RBDA

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Revista Brasileira de Direito Animal


Programa em Pós-graduação em Direito da UFBA

Grupo de Pesquisa: Núcleo Interdisciplinar de Direitos dos Animais, Meio Ambiente e Pós-Humanismo (www.nipeda.direito ufba.br) Linha editorial: Bioética e Direito Animal Periodicidade: quadrimestral ISSN: 2317-4552 (eletrônica) www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/issue/ archive ISSN: 1809-9092 (impressa) www.animallaw.info/intro/brazil

Editor responsável:

Heron Gordilho. Doutor. Pós-Doutor (Pace University Law School/EUA)

Editores-associados:

Tagore Trajano Silva, Pós-Doutor (Pace University Law School/EUA) Luciano Rocha Santana, Doutor (Universidad de Salamanca/ESP)

Conselho Editorial: Ariene Guimarães Bassoli, Doutora. Universidade Federal de Pernambuco David Nathan Cassuto. Pace University Law School (EUA) Edna Cardozo Dias. Doutora. Ordem dos Advogados do Brasil(OAB/MG) Lorraine de Fátima Oliveira. Doutora. Universidade de Brasília. Maria Tereza Gimenéz Candela,Universidad Autonoma de Barcelona (ESP) Monica Neves Aguiar da Silva. Doutora. Universidade Federal da Bahia

Conselho Científico Internacional: David Favre. Michigan Satate University College of Law ( EUA) Jean-Pierre Marguenaud. Université de Limoges (FR)


Pablo Buompadre. Universidad Nacional de Corrientes (ARG) Pamela Fresh. Lewis & Clark University (EUA) Tom Regan. North Carolina State University (EUA)

Avaliadores ad hoc (duplo blind review): Antonio Carlos de Oliveira Gidi. Doutor. Faculdade de Direito da Universidade de Syracuse. Email: gidi@gidi.com.br Alessandra Rapacci Mascarenhas Prado. Universidade Federal da Bahia. E-mail: amprado@yahoo.com.br Belinda Pereira da Cunha. Doutora. Universidade Federal da Paraiba. E-mail: belindacunha@hotmail.com Daniela Carvalho Portugal. Doutora. Universidade Federal da Bahia. E-mail: danielacarvalhoportugal@gmail.com Eder Marques de Azevedo. Doutor. PUC-Minas. E-mail: ederadv@gmail.com Fernanda Luiza Foutoura de Medeiros. Doutora. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul/RS. E-mail: flfmedeiros@gmail.com Joedson de Souza Delgado. Mestrando. Centro Universitário de Brasília. E-mail: Joedson.delgado@hotmail.com Lucas Gonçalves da Silva. Doutor. Universidade Federal de Sergipe. E-mail: lucasgs@uol.com.br Luciana Aboim Machado Gonçalves da Silva. Universidade Federal de Sergipe. E-mail: lucianags.adv@uol.com.br Monica Neves Aguiar da Silva. Doutora. Universidade Federal da Bahia. E-mail: monicaaguiarpsi@gmail.com Saulo José Casali Bahia. Doutor. Universidade Federal da Bahia. E-mail: saulocasalibahia@uol.com.br


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Administração Gabriel Messias Santana da Silva

Capa, Projeto Gráfico e Editoração Lúcia Valeska Sokolowicz

Foto de Capa Pele de Cobra. Photo by Josch13, Pixabay images. Disponível em: <https://cdn.pixabay.com/photo/2014/07/16/02/19/ skinned-394384_960_720.jpg> Biblioteca Teixeira de Freitas

Revista Brasileira de Direito Animal – Brazilian Animal Rights Journal. – Vol.11, N.23, 2016 (set/dez. 2016). – Salvador, BA: Evolução, 2006 Semestral: 2006-2007, Anual: 2008-2009, Semestral: 2010-2012, quadrimestral 2013 Disponível em: www.rbda.ufba.br e www.animallaw.info/#international Editor: Heron Santana Gordilho ISSN: 1809-9092 (impressa) ISSN: 2317-4552 (eletrônica) 1. Direito – Periódicos


Revista Brasileira de Direito Animal Brazilian Animal Rights Journal Ano 2016 | Volume 11 | N. 23 | Set - Dez


Linha editorial e regras de submissão 1. A Revista Brasileira de Direito Animal, primeira do gênero na América Latina, está indexada no Portal de Periódicos da Universidade Federal da Bahia (UFBA no site http://www.portalseer.ufba.br/index.php/RBDA, e também disponibilizada em forma digital no site Animal Legal & Historical Center da Michigan State University College of Law (https://www.animallaw.info/intro/brazil), podendo eventualmente ser lançada em versão impressa. 2. Bioética e direitos dos animais é a linha editorial da Revista, e qualquer trabalho encaminhado para publicação deverá ser inédito no Brasil. 3. O trabalho deve ser enviado pelo correio eletrônico do autor para um dos correios eletrônicos a seguir: heron@ufba.br, santanaluciano@uol.com.br, tagoretrajano@ gmail.com. 4. O trabalho deverá ter no máximo 15 a 30 laudas no formato word (limite que poderá ser superado apenas em casos excepcionais), A4, posição vertical, fonte: Times New Roman, corpo 12, justificado, parágrafo com espaçamento de 1,5, resumo com espaçamento simples, parágrafo 1,5 cm, margem superior e esquerda – 3cm, inferior e direita -2cm. 4. O trabalho deverá obrigatóriamente estar escrito em portugues, ingles ou espanhol e deverá conter : título, nome e qualificação do autor (ou autores), resumo com um mínimo de 150 e máximo de 250 palavras, mínimo de 3 palavras-chave, abstract, keywords, sumário, introdução, conclusão e notas de fim de texto. As citações devem obedecer a ABNT (NBR 10520/2002), as referências numéricas devem obedecer a NBR 6023/2000 5. Deve ser submetido à apreciação de Comitê de Ética em Pesquisa Humana todo e qualquer projeto que seja relativo a seres humanos (direta ou indiretamente), conforme definido na resolução CNS 466/12, inclusive os projetos com dados secundários, pesquisas sociológicas, antropológicas e epidemiológicas. 6. O processo de avaliação será em duas etapas: inicalmente será avaliada a sua adequação à linha editorial da Revista, seguida de uma avaliação duplo-cega, por doutores de Direito que desconhecem os autores, da mesma forma que os autores desconhecem os avaliadores. Em caso de empate, o artigo será submetido a um terceiro avaliador ad hoc. 7. Como contrapartida pela licença de publicação dos trabalhos na Revista, o colaborador receberá 01 (um) exemplar do periódico em cujo número seu trabalho tenha sido publicado, não sendo prestada remuneração autoral. 8. Os trabalhos para publicação serão selecionados pelos coordenadores da Revista. Aqueles que não se ativerem a estas normas serão devolvidos a seus autores, que poderão reenviá-los, desde que efetuadas as modificações necessárias. 9. Uma vez publicado, considera-se licenciado para os coordenadores da Revista, podendo tão somente ser publicado em outros lugares após autorização prévia e expressa, citada a publicação original como fonte. É permitida a citação parcial dos artigos publicados, sem autorização prévia, desde que identificada a fonte.


SumÁrio Editorial | Forewords Luciano Rocha Santana | 9

Direito Civil | Liability Law Brazilian law and the recognition of the rights of pets in childfree couples Valéria Silva Galdino Cardin e Stela Cavalcanti da Silva | 15

Direito Penal | Criminal Law A natureza e os animais no direito penal ambiental (nature and animal for environmental criminal law) Maria Auxiliadora Minahim | 33

Uma reflexão da aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais sob uma perspectiva dos animais não humanos (a reflection of the principle of insignicance in environmental crimes in a non human animal perspective) Reginaldo Pereira e Ana Cristina Fogaça | 53

Direito constitucional | Constitutional Law Um olhar antropológico sobre o especismo e movimentos de defesa dos animais (an anthropological look at speciesism and animal law movement) Micheline Ramos de Oliveira, Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza e Sheila Carletto | 81


Bioética | Bioethics Tutela constitucional da medicina natural e complementar no sistema único de saúde: uso de medicamentos à base de substâncias animais, vegetais e minerais (Constitutional protection of natural medicine and supplementary system health only: remedies of the use of the basic animal substances, plant and minerals) George Sarmento | 115

Teoria geral do direito | Jurisprudence A condição de sujeito de direito dos animais humanos e não humanos e o critério da senciência (The condition of subject of law of human and non-human animals and the criteria of sentience) Neuro José Zambam e Fernanda Andrade | 143

Jurisprudência | Precedent Decisión del habeas corpus p-72.254/15 En favor de la chimpancé cecilia Jueza Maria Alejandra Maurício | 175


Editorial Luciano Rocha Santana

Neste número 23, a Revista Brasileira de Direito Animal inicia com a seção de Direito Civil, onde o leitor vai encontrar o artigo BRAZILIAN LAW AND THE RECOGNITION OF THE RIGHTS OF PETS IN CHILDFREE COUPLES, da Professora Doutora Valéria Silva Galdino Cardin, da Universidade de Maringá, que juntamente com Stela Cavalcanti da Silva, analisa status legal dos animais de estimação e os direitos desses animais nos casos de ruptura do casamento ou união estável . Na seção de Direito Penal, a Professora Titular de Direito Penal da Faculdade de Direito da Universidade Federal a Bahia, Maria Auxiliadora Minahim, apresenta o artigo A NATUREZA E OS ANIMAIS NO DIREITO PENAL AMBIENTAL (Nature and Animals for Environmental Criminal Law), que analisa as dificuldades da ética antropocêntrica de atribuir valor intrínseco à natureza e aos animais, e considera-los o sujeito passivo dos crimes ambientais. Em seguida, o artigo UMA REFLEXÃO DA APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA AOS CRIMES AMBIENTAIS SOB UMA PERSPECTIVA DOS ANIMAIS NÃO HUMANOS (A Reflection of the principle of insignicance in environmental crimes in a non human animal perspective), do Professor Doutor Reginaldo Pereira, da Universidade Federal de Santa Catarina, em co-autoria com a mestranda em Direito na Universidade Comunitária da Região de Chapecó/ SC, Ana Cristina Fogaça, que oferece uma reflexão sobre a aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais praticados contra os animais. Na seção de antropologia jurídica aparece o artigo UM OLHAR ANTROPOLÓGICO SOBRE O ESPECISMO E MOVI­ RBDA, Salvador, V. 11, N. 23, pp. 9-11, Set - Dez 2016 |

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MENTOS DE DEFESA DOS ANIMAIS (An anthropological look at speciesism and animal law movement), de Micheline Ramos de Oliveira, Doutora em Antropologia Social pela Univer­sidade Federal de Santa Catarina, em parceria com Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza Professora Doutora em Direito Ambiental e Sustentabilidade da Universidade do Vale do Itajaí e Sheila Carletto, Mestranda do Programa de Mestrado em Gestão de Políticas Públicas Universidade do Vale do Itajaí, que através de um olhar antropológico, analisa os direitos dos animais nas famílias multiespécies. Na seção de Bioética, o Professor Doutor da Universadade Federal de Alagoas, George Sarmento, no artigo TUTELA CONSTITUCIONAL DA MEDICINA NATURAL E COMPLE­ MENTAR NO SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE: USO DE MEDICAMENTOS À BASE DE SUBSTÂNCIAS ANIMAIS, VEGETAIS E MINERAIS (Constitutional protection of natural medicine and supplementary system health only: remedies of the use of the basic animal substances, plant and minerals) analisa a introdução da medicina tradicional no Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente as especialidades médicas alternativas reconhecidas pelos organismos governamentais, dentre elas a Terapia Assistida por Animais. Na seção de Teoria Geral do Direito, encontraremos o artigo A CONDIÇÃO DE SUJEITO DE DIREITO DOS ANIMAIS HUMANOS E NÃO HUMANOS E O CRITÉRIO DA SENCIÊNCIA (The condition of subject of law of human and non-human animals and the criteria of sentience) onde o professor Doutor Neuro José Zambam, do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional (IMED/RS) e Fernanda Andrade, Mestre em Direito pela mesma faculdade, trabalha a questão dos seres humanos e os animais, em determinados perío­dos históricos e culturas, demonstrando como são subjugados (objetos) ou protegidos (sujeitos de direito). Na seção de peças processuais a RBDA 23 apresenta decisão inédita do Poder Judicário da cidade de Mendoza, Argentina,

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que concedeu uma ordem de Habeas Corpus em favor da chimpanzÊ Cecilia, inaugurando uma nova era para o Direito Animal contemporâneo.

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Direito Civil Liability Law



Brazilian law and the recognition of the rights of pets in childfree couples Recebido: 03.09.2016 | Aceito: 10.11.2016

Valéria Silva Galdino Cardin Post-doctoral degree in law from the University of Lisbon; MSC and PhD in Social Relations Law from the Pontifical Catholic University of São Paulo; Professor at the State University of Maringa and the University Center of Maringá - PR - UNICESUMAR; Researcher at Cesumar Institute of Science, Technology and Innovation (ICETI). Lawyer in Parana. Email: < valeria@galdino.adv.br >.

Stela Cavalcanti da Silva Graduate in law from Unicesumar - University Center of Maringá. Researcher at the Cesumar Institute of Science, Technology and Innovation (ICETI): <stela_casi@hotmail.com>.

ABSTRACT: The purpose of this scientific work is to analyze the legal status of pets in our legal system, and verify that it is consistent with the defense of their rights in childfree couples as well as the dispute of such when the breakdown of marriage or stable union occurs. The Civil Code categorizes pets as livestock. In order for these animals to have their due regard, they should be treated as subjects of rights, considering that they have the neurological capacity to generate awareness, albeit limited. In this day in age, many couples choose to achieve their parental project with pets rather than with children. Despite this change in the family context, pets are still classified as an asset, which denotes a gap between what society sees, and what the legislation determines. Childfree families with pets are a reality that cannot remain invisible before our legislation and judiciary. Thus, it is necessary to determine which animals are subject to rights according to their condition, through appropriate legislation and even including the issue of childfree couples by discussing custody, the exercise of rights to visitation and pet support. Finally, we used the theoretical method, which

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consists of works researched, specialized periodicals and electronic documents, as well as the legal collection on the subject. KEYWORDS: Domestic Animals; Subject of Law; Childfree Couples. SUMMARY: 1. Introduction. 2. The historical evolution of animal rights. 3. The recognition of animals as either objects or subject of law. 4. The applicability of the rules and principles governing family rights for the best interest of the animal in childfree couples. 5. Final considerations. 6. References.

1. Introduction From the industrial revolution to the technological revolution and especially with the consolidation of a global society, social structures have changed, including the family, who has also suffered numerous changes. The traditional family model, once based on the patriarchal system where procreation and equity consisted on the essence of marriage, has ceased to be the mainstay of society, to be replaced by another concept of family, marked by plurality and affection. It is important to point out that the postmodern family can be characterized as an instrument for achieving happiness and personal fulfillment by those who compose it. It is noticed also that the claims for the promotion of gender equality which were brought up, especially in the second half of the twentieth century, caused women to join the labor market, and no longer belonging exclusively to the private and domestic sphere. These factors, coupled with the degree of competitiveness in the labor market, caused families to begin to think more carefully on the planning of the family. Nowadays, it is common to see couples who choose not to have children, substituting them instead for a pet.

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Once seen as a mere instrument for the satisfaction of people, animals began to gradually be considered in their fullness, and even integrated by the families as members in the relationship. When a breakdown in the marital bond occurs, pets are often brought into the judicial dispute. However, it is clear that such conflicts resemble more a custody dispute than property dispute where food, right to visitation and family life are called into question. Nowadays, with the increasing debate over animal rights, questions arise over their legal status: should they be seen as mere objects or as legal subjects? Animals have legal protection regarding their care and welfare against cruelty. However, if they are recognized as sentient beings, we question if they should therefore be considered legal subjects. Using the theoretical method, this article seeks to demonstrate that the classification given to animals by the Civil Code as livestock is not consistent with the condition of being alive and sensitive. This being said, we demonstrate that when the breakup of parental ties occurs, institutions of family law centered on protecting children and adolescents, by analogy, should apply to protect pets.

2. The historical evolution of animal rights Throughout history mankind has exercised power over other living beings and things, just for believing to be the only species to have feelings, thoughts and sensations. This belief was based on the interpretation of certain biblical passages describing the creation of Earth under the Creationist perspective, where, after making man in his image and likeness, the Creator gave him power over fish, birds, animals and Earth and all that dwelt therein.1

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Because of the image and likeness to God, man granted himself authority over other species. Initial studies regarding the interests of animals appeared in ancient Greece, in the works of the philosopher Theophrastus (372 BC - 287 BC) On Compassion.2 At that time, there existed a position contrary to the sacrifice of animals. Theophrastus defended the principle of respect for life, regardless of who stopped it, maintaining the theory that animals were endowed with sensitivity and should be integrated in the moral community, as they had similar characteristics to those of humans.3 Although some were in favor of animal welfare, they were used exclusively to provide benefits to humans for transportation, food, clothing and safety, among others. In the Greco-Roman period, other philosophers and thinkers stood out in favor of animals such as Ovid, Plutarch, Porphyry and Seneca.4 Plutarch and Porphyry defended the idea that animals were beings with rational development, able to understand and think.5 Seneca and Ovid, in turn, defended the theory that animals were sentient beings, feeling pain and joy, among others.6 Nevertheless, the theories mentioned above dealt with animals in a general sense. Only in the eighteenth century were there initial discussions about integrity and social status for animals.7 In 1776, inspired by the existing philosophical texts, Humphry Primatt published his thesis “A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sin of Cruelty to Brute Animals” in which he defended equal treatment towards animals.8 In 1789, during the French Revolution Jeremy Bentham defended in his work “An Introduction to the Principles of Morals and Legislation”, the inclusion of animals capable of feeling pain and suffering, with similar interests in the moral community and pointing to the irrelevance regarding species. 9

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It is noted, however, that all writings point for the integration of animals as having rights. Given this problem and the need for specific regulations, in 1822 England introduced the first act for animals called British Cruelty to Animals Act, which dealt with cruelties committed against animals.10 Germany and Italy in the years 1838 to 1848 respectively, created rules to regulate specific cases of animals.11 In Brazil, norms addressing the protection of animals emerged only in 1924, under the Decree 16.590. Because of the need to draw up rules that regarded animals in their integrity in a wide and unrestricted way, UNESCO proclaimed on January 27, 1978 the Universal Declaration of Animal Rights,12 consisting of articles that addressed animal rights with regard to respect, care, treatment, liberty, as well as its destination as food or experiment.13 It is noted that the Federal Constitution of 1988 in its article 225, determines environmental protection and provides awareness to the population in building an ecologically balanced environment in order to ensure, not only for the present generation but also for future generations, a better quality of life. The environment can be understood as the set of elements that are part of what surrounds us, where we live, such as the fauna, the flora, the natural and artificial elements; such a concept is not restricted, thus, referring to nature objectively considered. We denote that the constituent wrought significant change in the social conception about environmental issues. From that point, the legislation was directed to find solutions for environmental problems, foster awareness in a wide range of interests, especially for the construction of an ecologically balanced environment.14 The intent of the paradigmatic change is the improvement of the quality of life of the present population and future generations, in the pursuit of the survival of the human species threatened by man himself.15

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Thus, with the publication of the Law No. 9,605 / 98, providing for criminal and administrative sanctions for conduct and activities harmful to the environment and regulating crimes against non-human animals, Brazil was considered to be one of the more developed countries in the context of environmental legislation. Despite the parental rights law which provides for constitutional and infra-constitutional rule in order to protect the environment, it is stated that the claim of both the constituent, as well as the ordinary legislator was restricted to environmental inheritance, without providing ample protection to animals for being considered members of the fauna and not as subjects. It should be noted that the constitutional system, in its paragraph 1 of article 225, gives animals an ecological function of the fauna, guaranteeing ethical treatment and prohibiting cruel treatment. Therefore, the legal tutored good is the sound quality of human life, where the environment, fauna or animals are instruments used to achieve that end. The Civil Code, though it does not refer specifically to nonhuman animals, has rules that refer to them, albeit indirectly. Article 82 of the Brazilian Civil Code, states that “movable assets are goods susceptible through their own movement or their removal by external forces, without changing the substance or the economic and social destination�. By this definition, animals are regarded as objects, movable assets and/or livestock. It is stated, therefore, that for the Brazilian Civil Code, animals are considered mere objects, and therefore devoid of any dignity. However, with the evolution of movements striving for animal protection and, in particular, with the development of scientific research that demonstrates that animals have the ability to express intentional behavior with neurological substrates that generate awareness, fitting them into the category of goods is not coherent.

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For Dominique Lestel: [‌] it is difficult to consider that animals could be reduced to primitive mechanical sets, because animals too are the mechanics of their own bodies. Accordingly, it is difficult to view these animals as objects, and it is better to consider them as subjects whose activity is organized by actions and perceptions. Animals are made of organs; they are not made of parts like machines. It is a subject who animates them, not an engine.16

One can say therefore, that although the questioning over the condition of animals and their rights has been present throughout history, inserting this theme in the legal framework is recent, requiring regulation because today’s legal conception of the nature of animals is not able to consider their demands.

3. Recognition of animals as legal subjects Throughout history we can see that animals did not have a significant value for men and therefore were seen and used without any concern for their condition as a live being. It is noteworthy to point out, however, that when analyzing historical and social evolution, we see that not only did man exercise his power over animals, but also over its own species, as with blacks and women for instance.17 With the evolution of human thought, it was possible to conquer rights considered fundamental and universal in order to defend and give everyone the full condition of equality.18 The domination promoted by speciesism with the idea that human beings, because of their superiority, would have the prerogative to explore animals freely, is very similar to the domination that man had over man himself in earlier times. Under a false assumption of superiority, man subjugated and dominated another as if he were the holder of such right.

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According to Singer, Speciesism “is prejudice or biased attitude of someone in favor of the interests of members of their own species, against the other.”19 This term was coined in the 1970s by the scientist and philosopher Richard D. Ryder and was regarded as the “biased and partial attitude towards other species, like racism with regard to human beings”.20 It so happens, however, that such a perspective is being fought against with greater intensity, as it is inadmissible that under such a conception one can legitimize animal exploitation. In order to protect an animal’s wellbeing, the inc. VII, §1ª of art. 225 of the Federal Constitution, the constituent has forbidden any acts of cruelty committed against animals, recognizing them as sentient beings, that is, endowed with organizational structure enabling them to experience feelings and sensations,21 and therefore able to feel pain, pleasure, sorrow, joy and affection, among others. In The Cambridge Declaration on Consciousness Philip low says that humans are not the only ones who have consciousness, where animals show intentional conduct.22 From this concept, it would not be credible that the legal perception of animals would continue as that of livestock. It is also important to note that the discussion about the possibility for animals to be considered subjects of rights is present not only in Brazil but also in other foreign legal systems, as in the Civil Codes of Austria, Germany and Switzerland.23 In 1990, following the amendment of the German Civil Code (BGB - Bürgerliches Gesetzbuch), animals were no longer considered things and were protected by special laws,24 and as of 1994, art. 20 of the German Basic Law ruled for the protection of animals.25 Switzerland, in turn, one of the most advanced countries when it comes to animal protection laws, recognized in its constitution in 1992 the “dignity of animals”, and since 1987 has had a specific legislation regulating the protection of pets.26

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In 2001 the United States Supreme Court considered the possibility of animals as legal subjects. However, hunting and fishing continue to be practiced today.27 In 2014, the French National Assembly approved the amendment in the French Civil Code, in order to consider animals as living beings endowed with personality and not as movable assets.28 As we can see, many countries have advanced in their legislation in order to fully protect the rights of animals, and Brazil cannot remain inert before such needed demand. There is a struggle among the various positions in favor of change in the legal status of animals to recognize non-human animals as legal subjects. One cannot confuse “person” with “legal subject”. According to Art. 1 of the Civil Code, people are beings capable of rights and duties in the civil order, where the concept of legal subjects is broader than that of person.29 According to Lorena Xavier Costa, a legal subject is the entity for which the legislator “grants rights, be it a person or not and being only the recipient of legal commands governing a particular legal relationship, becoming, thus, its subjective element”.30 Paulo Lôbo, asserts that: [...] the attribute of person is given by the law, not being a concept extracted from nature, and, thus being cultural and historical. The resistance within the Law to recognize animals as legal subjects overrides the legal issue, having then a social political characteristic [...].31

The law also assigns the concept and the nature of juristic person to entities that have no physical existence. We would add that there are entities that the law does not consider as a person and yet assigns the capacity to act, such as a bankrupt estate, assets, mixed-property, timeshares, etc. Not every single person has the capacity to act in court, despite being endowed with personality, such as the disabled, who

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rely on representation. Thus, animals as legal subjects require such representation in our legal system. Even the Civil Procedure Code of 2015, in art. 75, lists the legal subjects which are represented in court such as: The Union represented by the Attorney General’s Office; the States by the Federal District by prosecutors, the bankruptcy estate by the judicial trustee; assets by properties executor among others.32 It should be noted that not every legal subject is considered subject to a duty, such as the unborn child who, despite being a subject of law has no assigned duties. The idea of objectification of animals is obsolete, and foreign legislations have already advanced in the protection of such rights, giving them a differentiated treatment. We can cite in this regard the Constitution of Ecuador in its art. 71, which establishes that animals are rights holders with the objective of creating a balance within the environment for human benefit.33 Edna Cardozo Dias states the following on the subject: “[...] animals have rights and their rights are the duty of all men”.34 Thus, animals cannot be treated as a means to meet the satisfaction and needs of man. Therefore, animals are subject to civil and constitutional rights, according to their condition, and deserving legal protection.

