproduziu três versões da mesma gravação (do inglês) com variações contínuas mas não-paralelas no parâmetro do tempo e da dinâmica. Essas versões foram sobrepostas gerando uma espécie de polifonia a três vozes, sendo que as constantes oscilações independentes do tempo de cada voz produziu um verdadeiro cânone, desenvolvendo por um lado um aspecto que é puramente musical e, por outro, dissociando o aspecto fonético do texto, paulatinamente, “de sua própria expressão enunciati va, linear, de sua condição significativa” (Berio, in Menezes, 1998, p. 124) Vale aqui destacar o procedimento imitativo, uma regra que caracteriza toda espécie de cânone. O mesmo procedimento foi efetuado com as outras duas gravações do texto em francês e italiano, ou seja, o mesmo procedimento que corresponde aos processos canônicos de imitação, sobreposição e deslocamento temporal. A versão em francês foi recitada por uma voz feminina e por uma masculina, e o italiano por três vozes diferentes, “a fim de se compensar, graças à diversidade dos timbres vocais, aquele grau de descontinuidade e de eficácia onomatopaica que o inglês indubitavelmente possui em maior grau” (Ibidem). Em determinados pontos da audição percebe-se uma coincidência entre as intenções onomatopaicas de Joyce e a complexidade rítmica resultante da trama polifônica, onde o significado do texto fica totalmente embaralhado numa sonoridade densa de ataques rápidos e sucessivos. Dando continuidade ao procedimento musical Berio fez um série de alternâncias de uma língua à outra efetuadas sobre pontos fixos a partir dos resultados obtidos com as sobreposições anteriores. Não há mistura aleatória das três línguas pois o resultado vai se tornando cada vez mais significativo à medida em que a obra vai crescendo em direção ao delineamento de uma

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 Sobreposições das gravações em francês e italiano com os mesmos recursos utilizados no inglês, mas com modificações nos timbres das vozes acrescentadas: a-francês - voz feminina (B1) e outra masculina (B2); b-italiano - três vozes diferentes (A, B e C)

 Série de alternâncias de uma língua para outra sobre determinados pontos fixos por créditos de similaridade ou de contraste - apagamento dos vestígios léxico-linguísticos em direção a uma maior autonomia da trama polifônica revelando uma estrutura exclusivamente musical.

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forma mais definitiva. Berio usou critérios de similaridade e contraste que determinaram esses pontos fixos de referência para a alternância das línguas. Determinou que “o ritmo da passagem de uma língua à outra acontece de maneira mais ou menos rápida conforme a extensão dos segmentos de texto em questão” (Ibidem, p.125). Nessa etapa do trabalho Berio se ateve às “relações puramente sonoras dessa mescla”: as estruturas musicais praticamente suspendem a leitura de Joyce impondo uma escuta onde as passagens de uma língua à outra não são mais percebidas. As gravações em francês e italiano não estão, entretanto, presentes inteiramente na obra final. Berio escolheu certas palavras do italiano (“morbida parola”) e do francês (“petites ripes”) que foram usadas para demarcar o ritmo (ritmização do resultado musical). Fragmentos dos textos foram enunciados e sofreram manipulação. A enunciação ocorre até onde não se percebe mais as palavras. A partir daí não é mais possível perceber significados semânticos. Alguns procedimentos usados foram: filtragem de formantes, reverberações, criação do continuum sonoro entre ruído e som (dissonância e consonância), sobreposição das palavras, modulação da frase em francês e /r/ italiano (“morbida parola”), saturação sibilante do /s/ (motivo da peça). O /s/ perpassa toda a peça e se potencializa (satura) na parte final onde há o silêncio, alturas mais definidas e a volta do texto distinto, mais claro, ou seja, no final voltam alguns fragmentos com predominâncias do /s/. Na fase final da elaboração musical, Berio classificou e reuniu palavras em grupos (acordes) segundo uma escala de cores vocálicas que se estende do /a/ ao /u/, incluindo os ditongos. Elegeu diversos modelos de sobreposição de acordes reagrupados segundo critérios específicos, como por exemplo certos tipos de consoantes. O /s/ como “cor-base de toda peça”, que determinou pontos de referências significativos no decorrer da obra, análogo ao ruído branco, desliza-se em outras consoantes através de filtros (/f/) e pela adição de um tom fundamental (/v/, /z/, /3/ etc). É possível perceber com uma audição mais atenta passagens entre elementos contínuos/periódicos vs descontínuos/aperiódicos e suas variações entre si, quando não se é possível prever a frase seguinte. Trata-se de uma composição “tripartite” (em três partes), dividida entre enunciação (sobreposição das palavras e distorção da sobreposição – ex: blooming), embricação (elaborações eletroacústicas onde ainda há a enunciação – ex: so lonely), final (silêncio, alturas mais definidas - som tônico: intervalo de segunda maior /mi-fa/ - saturação do /r/ de “morbida parola”, volta ao texto mais claro e distinto com a presença do /s/ (motivo) que sofre reverberação de fundo). O que se obteve como resultado foi uma obra exclusivamente vocal, onde não se reconhecem significados semânticos, mas qualidades pura-

