Livro Samora Machel: retórica política e independência em Moçambique

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Universidade Federal da Bahia Reitor João Carlos Salles Pires da Silva Vice-reitor Paulo Cesar Miguez de Oliveira Assessor do Reitor Paulo Costa Lima

Editora da Universidade Federal da Bahia Diretora Flávia Goulart Mota Garcia Rosa Conselho Editorial Alberto Brum Novaes Angelo Szaniecki Perret Serpa Caiuby Alves da Costa Charbel Niño El Hani Cleise Furtado Mendes Evelina de Carvalho Sá Hoisel José Teixeira Cavalcante Filho Maria do Carmo Soares Freitas Maria Vidal de Negreiros Camargo

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COLIN DARCH • DAVID HEDGES

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SALVADOR • EDUFBA • 2018

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2018, Colin Darch e David Hedges. Direitos dessa edição cedidos à Edufba. Feito o Depósito Legal. Grafia atualizada conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, em vigor no Brasil desde 2009. Capa e Projeto Gráfico Lúcia Valeska Sokolowicz Foto de Samora Machel na Capa Augusta Conchiglia Revisão Lia Nery Normalização Sandra Batista Sistema de Bibliotecas – UFBA Darch, Colin. Samora Machel : retórica política e independência em Moçambique / Colin Darch, David Hedges. – Salvador : EDUFBA, 2018. 149 p. ISBN: 978-85-232-1740-2 1. Moçambique – Política e governo. 2. Moçambique – Política social. 3. Machel, Samora, 1933-1986. I. Hedges, David. II. Título. CDD: 320.9679

Editora afiliada à

Editora da UFBA Rua Barão de Jeremoabo, s/n, Campus de Ondina CEP 40170-115 – Salvador – Bahia Tel.: +55 71 3283-6164 / 6160 www.edufba.ufba.br / edufba@ufba.br

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Mapa da cidade da Beira e os seus subúrbios, inclusive ao norte, e longe do centro da cidade, a zona da Manga, principalmente ocupada na Êpoca pelos mestiços (Cartografia: Jenny Sandler).

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AGRADECIMENTO Agradecemos calorosamente o auxílio do falecido Iain Christie, de António Sopa e de Simão Jaime do Arquivo Histórico de Moçambique, pela ajuda em localizar a gravação original do discurso de Samora Machel na cidade da Beira; pelos seus comentários valiosos, apoio e informação ficamos agradecidos a Álvaro Simões, Amélia Souto, António Sopa, Armando Jorge Lopes, Christopher Stroud, Elisabete Azevedo-Harman, Hernani Rodrigues, João Paulo Borges Coelho, Joel das Neves Tembe, Johane Zonjo, Júlio Bicá, Luís de Brito, Paolo Israel, e Philippe-Joseph Salazar. Agradecimentos especiais a Perpétua Gonçalves pelos comentários e sugestões preciosas, a Benedito Machava pela busca iconográfica que veio ampliar nosso reduzido leque e a Valdemir Zamparoni pelo seu apoio constante e pela revisão linguística cuidadosa do nosso texto. Pelos erros, omissões e insuficiências que ainda se manifestam, os autores reconhecem a sua inteira responsabilidade. Agradecemos a David McLean, da cidade do Cabo, pela limpeza impecável e a digitalização da gravação original da fita cassete.

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SUMÁRIO

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Prefácio

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Introdução

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A viagem do Rovuma ao Maputo

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Beira – Cidade estratégica de tensões explosivas

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A língua portuguesa e a política de enriquecimento

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Samora Machel e a prática de retórica: uma política de persuasão ou de coerção?

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A transcrição da intervenção na Beira, 14 de junho de 1975

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Conclusão: poder, discurso político e comunicação social

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Referências

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Prefácio

Este livro é produto de mais de dez anos de investigação e reflexão, que começou nos fins da década 1990, quando nos interessávamos em questões da relação entre o discurso (em ambos os sentidos da palavra) da Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo) e os processos que resultaram no desenvolvimento das políticas governamentais. Estas têm sido representadas às vezes como “intervenções arbitrárias” nascidas da “tendência de Samora Machel de repentinamente anunciar imperativos políticos em discursos públicos ou de implementar as decisões pelos decretos presidenciais”.1 Pretendemos descobrir se, na realidade, o processo era tão simples; e ainda qual a relação entre a fala política, no sentido de discurso ou intervenção, e a mobilização ou coerção de apoio político. Assim fomos fortemente influenciados pelo texto seminal de Bitzer2 sobre o significado da “situação retórica”: como Bitzer afirma, o “discurso retórico é chamado à existência em razão de cada situação”. 1

HALL, Margaret; YOUNG, Tom. Confronting Leviathan: Mozambique since independence. Londres: Hurst, 1997. p. 80-81.

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BITZER, Lloyd. The rhetorical situation. Philosophy and Rhetoric, University Park, v. 1, n. 1, p. 1-14, 1968.

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Aceitando isso, para entender a força das intervenções de Samora Machel e outros líderes da Frelimo, seria necessário entender também as circunstâncias históricas nas quais estas foram pronunciadas, e reciprocamente uma análise da retórica que pudesse abrir uma porta para um novo tipo de compreensão da situação histórica. É isso o que pretendemos fazer com este texto. Versões anteriores deste trabalho foram apresentadas em diversas conferências e seminários, nomeadamente: a conferência da South African Association of Political Studies (Universidade de Durban-Westville, 5-7 de outubro de 2001); no simpósio internacional “Moçambique no Contexto da África Austral, da Independência ao Acordo Geral de Paz” (Centro de Documentação Samora Machel, Maputo, 4-6 de outubro de 2006); e no seminário “Não vamos esquecer: Dialogues on Mozambican History” (Centre for Humanities Research, Universidade de Western Cape, 15 de agosto de 2012). Agradecemos pelas críticas e sugestões oferecidas pelos participantes nessas reuniões. Uma tradução completa em inglês feita pelos autores foi publicada como Samora Machel, “The Beira Speech”, no African Yearbook of Rhetoric (2011).3 A gravação do discurso está disponível também on-line.4 Uma versão abreviada da nossa análise foi publicada em inglês, sem o texto da própria intervenção, na revista sul-africana Kronos, número 39, em 2014. Colin Darch e David Hedges Cidade do Cabo, Maputo e Recife Março de 2014/ julho 2016

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Volume 2, número 3, p. 67-83, 2011. Disponível em: <http://tinyurl.com/oojlhro>.

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Ver em: <www.mozambiquehistory.net/smm_beira.php>.

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Introdução

Até recentemente a nossa interpretação do passado tendia a tratar a linguagem – o que as pessoas disseram e escreveram na época – como algo que poderia, muito simplesmente, ser reproduzido e usado diretamente como evidência. Não havia uma compreensão, pelo menos na prática do ofício do historiador, de que a linguagem, precisamente porque é coletiva e social, não pode ser utilizada desta forma. A linguagem, como um ato de comunicação, não se manifesta num vazio do tempo histórico entre um indivíduo isolado e seu futuro historiador. É, pelo contrário, uma atividade muito mais circunscrita a determinadas pessoas que partilham uma língua viva, que o historiador não entende automaticamente e que, por sua vez, estrutura e refrata a experiência de seus usuários do passado. Assim, é a reconstrução, historicamente fundamentada, desta língua, uma língua discreta mas discursiva e cheia das inflexões, que devia ser o ponto de partida para o historiador.5

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FOSTER, John. The declassing of language. New Left Review, London, n. 150, p. 29-45, Mar./Apr. 1985. p. 29, tradução nossa.

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Este livro analisa uma intervenção política por Samora Machel, previamente inédita.6 A nossa análise situa essa intervenção no seu contexto histórico e sociolinguístico, tomando em consideração, ao mesmo tempo, os dispositivos retóricos utilizados quer persuasivos, quer coercivos.7 Nessa análise interdisciplinar, conseguimos mostrar como a liderança da Frelimo utilizou, sistematicamente, as intervenções públicas para fazer avançar o seu projeto político, ao estabelecer formas de mobilização popular na transição à independência monopartidária, em 1975. Tais intervenções refletem aspectos importantes da reação da liderança frente aos conflitos nos contextos urbanos e regionais da área central de Moçambique, entre 1974-1975, nos quais a Frelimo procurava estender o seu poder. Mostra também como a Frente entendeu o desenvolvimento das relações de poder na sociedade moçambicana de maneira mais ampla. O conteúdo da intervenção, tal como o seu caráter retórico e discursivo, mostram que a Frelimo estava consciente da necessidade de mobilizar apoio no centro do país para o seu projeto nacionalista e revolucionário, possivelmente pouco conhecido pelos residentes da Beira e até mesmo entre os militantes clandestinos da Frente que viviam nesse centro urbano. Seria necessária uma pesquisa mais aprofundada para confirmar se a Frelimo esperava de fato o aparecimento de ações de contrarrevolução na Beira, na pós-independência, mas acreditamos que a nossa análise indica

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Para evitar ambiguidade, usamos “intervenção” para significar um discurso público proferido por uma figura política, e a palavra “discurso” exclusivamente como uma expressão técnica de análise para significar “texto mais contexto”.

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Uma gravação digital encontra-se disponível para a audição ou para baixar a: ver <http://www.mozambiquehistory.net/smm_beira.php>.

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fortemente que esse era o caso. A nossa discussão das contradições políticas na zona central do país durante os finais do período colonial aponta algumas das possíveis razões para a resistência ao projeto da Frelimo nessa região.8 Em si, a intervenção de Samora Machel evidencia uma primeira tentativa para criar unidade política numa cidade gravemente dividida racial, social e politicamente. As provas históricas que aqui aduzimos apoiam a conclusão de que a intervenção exemplifica o discurso político sutil e complexo que a Frelimo estava em curso de desenvolver. A nossa análise linguística e da retórica indica que a Frelimo estava profundamente preocupada com uma possível fragmentação política na Beira e nos distritos contíguos. O livro começa com uma breve descrição da “Viagem triunfal” e os seus antecedentes na Tanzânia e na Zâmbia, onde Samora Machel discursou extemporaneamente perante assistências amplas com o objetivo de mobilizar auxílio internacional e doméstico para as lutas políticas em curso. No capítulo a seguir, apresenta-se uma análise da complexidade das divisões sociais e políticas na Beira e na sua região no final do colonialismo, com o objetivo de contextualizar a nossa explicação para as práticas discursivas e retóricas presentes na intervenção. Em seguida, passamos a examinar a política linguística desenvolvida pela Frelimo no seu uso da língua portuguesa e as suas variedades, antes de concluir com uma exploração detalhada dos elementos coercivos e persuasivos da intervenção. Salientamos que a retórica não é meramente aci8

Nessa matéria, entre outros, veja MENESES, Maria Paula; MARTINS, Bruno Sena (Org.). As guerras de libertação e os sonhos coloniais: alianças secretas, mapas imaginadas. Coimbra: Almedina, 2013.

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dental em relação à ação política, mas é, pelo contrário, um elemento essencial da mesma. Nas décadas de 1970 e 1980, e até aos dias de hoje, as intervenções políticas têm sido uma componente significante na prática de comunicação social da Frelimo, num país em que a imprensa está disponível linguisticamente e acessível economicamente só a uma minoria de pessoas urbanas falantes do português. Em 1975, quando essa intervenção foi proferida, não havia imprensa independente e não havia estações de televisão em Moçambique, e as poucas estações de rádio, se bem que designadas como comerciais na sua natureza, na prática, tinham estado sempre sob estrito controle do governo colonial.9 A intervenção aqui analisada ocorreu em 14 de junho de 1975, alguns dias antes da independência na Beira, a segunda maior cidade de Moçambique e um local que tinha uma importância particular devido à sua história no último período colonial e durante a guerra colonial contra os nacionalistas da Frelimo. O conteúdo da intervenção é significativo para o que representa na sequência da transição política, e, particularmente, pela sua relevância ao demolir retoricamente a estrutura social colonial e ao apresentar partes altamente persuasivas da visão que a Frelimo tinha do processo de transformação. Alguns comentadores têm desprezado a ideia de que Samora Machel e a Frelimo tinham alguma capacidade para dar uma contribuição à teoria política marxista, defendendo que um suposto “desdém” (nas fileiras da

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Sobre a história da radiodifusão, ver BARBOSA, Ernesto Casimiro Neves Santos. A radiodifusão em Moçambique: o caso do Rádio Clube de Moçambique, 1932-1974. Maputo: Promédia, 2000, especialmente p. 85-96 sobre a radiodifusão em línguas africanas a partir de 1930.

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Frelimo) pelo “Marxismo-enquanto-livros” era “baseado na ignorância, e não na experiência”.10 A esse respeito, a intervenção na Beira é interessante tanto pela sua escassez de teoria explícita, como pela sua complexidade retórica e teatral; acrescenta pouco em termos de dados concretos para o nosso conhecimento dos eventos históricos do período, e as palavras “comunismo”, “socialismo”, “Marxismo” e “Leninismo” não aparecem. Contudo, consolida a nossa compreensão da complexidade da visão da Frelimo no que diz respeito à raça, à estrutura social colonial e ao internacionalismo a vários níveis, assuntos fundamentais para a linha de argumentação de Samora Machel, na altura. Uma parte significativa do contexto linguístico para esse evento era a existência, em Moçambique, de duas variantes concorrentes do português. De um lado, a dominante e bem estabelecida variedade padrão ou normativa, baseada na fala educada dos europeus e, do outro, a fala vernacular de um segmento da

10 Hall e Young parecem atribuir essa ideia principalmente aos “admiradores acadêmicos [ocidentais]”, e negligenciam, por exemplo, o papel significativo desempenhado por figuras moçambicanas como Aquino de Bragança ou Sérgio Vieira na análise e defesa de posições teóricas da Frelimo. HALL; YOUNG, 1997, p. 64 Veja, BRAGANÇA, Aquino de. O marxismo de Samora. Três Continentes, Lisboa, n. 3, p. 43-50, 1980. Disponível em: <http://www.mozambiquehistory.net/people/aquino/writing/mozambique/19800900_marxism_of_samora.pdf>. Acesso em: 23 fev. 2011; e também Notícias, Maputo, 1 out. 1983. Em 1979-1980 houve uma tentativa por parte da Frelimo, no contexto de pelo menos duas reuniões internacionais, de abrir um debate com os partidos do bloco socialista no seu próprio terreno. A Frelimo defendeu que a transformação socialista podia preceder o desenvolvimento das forças produtivas, isto é, a sociedade podia ser radicalmente transformada antes que ela se desenvolvesse economicamente. Ver: (A) CONTRIBUIÇÃO do nosso partido para o enriquecimento do marxismo-leninismo. Voz da Revolução, [s. l.] n. 7, p. 21-24, 1979-1980; (THE) JOINT struggle of the working class movement and the national liberation movement against imperialism and for social progress: international scientific conference, Berlin, 20-24 October 1980. Dresden: Verlag Zeit im Bild, 1981. É evidente que esta não era uma questão trivial.

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população de Moçambique. O fato de que o texto reconstruído mostra algumas das marcas características do discurso popular cotidiano foi, portanto, significativo no longo processo de definição da política linguística da Frelimo.11 Regressaremos a essa questão mais à frente.

Figura 1 – Assistências de dezenas de milhares de pessoas participaram nos comícios durante a Viagem triunfal, muitas vezes esperando horas no sol para a chegada do futuro presidente da república independente de Moçambique Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

11 Para uma interpretação interessante deste processo, ver STROUD, Christopher. Framing Bourdieu socio-culturally: alternative forms of linguistic legitimacy in post-colonial Mozambique. Multilingua, Berlin, v. 21, p. 247-273, 2002.

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O uso da linguagem (discurso) é uma prática social determinada por estruturas sociais, incluindo as econômicas, as culturais e as políticas.12 Dentro de um tal discurso vasto, por seu turno, são socialmente constituídas diferentes ordens de discurso, consistindo nas convenções linguísticas associadas com configurações sociais específicas, tais como classe, raça, gênero, idade, organizações, partidos políticos, regiões geográficas, e por aí adiante. Uma dialética está em ação: as relações de poder que existem numa sociedade definem e moldam ideologicamente estas ordens de discurso. Simultaneamente, os membros de qualquer sociedade podem usá-las e, de fato, usam como instrumentos para influenciar e mudar as instituições sociais que as tinham determinado. Dado que todas as ordens do discurso expressam relações implícitas de poder, é logicamente provável que uma ordem política – ou politizada – do discurso seja uma expressão particularmente complexa do funcionamento do poder político e social do Estado. O poder não só reside implicitamente escondido “dentro” de uma ordem do discurso, dependente da coerção do Estado e informando todo o processo de comunicação, mas também reside explicitamente na superfície da mesma ordem de discurso, trabalhando para obter “consentimento” ou “aquiescência” para o seu exercício através da persuasão ou da retórica.13

12 Aceitamos para efeitos práticos a distinção útil feita por Widdowson entre “discurso” (texto com situação) e “texto” (discurso sem situação). Ver: WIDDOWSON, Henry. Directions in the teaching of discourse. In: CORDER, Pit S.; ROULET, Eddy (Ed.). Theoretical linguistic models in applied linguistics. Paris: Didier, 1973. p. 65-76. 13 FAIRCLOUGH, Norman. Language and power. Londres: Longman, 1989. p. 17.

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Figura 2 – O povo saudando a chegada do camarada presidente da Frelimo num helicóptero durante a Viagem triunfal Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

No processo de estabelecer e explicar o texto da intervenção como objeto da análise, no aparato explicativo acoplado ao próprio texto na sua forma agora publicada, e nesta introdução, tentamos atingir vários objetivos. O mais importante destes é uma leitura analítica como evidência histórica de um texto político africano, ao invés de fazer um ato de piedade política ou de homenagem a um líder falecido.14 Em segundo lugar, tentamos “fazer 14 Uma tal abordagem pode ser vista em várias coleções de intervenções do Presidente Samora Machel. Para uma lista completa das intervenções e outros textos publica-

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ouvir” a voz de um importante e popular orador africano, enquanto ele interpreta uma espécie de “teatro político” defronte de uma audiência entusiástica pouco habituada a exposições políticas analíticas.15 Para realmente ouvir essa voz, trabalhamos de uma forma não prescritiva para tentar restabelecer o verdadeiro “texto” – um ato de fala – tanto quanto possível (apesar de aqui se achar impresso), de forma significativa, como um produto de reconstrução literária. Em terceiro lugar, apresentamos uma leitura provisória da narrativa textual no contexto do período imediatamente pré-independência, com uma concorrência entre posições políticas diferentes, numa atmosfera inebriante da vitória, com os dirigentes da Frelimo disputando cargos ministeriais no futuro governo.16 Acreditamos que uma tal leitura deve ser em grande medida culturalmente determinada. Esse tipo de interpretação é uma forma estendida da crítica literária, e embora possa ou não ser considerada convincente, não há nenhuma medida objetiva, contra a qual poderá ser julgada “correta” ou mesmo “falsa”. Também seria arrogante supor que nossas percepções de alguma forma acabaram com uma névoa de mistificação que os ouvintes modos por Samora Machel, consulte SOUTO, Amélia; SOPA, António. Samora Machel: bibliografia, 1970-1986. Maputo: Centro de Estudos Africanos, 1996. 15 Hall e Young reconhecem explicitamente esse componente do discurso da Frelimo na sua observação rancorosa “Se a política fosse em parte o teatro, então o mínimo que se pode dizer é que a Frelimo não se distraiu”. HALL; YOUNG, 1997, p. 62. 16 O próprio Samora Machel descreveu essa luta na sua intervenção na Base Beira em 25 de maio: “Sabem o que é a ambição? Haverá guerra no nosso seio. Nós que fizemos a guerra, vamos ter luta no governo: ‘Porque é que foi escolhido para presidente? Porque é que foi escolhido para ministro? Porque é que não foi eleito presidente? Porque é que aquele não foi para ministro? Porque é que não é o chefe do exército da Frelimo?’” MACHEL, Samora. ‘Discurso na Base Beira’ (transcrição dactilografada, 25 maio 1975; Id. Discurso na Base Beira, Tempo, Maputo, n. 246, 15 Jun. 1975.

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çambicanos não conseguiram reconhecer, ou eram incapazes eles próprios de desconstruir.17 A intervenção da Beira existiu e existe em várias formas. A forma primária e transitória foi o ato de fala que ocorreu em 14 de junho de 1975, quando Samora Machel dirigiu o comício no Campo do Ferroviário de Manga, um bairro importante da Beira, mas geograficamente periférico. Sabemos que um intérprete estava presente e, certamente, traduziu a intervenção inteira em Cisena. Não existe transcrição oficial escrita desse evento de fala numa língua africana, tanto quanto sabemos. A forma secundária é uma gravação de fita cassete dos atos de fala na fitateca do Arquivo Histórico de Moçambique.18 A fita original foi posteriormente digitalizada pelo engenheiro de som David MacLean, na cidade do Cabo, e está atualmente disponível em três arquivos de formato MP3 no site Mozambique History Net.19 É provável, embora não saibamos ao certo, que uma transcrição da intervenção, datilografada por jornalistas, a partir da qual trabalhamos inicialmente, tenha sido feita a partir dessa fita, como parte de uma coleta de todas as intervenções ocorridas durante a viagem do Rovuma ao Maputo.20 Embora esta intervenção na Beira nunca tenha sido publicada na íntegra, algumas centenas de palavras foram dela extraídas e 17 John Wilson lembra que é presunçoso supor que a linguagem política “para o ouvinte cria um ambiente controlado cognitivo a partir do qual qualquer interpretação é manipulada”. WILSON, John. Politically speaking: the pragmatic analysis of political language. Oxford: Blackwell, 1990. p. 10-11. 18 Todas as fitas originais estão arquivadas na Fitateca da Rádio Moçambique em Maputo. As cópias são mantidas no Arquivo Histórico de Moçambique, também em Maputo. 19 Mozambique History Net, ver: <http://www.mozambiquehistory.net/smm_beira. php>. Acesso em: 23 fev. 2011. 20 Fotocópias do conjunto dessas transcrições se encontram em posse dos autores.

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publicadas numa coleção contemporânea moçambicana de textos políticos; excertos abreviados apareceram também em reportagens contemporâneas sobre a visita de Samora Machel à Beira. Tais extratos, assim como os demais textos das intervenções de Samora Machel, quando posteriormente publicados em jornais e revistas, eram normalmente submetidos a um processo de normalização linguística e de arrumação.21 No processo de preparação do texto para publicação, obedecemos aos princípios do minimalismo, introduzindo a pontuação o menos possível, somente para dividir um ato contínuo de fala numa segmentação compreensível. Tentamos evitar qualquer correção prescritiva ou normativa das elocuções de Samora Machel. As técnicas mais complexas da transcrição da fala evoluíram dentro das subdisciplinas antropológicas de etnografia e folclore, especialmente nos Estados Unidos, com o trabalho de estudiosos como Fine e Tedlock.22 Não pretendemos atingir um tal nível de sofisticação na nossa transcrição da intervenção da Beira, embora reconheçamos que Samora Machel estava a empregar “um modo de comunicação estética” integral no evento da visita à cidade, o que era, ao mesmo tempo, culturalmente específico. A maioria das intervenções pronunciadas por Samora Machel encontravam-se impressas em transcrições feitas num protocolo “verbatim alisado”, isto é, com a gramática normalizada e os

21 Nesta tradição, um fragmento do texto da Beira, fortemente “corrigido”, foi incluído no livro de REIS, João; MUIUANE, Armando Pedro (Org.). Datas e documentos da história da Frelimo. Lourenço Marques: Imprensa Nacional, 1975.p. 426-427. Veja também Notícias da Beira, 15 jun. 1975, p. 2. 22 TEDLOCK, Dennis. The spoken word and the work of interpretation. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1983; FINE, Elizabeth C. The folklore text from performance to print. Bloomington: Indiana University Press, 1994.