4. Applicability of norms governing family law for a pet’s best interest in childfree couples With the evolution of the concept of family unit as well as the development of new technologies that have greatly influenced the creation of new market niches, many families have decided not to have children, either because they are not able or as a result of extreme concern for their professional career. Therefore, it is not uncommon for children to be replaced by pets, which are actually considered for many couples as members of the family.35 Couples who opt for not having children

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often adopt pets and develop a relationship of extreme love and affection and provide similar treatment to that given to children, such as having birthday parties, providing Christmas gifts, and so on. Thus, once the emotional bond between the pet and caregivers is established, when rupture occurs in the marital bond, there may be disputes over pets, which must be observed and solved by applying the laws pertaining to family law and what it institutes. And this, par excellence, involves family courts. Just as children and adolescents, pets are vulnerable beings that should have particular treatments in the face of family disputes, while maintaining their best interest. Of course, this comparison should be viewed with caution because animals can never be independent as children when they grow up. In this same perspective it is appropriate to create legislation adequate for the circumstances of animals, even regulating their status as a member of childfree couples. The recognition of this type of family is irrefutable and we can no longer objectify animals by assigning them the condition of goods. Recently there have been trials in this regard, as for example in early 2016 where in the State of SĂŁo Paulo, Judge Fernando Henrique Pinto from the 2nd Family Court and Probate of Jacarei, by not objectifying the animal and using, by analogy, the rules governing custody of a disabled. He determined alternating custody of a dog to its owners who were undergoing a legal separation process.36 Interestingly, the judiciary system is being requested increasingly to resolve these issues. In May 2016, judge Katscharowski Leandro Aguiar in charge of the 7th Civil Court of the district of Joinville, when receiving the case discussing custody of a pet, he referred the case to the Family Court and emphasized in his decision: I think the real issue lies on the statement, though incidental, of the possession and ownership of the animal, whose discussion, in turn,

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involves Family Law [...] Perhaps taking advantage of the academic field, the conception, though yet restricted is timidly appearing in jurisprudence and considering animals, especially mammals and birds, as being endowed with a certain conscience.37

One can affirm, therefore, that pets are increasingly occupying a significant role within the family, receiving affection, attention and even a treatment similar to those given to children, and such a fact cannot be ignored by the judiciary. Thus, it is essential to create an appropriate legal status, which not only meets specifically the demands but is suited to the peculiarities of this type of relationship; a relationship where interests are taken into consideration. A relationship with affection and care, remembering that both feel pain, love, pleasure, happiness, joy, sadness and allowing the spouses or partners to request custody, food, and the right to visitation, exercising the principle of the best interest which it is the most vulnerable in the relationship: prioritizing physical and psychological wellbeing.

5. Final considerations Throughout history, animals have been seen as a means to satisfy the desires and needs of human beings, without there being any limitation in their exploitation. With the discovery that animals were actually beings with the capacity to experience feelings, coupled with growing animal rights movements, regulations were created to avoid such degrading treatments. In addition, due to structural changes in post-modern society, many couples decided not to fulfill their role of parenthood, opting for the inclusion of pets in the family instead of having children. Although the parental rights law considers animals as livestock, when the breakdown of marital bond occurs, disputes

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over pets are not similar to those of property, but instead are equivalent to disputes involving children and adolescents, as it discusses custody, the right to coexistence and support for their benefit. This time, in order to contemplate the protection of the rights of animals as sentient living beings, until a specific legislation prevails with the perspective that these, in fact, are subjects of rights with applicable litigations in which they appear as the center of the dispute, the institutions of family rights must first recognize them and consequently the existence of childfree couples.

6. References 1

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Direito Penal Criminal Law



A natureza e os animais no direito penal ambiental Nature and animals for Environmental Criminal Law Maria Auxiliadora Minahim Doutora em Direito Penal pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR).Professora Doutora Titular de Direito Penal da Universidade Federal da Bahia. Membro do Quadro Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia. Email:minahim@terra.com Recebido: 31.10.2016 | Aceito: 22.11.2016

RESUMO: Trata-se de um artigo jurídico de revisão, de modo que a técnica de pesquisa utilizada foi a bibliográfica e documental. Inicialmente o artigo demonstra a dificuldade da espécie humana em conferir à natureza e, especialmente ao animal, um valor intrínseco. A tutela desses valores tem sido feita a partir de uma perspectiva antropocêntrica e da relação de utilidade que se confere aos recursos naturais. A proteção do Direito ao meio ambiente estendeu-se ao Direito Penal como mandado de criminalização para o legislador constituinte, que confiou ao meio ambiente uma proteção na qualidade de bem jurídico. Esta noção dificulta a percepção do valor próprio de cada ente da natureza, a exemplo do que postula o novo constitucionalismo andino ou mesmo como ser dotado de uma dignidade própria. O artigo conclui pela necessidade do reconhecimento do valor intrínseco do meio ambiente, que os animais possam vir a compreendidos como as próprias vítimas dos delitos de maus-tratos. Palavras-chave: criminalização dos atentados contra a natureza, bem jurídico tutelado; animal como ser sensível.

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ABSTRACT: Abstract: It is a law review article, so the research technique used was bibliographical and documentary. Initially the article demonstrates the difficulty of the human species in conferring on nature, and especially on the animal, an intrinsic value. The protection of these values ​​has been made from an anthropocentric perspective and from the relation of utility that is conferred to the natural resources. Environmental Law Protection was extended to Criminal Law as an order of criminalization by the constituent legislator, conferring to the environment a protection as a legal good. This notion hinders the perception of the value of each entity of nature, as the postulate of the new Andean constitutionalism or even how to be endowed with a dignity of its own. The article concludes by the need to recognize the intrinsic value of the environment, and in the case of animals, the victims themselves of the crimes of ill-treatment. Key-words: criminalization of attacks against nature; legal protect interest; animal as a sensitive being. SUMÁRIO: 1.Introdução - 2. Personalidade jurídica e o Direito Penal Ambiental - 3. Qual o bem jurídico violado nos crimes contra os animais? – 4. Os animais como sujeitos passivos dos crimes ambientais 5. Conclusão – 6. Notas de referência

1.Introdução O significado e o valor que a natureza tem para a pessoa podem variar de um para outro tempo e cultura. A impressão que o ambiente natural produz sobre os indivíduos pode ser alterada, a partir de circunstâncias diversas, o que lhe confere diferentes sentidos até para um mesmo grupo. Um olhar na história pode mostrar, por exemplo, que bosques por vezes são considerados sagrados, objeto de veneração e, de outras, são tidos como espaços dominados por demônios, a exemplo daqueles do leste europeu, onde se diz viver o leshi. 1 Um exemplo interessante dessa possibilidade são as transformações ocorridas nas relações dos peregrinos americanos com o meio ambiente. Catherine Larrère narra que, num primeiro momento, a natureza selvagem e hostil devia ser vencida, sub-

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jugada, pelos desbravadores, com vistas a “civilizar” o ambiente selvagem. 2 Para os americanos, as maravilhas cantadas na Europa sobre as riquezas naturais da América só eram percebidas como tal, quando uma árvore gigantesca tombava a seus pés, ou seja, quando seu poder de dominação prevalecia. Os peregrinos acreditavam que tinham a missão de atravessar áreas desertas, secar pântanos, corrigir o curso dos rios e povoar a terra inabitada. Domar a natureza pagã tinha também uma dimensão religiosa para os puritanos, que precisavam controlar e reduzir este símbolo selvagem das forças do mal e da anarquia, como diziam então. 3 Por outro lado, ao penetrar nas grandes florestas americanas, viram pela primeira vez as sequoias gigantes que se tornaram objeto de curiosidade e, posteriormente, de veneração. Nessas árvores, contemporâneas da mais alta antiguidade bíblica, os americanos descobriram, nas Américas, a existência de um passado capaz de situar-lhes em pé de igualdade ou mesmo em posição de superioridade com relação aos europeus porque o passado destes estava ligado à escravatura ou à servidão feudal enquanto a natureza, no Novo Mundo, se lhes apresentava como um símbolo de liberdade: o reflexo da criação divina, não contaminada pela maldade humana. 4 A isto se acrescentava o fato de que o projeto dos colonos consistia na construção de uma nova sociedade – espiritual - na qual o conforto material e individual contavam pouco. Essa compreensão passou a limitar o acesso à natureza intocada quando a finalidade fosse, apenas, a de atender a propósitos materiais. 5 No que diz respeito, especificamente, aos animais, os mecanismos de identificação foram mais próximos, tendo ocorrido na história uma associação entre as qualidades humanas e suas características. Na pré-história egípcia, os homens reconheciam nos animais particularidades que julgavam boas ou más e passaram a qualificar seu mundo, recorrendo às analogias feitas com o destemor do leão, a força do crocodilo ou os cuidados de alguns

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mamíferos, como a vaca, com sua cria. Posteriormente, transpuseram tais representações para os deuses do período antigo. 6 Já para os ocidentais contemporâneos, em regra, o valor da natureza reside no seu potencial econômico e o interesse em sua preservação deve-se, em grande parte, às preocupações com a intensifsicação de ataques ao meio ambiente, capazes de ter reflexos negativos sobre o clima da Terra. Um exemplo expressivo desse temor de desequlíbrio das condições que mantêm a vida no planeta ocorre com a emissão de dióxido de carbono da qual pode resultar um aumento na temperatura global do planeta. Assim, a não ser pela ação de grupos ambientalistas, a atenção dada ao planeta e à sua diversidade biológica decorre menos do respeito por ela e mais do receio de extinção de uma forma de vida confortável para alguns. Da mesma forma ocorre com os animais não humanos, os quais partilham com o homem propriedades similares e, tão só em razão destas, são tutelados pelo Direito. Posto que apenas o homem é feito à imagem e semelhança de Deus, animais integram o universo, mas não participam do mundo jurídico, a não ser como coisas.7 De qualquer sorte, estes são interesses que merecem a atenção do Direito Penal tradicional em razão da dimensão que têm para a espécie humana. O substrato de tais seres não é apreendido, porém ainda que partilhem, com os homens a aventura da existência. O Direito Penal busca sua legitimidade como ciência na qualidade de sua dogmática, nas construções formalmente articuladas e adequadas à sua natureza como ciência cultural. A coerência interna do sistema, porém não basta para justificar sua existência, razão pela qual a tutela de bens jurídicos passou a ser a questão de maior centralidade nesse ramo do Direito. Este artigo inicialmente fazer uma análise crítica sobre a visão reducionista, puramente capitalista e instrumental, que considera o meio ambiente o bem jurídico protegido pela norma penal.

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Em seguida, o artigo analisa como a doutrina tradicional entende que a natureza e os animais se constituem em simples objeto da ação, demonstrando, que a partir do desenvolvimento do Direito Penal Ambiental a doutrina tem evoluindo no sentido de considerar os próprios animais como o sujeito passivo, ou seja, como as verdadeiras vítimas dos crimes contra o meio ambiente.

2. Personalidade jurídica e Direito penal ambiental Tomando como marco inicial da preocupação mundial com a proteção do meio ambiente, a Conferência Sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo pela Assembleia Geral das Nações, da qual resultou a “Declaração Sobre o Meio Ambiente Humano”, revelou a procupação com os impactos ambientais e a necessidade de sua minimização, estimulando a ideia de que é necessário harmonizar “justiça social, crescimento econômico e preservação ambiental através do conceito de “ecodesenvolvimento”.8 No Brasil, a Constituição de 1988 agasalhou o pensamento então vigente, expedindo o legislador constituinte, ademais, mandado de criminalização das condutas atentatórias ao meio ambiente, a Lei no 9605, promulgada em 1998, que foi um desdobramento natural da proteção constitucional, concretizando no plano normativo, a preocupação do Estado brasileiro com o tema.9 Assim, o artigo 225, § 3º, dispõe que as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, às sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados.10 Transposta a matéria para o âmbito criminal, uma série de questões surgiu entre os doutrinadores. Na esteira de Hassemer, o penalista da escola de Frankfurt, afirma-se que o Direito Penal

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não tem aptidão nem foi predestinado para tratar dos bens jurídicos transindividuais. Esta tarefa caberia ao chamado Direito de Intervenção, por ele proposto: um Direito menos garantístico em termos materiais e processuais e com sanções menos severas do que as existentes no Direito Penal tradicional. 11 Ao insistir em cumprir tal função, este ramo do Direito, faria um mergulho “nas turbulentas águas do risco”, tal como Paulo Silva Fernandes refere-se à situação, 12 o que afetaria suas matrizes, rompendo com diversas de suas teses centrais. Dentre essas, destacam os autores, a da exclusiva proteção de bens jurídicos determinados, a da intervenção mínima e a da necessidade. Em contrapartida, dar-se-ia uma expansão de leis simbólicas, com o recurso abusivo à criminalização de condutas de perigo abstrato, às normas penais em branco e à criação de bens jurídicos destituídos de substancialidade.13 A responsabilização da pessoa jurídica constitui, ainda, outro motivo de repúdio à criminalização das ações contra o meio ambiente, na medida em que, numa perspectiva de política criminal, não haveria eficácia da lei se excluídos tais entes da qualidade de sujeitos ativos de crimes. Ocorre, porém que o Direito Penal fica atado, nessas questões, a um conceito pré-jurídico ou ontológico de pessoa, concluindo pela impossibilidade de imputação de resultados a esta entidade. A falta de substrato (vida humana) na personalidade jurídica dos entes morais tem levado muitos penalistas a relutar no reconhecimento nesse ente de uma vontade distinta da dos seus membros, vontade capaz de agir culpavelmente. 14 Teme-se, portanto que os princípios liberais que pretendem garantir a liberdade individual sejam afetados por essa inclusão. Além do mais, argui-se o problema de uma penologia para a pessoa jurídica, já que, em princípio, a pena por excelência - privação corporal da liberdade - não lhe pode ser aplicada. Inobstante tais oposições, no Brasil e na maioria dos países ocidentais as legislações têm-se decidido a favor da imputação à pessoa jurídica.15

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Se considerarmos que a função do direito penal é proteger os bens jurídicos, que são os valores considerados dignos de tutela, tais como a vida, a liberdade e o patrimônio, a norma penal incrimina as condutas que expõem a perigo ou provocam lesões a esses bens, ainda que essa proteção, dirá Urs Kindhäuser, não se refira a esses bens diretamente, mas à relação deles com os seus titulares.16 O objeto da ação é o objeto real sobre o qual incide a conduta típica do sujeito ativo da infração penal. Ele é uma realidade empírica passível de apreensão sensorial, podendo ser corpórea (homem, animal ou coisa), ou incorpórea (honra, por exemplo). O objeto da ação pertence a uma concepção naturalista da realidade, diferentemente do bem jurídico, que corresponde, em sua essência, à consideração valorativa sintética, embora os delitos de mera conduta não possuam objeto.17 O bem jurídico, no entanto, não se confunde com o objeto material do crime, que é a coisa, ou pessoa, sobre os quais a conduta (ação ou omissão) recai no plano real e causal, ao passo que o sujeito passivo do crime é o titular do bem jurídico ofendido.18 Seja como for, o bem jurídico fundamenta a criminalização das condutas, legitimando a intervenção penal, de modo que a lesão a um bem jurídico se relaciona a uma conduta típica que viola um valor protegido penalmente, que pode ou não estar referido ao objeto da ação. 19

3. Qual o bem jurídico violado nos crimes contra os animais? A maior e mais interessante polêmica sobre a criminalização dos atentados ao meio ambiente está ligada ao bem jurídico. Como foi dito, este ramo do Direito encontra sua legitimação na proteção de bens jurídicos considerados essenciais ao individuo e à comunidade, conforme Luis Regis Prado, os quais consistem

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em valores e interesses válidos para uma determinada comunidade. 20 Vale dizer que essa dimensão sociocultural do bem jurídico permite que se considere a Lei 9605/98 um avanço, uma vez que representa uma preocupação com o que, em tempos recentes, não passava de fonte explorável de recursos. Não existem dúvidas quanto à legitimidade da incriminação, não só em uma perspectiva formal, ou seja, em razão de sua fonte - a Constituição Federal - e do referido comando para criminalização nela contido para o legislador ordinário, como também pelo valor da natureza e dos seres que nela habitam. O fato do ambientalismo, no âmbito jurídico, reconhecer, no meio ambiente a condição de bem, dificulta a abertura de uma nova perspectiva de tutela dos entes da natureza em razão do sua própria importância e não da função que têm para o homem. Ocorre, como lembra Zaffaroni, que a ideia de bem favorece a associação da proteção jurídica em favor, apenas, da espécie humana como utilidade, forma como entende, aliás, a maioria dos criminalistas. 21 O bem jurídico, como diz Regis Prado, é o resultado da valoração levada a cabo pelo legislador, revelando o verdadeiro fim de tutela da norma penal ambiental, e isto significa que o ambiente seria o bem jurídico protegido, enquanto os animais selvagens, plantas, água, solo e atmosfera, são apenas objeto da ação que revelam a concretização do injusto típico. 22 De fato, à exceção do Equador e da Bolívia, as constituições que inseriram no seu bojo a proteção ambiental, parecem considerar o ambiente um Direito Humano, a exemplo da Constituição Brasileira. A tutela dispensada pelo Direito Penal ao meio ambiente não se funda, no Brasil, em compreensão sequer próxima das cosmovisões andinas que entendem serem a vida e o bem viver, o valor central a ser cultivado por todos e não apenas a sobrevivência dos seres. Não é estranha ao Direito, todavia, essa dimensão, já referida por Luis Regis Prado, quando convoca as enumerações de Santo Agostinho para definir o meio ambiente,

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ao qual confere também o sentido de “conjunto de problemas relativos à qualidade de vida, à felicidade dos seres”. 23 É desejável que a visão reducionista - puramente capitalista e instrumental de meio ambiente como bem - passe a ser influenciada por aquela dos povos andinos, para os quais a proteção da natureza significa gerar também condições de felicidade, solidariedade e reciprocidade entre todos os seres. Trata-se de concepção que ultrapassa a ideia fragmentada de meio ambiente e seus componentes para entender que há uma relação indivisivel de pessoas e de seres com a Mãe Terra ou a Pacha Mama. O animal, assim como as plantas, a atmosfera, as águas e o solo, é considerado apenas como objeto da ação, o que causa ainda maior polêmica, mesmo no paradigma oficial. O objeto da ação “vem a ser o elemento típico sobre o qual incide o comportamento punível do sujeito ativo da infração penal”. Ele é objeto da experiência afetado pela conduta do agente”.24 No que diz respeito à eficácia formal da norma, talvez esse entendimento tradicional não produza nenhuma diferença, e não se pode negar o sentido restrito que esta compreensão faz das formas de vida existentes na terra. Claus Roxin, constatando a impropriedade de tratar o animal como puro objeto da ação no crime de maus tratos, prefere dizer que, no caso, há crime sem bem jurídico, contrariando o princípio penal da exclusiva tutela de bem jurídico, conforme já referido. Não nega, porém o autor, que o sentimento de solidariedade para com certos animais superiores cause repulsa diante de atos de crueldade com eles praticados e, por isto mesmo, acolhe esta exceção à ideia de bem jurídico. 25 A esse propósito, vale referir que, na Eupora, alguns países deram um giro no olhar que dirigem aos animais, buscando liberá-los da condição de coisa para situá-los numa posição intermediária. Podem ser citados, a Suiça, conforme os artigos 80 e 120 da Constituição da Confederação Helvética e também o artigo 641 do Código Civil; a Alemanha, no artigo 20º de sua

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Constituição26 além da Aústria ( primeiro país a aprovar, em Março de 1988, Lei Federal sobre o estatuto jurídico do animal) e a Polônia. No Código Civil austríaco, está disposto que “os animais não são coisas e que serão tutelados através de leis especiais”. 27 Ser-lhes-ão aplicados os preceitos que se referem a coisa apenas quando haja disposição em contrário. Na França, por outro lado, apenas o Código Civil mantinha, até o ano de 2015, o status de coisa, na qualidade de bens móveis, para animais. O Código Penal e o Código Rural, assim como o Direito europeu já lhes dispensava o tratamento de animal sensível. De acordo com Olivier Le Bot a mudança de qualificação é, porém, meramente proclamatória, porque os animais continuam a ser vendidos e abatidos. 28 A União Europeia dispõe de farto corpo legislativo que visa a proteção jurídica do animal, podendo-se apontar o Protocolo Anexo ao Tratado de Amsterdam Relativo ao Bem-Estar Animal. Por seu turno o Conselho da Europa tem desenvolvido documentos normativos que visam proteger os animais.29

4. Os animais como sujeitos passivos dos crimes ambientais Dotados de cérebro e de sistema nervoso os animais não humanos são capazes, como os homens, de sentir dor, fenômeno que dispensa uma distinção por espécie, e é este potencial para padecer, para sentir uma sensação desagradável e penosa, que habilita os animalistas a falarem de um Direito dos animais em não sofrerem uma dor desnecessária.30 A lei 9605/98, em seu artigo 32, proíbe, exatamente, ações que possam causar esse tipo de sofrimento aos animais, o que pode revelar a imprecisão do bem jurídico tutelado pela norma. Se todos os tipos contidos na Lei de Crimes Ambientais têm como finalidade a proteção do meio ambiente, há que se indagar em que medida a crueldade contra um animal doméstico, por

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exemplo, afeta ume bem jurídico autônomo, diferente do equilíbrio ambiental. Aliás, uma leitura atenciosa dos dispositivos, com destaque para as expressões: maus tratos, ato de abuso, experiência dolorosa (elementos do tipo descrito no artigo 32) proporciona argumentos para uma interpretação de que a incriminação da prática de crueldade com animais resulta do fato destas criaturas serem sensíveis. Cleopas Santos acrescenta um argumento de natureza dogmática para reforçar a compreensão postulada, ao afirmar que a agravação da pena no caso de morte do animal resultante de maus tratos ou crueldade experimental (artigo 32, 2º, da Lei 9605) revela uma preocupação do legislador com o desvalor do resultado que, advém, sem dúvida, do entendimento de que o Direito à vida e à integridade física são titularizados pelos animais.31 Em recente decisão, o Supremo Tribunal Federal apoiou esse entendimento quando, no julgamento da inconstitucionalidade de Lei cearense que regulava a vaquejada, afirmou que esta prática impõe sofrimento aos animais. 32 A sensibilidade do animal foi a tese central do STF, uma vez que os Ministros se basearam em laudos técnicos que comprovavam que os animais eram passíveis de sofrimento durante a vaquejada. O Ministro Relator Marco Aurélio Melo, por exemplo, afirmou que: O sentido da expressão “crueldade” constante da parte final do inciso VII do § 1o do artigo 225 do Diploma Maior alcança, sem sombra de dúvida, a tortura e os maus-tratos infringidos aos bovinos durante a prática impugnada, revelando-se intolerável, a mais não poder, a conduta humana autorizada pela norma estadual atacada. No âmbito de composição dos interesses fundamentais envolvidos neste processo, há de sobressair a pretensão de proteção ao meio ambiente.33

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O Ministro Luis Roberto Barroso, por seu turno, destaca que: Na vaquejada, a torção brusca da cauda do animal em alta velocidade e sua derrubada, necessariamente com as quatro patas para cima como exige a regra, é inerentemente cruel e lesiva para o animal. Mesmo nas situações em que os danos físicos e mentais não sejam visíveis de imediato, a olho nu, há probabilidade de sequelas graves que se manifestam após o evento. De todo modo, a simples potencialidade relevante da lesão já é apta a deflagrar a incidência do princípio da precaução.34

A tortura, o sofrimento deliberado infligido a um ser sensível, merece grande reprovação, ainda mais se considerado como esporte. Sua reprovação é, em certas situações, maior que a eliminação da vida, por vezes, tolerada pelo Direito. Basta ver que o homicídio é crime prescritível enquanto a tortura, pelas normas internacionais, não o é. Tudo leva a crer que a falta de coragem - em avançar na formulação correta do valor protegido - tenha inibido os legisladores e doutrinadores em admitir que o sentimento de solidariedade do homem para com outros animais superiores é o bem jurídico protegido, como chegam a sugerir Greco35 e José Duarte.36 Para Jorge Buompadre, nos crimes contra a fauna, o bem jurídico protegido pela norma penal deve ser a própria fauna, independentemente dos benefícios desta proteção para o equilíbrio ecológico e a qualidade de vida humana.37 Segundo Zaffaroni, o ambientalismo jurídico ainda não avançou até o reconhecimento de outros entes da natureza como titulares de direito, ainda que a admissão da existência de novos sujeitos de direito não humanos pelo Direito Penal Ambiental seria uma providência sensata, porque isto poderia levar a reconhecer tal qualidade nos elementos da natureza, tais como animais, rios e plantas. 38 Quando os animais forem os autores da conduta, a posição do Direito deve ser semelhante aquela adotada para as crianças e o doentes mentais, ou seja, de natureza eminentemente administrativa. 39 44 | RBDA, Salvador, V. 11, N. 23, pp. 33-51, Set - Dez 2016


A Suma Qamaña, todavia, o con-viver bem, foi abrigado pela Constituição da Bolivia de 2009 em seu preâmbulo, e o Título I, refere-se a “princípios ético-morais da sociedade plural” (art. 8). 40 Destaca-se, nessa cosmovisão, o realce dado à capacidade de ser acolhido e compartilhar a vida com os demais. Deve-se ressaltar, todavia que esta boa convivência não deve ser apenas entre pessoas ou humanos, mas envolve, necessariamente todos os animais, plantas e toda a Pacha Mama, noção que difere daquela que considera os entes da natureza apenas como simples objeto atingido pela ação do sujeito ativo do crime. Sobre o viver bem, o Chanceler David Choquehuanca, no Foro de São Paulo, em agosto de 2010 afirmou que : “Viver bem é saber escutar. Há um princípio, que é o ejwa que significa compartir, saber escutar conselhos, saber aceitar conselhos, e não apenas escutar aos seres humanos, mas também às plantas, temos que despertar nossa sensibilidade”.41 A doutrina tradicional entende que nos crimes contra a fauna os animais são simplesmente o objeto material do tipo, uma vez que o bem jurídico protegido na verdade é o equilíbrio ecológico do meio ambiente. A partir de uma postura ideológica menos antropocêntrica, porém, alguns autores afirmam que os animais são os verdadeiros titulares dos bens jurídicos protegidos, e que eles possuem valor intrínseco independente do valor econômico ou científico que representem para os seres humanos.42 De fato, o sujeito passivo formal de um delito pode ser o Estado, que, sendo o titular do mandamento proibitivo, é lesado pela conduta do sujeito ativo, mas o sujeito passivo material é o titular do interesse penalmente protegido, podendo ser pessoa física, jurídica, o Estado ou uma coletividade destituída de personalidade.43 Se um vândalo, por exemplo, quebra o vidro do seu carro, ele viola um dever direto em relação a você, o dever de respeitar o seu direito de propriedade, mas ninguém pode dizer que ele tinha um dever direto em relação ao próprio carro. Não obstante, se alguém machuca uma criança, não se pode dizer que ele

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descumpriu apenas um dever indireto em relação aos seus pais, pois o nosso dever de não machucá-la é um dever a que somos diretamente obrigados em relação à própria criança. O mesmo deve ocorrer com os animais, que são seres sensíveis e afetuosos, razão pela qual temos o dever direto de respeitar seus direitos morais. 44 Para Luis Chiesa, se os animais sensíveis são protegidos são protegidos pela lei penal significa que este sofrimento é um dano juridicamente relevante, de modo que não deve haver nenhum impedimento em tratar esses seres sensíveis como verdadeiras vítimas ou sujeitos passivos desses delitos.45 Está claro que o objetivo da criminalização dos maus-tratos contra os animais não é proteger o direito de propriedade. Os animais silvestres, por exemplo, não são passíveis de apropriação. Se considerarmos que o objetivo desta tipificação é neutralizar indivíduos perigosos, sob o fundamento de que aqueles que maltratam animais são mais propensos a também maltratar os seres humanos, estaríamos diante de um crime sem vítimas, como no caso do porte de drogas ou dirigir embriagado. No entanto, nos parece que o objetivo desse tipo é proteger os animais de uma dor injustificável, e neste caso a vítima do delito é o próprio animal.46 Se tal sentimento poderá conduzir à extensão do conceito de sujeito de direito à fauna, ainda é imprevisível, mas poderá ser medianeiro de novas e dignas formas de tratamento jurídico a lhes ser dispensado.