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mente musicais, uma audição quase tátil, onde se percebem texturas densas, tem-se a noção de espaço e perde-se no tempo, suspenso pelos cortes bruscos. Os sons com reminiscências semânticas, a repetição do motivo /s/, que introduz e finaliza o tema, os jogos de ataque e contrastes dinâmicos, a profusão de objetos elaborados eletroacusticamente (trillo, glissandos, martellatos, acordes etc), texturas densas com cortes bruscos, mudanças bruscas de registro, proli feração de sons mais ruidosos vs o contraste resultante de sons de altura definida e o retorno das reminiscências semânticas produzem efeitos imprevisíveis, imagens sonoras que se perdem numa densa textura: uma polifonia que nada pode significar além da sua livre e complexa estrutura

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“(...) sempre parece não ter chegado ainda o momento de oferecer ao público o seu ba lanço. Mesmo que o ponto de partida seja fecundo, e o método coerente, o que de mais importante se descobre, de etapa em etapa, é o quanto se é ignorante e quão desmesura da é a empresa da descoberta.” (Schaeffer, 1993, p.24). Quanto mais nos aprofundamos no estudo sobre a música e o design menos os compreendemos de fato e mais eles nos escapam por entre os dedos. A princípio a resposta consiste exatamente no entre, no “entre-dedos”, no entre-lugares, no entre-coisas, no nãolugar onde subsiste o vazio. O vazio não é o contrário de cheio, está cheio de um “topos vibrátil”, onde tudo é matéria e produz vibração, no entanto, parece-nos que ainda permanecemos à margem quando o mais sensato seria saltar no vazio e nos deixar guiar pela sensação mesma do vazio. Contudo, não podemos nos esquecer do fato de estarmos apresentando aqui uma “tese” que pressupõe começar por um começo e terminar com um fim, mesmo que esse fim seja provisório. O “fim” aqui está muito mais para “extremidade”, a partir da qual surgirão novos vetores que se ramificarão em outros leques de questões, do que para conclusão de fato. Se nossos objetivos não foram alcançados por completo ao menos estamos mais seguros quanto ao percurso: um caminho que já havíamos percorrido e que encontrou eco nesta pesquisa de Mestrado. A música e o design não estão em toda a parte, pelo menos não num sentido rigoroso, e não é de qualquer design nem de qualquer música que tratamos até aqui. Mas de um design e de uma música diagramáticos, moventes, informais que se encontram no “espaço do olho que escuta”, um espaço direcional e aberto que toma “todas as direções, prolongável em todos os sentidos, ainda que esse espaço tenha um centro.” (MP v.5, 1997, p.181). Chamamos esse espaço entre a música e o design de soundesign, como um novo conceito de design ou como uma extensão do seu conceito, que se encontra na fronteira entre os dois e na fronteira mesma da música e do design, ou seja, ele é a fronteira não demarcável, mas fluida, onde as forças da música ecoam no design, e as forças do design ecoam na música. Eles pressupõem uma escuta e um olhar atentos à surpresa do inesperado, do imprevisível, uma escuta e um olhar também ativos, moventes, táteis. São “linguagens” que permitem trânsito livre entre elas, independentemente da presença ou não da tecnologia. As virtualidades