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dispositivos retóricos “corrigidos”. Tais textos foram na altura rotineiramente publicados na revista Tempo e no jornal Notícias. Em contraste, a nossa transcrição inclui interjeições, mudanças de pensamento e hesitações, repetição de frases, e as reações da assistência, tais como aplausos, risos e outras respostas. Porém, o texto paralelo do intérprete falado na língua Cisena – o que se pode escutar no fundo – não foi aqui objeto, dado a falta de competência linguística dos autores do presente trabalho.

Figura 3 – A viagem triunfal marcou a primeira vez que o presidente Samora Machel estava com os pés no solo moçambicano desde os Acordos de Lusaca. Assim o seu retorno ao território nacional envolveu também visitas informais às zonas rurais, sem protocolo Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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A viagem do Rovuma ao Maputo

A viagem triunfal de Samora Machel pode-se pois considerar como uma onda que à medida que vai passando, ia cobrindo Moçambique e os moçambicanos com novos valores, novas formas de equacionar a sua participação na construção do seu futuro e novas formas de estar no mundo.23

A intervenção aqui analisada é só uma de um conjunto de mais de 30 ocorridas no decorrer de uma viagem emblemática – mas pouco estudada – que o presidente Samora Machel fez entre os dias 24 de maio e 25 de junho de 1975. Essa travessia do país começou nas margens do rio Rovuma, marcador da fronteira setentrional de Moçambique com a Tanzânia, e culminou um mês depois, na capital Lourenço Marques, que viria a ser reno-

23 Armando Guebuza, comunicação de 1 de fevereiro de 2006, citado por PACHINUAPA, Raimundo. Do Rovuma ao Maputo: a marcha triunfal de Samora Machel. Maputo: Edição do Autor, 2005. p. 70.

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meada Maputo.24 A chamada “Viagem triunfal” assim constituiu a “incorporação simbólica da totalidade do novo espaço territorial que agora estava a começar e a compor Moçambique independente” e preparava o terreno para uma nova fase, a da construção nacional.25 Naquela altura, como hoje em dia, a frase “do Rovuma ao Maputo” resumiu e encapsulou a ideia da unidade nacional como a virtude política dominante em Moçambique pós-independência. A viagem culminou na entrega formal do poder pelos portugueses à Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). Foi claramente concebido para iniciar o trabalho da construção da unidade nacional, num país que nas décadas anteriores sofreu inumeráveis tentativas de divisão política pela parte da administração colonial portuguesa, e estava nesse momento muito vulnerável às iniciativas colonialistas ameaçadoras quer internas, quer externas.26

24 O livro de Raimundo Pachinuapa já citado consiste em fotografias da viagem, com um pequeno texto explicativo, e é descrito pelo seu autor como um “merecido tributo ao amigo e companheiro da luta, Samora Machel”. Foi publicado em Moçambique no ano de 2005. Veja PACHINUAPA, 2005, p. 3. Mas grosso modo, a análise acadêmica tem ignorado a viagem. Norrie MacQueen, por exemplo, não a menciona. ver: MACQUEEN, Norrie. A descolonização da África portuguesa: a revolução metropolitana e a dissolução do império. Mem Martins: Inquérito, 1998. 25 STROUD, Christopher. Portuguese as ideology and politics in Mozambique: semiotic (re)constructions of a postcolony. In: BLOMMAERT, Jan (Org.). Language ideological debates. Berlim: Mouton de Gruyter, 1999. p. 343-380. p. 345. 26 Para as tentativas de divisão na base de supostos sentimentos étnicos, e da recuperação dos poderes dos régulos (chefes tradicionais) durante o período colonial, veja, entre outros, os textos de ALPERS, E. A. Ethnicity, politics and history in Mozambique, Africa Today, Bloomington, v. 21, n. 4, p. 39-52, 1974; ARQUIVO HISTÓRICO DE MOÇAMBIQUE. Seção Especial, J. A. Branquinho. Prospecção das forças tradicionais do Distrito de Manica e Sofala. Lourenço Marques, 1966; ARQUIVO HISTÓRICO DE MOÇAMBIQUE. Seção Especial, J. A. Branquinho. Prospecção das forças tradicionais do Distrito de Moçambique, Lourenço Marques, 1969; HEDGES, David; ROCHA, Aurélio.

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Moçambique compartilhava extensas fronteiras com a Rodésia do Sul e com a África do Sul, além de elos econômicos vindos do passado. Esses países – com governos de minoria branca – tinham um expressivo potencial militar e uma dinâmica colonialista em suas políticas e ideologia. Isso significava que o avanço gradual da Frelimo para o controle político do centro do país atravessou obrigatoriamente a Beira, porto principal para Rodésia, e no sul chegou a Lourenço Marques, a uns 80 quilomêtros da fronteira sul-africana. Estrategicamente, portanto, a Frelimo se encontrou vulnerável. A liderança estava consciente dos recursos militares potencialmente disponíveis para a Rodésia e África do Sul no caso de hostilidades, caso essa última optasse por apoiar as iniciativas dos colonos. A Frelimo gozou do apoio do governo e exército português após o golpe de 25 de abril, mas, além disso, a sua arma principal consistiu na comprovada capacidade de mobilização da população colonizada acerca do ideal da independência nacional e da transformação social. Num contexto regional opressivamente hostil, a liderança frelimista considerava a unidade como politicamente fundamental, tomando em conta o risco – e com muita experiência sobre isso já na história da Frente – de dissidências conduzindo à colaboração com o inimigo colonialista.

Moçambique durante o apogeu do colonialismo português: a economia e a estrutura social. In: HEDGES, David (Org.). História de Moçambique: volume 2: Moçambique no Auge do Colonialismo, 1930-1961. 2. ed. Maputo: Livraria Universitária, 1999. p. 129-195.

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Figura 4 – A chegada em Mueda, no início da Viagem triunfal, no dia 24 de maio de 1975. Da esquerda para a direita: Samora Machel, Marcelino dos Santos (Vice-presidente da Frelimo), Joaquim Chissano (Primeiroministro no governo de transição). Na extrema-direita vê-se Marina Pachinuapa, militante do Destacamento Feminino e esposa do então governador da província de Cabo Delgado, Raimundo Pachinuapa Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

O amplo desenvolvimento da argumentação nesses discursos procurava mostrar a justeza da análise da Frelimo e também o apoio popular para a mesma. Era especificamente destinada a continuar a tradição de mobilização popular numa época nova, com um novo estilo de governar. Os líderes da Frelimo viam como um elemento

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central dessa mobilização a necessidade de transformar o que consideravam a inconsciente, mas regressiva, mentalidade de passividade e de aceitação das maneiras e costumes coloniais. Nos discursos não se poupou esforços para minar a base dessa fonte potencial de fraqueza política e estratégica, e assim promover o orgulho pela política e cultura moçambicana, como contrapeso eficaz às ideias insidiosas da superioridade colonial e racial dos colonos.27 A necessidade inadiável da construção de uma unidade nacional e funcional é um tema consistente, um fio que passa através da história da Frelimo desde a sua fundação, em 1962, e chega até o presente momento e, nessa perspectiva, muitas de suas decisões políticas se tornam compreensíveis. Por que a língua portuguesa como a língua nacional? A necessidade para a unidade. Por que um estado moçambicano unipartidário? A necessidade para a unidade. A Frente tinha sido fundada pela suposta amálgama de três movimentos nacionalistas anteriores, mas as facções e as divisões ideológicas persistiram.28 Samora Machel surgiu como o líder dominante durante a chamada “luta entre as duas linhas”, nos anos 1969 e 1970, mas o preço político para a Frente foi a perda de alguns membros, naturais das províncias centrais e associados com o politicamente marginalizado Uriah Simango, entre outros.29 A acusação articulada pelos seus opositores de que a Frelimo constituía sua

27 Agradecemos a J. P. Borges Coelho e Paulino Macaringue pelo seu apoio na elaboração das ideias nestes parágrafos. 28 Nunca havia um acordo formal entre os três movimentos, na altura da fundação da Frelimo em 1962. NILSSON, Anders. Peace in our time: towards a holistic understanding of world society conflicts. Gothenburg: Padrigu, 1999. p. 60. 29 Veja NCOMO, Barnabé Lucas. Uria Simango: um homem, uma causa. 2. ed. Maputo: Edições Nováfrica, 2004.

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infantaria com pessoas do norte e seu oficialato com provenientes do sul perseguiu-a, como uma sombra, as pegadas do partido durante muitos anos.30 Entretanto, os colonos da Beira, em 1974, mostraram uma clara hostilidade não só à Frelimo mas a todos os grupos políticos que eram percebidos como sendo nacionalistas, inclusive o Grupo Unido de Moçambique (GUMO).31 Samora Machel, entretanto, recebeu lá uma recepção delirante em junho de 1975, e parece certo que tais acusações eram, pelo menos para já, sem significado. Com certeza, isso era verdade em comparação com as perspectivas possibilitadas pelo fim do colonialismo – uma justificação em si para a ênfase que a Frelimo colocava na questão da unidade contra o opressor colonial. Não é bem claro quando ou como se tomou a decisão sobre a viagem. Quando o avião de Samora Machel aterrou no aeródromo de Mueda, na província de Cabo Delgado, no dia 24 de maio, o governo de transição dominado pela Frelimo acabara de completar um período de oito meses no poder. Porém, esse período era caracterizado por uma incerteza considerável sobre o futuro, pois os colonos da ultra-direita, com o apoio dos regimes brancos e minoritários da Rodésia do Sul e da África do Sul, tentavam pôr à prova a coragem e a capacidade da Frelimo em formar e manter um governo para o país.

30 Para uma argumentação mais detalhada dessa questão, particularmente no que diz respeito à aliança – politicamente estável da liderança da Frelimo com “jovens chefes militares originados de todas as províncias”. BRITO, Luís de. Le Frelimo et la constitution de l’état national au Mozambique: le sens de la référence au marxisme (19621983). 1991. Tese de Doutorado – Universidade de Paris VIII, Paris, 1991. p. 123-125. 31 MOTA LOPES, José; CATORZE, José; DAVID, Luís. Moçambique e o futuro: extremistas tentam alarmar a população branca. Tempo, Maputo, n. 192, p. 6-8, 19 maio 1974.

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Figura 5 – Marcelino dos Santos (esquerda), na altura vice-presidente da Frelimo, e no centro Samora Moisés Machel, em conversa com um grupo de crianças na província de Niassa, durante a Viagem triunfal Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

Do ponto de vista do público moçambicano, o próprio Samora Machel continuava em certa medida a ser uma figura remota e misteriosa, mesmo a partir do início do período do governo da transição. Nesses meses viajou continuamente, mas enquanto estava em Dar es Salaam pareceu exercer o controle à distância. De fato, no dia 29 de outubro de 1974, poucos dias após uma

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segunda série de agitações violentas em Lourenço Marques,32 e umas semanas após a sua tomada de posse como primeiro ministro, Joaquim Chissano viajou a Dar es Salaam para consultas com a comissão executiva da Frelimo. As conversas tinham como tema principal os problemas econômicos e políticos, caracterizados, então, como sendo “vastos”.33 É de sublinhar que Chissano voltou com uma mensagem de Samora Machel, logo bem divulgada, requerendo a unidade nacional. Não havia lugar para divisões “tribais” ou raciais, e “o povo” tinha que combater quaisquer agitadores que as tentassem criar. Samora Machel também exigiu muito trabalho, especialmente no setor da agricultura.34 Em dezembro de 1974, Samora Machel fez uma visita prolongada à República Democrática Alemã, Bulgária e Roménia, os três países socialistas que mais amplamente apoiaram a Frelimo durante os anos da luta armada. Em princípios de maio de 1975, ele começou um roteiro de despedida na Tanzânia, com a finalidade política de agradecer à população tanzaniana pelo apoio e sacrifícios durante os dez anos da guerra para a independência nacional. Esse roteiro abrangeu nove regiões, inclusive municípios como Tanga, Iringa, Dodoma, Mbeya, Arusha e Moshi, com comícios alegres e caracterizados pelo plantio de árvores, música de conjuntos militares, canções de coros escolares, e banquetes em hotéis da localidade. Todos os lugares visitados tinham um elo di32 Notícias, [Maputo], 21 out. 1980. Veja também documento sobre o conluio dos responsáveis político-militares do exército colonial com os organizadores dos actos criminosos de 7 de setembro e 21 de outubro de 1974. Tempo, Maputo, n. 323 p. 47-49, 12 dez. 1976. 33 A Capital, Lisboa, 31 out. 1974. 34 Tempo, Lourenço Marques, n. 215, 10 nov. 1974.

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reto com a Frelimo; ou educacional ou político, ou simplesmente resultado de um alto nível de mobilização para a luta. Segundo as reportagens contemporâneas, às vezes só com dificuldade Samora Machel conseguira esconder a sua emoção.35

Figura 6 – Samora Machel inspecionando uma guarda de honra em Mueda, 24 de Maio de 1975 Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

A importância das ligações emocionais entre a Frelimo e a Tanzânia, em vários níveis e especialmente nesse período, não deve ser subestimada. De certeza, a euforia entre amplas camadas do público urbano tanzaniano parece ter sido autêntica. Os alunos

35 Notícias, Lourenço Marques, 6 e 11 maio 1975.

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tanzanianos, por exemplo, eram politizados no processo de ensino de “siasa” (ou seja, educação cívica) nas escolas secundárias, a única disciplina utilizando kiswahili como língua de instrução, e que incluía a história das lutas de libertação na África austral. Todavia, existiam conflitos e desacordos entre os tanzanianos e a Frelimo sobre, por exemplo, o papel dos brancos, que eram grosso modo mascarados por ideologia e discurso. Ambos os países compartilhavam uma confiança forte e voluntariosa numa aproximação da dimensão social à política, no sentido que uma

Figura 7 – À frente, da esquerda para direita, Marcelino dos Santos, Samora Moisés Machel, Raimundo Pachinuapa; atrás, da esquerda para direita, Alberto Joaquim Chipande e Armando Guebuza Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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dinâmica política, culminando com êxito com a independência, necessariamente produziria benefícios sociais palpáveis. Samora Machel aproveitou o seu roteiro na Tanzânia para se pronunciar sobre algumas questões políticas sérias, que serviam para advertir, a quem estivesse prestando atenção, quais seriam as prováveis posições do governo da Frelimo que estava por chegar. No município de Lindi, em 8 de maio, por exemplo, salientou que Moçambique apoiaria ativamente a luta de libertação zimbabweana (Rodésia do Sul), e revelou que a Frelimo e o Commonwealth estavam na mesma altura a negociar retribuições para Moçambique, caso a ligação ferroviária rodesiana com o mar fosse cortada como retaliação.36 Nesse período, a Frelimo organizou duas reuniões no seu campo de formação militar em Nachingwea, na região de Lindi, extremo sul da Tanzânia. Na segunda reunião, em maio de 1975, cerca de 400 “agentes reaccionários e traidores contra o povo moçambicano” foram apresentados como presos a uma assistência composta de quadros, jornalistas e convidados de honra. O grupo de presos incluía figuras proeminentes como Joana Simeão, aprisionada ao voltar do Malawi, em 19 de outubro,37 Uriah Simango, Lázaro Nkavandame, Basílio Banda e Verónica Namiva. A natureza altamente cênica e encenada desses encontros, como acontecimentos políticos, impressionou fortemente as testemunhas contemporâneas: “Samora Machel ocupou o centro do palco durante sete horas seguidas como se fosse um protagonista principal de

36 Notícias, Lourenço Marques, 9 de maio 1975. 37 O Século, Lisboa, 22 out. 1974.

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uma peça de Shakespeare,” escreveu um jornalista simpatizante, dez anos mais tarde.38 Samora Machel também fez um roteiro na Zâmbia entre 12 e 15 de maio, a convite do presidente da República Kenneth Kaunda, com o objetivo principal de agradecer e de se despedir do povo zambiano, cujo país apoiara a Frelimo durante a luta armada.39 As visitas à Tanzânia e Zâmbia podem ser entendidas no contexto do surgimento da futura organização dos estados da Linha da Frente, uma aliança reconhecida formalmente pela primeira vez pela Organização da Unidade Africana em abril de 1975.40 O vice-presidente da Frelimo, Marcelino dos Santos, como Samora Machel, não assumiu nenhum papel no governo de transição, mas ocupou o seu tempo no fortalecimento das relações com os aliados tradicionais do movimento, e enfatizando a vontade da Frelimo de insistir em mudanças aos níveis nacional e regional. Um jornal contemporâneo descreveu Marcelino dos Santos como um homem “dinâmico e robusto”. É pouco provável que ele estivesse improvisando quando advertiu os governos rodesiano e sul-africano de que as coisas estavam mudando na África austral.41 Quiçá, escolhendo dirigir o seu comentário diretamente a Ian Smith (Primeiro-ministro da então Rodésia do Sul) e John Vorster (Primeiro-ministro sul-africano), prevendo que estes deviam enfrentar a realidade da situação na região e que “deixassem de

38 David Martin, The Herald, [Harare], 28 out. 1986. 39 Notícias, Lourenço Marques, 13 maio 1975. 40 THOMPSON, Carol B. Challenge to imperialism: the Frontline States in the liberation of Zimbabwe. Harare: Zimbabwe Publishing House, 1985. p. 16. 41 Star Weekly, Joanesburgo, 14 dez. 1974; A República, Lisboa, 11 dez. 1974.

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brincadeiras”, Santos estava a indicar intenções políticas sérias, quer para um público amplo, quer para um auditório restrito. Após a prolongada e emocional despedida na Tanzânia, Samora Machel finalmente chegou à Mueda no dia 24 de maio de 1975. Tentou animar a multidão com palavras de ordem da Frelimo, e, depois, segundo as fontes, disse na abertura de um discurso extremamente curto: “Parece que todos têm medo, mas já não há administradores aqui, não é verdade? Ontem, eram bombas inimigas que gritavam, hoje, é a nossa vitória”.42 Mueda tinha sido uma guarnição portuguesa. Durante os poucos dias a seguir, Samora Machel se encontrou num terreno político muito melhor conhecido, a conversar com multidões nas bases antigas da Frelimo em todo o extremo norte do país. Na altura em que chegou à Beira, tinha falado em mais de 25 reuniões, em outras bases da Frelimo nas antigas zonas libertadas, em capitais provinciais tais como Lichinga, Pemba, Nampula, Quelimane e Tete, e em determinadas vilas pequenas tais como Ibo, Angoche, Morrumbala e Wiriyamu. Agora estava a entrar na zona central do país, um território onde a infiltração da Frelimo encontrara uma contestação mais feroz do que nunca. Os portugueses aqui tinham apostado muito em contra-guerrilha, em programas de construção de aldeamentos, em acão psicológica anti-Frelimo e na “indigenização” do exército colonial. Teve que levar em conta também a presença de um núcleo forte de agricultores brancos na província de Manica, espalhados ao longo da linha ferroviária e da rodovia que partia da Beira em

42 Samora Machel, Discurso em Mueda (transcrição dactilografada, 24 de maio de 1975); ver também Notícias, Lourenço Marques, 25 maio 1975.

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direção à fronteira rodesiana. Entretanto, durante a luta armada, esses obstáculos não tinham conseguido impedir os sucessos recentes da Frelimo nas zonas rurais do centro do país. Contudo, Samora Machel estava prestes a entrar num ambiente urbano, cujas dimensões e complexidades apresentaram um desafio ainda mais grave aos objetivos sociais e políticos da Frelimo, e onde a sua estratégia mobilizadora seria seriamente posta à prova.

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Beira – Cidade estratégica de tensões explosivas

Quando chegámos à Beira, logo após a assinatura do Acordo de Lusaka, fomos recebidos pelos afilhados dos administradores, pelas comadres do Movimento Nacional Feminino, pelos membros da ANP, pelos agentes da PIDE. Aqui na Beira foram eles que receberam a Frelimo. Ofereceram carros, residências, organizaram festas e organizaram também a ‘boa moça’ para os comandantes da Frelimo. Tudo isto para estarem a bem com a Frelimo. Era preciso acomodar os comandantes, ‘coitados’, que viveram no mato, enchendo-os de convites, de jantares, bons carros, alojando-os nos melhores hotéis, levando-os às esplanadas. Foi assim que tomaram a direcção e preparam o terreno para conduzir o processo em Moçambique.43

Após a Segunda Guerra Mundial, e particularmente na década de 1960, a cidade portuária da Beira era uma pedra basilar nos planos portugueses para o desenvolvimento intensivo do centro 43 MACHEL, Samora. Comício presidencial na Beira: apagar as marcas de um tempo que morreu. Tempo, Maputo, n. 485, p. 18-27, 27 jan. 1980. p. 20.

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e norte de Moçambique. Tais planos proporcionaram a perspectiva de fortalecer a missão econômica e política portuguesa em Moçambique e países vizinhos, e seriam implementados através de projetos ambiciosos. A materialização desses projetos foi precedida por iniciativas de política externa portuguesa importantes para a valorização econômica do espaço moçambicano e para a defesa do colonialismo na África Austral como um todo. Por exemplo, em junho-agosto de 1967, o ministro dos negócios estrangeiros, Franco Nogueira, conduziu visitas oficiais à África do Sul e Malawi, nas quais se celebrava o ambiente de cooperação já existente entre os três países na base de segurança mútua e relações econômicas. Como o ministro Nogueira recordou nas suas memórias, o presidente Hastings Banda, do Malawi, mostrou-se entusiasmado pelas iniciativas portuguesas: Não esconde o presidente Banda os seus desejos de alargar a ligação com Portugal, e de trazer a esse caminho os demais Estados da área, em particular a Zâmbia, Madagascar, o Congo. Do lado português, é sugerido o lançamento de um organismo internacional para a zona, apolítico e sem ideologias, para a colaboração e entreajuda econômica e técnica; Banda abraça a ideia, e pede que Portugal tome sobre si a elaboração dos estatutos; ele, Banda, apresentá-los-á como seus aos demais chefes africanos. Banda tem a peito as relações bilaterais com Portugal: e pode dizer-se que se torna íntima a colaboração luso-malawiana... Poucas semanas mais tarde, o projeto de estatutos, elaborado em Lisboa, era entregue ao Dr. Banda.44

44 NOGUEIRA, Franco. Salazar. Porto: Livraria Civilização, 1977-1985. v. 6 – o último combate (1964-1970). p. 293; veja também NOGUEIRA, Franco. Diálogos interditos. Braga: Intervenção, 1979. v. 2. p. 207-225.

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Figura 8 – Mapa de Moçambique, com os nomes topográficos adotados pós-independência. Na altura da Viagem triunfal os nomes coloniais ainda estavam a ser utilizados, p.e. Xai-Xai era João Belo e Chimoio era ainda Vila Pery. O então distrito de Manica e Sofala foi divido após a independência em duas províncias: Manica e Sofala Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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Esta proposta, de uma espécie de constelação de estados alinhados na base de interesses comuns de economia e política, e liderada por Portugal, representava a culminação de alguns anos de diplomacia portuguesa e a manifestação mais explícita da sua estratégia regional para África Austral do período pós-Segunda Guerra.45 Na sequência dessas iniciativas regionais, os projetos econômicos começaram a ser implementados com maior intensidade. Sem dúvida, o maior desses empreendimentos foi a barragem de Cahora Bassa, no Rio Zambeze, concebida nos finais da década 1950 e nos inícios da década 1960 – em construção entre 1969 e 1974 –, e que envolveu recursos financeiros e técnicos regionais e internacionais; a energia produzida seria transmitida exclusivamente à África do Sul. O desenvolvimento do sistema ferro-portuário de Nacala também ocorreu nos finais da década de 1960, sendo ligado ao sistema malawiano em 1971. Paralelamente, intensificaram-se os esforços militares do exército português na tentativa de repelir o avanço da guerrilha da Frelimo no norte do país, culminando com a chamada operação “Nó Górdio”, em 1970. Como resultado dessas estratégias, a cidade da Beira veio a ser o centro principal das atividades militares e de contrainteligência, fundamentais para o desenvolvimento e defesa dos projetos coloniais já mencionados. Mais importante ainda, do ponto de vista da luta de libertação, isso significou que a Beira era o centro da força política e militar capaz de assegurar a continuidade da política de “autonomia progressiva”, enunciada por Marcelo Caetano em 1969, e promovida de forma limitada – mas bem simbólica – nas

45 Para mais detalhe, veja: HEDGES, David. Notes on Malawi-Mozambique relations, 1961-1987. Journal of Southern African Studies, [S.l.], v. 15, n. 4, p. 617-644, 1989.