5. Conclusões A visão do homem sobre o meio ambiente varia conforme a percepção e a compreensão que ele é capaz de ter sobre a natureza e sobre os seres vivos que nela habitam, de modo que a proteção ambiental varia de acordo com esta visão.

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Uma importante exceção à visão que reduz a natureza a uma fonte de satisfação de interesses ou prazeres e apreensões humanas é aquela trazida pelo constitucionalismo andino, que postula a indivisibilidade da vida e do bem viver de todos os seres. Assim, como ocorre com o Direito Ambiental tradicional, o animal é considerado uma coisa e, no Direito Penal, mero objeto da ação do agente nos crimes contra o meio ambiente, uma vez que o ser humano é o verdadeiro valor protegido pela norma. O Direito Penal busca legitimar-se pela tutela de valores considerados essenciais ao grupo social que está vinculado, através de um sistema logicamente articulado e coerente, e no qual o conceito ontológico de pessoa orienta suas pautas. Surge um novo olhar sobre os animais, podendo-se afirmar que, apesar da perspectiva antropocêntrica, uma nova visão vem sendo elaborada, de modo que é possível perceber nelas de forma latente - o reconhecimento do valor intrínseco do meio ambiente, de modo que a natureza e os animais sejam as verdadeiros bem jurídicos protegidos, e no caso dos animais, as próprias vítimas dos delitos de maus-tratos. O refinamento da percepção dos animais e da natureza como ente sensível, capaz de partilhar seus dotes com os seres humanos, pode significar um falso paternalismo, mas, quem sabe, pode ser a preparação de uma mediação necessária para incluílos em um grande abraço inclusivo da Pacha Mama a todos os seus filhos.

6. Notas de referência 1

O leshi é um ser das floretas, conforme lenda do leste europeu, cuja gênese são os fantasmas de pessoas que morreram na floresta às quais espancam até a morte.

2

LARRÈRE, Catherine. Éthiques de l’environnement - Cairn.info em:https://www.cairn.info/revue-multitudes-2006-1-page-75.h. Acesso em: 23 set.2016

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3

Tocqueville, De la démocratie en Amérique, II, chap. XVII, Paris, GF, 1981, t. 2, p. 94.

4

LARRÈRE, Catherine. Éthiques de l’environnement - Cairn.info em:https://www.cairn.info/revue-multitudes-2006-1-page-75.h. Acesso em: 23 set.2016

5

Ibid.

6

Os animais no Egypto antigo. Disponível em: http://www.fascinioegito. sh06.com/introduz.htm. Acesso em: 1 Out. 2016

7

GORDILHO, Heron. Abolicionismo animal. Salvador:Evolução. 2009, p. 32

8

Biblioteca didática de tecnologias ambientais. Disponível em: http//www. fec.unicamp.br/~bdta/premisas/histórico.htm. Acesso em: 18 out. 2016.

9

BRASIL. Lei n. 9.605/98. Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9605.htm. Acesso em 20.10.2016.

10

BRASIL. Constituição Federal. Disponível em http://www.senado.gov. br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/ind.asp. Acesso em 20.10.2016.

11

HASSEMER, Winfried. Persona, mundo y responsabilidad: bases para una teoría de la imputación en Derecho Penal. Valencia: Ed. Tirant Le Blanch, 1999. Versión al español de Francisco Muñoz Conde y Maria Del Mar Díaz Pita.

12

FERNANDES, Paulo Silva. Globalização, Sociedade de Risco e o Futuro do Direito Penal. Livraria Almedina-Coimbra, 2001.

13

GORDILHO, Heron. Direito Ambiental Pós-Moderno. Curitiba:Juruá. 2010, p.70.

14

Ver PLANAS, Ricardo Robles. Crimes de Pessoas Coletivas? A Propósito da Lei Austríaca sobre a Responsabilidade dos Agrupamentos pela Prática de Crimes. Temas de Direito Penal – Parte Geral. Luís Greco e Danilo Lobato (Orgs). Rio de Janeiro: Renovar, 2008. P. 136 a 138.

15

PRADO, Luis Regis. Direito Penal do ambiente, 5ª Ed. São Paulo: RT, p. 113, p.129

16

BRANDÃO, Cláudio. Teoria jurídica do crime. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 9.

48 | RBDA, Salvador, V. 11, N. 23, pp. 33-51, Set - Dez 2016


17

TOLEDO, Maria Izabel V. A tutela jurídica dos animais no brasil e no direito comparado. Revista Brasileira de Direito Animal v. 7 n. 11 Jul – Dez 2012, p.206. Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/ article/viewFile/8426/6187. Acesso em 18 out 2016.

18

SOUZA, Paulo Vinicius S. de. O meio ambiente (natural) como sujeito passivo dos crimes ambientais. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, Revista dos Tribunais, n. 50, p. 62, set./out., 2004.

19

TOLEDO, Maria Izabel V. A tutela jurídica dos animais no brasil e no direito comparado. Revista Brasileira de Direito Animal v. 7 n. 11 Jul – Dez 2012, p.206. Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/ article/viewFile/8426/6187. Acesso em 18 out 2016.

20

PRADO, Luis Régis. Curso de Direito Penal. 12ª ed. São Paulo: RT, 2013, p. 98.

21

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La naturaleza como persona: Pachamama y Gaia. Em: Bolivia: Nueva Constitución Política del Estado. Conceptos elementales para su desarrollo normativo, 109–132. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2010. Disponível em: https://neopanopticum.wordpress.com/2012/09/02/la-naturaleza-como-personapachamama-y-gaia-e-r-zaffaroni/. Acesso em: 13 out. 2016.

22

PRADO, Luis Regis. Direito Penal do ambiente, 5ª Ed. São Paulo: RT, p. 99

23

PRADO, Luis Regis. Direito Penal do ambiente, 5ª Ed. São Paulo: RT, p. 113.

24

Op.cit. p. 105.

25

GRECCO, Luis. Princípio da lesividade e crimes de perigo abstrato, ou algumas dúvidas diante de tantas certezas. Revista Brasileira de Ciências Criminais. São Paulo: RT,n. 49. pp. 89-147.

26

Na responsabilidade pelas futuras gerações, o Estado protege também os fundamentos naturais da vida e os animais, de acordo com os preceitos da ordem constitucional.

27

PEREIRA, André Gonçalo.O bem-estar animal no direito civil e na investigação . - Estudo Geral. Disponível em:https://estudogeral.sib.uc.pt/ bitstream/10316/2562/1/pag151-163-AndrePereira.pdf. Acesso em: 27 set. 2016.

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28

LE BOT, Olivier. Conferência de abertura, V Congresso Mundial de Bioética e Direito Animais. Auditório da OAB. Curitiba, 26 de outubro de 2016

29

Vide a Convenção Europeia para a Proteção dos Animais de Companhia (DR, I.ªSérie-A, n.º 86, de 13.04.1993.

30

RYDER, Richard. Os animais e os direitos humanos. Revista Brasileira de Direito Animal v 3 n.4 , p. 68. Disponível em https://portalseer.ufba.br/ index.php/RBDA/article/viewFile/10458/7464 . Acesso em 19 out. 2016.

31

SANTOS, Cleopas. Experimentação animal e Direito Penal. Curitiba: Juruá, 2015, p. 128.

32

GORDILHO, Heron e FIGUEREDO, Francisco José Garcia. Un análisis de la decisión de la corte federal suprema que declarará la inconstitucionalidad de la ley reguladora de las ‘‘vaquejadas‘‘ en Brasil. Cadernos de Dereito Actual. Disponível emhttp://www.cadernosdedereitoactual.es/ ojs/index.php/cadernos/article/view/117. Acesso em 19.10.2016.

33

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADI 4983. Disponível em: http:// www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=326838. Acesso em 17 out 2016.

34

Ibid.

35

GRECO, Luis - Princípio da ofensividade e Crimes de perigo abstrato op. cit. p 104.

36

DUARTE, José. Comentários à lei das Contravenções Penais. Parte especial. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1958, p.315.

37

BUOMPADRE, Jorge. Os delitos contra a fauna na República Argentina. Revista Brasileira de Direito Animal v.9 n.15. Jan –abr 2014, ps.8384. Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/ view/11308. Acesso em 15 out. 2016.

38

Op.cit. p. 113.

39

ZAFFARONI, Eugenio Raúl. La naturaleza como persona: Pachamama y Gaia. Em: Bolivia: Nueva Constitución Política del Estado. Conceptos elementales para su desarrollo normativo, 109–132. La Paz: Vicepresidencia del Estado Plurinacional de Bolivia, 2010. Disponível em: https://neopanopticum.wordpress.com/2012/09/02/la-naturaleza-como-personapachamama-y-gaia-e-r-zaffaroni/. Acesso em: 13 out. 2016.

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40

BOLÍVIA. Constitución Política del Estado (CPE) (7-Febrero-2009) . Disponível em http://www.oas.org/dil//esp/Constitucion_Bolivia.pdf. Acesso em 19.11.2016.

41

JAKOBSEN, Kjeld. XX Encontro do Foro de São Paulo (FSP). Disponível em: http://www.teoriaedebate.org.br/colunas/mundo/o-xx-encontrodo-foro-de-sao-paulo, Acesso em 20 nov. 2016. BENJAMIN, Antonio H. V. Introdução ao direito ambiental brasileiro. In: CONGRESSO INTERNACIONAL DE DIREITO AMBIENTAL: a proteção jurídica das florestas tropicais, 3., 1999, São Paulo. Anais… São Paulo: IMESP, 1999, v. 1. p.72.

42

43

TOLEDO, Maria Izabel V. A tutela jurídica dos animais no brasil e no direito comparado. Revista Brasileira de Direito Animal v. 7 n. 11 Jul – Dez 2012, p.208. Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/ article/viewFile/8426/6187. Acesso em 18 out 2016.

44

REGAN, Tom. A causa dos direitos dos animais. Revista Brasileira de Direito Animal v.8 n.12 Jan –Abr 2013, p. 23. Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/RBDA/article/view/8385/6003. Acesso em 11. 10. 2016.

45

CHIESA, Luís E. Das pessoas e do Direito Penal: a personalidade como prérequisito para vitimização. Revista Brasileira de Direito Animal v.6 n.9. Jul -Dez 2011, p.197 Disponível em https://portalseer.ufba.br/index.php/ RBDA/article/view/11726. Acesso em 11.10.2016.

46

Para CHIESA, Luís E. Porque é um delito esmagar um peixinho dourado? : dano, vítima e a estrutura dos crimes de crueldade contra os animais. Revista Brasileira de Direito Animal v.8 n.13. Maio-Ago 2013, p. 48: “As decisões de criminalizar os maus-tratos negligentes contra animais de estimação e proibir rinhas de cães e galos pode ser facilmente contasbilizadas segundo essa concepção. Na medida em que os maltratos negligentes fazem com que eles sofram desnecessariamente, é perfeitamente sensate proibir tal conduta, a fim de proteger tais seres”

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Uma reflexão da aplicação do princípio da insignificância aos crimes ambientais sob uma perspectiva dos animais não humanos A Reflection of the principle of insignicance in environmental crimes in a non human animal perspective Reginaldo Pereira Doutor em direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC - (2013). Mestre em Ciências Ambientais pela Universidade Comunitária da Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ - (2008). Especialista em Meio Ambiente e Legislação Ambiental pela Universidade do Estado de Santa Catarina - UDESC - (2003). Membro/Pesquisador da Rede de Pesquisa em Nanotecnologia, Sociedade e Ambiente - RENANOSOMA. Líder/Pesquisador do Grupo de Pesquisa Direito, Democracia e Participação Cidadã. Professor titular do Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Direito (PPGD) da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ. Professor titular do Curso de Graduação em Direito da Universidade Comunitária da Região de Chapecó - UNOCHAPECÓ. Atualmente desenvolve pesquisas nos seguintes temas: Cidadania; Sociambientalismo; Direito Ambiental; Sustentabilidade; Novas Tecnologias; Inovação Tecnológica; Tecnocracia; Nanotecnologia; Regulação e Controle Social. Email: rpereira@ unochapeco.edu.br

Ana Cristina Fogaça Mestranda em Direito, Cidadania e Socioambientalismo na Universidade Comunitária da Região de Chapecó, Bolsista da CAPES, Advogada, Membro da Comissão de Direitos dos Animais da OAB/SC. E-mail: anafogaca@unochapeco.edu.br Recebido: 07.11.2016 | Aceito: 23.11.2016

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RESUMO: O presente artigo tem como objetivo fazer uma reflexão acerca da aplicação do princípio da insignificância envolvendo animais não humanos vítimas de um crime ambiental à luz da concepção biocêntrica. Para tanto, o estudo aborda as concepções antropocêntrica e a biocêntrica acerca da relação do homem e o ambiente para compreender a tutela jurídica aos animais não humanos. Atrelado a isto, discorre da possibilidade de aplicação do referido princípio ao direito penal ambiental fazendo uma abordagem do princípio da dignidade da pessoa humana com base na dimensão ecológica, de ser atribuído a outras formas de vida. A compreensão dessas premissas é necessária para adentrar na questão do presente estudo, a partir da reflexão de posicionamentos de jurisprudências pátrias vinculadas à matéria. PALAVRAS-CHAVE: Animais não humanos; Tutela Penal Ambiental; Princípio da Insignificância; Dignidade. ABSTRACT: This article aims to reflect on the principle of insignificance involving nonhuman animals victims of environmental crime under the biocentric conception. Therefore, the study addresses the anthropocentric conceptions and biocentric about the relationship of man and the environment to understand the legal protection to nonhuman animals. Coupled to this, discusses the possibility of applying that principle to environmental criminal law making an approach to the principle of human dignity based on the ecological dimension, to be assigned to other forms of life. Understanding these assumptions is necessary to enter on the question of this study, from the reflection of jurisprudence homelands placements related to the matter. KEYWORDS: Not-human animals; Criminal Environmental Trusteeship; Principle of Insignificance; Dignity. SUMÁRIO: 1. Introdução; 2. Do direito na defesa dos animais não humanos; 3. O princípio da insignificância no direito penal ambiental; 4. É compatível a aplicação da insignificância envolvendo animais não humanos vítimas de um crime à luz do não antropocentrismo? 5. Considerações Finais; 6. Notas de Referências.

1.INTRODUÇÃO O ser humano está vivendo uma crise de paradigma ao ocupar a posição de “seres superiores” em relação a todos os demais seres que habitam a Terra. Durante muito tempo o ordenamen-

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to jurídico brasileiro, no que tange aos animais não humanos, desconsiderou a sua natureza intrínseca como seres sencientes, considerando-os como bens semoventes. A concepção jurídica tradicional, que descende do antropocentrismo, se baseia em interesses humanos para fins econômicos. Por conseguinte, percebe-se que os crescimentos das cidades, o desenvolvimento econômico, trouxeram a escassez de recursos naturais e fez o ser humano perceber que suas ações causam grandes interferências na natureza, dando início a necessidade de uma nova visão de mundo denominada de biocentrismo. Nesse sentido, a Constituição Federal da República Federativa do Brasil em 1988 tornou o meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental, onde instituiu medidas de proteção em face às condutas que poderiam lesioná-lo. Entretanto, os tribunais pátrios aplicam o Princípio da Insignificância para excluir lesões ambientais penalmente irrelevantes. Diante dessa problemática, surge a questão deste estudo especificamente em relação aos animais não humanos: é compatível a aplicação da insignificância envolvendo animais não humanos vítimas de um crime ambiental à luz do novo paradigma biocêntrico? Este tema é um desafio, eis que envolve a dignidade da pessoa humana e a dignidade dos animais não humanos uma vez que, ao aplicar o princípio da insignificância em uma conduta descaracteriza sua reprovação pelo Direito, tornando a conduta atípica, por outro lado quem mais sofre com isso são os animais não humanos, que apesar de existir leis ambientais protegendo-os o direito penal possibilita a aplicação do referido princípio. Esse contexto foi o que motivou a elaboração do presente estudo, bem como a relevância que o mesmo tem na sociedade contemporânea para refletir e repensar sobre: até que ponto é insignificante uma vida de um animal não humano? Para tanto, a pesquisa será teórica, prescritiva, considerando, para isso fontes bibliográficas, materiais doutrinários e jurispru-

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dências e far-se-á pelo método dedutivo, partindo de premissas gerais para o particular. Em um primeiro momento, analisar-se-á as concepções antropocêntrica e a biocêntrica para melhor compreender acerca dos direitos dos animais, enfatizando-se o princípio da dignidade da pessoa humana com base na dimensão ecológica para ser atribuído a outras formas de vida. Por conseguinte, discorre-se da importância da tutela penal ambiental para compreender o princípio da insignificância em matéria penal ambiental e sua aplicação aos crimes ambientais. Por fim, faz-se a análise da problemática do presente artigo, a partir de posicionamentos de doutrinas e jurisprudências vinculadas à matéria.

1. Do direito na defesa dos animais não humanos Desde a época do filósofo Sócrates que estudava o homem em sociedade, de Platão e Aristóteles que afirmava que a finalidade dos animais era a de tão somente servir ao homem, podese perceber que o direito tem como estrutura basilar o antropocentrismo. 1 Nesse sentido, Edna Dias 2 elucida que: Aristóteles vê no fato do homem ter o dom da palavra uma forma de elevação, ao ser comparado com os outros animais que só tem a voz para expressar o prazer e a dor. Ele vê como natural o domínio do homem sobre o animal da mesma forma que para ele é natural o domínio do homem que tem ideias sobre aquele que só tem a força. Aristóteles inclui o animal na sociedade como escravo.

Essa dominação do homem sobre o animal concerne ao antrocentrismo clássico, que possui a principal premissa a ruptura homem e natureza. Sob a visão antropocêntrica e privatista aplicava-se o direito apenas aos homens que viviam em sociedade, sendo os animais considerados como coisas. 3

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Os animais e todos os elementos da natureza enquadram-se como objetos e o homem se posiciona como o único ser superior de todo o universo detentor de todas as coisas. Assim, das concepções éticas das relações do homem e o meio ambiente são duas: o antropocentrismo e o biocentrismo. 4 O antropocentrismo de origem grega coloca o homem no centro de todas as relações e, sobretudo, importando o bemestar dos seres humanos sem preocupação com os demais seres vivos que servem como instrumentos para seus interesses exclusivos. 5 A percepção antropocêntrica clássica perdurou durante muito tempo na história que se resume ao um preconceito que se refere a diferenças físicas e intelectuais ou de capacidade racional entre homens e animais, assim como ocorreu “o preconceito contra negros, mulheres e judeus em face da efetiva existência de raça, sexo e crença”. 6 Alguns autores sustentam uma concepção denominada de antropocentrismo jurídico ecológico, ou relativo, ou alargado, que reconhece que não apenas seres humanos tem um valor intrínseco, mas sim outras formas de vida, atribuindo uma dignidade para além da humana. 7 Na concepção biocêntrica o homem não é superior aos demais seres vivos, mas parte integrante. 8 Dessa maneira, pensadores como Montaigne, Hume e Rousseau, observaram que o sofrimento ou a capacidade para sentir dor e prazer, constitui-se como o marco de distinção entre seres em relação aos quais se possui um dever moral de respeito dos que não se possui esse dever. 9 Assim, leciona Laerte Fernando Levai: O mecanismo da dor, associado a uma ação de causa e efeito e que se relaciona, em regra, à destruição de células ou tecidos do organismo, é semelhante em todas as criaturas. Esse fenômeno também se manifesta no campo psíquico, quando a angústia decorrente do confinamento de um animal livre, por exemplo, pode levá-lo à morte. A dor

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é universal. Não há porque graduá-la com base na diferença entre as espécies. 10

Na mesma linha, Jeremy Benthan em 1789, escreveu o primeiro texto de ética, onde aparece claramente o apelo ao aperfeiçoamento moral do homem por intermédio da inclusão, na comunidade moral humana, dos interesses de todos os animais. 11

Percebe-se que com o passar dos séculos o ser humano foi identificando a natureza da sensibilidade à dor e a semelhança da anatomia comparada dos animais não humanos aos quais se possuem um dever de respeito dando início a uma nova corrente de concepção moral de visão de mundo. Assim preceitua Keith Thomas, “A ideia (sic) da superioridade humana sofreu o seu golpe decisivo com a descoberta da anatomia comparada que evidenciava a semelhança entre a estrutura dos corpos humano e animal”. 12 Concomitantemente, a problemática quanto à crise do meio ambiente tornou possível o debate sobre a maneira de entender o mundo, como bem assevera Junges: Os problemas ecológicos não dependem de uma simples solução técnica, reclamam uma resposta ética. Requerem uma mudança de paradigma na vida pessoal, na convivência social, na produção de bens de consumo e, principalmente, no relacionamento com a natureza. [...]. Tratase, no fundo, de uma mudança de mentalidade e visão do mundo. 13

A preocupação ecológica traz uma nova corrente, levanta questões fundamentais para a ética. Esse contexto, calcado em outras formas de vidas, onde considera o ser humano apenas um elemento no ecossistema da natureza ao lado das outras formas de vida, eis que o enfoque central é a vida, contribuiu para o denominado biocentrismo. 14 A corrente biocêntrica do direito ambiental para Levai15, “propôs à natureza uma valor em si, na tentativa de resgatar