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e atualidades são possibilidades que independem da natureza do “objeto”. O “signo” possui por si só uma potencialidade latente e se essa potencialidade não se esgota num primeiro olhar, numa primeira audição, num primeiro toque, podemos então reconhecer os traços de um no outro e as forças que ecoam entre si, podemos falar de um design que escuta, de uma música que vê ou faz ver, um design e uma música que tocam. Nosso objetivo no trabalho “O pulsar do Design” (1998), com a “partitura vir tual” (animada em Flash) inspirada na obra aleatória do músico John Cage, bem como na música eletroacústica de György Ligeti, Luciano Berio e Flo Menezes, foi justamente mostrar essa intersemiose entre as linguagens visual, sonora e tátil e como é possível transitar entre elas sem nenhuma limitação. Foi criado um novo código de representação gráfica para a música Pulsar, que não tem mais nenhuma relação visual com a representação tradicional das notas musicais. Ao contrário das partituras auditivas da música eletroacústica, que são apenas um acompanhamento visual do som que o ouvinte vai ouvir, nesta partitura basta conhecer os códigos, pensados de acordo com a composição de Caetano, para poder reproduzi-los, como numa partitura convencional. Como não foram estabelecidas as alturas, apenas os timbres (grave, agudo, mezzo), a partitura oferece ao músico a possibilidade de escolha do som que ele quer ouvir, podendo haver, portanto, inúmeros sons, desde um som de altura definida, a um ruído, de acordo com a intenção de cada intérprete. Esta impossibilidade de prever o resultado, a caracteriza como uma composição aleatória, inspirada na obra de John Cage. Trata-se de um código peculiar criado em função da análise depreendida da música e poema. Embora tenha-se baseado na música e no poema Pulsar, ela se constitui como uma nova imagem, com novas e imprevisíveis possibilidades de sons. Mas música, poema e tradução formam uma tríade indissociável, por conterem os mesmos conceitos e suscitarem as mesmas questões. Entretanto, com o intuito de fugir do lugar comum, acabamos substituindo um código por outro, ou seja, substituímos o código tradicional da música por outro código. O conceito neste trabalho ainda está focado na tradição musical. A ausência de interatividade também empobrece o trabalho que se esgota num primeiro olhar, ou ao menos numa segunda vez. Ele não reserva surpresas exceto na segunda parte da animação, guiada pelo acaso, onde os ruídos e o movimento cromático apresentam algumas surpresas que a primeira parte suprime.

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Apesar disso “O Pulsar do Design” atingiu um resultado favorável, dentro do que se propôs como objeto de análise (a música “Pulsar”), desta forma concordamos com Pierre Schaeffer: é preferível uma experiência, mesmo fracassada, que uma obra bem sucedida (Palombine, 2003). A complexidade do tema exige maior aprofundamento, e por essa razão nos propusemos aqui aprofundar alguns conceitos que conhecia-se tenramente para a partir daí encontrar efetivamente as relações entre a música e o design. Traçadas as relações entre essas duas “linguagens” é necessário agora encontrar uma “forma” mais apropriada para elas. “Thema – Omaggio a Joyce” é o novo desafio que nos impomos para uma próxima etapa, na qual será imprescindível antes, fazer marcas ao acaso, raspar, limpar, escovar ou espanar os lugares ou zonas para que se possa, se não eliminar, ao menos reduzir os dados figurativos que habitam nossa mente. “É o que Bacon chama de Diagrama: é como se, de um só lance, introduzíssemos um Saara, uma zona de Saara, na cabeça; como se tivéssemos uma pele de rinoceronte vista ao microscó pio; como se separássemos duas partes da cabeça com um oceano; como se mudássemos a unidade de compasso, e substituíssemos por unidades figurativas das unidades cronométricas, ou ao contrário cósmicas. Um Saara, uma pele de rinoceronte, eis o diagrama estendido de uma só vez. É como uma catástrofe que sobrevém na tela, nos dados figurativos e probabilísticos.” (FB, 1981)

A cada questão que talvez pretensiosamente tentamos responder no decorrer do trabalho mais perguntas surgiam de tal forma que nesse momento nos vimos impelidos a suspender a “conversa” e deixar a mente descansar por alguns instantes (dias, semanas, meses, quem sabe?) até que elas recomecem a martelar nossa mente e novamente possamos retomar a discussão. São questões circulares que sempre reportam ao ponto inicial, porém, numa ordem crescente de evolução, quando a cada nova questão surgem novas explicações, que nos aproximam de uma possível resposta, até que novas perguntas coloquem em dúvida a possível resposta e abram margem para novos questionamentos, numa eterna espiral. Todas estas questões são movidas pela necessidade de buscar o próprio lugar dentro do universo da criação, de buscar uma certeza através dos conceitos para que se possa com isso produzir efetivamente design e não meramente desenhos digitais, e principalmente para que se possa usar a tecnologia como ambiente de criação e não como ambiente de reprodução de formas vazias que se esgotam num primeiro olhar, sem no entanto, ter a pretensão de invadir universos alheios (da arte e/ou da música).

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