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reformas econômicas e constitucionais de 1971-1972, que atribuíram o título “estado” a então “província” de Moçambique. Se bem que limitadas, tais reformas constituíram uma clara indicação das opções políticas e econômicas escolhidas pelo regime colonial, especialmente quando consideradas em conjunto com a “indigenização” do exército colonial em curso na época. Assim, levantou-se o espectro de uma guerra de libertação bastante mais ampla.46 Para além do seu significado estratégico, a libertação da Beira pela Frelimo, em 1975, criou problemas de caráter político, resultado do seu desenvolvimento econômico e social, e bem típico da vida quotidiana urbana na África austral colonial. Não obstante o seu rápido crescimento nas décadas de 1950 e 1960, a Beira era uma cidade ainda muito pequena, marcada por uma longa história de estratificação racial. Os últimos anos da década de 1890 e os primeiros da década de 1900 testemunharam o restabelecimento da presença portuguesa, a instalação da Companhia de Moçambique como administrador substituto e agência de desenvolvimento e o início da construção do porto e do caminho de ferro para a Rodésia do Sul, atividades acompanhadas pela fixação de migrantes estrangeiros. Para além dos portugueses e ingleses, entre os migrantes foram os chineses que se mostraram hábeis – e trabalhadores mais baratos que os outros – na construção do porto e caminho de ferro, bem como na indústria de açúcar do Zambeze,

46 DARCH, Colin; HEDGES, David. Não temos a possibilidade de herdar nada de Portugal: as raízes do exclusivismo e vanguardismo político em Moçambique, 1969-1977. In: VILLAS BOAS, Glaucia (Org.). Territórios da língua portuguesa: culturas, sociedades, políticas. Rio de Janeiro: IFCS, 1998. p. 135-149; para detalhe sobre o período de Caetano em Moçambique, veja o excelente estudo de SOUTO, Amélia. Caetano e o ocaso do ‘Império’: administração e guerra colonial em Moçambique durante o Marcelismo, 1968-1974. Porto: Afrontamento, 2007.

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para depois entrarem na produção de hortaliças e comércio geral. O número de migrantes chineses aumentou bastante nas décadas 1950-1960, chegando a cerca de 4.200 nos inícios da década 1970, mais do que na capital colonial Lourenço Marques, na altura.47 No seu discurso, Samora Machel identificou a comunidade chinesa como uma parte essencial da hierarquia étnica social que constituiu a herança colonial da cidade da Beira.

Figura 9 – Machel com Marcelino dos Santos (à esquerda) na Ilha do Ibo, no arquipélago das Quirimbas em Cabo Delgado, onde visitou o Forte de S. João Baptista, uma antiga prisão da Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) onde prisioneiros políticos foram torturados Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

47 MEDEIROS, Eduardo. Formação e desagregação das comunidades de origem chinesa nas cidades da Beira e Lourenço Marques In: SEMINÁRIO - MOÇAMBIQUE: NAVEGAÇÕES, COMÉRCIO E TÉCNICAS, 1996, Maputo. Actas... Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses, 1998. p. 297-314. p. 300-302.

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A discriminação racial evidenciou-se com especial rigor no comércio e no mercado de trabalho. Na luta para emprego, os sindicatos nacionais oficializados e a carteira profissional protegiam os lugares e altos salários para os brancos e do pequeno número de “equiparados”. Ao mesmo tempo, não obstante a abolição formal das leis discriminatórias no início da década de 1960, diversas formas de registro e documentação pessoal condicionavam a liberdade de movimento e de contrato da grande maioria da população até o fim do domínio colonial.48 Como diz Samora Machel no discurso, em Moçambique colonial, “tinham cores, as profissões. Os salários tinham cores, também”. Com efeito, pode-se argumentar que as barreiras raciais na Beira eram ainda mais rígidas que as de Lourenço Marques que, sendo uma cidade muito maior, com um número muito maior de empresas e instituições, dispunha de mais espaços para a assimilação de não brancos, se bem que de forma limitada. E na capital colonial, o Instituto Negrófilo continuou a funcionar como o canal principal para a assimilação política da pequena burguesia negra, embora sob uma liderança cautelosa e a supervisão estrita das autoridades. Na Beira, contudo, com os seus membros acusados de incitamento a protestos políticos abertos, o Núcleo Negrófilo foi encerrado em 1955,49 deixando com mais clareza a distância política e social produzida pelo regime colonial. 48 SCHAEDEL, Martin. Eingeborenen-Arbeit Formen der Ausbeutung unter der portugiesischen Kolonialherrschaft in Mosambik. Colônia: Pahl-Rugenstein Verlag, 1984. p. 300-302; CAPELA, José. O Imposto de Palhota e a introdução do modo de produção capitalista nas colônias: as ideias coloniais de Marcelo Caetano: legislação do trabalho nas colônias nos anos 60. Porto: Afrontamento, 1977. p. 259-271; HEDGES; ROCHA, 1999, p. 173-176. 49 HEDGES, David; CHILUNDO, Arlindo. A contestação da situação colonial, 19451961. In: HEDGES, David (Org.). História de Moçambique: volume 2: Moçambique no Auge do Colonialismo, 1930-1961. 2. ed. Maputo: Livraria Universitária, 1999.

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Por outro lado, a população negra dos caniços – bairros precários da periferia da Beira – aumentou de cerca de 34.000 para 91.000 entre 1960 e 1970. Em parte, esse crescimento poderia ter sido o resultado da diminuição de oportunidades de emprego para trabalhadores de Manica e Sofala na Rodésia do Sul, como também devido à instalação de algumas novas indústrias na Beira e Dondo. Mesmo assim, o investimento e desenvolvimento industrial na Beira foi de certa maneira condicionada pela diminuição do tráfico ferroviário e portuário provocada pela implementação, ainda que parcial, das sanções contra Rodésia do Sul, no fim da década 1960.50 Havia, portanto, um potencial intensificado para o conflito social acerca das diversas formas de participação e de discriminação na economia colonial, dado que o sistema colonial se encontrou cada vez mais questionado no decorrer da luta de libertação a partir do final da década de 1960. Tensões sociopolíticas na Beira chegaram a intensificar-se entre 1960 e 1974 devido a posicionamentos públicos divergentes sobre o caráter essencial do colonialismo português, os direitos políticos da população africana e a independência, matérias cada vez mais candentes no contexto do avanço da luta de libertação a partir de 1964. Em primeiro lugar, a igreja católica, sob a liderança do primeiro

p. 197-257. p. 205-206; JOSÉ, Alexandrino. Beira: lembranças da cidade colonial. Arquivo: boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo, n. 6 p. 181-200, 1989. Depoimento de Raúl Domingos Mucacho, p.190-193. 50 SCHAEDEL, 1984, p. 302; RITA-FERREIRA, António. Trabalho migratório de Moçambique para a Rodésia do Sul. História, [S.l.], n. 80, p. 42-49, 1985. p. 47. Dados comparados por Rita-Ferreira conduziu-lhe a concluir que o crescimento relativo na população africana da Beira era maior do que no capital colonial de Lourenço Marques – 131% contra 115% na década 1960-1970.

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Bispo da Beira, D. Soares de Resende (1943-1967), promoveu uma nova dinâmica e um novo espírito de missionação no centro do país: através, por exemplo, da introdução de pessoal missionário, quer português ou não, com mais interesse no bem-estar da população geral do que na reprodução do sistema racial colonial. O Bispo reforçou esse posicionamento ao nível da ideologia política, trazendo à baila, por mais de 20 anos, questões profundas sobre a estrutura socioeconômica colonial nas suas cartas pastorais e livros mas, especialmente, no jornal da Diocese Diário de Moçambique. Na década de 1960, essa análise convergiu, simultaneamente, com a maturação dos esforços da igreja na área de educação no centro do país – no espírito de renovação católica assinalada pelo Conselho Vaticano II (1962-1965) – e com o surgimento de uma consciência pastoral mais apropriada ao processo de descolonização.51 O processo de descolonização levou seguramente a uma marcada polarização de posições entre o Estado português e o Vaticano nos finais da década de 1960, intensificada pelo emblemático encontro, em Roma, entre dirigentes dos movimentos de libertação das colônias portuguesas na África, Amílcar Cabral, Marcelino dos Santos e Agostinho Neto, e o Papa Paulo VI, em 51 CAPELA, José. Para a história do Diário de Moçambique. Arquivo: boletim do Arquivo Histórico de Moçambique, Maputo, n. 6, p. 177-180, 1989; TAJÚ, Gulamo. D. Sebastião Soares de Resende, primeiro Bispo da Beira: notas para uma cronologia. Arquivo, n. 6, 1989, p. 149-75; CRUZ E SILVA, Teresa. Igrejas protestantes e consciência política no sul de Moçambique: o caso da Missão Suiça, 1930-1974. Maputo: Promédia, 2001. p. 210-212; FERREIR A, Luciano da Costa. Igreja ministerial em Moçambique: caminhos de hoje e de amanhã. Lisboa, 1987. p. 80-85; para mais informações sobre as congregações missionárias, veja MORIER-GENOUD, Eric. The Catholic Church, religious orders and the making of politics in colonial Mozambique: the case of the Diocese of Beira, 1940-1974. 2005. 384 f. Thesis (Doctoral) – State University of New York, Binghamton, 2005.

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1 de julho de 1970. Essas pressões desembocaram em episódios de confrontos entre a Igreja e o Estado, especificamente relacionados com a guerra anticolonial em Moçambique. Dessa forma, os padres brancos, mais conotados com a aproximação missionária à cultura africana, e um pilar fundamental do regime eclesiástico na Diocese da Beira, no tempo do Bispo Resende, chegaram a ser acusados pelo governo de favorecer relações com a Frelimo, e obrigados a retirar-se do país em abril de 1971. Nesse período, e nos anos a seguir, as tensões políticas e ideológicas também se evidenciaram em manifestações violentas contra a igreja por setores da sociedade colonialista na Beira.52 Uma segunda fonte de conflito na década de 1960 foi o agrupamento político-militar liderado por Jorge Jardim, empresário industrial residente na Beira e Dondo, cuja proeza em ações paramilitares em defesa do colonialismo português, e contato pessoal com Salazar e Caetano, lhe deram um estatuto político por vezes maior que o do Governo-Geral na colônia. Na medida em que a luta de libertação progredia, este centro paralelo de poder assumiu a liderança ideológica em defesa dos colonos no centro e norte de Moçambique, com cada vez mais acuidade. Isso evidenciou-se particularmente nas páginas do jornal Notícias da Beira, dirigido, efetivamente, por Jardim. Nesse processo, depois da morte do Bispo Resende, com a Igreja pressionada a indicar um prelado mais conservador para a sua sucessão, em 1969, Jardim conseguiu tomar conta do Diário de Moçambique com fundos atribuídos pelo

52 CRUZ E SILVA, 2001, p. 212-213; MORIER-GENOUD, 2005, p. 108-109, passim; ANTUNES, José Freire. Os americanos e Portugal, 1969-1974: Nixon e Caetano, promessas e abandono. Lisboa: Difusão Cultural, 1992. p. 230; COUTO, Fernando Amado. Moçambique 1974: o fim do império e o nascimento da nação. Maputo: Ndjira, 2011. p. 78-79.

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governo e inverter a sua linha editorial, integrando-o completamente no Notícias da Beira em 1971.53 A infiltração de guerrilheiros da Frelimo na província de Tete a partir de 1970-1971 – resposta estratégica à campanha portuguesa “Nó Górdio” – provocou uma rápida intensificação da guerra no centro do país, ameaçando o projeto de Cahora Bassa, já em construção no Zambeze, e facilitando a passagem de guerrilheiros zimbabweanos para o seu país. Com o fracasso das forças militares portuguesas em resistir à infiltração e ao estabelecimento da guerrilha, outros meios vieram a ser considerados pelo regime, e a política militar de “africanização” da tropa tomou novos contornos, reforçando ainda mais o papel semioficial de Jardim. A partir de 1972, formações militares do tipo “comandos”, os Grupos Especiais Paraquedistas, que frequentemente incorporavam colonos, e os Grupos Especiais, organizados em base étnica, foram criados. Essas formações, orientadas especificamente para estancar o avanço da Frelimo, foram treinadas em instalações geridas por Jardim no Dondo, e consideradas por políticos coloniais como um componente essencial para uma futura ordem política sob controle português. Ao mesmo tempo, e com a insistência dos serviços secretos rodesianos, a Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE) começou, finalmente, a organizar a sua tropa especial, os Flechas, composta por moçambicanos negros sob comando de oficiais brancos. Estima-se em 30.000 o número total

53 CAPELA, 1989, p. 180; TAJÚ, 1989, p. 170; ANTUNES, José Freire. Jorge Jardim: agente secreto. Lisboa: Bertrand, 1996. p. 94-95, 101-102, 284-285.

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de africanos a serviço nas diversas forças do regime colonial, concentrados principalmente no centro do país.54 Por vezes, Jardim tomou controle pessoal das operações de comandos contra a penetração da Frelimo nas províncias de Nampula e Zambézia. Também controlava a diplomacia paralela com o presidente Hastings Banda, do Malawi, para tentar impedir o uso estratégico desse país vizinho. Beira veio a ser, na prática, o quartel-geral para a coordenação político-militar – sob supervisão de Jardim – das fronteiras malawianas.55 No geral, pode-se concluir que, não obstante a sua incapacidade de impedir o avanço da guerrilha, essas forças, bem formadas e armadas, representaram uma ameaça considerável à futura implantação integral da Frelimo no centro do país. Entre 1971 e 1973, as forças da Frelimo conseguiram avançar na província central de Tete, não obstante os esforços portugueses para prevenir isso. Assim, nessas novas circunstâncias de fracasso colonial, em julho de 1973, Jardim avançou com meios de pressão diplomática através da presidência da Zâmbia – o chamado “Programa de Lusaka” –, que visava conversas com a Frelimo. O objetivo específico do plano era o de impedir o avanço da guerrilha mais para o sul e criar espaço para a construção de uma forma negociada de controle político e, na prática, independente

54 BORGES COELHO, João Paulo Constantino. Protected villages and communal villages in the Mozambican province of Tete, 1968-1982: a history of state resettlement policies, development and war. 1993. 460 f. Thesis (Doctoral) – University of Bradford, Bradford, 1993. p. 187-193; BORGES COELHO, João Paulo Constantino; MACARINGUE, Paulino. Da paz negativa à paz positiva: uma perspectiva histórica sobre o papel das Forças Armadas moçambicanas num contexto de segurança em transformação. Estudos Moçambicanos, [S.l.], n. 20, p. 41-90, 2002; SOUTO, 2007, p. 283-301. 55 ANTUNES,1996, p. 235-270; HEDGES, 1989.

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de Portugal.56 Rejeitado imediatamente pela Frelimo, esse plano atraiu muitos colonos com o seu evidente potencial para criar um estado dominado por uma elite racial branca à semelhança do regime minoritário rodesiano desde 1965. Nessa perspectiva, a africanização do exército colonial em Moçambique, já em curso, iria contribuir para a criação de uma estrutura militar moçambicana em vez de portuguesa. Na frente política, na linha adotada pelo ministro do Ultramar português, Rebelo de Sousa (1973-1974), a favor da criação de grupos políticos moçambicanos internos, manobras conduzidas por Jardim levaram ao estabelecimento na Beira, em janeiro de 1974, de um agrupamento anti-Frelimo, o Grupo Unido de Moçambique (GUMO), liderado por Máximo Dias e Joana Simeão, antigo membro do Comité Revolucionário de Moçambique (COREMO), organização concorrente e ultrapassada pelo sucesso da Frelimo em Tete.57 Tensões sociopolíticas produzidas pelo contexto de guerra tiveram expressão em manifestações agressivas a favor do regime colonial por elementos da população branca – orquestradas por Jardim. Por exemplo, em 1 de janeiro de 1972, os padres de Macuti – subúrbio “de cimento”58 da Beira – mostraram os seus anseios em

56 TAJÚ, Gulamo. ‘O projecto de engenheiro Jorge Jardim, 1971-1974,’ (Trabalho de Diploma, Licenciatura em História, Instituto Superior Pedagógico, Maputo, 1990), p. 33-41. 57 ANTUNES, 1996, p. 503-505; BORGES COELHO, 1993, cap. 7; para as posições de Rebelo de Sousa, veja SOUTO, Amélia. Moçambique no período da descolonização portuguesa (1973-1974): que descolonização? In: NASCIMENTO, Augusto; ROCHA, Aurélio; RODRIGUES, Eugénia (Org.). Moçambique: relações históricas regionais e com países da CPLP. Maputo: Alcance Editores, 2011. p. 183-226. p. 188-189. 58 Em Moçambique, sob o colonialismo, as cidades eram divididas racialmente e as áreas centrais e alguns bairros habitados por colonos brancos eram chamados de cidade de “cimento”, já as áreas suburbanas habitadas quase exclusivamente por

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prol da paz e justiça em Moçambique, referindo-se também ao massacre praticado pelas tropas coloniais em Mukumbura, Tete, em novembro de 1971. Recusaram o uso da bandeira portuguesa em cerimônias dentro da igreja. Condenados como “subversivos” pelo jornal Notícias da Beira, os padres foram objeto de diversos protestos e manifestações hostis partindo dos colonos antes da sua prisão e julgamento em tribunal militar. Quando finalmente foram absolvidos, em janeiro de 1973, as orquestradas manifestações atingiram um nível de agressividade que obrigaram os padres a se retirarem do país.59 Em janeiro de 1974, com a guerra no centro do país numa fase ainda mais crítica, novas manifestações públicas dos colonos tiveram lugar, desta feita contra a alegada inatividade e ineficiência dos oficiais portugueses aquartelados na Beira. Foi um confronto que mostrou a grande distância entre as expectativas dos colonos e as reais capacidades do exército para defender o regime em Moçambique, e que levou à elaboração de um dos documentos importantes sobre a viragem de filosofia no seio do exército português em relação à guerra.60

negros e mestiços eram designadas por “caniços”, nome do material mais comumente empregue em sua construção. 59 MORIER-GENOUD, 2005, p. 285-286; SAMPAIO, Joaquim Teles. Fúria na Beira. In: ANTUNES, José Freire (Org.). A guerra de África, 1961-1974. Lisboa: Círculo de Leitores, 1995. v. 2, p. 791-798; ANTUNES, 1996, p. 446-449, 452; COUTO, 2011, p. 82-88; SANTOS, João Afonso dos et al. O julgamento dos padres do Macúti. Porto: Afrontamento, 1973. 60 “Exposição contra os acontecimentos da Beira de Janeiro de 1974,” documento referenciado por FERREIRA, José Medeiros. O comportamento político dos Militares: forças armadas e regimes políticos em Portugal no século XX. Lisboa: Editorial Estampa, 1996. p. 306.

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Com efeito, a crise político-militar – para não falar da ideológica – na primeira metade de 1974 e a coesão do Movimento das Forças Armadas portuguesas (MFA) em torno de uma posição mais justa para com os movimentos nacionalistas africanos só podia incrementar as tensões na cidade da Beira. Após o golpe de estado de 25 de abril de 1974 em Portugal, o início das atividades políticas do GUMO na cidade, em 11-12 de maio, provocou a violência aberta dos colonos. O General Francisco da Costa Gomes, vice-presidente da Junta Nacional de Salvação, em visita oficial à Beira na altura, foi também vítima dessa agressividade. Como resultado dessa experiência do seu poder político local, e temendo o seu alastramento entre os colonos para um golpe independentista fora do controle do novo governo português, Costa Gomes insistiu que Jardim, em Lisboa nesse período, ficasse impedido de regressar a Moçambique.61 Nos seus discursos em Moçambique, em maio de 1974, Costa Gomes afirmou a política colonial do novo governo português. A Frelimo seria convidada a abandonar as armas, a tornar-se um partido político como outros que começaram a surgir após o 25 de abril, e a participar em debates antes de eleições “livres e justas” ou um referendo processo que se esperava conduzir à inclusão de Moçambique num agrupamento formal de estados a ser liderado por Portugal. Foi um discurso que intensificou suspeitas sobre as reais intenções dos generais portugueses, nomeadamente, que pretendiam implementar os métodos de divisão utilizados por Costa Gomes com algum sucesso em Angola no seu apoio da União Nacional para a Independência Total de Angola (UNITA)

61 ANTUNES, 1996, p. 556-558; COUTO, 2011, p. 265-266; FERREIRA, 1996, p. 306.

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contra o Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), entre 1970 e 1972; contudo, dessa vez a estratégia seria conduzida a nível político, com a Frelimo a concorrer contra partidos financiados por interesses coloniais e que tinham procurado impedir a guerra de libertação. Dessa forma, os generais pareciam querer desenvolver ainda mais a estratégia de Marcelo Caetano e Jorge Jardim. Pouca dúvida há de que o receio de tais manobras neocolonialistas, como também da dinâmica política da população branca, azedou o ambiente do período de transição (1974-1975) desde o seu início, contribuindo ao posicionamento de vanguarda da Frelimo, e ao desprezo para com os grupos divergentes, tão evidente na intervenção de Samora Machel.62 Com efeito, o novo contexto político após o golpe de estado em Portugal abriu espaço para a expressão sociopolítica de alguns profissionais até então simpatizantes clandestinos da Frelimo – como os Democratas de Moçambique. Destes últimos, existiu uma sólida representação na Beira, herdeira de uma tradição antifascista e antimetropolitana bem estabelecida, e que podia agora trabalhar em prol dos valores protagonizados pela Frelimo. A partir de junho, membros desse grupo vieram a dominar os meios de comunicação principais do país, incluindo o jornal de Jardim Notícias da Beira.63 Por outro lado, essa abertura permitiu

62 Francisco da Costa Gomes, Notícias, 5-8 e 11-13 maio 1974; MOTA LOPES; CATORZE; DAVID, 1974; MOTA LOPES, José. Spínola e a paz em Moçambique. Para quando a última palavra? Tempo, Maputo, n. 202, p. 14-15, 4 ago. 1974, p. 14-15. Pela sua gentileza em oferecer as informações sobre Costa Gomes, agradecemos a Amélia Souto. Para as outras referências, agradecemos a Emídio Machiana. Para uma visão analítica mais completa sobre as questões principais da transição em 1973-4, veja SOUTO, 2011. 63 Sobre os Democratas, veja COUTO, 2011, p. 326-333; MOÇAMBIQUE e o futuro: que pretendem os grupos políticos minoritários? Tempo, Maputo, n. 193, p. 8-10, 2 jun. 1974. p. 8-9; MOTA LOPES; CATORZE; DAVID, 1974, p. 4.