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o imperativo ético essencial (não agredir a vida, seja ela qual for)”. Assim, o não antropocentrismo são todas as correntes que rejeitam a doutrina antropocêntrica, como o Animalismo que se divide em: Bem-estarismo de Peter Singer e o Abolicionismo de Tom Regan. 16 Para Leite et al essa corrente, “estabelece a inexistência de qualquer linha de separação rígida entre o vivo e o inanimado, entre o humano e o não humano, contestando, assim, a hierarquia antropocêntrica”.17 Dessa maneira, a dimensão ética projeta-se muito além das normas jurídicas para alcançar indistintamente todos os seres vivos, como preceitua Levai: Somente o fato de os animais serem criaturas sencientes já lhes deveria assegurar nossa consideração moral, impedindo a inflição de maus tratos ou a matança advinda de interesses humanos. Se a Moral está acima do Direito e se muitas vezes o comportamento dos animais revela neles a existência de uma singular vida interior, faz-se necessário expandir a noção do justo para além das fronteiras de nossa espécie. Se Direito e Moral – obedeçam, em tese, ao comando da Ética, somente conjugados entre si é que podem atingir a ordem jurídica verdadeiramente justa. 18

O não antrocentrismo, como visto acima, surgiu em um momento de destruição da natureza, da escassez dos recursos naturais, da moral acerca da vida dos animais, onde a vida é considerada o valor mais expressivo no ecossistema planetário. A partir desse momento, alguns filósofos do mundo inteiro se voltam para os direitos morais dos animais não humanos, dentre eles, Tom Regan e Peter Singer. Tom Regan tem sido um dos principais filósofos contemporâneos cuja argumentação se volta para a constituição de direitos morais para os animais. Para este filósofo, os animais não humanos, assim como os seres humanos, possuem um valor inerente, ou seja, se constituem como sujeitos-de-uma-vida. 19

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O conceito de sujeitos-de-uma-vida preceitua que os animais cuja autonomia prática esteja suficientemente evidenciada a ponto de se poder considerar não somente que estão vivos, mas que se constituem como sujeitos da vida que têm. Esses sujeitosde-uma-vida têm uma experiência de vida com menor ou maior valor, dependendo das condições ambientais naturais e sociais nas quais se encontrem. Esse valor menor ou maior nenhuma relação possui com a noção de utilidade. 20 Tais questões remetem a uma abordagem ética, sendo importante analisar a questão da senciência animal que corresponde ao princípio da igual consideração dos interesses semelhantes, tendo em vista a inclusão dos seres sencientes na comunidade moral humana. 21 Singer afirma que: A razão mais óbvia para se valorizar a vida de um ser capaz de sentir prazer ou dor é o prazer que ele pode experimentar. Se valorizarmos os nossos próprios prazeres – como os prazeres de comer, do sexo, de correr a toda velocidade e nadar num dia muito quente –, então o aspecto universal dos juízos éticos exige que estendamos a avaliação positiva de nossa experiência desses prazeres às experiências semelhantes de todos aqueles que são capazes de vivenciá-las. 22

Para Singer a igual consideração de interesses remete a igualdade da valoração da vida de um ser capaz de sentir dor e prazer, assim como os seres humanos podem experimentar. Ainda, para o mesmo autor Peter Singer, “Se um ser sofre, não pode haver nenhuma justificativa de ordem moral para nos recusarmos a levar esse sofrimento em consideração”. 23 Nas palavras de Rodrigues os animais não humanos possuem direito à vida igualmente como os humanos: O animal possui vida e direito à vida, exatamente por isso, precisa ser respeitado. Em outras palavras; é obrigatório compreender o direito à vida dos animais não-humanos igualmente ao direito dos humanos, ou seja, há de ser reverenciada a vida em sua existência até os limites naturais. Seres sensíveis, com capacidade de sofrer, independentemente do grau da dor da capacidade da manifestação, devem ser respaldados pelo princípio da igualdade e fazem jus a uma total con-

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sideração ética. Infligir dor aos animais não-humanos não desculpa qualquer tese de domínio dos interesses do homem, sobretudo quando o fim é a lucratividade.24

Diante dessa perspectiva atrelada a valoração da vida dos animais não humanos introduzida no âmbito social e jurídico insta ressaltar que essas premissas viabilizam uma extensão do direito da dignidade da pessoa humana ao da dignidade dos animais não humanos. A dignidade da pessoa humana é um princípio consagrado pela Constituição brasileira de 1988, expressamente consagrado como um princípio fundamental, é matriz axiológica, posto que os demais princípios partem do princípio da dignidade humana, juntamente com a proteção da vida.25 Assevera ainda Tiago Fensterseifer que a dimensão ecológica da dignidade humana contempla a qualidade do meio ambiente, não sendo possível ser restringida apenas a dimensão biológica ou física. Ressalta também que a reflexão acerca do princípio da dignidade ultrapassará a dimensão humana, sendo possível atribuir a dignidade às gerações humanas futuras, bem como a outras formas de vida. Acrescenta ainda Fensterseifer que, “diante do contexto de fragilidade do meio ambiente, tem-se que valorizar não só a dignidade da vida humana, mas também a dignidade da vida em geral”. 27 O mesmo autor Tiago Fensterseifer enfatiza que a, “ideia (sic) de dever moral de um tratamento não cruel dos animais deve buscar o seu fundamento não mais na dignidade humana ou na compaixão humana, mas sim, na própria dignidade inerente às existências animais não humanos”. 28 Dada à importância da dignidade dos animais não humanos o ordenamento jurídico lentamente introduziu a aplicação dos princípios de dignidade e igualdade à luz da concepção biocêntrica. O Estado restou obrigado a tutelar a fauna e, por conseguinte defender o bem maior, que é a vida do animas, uma vez que

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a Declaração Universal dos Direitos dos Animais exclama que todos tem direito iguais a vida e assim conforme o artigo 10, a morte desnecessária de um animal é crime contra a vida e constitui-se em biocídio. No Brasil os textos constitucionais anteriores à Constituição Federal de 1988 não trataram especificamente da proteção do meio ambiente. O Código Civil de 1916 foi, nas palavras de Milaré, “[...] o primeiro a legislar a tutela jurídica do meio ambiente”. 29 Após a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano realizada em Estocolmo em 1972 que efetivamente aumentou a conscientização sobre o meio ambiente no mundo, onde em 1978 foi apresentada a Declaração Universal dos Direitos dos Animais. Após, no o ordenamento jurídico brasileiro teve como consequências: a criação da Política Nacional do Meio Ambiente com a edição da Lei 6.938 de 1981; a edição da Lei 7.347 de 1985 que disciplinou a ação civil pública como instrumento processual específico para a defesa do meio ambiente e outros direitos difusos e coletivos; a promulgação em 1988 da atual Constituição Federal onde disciplinou o meio ambiente em um capítulo próprio e finalmente a edição da Lei 9.605 de 1998 que dispõe sobre os crimes ambientais. 30 A Constituição Federal de 1988 nas palavras de Oliveira, “[...] é um dos mais avançados conteúdos normativos na esfera constitucional em todo mundo, um conjunto de comandos, obrigações e instrumentos para a efetivação do meio ambiente [...]” e foi a primeira constituição brasileira a estruturar a questão ambiental. 31 O legislador constitucional brasileiro preocupado com a realidade ambiental atrelada a uma concepção de Estado democrático de direito criou uma nova ordem jurídica que compreende mecanismos de utilização racional dos recursos naturais com a finalidade de se ter um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 32

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Pelo seu objeto ser o meio ambiente é que o Direito Ambiental é chamado de direito de terceira geração ou direitos de solidariedade ou fraternidade. 33 Nas palavras de Danielle Tetu Rodrigues, o direito ambiental protege todos os tipos de vida: A tutela, agora, perpassa aos interesses do sujeito e alcança a tutela da vida em todas as suas formas e, consequentemente, os direitos do objeto são consagrados como legítimos. Destarte, o Direito ambiental não é erigido para a proteção individual do ser humano, mas sim, para afiançar a salvaguarda de condições essenciais para a garantia da vida em todas as suas formas. 34

Nesse sentido, de salvaguarda das vidas em todas as formas Medeiros e Albuquerque discorrem sobre a lógica do sistema brasileiro ainda atrelado de preconceitos, “A Constituição é precisa: proíbe a crueldade, proíbe maus-tratos e é partir da Constituição que se rege o sistema, e não o contrário. Essa é a lógica que deve imperar”. 35 Desse modo, o Brasil ao incluir a proteção da fauna em seu texto constitucional, reconhece direitos aos animais, onde todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, como também veda a submissão de animais à crueldade, eis que são seres sensíveis capazes de sentir dor e de sofrer, assim o legislador disciplinou a tutela penal do meio ambiente no artigo 225 da atual constituição. Por fim, insta ressaltar que a dimensão da crise ambiental se projeta na Ética e no Direito uma vez que é a crise do pensamento ocidental e da razão. 36 Nessa ótica a preocupação com o meio ambiente aumentou no mundo inteiro e se deu com as conferências internacionais surgindo tratados e declarações internacionais, como a Declaração dos Direitos dos Animais que não obstante, todos os animais têm direitos iguais à vida e ante a evolução dos conhecimentos científicos os animais devem ser considerados como sujeitos de

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sensações semelhantes aos humanos, criando leis para sua proteção. 37

2. O princípio da insignificância no direito penal ambiental A relevância do bem jurídico meio ambiente na ordem constitucional teve como consequência sua proteção pelo direito penal, uma vez que este possui a função de tutelar os valores fundamentais da sociedade. E para efetivar essa tutela penal a Constituição Federal dispõe, em seu artigo 225, §3º, que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, as sanções penais”. 38 Com tal previsão, não há dúvida para excluir a proteção penal do meio ambiente, pois se reconhece a relevância do ambiente para o homem e sua autonomia como bem jurídico, utilizandose do direito penal para garanti-lo, assim, o legislador constitucional erigiu expressamente o ambiente como bem jurídicopenal, ou seja, o ambiente deve ser objeto de tutela penal. 39 Diante disso, o ordenamento jurídico brasileiro impulsionado pelo direito penal mínimo, introduziu o princípio da insignificância a fim de excluir condutas considerada ínfimas na seara penal. Elaborado por Claus Roxin, em 1964 e citado na sua obra Política Criminal y Sistema del Derecho Penal, a partir da ideia: mínima non curat praetor (BITENCOURT, 2002, p.19), tem por finalidade auxiliar o intérprete quando da análise do tipo penal, para excluir do âmbito de incidência da lei as pequenas infrações.40 Conforme Roxin acerca do princípio da insignificância: [...] uma interpretação restritiva, que realize a função de Magna Carta e a “natureza fragmentária” do direito penal, que mantenha íntegro somente o campo de punibilidade indispensável para a proteção do

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bem jurídico. Para tanto, são necessários princípios regulativos como a adequação social, [...], que não é elementar do tipo, mas certamente um auxílio de interpretação para restringir formulações literais que também abranjam comportamentos socialmente suportáveis. Aqui pertence igualmente o chamado princípio da insignificância, que permite excluir logo de plano lesões de bagatela da maioria dos tipos [...].41

De acordo com Ivan Luiz da Silva “o STF reconheceu sua validade no sistema penal e o positivou, através de uma norma de decisão de grau mais elevado de densidade normativa [...]”. Por força do princípio da insignificância são atípicas as condutas que afetem minimamente o bem jurídico tutelado, excluindo a tipicidade penal.42 O Supremo Tribunal Federal em um habeas corpus n.110948 firmou entendimento dos requisitos que ensejam a aplicação do princípio da insignificância de modo a tornar uma ação atípica que são: a conduta minimamente ofensiva, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a lesão jurídica inexpressiva, bem como para o reconhecimento da insignificância da ação, não se pode levar em conta apenas a expressão econômica da lesão. 43 A partir de então, conforme entendimentos de Duarte e Gentile, “a jurisprudência e a doutrina caminham em sintonia na evocação do princípio da insignificância, de forma a evitar a punição a autores de condutas que implicam em uma ofensa mínima ao bem jurídico tutelado”. 44 O princípio da insignificância é aplicado pacificamente em matéria penal no Brasil, porém há controvérsias sobre a possibilidade de aplicação em se tratando de crimes ambientais. A doutrina ainda não assumiu uma conclusão sobre a aplicação do referido princípio no direito penal ambiental, ou seja, mostra-se cautelosa, recomendando atenção ao caso concreto e às especificidades da proteção ambiental. 45 Os doutrinadores Gomes e Maciel são a favor da aplicação do princípio aos crimes ambientais, assim afirmam, “é possível, como qualquer outro crime, a aplicação do princípio da insig-

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nificância em matéria ambiental, uma vez que preenchidos os pressupostos para seu reconhecimento”. 46 Esses pressupostos de reconhecimento se referem ao caso concreto, às especificidades da proteção ambiental, extinção de espécies animais, risco ao ecossistema. O Superior Tribunal de Justiça reconheceu a aplicação do princípio ora em tela, ao julgar um habeas corpus sobre a guarda em residência de aves silvestres não ameaçadas de extinção, sob o argumento que para incidir a norma penal incriminadora, é indispensável que a guarda, a manutenção em cativeiro ou em depósito de animais silvestres, possa, efetivamente, causar risco às espécies ou ao ecossistema, o que não se verificou no caso concreto. 47 Ademais, o Tribunal Regional Federal da 4ª região reconheceu a aplicação do referido princípio em um caso de abate de animais, Os abates dos (3) três animais descritos na peça acusatória não são suficientes a abalar o equilíbrio ecológico, de modo que a conduta do apelante não afetou potencialmente o meio ambiente e nem colocou em risco a função ecológica da fauna, impondo-se a aplicação do princípio da insignificância.48

Ainda acerca do assunto afirmam Gomes e Maciel, “não teria nenhum sentido excluir a aplicação desse princípio nos delitos ambientais (se ele é admitido até mesmo no delito de lesão corporal de um ser humano) ”. 49 Dessa forma, entende-se necessário um critério objetivo de reconhecimento da conduta penalmente insignificante em matéria ambiental, pois como mesmo elucida Prado, “a orientação político-criminal mais acertada é a de que a intervenção penal na proteção do meio ambiente seja feita de forma limitada e cuidadosa”. 50 Nessa perspectiva, tratando de tutela ambiental, de acordo com Freitas e Freitas, “a primeira indagação que deve ser feita é se existe lesão que possa ser considerada insignificante. A resposta a tal pergunta deve ser positiva, mas com cautela”.51

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Constata que o princípio da insignificância é muito aplicado pelos tribunais, a partir da seleção de critérios arbitrários, com fundamento não na avaliação da lesão ao bem jurídico, mas sim na avaliação quantitativa sobre o dano.52

3. É compatível a aplicação da insignificância envolvendo animais não humanos vítimas de um crime ambiental à luz do não antropocentrismo? No decorrer do presente estudo a visão antropocêntrica acerca da natureza sofreu um declínio quando o próprio homem detentores da superioridade de todos os outros seres percebeu que os animais não humanos são capazes de sentir dor e prazer, bem como as ciências biológicas mesmo explica que a anatomia, a fisiologia é semelhante ao dos humanos. Nesse prisma, filósofos interessados no tema explicaram de o porquê dos animais não humanos terem direitos a uma vida digna da mesma maneira que os humanos dando início a concepção biocêntrica. Essas premissas são importantes para adentrar na reflexão da questão deste estudo: É compatível a aplicação da insignificância envolvendo animais não humanos vítimas de um crime à luz da concepção biocêntrica? A resposta desta indagação é um desafio, uma vez que a aplicação do referido princípio para o direito penal ambiental é uma polêmica por ser tratar do bem jurídico protegido “meio ambiente”, que compreende a vida biótica e abiótica de um ecossistema, porém, o presente trabalho concerne especificamente dos animais não humanos. 53 Ao analisar as jurisprudências pátrias sobre aplicação e condições de aplicação do princípio da insignificância, constatou-se que as decisões se baseiam na quantidade e não na qualidade do meio ambiente, ou seja, percebe-se que o juiz ao analisar um

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caso concreto dá importância a quantidade de animais abatidos, lesionados e não a essência ética da decisão. Entretanto, a decisão vai muito além do que realmente é expresso pelos magistrados, eis que possui uma essência moral sobre a dignidade dos animais não humanos. A essência está que todo o animal possui vida e direito à vida, e, sobretudo a vida de um animal não é insignificante. Os tribunais aplicam o princípio da insignificância em crimes que envolvem os animais não humanos (vítimas indefesas) dentro de uma concepção do direito penal mínimo antropocêntrico excluindo lesões ínfimas ao bem jurídico tutelado, desse modo, a proteção da fauna geralmente relacionada com os maus tratos e matança de animais, fica a mercê da insignificância. Assim, muitas vezes essas decisões dispensam a tutela da atual Constituição Federal que reconhece os animais não humanos como seres capazes de sentir dor e são dignos de vida, eis que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito fundamental que pode ser estendido aos animais. Também dispensa, a proposta contemporânea sobre a definição dos Direitos dos Animais que incide sobre a do bem-estar animal, eis que, segundo Rodrigues, “A preocupação geral recai sobre questão dos maus-tratos e da matança dos Animais nãohumanos mediante dor a eles impingida ou de sofrimentos e machucados desnecessários”.54 Ademais, dispensa a Declaração dos Direitos dos Animais onde prevê o direito dos animais de existirem em um ambiente biologicamente equilibrado (art. 1º), bem como que todos os animais têm direito de ser respeitados (art. 2º). A ideia de respeito da referida Declaração está diretamente vinculada ao reconhecimento de um valor intrínseco a determinada manifestação existencial, como ocorrido em relação aos seres humanos ao longo da nossa evolução cultural. Faz-se necessário destacar sobre a dignidade dos animais não humanos, nas lições de Fersterseifer:

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Se a dignidade consiste em um valor que nós atribuímos à determinada manifestação existencial – no caso da dignidade humana, a nós mesmos -, é possível o reconhecimento do valor “dignidade” como inerente a outras formas de vida não-humanas. A própria vida, de um modo geral, guarda consigo o elemento dignidade, ainda mais quando a dependência existencial entre espécies naturais é cada vez mais reiterada no âmbito científico. 55

Como visto acima, os tribunais pátrios ao aplicarem o princípio da insignificância em crimes ambientais, tratando de animais não humanos, violam os preceitos constitucionais, do bem-estar animal e, sobretudo da Declaração dos Direitos dos Animais56, onde reconhece que todos os animais possuem direito à vida e a dignidade assim como os humanos. Se continuar tais violações, a cada conduta ilícita, a decisão dispensar a vida de um animal não-humano caminha-se para uma extinção de espécies animais. 57 Depreende-se que a extinção de animais é flagrante responsabilidade do homem sobre o desaparecimento em massa de espécies animais: a extinção é a maior ofensa que o homem pode cometer dentre os danos contra o futuro, pois corrompe a vida e aniquila com a geração atual, a impedir oportunidades à geração futura. Portanto, a assertiva da normal extinção de certa espécie não significa que cabe ao homem extingui-las quando bem entender. Mas o que se vê é flagrante responsabilidade do homem pela profunda extinção em massa de animais, ou seja, desaparecimento absoluto de toda uma espécie e consequentemente, o desequilíbrio ecológico. 58

Desta maneira, o direito penal moderno não pode renunciar a proteção dos animais em toda a sua classificação, pois se assim o fizesse, não estaria protegendo os bens jurídicos universais e consequentemente estaria desprotegendo a humanidade. 59 O Tribunal Regional Federal da 3ª Região já decidiu sobre a não aplicação do princípio da bagatela nos delitos ambientais: Em se tratando de delitos ambientais é inviável a aplicação do princípio da insignificância, com exclusão da tipicidade, porquanto, ainda

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que determinada conduta, isoladamente, possa parecer inofensiva ao meio ambiente, é certo que, num contexto mais amplo, torna-se relevante, isto é, uma vez somada a todas as demais interferências humanas na natureza, o prejuízo global causado ao ecossistema por todas aquelas condutas isoladas, no conjunto, é evidente, devendo, assim, ser eficazmente prevenida e reprimida por normas administrativas, civis e, inclusive, penais. 60

Nesse particular deve-se levar em consideração que meras condutas isoladas, por mais que seja pequena a agressão, podem afetar o equilíbrio ecológico e a higidez do meio ambiente a um nível global, prejudicando a vida dos animais, das plantas e do ser humano. Compreende-se assim, que a aplicação do princípio da insignificância nos crimes no direito penal ambiental gera um clima de impunidade, o que aumentaria os índices de crimes no âmbito ambiental, bem como uma insegurança jurídica, já que passaria a ser feito um juízo de valor diante do caso concreto.60 Por esses motivos, o princípio da insignificância não deve ser aplicado em crimes ambientais que envolvem animais não humanos, eis que a eles são seres sencientes, podem sentir prazer e dor e, sobretudo deve considerar o princípio da igualdade com base nas semelhanças fundamentais que temos com os animais, qual sejam direitos à vida, à integridade física e à liberdade. Neste sentido deve-se considerar o animal, não apenas como um bem semovente ou coisa, mas como um sujeito de direito, pois os direitos não devem ser atribuídos a um ser em decorrência da sua aparência física, capacidade de falar e pensar, mas também, pela sua capacidade de sofrer, pois se trata seres sensíveis e conscientes de si mesmos.

4.Considerações Finais A proposta fundamental do trabalho reside em demonstrar uma reflexão sobre a aplicação do princípio da insignificância

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em casos que envolvem animais não humanos, que embora não sejam humanos, são seres dotados de certas pertinências e características que viabilizam sua defesa e necessitam da proteção jurídica. Demonstrou-se que a concepção antropocêntrica não é mais capaz de satisfazer as necessidades dos tempos contemporâneos, tendo em vista a crise ambiental que despertou a necessidade uma nova visão de mundo denominada de biocentrismo é capaz de valorizar e respeitar a vida em todas as suas formas. A partir de uma nova postura ética em relação aos animais não humanos defendidas por estudiosos e filósofos ao longo dos anos, ressaltou-se o valor intrínseco da vida, demonstrando a capacidade dos animais de sentir dor e prazer, bem como que eles possuem interesses, quais sejam, o de viver em liberdade, sem sofrimento, ou seja, são seres sencientes. Entende-se assim, que o ordenamento jurídico brasileiro avançou nas legislações de tutela ambiental sendo que a Constituição Federal de 1988 tornou o meio ambiente ecologicamente equilibrado como um direito fundamental de dominialidade difusa, eis que pertence às presentes e futuras gerações, tendo como consequência sua proteção pelo direito penal, uma vez que este possui a função de tutelar os valores fundamentais da sociedade. Os tribunais pátrios impulsionados pelo direito penal mínimo de Claus Roxin, introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o princípio da insignificância a fim de excluir condutas consideradas ínfimas na seara penal. Dessa forma, os magistrados aplicam o referido princípio aos crimes ambientais objetivando a atipicidade do crime, que, por conseguinte caracteriza uma insensibilidade ecológica ao julgar casos que envolvem animais não humanos, uma vez ao aplicarem o referido princípio afronta os direitos dos animais. Com efeito, não deve ser tomada como regra a insignificância de certas condutas, como por exemplo, o abate de um animal, eis que as consequências daquela conduta, a princípio conside-

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rada insignificante são suficientes para romper o equilíbrio do ecossistema, por conseguinte a extinção de espécies animais. No mesmo sentido, o ordenamento jurídico pátrio deve se basear na realidade contemporânea da crise ambiental e reconhecer definitivamente o biocentrismo aceitando inovações filosóficas, científicas, reconhecidos aos animais não humanos, já que em outras palavras não é mais possível admitir que o Direito sirva apenas para reger relações de homens entre si e sim visar a premissa maior relações jurídicas entre os homens e demais seres vivos, eis o que importa é o equilíbrio ecológico que faz possíveis as condições de vida nesse planeta. Sendo assim, o direito penal moderno deve sensibilizar a sociedade objetivando o respeito merecido pelos animais não humanos, realizando maior prudência na realização de ponderação sobre as pretensões de aplicação da insignificância aos animais não humanos, objetivando a dignidade, integridade física e sobretudo o seu direito à vida. Diante de toda essa problemática, conclui-se que o assunto é bastante delicado, pois conforme discorrido neste trabalho, o animal não humano é digno de vida tutelado constitucionalmente e pela Declaração Universal dos Animais. Sendo assim, é um tema que precisa ainda ser muito discutido pelos operadores do direito, auxiliados por profissionais especializados na área ambiental, filosófica, jurídica, no intuito de sensibilizar a sociedade em geral pela não aplicação do princípio da insignificância em crimes que envolvam animais não humanos.

5. Notas de Referência LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. 2. ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004. p.19.

1

DIAS, Edna Cardozo. A tutela jurídica dos animais. Belo Horizonte: Mandamentos,

2

2000. p.18.

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LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. 2. ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004.

3

OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves. Direito Ambiental: Difusos e Coletivos. 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011. p.21.

4

OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves. Direito Ambiental: Difusos e Coletivos. p.21.

5

LEITE et al. Direito Ambiental. São Paulo: Saraiva, 2015. p.384.

6

SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental: Constituição, Direitos Fundamentais e Proteção do Ambiente. São Paulo: 2014, p.42.

7

OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves. Direito Ambiental: Difusos e Coletivos. p.21

8

FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. p.63.

9

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. 2. ed. Campos do Jordão, SP: Mantiqueira, 2004. p.19.