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Figura 10 – O momento da chegada no aeroporto da Beira, na tarde do dia 13 de junho de 1975 Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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uma evolução significativa de outras entidades políticas, incluindo o Grupo Unido de Moçambique (GUMO) e o COREMO e, posteriormente, o Partido de Coligação Nacional, inaugurado na Beira em agosto de 1974 e liderado por Uriah Simango.64 Por volta dos meados de julho de 1974, o MFA, em Moçambique, avançou rapidamente para uma posição favorável ao fim da guerra, com a recomendação aos seus chefes em Lisboa para “o reconhecimento imediato da Frelimo como legítimo representante do povo moçambicano e do direito desse povo à independência”.65 Os militares portugueses mostraram assim a sua relutância em continuar a combater em Moçambique, enquanto o MFA em Lisboa se preparava a abrir conversas diretas com a Frelimo sobre a transição e independência, minando a posição dos generais mais velhos. As negociações entre Portugal e a Frelimo chegaram à sua fase final nos Acordos de Lusaka, de 7 de setembro de 1974; a partir dessa data, a luta política para o controle do centro do aparelho do Estado na capital colonial, Lourenço Marques, tornou-se mais premente. Aqui, a resistência de colonos à instalação do governo de transição liderado pela Frelimo provocou diversos conflitos violentos, contudo, o apoio generalizado para a Frelimo e a coesão militar do MFA, na ausência de apoio material aos colonos portugueses a partir da vizinha África do Sul, levaram à neutralização dos sonhos colonialistas. Por um lado, o apoio político gozado pela Frelimo e a coesão do MFA coincidiram com uma détente entre Vorster e Kenneth Kaunda (presidente da Zâmbia), o que limitou a sustentação da causa dos colonos portugueses pela 64 COUTO, 2011, p. 353. 65 FERREIRA, José Medeiros. Portugal em transe (1974-1985). Lisboa: Editorial Estampa, 1994. (História de Portugal, v. 8). p. 66.

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vizinha África do Sul. Em contrapartida, Jardim, já radicado ora na Suazilândia e ora em Joanesburgo, perdeu qualquer perspectiva de recuperar seu papel protagonista. Não obstante, a resistência dos colonos à tomada de posse do governo de transição, em 29 de setembro de 1974, liderado pela Frelimo e integrando membros nomeados pelo governo português, provocou conflitos violentos em Lourenço Marques, com o custo de muitas vidas em setembro e outubro.66 No contexto das tensões elevadas, provocadas pela perspectiva de um processo de descolonização imediata confrontada por colonos em defesa emocional e agressiva do regime social existente, o governo de transição, que tomou posse em 20 de setembro de 1974, conseguiu demonstrar uma estabilidade política relativa entre outubro de 1974 e junho de 1975. Esse sucesso deveu-se principalmente ao acordo político entre a Frelimo, o MFA e a nova administração portuguesa sobre a composição e instalação do governo de transição, e à abertura que permitia à Frelimo funcionar como organização política, já fora da clandestinidade. Mesmo assim, o período de transição significou a eventual prisão de dissidentes da Frelimo, como Uriah Simango e Joana Simeão – cuja participação nos acontecimentos de setembro de 1974 parecia confirmar a sua colaboração ativa com o colonialismo –, apresentados aos militantes da Frelimo e à imprensa em Nachingwea (ver acima). Além disso, a instalação do governo de transição, como confirmando o ritmo de uma descolonização política que atingisse a estrutura socioeconômica existente, in66 COUTO, 2011, p. 422-443 e 450-452; HARVEY, A. D. Counter-coup in Lourenço Marques, September 1974. International Journal of African Historical Studies, Boston, v. 39, n. 3, p. 487-498, 2006.

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tensificou a saída de colonos, membros da PIDE e outros para a Rodésia do Sul e África do Sul. Particularmente na Rodésia, confrontada pela crise de segurança provocada pela perda do seu aliado português, a receptividade entre as forças de segurança para qualquer reforço contra a guerra de libertação da Zimbabwe African National Liberation Army (ZANLA) e da Frelimo alimentou a infiltração em Moçambique de grupos de guerrilheiros antigovernamentais, já iniciada em junho de 1974. Samora Machel menciona essa atividade na primeira parte do seu discurso, como um aviso da possível reação de um colonialismo regional já parcialmente derrubado, mas ainda não vencido.67 Na ausência de uma história de atividade partidária, ou de qualquer meio para a resolução dos conflitos políticos durante a transição para a independência, a questão fundamental da transformação do sistema econômico e social sustentado pelo regime colonial ficou parcialmente subjacente. Com efeito, o discurso de Samora Machel na Beira, no dia 14 de junho de 1975, com o seu ataque frontal a esse sistema, aos privilégios que suportava e às suas nefastas consequências para a maioria da população, focalizou de novo as atenções sobre as difíceis tarefas à frente. Implicou, claramente, que a sua transformação não seria muito fácil, particularmente para os até então privilegiados. A multidão no comício, em grande parte negra, que esperava encontrar pela pri-

67 Sobre a saída de colonos veja RITA-FERREIRA, António. Moçambique post-25 de Abril: causas do êxodo da população de origem europeia e asiática. In: SEMANA DE CULTURA AFRICANA - MOÇAMBIQUE: CULTURA E HISTÓRIA DE UM PAÍS, 5., 1988, Coimbra. Actas... Coimbra: Universidade de Coimbra, Instituto de Antropologia, 1988. p. 121-169. O êxodo incluiu também uma boa parte da comunidade chinesa que rumou para destinos como São Paulo, Curitiba, Nova Iorque, Toronto e Portugal. MEDEIROS, 1998, p. 311-312.

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meira vez o presidente do movimento nacionalista já vitorioso, sem dúvida compartilhava a euforia desse momento de derrubada da ordem colonial, cuja natureza constituiu a mensagem central do discurso. É notável que a audiência recebeu com grande satisfação o ataque violento de Samora Machel contra a estrutura social existente.68 Esse ataque verbal funcionava coerciva e persuasivamente num processo de enquadramento da assistência, cujas reações perante a explicação dos objetivos políticos da Frelimo de certeza teriam sido divergentes, como já provamos. Agora avançamos para um exame da política linguística da Frelimo, com ênfase especial para a língua portuguesa como elemento unificador num país às vésperas da independência, tal como Moçambique. Depois tentamos uma abordagem analítica do caráter retórico específico da intervenção, visto como uma ação política direta, e não de um mero conjunto de dispositivos verbais.

68 Para uma visão sintética dos problemas da transformação política e econômica nos anos a seguir, veja CHRISTIE, Iain. Samora: uma biografia. Maputo: Ndjira, 1996. p. 232-238.

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A língua portuguesa e a política de enriquecimento

Quanto aos discursos pronunciados por diversas personalidades... foi difícil recordar com precisão rigorosa os que eu mesmo ouvi ou os que me foram transmitidos por várias fontes. Tais discursos, portanto, são reproduzidos com as palavras que, no meu entendimento, os diferentes oradores deveriam ter usado, considerando os respectivos assuntos e os sentimentos mais pertinentes à ocasião em que foram pronunciados.69

A preocupação da Frelimo para com a unidade nacional conduziu a uma consciência forte sobre o significado e implicações políticas na escolha da língua portuguesa como o idioma da luta. Neste estudo, defendemos que Samora Moisés Machel e a Frelimo transmitiram uma série de mensagens políticas através de uma semiótica revolucionária (de sinais e símbolos ligados ao discurso 69 TUCÍDIDES. História da guerra do Peloponeso. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001. p. 14.

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e à escrita) que inclui diversos elementos. Exemplificativo destes eram os locais escolhidos para os comícios, reuniões e manifestações, o modo como a população era chamada a assistir, o seu verdadeiro conteúdo, os argumentos utilizados nas intervenções, sem esquecer a utilização específica de variedades e registros da língua portuguesa apropriada para a divulgação do seu conteúdo político. Uma tal semiótica teria sido inteiramente consistente com o que sabemos do desejo da Frelimo de, em 1975, revolucionar e transformar rapidamente a sociedade moçambicana. Ao utilizar esse argumento, estamos obrigados a nos inclinar para uma visão funcionalista do idioma, considerando que este é um projeto discursivo localizado no contexto social, em vez de um sistema formal autônomo. A razão mais óbvia para isso é que parte do nosso objetivo é compreender a força e o sentido do discurso do Samora Machel, tendo em vista as circunstâncias históricas ao longo do tempo.70 Assim, podemos ver os mecanismos retóricos que descrevemos como as convenções argumentativas de alto nível, que, concretamente, podem ser bem específicas a Portugal e/ou a Moçambique. A nossa breve análise narrativa do discurso pretende, portanto, mostrar a utilidade de análise retórica na interpretação da dinâmica política deste primeiro encontro entre o líder da Frelimo e a população da Beira. O estudo de retórica como especialidade é essencialmente interdisciplinar, e a análise do discurso político do passado, ou do presente, requer uma compreensão tanto da história quanto da 70 Pode-se fazer uma distinção entre dois tipos de sentido: “a significação (frequentemente descrita como o sentido ‘prosaico’ ou exterior) e a força (‘ilocacional’) [...] a significação pode ser descrita através de uma representação semântica numa língua ou notação formal. A força será representada como um conjunto de implicaturas”. LEECH, Geoffrey. Principles of pragmatics. Londres: Longman, 1983. Tradução nossa.

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política.71 A análise pragmática da fala e linguagem política tem uma longa (mas largamente desconhecida) tradição, que se pode traçar até ao trabalho pioneiro do cientista político norte-americano Lasswell.72 Desde então, especialmente a partir de 1980, estudiosos interessados nesse tema têm trabalhado em diversas disciplinas, utilizando várias metodologias de pesquisa e abordando funções de ordem linguística a partir de perspectivas diferenciadas.73 A fragmentação disciplinar como do resultado das pesquisas parece ser um problema ainda por resolver.74 Isso é especialmente verdade ao nível teórico, no qual é difícil descobrir coerência nos trabalhos. Por um lado, a análise do discurso tem atraído a atenção das maiores figuras do pós-modernismo, nos estudos sociais e literários, por outro, o estudo de como se constrói a significação em situações concretas é a preocupação 71 Veja, p. e., WILSON, 1990; FELDMAN, Ofer; DE LANDTSHEER, Christ’l (Ed.). Politically speaking: a worldwide examination of language used in the public sphere. Westport: Praeger, 1998; DE LANDTSHEER, Christ’l; FELDMAN, Ofer (Ed.). Beyond public speech and symbols: explorations in the rhetoric of politicians and the media. Westport: Praeger, 2000. 72 As ideias de Harold D. Lasswell (1902-1978) sobre a análise de linguagem política se desenvolveram principalmente quando trabalhava na Divisão Experimental para o Estudo da Comunicação nos Tempos da Guerra (Experimental Division for the Study of Wartime Communication) durante a Segunda Guerra Mundial. Lasswell era um estudioso multidisciplinar, cujos livros e artigos – inclusive o livro pioneiro Propaganda technique in the World War editado muito mais cedo em 1927 – eram influentes no seu tempo. 73 Para um exemplo do alvorecer da comparação entre uma transcrição e um texto redigido, veja CARR, E. H. Editorial changes in Stalin’s speech of 9 July 1928. Soviet Studies, Abingdon, v. 16, n. 3, p. 339-340, jan. 1965. Carr acreditou que as alterações estilísticas identificadas tinham como objetivo “o reforço do argumento” e que outras modificações substantivas foram motivadas por razões abertamente políticas. Ibid. 74 Para um resumo do campo contemporâneo, veja DE LANDTSHEER, Christ’l. Introduction to the study of political discourse. In: FELDMAN, Ofer; DE LANDTSHEER, Christ’l (Ed.). Politically speaking: a worldwide examination of language used in the public sphere. Westport: Praeger, 1998. p. 1-16.

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principal do ramo da linguística conhecido como pragmática. De fato, o termo “retórico”, tanto como atividade quanto como disciplina mantém-se escorregadio e de difícil definição.75 O problema de fundo continua a ser, portanto, a natureza da relação entre poder e linguagem e, nesse ambiente complicado, o pensador francês “engagé” Pierre Bourdieu (1930-2002) tem exercido uma influência enorme. Bourdieu argumentou que um “idioma legítimo” é aquilo que as pessoas associam no seu pensamento com o poder e a autoridade. Uma vez que, normalmente, um tal idioma é ativamente ensinado no sistema educacional, e é objeto de planejamento e política governamental, torna-se, na terminologia de Bourdieu, uma espécie de “capital simbólico” no mercado integrado da linguagem. Membros da classe dirigente têm maior acesso do que outras pessoas, através de educação, pronúncia, e assim por diante.76 Nesse contexto, pode-se argumentar que a apropriação pela Frelimo da língua portuguesa como a língua veicular moçambicana – quer dizer, “utilizar a língua do inimigo para derrotar o inimigo” – era em si “um ato de significação maior, cheio de potencialidades subversivas”. O domínio de um “bom português” (quer 75 Citamos o comentário de Spivak “Vejo a retórica na mesma maneira que vejo outras palavras-mestres importantes na tradição do nominalismo pós-estrutural. Foucault disse […] que para pensar poder, é necessário virar nominalista; poder é uma denominação emprestada a uma rede complexa de relacionamentos. No trabalho de Paul de Man […] a retórica é o nome para o resíduo de ‘indeterminante’ que tem escapado do sistema […] nos trabalhos de Derrida não há nenhum uso concertado ou organizado da palavra retórica […]”. SIPIORA, Phillip; ATWILL, Janet. Rhetoric and cultural explanation: a discussion with Gayatri Chakravorty Spivak. Journal of Advanced Composition, Tampa, Fla., v. 10, n. 2, 1990. Disponível em: <http://jac.gsu. edu/jac/10.2/Articles/5.htm>. Acesso em: 13 jul. 2004. 76 Para a melhor aplicação do pensamento de Bourdieu ao contexto moçambicano, veja STROUD, 2002.

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dizer, da variedade europeia) funcionava como meio para conferir autoridade aos grupos sociais tais como os assimilados, que tinham também de conseguir emprego à moda europeia. Qualquer alteração substantiva da política linguística foi vista, porém, como uma ameaça verdadeira à posição social e à autoridade deles.77 Entretanto, as relações hierárquicas de poder não são as únicas determinantes na escolha de idioma ou no desenvolvimento da política linguística. É possível, e não necessáriamente contraditório, entender a adoção pragmática de uma variedade demótica da língua portuguesa pela Frelimo como uma tática para estabelecer “meios de comunicação horizontais” entre um povo em luta, comprometido com uma prática política igualitária. A língua portuguesa na sua variedade europeia, contrariamente, era uma forma de “comunicação vertical”, sendo a variedade da dominação e da opressão colonial.78 Mesmo assim, uma intervenção num comício público em língua portuguesa, pelo presidente da Frelimo, não poderia ter funcionado, como meio de comunicação social, numa maneira totalmente fora da problemática. Além das questões políticas, havia óbvias barreiras linguísticas, dado que a competência no idioma português dos ouvintes moçambicanos variava da fácil compreensão para alguns que a tinham como língua materna, até a ignorância quase completa por parte de muitos. As barreiras eram difíceis de superar e podiam ter influenciado Sa-

77 STROUD, 1999, p. 347. 78 Mateus Katupha insiste neste ponto, sem uma exploração aprofundada. KATUPHA, Mateus. Language and problems of technical and cultural development in Latin Africa: the Mozambican case. In: SABOUR, M’hammed (Ed.). African perspectives in development: voices from the South. Joensuu: Joensuu University Press, 1994 p. 57.

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mora Machel a simplificar tanto o seu uso da língua como os seus argumentos histórico-políticos. O contraste feito por alguns estudiosos entre um hipotético português europeu normalizado (PE) e uma igualmente hipotética variedade chamada de “português moçambicano” (ou PM), frequentemente falada como uma segunda ou até, nas zonas urbanas, terceira língua, e marcada por vários “erros” típicos, é uma distinção ao mesmo tempo altamente normativa e demasiada generalizante.79 Uma realidade de maior sutileza pode ser e está sendo desvendada, na qual aspectos tais como idade, gênero, educação, contexto social, contato linguístico e até as políticas linguísticas governamentais desempenham os seus papéis. Os falantes moçambicanos, vistos como um grupo, constituem um quadro especialmente complexo, resultante da diversidade das línguas de origem bantu que falam como línguas maternas, a ampla variação nos seus níveis de educação, a estratificação social e as assimetrias regionais.80 Assim, o PM apresenta um conjunto de registros, variando entre os altamente influenciados pelos usos locais, até um PE muito próximo à norma.81 É “um ‘espaço complexo de variedades’ num contínuo processo de fluxo, adaptação, e mudança causados por

79 LOPES, Armando Jorge. Política linguistica: princípios e problemas. Maputo: Livraria Universitária, Universidade Eduardo Mondlane, 1997. p. 43-44. 80 RIBEIRO, Fátima. A vertente moçambicana da língua portuguesa: português de Moçambique ou português em Moçambique. In: GALANO, Ana Maria et al. (Org.). Língua mar: criações e confrontos em português. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1996. p. 41-46. p. 42. 81 STROUD, Christopher. O corpus: antecedentes, quadro teórico e aspirações práticas. In: STROUD, Christopher; GONÇALVES, Perpétua (Org.). Panorama do português oral de Maputo. Maputo: Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação, 1997. v. 1, p. 11-45. p. 20-25.

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muitos fatores sociais em interação”.82 Na verdade, descrever o português moçambicano como “uma variedade em formação” não é inteiramente desarrazoado.83

Figura 11 – Presidente Samora acenando para o povo no aeroporto da Beira no momento da sua chegada às 16h00 na sexta-feira, dia 13 de junho de 1975 Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

82 STROUD, 1997, p. 26; Domingo, Maputo, 18 maio 1986. 83 GONÇALVES, Perpétua. Português de Moçambique: uma variedade em formação. Maputo: Universidade Eduardo Mondlane, 1996.

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Se a Frelimo alguma vez tivesse tido, na década de 1970, uma intenção séria, como questão de política, de privilegiar um PM ainda a ser codificado, sobre a norma representada pelo PE, é um problema que tem recebido alguma atenção transitória dos estudiosos.84 Caso isso tivesse ocorrido, a escolha por Samora Machel de um registro do PM para pronunciar esta intervenção adquiria um significado maior. De fato, existem dados dispersos e largamente circunstanciais sugerindo que a Frelimo pretendia, na segunda metade da década 1970, experimentar a possibilidade de desenvolver o português demótico das vilas e cidades moçambicanas num novo idioma veicular da unidade nacional, com as suas próprias características gramaticais, lexicais e sintáticas. Com a data de independência nacional cada vez mais próxima, e com a liderança da Frelimo preocupada com a unidade nacional e política, a escolha geral da língua portuguesa, uma língua neutra e já codificada, foi inteiramente lógica, e surgiu tanto do seu uso pelo poder colonial como também pelo movimento de libertação.85 Qual a variedade do português era mais apropriada? Essa era a questão. Na altura, ouvia-se bastante “retórica revolucionária 84 Stroud, por exemplo, argumenta que os debates acerca da política linguística nos meados da década de 1970 se concentraram na “criação e o reconhecimento institucional de um conceito legítimo do português moçambicano para reflectir as identidades culturais, socialistas e nacionais do estado recentemente independente”. STROUD, 1999, p. 349. 85 Grégorio Firmino salienta: “quando Moçambique se tornou independente em 1975, o Português foi adoptado como língua oficial e como símbolo da unidade nacional. A definição destes papéis para o Português foi um resultado natural [...] já tinha assumido esses papéis, tanto no Moçambique colonial [...] como na Frelimo [...]”. FIRMINO, Grégorio. A questão linguística na África pós-colonial: o caso do português e das línguas autóctones em Moçambique. Maputo: Promédia, 2002. p. 273. Veja também uma reedição da mesma obra, editada pelos Texto Editores, Maputo, 2005.

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em redor do português”.86 O próprio Samora Machel, aparentemente, tinha uma opinião negativa no que diz respeito à capacidade expressiva do idioma em comparação com, por exemplo, o espanhol. Ao mesmo tempo, acreditava que o uso da língua pelos moçambicanos era mais eficaz do que pelos portugueses (ou, evidentemente, pelos brasileiros). Numa conversa com estudantes moçambicanos em Cuba, em agosto de 1980, afirmou que: A língua portuguesa é fraca, não aquece com a mesma força. Só as ex-colônias, libertando-se, estão a modificar a língua, em particular Moçambique e Angola. Estamos a enriquecer a língua portuguesa [...] O português não deixava o aluno ter uma visão clara e global da vida. Ainda hoje lutamos contra essa herança [...] Se vocês concluírem o ensino secundário e, posteriormente, o ensino superior passarão a pensar também em espanhol e não só em português. E isso é uma coisa boa.87

É facil perceber que uma tal abordagem podia alarmar aqueles que tinham um forte investimento cultural no PE normativo: não só já não era vista como a língua de autoridade, mas também já não era possível pensar claramente nele. Samora Machel voltou ao assunto uns meses depois, numa conversa abertamente cordial com um jornalista português simpatizante:

86 STROUD, 1999, p. 344. Argumenta também num outro texto que “logo após a Independência, o governo revolucionário procurou aumentar a sua legitimidade popular pelo apelo às formas vernáculas ou demóticas do português, numa retórica de mobilização popular e de autoridade”. STROUD, 2002, p. 254. 87 Notícias, Maputo, 31 ago. 1980, p. 3.

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[n]ós falamos aqui o melhor português. E porque? Um português claro, porque tem ideias claras, porque tem conteúdo claro e tem objectivos claros. A língua só enriquece assim... é por isso que dizemos que falamos melhor português, aqui. E gostamos muito, vamos cultivá-lo [Samora Machel ri com gosto].88

Porém, comentando essas observações na altura, o escritor Mia Couto argumentou, cuidadosamente, que as regras para um PM africanizado não podiam ser elaboradas “num escritório”, mas, pelo contrário, deviam aparecer de formas imprevistas, como parte de um processo prolongado. Defendeu que Samora Machel estava simplesmente apontando a ligação entre “o pensamento livre e uma linguagem libertadora”.89 De modo igualmente ambíguo, José Luís Cabaço, então Ministro da Informação, reivindicou que: “dentro de poucos anos, uma forma de português será falado em Moçambique, isto é um português moçambicano com características próprias, as nossas [...] Será um português nascido da participação do nosso povo no processo de reconstrução nacional.”90

88 MACHEL, Samora. Doa a quem doer nós somos moçambicanos Expresso, [Lisboa], 24 dez. 1980. Seção Revista. p. 3-R. Veja também a reedição moçambicana da entrevista na revista Tempo, Maputo, n. 536, 18 jan. 1981. p. 21. 89 COUTO, Mia. Ainda o problema da língua: submissão cultural? Tempo, Maputo, n. 536, p. 11, 18 jan. 1981. 90 Retraduzido de uma citação em inglês no texto de STROUD, 1999, p. 350. Para reportagens do debate no 1º. Seminário Nacional sobre o Ensino da Língua Portuguesa, em Outubro de 1979, veja: 1º. SEMINÁRIO da Língua Portuguesa: realidade cultural moçambicana impõe nova dinâmica ao português, Tempo, Maputo, n. 470 p. 3, 14 out. 1979. p. 3; REFLEXÃO sobre o ensino do português: 1º. Seminário de Língua Portuguesa terminou em Maputo, Tempo, Maputo, n. 471, p. 12-13, 21 out. 1979.

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Figura 12 – Presidente Samora Machel aceitando honras militares no momento da chegada em Nampula, na tarde do dia 1 de junho. As reportagens contemporâneas estimaram que cerca de 100.000 pessoas estavam na assistência, inclusive o Bispo de Nampula Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

Tais argumentos tiveram duas características em comum: uma espécie de voluntarismo perante a política linguística, de mãos dadas, com a ideia que a virtude política iria, de uma maneira ou outra, “enriquecer” e assim criar um PM viável.91 A ideia chave 91 Miguel Buendía Goméz comenta sem ironia que nesta altura havia “uma forte tendência para entender que, para se operar qualquer tipo de mudança, bastaria um

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de “enriquecimento” como uma característica determinante do processo linguístico em Moçambique tinha uma aceitação generalizada nos finais da década de 1970, talvez influenciada por algumas experiências da então União Soviética.92 O próprio Samora Machel, em ambas as ocasiões citadas acima, reivindicou que os moçambicanos já estavam a enriquecer o léxico português: o linguista português Óscar Lopes afirmou coisas semelhantes num texto publicado no final de 1979.93 Certamente, alguns escritores moçambicanos tinham experimentado (e continuam a experimentar) novas formas de representar a fala moçambicana. Como Stroud mostrou, a importância dos contos de Luís Bernardo Honwana, entre outros, encontrou-se no fato que as suas personagens falam um verdadeiro português moçambicano “sem revisão ou modificação [...] repleto de erros de simplificação e transferência”. Assim, o autor desafiou a situação de então pelo simples ato de uma representação, que legitimou a fala moçambicana. A fala “marginal e errada” pelos padrões normativos do colono

trabalho de mobilização, conscientização, isto é, tudo era resultado da palavra e da vontade”. GOMÉZ, Miguel Buendía. Educação moçambicana: história de um processo, 1962-1984. Maputo: Livraria Universitária UEM, 1999. p. 343. 92 Stroud denomina isso como “o processo técnico mais fundamental na reconstrução imaginativa de português”. STROUD, 1999, p. 351. 93 BAPTISTA, José; SÁ, José. Ensino do português e desenvolvimento de línguas nacionais: entrevista com o linguista português Óscar Lopes, Tempo, Maputo, n. 472, p. 32-39, 28 out. 1979. p. 32-33. Dois trabalhos mais recentes tentaram uma avaliação do contributo léxico do PM; veja: MENDES, Irene. O léxico no português de Moçambique: aspectos neológicos e terminológicos. Maputo: Promédia, 2000; LOPES, Armando Jorge; SITOE, Salvador Júlio; NHAMUENDE, Paulino José. Moçambicanismos: para um léxico de usos do português moçambicano. Maputo: Livraria Universitária, 2002.

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português torna-se assim aceitável como modo de discurso, na articulação de uma “política de identidade em transição”.94 Pode ser o caso que, em 1975, práticas diferentes da língua portuguesa em Moçambique tivessem já começado a concorrer pela supremacia política, como argumenta Stroud, estando a Frelimo a tentar “fomentar a sua legitimidade política pelo apelo às formas vernaculares ou não-normalizadas da língua portuguesa, numa retórica de mobilização política e autoridade”.95 A Frelimo, porém, tinha outros e mais urgentes problemas a resolver, e apesar do fato da política linguística ser discutida na conferência sobre a mídia ocorrida em 1975, e noutra sobre educação em 1979, pelo ínicio da década de 1980, o PE tem sido efetivamente restabelecido como a padrão-norma do país.96 Em 1975, a população da Beira – e por isso, quase de certeza, a assistência no comício – era linguisticamente tal como socialmente heterogênea. Teria abrangido membros de uma classe média empregada de mestiços, colonos brancos e assimilados negros, todos com competência no PE, mas alguns dos quais possivelmente falavam qualquer coisa parecida ao hipotético PM. Na assistência, também havia, de certeza, membros de uma classe 94 Stroud cita tambem, como escritores interessados em experimentar com o léxico e a estrutura de gramática, Sérgio Vieira, Mia Couto e Ungulani Ba Ka Khosa. STROUD, 1999, p. 347-352. 95 STROUD, 2002, p. 255. 96 Por exemplo, o 1º. Seminário Nacional sobre o Ensino da Língua Portuguesa, Maputo, Outubro de 1979, já mencionada. Na conferência da Rádio Moçambique aos 2630 de novembro de 1975 sob a tutela do Departamento de Informação e Propaganda (DIP), argumentou-se a favor do uso de um PM normalizado, conquanto a maioria dos ouvintes não tinham como entender facilmente o PE. veja Frelimo. Conferência Nacional do Departamento de Informação e Propaganda: resoluções. Maputo, 1975. p. 60-61. Uma preocupação com as “formas populares” dominava o encontro, segundo STROUD, 1999, p. 35.

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trabalhadora negra, empregados e especializados, falantes de Cindau ou Cisena como língua materna. Estes provavelmente compreendiam um PM falado ao nível elementar. Finalmente, os negros da classe subordinada – os desempregados e os subempregados – percebiam tanto o Cindau como o Cisena e dependiam da qualidade da interpretação simultânea num texto paralelo, em tais ocasiões. Igualdade do código da fala – por outras palavras, utilizando a ordem preferida do discurso daqueles que o orador procura persuadir ou compelir – é uma estratégia fundamental para distinguir íntimos de estranhos, conhecidos de desconhecidos. A linguagem, “especialmente uma ‘linguagem-de-grupo’ é a melhor marca daqueles que a ele pertencem: nada que alguém possa dizer (e querer) tem um aspecto mais convincente do que o toque familiar de como é dito.”97 Mas a sociedade moçambicana é poliglota, uma sociedade em que o português é a segunda ou terceira língua para a maioria da população. Escolher falar português para os fins de discurso político tem um efeito semelhante à sua escolha para a língua de instrução nas escolas.98 Tomando uma posição extremista, pode-se 97 SORNIG, Karl. Some remarks on linguistic strategies of persuasion. In: WODAK, Ruth (Ed.). Language, power and ideology: studies in political discourse. Amsterdã: John Benjamins, 1989. p. 95-125. Tradução nossa. 98 Segundo o censo de 1980, na altura menos de 2% da população falava português como língua materna, e somente 24,4% falava português. FIRMINO, 2002, p. 82. Segundo o censo de 1997, o número de falantes como língua materna subiu para menos que 7%, enquanto o total de falantes atingiu um pouco menos que 40%. Claro que nesses números encontram-se escondidas diferenciações agudas pelo gênero, pela classe, e entre zonas rurais e urbanas. Mesmo o 7% pode ter sido considerado demasiado alto nos finais de 1990: alguns estudiosos acreditam que uma estimativa mais realista podia ter sido 3%. LOPES, 2001. Veja o MOÇAMBIQUE. II Recenseamento Geral da População e Habitação. Indicadores Socio-Demográficos, Maputo, 1997.

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defender que as consequências inevitáveis e involuntárias do ato de privilegiar a língua portuguesa pela Frelimo acabaram por causar uma limitação de acesso para a grande maioria da população e, sob esse ponto de vista, a política e a educação tornaram-se terreno de uma camada privilegiada e restrita.99 Claro que a Frelimo deu os passos necessários para tentar evitar esse perigo, como já temos argumentado nesta análise.

Figura 13 – Samora Machel em conversa animada com alguns enfermeiros num local desconhecido durante a viagem triunfal, acompanhado por jornalistas nacionais Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

Disponível em: <http://www.ine.gov.mz/censo2/00/brochura/00linguas.htm>. Acesso em: 29 jun. 2004. seção 9, Línguas, quadros 9.1 e 9.4. É evidente que o conceito de “língua materna” mantém-se problemático no contexto de hibridização linguística nas zonas urbanas, o que era antigamente denominado de “alternação de códigos”. 99 MYERS-SCOTTON, Carol. Elite closure as a powerful language strategy. International Journal of the Sociology of Language, Berlin, v. 103, p. 149-163, 1993.

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A escolha por Samora Machel do português para pronunciar as suas intervenções públicas era guiada pela política da Frelimo de usar o idioma para construir a unidade nacional, mas correu assim o risco de ter o resultado objetivo e inesperado de reforçar a distinção entre as camadas da sociedade. Resolveu esse dilema, quer consciente ou inconscientemente, pela adaptação da ordem de discurso às circunstâncias, utilizando a variedade de PM – meio este de comunicação horizontal – mais acessível à maioria dos ouvintes seus, e no qual o próprio Samora Machel era competente. Ao mesmo tempo, convidou implicitamente a assistência a se conluiar tanto na escolha como no processo. A redação subsequente desse texto, tal como outros, era muito mais do que uma simples adaptação do protocolo de transcrição chamado em inglês smooth verbatim (literal-alisado); podia ter sido um ato transformativo para os meios de comunicação social, dado que os leitores dos jornais, tal como os dos livros, esperavam encontrar um PE normativo num texto impresso. Assim, Samora Machel fala no PM, e a publicação sai no PE. Parece que os dados confirmam a hipótese. Em todo o discurso, Samora utiliza locuções e frases curtas repetitivas e em padrões, uma gramática simplificada e um léxico limitado. Num texto de 5.720 ocorrências lexicais, o seu vocabulário consiste meramente em 1.264 palavras-tipos. Esse total inclui separadamente cada uma das formas elididas e inflectidas dos verbos, artigos definitivos etc., uma análise dos itens lexicais podia reduzir o número de ocorrências ainda mais. O texto, com os nossos sinais de pontuação, consiste em 799 frases com um comprimento médio de um pouco mais que sete palavras. O modo subjuntivo do verbo, utilizado normativamente em locuções subordinativas concessivas no PE, para se referir aos

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acontecimentos hipotéticos ou aos eventos que nunca, de fato, sucederam, quase não aparece. O uso de formas indicativas nas construções onde, no PE, a forma normativa seria do modo conjuntivo tem começado a ser reconhecido como uma característica da variedade moçambicana do idioma.100 É interessante notar que as palavras marcadoras mais comuns para iniciar frases no modo conjuntivo, nomeadamente “talvez” e “embora”, não se apresentam no texto. Aliás, o discurso político de Samora Machel está longe de ser uma simples soma de peremptoriedades, nem trata a realidade moçambicana de maneira grosseira e superficial. A prática didática de Samora Machel em relação à assistência é revelada pela frequência da recorrência de determinadas palavras e locuções. Por exemplo, o vocábulo significativo mais frequentemente utilizado é a palavra “povo”, com 82 ocorrências no singular e no plural. Por outro lado, ainda mais evidente é a preocupação do orador em confirmar e verificar que ele, de fato, articula as opiniões próprias de todos. Assim, as locuções “Ouviram?” (59 vezes), “É ou não é?” (mais que 50 vezes), e variações tais como “Compreendem?” funcionam para estabelecer uma base de concordância entre o orador e a audiência. Aprofundamos o nosso argumento em relação a essas questões no capítulo a seguir.

100 Na sua pesquisa sobre a variedade moçambicana de português, levada a cabo em 1993, Perpétua Gonçalves referiu que “A maioria dos ‘erros’ classificados como ‘modo verbal’ (mais de 80%) refere-se aos casos de uso do modo indicativo em frases em que, segundo a norma europeia, é requerido o modo conjuntivo”. GONÇALVES, Perpétua. Tipologia de erros do português oral de Maputo: um primeiro diagnóstico. In: STROUD, Christopher; GONÇALVES, Perpétua (Org.). Panorama do português oral de Maputo. Maputo: Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação, 1997. v. 2, p. 37-70. p. 63.

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Samora Machel e a prática de retórica: uma política de persuasão ou de coerção?

[É] uma ideia bastante ingênua pensar que a eficiência política é diminuída pela retórica pública (exatamente o oposto acontece) e é uma ideia ainda mais ingênua pensar que as intervenções são feitas para serem lidas depois que todo mundo se acalmou, em vez de serem ouvidas no calor e paixão de um momento específico, por um público específico, e avaliados neste contexto.101

A antiga arte da retórica102 tem sido tradicionalmente vista como o uso de oratória para exercer influência por meio de persuasão, quer dizer, por convencer os ouvintes da justeza de um

101 SALAZAR, Philippe-Joseph. An African Athens: rhetoric and the shaping of democracy in South Africa. Mahwah: Lawrence Erlbaum, 2002. p. 50. Grifo e tradução nossas. 102 Reconhecemos que à medida que os estudos culturais e a teoria pós-moderna têm se apropriado do tema e da terminologia da retórica foi aprofundada a nossa compreensão da sua importância social e política. Ao mesmo tempo, estamos conscientes de nossa própria imperícia nesta disciplina.

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argumento.103 No entanto, os estudos mais recentes sugerem que a persuasão não é tudo. Embora seja um lugar-comum que a retórica abraça “todos os meios disponíveis de influenciar o comportamento humano e... alguns destes são persuasivos e outros não”, também é verdade que a “retórica [...] tanto pode ser persuasiva ou coerciva”.104 Analistas modernos de retórica reconhecem a “relação íntima e obrigatória entre persuasão e coerção” tal como o fato de que algum elemento deste último pode ser necessário para atingir objetivos retóricos.105 Também é verdade que um ponto de vista convencional, e geralmente aceito, caracteriza a retórica política como um epifenômeno, o que significa que é essencialmente uma manifestação de outros tipos de relacionamentos de poder mais “reais”.106 No entanto, nossa análise do discurso da Frelimo como um movimento de libertação à beira da vitória, no momento de acesso ao poder, revela o funcionamento de uma retórica significativamente diferente, que deve ser considerada central e não marginal ao processo político. Acreditamos que a intervenção de Samora Machel

103 Entre várias histórias gerais de retórica em inglês, veja RICHARDS, Jennifer. Rhetoric. London: Routledge, 2008; da bibliografia portuguesa, veja CASTRO, Aníbal Pinto de. Retórica e teorização literária em Portugal do humanismo ao neoclassicismo. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 2008. 104 ANDREWS, James R. Confrontation at Colombia: a case study in coercive rhetoric. Quarterly Journal of Speech, Champaign, v. 55, n. 1, p. 9-16, 1969. p. 10. 105 ANDREWS, James R. The rhetoric of coercion and persuasion: the reform bill of 1832, Quarterly Journal of Speech, Champaign, v. 56, n. 2, p. 187-195, 1970. p. 187. 106 KREBS, Ronald R.; JACKSON, Patrick Thaddeus. Twisting tongues and twisting arms: the power of political rhetoric. European Journal of International Relations, London, v. 13, n. 1, p. 35-66, 2007. p. 37. É essa perspectiva que leva, em tempos modernos, a tais expressões de desprezo como “mera retórica”, ou “poupe-me da retórica”.

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na cidade da Beira mostra sinais significativos de ser retoricamente coercitiva, assim como persuasiva. Ao falar na Beira, Samora Machel estava envolvido no que foi chamado de um “concurso de enquadramento”,107 o que quer dizer que ele estava a tentar mudar os pressupostos básicos dos ouvintes sobre a sociedade moçambicana em direção a uma política de independência e transformação socialista, e longe das políticas do colonialismo e da luta contra o mesmo. A tarefa imediata de Samora Machel era: [...] através de um enquadramento hábil, deixar os [seus] adversários sem acesso aos materiais retóricos necessários para construir uma refutação socialmente sustentável. A coerção retórica ocorre quando essa estratégia for bem-sucedida: quando os adversários do requerente tenham sido encurralados pela fala, compelidos a endossar uma postura que teriam rejeitado em outras circunstâncias.108

Em apoio a essa ideia, parece provável que pelo menos alguns “assimilados” que estavam presentes na multidão consideraram desagradável e pouco convincente a seção da intervenção de Samora Machel que tratava do papel de assimilados em geral. No entanto, no novo quadro político, não houve uma resposta sustentável, quer no momento ou mais tarde (por exemplo, durante as reuniões em 1983 com os chamados ‘comprometidos’).109

107 KREBS; JACKSON, 2007, p. 44. 108 Ibid., p. 36. 109 A retórica pode ser “fundamental para o sucesso em concorrências políticos”, mesmo quando os adversários continuam não convencidos, ou seja, quando eles “não internalizaram os valores promovidos”. Ibid., p. 36.

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Krebs e Jackson acrescentam que, em geral, o conceito de retórica como: [...] persuasão é teórica e metodologicamente problemático... o papel da retórica pode ser mais utilmente concebido no contexto de coerção... estudiosos [deviam] evitar a concentração em questões irrespondíveis sobre os motivos dos actores e... examinar em vez disso as próprias palavras que os actores falam, nos seus contextos, e em frente de quais assistências.110

Neste capítulo, pretendemos analisar não só os “cinco elementos” da retórica – o orador, a intervenção, a assistência, a situação e o resultado – bem como algumas das sete técnicas: a própria oratória, o vocabulário e o registro, o humor, e o relacionamento de Samora Machel com o seu público. A sobrevivência da gravação implica que o tom e a inflexão podem ser analisados por futuros estudiosos; além da cópia no Arquivo Histórico de Moçambique, essa mesma encontra-se acessível aos interessados na internet. Samora Machel esforçou-se bastante no sentido de construir uma narrativa que por um lado relata, nesse caso, a história da luta armada, e por outro explica o caráter do inimigo.111 A função dessa narrativa era principalmente mobilizar apoio, e, ainda mais, a aceitação das ideias e políticas dele e da Frelimo como futuros detentores legítimos do poder do Estado. Para ser eficaz, uma tal narrativa deve possuir quer coerência (fazer sentido), quer fidelidade (ressoar com a experiência e os valores dos ouvin-

110 KREBS; JACKSON, 2007, p. 36. 111 Na teoria retórica, usa-se a terminologia “to recount” e “to account”.

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tes).112 Na sua intervenção, Samora Machel verifica a coerência e a fidelidade periodicamente, convidando a assistência a afirmar o seu consentimento à narrativa apresentada. Pelo menos uma vez, a resposta mostrou que a assistência não conseguiu entender o seu argumento de perto. Porém, as qualidades de coerência e fidelidade possuem um caráter essencialmente político. Quer dizer, a narrativa deve fazer sentido e deve ressoar, ainda que não seja necessário que apresente uma relação histórica integralmente fiel ou refinada do passado, caso isso venha a interferir na sua função retórica. Oradores políticos costumam usar uma variedade de estratégias e técnicas diferentes, e não é difícil procurar exemplos na intervenção da Beira. Samora Machel emprega frequentemente artifícios retóricos simples e explícitos para convidar (ou seja, obrigar) os seus ouvintes a concordar com uma premissa particular, oferecida para apreciação, antes de utilizar a mesma como fundação para a construção de mais um argumento. Exemplos de tais dispositivos argumentativos incluem apóstrofos tais como os já mencionados: • É ou não é? • Ouviram? • Certo?

112 Para a elaboração desses conceitos, veja FISHER, W. R. Human communication as narration: towards a philosophy of reason, value and action. Columbia: University of South Carolina Press, 1987.

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Em alguns casos, uma dessas frases é repetida até três vezes, como se fosse um crescendo musical. Uma vez que a assistência tenha respondido positivamente a esse convite retórico de Samora Machel, ele tinha o necessário para fazer com que as suas declarações posteriores pudessem parecer como parte integral de uma perspectiva global e acordada com o público, independentemente do seu grau de relevância lógica. O que tem sido chamado de afirmações “não mitigadas”, sem qualquer argumento ou prova em apoio, “está entre as formas mais diretas e, por consequência, mais brutais de manipular perspectivas e atitudes dos interlocutores.”113 Samora Machel usava esse tipo de afirmação de vez em quando durante a sua intervenção, embora mais frequentemente as afirmações fossem de fato seguidas por algum tipo de argumentação. Em outras palavras, a mitigação segue a afirmação, como mostram os dois exemplos a seguir: • Falar da Beira é falar do crime; • … Frelimo, legítimo representante do povo moçambicano.

Uma variação desta técnica “assertiva” era de exigir que os ouvintes repetissem determinadas frases formais em voz alta. Tipicamente, os líderes da Frelimo, tais como os líderes de outros movimentos de libertação e partidos políticos africanos – por exemplo, o MPLA de Angola, o African National Congress (ANC) da África do Sul e Zimbabwe African National Union (ZANU) no Zimbábue – usavam e continuam a usar o artifício de palavras de ordem repetidas, quer no início, quer no final de comícios e reuniões. Essas pa-

113 SORNIG, 1989, p. 99.

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lavras de ordem utilizam um tipo de condicionamento linguístico para conseguir o seu impacto emocional e aparentemente irracional. Funcionam porque têm sido repetidamente utilizadas antes,

Figura 14 – Nas zonas setentrionais do país, Samora Machel discursou várias vezes nas antigas zonas libertadas, inclusive nas bases militares estabelecidas pela Frelimo nos tempos da Luta de Libertação Nacional Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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em situações que tinham ou adquiriram um significado social e político comum para os ouvintes. Evidentemente, essa prática é também comum numa grande variedade de organizações políticas em todo o mundo, quando querem se dirigir às multidões, não sendo o fenômeno exclusivo dos líderes africanos. Assim, qualquer longa série de variações do tipo “Viva a Frelimo!” ou “Viva o Povo moçambicano unido do Rovuma ao Maputo!” evoca uma resposta estereotipada da assistência de “Viva!”, muitas vezes repetida até três vezes. Numa outra variação, o orador grita “Independência ou morte!”, e os participantes devem saber que a resposta apropriada é “Venceremos!”. Uma troca de palavra de ordem e resposta como essa funciona em níveis diversos. Ao conhecer e utilizar a resposta correta, os ouvintes podiam mostrar publicamente que “pertenciam” a um grupo que não precisava que tudo lhes fosse elaborado explicitamente, isto é, pertenciam ao grupo dos “moçambicanos patriotas”. Além disso, as trocas funcionaram como dispositivos disciplinares e reforçaram apoio para a linha partidária adotada e denunciaram inimigos políticos. Em períodos anteriores da luta armada, a familiaridade popular com as consequências potencialmente violentas de uma falta de participação servia para enfatizar o caráter coercivo de tais interações. No entanto, se os indivíduos numa determinada assistência fossem majoritariamente membros ou simpatizantes do partido, então o uso dessa técnica é significativamente menos manipuladora e excluidora do que seria num comício dirigido à população moçambicana em geral. Mesmo assim, esse tipo de afirmação constitui um comportamento comunicativo bastante presunçoso e manipulativo, na medida em que é baseado, aparentemente,

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na ideia que as pessoas poderiam ser mais propensas a aceitar proposições pronunciadas em voz alta, mesmo que isso não fosse inteiramente a sua própria vontade. O uso de apelidos, a xingação e até o insulto, tudo pode ser denominado a “menor unidade de um comportamento comunicativo agressivo”.114 A eficácia dos apelidos encontra-se situada no fato que eles, quer depreciativos, quer carinhosos, são normalmente impermeáveis tanto à argumentação lógica como à prova e à refutação. São, consequentemente, difíceis de afastar. Logo no início da intervenção, Samora Machel efetivamente se apropria de um apelido pejorativo, quando ele orgulhosamente apresenta Marcelino dos Santos e Gideon Ndobe como “turras”, uma palavra abreviada da insultuosa “terrorista”, termo geralmente utilizado no exército colonial para denominar os guerrilheiros da Frelimo. De vez em quando, Samora Machel, na intervenção, esforça-se para manter um padrão estrófico, tal como, por exemplo, quando fala da exploração dos empregados domésticos pelos portugueses no tempo colonial. Mantém o conceito-chave, o dos “empregados” em si, no início de uma série de frases: • Empregados que não recebiam dinheiro; • Empregados que depois de seis meses eram encarcerados porque roubaram! • Empregados que depois de doze meses eram expulsos para evitar o pagamento.

114 SORNIG, 1989, p. 100.

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Também usava a elisão repetitiva frequentemente, num padrão de reiteração parcial de frases, às vezes sem verbos, às vezes consistindo apenas de um verbo. Sornig salienta que as “declarações que suposta e aparentemente não necessitam ser na forma de um texto completo, dotam a uma elocução uma espécie de validade e aceitabilidade generalizadas”.115 É exatamente o efeito da técnica neste caso, por exemplo, na seção da intervenção importante e eficaz que descreve “o pretinho assimilado”, com o diminutivo altamente derrogatório. É pouco provável que se trata de todos os assimilados: o extrato só faz sentido entendido como uma sátira sobre os que têm adotado de forma servil o comportamento do colonizador na vida social e política. No contexto da

Figura 15 – Samora Machel, confiando na sua segurança pessoal, no meio de uma multidão de pessoas durante a Viagem Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

115 SORNIG, 1989, p. 102.

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cidade da Beira e do seu significado político para a Frelimo, este teria sido imediatamente compreendido pela maioria da assistência aí presente. Referindo-se à língua portuguesa no seu “sociolecto assimilado”, Samora Machel continua: • Já sabe dizer uma frase completa. Imitando. Não pensa. Imitando. Imita. Imita. Não sai da cabeça. Imita. Certos hábitos, imita. Imita até o pensamento. Imita até a pronúncia...