10

11

CAMISÃO, Flávia. A lei 9.605/98 (lei de crimes ambientais)e sua (in)eficácia na defesa / proteção dos animais domésticos. Trabalho de conclusão de curso de Direito. Faculdade CESUSC. Florianópolis, 2006.p.29.

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. 4ª reimpressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 136.

12

13

JUNGES, José Roque. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo? Perspectiva Teológica, América do Norte, v.33, 2010. Disponível em: <http.// www.faje.edu.br/periódicos/índex.php/perspectiva/article/viewfile/801/1232>.Acesso em: 02.11.2014. p. 33.

JUNGES, José Roque. Ética Ecológica: Antropocentrismo ou Biocentrismo?. Perspectiva Teológica, América do Norte. p.34.

14

15

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. p.129.

LEITE et al. Direito Ambiental. p.385.

16

LEITE et al. Direito Ambiental. p.385.

17

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1

LEVAI, Laerte Fernando. Direito dos animais. p.128.

19

FELIPE, Sônia T. Por uma questão de princípios: alcance e limites da ética de Peter Singer em defesa dos animais. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003. p.184.

20

FELIPE, Sônia T. Ética e Experimentação Animal: Fundamentos abolicionistas. Florianópolis: Editora da UFSC, 2007.p.14

21

23

SINGER, Peter. Ética prática. São Paulo: Martins Fontes, 1994. p.30. Singer (2006, p. 111)

22

Peter Singer (2006, p.67) RODRIGUES, Danielle Tetu. O direito & os animais – uma abordagem ética, filosófica e normativa. 2ª ed. rev. e atual. Curitiba: Juruá, 2012. p. 209/210.

24

FENSTERSEIFER. Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado Editora, 2008. p.32.

25

26

FENSTERSEIFER. Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do Estado Socioambiental de Direito. p. 34/35.

27

FENSTERSEIFER. Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do Estado Socioambiental de Direito p.38.

28

FENSTERSEIFER. Tiago. Direitos fundamentais e proteção do ambiente: A dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico constitucional do Estado Socioambiental de Direito. p.41. MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: Doutrina, Jurisprudência e Glossário. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p.138.

29

30

A Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano, realizada em 1972 em Estocolmo, constitui-se no marco inicial do direito ambiental no âmbito mundial. OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves. Direito Ambiental: Difusos e Coletivos. p.27.

31

OLIVEIRA, Fabiano Melo Gonçalves. Direito Ambiental: Difusos e Coletivos. p.33.

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PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. Sem edição. São Paulo: RT, 2005. p.76.

32

MORAES, Alexandre de. Direito Constitucional. 11ª ed. São Paulo: editora Atlas S.A., 2002. p.59/60.

33

34

RODRIGUES, Danielle Tetu. O direito & os animais – uma abordagem ética, filosófica e normativa. p.207.

MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; ALBUQUERQUE, Letícia. O lado obscuro dos cosméticos. The dark side of cosmetics. Revista de Direito Ambiental. Vol. 78. Ano 20. São Paulo: Ed. RT, abr. – jun. 2015.p.369.

35

Nas lições de Leff (2002, p.191) é a crise do pensamento ocidental e da razão “[...] produziu a modernidade como uma ordem coisificada e fragmentada, como formas de domínio e controle sobre o mundo. Por isso, a crise ambiental é a crise de conhecimento o que nos leva a repensar o ser do mundo complexo”.

36

Donald R. Griffin da Universidade de Harvard, publicou um livro intitulado de Animal minds (1992), que diz que a consciência e os sentimentos não são exclusivos dos seres humanos (etologia cognitiva), sendo assim, rechaçando com o mito da irracionalidade animal. Irvênia Luiza de Santis Prada da USP, constatou pela análise do modelo de construção do sistema nervoso, que o sistema límbico, responsável pelas emoções prepondera nos animais. Nos seres humanos e nos animais esse sistema está em contínua evolução. (LEVAI, 2004, p.130).

37

38

SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da Insignificância e os Crimes Ambientais. Sem edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. P.62.

PRADO, Luiz Regis. Direito Penal do Ambiente. Sem edição. São Paulo: RT, 2005. 80-82.

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BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal: Parte Geral. 7ª ed. v.1. São Paulo: Saraiva, 2002. 744 p.

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ROXIN, Claus. Política Criminal e Sistema Jurídico-Penal. Tradução: Luís Greco. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2002. 118 p

42

SILVA, Ivan Luiz da. Princípio da Insignificância e os Crimes Ambientais. Sem edição. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. P.44.

43

BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus 110948 / MG, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j: 26/06/2012, órgão julgador: 2ª Turma. DJe-181, divulg. 13-09-2012, public. 14-09-2012. PENAL. HABEAS COR-

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PUS. PACIENTE DENUNCIADO PELO CRIME DE FURTO QUALIFICADO (ART. 155, § 4º, IV, DO CP). PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. INAPLICABILIDADE.REPROVABILIDADE DA CONDUTA DO AGENTE. REPRIMENDA QUE NÃO DESBORDOU OS LINDES DA PROPORCIONALIDADE E DA RAZOABILIDADE. ORDEM DENEGADA Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador. jsp?docTP=TP&docID=2751532> Acesso em: 29/10/2014. 44

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DUARTE, Marise Costa de Souza; GENTILE, Larissa Dantas. Algumas observações sobre a tutela jurídica do meio ambiente a partir do estatuto ambiental constitucional e a questão da aplicação do princípio da insignificância nos crimes ambientais. Revista de Direito Ambiental n.53, p.165-1185, 2009. p.177.

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DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DOS ANIMAIS. Disponível em: <http://www.suipa.org.br/index.asp?pg=leis.asp> .Acesso em: 04.11.2014.Considerando que os genocídios são perpetrados pelo homem e há o perigo de continuar a perpetrar outros (Declaração Universal dos Direitos dos Animais, 1978, preâmbulo).

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Direito Constitucional Constitutional Law



Um olhar antropológico sobre o especismo e movimentos de defesa dos animais An anthropological look at speciesism and animal protection movement Micheline Ramos de Oliveira Doutora e Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora do Mestrado em Gestão de Políticas Públicas (PMGPP/UNIVALI).). Professora do curso de Direito e Psicologia (UNIVALI). Professora da ITCP/UNIVALI. E-mail: micheantr@hotmail.com

Maria Cláudia da Silva Antunes de Souza Doutora e Mestre em Derecho Ambiental y de la Sostenibilidad pela Universidade de Alicante – Espanha. Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI. Professora no Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciência Jurídica no Curso de Direito da Universidade do Vale do Itajaí – UNIVALI.”. Bolsista CNPQ. E-mail: mclaudia@univali.br.

Sheila Carletto Mestranda do Programa de Mestrado em Gestão de Políticas Públicas (PMGPP/UNIVALI). Bacharel em Direito pela UNOESC/Campus Videira. Servidora do Instituto Federal Catarinense – Campus Rio do Sul/SC. e-mail: sheila@ifc-riodosul.edu.br Recebido: 01.09.2016 | Aceito: 05.11.2016

RESUMO: Este artigo, sob um olhar da antropologia, por meio de uma pesquisa bibliográfica e exploratória objetiva refletir criticamente sobre o especismo e os movimentos que o contrapõem. Para tanto,

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num primeiro momento, discorre-se sobre a evolução do animal ao status de animal de estimação. Na sequencia, faz-se uma apreciação sobre o animal de estimação considerado como sujeito de afeto, integrado a família que o adota. Neste norte, foi desenvolvido um debate sobre os movimentos de defesa dos animais, e dentro deles os protetores voluntários. Como resultado da reflexão proposta, constatou-se que, o especismo, ação violenta do ser humano onde os animais são usados para exploração e para alcance de seus objetivos, é combatido por grupos de defesa dos animais, em especial, os animais domésticos, por ONGs e seus protetores voluntários que desempenham papel importante na ausência de ação do poder público. O método utilizado foi a revisão bibliográfica. Palavras chave: especismo, antropologia; animais de estimação; grupo de defesas dos animais. ABSTRACT: This article, under an anthropological perspective, through a bibliographical and exploratory research aims to reflect critically on the speciesism and the movements that oppose it. To do so, at first, we discuss the evolution of the animal to the status of pet. In the sequence, an appreciation is made about the pet considered as subject of affection, integrated into the family that adopts it. In this north, a debate has been developed on the movements of defense of the animals, and inside them the voluntary protectors. As a result of the proposed reflection, it was found that, Species, violent action of the human being where the animals are used for exploration and to reach their objectives, is combated by animal protection groups, especially domestic animals, for NGOs and their volunteer protectors who play an important role in the absence of government action. This article is a review article. Key words: speciesism, anthropology; Pets; Group of animal defenses. SUMÁRIO: 1. Introdução -2. Contextualizando o tema - 3. A questão é animal; 4 - Abolicionistas, ambientalistas e “bem estaristas” – os super heróis na defesa dos animais - 6. Reflexões finais ou “do especismo aos direitos dos animais”

1. Introdução A antropologia é um campo que, em sua essência, não é o meio mais lógico de tratar dos animais não humanos e sua rela-

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ção com os humanos. Não somente porque esta se baseia, normalmente, no conceito de que a humanidade se faz no contrário a animalidade1, mas também porque pouco se encontra pesquisas referentes a relação dos seres humanos e os demais atores que convivem no seu meio ambiente2. Nesse sentido, como aporte metodológico para a escrita e desenvolvimento deste artigo optou-se por uma pesquisa bibliográfica e exploratória, utilizada para discutir o tema em questão. 3Desta forma, considera-se ser o primeiro passo para uma pesquisa científica, por conceito, fazer a pesquisa bibliográfica é buscar bibliografias que já foram publicadas em suas mais diferentes formas, assim sendo, livros, artigos, revistas, trabalhos acadêmicos, entre outros. Assim, o pesquisador entra em contato com a bibliografia que já trata do assunto e, além de obter meios para a construção do seu aporte teórico, ainda pode esclarecer alguns conceitos, em novas áreas que ainda não tinham sido esclarecidos. Desta forma, observou-se que a evolução na antropologia para o estudo do tema, ganha destaque nas últimas três décadas na discussão de novos paradigmas acerca da humanidade e animalidade. A discussão sobre a diferença entre sociedade cultural e natureza toma forma a partir do crescimento dos problemas ambientais, na natureza (flora e fauna) como sujeito empoderado nas desmandas na esfera público e privada, compondo uma nova forma da antropologia, impondo desafios para as práticas etnográficas que viriam4. Ultrapassando as barreiras da ciência, e evidenciando a questão de que o animal não é mais um objeto, que cumpre sua função utilitarista nas sociedades, o que se procura hoje é dar aos animais não humanos o seu papel de ator, sujeito da relação com os animais humanos e sua vida em sociedade e em suas culturas, dando destaque a interdependência que temos entre os humanos e eles, os animais não humanos5. Neste caso, Caetano Sordi6 propõe que se promova a “quebra das barreiras” epistemológicas que, acabam negando ao não hu-

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mano o seu status de agente sobre o mundo social, mesmo que seja ele um não humano natural ou artificial, quando se refere a máquinas e computadores. Este artigo investe na ideia de que hoje se faz necessário o estudo das transformações da sociedade no que diz respeito aos animais, sejam eles de qual classificação for, principalmente pela afinidade e o status familiar que os animais estão incluídos. O universo da Antropologia deve conduzir suas pesquisas e estudos também para a esfera animal, e estes em sua convivência íntima com os humanos, da mesma forma, o estudo inverso, a presença dos humanos na vida dos animais e, conforme complementa Lewgoy tornou –se importante verificar que “a atribuição de personalidade aos animais de estimação ou silvestres passa por uma ampliação do domínio de sua agência e persona”7. Tendo por objetivo, ilustrar a evolução da história do animal doméstico, que hoje também é de estimação, a violência a ele praticada e, ele, como sujeito empoderado nas relações com os não humanos, é importante trazer à tona a transformação na sociedade e nos homens enquanto “tutores” desses animais, visualizando ações que erradiquem as práticas de violência aos animais e que aceitem sua condição, enquanto membros das famílias, evitando abandonos e maus tratos. Neste artigo, em um primeiro momento, será tratado sobre a evolução do animal, ao status de animal de estimação. Na sequencia, o animal de estimação enquanto sujeito de afeto, integrado a família que o adota. Ainda muitos animais, que ganham uma família, são abandonados e tornam-se vitimas de maus tratos, outros, sofrem esse tipo de tratamento por estarem nas ruas. Neste norte, será discorrido sobre os movimentos de defesa dos animais, e dentro deles os protetores voluntários que, independente da vertente protecionista que seguem, são importantes meios de defesa dos animais de estimação que são vítimas de violência, derivadas do especismo, assunto que encerra o presente artigo e explica alguns conceitos inerentes ao tema.

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2. Contextualizando o tema O relacionamento do homem e animais de estimação é citado na história desde a vida primitiva. O mais antigo registro histórico encontrado que demonstra esse vínculo é quando do achado, em Israel, de um túmulo, que possui data aproximada de 12 mil anos, onde o que se viu fora o corpo de uma mulher idosa foi que estava segurando, em uma das mãos, um cachorro, filhote8. Velden9, em sua obra Inquietas Companhias, descreve a relação dos índios Karitiana com seus animais de criação. Aliás, o termo karitiana que descreve os animais que vivem juntamente com os humanos, usufruindo de sua intimidade em suas casas, de sua companhia todos os dias, e que participam da vida familiar é ym’et, minha criação, ou seja, “meu filho” na tradução fiel. Os Karitianas, em sua sociedade, possuíam animais domesticados (pet) e animais familiarizados (wild pet). Os dois são animais de criação para eles. Os chefes das famílias eram os donos, mas, normalmente, a relação mais próxima era entre a esposa e/ ou os filhos.10 Não é novidade, portanto, a ideia de que gatos e cães façam parte de um núcleo familiar. A relação entre o homem e os animais, sempre despertou a curiosidade no pensamento científico. Porém, a importância dada ao tema é diferente de acordo com a época em que é base de estudo. Tanto a filosofia clássica, quanto as correntes cientificas modernas abordavam o assunto a partir de uma visão “utilitarista”, ou seja, os animais exercem funções a favor dos humanos, trazendo benefícios a estes. Neste norte, os animais seriam considerados recursos naturais à disposição do ser humano que, poderia controlá-lo e dar uma finalidade para sua existência11. Pinto12, trás a crítica de Levi-Strauss ao modelo utilitarista: Assim, como a crítica ao modelo utilitarista, a antropologia estrutural considerou a questão animal sob o ponto de vista de sua qualidade representacional. Logo, em “Le Totémisme Aujourd’hui” (1962), o autor conclui que os animais não são necessários apenas à produção da vida

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material como a tese utilitarista supunha, mas também servem de modelo para classificação, refletindo na criação das categorias simbólicas do pensamento humano.

Desta forma, a convivência humana e registros dela com cães e gatos, e mais, o surgimento da categoria “animal de estimação” é resultado de um processo histórico. Animais de estimação, no período moderno, surgiram quando alguns animais “úteis” foram enviados aos currais e estábulos quando que, os “inúteis”, por ser considerados boa companhia em momentos de lazer e também no ambiente doméstico acabaram ficando nas casas de família. Logo, os animais de estimação foram caracterizados por terem nomes, acesso a casa e não servirem de alimento13. Os gatos e os cães foram tornando-se, pouco a pouco, os prediletos nos países ocidentais, mas as imagens que tínhamos sobre essas espécies eram um tanto quanto confusas, pois iam desde a representação dos cães como seres bestiais devoradores de carniça até o cão promovido a santo pela população de Lyon no século XIII. E, no caso dos gatos, o absurdo como eram tratados nesse mesmo lapso de tempo, vão desde o uso como mira para tiro em algum jogo, até a admiração quanto a sua elegância no andar e sua limpeza14. No decorrer do tempo, com a melhora dos níveis de higiene e civilidade, a relação com os animais de estimação foi influenciada, desta forma, e o convívio íntimo com gatos e cães foi condenado pela aristocracia inglesa, tendo por base conceitos médicos, mas também morais e teológicos15. Keith Thomas, em sua obra O Homem e o Mundo Natural, mostra em sua narrativa a transição deste período, dizendo que “no final do século XVII a sociedade educada começava a desprezar essa maneira antiga de cuidar das casas ´com bosta de cachorro e ossos de tutano enfeitando o salão de entrada´”.16 Estava declarada aí, a mudança de comportamentos que surgiria. Ainda nesse período, as grandes cidades começaram a se tornar objeto de preocupação dos profissionais da medicina, pois,

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não havia sistemas que cuidassem dos detritos humanos e também dos animais. Os animais circulavam livremente pelas ruas e, multiplicando-se rapidamente, à superpopulação de cães e gatos foram associadas a transmissão de muitas doenças, tais como, alergia, peste bubônica, raiva, asma, doenças respiratórias, leishmaniose e toxoplasmose17. A prevenção às zoonoses – doenças e infecções transmitidas para o homem através dos animais – ganhou força a partir do século XVIII. As providências se davam através da apreensão e posterior eliminação dos animais que andavam pela rua. As casas que ainda possuíam animais de estimação, ganharam o estigma de sujas, desordeiras e perigosas. Os animais de estimação foram então, afastados da convivência familiar, afastados dos quartos e cozinhas e foram privados a viver na área externa da casa, pelo medo que se tinha da contaminação de doenças e a repulsa que sentiam em relação aos seus corpos18. Norbert Elias19 trata de uma transformação, em longo prazo, nas estruturas sociais e na personalidade dos homens e da sociedade que trouxe um desenvolvimento a estes indivíduos onde suas condutas e emoções são submetidas a um controle. Cada processo desse controle assume formas próprias onde se encontra nos arranjos sociais, mas, no fim, todas seguem para a centralização do poder e a contenção da violência, tendo como base um ser sensibilizado a evitar a violência e, o aumento do círculo de animais humanos e não humanos que serão protegidos contra agressões. O nascimento da condição de animal de estimação, de acordo com o Thomas20 partiu do nascimento de uma ideologia em que o humano dominasse a natureza e depois, sugiram os questionamentos sociais desta ideia e por fim, tudo isso foi acompanhado da condenação a práticas de violência contra os animais não humanos e consideradas, obviamente, totalmente desnecessárias. Partindo da junção dos dois conceitos que foram citados acima, e fazendo uma análise do que foi discorrido até este momento, é legítimo notar o nascimento de um sentimento de dig-

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nidade, que vai abraçar as relações dos animais não humanos e que, por consequência traz mais moralidade ao trato dos humanos, com eles. Porém, essa civilidade a que ascenderam as relações com os animais humanos acabou tendo um lado obscuro e contraditório. O afastamento dos animais de perto da “sua” casa, ocorridas no século XVIII, favoreceu o desenvolvimento, durante do século XIX, de raças de cães que foram adaptados ao convívio dito civilizado. Vários cães eram submetidos a cruzamentos sistemáticos e permanentes com a obtenção única e exclusiva de obter uma raça que melhor atendesse as demandas dos homens e mulheres da alta sociedade. O resultado que se tinha então era as raças femininas destinadas a companhias das senhoras que se adequavam a sua vida reclusa e, as raças masculinas, que acompanhavam os cavalheiros aos seus esportes de caça ou corridas21. E, como um objetivo acaba sempre levando a outro, as cruzas de cães de porte médio a grande também encantavam para sua habilidade de guarda e foram ganhando status de companhia dos homens daquela época. As características estéticas cada vez mais valorizadas deram ênfase ao mercado de raças que acabou transformando os cães também em mercadoria22. Em toda essa miscelânea de raças, que também agora leva em consideração os gatos, dedicadas a ser indicadores de distinção social leva ao que se tem hoje, no reino dos animais de estimação, o famoso fenômeno pet que hoje tem como alicerce também um vasto universo de serviços e produtos dedicados a este “nicho de mercado”. Para situar os animais de estimação neste contexto evolutivo, tanto de conceito como de convivência, é necessário trazer para esta pesquisa, às relações dos outros lugares no mundo até que se chegue a realidade atual. Na França e Inglaterra, essa otimização das raças de cães que se denominavam especiais, deu como

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bônus uma nova chance de ter seu lugar em casa, em um convívio íntimo (novamente) com os humanos. Enquanto na Europa, os animais ascendiam ao status de companhia, com processos constantes de evolução de raças, aqui no Brasil, com os nossos colonizadores chegavam os imponentes cachorros de trabalho, prática mantida até o final do século XX23. Os gatos eram criados, soltos e livres. Os cães, fora de casa e alimentados por restos de comidas. A partir da década de 1980 que os cães de pequeno porte começaram a fazer parte dos lares dos brasileiros, como companhia24. E aí por diante, a distância diminuí os espaços entre as casas e os animais e estes, atingiram o status permanente de animal de companhia e estimação, com acesso livre a todos os cômodos da casa e irrestrito aos seus donos e porque não, aos corações desses donos. A ascensão do animal de raça a animal de estimação, trouxe com ela a dualidade do conceito de animal de estimação. A figura do animal de estimação de raça se popularizou e hoje toma conta dos lares de muitas famílias espalhadas pelo país inteiro. Como cita Lewgoy25 os animais foram transformados em “pessoas” ganham o status de filhos, e traz consigo as características disso como o exagerado cuidado materno e a preocupação intensa com seus cuidados e necessidades, criando uma espécie de “humanização” no atendimento e especialidades veterinárias e em pet shops. Porém, ainda tem uma grande diferença entre animais de raça e animais sem raça definida (SDR). A controvérsia é que ainda há uma grande rejeição aos animais de rua que, hoje, possuem nos projetos sociais e protetores voluntários grandes articuladores para sua inserção no mundo pet e que este seja um ótimo candidato a adoção por uma família responsável. Na ausência de políticas públicas eficazes, o papel das ONGs, dos voluntários e dos protetores independentes acaba suprindo a demanda social que, esses animais, na lacuna do Estado, tanto necessitam.

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3. A questão é animal A importância da relação entre humanos e animais, vem tomando espaço nas discussões acadêmicas, a chamada “questão animal”. Com isso, vieram as discussões acerca desta ligação trazendo à tona a importância da criação de uma novo estatuto para os animais. Cada vez mais, lhes é dado o status de sujeito empoderado nas relações com os humanos26. Pastori27, transcrevendo a apresentação do colóquio internacional Un “tournant animaliste”en anthropologie, mostra um apanhado de questionamentos sobre o tema: Podemos falar de um “giro animalista”, entendido às vezes como posição política e moral de defesa dos animais e como posição epistemológica que postula uma continuidade entre homens e animais dando a esses últimos uma subjetividade ou uma “agência”? Essas duas perspectivas são necessariamente ligadas? Até que ponto o interesse pelo “animal” contribui para o conhecimento desses animais tanto quanto dos homens em sociedade, ao conhecimento da diversidade e da complexidade da coabitação dos seres vivos? Pode-se constituir um objeto de estudo inteiramente à parte? Os aportes metodológicos são orientados, e se são, de que maneira, pelas formas de engajamento em torno disso que chamamos hoje da “questão animal”? Levar – nos – iam a posições metafisicas que articulariam em novas maneiras as formas dotadas de vida?

Ao lembrar a expressão “animais domésticos”, especificamente os de estimação, se pensa imediatamente em cachorros e gatos. Eles são animais de companhia, criados na casa dos seus donos (que também podem ser chamados de seus tutores, responsáveis) e quando chegam, na sua maioria, fazem parte da família e do lar da sua casa humana28. Tentando conceituar a expressão “animais de companhia”, fala-se em um ser dito irracional, mas que tem sentimentos como dor, alegria, medo e que expressa suas necessidades fome, frio, sede. Depende dos seus donos para sobreviver, pois considera sua casa seu habitat natural.

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Lewgoy29 ainda traz uma outra espécie de classificação para os animais de companhia que, possuem forte repercussão entre os protetores e voluntários de ONG. A “classe”animal de companhia se subdividiria em adotados – os que já estão inseridos em uma família multiespécie – e os de rua que, se subdividiram em abandonados e comunitários este último, ainda controverso no mundo dos protetores e voluntários que defendem a ideia de que só existe animal abandonado que, pode vir a fazer parte de uma família multiespécie através da adoção. Isto posto, podese verificar que os animais de estimação, hoje, ascenderam ao posto de filhos. A “filhotização” dos animais de estimação faz parte do que é chamado de família multiespécie30, denominado assim como um novo modelo de família que inclui, além dos os pais e filhos, os animais de estimação31. Dessa forma, a personalização dos animais, na sociedade atual, é um fenômeno que se percebe ultrapassando o conceito do chamado “dualismo humano/animal” e através da psicologização cada vez mais recorrente em consultórios veterinários, nota-se que os animais de companhia são tratados como iguais, ou seja, pessoas falando com pessoas32. Érica Pastori33, em sua narrativa etnográfica, com donos de animais de estimação, relata que é “muito comum os donos de animais de companhia dizerem que seu pet “só falta falar”, trazendo a tona o sentimento de extrema ligação com os seus donos, na vivência junto deles, em seus lares. Faraco34, no que ela chama de Interação Humano – Animal ou Antrozoologia, citando (AVMA, 2005) diz que a relação humano – animal é uma convivência dinâmica e extremamente benéfica para os dois pólos dessa relação, motivada principalmente pelos comportamentos essenciais para a saúde e bem estar de ambos, incluindo nessa relação um convívio que tenha um bem estar emocional, psicológico e físico entre os animais, o ambiente em que vivem e as pessoas. Dessa forma, os animais de companhia estabelecem vínculos emocionalmente fortes e que, são recíprocos com os humanos.