Os ouvintes foram assim obrigados a completar o pensamento por trás da expressão repetida para conseguir identificar as formas específicas em que tais assimilados “imitam” o comportamento dos colonos, e pelo próprio processo de descodificação o raciocínio de Samora Machel veem a identificar-se com e aceitar do seu significado político e social. Numa outra seção da intervenção, Samora Machel se refere à multiplicidade de partidos políticos que surgiram na Beira logo que as condições políticas foram suficientemente seguras após o golpe de 25 de abril. Estes foram considerados pela Frelimo como ilegítimos por não terem participado na luta armada de libertação nacional, e, de fato, alguns representaram os interesses coloniais aberta e oportunisticamente. Samora Machel apelida-lhes de organizações meramente fantoches: • ... quero chamar a atenção a esses fantoches. A esses fantoches. Títeres. Títeres. Títeres, são títeres.

A capacidade de descodificar essas afirmações gramaticamente incompletas no contexto de um conhecimento de política pública da Frelimo, em geral, pode ser vista como um marcador da “moçambicanidade” autêntica do ouvinte. Ao participar no

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ato de decodificação, ao completar mentalmente o pensamento do orador, o ouvinte se identifica com a elocução numa série de maneiras diferenciadas, das quais o “conteúdo proposicional” não é a menos importante. Em outras ocasiões – por exemplo, na sua caracterização literal e político-metafórica da cidade da Beira como centro de corrupção e de crime – Samora Machel usa frases sem verbos, que adquiriram aceitação dado que os ouvintes sabem descodificá-las sem necessidade de serem gramaticalmente completas: • Na Beira – violação de mulheres, banditismo. O centro do banditismo, aqui.

Pelo menos teoricamente, a própria imprecisão dessas afirmações significa que poderiam ser facilmente mal interpretadas, mas também indicam que o orador é totalmente confiante que isso não acontecerá. Assim o ouvinte, ocupado com o acabamento da elocução, encontra-se enleado em conluio com a intenção do falante. O uso de artifícios acústicos tais como rima, aliteração e assonância ou para reforçar a credibilidade de um argumento, ou até mesmo para disfarçar diferenças entre conceitos para que os ouvintes aceitem um “pacote” de ideias sem crítica é um expediente retórico antigo, e é reconhecido como tal também nas línguas africanas. O uso de aliteração pelo presidente da Frelimo é bastante sutil, de modo que é perceptível, mas não exagerado: • Dominados, discriminados, desprezados; • Bandidos e bandoleiros;

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• Agrediam, assassinavam, massacravam, matavam, violavam; • Contradições profundas, contradições antagônicas, insolúveis, irredutíveis.

Na última das frases citadas, é claro que Samora Machel se referia explicitamente à terminologia marxista – uma contradição antagônica e de caráter estrutural e por isso irresolúvel –, um conceito provavelmente desconhecido como tal por muitos dos presentes. A repetição de “contradições”, entretanto, seguida pela aliteração de “insolúveis” e “irredutíveis” serve para reforçar a ideia fundamental de uma “contradição antagônica”, sem Samora Machel ter que interromper o fluxo de sua intervenção para explicar, numa espécie de nota de rodapé discursiva, o que ele estava de fato salientando. A língua portuguesa tem formas de tratamento bastante explícitas na sua indicação das relações de poder. Emprega, no contexto moçambicano, uma variedade de formas, incluindo as mais formais da terceira pessoa como “o senhor” ou “a senhora” (os chamados pronomes de tratamento), as intermediárias e neutrais, como “você”, e o mais familiar “tu”. O que é notável, porém, não é tanto como Samora Machel se dirige aos seus ouvintes, mas sim que ele se dirige diretamente aos mesmos. Ao falar para a multidão sem subterfúgios – perguntando-lhe coletivamente sobre a sua experiência social – consegue fazê-la tornar-se conivente com um argumento sobre o qual tem pouco ou nenhum controle real, como mostram os dois exemplos seguintes: • Se nós tivermos muita comida, a vida será barata ou será cara?

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• Como é que [os vossos filhos] apareciam nas fileiras portuguesas?

Samora Machel explora também a ambiguidade implícita no pronome “nós” nos seus vários sentidos, desde talvez o plural majestático efectivamente “eu” através do inclusivo “eu” mais “vocês” para convidar ao conluio, e mesmo, às vezes, até um uso inteiramente exclusivo “a colectividade da Frelimo”: • Nós somos moçambicanos, e temos orgulho de sermos moçambicanos (uso inclusivo); • Não, nós não somos inferiores (uso inclusivo); • Nós combatemos com armas na mão e vencemos o colonialismo (uso exclusivo); • Nós fizemos a guerra sem o dinheiro (uso exclusivo).

Samora Machel deixa, conscientemente, as significações específicas destes pronomes ambíguas, não as explicitando através de elocuções tais como “nós os moçambicanos” ou “nós da Frelimo”. Assim, convida mais uma vez a conivência dos seus ouvintes, que implicitamente se tornam aderentes da luta, aderentes do movimento político. A deflação ou a inflação do conteúdo referencial pode ser atingida por vários meios. Uma perspectiva política fundamental da Frelimo sobre a realidade, como partido ainda em processo de se tornar marxista, era resumida na sua palavra de ordem mais conhecida, “a luta continua”, ou seja, não é apenas que a guerra não

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acabou, é que nunca mais acabará. A realidade seria um estado permanente de luta; as lutas estariam sempre presentes tais como as contradições de classe, a história não terminaria, as coisas continuariam mudando dialeticamente, mas continuando. Na Beira, Samora Machel afirma estar realmente longe do fechamento de qualquer coisa, exceto de uma fase da luta, enquanto prepara os moçambicanos para as dificuldades que os esperam. A luta deve continuar exatamente porque as características péssimas do colonialismo – que as pessoas talvez pudessem pensar que iria acabar com a Independência – se entrincheiram cada vez mais fortes no presente, não obstante a derrota formal dos portugueses.

Figura 16 – Machel falando com militantes da Frelimo na Base Beira durante a Viagem triunfal. A base era localizada no distrito de Nangade, perto da povoação de Mecuaba Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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Assim, o enfoque da perspectiva histórica – e, mais importante ainda, a perspectiva política – se transforma do passado recente a um presente real e permanente. Dado que a igualdade entre os registros de fala não era a realidade dominante na Beira, é bem razoável que Samora Machel mostra pouca confiança na capacidade dos seus ouvintes de decodificar a ironia. Embora fizesse algum uso da mesma, é claro que falar a uma assistência tão mista em termos de cultura e língua era uma tática arriscada. A possibilidade de ser entendido literalmente estava sempre presente, e, de fato, às vezes, consegue fazer “tropeçar” a plateia. Por exemplo, seguindo temporariamente a lógica racista portuguesa, sugere ironicamente que a raça superior, ou seja, os brancos, perdeu a guerra de Independência. Quando em resposta à frase confirmatória “é ou não é?” e para seu espanto evidente, o público responde “erradamente”, então começa a corrigir e admoestar: • Mas já caiu o colonialismo. Não é verdade? [É!] Porque é que caiu, se é raça superior? O colonialismo era representado por uma raça branca. Porque é que caiu, então? Prova de que o povo é mais forte do que qualquer outra força. Ouviram? [Ouviram!]116 Derrubamos o colonialismo português aqui. Não é? Então, foi derrotado o colonialismo português por uma raça inferior! É ou não é? [É!] Não somos inferiores, não. Derrotamos porque somos iguais a eles. Ouviram?

116 Gonçalves afirma que no registo do PM, é comum “o uso da 3ª pessoa… em contextos em que o verbo deve estar flexionado na 1ª pessoa...”. GONÇALVES, 1997, p. 61. Seja qual for a explicação certa, obedecemos ao princípio de fidelidade ao ato de fala e reproduzimos a resposta do público assim como ouvida.

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• Não, nós não somos inferiores. Não devem pensar assim. Não devem pensar assim.

Às vezes, Samora Machel, como qualquer moçambicano, usava palavras incomuns, lexemas desconhecidos em PE. É pouco provável que procurava assim criar um efeito retórico de choque usando essas novidades, na medida em que a fala moçambicana na língua portuguesa é classificada como uma variedade verdadeira por alguns peritos de sociolinguística, em parte e precisamente por causa dos seus neologismos, ou seja, “moçambicanismos”.117 Além disso, a contribuição hipotética desses ao chamado “enriquecimento” do português já foi analisada no capítulo anterior. No entanto, encontram-se poucos exemplos de neologismos na intervenção da Beira, sendo “turra” talvez o único. É possível que em outras intervenções, Samora Machel, ao falar ele próprio uma língua adquirida, estivesse a tatear em busca da palavra certa, ou outra hipótese, que um determinado neologismo fosse geralmente entendido na fala moçambicana da época.

117 P. E., no jornal Domingo, Maputo, 26 fev. 1984. Veja também MENDES, 2000; LOPES; SITOE; NHAMUENDE, 2002.

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A transcrição da intervenção na Beira, 14 de junho de 1975

O texto é editado na íntegra, aqui, pela primeira vez.118 Viva a Frelimo! Viva o povo unido do Rovuma ao Maputo! Viva o povo moçambicano unido do Rovuma ao Maputo! Viva a luta armada de libertação nacional! Viva o povo unido do Rovuma ao Maputo! Viva a luta armada de libertação nacional! Viva a luta justa dos povos oprimidos! Viva a revolução moçambicana! Viva a luta armada de libertação nacional! Viva a Frelimo que une e organiza o povo! Viva a emancipação da mulher moçambicana! Viva os continuadores da revolução moçambicana! Viva os continuadores da libertação nacional! Abaixo o colonialismo português! Abaixo a discriminação racial! Abaixo a opressão! Abaixo a opressão co-

118 Samora Machel tinha chegado na Beira a partir de Chimoio, na parte da tarde, saindo do aeroporto para a sede da Frelimo em Macúti (“Samora Machel na Beira” Notícias, Lourenço Marques, 14 de Junho de 1975; “Samora homenageou vítimas da repressão”, Notícias, Lourenço Marques, 15 de Junho de 1975). Dois extratos do discurso, significativamente corrigidos, foram editados no livro de Reis e Muiuane (Datas e documentos da história da Frelimo, 1975, p. 426-427), no qual a data de 15 de junho é erradamente atribuída ao comício.

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lonialista! Abaixo a dominação estrangeira! Abaixo a dominação do homem pelo homem! Abaixo a exploração do homem pelo homem! A luta continua! Independência ou morte! Obrigado. Cheguem-se para perto para nos podermos conversar melhor! Queria apresentar aqui o camarada vice-presidente da Frelimo, camarada Marcelino dos Santos, membro do Comitê Central da Frelimo e do Comitê Executivo – o antigo terrorista!119 [aplausos] [Marcelino falando: Vivas, palavras de ordem] Quero apresentar um outro terrorista. Mais um “turra”. [risos, aplausos] Temos aqui o grande terrorista [risos] que é responsável por criar outros terroristas – Ministro da Educação do governo de transição. Por isso, ele foi encarregado para criar mais “turras”, mais terroristas. [risos, aplausos] [Gideon Ndobe falando: Vivas, palavras de ordem]

Racismo colonial e fantoches em Manica e Sofala Eu vos apresento os grandes terroristas, [risos] porque aqui era o centro do terrorismo. Pululavam em todos os cantos, os verdadeiros “gangsters”, os verdadeiros bandidos e bandoleiros. Aqui na

119 Marcelino dos Santos (1929- ), militante e dirigente da Frelimo desde a sua fundação, na altura vice-presidente, poeta. Residente em Portugal a partir de 1947, e na década 1950 na França, onde estudou. SANTOS, Marcelino dos. Ontem como hoje na linha da frente: Marcelino dos Santos fala de si, Tempo, Maputo, n. 728, p. 16-21, 23 set. 1984.

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Beira é o centro da discriminação racial.120 [aplausos] Aqui! E essa discriminação foi criada deliberadamente, deliberadamente pelo Governo fascista, colonial-fascista, do Salazar,121 e consolidada em estruturas podres pelo Marcelo Caetano,122 chefe de fila dos bandidos. [aplausos, apupos] Desde criança, nós conhecemos a Beira, o satélite do apartheid,123 o satélite da África do Sul, do racismo da Rodésia e da África do Sul. [Aplausos] E escolheram durante a guerra como centro, centro de desdobramento das forças reacionárias, das forças que agrediam, assassinavam, massacravam, matavam, violavam o povo moçambicano. O centro das forças que humilhavam, o centro das forças que discriminavam, o centro da humilhação na base da cor da pele. Falar da Beira é falar do crime. É falar do crime contra a humanidade. Vivemos divididos no nosso país. Vivemos dominados, discriminados, desprezados como incapazes no nosso país. Mas esses elementos, os instrumentos todos, visavam somente um objetivo – para poder explorar, para poder sugar o sangue do povo moçambicano, para poder pilhar as riquezas do nosso país.

120 A cidade de Beira era muitas vezes considerada pior que a capital neste sentido; veja “Beira – Cidade estratégica de tensões explosivas”. 121 António de Oliveira Salazar (1889-1970) – professor universitário, chefe do governo português durante a maior parte da fase de Estado Novo, entre 1932 e 1968. Numa bibliografia extensa, ver especialmente FRANCO, 1977-1985, 6 v. 122 Marcelo José das Neves Alves Caetano (1906-1980) – jurista, último chefe de governo do Estado Novo em Portugal, de 26 de setembro de 1968 até o golpe de 25 de abril de 1974. 123 Palavra africander com sentido simples de “separação”, utilizado para caracterizar o sistema de discriminação racial juridicamente em vigor na África do Sul a partir da vitória eleitoral do National Party em 1948 até as primeiras eleições democráticas em abril de 1994.

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Figura 17 – O discurso de Samora Machel foi noticiado na primeira página do jornal Notícias da Beira no dia seguinte, 15 de junho de 1975, com uma imagem do presidente falando à assistência. Vê-se o gravador de cassetes na borda à sua frente. Mas o texto nunca foi editado na íntegra, antes da publicação da nossa transcrição neste livro Fonte: Mozambique History Net.

Empregados que não recebiam dinheiro. [aplausos, vivas!] Empregados que depois de seis meses eram encarcerados porque roubaram! [aplausos] Empregados que depois de doze meses eram expulsos para evitar o pagamento. [aplausos] Na Beira – violação de mulheres, banditismo. O centro do banditismo, aqui. Prisão constante e arbitrária das mulheres para cultivar o arroz, e sem

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receber. [aplausos] E este fato, este acontecimento não é somente da Beira, é de todo o colonizado. É de todo o povo moçambicano. É de todo aquele elemento que exerce o colonialismo. Esta é a face real e verdadeira do colonialismo, e sobretudo quando esse colonialismo é acompanhado pelo fascismo.124 Estávamos impedidos de utilizar a via legal. Não tínhamos liberdade de expressão. Morríamos com os nossos sentimentos – éramos “animais sem sentimentos, sem amor”.125 Tudo para beneficiar o colonialismo português. Para beneficiar o imperialismo. Para beneficiar um punhado de gente. Não era para o povo português, e muito menos para o povo moçambicano. É por isso que a Frelimo orientou a sua luta contra os bandidos. [Aplausos, vivas] Contra os verdadeiros, os verdadeiros “turras”, os verdadeiros terroristas, que transferiam a responsabilidade do terrorismo que praticavam contra o povo para a Frelimo, a expressão mais alta do povo moçambicano, privado de exigir a liberdade, a independência. É por isso, é por isso, quando houve golpe em Portugal, alguns grupos aqui diversificaram as suas organizações em organizações terroristas com o objetivo de dividir e enfraquecer

124 O conceito de fascismo colonial constituiu a fundação teórica para a posição da Frelimo em 1973-1974, de que as independências coloniais foram uma pré-condição necessária para a verdadeira democratização da Metrópole. António Spínola, pelo contrário, argumentou que a democracia em Portugal devia antecipar qualquer processo de descolonização. Veja BRAGANÇA, Aquino de. Independência sem descolonização: a transferência do poder em Moçambique, 1974-1975: notas sobre os seus antecedentes. Estudos Moçambicanos, [S.l.], n. 5/6, p. 7-28, 1986. 125 Na ótica colonial. Neste ponto do texto, Samora Machel refere a mais negativa das várias personalidades construídas em prol do colonialismo português em torno dos seus sujeitos.

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o povo moçambicano.126 Com o objetivo de combater a Frelimo, legítimo representante do povo moçambicano.127 Quantos partidos nasceram aqui na Beira?128 Quantos? Quantos? [Cinco!] Cinco? [Cinco!] Só na cidade da Beira? [Só!] Quantos? Onde estão os seus dirigentes? Onde estão os seus dirigentes? [Indicações da audiência] Onde estão os seus dirigentes? [Mais indicações da audiência] Primeiro quero chamar a atenção a esses fantoches. [Risos, aplausos] A esses fantoches. Títeres. Títeres. Vamos lá. Títeres, são títeres. Não eram eles, eram manejados por alguém. Eram manejados por uma força exterior. Eram encorajados pelos rodesianos a declarar uma segunda Rodésia aqui em Moçambique.129 Eram encorajados pela República Sul-Africana, porque os racistas são os satélites da República da África do Sul. Nós queremos dizer a esses senhores – porque aqui há camaradas, há senhores e há amigos, não são todos camaradas...

126 Seria difícil encontrar um resumo mais claro ou aberto das bases políticas do exclusivismo da Frelimo. Neste ponto da vista, a partir de 25 de abril, quando as condições permitiram organização política, os vários partidos e grupos que apareciam eram simplesmente “organizações terroristas” com o objetivo de “dividir e enfraquecer o povo.” Não havia nenhum espaço legítimo para qualquer outro programa nacionalista que não fosse o da Frelimo. 127 Uma formulação muito utilizada pelos movimentos africanos de libertação nas décadas de 1960 e 1970. 128 Veja a nossa introdução. 129 A tendência a favor de uma “solução rodesiana” em Moçambique, ou seja, a declaração de uma pseudo-independência em que, ou um governo de “caras pretas” funcionaria como a face pública do poder dos colonos, ou os próprios brancos abertamente tomariam posse, se manifestou várias vezes em 1973 e 1974. O “programa de Lusaka” do Jorge Jardim, e a tentativa do golpe em setembro de 1974 pelos “Dragões de Morte” em Lourenço Marques são os exemplos melhor conhecidos.

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Nós queremos chamar a atenção – “senhor” não é aquele que tem cor branca. Não é. “Ideia reacionária” representa “senhor”. [Aplausos, vivas] Mas parece que todo o mundo está a ouvir o português, não é? [Não!] Tenho que falar em português só? [Não!] Hem? [Não, Não!] O povo está a recusar.130 A cultura portuguesa durante quinhentos anos – então tanto tempo não era suficiente para transmitir suficientemente e transformar a nós todos em pequenos portugueses de peles pretas. Não é? [Risos] Não foi suficiente o tempo. Não foi suficiente e não podemos saber porque. Porque é que não evocaram suficiente se a missão de Portugal em Moçambique era missão civilizadora? Civilizar o animal selvagem, [Risos, aplausos] civilizar o selvagem. Mas todos os homens vieram do macaco e eu admiro porque.131 [Risos] Todos os homens, todos os homens de todas as raças vieram do macaco. Foi o desenvolvimento do trabalho que produziu o homem. O desenvolvimento do trabalho, o papel do trabalho formou o homem. O homem é um produto do trabalho. Nós realizamos o trabalho inconscientemente e o trabalho produz a nós. Fabrica-nos. É o trabalho que desenvolve o cérebro de cada um de nós.132 Ouviram? [Ouviram!]133 130 Interação entre Samora Machel e a audiência sobre a necessidade da tradução. 131 Versão bastante populista da teoria de evolução desenvolvida pelo cientista britânico Charles Darwin (1809-1882). Claro que “o macaco” não é antepassado do ser humano, e melhor seria dizer que o macaco e o ser humano são ambas espécies diferentes que se desenvolveram a partir das mesmas raízes. 132 Essas ideias sobre o relacionamento entre o trabalho e o crescimento da civilização humana refletem as perspectivas de Friedrich Engels. ENGELS, Friedrich. The origin of the family, private property and the state. Hottingen-Zurich: [s.n.], 1884. 133 A resposta da assistência é na terceira pessoa e não a primeira pessoa plural esperada. No entanto, Gonçalves e outros salientam que no português falado de Maputo,

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Mas eu queria dizer aos fantoches, aos reacionários, aos agentes do imperialismo, que nós derrotamos a força mais organizada que é a força portuguesa. Derrotamo-la. Derrotamos a força organizada, a força preparada, a força bem orientada, derrotamo-la aqui em Moçambique. Primeiramente derrotamo-la politicamente, em segundo lugar militarmente. Por isso esses pequenos grupos... [Inaudível: SM indica, entre a audiência] [Risos] mas estão em toda a parte. Estão aqui. Estão aqui. Não é verdade? Hem? Estão aqui. Estão aqui. Queremos chamar a atenção que em Moçambique não há lugar para vocês. [Risos, aplausos] Não há lugar para o racismo branco como não há lugar para o racismo negro, porque o racismo, o racismo, na sua essência, na sua essência o racismo é uma atitude organizada, uma atitude reacionária. Derrotamos a força portuguesa porque, primeiramente, praticava a discriminação racial. Ficou isolada, a força portuguesa em todo o mundo, primeiro na Europa.134 Ouviram? [Ouviram!]

“relativamente à concordância em pessoa, os casos mais frequentes são os de ausência de concordância com o sujeito, na 1ª pessoa, em que o verbo está flexionado na 3ª pessoa”. GONÇALVES, Perpétua et al. Estruturas gramaticais do português: problemas e exercícios. In: STROUD, Christopher; GONÇALVES, Perpétua (Org.). Panorama do português oral de Maputo. Maputo: Instituto Nacional do Desenvolvimento da Educação, 1998. v. 3, p. 35-151. p. 126. 134 Com efeito, o isolamento de Portugal foi um processo lento e não linear, que ganhou mais força com a aderência à ONU de países recém-independentes da Ásia e África na década de 1950. Se, por um lado, pouco afetou a integração de Portugal nas instituições chaves da Europa ou América do norte, como por exemplo, a nível militar, a OTAN, e a nível econômico, a European Free Trade Area, por outro, a sua postura colonial e racial tornou-se cada vez mais embaraçosa para os seus aliados ocidentais a partir de 1960. Veja, por exemplo, as tentativas pela jovem administração Kennedy em obrigar Salazar a encetar um processo de descolonização (1961-1962), ou a recepção hostil de Caetano em Londres em 1973. Veja AMARAL, Diogo Freitas do. A tentativa falhada de um acordo Portugal-EUA sobre o futuro do Ultramar Português, 1963. Coimbra: Coimbra Editora, 1994.; ANTUNES, 1992, p. 251-252; MACQUEEN, 1998, p. 48-49.

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Primeiro, na Europa. Europa. Europa, há brancos só. Mas isolaram Portugal, porque praticavam o racismo – o racismo é uma atitude reacionária, o racismo. Primeiro isolaram Portugal.

Figura 18 – Samora inspecionando uma guarda de honra composta de soldados da Frelimo no aeroporto de Beira, vestindo um terno civil Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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Racismo ligado ao fascismo O racismo está ligado intimamente com o fascismo. O fascismo não respeita o homem. O fascismo. É por isso que Portugal está bastante atrasado na Europa. [Aplausos] Porque havia, porque estava lá o sistema fascista. O Hitler, em 1939, desencadeou – mobilizou a força inteira do povo alemão, do povo alemão, dizendo que o alemão representava a raça superior no mundo – desencadeou a guerra contra a Europa. E todos os brancos eram, todos eles, de raça inferior. Não demorou. Foi derrotado. O Mussolini foi derrotado, na Itália. Porque esses países ficaram imediatamente isolados do resto da comunidade humana, do resto da comunidade internacional, por causa do racismo. O racismo é uma atitude reacionária. Derrotado, o Hitler, porque desencadeou uma guerra injusta contra a humanidade, utilizando o racismo. Os povos do mundo inteiro uniram-se num só ideal, num desejo único de esmagar o fascismo. É o que aconteceu com Portugal. Portugal, porque Portugal? Porque praticava, em primeiro lugar, o fascismo, e tinha que praticar, imediatamente, o racismo, ficou isolado da comunidade internacional. Ficou isolado do resto do mundo. Portugal era ignorado durante a guerra de Moçambique, Angola e Guiné-Bissau. Não existia, Portugal. Estava expulso de muitas organizações internacionais, porque praticava o racismo.135 Porque praticava – o seu sistema era um sistema fascista – quer dizer, não havia

135 Portugal várias vezes era criticado pública e severamente pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), única agência da ONU com representação formal dos sindicatos, p. e. em Novembro de 1962; fevereiro de 1964; abril de 1970; e junho de 1972.