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Do discurso das pessoas que possuem um animal de estimação o que se nota é que, quanto este faz parte do lar, o que se oferece é um carinho intenso e entusiasmo. O desejo dos seus cães e gatos é permanecer sempre junto ao seu tutor, sentimento jamais recebido de qualquer outro membro da família. Há também referência ao apego e o amor infinito que eles oferecem, estabelecendo uma conexão entre humanos e natureza. Essa relação humano-animal é construída nas relações familiares, mas também podem ser observadas nas relações amorosas e de amizade, onde o convívio com o dono do animal, acaba gerando o apego, o afeto35. Esse sentimento de apego é afeto é uma nova concepção de sentimentos na sociedade. A comoção social pela proteção animal, no contexto das emoções, pode ser vista como um fator cultural e em sua nova face pode-se perceber o que as autoras do livro Antropologia das Emoções36 como uma “importante desestabilização da dicotomia entre estados subjetivos e sentimentos sociais, posto que as próprias ideias de pessoa e de subjetividade passam a ser vistas como construções culturais”. Nesse norte, os bons tutores, fazem o que podem para manter o bem estar dos seus animais de estimação. Grandin e Johnson37 citam cinco condições – propostas pelo comitê Brambell38 - para o bem estar animal. As três primeiras referem – se ao bem estar físico e as outras tratam do bem estar mental dos animais: livre de fome e de sede, livre de desconforto, livre de dor, maus – tratos e doenças, livre para expressar seu comportamento normal e livre de medo e tristeza. Estar livre é a chave para se criar um comportamento normal para o cachorro e o gato dentro do seu mundo, como animal de companhia. A maneira mais saudável de se ter condições de vida adequadas para estes animais é que ele tenha um conceito de bem estar baseado no seu sistema emocional. Ou seja, estimular emoções positivas tanto quanto forem possíveis e não as negativas, mais do que o necessário. Entendendo as emoções dos animais, menores serão os problemas de saúde física e mental39.

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As emoções impulsionam o comportamento. É preciso dar liberdade para o animal agir e satisfazer suas emoções básicas. Porém, se ele não puder dispor disso é relevante criar um meio de motivação para que sua emoção estimule um bom comportamento. Dos distúrbios comportamentais, muitos animais desenvolvem o que é chamado de estereopatia que é uma atitude habitual repetitiva de uma mesma ação que se torna anormal e sem motivo40. Grandin e Johnson41 afirmam que o centro de emoções básicas no cérebro é o mesmo tanto nas pessoas, como nos animais. Desta forma, animais e pessoas tem o mesmo objetivo quando sentem algum sofrimento metal, ou seja, querem cessar essas emoções negativas e transformá-las em positivas, querem sentir-se bem. O sentimento e o propósito a ambos, é o mesmo. O tutor do animal de estimação precisa seguir regras simples para assegurar um habitat que deixe o seu bicho ocupado e previna doenças comportamentais. São elas: estimular as funções de busca e brincar42 e evitar ou desestimular a raiva, o pânico e o medo. Esse conjunto de diretivas é eficaz para criar um bem estar mental que se aplique a qualquer animal em quaisquer situações que ele se encontre, promovendo bons estímulos em suas emoções básicas43. Porém, o fenômeno pet traz em alguns casos e relatos, como toda relação, o extremo de amor e ódio. Muitos donos, em suas trajetórias de vida com animal de estimação acabam não criando esse vínculo forte e, por mais que se aproxime do seu gato, do seu cão, não é possível estabelecer essa ligação com seu animal, causando um desgaste, tanto pelos cuidados que devem ser tomados, quanto pelo apego tão custoso a sentir44. E é com esta conexão que surge o problema dos animais abandonados. A questão animal, e o apreço da opinião pública por ela, é notícia cada vez mais presente na esfera político midiática, ganhando espaço desde as redes sociais até nos meios de comunicação. Considerando que o animal de estimação, de companhia é visto como responsabilidade de seu dono e que,

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a eles deve-se prover os cuidados de sua vivência, a indagação que aparece em voga é que os animais que estão abandonados representam aqueles que não se encontram com nenhuma relação de proteção45.

4. Abolicionistas, ambientalistas e “bem estaristas” – os super heróis na defesa dos animais Em uma ideia todos esses grupos de defesa dos direitos dos animais concordam. Eles afirmam que os animais e os homens são semelhantes e que, o afastamento entre eles e o uso do animal como “coisa” é nocivo para ambos46. Os direitos dos animais e o ambientalismo, na ideia da população em geral e veiculada sempre pelos meios de comunicação, são convicções que caminham juntas. O mesmo vale para o abolicionismo e o bem-estarismo. Embora existam pontos afins em suas teorias é importante para a compreensão de todos os movimentos, e a análise das diferenças entre elas47. O ambientalismo e o abolicionismo dividem as mesmas ideias quando se fala que ambas dão subjetividade ao animal em suas agendas políticas. Na prática, o instrumento usado pelos abolicionistas para suas conquistas na área jurídica é a legislação ambiental brasileira. Desta forma, a formação do direito ambiental brasileiro possibilitada através do discurso “verde” é o que abre caminhos para as conquistas jurídicas dos grupos abolicionistas48. Os abolicionistas defendem que existe uma diferença marcante entre eles e os ambientalistas. Tal conflito se basearia no discurso de que, enquanto estes defendem o ecossistema e o meio ambiente, aqueles lutam pelo animal e seus sofrimentos. Sordi49 ilustra da seguinte forme forma, “da mesma forma que consideramos ilegítimo sacrificar humanos por conta da explosão demográfica, deveríamos considerar o mesmo em relação ao animais, na medida em que eles também sofrem e são seres senscientes”. 94 | RBDA, Salvador, V. 11, N. 23, pp. 81-111, Set - Dez 2016


O ambientalismo se preocupa com a proteção do ser humano, ou seja, o objetivo dos protestantes deste grupo é melhorar a qualidade de vida da espécie humana, através do uso racional dos recursos naturais e dogmas sustentáveis50. O artigo 255 da Constituição Federal corrobora a teoria dos ambientalistas que diz que todos tem direito ao meio ambiente que este é de uso comum do povo e sadia qualidade de vida e que cabe a coletividade protege-lo para as futuras gerações51. Já o abolicionismo reprova a ideia de que o ser humano é o único motivo para se manter e buscar a proteção ambiental. Para o abolicionismo seu escopo de ativismo político é a subjetividade dos animais, tornando-os sujeitos de direitos52. O abolicionismo pretende dar representatividade aos animais, seus interesses e seus direitos. Porém, é claro a todos os movimentos que defendem os não humanos que eles não possuem na integralidade os mesmos direitos dados aos seres humanos53. Bruno Latour54 argumenta que conferir status político ao não humano não é a mesma coisa que “dar direito a voto para as árvores”. Dão legitimidade a sua luta pelos animais não humanos através da consciência que possuem do sofrimento deles. “Dar voz aos que não possuem voz” Abolicionistas e “bem estaristas” se dão bem. Aqueles, admiram os protetores que se preocupam com o bem estar dos animais. Os bem estaristas comungam de muitas falas dos abolicionistas quando falam de sensciência55 e especismo56 e veem como certos muitos direitos dos animais defendidos por eles57. Os defensores da teoria abolicionista discordam com os defensores do bem estar animal no que tange ao “especismo cruzado”. Acreditam que os protetores bem estaristas (em sua maioria aqueles que se dedicam ao resgate e amparo a cachorros e gatos de rua) acabam valorizando o animal doméstico, em detrimento de outras espécies. Sendo o especismo a ideia de que as espécies animais são consideradas diferentes do ser humano e que este pode fazer o que quiser em relação a estes, os abolicionistas acreditam que os protetores bem estaristas “tratam os animais

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domésticos como parte da família e numeram frangos como coisa num abatedouro”58. É salutar que se declare que entre os bem – estaristas e os abolicionistas existe uma divergência na sua essência. Os abolocionistas lutam por direitos, para que estes direitos sejam legitimidados aos animais através de todo um procedimento de doutrinação social. Os bem – estaristas mantém seu foco nos sentimentos, no afeto que são influenciados e cada vez mais difundidos por meio de um novo movimento social59. A ideia de Lewgoy60 complementa afirmando que a luta pelos direitos de “alguns” animais que se encontram debilitados pelos maus tratos, nem sempre acaba se confundindo com o ativismo pelos direitos dos animais, como um todo, sendo esta uma das grandes tensões entre os protetores bem estaristas e os defensores abolicionistas. Ou seja, sempre há entre eles diálogos repletos de atritos, discordância e queixas mútuas, porém, no contraposto, quando se trata de diálogos e tratativas com o poder público há sempre a capacidade de negociações e articulações estratégicas para o seu ganho de causa. Corrobora Lewgoy61 que não é uma questão de privilégios de determinada espécie, mas sim de uma familiaridade, que torna mais próxima tanto existencial quanto física, a observação do sofrimento dos animais que compõe o ambiente urbano e doméstico, ao mesmo tempo que aqueles animais que fazem parte de um mundo de produção, e também aqueles que pertencem a fauna selvagem, mesmo que sejam compadecidos dos seus problemas, o contato não é próximo, normalmente feito pelas mídias, de TV e internet. Porém, apesar de todas as diferenças e questionamentos descritas até aqui, a luta desses dois movimentos para evitar o abandono de animais nas ruas ainda é um ponto coincidente. O cenário de descaso e abandonos com os animais nas cidades é histórico (e porque não, cultural)62. A Organização Mundial da Saúde – OMS, revelou que, em 2014, no Brasil existiam mais de 30 milhões de animais abandonados destes, 10 milhões são

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gatos e 20 milhões são cães. Em cidades de grande porte, para cada cinco habitantes há um cachorro. Destes, 10% estão abandonados. Em cidades menores, no interior do país, a situação não difere. Em muitos casos o numero chega a 1/4 da população humana63. A motivação de luta de ambos os movimentos baseia-se nos direitos dos animais e no afeto que se sente por eles64. Sordi65, parte do pressuposto de que, a figura do animal não humano, como sujeito empoderado com direitos, será conquistada a partir da “exposição e reiteração de suas experiências negativas”. Pode-se basilar a luta pelos animais, seus direitos e condições de bem estar, através da obra de Alex Honneth66 que trata das relações de respeito, poder e reconhecimento na sociedade atual. Os grupos sociais e dentro deles, seus indivíduos, podem formar sua identidade desde que se reconheçam mutuamente. Quando esse reconhecimento não existe, é dada a largada para a busca desse reconhecimento nessas relações intersubjetivas que não possuem. Toda busca pelo reconhecimento vai iniciar quando há a vivência do desrespeito67. E é nessa luta que baseiam os grupos de defesa dos animais, seja ela qual ideologia for. A luta por aqueles que “não possuem voz” parte do pressuposto do desrespeito do animal enquanto parte integrante do meio que vivemos. Abordado pelos grupos de defesa dos animais, através de analogias e metáforas o objetivo é chamar a atenção para o uso e maus tratos de animais através de expressões e notícias que evidenciem experiências humanas de violação aos seus direitos e desrespeito a própria vida. A título de exemplo, referenciar “escravidão” para atividades que tem uso de animais e “comer cadáveres” para o ato de comer carne. Mas o que ainda é mais reiterado pelos movimentos é a questão do animal escravo que, privado de sua liberdade, não vive de acordo com as demandas de sua espécie, perdendo seus status de sujeito de direito68.

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Para os defensores dos animais, ainda na linha abolicionista, falar de cultura tem uma importância única dentro do que é disposto pela antropologia. Estes, seguem dois vieses: o viés francês e o viés alemão. O viés francês trata a cultura como um indicativo universal, ou seja, como conceito universal pode dizer que ele caminha lado a lado do conceito de civilização. Já o viés alemão, pode-se considerar a prática específica de um povo que a destaca no conceito na noção coletiva de universalidade, ou seja, é algo comum a determinado povo69. Laraia, em sua obra, Cultura um Conceito Antropológico, relata que “o homem é o resultado do meio cultural que foi socializado”. E continua, dizendo que ele reflete o que aprende através de heranças de um longo processo que vai concentrando as experiências e vivencias de seus antepassados70. Considerando que o homem observa mundo por meio da ótica sugerida por sua cultura, o que se tem por decorrência disso é que este irá considerar o seu modo de agir e viver o correto, o natural71. Então, se em determinado lugar, práticas violentas contra os animais, são consideradas normais a estes a sociedade encontraria um padrão de comportamento que iria contra o que se propaga o de respeitar os animais. A isso, Laraia afirma que “tal tendência, denominada de etnocentrismo, é responsável em seus casos extremos pela ocorrência de numerosos conflitos sociais72.” Desta forma, é possível ilustrar que quando determinada prática de maus tratos e violências contra os animais se “justificam” através da cultura dos que o praticam os defensores dos animais, em especial os abolicionistas, alegam que não há legitimação moral somente pelo fato de que esta seja uma peculiaridade de determinado povo. A título de exemplo seria a Farra do Boi, em Santa Catarina e os jogos e competições envolvendo o uso de animais, da cultura gaúcha73. Sordi74 diz que cultura e natureza devem ter suas fronteiras equilibradas e que, a prática de defesa dos animais deve enviesar por um conceito mais político e ético, evitando os maus tra-

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tos aos não humanos que, ancorados por uma noção de cultura ainda são praticados. Com o discurso de que pode-se fazer o animal como “próximo”75 é possível assimilar as vivências negativas a que são submetidos os animais quando sujeitado ao uso pelo ser humano, não importando para que fim isso se destine. Corrobora Descola76, dizendo que dar aos animais a proteção que lhes é devido, dando a eles novos direitos e criando deveres dos humanos para com eles é simplesmente coloca-los em uma premissa jurídica que norteia os animais humanos e isso, neste contexto em análise, não colocaria em voga a separação entre sociedade e natureza, como comumente é feito77. Transformar o animal, sujeito de direito, em pé de igualdade ao que lhe cabe, ao ser humano. Independente da alcunha que se caracterizam, ambientalista, abolicionista ou “bem – estarista”, os protetores independentes e os membros de ONG de defesa dos animais e afins, possuem alguns comportamentos peculiares. A identidade de protetor de animais passa a tomar forma na vida da pessoa a partir do momento que, além da compaixão pelo sofrimentos dos animais esta pessoa passa a resgatá-los da rua. E, pela atitude pró ativa de participar do resgate, essa característica acaba se destacando em função de outros que o protetor possa ter. A partir do ganho de “status”, o protetor é inserido em uma rede de contatos na ONG que auxiliou porém, nem sempre é bem quisto o amor aos animais em sua família e vizinhos que normalmente acabam estigmatizando o protetor que, se não tiver cuidado, acaba tornando – se um acumulador78 de animais79. Os sentimentos de compaixão e apego são as conexões para o trabalho dos protetores independentes e ONGs e seus voluntários. É a partir desses pensamentos que as suas atividades são geridas, dando prioridade a animais urbanos – domésticos , de companhia - “abandonados e/ou de rua”. A questão de es-

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colha é sempre revestida de sentimentalismo por partes dessas pessoas80. Os animais de companhia abandonados nas ruas são os que recebem menor ajuda do poder público. Este prioriza as ações de governo para o controle de zoonoses, fauna selvagem e animais de produção. Desta forma, o trabalho das ONGs e de movimentos que defendem os animais se destacam em meio a lacuna deixada pelo governo no que também seria de sua responsabilização81. Como descreve Latour82 é importante criar “novas modalidades de coletivos entre humanos e não humanos”. Destaca-se aqui que o coletivo, ainda tomando por base este autor, significa tudo e não de um lado a natureza e de outros nós os humanos83. É emergente que, as pessoas que protegem os animais, busquem práticas que ajudem a defender a sociabilidade de suas ações e que mantenham firmes os conceitos de animalidade e humanidade para que, a cultura de proteção aos animais domésticos de estimação crie uma agência aos animais não humanos estimulando um novo paradigma de comunicação e convivência interespécie, definindo uma nova importância e destaque as questões de bem estar animal na nossa sociedade84. Notório aqui, o que Latour85 chama de redes sociotécnicas, onde o trabalho dos voluntários para proteção animal é rodeado por uma série de agentes que juntos tentam sanar a ausência da politica pública de proteção aos animais. Infelizmente, os animais domésticos são “presas” fáceis nas mãos dos homens, sendo protegidos e ganhando voz pelos protetores e voluntários que tanto lutam para protege – los e garantir que nada de ruim aconteça a eles. Muraro86 relaciona algumas ações que podem ser considerados atos de violência contra os animais: Abandono; Agressões físicas, como: espancamento, mutilação, envenenamento, manter o animal preso a correntes ou cordas, manter o animal em locais não-arejados – sem ventilação ou entrada de luz, manter o animal trancado em locais pequenos e sem o menor cuidado com a higiene, manter o animal

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desprotegido contra o sol, chuva ou frio, não alimentar o animal de forma adequada e diariamente, não levar o animal doente ou ferido a um veterinário, submeter o animal a tarefas exaustivas ou além de suas forças87. A violência contra os animais está em voga cada vez mais na atualidade, pelo aumento das denúncias feitas pela população. Porém, apesar de todo trabalho feito pelos protetores, ainda são muitos os casos de maus tratos contra animais domésticos88.

5. Reflexões finais ou “do especismo aos direitos dos animais” Os casos de violência aos animais domésticos são recorrentes e cada vez mais divulgados e também combatidos. O pedido de direitos eficazes aos animais abandonados é repetidamente veiculado e divulgado pelas voluntárias e protetoras que fazem da sua denúncia de crueldade e violência no comportamento com gatos e cães abandonados e sua exposição do quanto vulneráveis e suscetíveis estão a maldade humana um pedido explícito de reconhecimento dos direitos dos animais, a penalização eficaz diante da conduta dos que causam o sofrimento no animal89. Os animais vêm sendo objetos de exploração da maioria dos animais humanos são usados sem dar a devida importância aos seus sentimentos e bem estar. 90O que representaria que sua existência se basearia na tese de que eles servem para saciar desejos, necessidades ou caprichos.91 Singer92 compreende que não há razão que sustente a negativa para que seja feita a inserção de membros de outras espécies no que ele chama de “princípio básico de igualdade de consideração”. Considerando que ainda há homens que, em seu intimo egoísta, ainda gostariam de manter preservado os privilégios acima da “classe animal” mantendo sua alcunha de explorador, não se vê outros argumentos passíveis de desconsiderar os demais animais de nossas preocupações éticas como um todo, que não seja o especismo. RBDA, Salvador, V. 11, N. 23, pp. 81-111, Set - Dez 2016 | 101


O termo “especismo”93 foi mencionado pela primeira vez por Richard D. Ryder em 1970, cientista e psicólogo inglês, por meio de panfletos que tinham em seu objetivo mostrar para as pessoas as práticas dolorosas e o comportamento dos animais humanos que discriminavam os animais de outras espécies94. Singer95 define especismo como uma forma de “preconceito ou atitude parcial em favor dos interesses de membros de nossa própria espécie e contra os interesses de outras espécies.” Seria como, na explicação do autor, achar certo que um humano use outro humano, como usa os animais, para conseguir seus objetivos e serem explorados. Se for observado pelo prisma da ética, não há o que justifique o tratamento para com os animais de forma diferente, sob a alegação de pertencerem a outra espécie. Para a ética presume – se que, para fazermos um julgamento de alguns valores e comportamentos, leva-se em consideração todo o universo que envolve os sujeitos envolvidos, pois, ao agir de forma ética, deve-se considerar o interesse de todos que fazem parte de decisões e o quanto serão afetados, não considerando somente o que sejam mais favoráveis96. Felipe97 diz que a simples demonstração da “diferença orgânica” para o especista, retrata uma dificuldade frente a moralidade e que isso pode estabelecer um entrave que, no entender daquele que pratica o especismo, não tem valia alguma a obrigação de fazer cumprir o principio ético da igualdade. Singer98 em sua obra Libertação Animal relata que entre os discursos que ainda impedem uma conscientização mais efetiva da população é o uso da frase “seres humanos vêm em primeiro lugar” o que se pressupõe que, com este pensamento não há como relacionar questionamentos e problemas do mundo animal, com questões morais ou políticas sérias, a problemas que pertencem aos homens. Esse pensamento, como cita o autor, por si só, já é uma clara demonstração de especismo. Não há como mensurar que o sofrimento animal é mais ou menos grave que o sofrimento humano, dor é dor. E, ao dever de impedir não é

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dado escolha, porque este não está acontecendo a um membro de outra espécie. É imprescindível que a ética no trato com os animais contenha itens moralmente válidos e que estes sejam universais e que considerem igualmente a todos os envolvidos, sejam animais humanos ou não, para que não sejam consideradas atitudes discrimatórias e incoerentes99. Neste norte, pode - se então afirmar que o princípio da igual consideração dos interesses faz considerar que todos os seres, humanos ou não, possuem mecanismo que sentem dor e sofrimento e que importante levar em conta em termos de igualdade o que o outro está sentindo – dentro da peculiaridade de cada um. O principio da igualdade de condição traz a ideia de igual consideração, deste modo, não significa tratar todos da mesma maneira, afinal, cada ser possui suas peculiaridades e, tratar todos do mesmo jeito poderia acarretar em tratamento desigual. Considerar igualmente, seres diferentes é a proposta para que todos recebam o que a cada um pertence, direitos e tratamentos adequados para cada ser, com pesos iguais de consideração100. Sonia Felipe, estudiosa da teoria de Peter Singer, afirma que os parâmetros – sentir dor, sofrer e sentir prazer – manifesta o interesse por um determinado ser, humano ou não, trazendo maior alcance ao principio da igualdade, abrangendo além dos membros da espécie humana, todos que possuem o sistema nervoso central organizado, responsável pelas sensações de dor, prazer e sofrimento101. No que tange aos direitos dos animais, estes como sujeito de direitos, propriamente dito, Singer afirma que deve se agir com prudência, pois, considerando que os animais não conseguem se defender, é necessário que um humano o faça102. Enfim, no caminho inverso de Peter Singer, Jacques Derrida, acredita que reconhecer ou conferir direitos aos animais é uma maneira tácita de comprovar “uma certa interpretação do sujeito humano, que terá sido a própria alavanca da violência com respeito a seres vivos não humanos”103. É urgente a mudança

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na filosofia do direito por razões conscientes, ou seja, a relação entre humanos e não humanos não assumirá a forma de uma legislação mas esta ajudaria a definir a posição do animal na relação com os humanos. Será necessária a criação de novas faces para o direito, deverá o próprio ordenamento jurídico repensar o papel dos animais sob o prisma de sujeito de direito104. E também, neste norte, não só o direito, mas todas as áreas que estudam esse fenômeno devem criar novas óticas para os animais, reavaliando o seu status como sujeito, como agente dotado de “capacidade” para figurar em algum pólo da sociedade. A violência praticada aos animais irá representar cada vez mais, a imagem que o animal humano possui de si mesmo. Esta prática, embora seja um tema em voga e de relativa importância, é uma discussão que ainda carece de pauta no mundo acadêmico. A evolução do animal, para o status familiar, o animal de estimação, ainda não atingiu o que diz respeito as boas práticas em relação ao trato com esse animal. Os movimentos de defesa dos animais, as Organizações não governamentais, ainda são instrumentos de importante ajuda para o combate ao especismo, e toda violência inserida sob este conceito. Enquanto a sociedade, o poder público, não trouxer à tona, uma discussão, com soluções que sejam efetivas, será encontrado nos movimentos de proteção e no bom senso de alguns “animais humanos” a decência no trato aos animais não humanos, que, sentem dor e medo tanto quanto seus agressores.

Notas 1

INGOLD, Tim. Humanidade e animalidade. 1995. Disponível em <http://www.anpocs.org.br/portal/publicacoes/rbcs_00_28/rbcs28_05. htm>. Acesso em 13 de abril de 2016, p. 03 - 06.

2

SORDI, Caetano. O Animal Como Próximo. Cadernos IHU Ideias: Instituto Humanitas UNISINOS, São Leopoldo, ano 9, n 147, 2011, p. 5.

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3

LAKATOS, Eva Maria; MARCONI, Marina de Andrade. Metodologia do Trabalho Científico: procedimentos básicos, pesquisa bibliográfica, projeto e relatório, publicações e trabalhos científicos. 4 ed. São Paulo: Atlas, 1992. p. 43-44.

4

SORDI, 2011, p. 4-6.

5

SORDI, 2011, p. 6.

6

SORDI, 2011, p. 6.

7

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 78.

8

GAZZANA, Cristina. Novas configurações familiares e vínculo com os animais de estimação numa perspectiva de família multiespécie. Disponível em <https://psicologado.com/abordagens/comportamental/novas-configuracoes-familiares-e-vinculo-com-os-animais-de-estimacaonuma-perspectiva-de-familia-multiespecie>.Acesso em 29 de março de 2016. p 4

9

VELDEN, Felipe Ferreira Vander. Inquietas Companhias – Sobre os animais de criação entre os Karitiana. São Paulo: Alameda. 2011. p. 165 e 171.

10

VELDEN, 2011, p. 112 -113.

11

PINTO, Leandra. Resgatando afetos: uma etnografia sobre o papel da rede solidária de proteção animal no contexto urbano de Porto Alegre/RS. 2015. Disponível em <http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020734_30_06_2015_23-59-05_6779.PDF>. Acesso em abril de 2016, p. 4.

12

PINTO, 2015, p. 5..

13

LIMA, Maria Helena Costa Carvalho de Araújo. Considerações sobre a família multiespécie. Disponível em <http://eventos.livera.com.br/trabalho/98-1020766_01_07_2015_11-07-22_5164.PDF>. Acesso em abril de 2016, p. 3.

14

THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e aos animais (1500-1800). Tradução de João Roberto Martins Filho. São Paulo, Companhia das Letras, 1988. p. 122-124 e 131-133.

15

LIMA, 2015, p. 4.

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16

THOMAS, 1988, p 125-126.

17

LIMA, 2015, p. 4.

18

LIMA, 2015, p. 4.

19

ELIAS, Norbert O Processo Civilizador: uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, v.1, 1994. p. 90.

20

THOMAS, 1988, p. 146-149.

21

LIMA, 2015, p 6-7.

22

LIMA, 2015, p 6-7.

23

LIMA, 2015, p 7-8.

24

LIMA, 2015, p 7-8.

25

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 78.

26

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 77-78.

27

PASTORI, Érica. Perto e longe do coração selvagem: um estudo antropológico sobre animais de estimação em Porto Alegre/RS. 2012. 200p. Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012. p. 9 - 10.

28

MURARO, Célia Cristina. Maus Tratos de Cães e Gatos em Ambiente Urbano, Defesa e Proteção aos Animais. 2014. Disponível em <http:// www.jurisway.org.br/v2/dhall.asp?id_dh=12654>. Acesso em 12 de abril de 2016. p 3.

29

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 80.

30

Acredito que o discurso de Osório (2011) cabe na ilustração deste tema quando diz que o animal é parte integrante da família, no espaço doméstico dela, suas relações com ele são de parentesco e afeto. O animal é incluído na família quando passa a morar com ela: é uma “criança”, necessita de cuidados, carece da “mãe” e da família e como todo filho, não pode estar desamparado na rua e deve ficar sempre dentro da casa. (OSÓRIO, Andrea. Humanidade e não – humanidade: notas sobre um grupo de protetores de gatos de rua. In: 4º SEMINÁRIO DE PESQUISA DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE E DESENVOLVIMENTO REGIONAL. Universidade Federal Fluminense – UFF. Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, em março de 2011. Anais... Campos dos Goytacazes, RJ, Brasil, 2011).

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31

FEITOSA, Valéria. Família multiespécie é tendência mundial. Disponível em <http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/regional/familia-multiespecie-e-tendencia-mundial-1.242833> Acesso em abril 2016. p. 2 - 3.

32

PASTORI, 2012, p. 10.

33

PASTORI, 2012, p 10 e 11.

34

FARACO, Ceres Berger. Interação Humano Animal. Revista Ciênc. vet. tróp., Recife-PE, v. 11, suplemento 1, p. 31-35 abril, 2008. p. 32.

35

PASTORI, 2012, p. 22.

36

REZENDE, Claudia Barcellos. COELHO, Maria Cláudia. Antropologia das Emoções. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2010. p.14.

37

GRANDIN, Temple e JOHNSON, Catherine. O Bem Estar dos Animais: proposta de uma vida melhor para todos os bichos; tradução de Angela Lobo de Andrade. Rio de Janeiro: Rocco, 2010. p. 7-10.

38

O conceito oficial de bem estar animal foi citado pela primeira vez em 1965 pelo comitê Brambell, um grupo denominado pelo ministério da agricultura da Inglaterra para avaliar as condições em que os animais eram mantidos no sistema de criação intensiva naquele país. (VEIGA, Douglas Luís. O Bem Estar Animal e as Cinco Liberdades. Disponível em <http://meuartigo.brasilescola.uol.com.br/educacao/o-bem-estaranimal-as-cinco-liberdades.htm>. Acesso em 18 de maio de 2015).

39

GRANDIN; JOHNSON, 2010, p. 10-11.

40

GRANDIN; JOHNSON, 2010, p. 11.

41

GRANDIN; JOHNSON, 2010, p. 11-12.

42

Buscar é incentivar o animal a investigar, procurar, estimular a curiosidade do animal em seu ambiente. (GRANDIN; JOHNSON, 2010, p.12).

43

GRANDIN; JOHNSON, 2010, p.11-12.

44

PASTORI, 2012, p. 27.

45

PINTO, 2015, p.8-10.

46

SORDI, 2011, p. 10.

47

SORDI, 2011, p. 9-10.

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48

SORDI, 2011, p. 10-11.

49

SORDI, 2011, p. 11.

50

SORDI, 2011, p.11-12.

51

BRASIL, Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em 08.06.2016.

52

SORDI, 2011, p. 12-13

53

SORDI, 2011, p. 13.

54

LATOUR, Bruno. Políticas da natureza: como fazer ciência na democracia. Bauru: EDUSC, 2004. p. 118-119.

55

Sensciência é a capacidade de sofrer ou sentir prazer ou sentir felicidade O especismo define-se pela discriminação arbitrária daqueles que não pertencem a uma determinada espécie.

56

O especismo define-se pela discriminação arbitrária daqueles que não pertencem a uma determinada espécie.

57

SORDI, 2011, p. 15-16.

58

SORDI, 2011, p. 15-16.

59

SORDI, 2011, p. 16-17.

60

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 85-86

61

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 85-86.

62

SORDI, 2011, p. 16-17.

63

ANDA – Agência Nacional de Direito dos Animais. Brasil tem 30 milhões de animais abandonados. Disponível em <http://anda.jusbrasil. com.br/noticias/100681698/brasil-tem-30-milhoes-de-animais-abandonados>. Acesso em 15 de junho de 2016.

64

SORDI, 2011, p. 16-17.

65

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66

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Trad. de Luiz Repa. São Paulo: Ed. 34, 2003.

67

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LARAIA, Roque De Barros. Cultura um conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1986. p. 45.

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LARAIA, Roque De Barros. Cultura um conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1986. p. 75.

72

LARAIA, Roque De Barros. Cultura um conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1986. p. 75.

73

SORDI, 2011, p. 21-23.

74

SORDI, 2011, p. 21-22.

75

HONNETH, 2003, p. 23-26.

76

DESCOLA, Philippe, Estrutura ou sentimento: A relação com o animal na Amazônia. In: MANA 4(1):23-45, 1998. Disponível em <http://www. scielo.br/pdf/mana/v4n1/2425.pdf>. Acesso em 04 de julho de 2016.

77

DESCOLA, 1998, p. 25-26.

78

Acumular animais pode ser uma doença, também conhecida como síndrome de Noé e na literatura inglesa como Hoarding (patologia psiquiátrica caracterizada por uma excessiva acumulação e retenção de coisas e/ou animais até que eles interfiram no seu dia a dia e a incapacidade de descartá-la). Disponível em <http://www.petbrazil.com.br/bicho/caes/ gen21.htm>. Acesso em agosto de 2016.

79

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 79 e p. 82-84.

80

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 84-86.

81

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 84-86.

82

LATOUR, 2004, p 120.

83

LATOUR, 2004, p 120.

84

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 96.

85

LATOUR, Bruno. Jamais fomos modernos: ensaio de antropologia simétrica. São Paulo:34, 1994. p. 13

86

MURARO, 2014, p. 10.

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87

MURARO, 2014, p. 10.

88

MURARO, 2014, p. 10-12.

89

LEWGOY; SORDI; PINTO, 2015, p. 85-86.

90

SILVA, Jucirene Oliveira Martins da. Especismo: Porque os animais não – humanos devem ter seus interesses considerados em igualdade de condições em que são considerados os interesses semelhantes dos seres humanos. Revista Ethic@, Florianópolis, v.8, n 01 p. 61-62, junho 2009.

91

A maioria dos estudos sobre o especismo, e violência contra os animais, remete a movimentos de proteção aos animais de produção e, por consequência, o consumo de carne e movimentos como o veganismo. Nesta pesquisa, o foco será mantido na proteção aos animais domésticos, evitando o debate acerva do tema “animais de produção”.

92

SINGER, Peter. Libertação Animal: O Clássico Definitivo sobre o movimento pelos direitos dos animais. São Paulo: Martins Fortes, 2013. p. 4-5 e p. 8-9.

93

O especismo, e todo seu aparato de tradição histórica, moral, e econômica no qual se mantém, tem sido questionado desde então por filósofos que constituíram o que Ryder diz ter sido informalmente denominado o Grupo de Oxford por toda uma geração que o seguiu. Peter Singer destaca-se na luta em defesa da liberdade para os animais, conduzida através da defesa da expansão do princípio da igualdade na consideração de interesses, para acolher, no espectro da liberdade -da qual gozam os seres humanos dotados de razão, e sensibilidade, os interesses de seres sensíveis não pertencentes à espécie Homo sapiens. (FELIPE, Sônia T. Da Igualdade. Peter Singer e a Defesa Ética dos Animais Contra o Especismo. Revista Philosophica 17/18. Lisboa, 2001. p 21-48).

94

GOMES, Thamyres Naian dos Santos. Os Animais Como Titulares de Direitos Fundamentais. 2015. 63 p. Trabalho de Conclusão de Curso – Associação Caruarense de Ensino Superior e Técnico, 2015. p. 27-29

95

SINGER, Peter. Vida Ética: Os Melhores ensaios do mais polêmico filósofo da atualidade. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p 11.

96

SILVA, 2009, p. 52-53.

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97

FELIPE, Sônia T. Da Igualdade. Peter Singer e a Defesa Ética dos Animais Contra o Especismo. Revista Philosophica 17/18. Lisboa, 2001. p 21-48.

98

SINGER, 2013, p. 319.

99

SILVA, 2009, p. 53-55.

100

SINGER, 2013, p. 4-9.

101

FELIPE, S. T. Por Uma Questão de Princípios: Alcance e Limites da Ética de Peter Singer em Defesa dos Animais.Florianópolis: Fundação Boiteux, 2003, p. 105.

102

FELIPE, S. T. 2003, p. 141-146

103

DERRIDA. Jacques. ROUDINESCO, Elisabeth. De que amanhã: diálogo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004, p 84.

104

DERRIDA; ROUDINESCO, 2004, p. 83-85.

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Bioética Bioethic



Tutela constitucional da medicina natural e complementar no sistema único de saúde: uso de medicamentos à base de substâncias animais, vegetais e minerais. Constitutional Protection Of Natural Medicine And Supplementary System Health Only: Remedies Of The Use Of The Basic Animal Substances, Plant And Minerals. George Sarmento1 Recebido: 29.08.2016 | Aceito: 22.11.2016

Resumo. Este artigo analisa a introdução da medicina tradicional no Sistema Único de Saúde (SUS), especialmente as especialidades médicas alternativas reconhecidas pelos organismos governamentais, inclusive Terapia assistida por animais. Em seguida exporá os mecanismos jurídicos de proteção das plantas medicinais contra a biopirataria e o direito das comunidades indígenas e locais. Palavras-chave: Medicina tradicional no Brasil. Plantas medicinais. Direito dos animais. Sistema Único de Saúde. Abstract. This article analyzes the introduction of traditional medicine in public health system, notably alternative health specialties recognized by government agencies. Then it exposes the legal mechanisms of medicinal plants protection against bio-piracy and violation of indigenous and local rights. Keywords: Traditional medicine in Brazil. Medicinal plants. Animal rights. Health Care System.

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1. Introdução A medicina tradicional é considerada uma das mais importantes manifestações culturais do Brasil. A riqueza das plantas medicinais, aliada aos conhecimentos ancestrais, produziu um conjunto de terapias difundidas oralmente de geração a geração. E não é para menos. O território brasileiro abriga 10% dos 1,4 milhão de organismos vivos descritos pela ciência. Entre esses organismos estão as plantas medicinais e os animais que compõem a fauna do país. Além disso, o Brasil possui comunidades étnicas e tradicionais que produzem uma grande quantidade de tratamentos, muitos dos quais de comprovada eficiência terapêutica. Entre as espécies de medicina complementar, também tem se expandido no país a Terapia assistida por animais (TAA), colocada em prática pela primeira vez no Brasil pela psiquiatra Nise da Silveira a partir de 1955, embora já haja relatos de tratamentos com a utilização de animais datados de 1792, na Inglaterra. Desde a década de 70, o direito internacional tem se preocupado com a proteção jurídica da medicina tradicional. Em 2002, a Organização Mundial da Saúde (OMS) iniciou ações de sensibilização dos Estados-membros para que desenvolvam políticas públicas destinadas a reconhecer, regulamentar e implementar o uso racional da medicina tradicional e complementar/alternativa em seus sistemas de saúde. As diretrizes foram expostas na “Estratégia da OMS sobre medicina tradicional 2002-2005”, documento em que foram sintetizados, pela primeira vez, os conceitos fundamentais do novo domínio científico. Atualmente, a OMS adota a Estratégia sobre a medicina tradicional 2014-2023, com o objetivo de ajudar as autoridades sanitárias de todos os Estados membros a promover a medicina tradicional e complementar mediante a regulamentação de produtos e práticas profissionais. A mudança de paradigma também leva em consideração o bem-estar e a atenção à saúde centrada nas

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pessoas. A partir dessas diretrizes, os países devem buscar a realização de três grandes objetivos estratégicos: a. desenvolvimento de uma base de conhecimentos e formulação de politicas publicas nacionais; b. fortalecimento da segurança, da qualidade e da eficácia mediante regulamentação; c. fomento da cobertura sanitária universal mediante a integração de serviços de MTC e autoatenção à saúde nos sistemas nacionais de saúde2.

Verifica-se que a OMS estabelece dois deveres estatais básicos a serem observados no setor: regulação e integração. O primeiro consiste na obrigação de desenvolver politicas públicas especificas e construir uma legislação que assegure a utilização da MTC como recurso terapêutico, regulamente o exercício da profissão e o controle dos medicamentos a serem utilizados pela população. Além disso, a MTC deve ser integrada aos sistemas de saúde estatal, ainda que prioritariamente alopáticos. A distinção entre medicina tradicional (MT) e medicina complementar/alternativa (MCA) é um elemento central na Estratégia da OMS. No Brasil, a expressão medicina tradicional tem sido utilizada largamente para definir os sistemas de cuidado com a saúde baseados em conhecimentos tradicionais acumulados por povos indígenas, africanos, comunidades rurais e religiosas que fazem uso da flora e fauna locais na prevenção do tratamento de doenças físicas e psíquicas. A OMS define medicina tradicional como “a soma total dos conhecimentos, capacidades e práticas baseados nas teorias, crenças e experiências próprias de diferentes culturas, explicadas ou não, utilizadas para manter a saúde, prevenir, diagnosticar, melhorar e tratar enfermidades físicas e mentais”. Baseia-se num conjunto de práticas ancestrais que implica a utilização de plantas medicinais, produtos minerais e animais, terapias espirituais e energéticas, técnicas manuais e exercícios destinados a diagnosticar, prevenir ou combater enfermidades.

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A medicina complementar, por sua vez, não está fundamentada na tradição ou na cultura de determinado país, tampouco em seu sistema de saúde predominante. Entretanto, suas práticas têm base científica e podem ser adotadas em tratamentos médicos de forma isolada ou conjugadas com outras terapias. Nem sempre é fácil fazer a distinção entre medicina tradicional e complementar. Existem até mesmo países que consideram expressões sinônimas. Para evitar ambiguidades, a OMS decidiu fazer a fusão e passou a utilizar a sigla MTC – Medicina Tradicional e Complementar – para abarcar os dois conceitos. No Brasil, esse domínio do conhecimento é denominado Medicina Natural e Práticas Complementares. Refere-se a sistemas médicos complexos, detentores de teorias específicas sobre o processo saúde/doença, diagnóstico e terapêutica. Possuem dois elementos caracterizadores: a) utilização de mecanismos naturais de prevenção e cura de doenças mediante a utilização de métodos eficazes; b) promoção global do cuidado humano, com ênfase em aspectos como a escuta acolhedora, autocuidado, mudança de hábitos alimentares e estilo de vida3. Este artigo analisa a forma de introdução da Medicina tradicional no Sistema Único de Saúde, mediante consultas e tratamentos terapêuticos gratuitos oferecidos pelo Estado brasileiro, sobretudo as especialidades médicas reconhecidas pelos órgãos governamentais. Em seguida, demonstrará os mecanismos jurídicos de proteção às plantas medicinais contra a biopirataria e a violação de direitos das comunidades indígenas e locais. A temática tem sido pouco estudada pelo direito brasileiro, mas tem sido objeto de pesquisas avançadas do Centro de Direito da Saúde da Universidade Aix-Marseille, cujo diretor científico, professor Antoine Leca, cunhou a especialidade de Direito Tradimedical. Desde 2003, é responsável pela publicação da Revista Cahiers de droit de la santé, que tem se consagrado aos diversos aspectos do tema, entre os quais a proteção constitucional e infraconstitucional da medicina tradicional nos sistemas

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de saúde pública. Para reforçar fundamentação teórica da disciplina, o volume 20 do referido periódico abordou o tema Le droit de la medicine chinoise, dite traditionnelle. Em 2015, professores de diversos países se uniram para apresentar suas colaborações quando da publicação da obra Droit Médical, coordenada pelo professor Antoine Leca. Ao se falar da tutela constitucional da medicina tradicional, os pesquisadores buscam assegurar os direitos culturais, as tradições ancestrais das etnias, das comunidades rurais e dos povos indígenas na produção de medicamentos e terapias que foram passados de geração a geração através da oralidade, muitos dos quais absorvidos pela indústria farmacêutica. Os remédios caseiros são produzidos à base de produtos vegetais, animais e minerais, mediante de receitas produzidas no âmbito familiar por anciões, curandeiras, xamãs, pajés etc. Embora as substâncias vegetais sejam mais numerosas, os produtos de origem animal têm sido largamente utilizados não só no âmbito comunitário, mas também na composição de remédios vendidos nas farmácias brasileiras e largamente utilizados pelos pacientes portadores de diversas doenças. Essa perspectiva incita os pesquisadores em direito dos animais a analisar os limites legais dessas práticas, bem como as formas de tutela civil e penal da fauna brasileira, especialmente no âmbito da exploração de substâncias de origem animal utilizadas pela indústria farmacêutica no país. Por outro lado, é necessário refletir sobre a introdução dos remédios de origem animal em tratamentos oferecidos pelo SUS, sobretudo no que tange à regulamentação das práticas complementares.

2. Medicina natural e praticas complementares no sistema de saúde no Brasil A Constituição brasileira foi promulgada em 1988 após longo período de ditadura militar. O art. 196 estabelece de forma clara

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que “a saúde é um direito de todos e um dever do Estado”. Ao considerá-la um direito social, estabeleceu que o Estado tem o dever de promover políticas públicas e econômicas destinadas à redução do risco de doenças e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção e recuperação. Dessa forma o constituinte criou o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual todos os brasileiros são beneficiários, independentemente de contribuição previdenciária. O SUS é considerado um dos mais importantes sistemas de saúde pública do Planeta. Ele oferece uma grande variedade de tratamentos, que vão desde a simples consulta médica até o transplante de órgãos, cujo acesso é integral, universal e gratuito para cerca de 180 milhões de brasileiros. Os serviços são financiados por todas as esferas federativas do Estado brasileiro (União, Estados e Municípios), sendo realizados em centros de saúde, hospitais, laboratórios, residências etc. Entre as diversas medidas tomadas pelo Governo brasileiro no sentido de promover a saúde pública de forma ampla e universal, está a Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares no SUS (PNPIC), criada e disciplinada pela Portaria Ministerial n. 971, de 03 de maio de 2006. Atualmente, as políticas públicas de saúde procuram conciliar a medicina alopática com a medicina tradicional e a fitoterapia. O país encoraja as pesquisas científicas para desenvolver os recursos de plantas medicinais, bem como avaliar a eficiência dos medicamentos tradicionais. As novas tecnologias da medicina tradicional favorecem a indústria farmacêutica nacional, fomenta a produção local de plantas medicinais, reforça os laços culturais, facilitam o acesso da população aos remédios naturais a baixo preço ou distribuídos gratuitamente. A combinação entre medicina natural e práticas integrativas e/ou complementares ao Sistema Único de Saúde levou em consideração os critérios estabelecidos pela OMS como, por exemplo, segurança, eficácia, uso racional e acesso. Depois de analisar os diversos sistemas complexos aplicados nas unidades

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de saúde do país, o Governo brasileiro reconheceu as seguintes especialidades: a) medicina tradicional chinesa-acupuntura; b) homeopatia; c) plantas medicinais e fitoterapia; d) termalismo social e crenoterapia4; terapia assistida por animais.

2.1. Medicina tradicional chinesa A acupuntura foi introduzida no Brasil há cerca de 50 anos por emigrantes chineses. Durante muito tempo, sua prática restringiu-se ao âmbito privado, em pequenos consultórios. Em 1988, ela foi admitida no serviço público de saúde. A Resolução 5/88, da Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação (CIPLAN), fixou regras para o atendimento à população. Em 1999, o Ministério da Saúde incluiu a consulta médica em acupuntura na tabela Sistema de Informações Ambulatoriais (SIA/SUS), sob o código 0701234. Essa medida permitiu o acompanhamento do aumento significativo de consultas ao longo dos anos. Vários estudos científicos comprovam a tendência de crescimento dos pacientes que recorrem a esse tratamento complementar5. Para se ter uma ideia, entre os anos de 2010 e 2012, o número de atendimentos cresceu 272%. Atualmente, a acupuntura é considerada especialidade médica, sendo estudada em diversas universidades brasileiras, sobretudo em cursos de pós-graduação espalhados pelo país. Em todos os Estados brasileiros é possível ter acesso à acupuntura nas unidades públicas de saúde.

2.2 A homeopatia no serviço público de saúde. A homeopatia foi descoberta pelo médico alemão Christian Friedrich Samuel Hahnemann em 1780. No Brasil, foi introduzida por seu discípulo, o francês Jules Benoit Mure. Formado na secular Universidade de Montpellier, Benoit Mure exerceu a medicina na Europa até sua chegada ao Brasil em 1840, quando se

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instalou em Santa Catarina. Três anos depois transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde fundou o Instituto Homeopático do Brasil (1844) e, em seguida, o Instituto Hahnemanniano do Brasil, que funcionou em sua residência até 1848, ano em que retornou definitivamente à Europa, deixando muitos seguidores no Brasil. Representante da escola “purista”, pregava que os homeopatas deveriam ter uma formação específica na Escola Homeopática do Brasil ou notórios conhecimentos, não sendo obrigatório o diploma de médico alopata para o exercício da profissão. O primeiro médico brasileiro homeopata foi Domingos de Azeredo Coutinho de Duque-Estrada, representante da corrente “evolucionista” e fundador da Academia Médico-Homeopata do Brasil (1847). O movimento dissidente preconizava que a homeopatia só poderia ser exercida por médicos e os remédios tinham de ser produzidos por farmacêuticos com formação oficial. Os médicos evolucionistas também admitiam o uso alternado ou conjunto de tratamentos alopáticos e homeopáticos. Rapidamente, a especialidade obteve grande popularidade, passando a ser adotada por médicos de todo país. Em razão da grande procura de produtos homeopáticos, muitas farmácias de manipulação e laboratórios foram abertos para satisfazer à crescente demanda de medicamentos. Grande parte de seu sucesso deve-se aos precos acessíveis das consultas e dos remédios prescritos. Em 1979, foi criada a Associação Médica Homeopática Brasileira, com o objetivo de difundir o conhecimento científico e promover os interesses da classe profissional. Em 1980, o Conselho Federal de Medicina reconheceu a homeopatia como especialidade médica (Resolução 1000). Durante a década de 80, o atendimento homeopático foi se expandindo mais unidades públicas de saúde, inclusive com abertura de postos de trabalho para médicos homeopatas. Em 1988, a Resolução 4 do CIPLAN estabeleceu normas para o atendimento em homeopatia nos serviços públicos de saúde. No ano seguinte, O Ministério da Saúde inseriu na tabela SIA/SUS a consulta médica em home-

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opatia, permitindo um levantamento estatístico dos pacientes atendidos. Paralelamente a isso, foi criada a Associação Brasileira de Farmacêuticos Homeopatas (1990). Dois anos depois, em 1992, a homeopatia foi reconhecida como especialidade farmacêutica pelo Conselho Federal de Farmácia (Resolução n. 232). Esse cenário estimulou o surgimento de novas pesquisas no país e propostas de formação homeopatas em outros ramos da saúde, como a veterinária, a farmácia, nutrição, sendo até mesmo aplicada na agricultura e pecuária. Embora a homeopatia remonte ao século XVIII, com os estudos desenvolvidos por Samuel Hahnemann, sobretudo em suas obras Organon da arte de curar e Doenças crônicas, muitas de faculdades de medicina ainda resistem em desenvolver pesquisas científicas sérias e oferecer cursos sobre a especialidade. Atualmente, existem escolas formadoras (especialização) em apenas nove estados brasileiros, o que ainda é muito pouco para oferecimento de serviços médicos em larga escala6. Nas universidades, a homeopatia é oferecida como disciplina optativa, à exceção da UNIRIO – Departamento de Ensino Homeopático da Escola de Medicina e Cirurgia –, que oferece quatro disciplinas e residência médica. O título de médico homeopata em provas realizadas anualmente nos congressos nacionais. Por outro lado, a indústria farmacêutica estatal não tem acompanhado a demanda, pela ausência de medicamentos e de farmácias de manipulação mantidas pelo Estado. A homeopatia é muito respeitada no país por estimular as defesas imunológicas dos pacientes, evitando doenças e infecções. Para o Humberto Pontual Karl, “a prevenção em Homeopatia é a palavra-chave que resume o empenho do homeopata, que não luta contra a doença, mas a favor da saúde bio-psico-sócioespiritual do indivíduo e seus reflexos nos fenômenos de homeostasia (equilíbrio)”. O médico também afirma que os recursos terapêuticos têm eficácia comprovada em doenças crônicas, insidiosas e de longa duração7.