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democracia em Portugal. Lá em Portugal, isolado do resto do mundo, depois isolado em Portugal.136 Os que nos oprimiam é um grupinho de bandidos, de terroristas, desprezados em Portugal, desprezados na comunidade internacional, e combatidos aqui em Moçambique. A nossa luta foi imediatamente apoiada por todos os povos de todo o mundo, porque a nossa luta nunca foi contra alguma raça. Porque não há raça imperialista no mundo. Não há raça que gosta de ser sugado o sangue. Todas as raças, todos os povos do mundo querem a liberdade, querem a independência. Muito agravado, o fascismo português, por que... o seu sistema colonial. O colonialismo é um crime contra a humanidade. O colonialismo é um crime contra a humanidade. Por isso, com a nossa definição correta do inimigo...137

O povo português e o colonialismo Vocês perguntariam então, já nos disseste o que é o colonialismo? Eu diria “ocupação de um país por uma outra força exterior, uma força estrangeira”. A presença portuguesa aqui era uma força estrangeira. [Aplausos] Não fez nada aqui no nosso país, explorou para um grupo – um grupo de malandros. Malandros. Um grupinho de malandros. [Aplausos]

136 Quer dizer, Portugal, como país, encontrava-se em certa medida isolado dos outros países da comunidade internacional, enquanto internamente existia um isolamento crescente do governo. Trata-se, portanto, da distinção entre os círculos governantes do Estado Novo, protegidos por um sistema militar e policial de espionagem e repressão, e os seus cidadãos. ROSAS, Fernando (Org.). O Estado Novo, 1926-1974. Lisboa: Editorial Estampa, 1994. (História de Portugal, v. 7). 137 O locutor muda a linha do argumento, para matérias aparentemente mais próximas à audiência.

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O povo português vive como vocês: aquelas palhotas que utilizam aqui é onde vive o povo português em Portugal. É o mais atrasado, em Portugal. [Aplausos, vivas] Não tem lugar para dormir, não tem sapato, o povo português, o povo português. [Aplausos, risos] Não tem escola para o povo, não há escola para o povo. Ouviram? [Ouviram!] Por isso, por isso, nós dizemos que o povo português é nosso amigo. Nosso amigo, nosso aliado de todas as horas. Ouviram? [Ouviram!] E vocês diriam: “Ah! Mas eram portugueses que maltratavam-nos aqui. Aqui só víamos soldados portugueses.” É ou não é? [É!] Os que nos assassinavam, eram soldados portugueses. Era a polícia portuguesa. Eram os governadores. Eram os administradores, os chefes de posto. Não é? [É! Aplausos, vivas] Eu diria: “Se vocês pensam que foi o povo português, então, que dava Marcelo Caetano” – não é verdade?138 [É!] Aí, sim. O povo português dava os seus filhos ao Marcelo Caetano para virem oprimir o povo moçambicano. É isso, não é? [É!] Então vocês entregavam os vossos filhos para serem OPV,139 e para serem GE140 – também é? É? É? [Não!] É. [Não!] Como é que participavam os vossos filhos lá? Na luta, ao lado do colonialismo português? Como é que eles apareciam nas fileiras portuguesas? Hem? [Respostas várias indistintas] Como é? [Respostas várias indistintas] OK. Então, já me responderam? Já me responderam? Já me responderam? [Não!] Os vossos irmãos, os vossos maridos, os vossos filhos eram presos, não é? [É, é!] Para combateram a Frelimo. [É!]

138 O locutor, aparentemente, perdeu temporariamente a linha do argumento. 139 [Membros das] OPV – Organizações Provinciais Voluntárias. 140 [Membros dos] GE – Grupos Especiais.

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Para combateram o povo moçambicano. [É!] Para vos combateram a vocês. [É!] Para impedirem a liberdade de vocês. [É!] Para impedirem a independência de Moçambique. [É!] Está feita! [Aplausos] [Pausa prolongada] Então, então, o povo português dirá “o povo de Moçambique gostava do colonialismo.” É? [Não!] O povo moçambicano estava satisfeito com o colonialismo. [Não! Risos] O povo moçambicano já estava independente há muitos anos, conforme a declaração da Sua Excelência Senhor Oliveira Salazar. É ou não é? [Não!] É ou não é? [Não!] Dirá o povo português que o povo de Moçambique não quer a independência, está satisfeito com o governo português. É ou não é? [Não! Não!] Não? [Não!] [Pausa] Da mesma maneira que eram levados os vossos maridos, os vossos irmãos, vossos filhos, vossos cunhados para a tropa portuguesa, é da mesma maneira que vinham os filhos do povo português para oprimir Angola – o povo de Angola, o povo da Guiné, e o povo de Moçambique. Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Eram presos em Portugal para virem aqui. O sistema colonialista, ouviram? [Ouviram!] O sistema colonialista. Agora, perguntaria: “durante dez anos de guerra em Moçambique, treze anos de guerra em Angola, onze anos de guerra na Guiné-Bissau, os filhos do povo português ganharam consciência?” Derrotaram o Marcelo Caetano lá em Portugal. É ou não é? [É!] O poder restituído ao povo português, e o povo português imedia-

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tamente reconheceu-nos o direito à independência do povo moçambicano.141 Ouviram? [Ouviram!] Acabámos, liquidámos a guerra conjuntamente – nós e o povo português. Ouviram? É por isso que nós temos uma declaração, uma frase famosa. Ouviram? [Ouviram!] A ajuda ou a solidariedade internacional para com outros povos não é um acto de caridade, não é. É um dever, é uma ajuda mútua entre as forças que combatem para os mesmos objetivos. Eu sei a vossa dificuldade. Na Ásia houve colonialismo, lá. Entre os asiáticos, ouviram? Ouviram? [Ouviram!] Entre asiáticos. Na Europa houve colonialismo, também. Vocês sabem que Portugal, para nascer, teve de travar guerra? É ou não é? É ou não é? [É!] Para se libertar, para criar uma nacionalidade portuguesa, lutou. Depois vieram os espanhóis. Ocuparam Portugal durante sessenta anos.142 Ouviram? [Ouviram!] Para destruir a personalidade portuguesa. Para destruir a liberdade portuguesa. Para destruir os valores portugueses. Cada povo tem os seus valores, ouviram? [Ouviram!] E os portugueses pegaram em armas. Lutaram. Ouviram? [Ouviram!] Mas ao mesmo tempo que lutava lá na Europa, contra o colonialismo espanhol, oprimia aqui o povo moçambicano. Gosta da liberdade, o povo português. [Pausa, para dar ênfase] Gosta da liberdade, o povo português. Quando 141 Politicamente, não foi assim tão simples ou tão imediato. Só no Decreto-Lei nº 7, de 27 de julho de 1974, que o MFA, através da Junta de Salvação Nacional, formalmente reconheceu o direito à independência das colônias. Representou a resolução de uma contradição entre os generais (p. e. António Spínola) que queriam optar por um agrupamento de países autônomos ainda dominados por uma metrópole, e os capitães que aceitaram que a única solução era, de fato, as independências. 142 Uma comparação um pouco forçada, pois o anticolonialismo democrático dos fins do século XX tinha pouco a ver com a política dinástica dos princípios de Europa moderna.

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foram ocupados pelos espanhóis, ofereceram as suas vidas para a libertação de Portugal. Porque o colonialismo é um crime. O colonialismo é um cancro que destrói a humanidade, é um cancro que vive de sangue. Matando, massacrando, assassinando, humilhando – destrói as vidas da humanidade.

Estrutura social colonial É por isso que o próprio povo português pegou em armas e destruiu o colonialismo espanhol, e ao mesmo tempo colonizava África! E nós – quando começamos a luta, disseram que era uma luta terrorista. [Num tom irónico] É terrorismo. É terrorismo. É racismo. É racismo, isto. Isto é racismo, quando nós queremos a independência de Moçambique? Hem? Não, esta luta contra o branco... Se esse branco é colonialista, sim, é contra ele. É! Porque é que não? O preto também, quando é colonialista, há uma guerra contra ele. Quem é que está autorizado de colonizar os outros? Quem é? É por isso que vocês têm dificuldade em compreender o mecanismo do colonialismo – porque aqui era representado pelo branco, e pensam que todo o branco é colonialista. É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] Não é, não! É isso que eu estou aqui explicar agora. Ouviram? O preto pode ser colonialista também. Hem? [Pode!] Pode ou não pode? [Pode!] Pode ser explorador. [Pode!] Pode ser agente do imperialismo. [Pode!] É ou não é? [É!] Por isso dizemos aos senhores, eu queria vir para este ponto “Não há lugar para o racismo aqui! Não há lugar para o racismo aqui!” Primeiro, existia uma sociedade de brancos aqui em Moçambique, brancos de Portugal. Brancos da primeira classe,

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classificados, eles, pelo colonialismo português – eles não sabem às vezes, não foram eles que pediram, mas porque vieram de Portugal, automaticamente são brancos da primeira classe. Portugal continental. Portugal continental. É da metrópole. Metrópole de onde? [Risos] Metrópole de onde? [Risos] Depois estavam os brancos daqui de Moçambique também. Brancos nascidos em África são os brancos, automaticamente – não importa a sua sociedade, não importa – hoje são brancos da segunda classe. Entre eles. Entre eles. Víamos eles, a andarem juntos mas não há encontro. Têm contradições, os brancos. Não sabem? Por causa da classificação social. Depois temos alguns indianos também, metem-se um pouco aí, entram. Temos os chineses também aqui, entram um pouco, aqui na Beira sobretudo aqui. Também é superior ao preto, não é? É superior. Depois vem o mulato, também um pouco. [Risos, aplausos] Eu pergunto: [numa voz imitativa e irónica] “Ó mulato, ó mulato, ó mulato, mas ó mulato, a tua mãe não é minha prima?” [Explosão de risos, vivas e aplausos] Hem? É ou não é? [É!] Não é filho da minha prima? Não é filho da minha tia? Não é filho da minha irmã? [É!] Agora diz que: “Ó seu preto, ó seu preto, como é?” [Explosão de risos e aplausos] Depois, já vimos os brancos de Portugal, não é? Vimos ou não vimos? [Vimos!] Vimos os brancos naturais de Moçambique, não é? [É!] Os indianos, não é? [É!] Depois os mulatos, não é? [É!] E chineses ainda também... Todos têm associações – Associação de Lisboetas, dos Minhotos – regionalistas brancos. Estão a ver, não estão? Não têm uma organização única, não. Estão divididos – Algarve, Coimbra,

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Porto e Lisboa. “Nós de Lisboa somos superiores a todos.” [Risos, aplausos] Nós de Lisboa! Nós de Lisboa. “Você é de onde?” É de Porto. [Risos] Estão a ver, não estão? O colonialismo. O fascismo. Ouviram? [Ouviram] Entre eles, de Lisboa, todos. Mas quando estão na estrada, nos nossos olhos, dizemos: “Olha os colonialistas!” É ou não é? [É!] Todos eles. Nós dizemos: “Olha os colonialistas!” Têm contradições profundas, contradições antagónicas, insolúveis, irredutíveis, no seio deles. Hem?

Colonização mental e personalidade moçambicana E depois, e depois, vem o pretinho assimilado também.143 Não é? [É! Aplausos] Porque sabe pronunciar umas vinte palavras na língua portuguesa. Já sabe dizer uma frase completa. Imitando, não pensa, imitando. Imita. Imita. Não sai da cabeça. Imita. Certos hábitos, imita. Imita até o pensamento. Imita até a pronúncia, porque tem vergonha de pronunciar como ele, porque vão dizer este é o preto, ainda não está civilizado. É ou não é? [Risos, aplausos] Colonialismo mental. Ouviram? Aí está o colonialismo mental. Aí está o colonialismo mental. Vai para casa, com os amigos, o assimilado. O assimilado. Estamos a falar do assimilado. Chega a casa. Não avisou a mãe que traria os seus amigos. Encontra os vegetais lá, misturados com amendoim – [risos] e diz [imitando] “Você sabe, eu gosto às vezes desta comida. [Risos] Eu habitualmente, sabe, a minha alimentação habitualmente é o bacalhau aqui em casa, mas olha, a minha mãe atrasou. A criada do meu pai. Prima da minha mãe...” Não diz 143 Abandona o argumento sobre as contradições entre as camadas sociais privilegiadas, e volta a uma listagem de categorias raciais.

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que “a minha mãe está aqui”, é o assimilado este. [É!] Ouviram? [Sim! Ouviram!] Já tem vergonha de apresentar o pai, tem vergonha de apresentar a mãe – não tem mãe. [Imitando] “Não tenho mãe. A minha mãe, dizem que morreu quando eu era criança.” [Risos, aplausos] E vai requerer documentos, que vão ser passados, esses documentos, como filho de pais incógnitos, está satisfeito. Está satisfeito com os documentos que diz “filho de pais incógnitos”, está satisfeito. Ah! É o preto, este, agora.

Figura 19 – A chegada da comitiva presidencial na cidade da Beira. Vê-se à frente o presidente Samora, acenando para a multidão, e a sua esposa Graça Simbine Machel à direita, vestida com um lenço escuro e óculos de sol Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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Há uma luta aqui em Moçambique, luta grande. Sabe? Ouviram? [Ouviram!] Mudar a esta gente toda a maneira de pensar. Ter personalidade, ter personalidade moçambicana, e saber que a personalidade moçambicana tem valor em qualquer parte do mundo. Ouviram? [Ouviram!] A nossa personalidade nunca deve aparecer através da personalidade portuguesa: nós não somos portugueses.144 Como é? Nós somos moçambicanos, e temos orgulho de sermos moçambicanos. Esta foi a nossa batalha – conquistarmos a nossa personalidade moçambicana. Nós não somos portugueses! Ouviram, camaradas? [Ouviram!]. Só libertando-nos disto seremos capazes de compreender o mundo e de compreender o colonialismo. Só, só, só compreendendo isto, estaremos em condições de fazer triunfar a revolução em Moçambique. Primeiro, termos orgulho de sermos moçambicanos – de sermos o que somos. É ou não é? [É!]

Sociedade não racial em Moçambique independente Não há raça inferior no mundo. Não há raça superior no mundo. Todas as raças são iguais. Todos os povos são iguais. Há um desequilíbrio de desenvolvimento que é uma realidade. Se é por essa

144 Uma negação explícita da posição ambígua adotada, às vezes apenas como um meio de sobrevivência no mundo colonial, por nacionalistas de uma geração anterior. Veja PENVENNE, Jean. We are all Portuguese: challenging the political economy of assimilation: Lourenço Marques, 1870-1933. In: VAIL, Leroy (Ed.). The creation of tribalism in southern Africa. Londres: James Currey, 1989. p. 255-288; SOARES, Paulo; ZAMPARONI, Valdemir. Antologia de textos do jornal O Africano (1908-1919). Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 22, p. 127-178, set. 1992. p. 135; ZAMPARONI, Valdemir. De escravo a cozinheiro: colonialismo e racismo em Moçambique. 2. ed. Salvador: EDUFBA: CEAO, 2007.

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via que tivemos que classificar a superioridade das raças, então a raça portuguesa é mais ínfima de todos os povos, porque é o povo mais atrasado. É ou não é? [É!] Ouviram, camaradas? [Ouviram!] Queremos com isto dizer que não queremos – não queremos – o racismo aqui em Moçambique. Racismo branco. Racismo preto. Não queremos aqui em Moçambique. Queremos harmonia entre os povos. Harmonia entre as raças. Porque somos todos iguais. Ouviram, camaradas? [Ouviram!] Agora queria convidar os brancos, convidar tanto de Portugal como de Moçambique, os brancos abandonar esta atitude. É uma atitude reacionária. É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] É, é, é uma atitude racista. Não estabelece harmonia e muito menos igualdade entre nós, e dificulta o desenvolvimento do país. Divisão racial. Não queremos aqui em Moçambique – se resistir teremos de pegar em armas de novo, para remover o racismo. Racismo branco e racismo negro, não queremos em Moçambique, não queremos aqui. Não queremos reacionarismo em Moçambique. Não queremos. Ouviram? [Ouviram!] Não queremos. Primeiro, quero convidar os brancos a abandonar a atitude reacionária. O colonialismo inculcou-lhe que a raça branca era superior. Não é verdade? [É!] Mas já caiu o colonialismo. Não é verdade? [É!] Porque é que caiu, se é raça superior o colonialismo? Se era representado por uma raça branca. Porque é que caiu, então? Prova de que o povo é mais forte do que qualquer outra força. Ouviram? [Ouviram!] Derrubamos o colonialismo português aqui. Não é? Então, foi derrotado o colonialismo português por uma raça inferior! É ou

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não é? [É!] Não somos inferiores, não.145 Derrotamos porque somos iguais a eles. Ouviram? Não, nós não somos inferiores. Não devem pensar assim. Não devem pensar assim. Há uma realidade que é o desenvolvimento igual, igual aliás... igual146 a um desequilíbrio no desenvolvimento das sociedades, das nações, dos países, dos povos inteiros do mundo.147 Há um desequilíbrio, essa é uma contradição natural, universal. Essa contradição é uma contradição universal, mas deve ser resolvida pela revolução, pelos homens. Os homens é que fazem a revolução. Brancos em Moçambique não devem pensar que são superiores. Indianos não devem pensar que são superiores. Ouviram? Hem, mistos, abandonem essas atitudes. Vocês são de aqui, de Moçambique. Ouviram? [Aplausos] Mulatas, mulatos, chineses também andam por aqui, têm uma zona deles aqui na Beira, aí. E são muito racistas. Eu sei. É ou não é? [É!] Não, os chineses são mais racistas aqui na Beira. Devem abandonar, não queremos isso! Racistas devem ir para a Rodésia e para a África do Sul, ou para o Brasil,148 ou para Espanha,149 onde há fascismo. Portugal já

145 Nessas frases, Samora Machel insiste na correção à última resposta da audiência. 146 [Sic]. O erro está corrigido nas palavras seguintes. 147 Um argumento sutil, relacionado à ética da Frelimo sobre a responsabilidade social e humana ativa, que estava a ser desenvolvida e que era, talvez, um pouco voluntarista. Esse voluntarismo estava claramente refletido em muitos das palavras de ordem (ex. Venceremos!). Há níveis diferenciados de desenvolvimento entre várias sociedades e nações, mas essas diferenças não têm nada a ver com o valor humano inerente ou inato de indivíduos e sociedades. 148 No Brasil, a Ditadura Militar tomou posse através de um golpe, apoiado pelos EUA, em 1964, e permaneceu no poder até 1984. 149 O regime fascista (1939-1975) deu lugar a um estado de monarquia constitucional com a morte do general Francisco Franco em 1975.

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não é fascista, portanto os fascistas de Moçambique, os racistas de Moçambique não têm lugar aqui como não têm lugar em Portugal também. [Aplausos] E depois, a vocês pretos assimilados, vocês pretos assimilados – devem respeitar os vossos pais, terem a honra de apresentar os vossos pais, não viverem como filhos de pais incógnitos. Ouviram? Ouviram? [Ouviram!]

A liderança da Frelimo A luta de Moçambique não só liberta a terra, como liberta também as mentalidades, liberta os complexos. A nossa luta combateu contra os complexos de superioridade e de inferioridade, e nós já triunfámos. Triunfámos porque fomos consistentes na nossa linha,150 e agora queremos reconstruir Moçambique. Moçambique é um país bastante rico. Só necessitamos de utilizar corretamente a nossa força, o nosso esforço, a nossa inteligência, a nossa energia. E para utilizarmos corretamente, é necessário que vivamos organizados, orientados e guiados pela Frelimo. Ouviram? [Ouviram!] Foi a Frelimo que conduziu a vocês todos, para ganharem a batalha. Foi a Frelimo que vos definiu quem é o nosso inimigo, quem é o nosso amigo. Por isso, na reconstrução nacional, necessitaremos o apoio de todos os povos. Povos de todos os continentes, de todas as raças, e de todos os povos. Em primeiro lugar, povos progressistas, países progressistas, porque é com eles que 150 Refere-se à ideologia e ao programa elaborado pela Frelimo durante a primeira década da sua existência, mais particularmente durante a fase mais intensa da luta armada, e que consistia principalmente em posições anticapitalistas e antielitistas, no sentido de negar qualquer distinção entre as alas militares e políticas do movimento. Essa luta foi especialmente feroz no período 1968-1969.

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derrubamos o colonialismo em Moçambique, e pensamos que é com eles que também reconstruiremos Moçambique. Muitos países que apoiavam o colonialismo português já mudaram, reconhecem o governo de Moçambique e estão todos prontos a reconhecer a república que será proclamada em 25 de Junho de 1975. E pensamos que essa fase é a fase decisiva de estabelecermos relações corretas entre nós, de estabelecermos igualdade entre nós, de liquidarmos definitivamente a discriminação racial na nossa sociedade. Para isso é necessário: liquidarmos as pequenas associações aqui na Beira – associação de brancos, associação de mulatos, associação de pretos – formarmos associações moçambicanas. Este é o passo decisivo para podermos viver juntos, [aplausos] para podermos reconstruir Moçambique juntos, porque não podemos continuar divididos, porque divididos estaremos fracos, uma vez fracos estaremos liquidados pelas forças externas. Uma vez divididos daremos o terreno fértil para o imperialismo penetrar e liquidar-nos. Nós queremos criar um Moçambique novo. Novo tipo de relações entre os homens. Sabemos que o nosso país está em ruínas. Não temos hospitais. É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] Não temos escolas. Não temos fábricas. Vivemos sem cobertores nas nossas palhotas. É ou não é? [É!] Mas temos possibilidades de produzirmos o algodão. É ou não é? [É!] Vivemos bebendo constantemente água quente para evitar dores de barriga e o barulho do estômago – porque não temos arroz, porque não temos milho em casa. Os terrenos são ocupados. É ou não é? [É!] São propriedades. Aqui em Moçambique, não há terra do fulano, não há terra do povo, aqui!

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Portanto, só a Frelimo é que indicará onde cada um de nós produzirá. Nós morremos não para criarmos terras privadas, propriedades privadas aqui em Moçambique. Sobretudo a terra, a terra pertence ao homem, pertence ao povo.151 Não é de ninguém. Ouviram? [Ouviram] E para isso, necessitamos de orientações corretas. Os Grupos Dinamizadores têm uma tarefa particular, uma tarefa difícil, mas é uma tarefa exaltante, é uma tarefa gloriosa ao mesmo tempo – criar uma consciência política em cada moçambicano, para poder cada moçambicano confiar nas suas próprias forças. Ouviram? [Ouviram!] Nós é que reconstruiremos Moçambique! Não será uma força que cairá por milagre. Não há milagres. Os milagres pararam há muitos anos! Já não há milagres! Já não há milagres! Se existissem milagres, teriam caído há muitos anos e teriam expulsado o colonialismo português em Moçambique. Nós combatemos com armas na mão e vencemos o colonialismo. Nós reconstruiremos Moçambique com a nossa força! Não haverá uma força estranha e muito menos milagres. Não há milagres. Ouviram? [Ouviram!]

Trabalho e desenvolvimento Não é uma vontade divina, a miséria em que vive o nosso povo. Não é! Não é! Não é uma vontade divina, esta. Foi organizada, a miséria aqui em Moçambique e a sua liquidação devemos organizar também! Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Não caiu nenhum santo aqui para dizer “o povo moçambicano deve viver

151 Referindo-se à política de nacionalização das terras, desenhada pela Frelimo para resolver o duplo problema da divisão colonial das terras e de uma possível corrida de reclamações de propriedade na altura da independência.

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pobre”! Não, não houve isso. Não houve isso. Foi a organização colonialista que nos colocou nesta situação miserável, uma situação deplorável! E nós temos que sair desta, desta situação. Estarmos livres significa o começo do trabalho. Trabalhar na liberdade! Organizar com objetivos bem definidos. O que é que nós queremos com a nossa produção? Queremos primeiramente liquidarmos a fome. É ou não é? [É!] Fome! Em primeiro lugar, fome! Muitos regressam para casa e não vão comer aqui. É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] Vamos a lutar, liquidar isso. Não há milagre para liquidar a fome, não há! Não há milagre, não há força divina para liquidar a fome. Não há! Depende da nossa energia, da nossa inteligência, da nossa organização, da nossa política económica. Isto é que vai liquidar a fome em Moçambique. Compreendem? Compreendem? [Compreendem!] Se vocês permanecerem assim, à espera de uma força – não sei se virá deste lado ou daquele, ou de cima ou de baixo, não sei – virá de onde? Virá de onde? Virá de onde? [Aplausos] Virá de onde? [Aplausos] Mostrem-me bem. Não vejo, eu! [Aplausos] As mãos estarão prontas a executar o trabalho organizado aonde? Hem? Aqui, e isto é o instrumento que vai executar. É ou não é? [É!] Então a força virá daqui. É ou não é? [É!] É daqui que virá a força que vai desenvolver Moçambique, que vai fazer avançar Moçambique, que vai fazer triunfar a revolução em Moçambique. A força nossa! Força organizada, não dispersa! Certo? Certo? [Certo!] Certo?152 [Certo!]

152 Neste parágrafo, está em causa, de uma forma mais direta, o contraste entre a filosofia de ação da Frelimo e do seu homen novo, e a passividade por vezes atribuída à assimilação religiosa portuguesa. Para a complexidade da questão religiosa dentro da formação ideológica da Frelimo, veja o estudo pioneiro de MORIER-GENOUD,

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A fome em primeiro lugar! Fome! É que não aceita dívida, a barriga! Não há dívidas! Desde hoje não como, vou comer depois de amanhã...Não! [Aplausos] Não aceita dívida, deve pagar três vezes por dia. Deve pagar três vezes por dia. De manhã, antes de trabalhar, pague. É ou não é? [É!] Volta do trabalho, pague. É ou não é? [É!] Antes de dormir, pague. É ou não é? [É!] Então é. [Aplausos] [Pausa] Em segundo lugar, em segundo lugar o que é? O que é? [Diversas propostas da audiência…] Não, dinheiro, dinheiro deixem lá. Nós fizemos a guerra sem o dinheiro. Nós ganhamos a guerra sem o dinheiro. Doze anos de existência da Frelimo – não há salários na Frelimo. Não é o dinheiro que faz a revolução. Não é o dinheiro que constrói a nação. Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Deixem lá os salários lá para longe, lá.153 Se nós tivermos muita comida, a vida será barata ou será cara? Hem? Para tornar a vida barata, o que é que é necessário? Trabalhar! É ou não é? [É!] Produzir! É ou não é? [É!] Roupa! É ou não é? [É!] Sapatos! É ou não é? [É!] Cobertores em casa! É ou não é? [É!] Mas necessita de trabalho, isso tudo! Tudo isso, é preciso trabalhar. Não cai, não há milagre para isso! Não há! É ou não é? [É!] Eu sei que vocês pedem, têm os vossos padroeiros... Mas o grande pa-

Eric. Of God and Caesar: the relations between Christian churches and the state in post-colonial Mozambique, 1974-1981. Le Fait Missionaire, [Lausanne], n. 3, p. 14-25, set. 1996. 153 A questão dos aumentos salariais e, sobretudo, a sua centralidade nas reclamações sindicalistas surge como uma divergência importante entre a liderança da Frelimo e os trabalhadores na transição.

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droeiro é o trabalho. Ouviram? O grande padroeiro é o trabalho. Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Ah! Vamos rezar depois de comer, não é? É ou não é? [É!] Vamos lá bem vestidos. É ou não é? [É!] Se vais nu lá, expulsam-te da igreja. É ou não é? [É! Aplausos] É escândalo. É escândalo! É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] Pode aparecer na igreja nu? [Não!] Hah! Expulsam-te se apareces nu lá. Com fome de trinta dias, pode ir lá? Vai ser bandido por causa da fome, vai ser ladrão, vai arrombar bancos, lojas. Fome! É ou não é? [É!] Barriga! Ouviram? [Ouviram!] Terceiro... O que é mais? Hem? Boa casa. É ou não é? [É!] Quem constrói a casa? Quem é que constrói a casa? [Nós!]

Racismo colonial no trabalho e comércio Teríamos que frisar uns certos pontos aqui também que interessam, porque o colonialismo tinha classificado também as profissões em cores. As profissões tinham cores. É ou não é? [É!] Tinham cores, as profissões. Os salários tinham cores também. É ou não é? [É! Aplausos] Havia pedreiro preto e pedreiro branco, mas são todos pedreiros. É ou não é? [É!] Havia carpinteiro preto e carpinteiro branco. É ou não é? [É!] Mas são todos carpinteiros! É ou não é? [É!] Havia chofer branco e chofer preto. É ou não é? [É!] São todos choferes! Maquinistas pretos e brancos. É ou não é? [É!] A profissão tem cor também agora? A profissão tem cor também? Hem? A profissão tem cor também? [Não!] E queremos liquidar isso também. Carpinteiro preto, carpinteiro branco, fazem a cadeira, recebe igual. É ou não é? [É! Aplausos] O problema da produção. Havia o arroz produzido pelo branco e o arroz produzido pelo preto, tem um preço desigual. Há o

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feijão do preto, há o feijão do branco, sai da mesma terra. Fazem fronteira as machambas, mas há diferença nos preços. É ou não é? [É!] Eu sou de uma zona muito fértil, onde há agricultura – conheço esse sistema, conheço bem esse sistema. Feijão do preto e o feijão do branco, o gado do preto, o gado do branco. A cabeça de boi, a cabeça de boi – de gado, do preto custava quinhentos escudos, mil escudos. “Sem marca, não é dono”,154 não sou eu que marca – é o comprador! [Aplausos] Não sou eu, eu é que sei o valor, eu que criei a cabeça de boi, eu é que cultivei o feijão, eu é que criei a galinha, eu é que produzo os ovos, tenho o direito de marcar, custa tanto.155 É ou não é? [É!] É ou não é? [É!] Mas não era assim. É o colonialismo, esse. Colonialismo! Aí, já há um outro sistema. Qual é? É o capitalismo, é o sistema capitalista. Já não é o colonialismo. Agora do branco preto, branco preto, sim é colonialismo. É colonialismo. Mas os preços – já o capitalismo está lá. Ouviram? [Ouviram!] É por isso que a Frelimo grita sempre “abaixo o capitalismo”! É que o capitalismo é o responsável do crime, das agressões contra os povos. É o capitalismo para saquear, para pilhar as riquezas e a força do povo. Criam sindicatos falsos que não protegem a ninguém. Os sindicatos são dirigidos pelas autoridades dos países capitalistas. São organizações dos grandes capitalistas, dos grandes monopolistas é que dirigem os seus filhos que estão lá. Ouviram? [Ouviram!]

154 Refere-se à justificação usada pelos compradores (colonos) na atribuição de preços baixos na compra de gado aos produtores negros. 155 A questão da formação e controle dos preços viria a ser um dos mais difíceis de resolver na economia política de Moçambique, sendo considerada prerrogativa do Estado independente como parte da sua política de controle de preços (como, de fato, já fora do Estado colonial).

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O sistema capitalista é bastante complicado. Sistema de exploração. Exploração do homem pelo homem. Aí está. Emprega mil homens, gasta, vá lá gastar, vá lá, vá lá dizer, dois mil contos.156 Vamos lá dizer, por ano, já está dois mil contos, mas ele lucra seis mil contos. Só paga aos trabalhadores dois mil contos. Todas as despesas feitas no fim do ano – gastou dois mil contos – mas ele lucrou seis mil contos. A costa do povo lá. Sistema capitalista! Este sistema não tem cores já. O capitalismo não tem cor também.

Liderança de serviço vs. burguesia nacional Vão tentar nascer aqui em Moçambique capitalistas pretos – a chamada burguesia nacional.157 Aqueles que têm vocação capitalista, agora com a chegada da independência, estão a deitar barba agora, não é? [Aplausos] Ganância de fazer ressuscitar o Colégio Luís Camões – ”Luís Camões. Agora que foi... que faliu o dono, vou ser eu. Como sou preto vão tolerar explorando outros pretos, eu!”. [Aplausos] É que no sistema capitalista, o médico quando estuda é para explorar. O médico, o médico não quer fazer outra coisa senão fazer votos para que haja muitos doentes. Havendo muitos doentes, terá mais dinheiro. Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Agora, o conhecimento é um instrumento explorador no sistema capitalista.

156 Samora Machel fala mais devagar, pois estava fazendo cálculos mentais para o exemplo, em voz alta. 157 Em novembro de 2011, uma suposta citação, baseada nessa passagem, mas com certa dose de liberdade editorial e mesmo com algumas frases inventadas, foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação social em Moçambique, com o comentário “o homem era um profeta”.

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O conhecimento do indivíduo – estudou um poucozinho ou licenciou-se. Bem, tem o seu diplomazito, pronto, está pronto, está autorizado a explorar. Faz lá... segue as... seguiu lá... Letras. É senhor doutor, chegou aqui, senhor doutor, senhor doutor, doutor de explorar. Ouviram? [Ouviram] Não é doutor para ensinar o povo. Doutor aonde também, com um conhecimento bastante reduzido, pequenito, fraco, débil, que necessita de outros, do apoio de outros. Ele não produz senão uma repetição daquilo que foi inculcado pelo capitalismo. É uma repetição. Não cria absolutamente nada, porque está isolado do povo. Está isolado da prática. A primeira ganância, primeira ganância, criar colégios. Quem vai a esses colégios? É o povo? Quem vai lá? Quem vai lá? Quem vai lá? A escola deixa de ser a base para o povo tomar o poder. É ou não é? [É!] Passa a ser um instrumento de exploração. É ou não é? [É!] Não queremos em Moçambique. Não queremos isso em Moçambique. Não há lugar para exploradores aqui. Preto ou branco não pode explorar o povo. O dever de cada um de nós158 – dar tudo ao povo, sermos os últimos quando se trata de benefícios, primeiro quando se trata de sacrifício. Isso é que é servir o povo. Servir o povo. Os nossos conhecimentos devem morrer na terra. Os nossos conhecimentos devem ser examinados constantemente pelo povo. Ouviram, camaradas? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!]. Alguns já estão a organizar para comprar dez tratores. Já exploraram a zona onde vão produzir. Não é assim? Não há produção individual em Moçambique. Produção coletiva, para coleti-

158 Refere-se à liderança, uma afirmação presumivelmente acompanhada de gestos em relação à comitiva.

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vamente matarmos a fome, matarmos a miséria no nosso País. Ouviram? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram!] Porque esses individualistas são, ao mesmo tempo, instrumentos do imperialismo, não são, eles? Onde vão encontrar dinheiro? Vocês todos são pobres aqui. Pobres todos aqui, todos. Daqui a três anos nós vamos ver alguns levantar edifícios de quinze andares. Onde arranjou o dinheiro? Onde arranjou o dinheiro? Hem? Não, é vocês aí! Vocês aí! Aí! E nós aqui também! E nós também aqui. Estou a dizer vocês e nós também. Se eu levantar um prédio, façam o favor de me perguntarem. Ouviram? Perguntar, “então, Camarada Samora, aonde arranjou o dinheiro? Três anos? [Risos, aplausos] Três anos de independência! Camarada Samora, então onde está o povo agora? O povo também já tem muitos prédios”? Estão a ouvir? [Estão!] Temos de combater contra os exploradores do povo, e se pudermos, liquidar ainda no estado embrionário, matar o pintainho no ovo, hem? [Dificuldades de tradução provocam comentários e risos na audiência] Eu estou a perguntar se ele tem dificuldade de interpretar porque tem desejo de explorar! [Risos, aplausos] Ouviram, camaradas? [Ouviram!] Nós pensamos que só assim que podemos dar a maior contribuição para a revolução internacional. Pensamos que só assim é que podemos dar a nossa contribuição revolucionária aos povos oprimidos, aos povos que nos ajudaram nos momentos difíceis, povos que nunca duvidaram em proclamar a Frelimo como representante legítimo dos interesses do povo de Moçambique. Ouviram, camaradas? [Ouviram!] Só assim é que saberemos honrar os nossos camaradas que caíram, aqueles que foram assassinados nas prisões, aqueles que foram massacrados

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pelas tropas portuguesas. Não devemos trair a eles, porque são os nossos heróis. Ouviram? Ouviram? [Ouviram!] Então devemos construir um Moçambique forte, próspero. Ouviram? Devemos construir uma sociedade livre, uma sociedade de boas relações entre todos nós – criarmos o espírito de camaradagem. Não basta irmãos, não. Não basta sermos irmãos. O espírito de camaradagem! Sobretudo porque nós temos uma tarefa grande, que é a tarefa da emancipação da mulher moçambicana.159 A tarefa de criarmos a nova mentalidade nos jovens, para poderem servir o povo inteiro, para poderem servir o mundo inteiro. Ouviram, camaradas? [Ouviram!] É isso que significa liberdade. Hem? É isso que significa independência. É isso que significa construir uma sociedade revolucionária. Não há lugar em Moçambique para os conflitos rácicos. Não há lugar aqui. Ouviram, cavalheiros? [Ouviram!] Ouviram? [Ouviram] Construamos uma sociedade revolucionária e exemplar. É o dever do povo moçambicano, esse. Viva a Frelimo! Viva a Frelimo! Viva o povo da província da Beira! Viva o povo da província da Beira! Viva o povo moçambicano unido do Rovuma ao Maputo! Viva as Forças Populares de Libertação de Moçambique! Viva a emancipação da mulher moçambicana! Viva o 25 de Junho de 1975! A luta continua! Independência ou morte! A luta continua! Obrigado.

159 Não foi, evidentemente, uma tarefa de alta prioridade, encontrando-se mencionado só no fim do discurso e sem explicação extensa.

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Conclusão: poder, discurso político e comunicação social

[...] dizer que a retórica é ‘situacional’ implica que: (1) o discurso retórico começa a existir em reação a uma situação, no mesmo sentido que uma resposta começa a existir em reaçaõ a uma pergunta, ou uma solução em resposta a um problema; (2) uma intervenção adquire significado retórico pela situação, tal como um elemento de discurso adquire significado como resposta ou como solução pela questão ou pelo problema; (3) uma situação retórica deve existir como condição necessária do discurso retórico, tal como uma pergunta deve existir como condição para uma resposta; (4) muitas perguntas nunca se encontram respondidas, e muitos problemas nunca são resolvidos; de forma semelhante, muitas situações retóricas amadurecem e apodrecem sem dar à luz qualquer elocução retórica; (5) uma situação é retórica na medida em que necessita e convida um discurso capaz de participar na situação e assim de alterar a realidade; (6) o discurso é retórico na medida em que funciona ou tenta funcionar como resposta adequada a uma situação que a necessita e convida. (7) Finalmente, a situação controla a reação retórica no mesmo sentido que a questão

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controla a resposta e o problema controla a solução. Nem o retor nem a intenção persuasiva, mas a situação constitui a fonte e o terreno de actividade retórica – e também, devo acrescentar, da crítica retórica.160

Para chegar a conclusões definitivas sobre o exercício por Samora Machel de poder e de controle sobre processos políticos e protagonistas políticos, tais como o partido, as estruturas estatais e até o povo em geral, um corpo de textos e documentos muito maior terá de ser submetido à análise. Felizmente, as intervenções publicadas de Samora Machel foram, graças ao trabalho de Amélia Souto e António Sopa, reunidas numa listagem dos discursos, entrevistas e mensagens organizada por ano até a sua morte em 1986.161 Lamentavelmente, a maioria desses textos foi submetida ao processo linguístico de normalização já mencionado acima, e assim possuem uma validade menor como fontes primárias para o tipo de análise que temos abordado aqui. Porém, várias gravações de som continuam disponíveis aos investigadores. Os contextos e os registros dessas intervenções variam entre o altamente formal, por exemplo, num banquete de Estado ou a abertura da Assembléia Popular, até as discursivas e improvisadas declarações em comícios públicos, quando o discurso de Samora Machel é moldado em resposta às reações de seus ouvintes. Este nosso trabalho, acreditamos, irá exigir o que pode ser um novo tipo de interdisci-

160 BITZER, 1968, p. 5-6, grifo e tradução nossa. 161 SOUTO; SOPA, 1996, ver nas referências.

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plinaridade, envolvendo as metodologias da história, da retórica, da linguística e da ciência política. Como já argumentamos no início deste livro, o exercício de poder está abertamente a funcionar neste texto. As intervenções de Samora Machel possuíam significado não só por causa da sua autoridade pessoal, mas também porque os processos políticos eram compreensivelmente fracos num país pobre e no meio da transição para a independência, livrando-se assim dos duplos grilhões do colonialismo e do fascismo português. Para além disso, como argumentam Hall e Young, “as intervenções de Samora Machel constituem uma parte importante do processo político e conduziam muitas vezes a mudanças de ênfase”.162 Por motivos relacionados com as exigências do teatro político, há passagens bastante longas na intervenção da Beira, em que períodos e eventos históricos se encontram resumidos como tendo sido muito mais breves e rápidos do que eram na realidade. Mesmo assim, estes são apresentados como processos coerentes. Samora Machel necessitava consolidar de imediato a opinião pública na cidade e também descrever a dinâmica política da Frelimo. Não estava assim especialmente preocupado com as sutilezas de narrativa histórica. Por exemplo, contradizendo a versão de Samora Machel dos eventos, a construção da aliança antifascista que, no final das contas, derrubou os poderes do “eixo” na Segunda Guerra Mundial, não foi um processo nem simples nem linear, mas pelo contrário, resultado de cinco anos de manobras diplo-

162 Porém, essas intervenções não eram necessariamente arbitrárias nem improvisadas, como Hall e Young também salientam. HALL; YOUNG, 1997, p. 90; ver também p. 79-81.

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máticas, que culminanaram na aderência precipitada da União Soviética e dos Estados Unidos à causa aliada após 1941.163 Podemos ver também as qualidades (já mencionadas) de coerência e fidelidade no trecho retórico que refere à tensão entre o fato que as pessoas foram seduzidas a combater contra seus próprios interesses no processo de “indigenização” da tropa colonial, e que às vezes foram oferecidas oportunidades de acesso à educação como resultado direto dessa mesma participação. As referências de Samora Machel à Organização Provincial Voluntária (OPV) e aos Grupos Especiais (GE), sem dúvida, ressoavam alto na cidade de Jorge Jardim. Samora Machel resolveu a tensão no final desse trecho com a frase acertada “vos combateram a vocês”, que na sua própria estrutura gramatical reflete essa contradição central. De uma forma semelhante, ele ironiza as pretensões do assimilado, provocando risos e aplausos da assistência, concluindo com a frase “É o preto, este, agora”, que também resolve com agilidade as tensões acerca da sua identidade. Nessa breve peça política, Samora Machel representa, por um lado, a voz afetada do assimilado e, por outro, comenta de modo depreciador sobre a sua artificialidade. É narrativa teatral posta completamente a serviço dos fins de um discurso político. Samora Machel era um orador eficaz, como qualquer pessoa que o ouviu falar pode testemunhar. Suas intervenções tinham muitas vezes um caráter altamente teatral, e também estavam sintonizadas com a capacidade política e linguística de sua audiência – o que acreditamos que a nossa análise mostra. Assim, numa reunião pública qualquer, o seu uso da língua portuguesa 163 JENKINS, Roy. Churchill. Londres: Pan Macmillan, 2002. p. 647 et seq.; OVERY, Richard. Why the Allies won. Londres: Pimlico, 2006. p. 18-19.

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era simples na estrutura e mostrava muitos marcadores da variedade PM; o conteúdo histórico ou político também estava focado num processo de exercício do poder político, ou persuasivo ou, às vezes, coercivo. O texto analisado aqui serve para apoiar esta parte do nosso argumento. No entanto, no outro extremo do espectro, num banquete de estado, por exemplo, acreditamos que uma análise ainda a ser realizada mostraria que o seu uso da língua portuguesa seria mais sutil, e estruturado em conformidade com os padrões normativos da variedade PE; tudo isso facilitando, talvez, uma análise ainda mais sofisticada. A normalização dos textos de seus discursos para publicação pelas redações partidárias ou jornalísticas frequentemente tem servido para disfarçar esses diferentes registros. Mas as intervenções de Samora Machel e outros líderes da Frelimo constituem apenas uma parte da equação. A dominação simbólica que ele e os outros exerciam com maior ou menor sucesso nos comícios – como na Beira, e em muitas outras ocasiões públicas – dependia em grande medida da sua utilização do português como língua de discurso político. Dependia também do contexto de um estado monopartidário em formação, no qual a legitimidade do discurso político foi determinada apenas pela Frelimo, tanto coercivamente, como persuasivamente, como já vimos. Em certa medida, os ouvintes entraram em conluio com esta ata de “escolha política” de uma linguagem política, mas isso não implicava uma simples aceitação, ainda menos uma livre e fácil adoção da mesma. Muitos moçambicanos não tinham (e não têm) competência em português, mas ainda assim reconheciam a legitimidade do seu estatuto oficial e nacional. Por outro lado, era comum nos comícios ter tradução quase simultânea numa língua

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Figura 20 – Uma indicação das mudanças já em curso e da democratização de espaços anteriormente reservados para os colonos brancos era a presença do povo aos eventos como este, no Hotel Polana em Lourenço Marques Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

local, e assim criar uma oportunidade para alguma participação reativa mínima pelo grande público. Estes “textos subalternos”, ou seja, os pronunciamentos dos intérpretes, também podiam fornecer fontes frutíferas para análise. A clara vontade de Samora Machel de abandonar de vez em quando os seus textos preparados em favor de improvisos feitos no impulso de momento era elemento essencial nesse processo. Na intervenção considerada neste livro, Samora Machel estava a abrir pela primeira vez alguns temas fundamentais de relevân-

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cia social e política contemporânea, no contexto da necessidade de estabelecer controle político sobre o centro do país. Esses temas não tinham sido abertamente discutidos nem sequer mencionados nos tempos coloniais, porque não existia nenhuma plataforma política na altura. Na verdade, o teor do argumento de Samora Machel não seria imaginável no contexto das sufocantes instituições políticas coloniais. A força e a popularidade da liderança da Frelimo, em grande parte do país, nos primeiros anos após a independência foi largamente um resultado de sua capacidade de demarcar publicamente as suas posições diante de grandes plateias, e de fazer esforços sutis na explicação, persuasão e até coerção, criando assim uma dinâmica de participação e apoio. Até hoje poucas investigações têm sido concluídas sobre os acontecimentos políticos na Beira e nas províncias centrais nos anos pós-independência, ou sobre a incapacidade aparente da Frelimo de aproveitar nos anos a seguir do momento descrito aqui. A nossa esperança é que o nosso estudo possa servir de estímulo para uma análise mais aprofundada da história política da segunda cidade de Moçambique e a sua região.

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Figura 21 – Cerimônia da chegada ao aeroporto do atual Maputo, na altura Lourenço Marques. Atrás de Samora, na esquerda, Marcelino dos Santos e na direita, Joaquim Alberto Chissano, na altura – primeiro ministro no governo de transição Fonte: Centro de Documentação Samora Machel.

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