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2.3. Termalismo social (Crenoterapia) Desde a Antiguidade, as estações de águas termais são consideradas verdadeiros centros de tratamento das mais variadas enfermidades. As origens da crenologia remontam a Hipócrates e Aesculapius. Atribui-se ao estudioso grego Heródoto (450 a.C) o primeiro tratado sobre suas propriedades curativas. As termas romanas, espalhadas por todo Império e ricas em enxofre, alumínio, betume, alcalino e ácido, também se celebrizaram pelos efeitos benéficos à saúde. No Brasil, as águas termais eram largamente utilizadas pelas nações indígenas para o tratamento de inúmeras doenças. Os africanos escravizados também acreditavam no poder curativo das águas e atribuíam a elas poderes divinos e milagrosos. Eram lugares de culto e morada de seus “orixás”. No início do Século XIX, D. João VI, recém-chegado ao Brasil, determinou o levantamento e avaliação científica de todas as instâncias hidrominerais existentes em seu território. Muitos membros da família real recorreram à crenoterapia como tratamento de doenças reumáticas e dermatológicas. Em 8 de agosto de 1945, o então presidente Getúlio Vargas promulgou o Código de Águas Minerais, que estabelece proteção jurídica às águas de inconteste ação medicamentosa, a ser comprovada por médicos crenologistas a partir de exames laboratoriais e clínicos, análise estatística e pesquisas científicas, sob a supervisão da Comissão Permanente de Crenologia. Atualmente existem diversos roteiros turísticos para visitar as principais estações termais do país, muito conhecidas pelas suas propriedades terapêuticas, e que atraem milhares de brasileiros e estrangeiros. A crenoterapia consiste em um conjunto de atividades terapêuticas que se desenvolvem em estâncias termais, mediante o uso de águas minerais de comprovada ação medicamentosa para prevenir e curar determinadas doenças. Geralmente, essa

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especialidade médica é utilizada de forma complementar aos tratamentos convencionais. A “Health Resort Medicine” (medicina de estância) é incentivada pela OMS como terapia complementar aos tratamentos alopáticos em razão de estudos científicos sérios que comprovam sua eficiência terapêutica, sobretudo a metodologia conhecida como a Medicina baseada em evidências (MBE)8, que tem como um de seus fundamentos básicos os conhecimentos tradicionais. No Brasil a crenoterapia já foi uma disciplina de grande prestígio nas faculdades de medicina, sobretudo em Minas Gerais e Rio de Janeiro. Entretanto os estudos científicos entraram em declínio com os notáveis avanços das ciências médicas e biológicas a partir dos anos 50. Pouco a pouco os tratamentos deixaram de ser indicados em clínicas e hospitais. Na década de 90, disseminou-se no país uma nova abordagem médica, voltada principalmente para a busca do bem-estar físico e mental. Desenvolve-se aí a prática do termalismo social, que consiste atividades coletivas realizadas em estações de águas termais, que atraem grande número de turistas e pessoas idosas em verdadeiras excursões de saúde. Além crenoterapia, são muito populares no Brasil a hidroterapia e o tratamento spa. A hidroterapia faz uso de águas comuns à temperatura de 34̊, e consiste em um conjunto de atividades terapêuticas realizadas em uma piscina com o objetivo de recuperar lesões musculares e neurológicas, problemas ortopédicos, dificuldade respiratória, artrite, artrose ou reumatismo. Já o tratamento spa tem natureza holística e combina técnicas de crenoterapia, hidroterapia, atividades de reducação alimentar etc., sempre em busca de do máximo de bem-estar. No Brasil, a crenoterapia é considerada uma prática integrativa e complementar. A Resolução 343 do Conselho Nacional de Saúde, de 07 de outubro de 2004, determinou a reativação da Comissão Nacional de Crenologia para que proponha ações governamentais que envolvam a revalorização dos mananciais das águas minerais, seu aspecto terapêutico, a definição dos meca-

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nismos de prevenção, fiscalização e controle, além de formentar pesquisas científicas. Embora integre o SUS, as unidades públicas de tratamento são raras. Entre os fatores que dificultam o acesso aos tratamentos está a necessidade de deslocamento dos pacientes para longínquas estações termais, a carência de estudos médicos-hidrológicos sérios e as dificuldades para encontrar condições geográficas e geológicas adequadas para a implantação de centros de atendimento médico especializado. Além disso, os tratamentos não são contemplados pelos planos de saúde existentes. Todos esses obstáculos impedem maior expansão da crenoterapia no Brasil.

2.4. Plantas medicinais e fitoterapia A fitoterapia é a ciência que faz uso de plantas medicinais para a prevenção e tratamento de doenças. Suas origens se perdem no tempo. Há notícias de que, por volta de 3.000 a.C, já havia estudos na China sobre o ginseng e a cânfora. Em todas as civilizações, há exemplos do uso de ervas para combater os mais diversos tipos de moléstias. Ainda hoje os tratamentos à base de plantas medicinais são utilizados por cerca de 80% da população mundial. É a terapêutica que mais representa a medicina tradicional brasileira. Duas razões explicam esse fenômeno. Em primeiro lugar a sociodiversidade, plasmada na coexistência de grupos étnicos e raciais, permite a sobrevivência de saberes ancestrais, passados de geração a geração. Em segundo lugar, o território brasileiro possui a maior diversidade vegetal do mundo, o que favorece a pesquisa para a validação cientifica dos tratamentos e medicamentos. O Estado brasileiro tem adotado políticas públicas destinadas a incorporar a utilização de plantas medicinais e de tratamentos fitoterápicos aos serviços oferecidos pelo Sistema Universal

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de Saúde (SUS). Algumas medidas importantes foram adotadas para garantir a eficiência e segurança dos pacientes. Entre as mais importantes, está o fomento à pesquisa e desenvolvimento de novas tecnologias, o controle de produção dos remédios fitoterápicos e incentivo ao desenvolvimento das cadeias produtivas. Além disso, os pacientes atendidos pelo SUS recebem gratuitamente medicamentos prescritos pelos médicos, o que favorece o aumento da produção farmacêutica de medicamentos fitoterápicos. Em 22 de junho de 2006, o Governo Federal aprovou a Politica Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (Decreto 5.813), que tem como princípios orientadores: d. ampliação das opções terapêuticas e melhoria da atenção à saúde aos usuários do SUS; e. uso sustentável da biodiversidade brasileira; f. valorização e preservação do conhecimento tradicional das comunidades e povos tradicionais; g. fortalecimento da agricultura familiar; h. crescimento com geração de emprego e renda, redutor das desigualdades regionais; i. desenvolvimento tecnológico e industrial; j. inclusão social e redução das desigualdades sociais e; k. participação popular e controle social.

Em 2009, o Ministério da Saúde implantou o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos. Um dos seus principais objetivos foi criar um marco regulatório que estabeleça regras claras para o cultivo, manejo, produção e uso de plantas medicinais e fitoterápicos. O tratamento legal a ser adotado leva em consideração determinadas especificidades dos dois eixos

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da cadeia produtiva: 1) eixo agro-fito-industrial, vinculado à indústria farmacêutica; 2) eixo tradicional em plantas medicinais, que se refere aos povos e comunidades tradicionais. Para o primeiro eixo, as normas jurídicas devem assegurar a qualidade, eficácia e segurança dos medicamentos, mediante a adoção de padrões de qualidade que orientem a indústria farmacêutica no que se refere ao cultivo, sistemas e técnicas de produção. Para o eixo tradicional em plantas medicinais, a legislação deve proteger e preservar os conhecimentos, práticas, saberes e fazeres tradicionais. A eficiência dos tratamentos e medicamentos é referendada pela tradição, dispensando complexas pesquisas cientificas. Isso implica o reconhecimento das práticas populares e dos remédios caseiros que já se incorporaram à cultura de determinadas comunidades. A Politica Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos procura ampliar o acesso da população aos medicamentos homeopáticos e fitoterápicos, sobretudo os usuários do SUS, na sua maioria pessoas de baixa renda. Para isso determinou a elaboração de dois documentos orientadores: a) Relação Nacional de Plantas Medicinais e b) Relação Nacional dos Fitoterápicos. Entretanto, a prescrição dos medicamentos deve ser racional e fundamentada em postulados científicos, a fim de proteger a integridade física e mental do paciente. A indústria farmacêutica deve obedecer aos princípios que regem o consumo: qualidade, eficácia, eficiência e segurança no uso. Isso justifica a adoção de controle rigoroso das autoridades sobre todo o processo de produção, passando pelo plantio, colheita, manipulação e fabricação dos medicamentos à base de plantas medicinais. O Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, por sua vez, também propõe a inclusão do tema “plantas medicinais e fitoterapia” no currículo escolar, tanto de nível médio como superior. Essa medida busca sensibilizar os estudantes para a importância dos procedimentos terapêuticos não convencionais para a manutenção da saúde. Além disso, estabelece que

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o governo apoie os centros de capacitação técnica e científica em manejo sustentável de plantas medicinais e medicamentos fitoterápicos.

2.5. Terapia assistida por animais A Terapia assistida por animais (TAA) é uma prática complementar através da qual determinado animal atua como coterapeuta e ajuda o paciente a atingir os objetivos previstos no tratamento médico tradicional. Não é substituta das terapias convencionais, mas um complemento a tratamentos médicos voltados para a melhoria da qualidade de vida dos pacientes, quase sempre excluídos do convívio social. Em geral se faz uso de animais de estimação que são autorizados a ingressar em hospitais e clínicas para fazer companhia aos pacientes internos. Trata-se de intervenção com objetivos específicos para cada patologia e faixa etária, sempre voltada para auxiliar no tratamento de algumas doenças ou deficiências (motoras, mentais ou sensoriais). Tem a função de despertar sentimentos positivos nos pacientes a partir do momento em que eles se identificam afetivamente com os animais e passam a reagir aos sintomas de suas moléstias. O resultado dessa interação tem comprovados efeitos terapêuticos ajudando a recuperação e aumentando a autoestima. Os tratamentos visam a melhorar a saúde física, mental, psíquica e moral dos pacientes. A TAA é largamente associada a tratamentos psiquiátricos e pediátricos, com benefícios comprovados cientificamente, sobretudo em casos de autismo, hiperatividade, deficiências visuais ou aditivas, distúrbios de atenção, esquizofrenia, dificuldades de comunicação ou de interação social, entre outras. Os tratamentos tanto podem ser individuais como coletivos, dependendo das especificidades terapêuticas. Os animais são treinados por tutores especializados para o desempenho de suas atividades. Todo o tratamento é assistido por uma equipe multidisci-

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plinar composta de médicos, veterinários, pedagogos, terapeutas ocupacionais etc., que irá definir o método, mais adequado para cada tipo de paciente. A prática da TAA possui várias vertentes, sendo as mais conhecidas no país a pet terapia e equoterapia. Mas os estambém se faz uso de outros animais como jabutis, peixes, coelhos, gatos, golfinhos etc9. Também se desenvolve a partir de duas modalidades: a) atividade assistida por animais (AAA), que consiste em visitas a pacientes concebidas para finalidades precisas, a exemplo de entretenimento, desenvolvimento de vínculos afetivos, adaptação social, relaxamento, estímulos cognitivos, etc.; b) educação assistida por animais (EAA), cujas atividades são conduzidas por profissionais da pedagogia visando o aprendizado de competências essenciais à formação intelectual dos alunos e pacientes10. No Brasil, a TAA ainda é pouco estudada na área de saúde, existindo escassos estudos científicos sobre o tema. Da mesma forma ainda não foi criada uma regulação de suas práticas terapêuticas, inclusive a forma como elas devem ser introduzidas no Sistema Único de Saúde. Em 2012, o deputado Giovani Cherini apresentou o projeto de lei 4.455, que dispõe sobre o uso da Terapia assistida por animais nos hospitais públicos, contratados, conveniados e cadastrados no Sistema Único de Saúde. A proposta é integrar a TAA no conjunto de ações de saúde oferecidas pelo SUS. Segundo o projeto, os estabelecimentos de saúde devem manter nos seus quadros profissionais especializados na prestação desses serviços. Além disso, assegura aos pacientes o direito à TAA – mediante prescrição médica – nos hospitais vinculados ao SUS. Ao justificar sua proposição ao parlamento, ele enfatiza que essa prática tem sido usada largamente nos Estados Unidos, com resultados satisfatórios na diminuição do estresse, na humanização dos pacientes, na evolução das relações interpessoais, entre outros benefícios. Também argumenta que a aprovação do projeto de lei trará grandes benefícios para o SUS, na medida

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em que reduzirá o tempo de internação dos pacientes, em razão da resposta mais rápida aos tratamentos convencionais quando conjugado com a TAA enquanto tratamento coadjuvante – cerca de 60% dos casos.

2.6. Utilização de animais selvagens na medicina tradicional A medicina tradicional de diversos países utiliza recursos de origem animal presentes na fauna local para a produção de medicamentos. A prática é muito utilizada nos países da Indochina (Vietnam, Camboja e Laos). Na medicina tradicional desses países, é comum a produção de drogas pelas comunidades locais a partir de substâncias extraídas de animais como o tigre, a pantera, o elefante da Ásia e até mesmo várias espécies de cobra. Atualmente muitos desses animais estão ameaçados de extinção em virtude do tráfico e da destruição das florestas. Nesses países há grande diversidade étnica, que implica a existência de terapias tradicionais passadas de geração a geração. As Nações Unidas protegem esses conhecimentos na Declaração de Direitos dos Povos Indígenas, proclamada em 13 de setembro de 2007. O artigo 34 estabelece que os povos autóctones têm o direito de conservar sua farmacopeia tradicional e suas práticas médicas. Isso implica a possibilidade continuar a produzir medicamentos caseiros à base de plantas, minerais e produtos animais. Segundo Le Thanh Tu, a prescrição de drogas de origem animal tem surge em receitas familiares tradicionalmente utilizadas em determinados grupos étnicos. Muitas dessas receitas foram compiladas no Século XVII por importantes médicos como Tue Thin e Le Hu Trac. Nesse período foram descritos os efeitos curativos de substâncias extraídas de animais. Em 2004, o farmacêutico Dô Tât Loi publicou o livro Plantas e ingredientes medicinais vietnamitas, no qual apresenta uma lista de 24 animais

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invertebrados e 57 vertebrados cujas substâncias extraídas de seus corpos podem ser utilizadas na composição de medicamentos11. A autora sustenta que os pequenos animais, sobretudo os invertebrados, são utilizados por inteiro na fabricação de medicamentos, enquanto que apenas partes de grandes animais são extraídas pela a composição das drogas. A legislação asiática é extremamente severa em relação à prática de crimes como o tráfico e o comércio de animais selvagens. Além da tipificação de crimes, as leis locais preveem responsabilidade civil para os responsáveis pelos atos ilícitos, inclusive para as autoridades competentes para preveni-los e reprimi-los. Por essa razão, os medicamentos preparados à base de animais em vias de extinção nos três países atingem preços elevadíssimos no mercado. O alto custo de terminadas substâncias tem sido responsável pelo abandono do uso de receitas por determinadas comunidades tradicionais, que não possuem meios financeiros para adquirir a matéria-prima para produzir os medicamentos. Ainda no século XVIII, o boticário Manoel Rodrigues Coelho escreveu a obra Farmacopéia Tubalense Químico-Galênica (1735) em que lista os medicamentos mais utilizados em Portugal. Entre eles, 51 eram de origem animal, provenientes da Índia, Ásia, Brasil e África. O estudioso encontrou efeitos curativos em animais como cobras, insetos, lagartos, pássaros, peixes, cobras, vísceras de leão e vaca e elefante, abelhas, caranguejos etc12. No Brasil, diversos medicamentos são produzidos à base de animais. É o caso dos venenos de cobra, sanguessugas, chifre de veado, gordura e produtos apícolas (mel, própolis, geleia real, etc.)13. A literatura jurídica sobre o tema ainda é escassa. Porém, a indústria farmacêutica tem colocado mercado vasta lista de produtos produzidos a partir de substâncias animais, cujos efeitos terapêuticos são reconhecidos por alguns médicos adeptos dos conhecimentos tradicionais. Diante dos desafios contemporâneos, sobretudo os crimes praticados contra a fauna brasileira, a exemplo do comércio ile-

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gal e contrabando de animais, o Brasil deve adequar sua legislação para disciplinar o uso de animais para fins terapêuticos e produção de medicamentos para evitar a extinção de espécies raras e combater a criminalidade ambiental.

3. Proteção jurídica do conhecimento tradicional em plantas medicinais Como se viu, as políticas públicas desenvolvidas no Brasil em práticas integrativas e complementares no Sistema Único de Saúde contemplam quatro eixos básicos: a) medicina chinesa, b) homeopatia, c) crenoterapia; d) fitoterapia e plantas medicinais; e) terapia assistida por animais. Apenas a proteção às plantas medicinais será objeto de análise neste artigo, em razão de conter aspectos essenciais do que podemos entender por medicina tradicional genuinamente brasileira. De fato, o uso de plantas medicinais e de medicamentos fitoterápicos suscitam questões que só podem ser resolvidas a partir do estudo de conhecimentos tradicionais de determinadas comunidades locais, a exemplo de ribeirinhos, pescadores, sertanejos, quilombolas. Em outras palavras, as comunidades locais são “todo grupo humano, incluindo remanescentes de comunidades dos quilombos, distinto por suas condições culturais, que se organiza tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas14” Os saberes e práticas associados ao uso de plantas medicinais pelas comunidades locais são extremamente complexos e ainda pouco estudados no Brasil. O uso de plantas medicinais é vastamente utilizado por povos indígenas. Para se ter ideia da diversidade cultural no país, existem milhares de comunidades devidamente identificadas, cujas práticas terapêuticas jamais foram estudadas. Entre elas, foram catalogados 243 povos indígenas, totalizando uma população de 896.917 pessoas, entre as quais 324.834 vivem em áreas

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rurais, segundo levantamento feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Censo 2010). 28 povos em situação de isolamento voluntário, sem nenhum contato com a civilização15. Os índios brasileiros comunicam-se em 150 línguas e dialetos diferentes, dependendo da comunidade a que pertençam16. Além disso, o conhecimento tradicional possui características que exigem dos pesquisadores extremo cuidado na análise das evidências terapêuticas dos tratamentos: a) ancestralidade: as técnicas são transmitidas de geração a geração e quase sempre ficam restritas à comunidade, cujos membros se recusam a difundi-lo amplamente; b) oralidade: em geral, não há documentos escritos sobre os procedimentos adotados, uma vez que fazem parte da tradição oral comunitária; c) dinamicidade: os saberes evoluem com o tempo, incorporando novos elementos às fórmulas originais; d) abordagem holística: os procedimentos terapêuticos não se restringem às plantas medicinais, mas combinam ritos, divindades religiosas, imersões em água, curandeirismo, cânticos, uso de produtos animais, vegetais e minerais17. Em outras palavras, a medicina tradicional procura conciliar o corpo e a alma a partir da combinação de várias abordagens terapêuticas ligadas à cultura e à tradição popular. Em muitas comunidades do interior do Brasil, o acesso a medicamentos convencionais é difícil, às vezes o preço é elevado e inacessível aos pacientes. Em razão disso, muitas pessoas desenvolveram o hábito combater as doenças com a utilização de tratamentos tradicionais. A farmacopeia brasileira extrai sua riqueza de milhares de plantas medicinais provenientes de diversas regiões do país e graças a receitas fáceis de preparar. Em todos os mercados populares, é possível encontrar “raizeiros” que propõem diversas fórmulas aos clientes, algumas das quais sem qualquer comprovação científica. Vários centros de pesquisa oferecem “farmácias verdes” para promover uma vasta difusão das plantas medicinais. Ao visitálas, os clientes podem encontrar uma grande variedade de er-

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vas, raízes, frutas, dotados de indiscutível eficácia terapêutica. Além disso, eles são orientados a preparar medicamentos caseiros. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), instituição nacional legitimada para exercer o controle sobre os medicamentos produzidos no país, publicou uma lista de plantas medicinais da farmacopeia brasileira, bem como receitas para combater diversas doenças. Nos últimos anos, a indústria farmacêutica intensificou as pesquisas sobre as plantas medicinais brasileiras em razão da grande procura por medicamentos fitoterápicos e do desafio de inovação no setor. Esse fenômeno, que muitos autores denominam “corrida pelo conhecimento tradicional”, tem criado alguns problemas jurídicos. Em primeiro lugar, aumentaram as denúncias de biopirataria, com ampla repercussão na mídia. Em segundo lugar, a dificuldade de garantir os direitos de propriedade intelectual das comunidades tradicionais, diante das fragilidades legais na concessão de patentes. Por fim, a insuficiência de pesquisas de boa qualidade sobre a segurança e eficiência dos medicamentos que surgem no mercado pode causar danos à saúde dos pacientes, o que exige rigoroso controle dos órgãos governamentais. Entretanto, o Brasil tem buscado avançar em relação à proteção ao patrimônio genético e aos conhecimentos tradicionais. Para isso concebeu diversos mecanismos de controle previstos em um vasto cadre normatif. No âmbito internacional, a Convenção sobre Diversidade Biológica traz diversos dispositivos de proteção ao patrimônio genético. A Constituição brasileira inclui os conhecimentos tradicionais entre os direitos culturais. Da mesma forma, existem diversas leis e atos normativos que procuram regulamentar a concessão de patentes, proteger o patrimônio genético e os direitos morais de tribos indígenas e comunidades locais. A primeira preocupação é a de analisar a possibilidade de concessão de patentes. Nesse sentido, alguns procedimentos são administrativos são obrigatórios – todos previstos nos arts. 18,

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19 e 24 da Lei de Propriedade Intelectual18. O órgão estatal verificará se o pedido feito pelo interessado satisfaz os requisitos de atividade inventiva ou ato inventivo, além sua aplicação industrial. A legislação brasileira, não é muito clara sobre a possibilidade de patentear o uso de substâncias naturais já conhecidas, como determinado tipo de planta medicinal. Por isso, é possível que o pedido seja negado se as autoridades entenderem que não se trata de descoberta, mas da utilização de produto terapêutico de domínio público. Entretanto, a Medida Provisória 2.186, de 16 de agosto de 2001, regulamenta o acesso ao patrimônio genético existente em território brasileiro e protege o acesso ao conhecimento tradicional das comunidades locais e indígenas. A Medida Provisória 2.186 define conhecimento tradicional associado como “informação ou prática ou coletiva de comunidade indígena ou comunidade local, com valor real ou potencial, associada ao patrimônio genético”. O Estado brasileiro assegura a essas comunidades proteção contra exploração ilícita ou ações lesivas contra o seus conhecimentos tradicionais. Por outro lado, a lei garante autonomia às comunidades para decidir livremente sobre seus conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético do país. Dessa forma, os procedimentos terapêuticos de cada uma delas têm natureza coletiva, não podendo ser reivindicados de forma individual. Por isso, o art. 9º garante à comunidade indígena ou comunidade local o direito de: I – ter indicada a origem do acesso ao conhecimento tradicional em todas as publicações, utilizações, explorações e divulgações; II – impedir terceiros não autorizados a realizar testes, pesquisas ou exploração, assim como divulgar, transmitir ou retransmitir dados ou informações relacionados ao conhecimento tradicional associado;

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III – receber benefícios pela exploração econômica por terceiros, direta ou indiretamente, de conhecimento tradicional associado, cujos direitos são de sua titularidade. Assim, a bioprospecção de plantas medicinais e de outros recursos terapêuticos está condicionada à autorização prévia das comunidades detentoras dos conhecimentos tradicionais, que terão plena autonomia para autorizar o acesso às técnicas ancestrais. Além do mais, poderão negociar livremente os direitos de propriedade intelectual, devendo firmar um “contrato de utilização do patrimônio genético e repartição de benefícios”, assegurando às comunidades a participação nos lucros auferidos com a comercialização dos medicamentos, pagamento de royalties, acesso e transferência de tecnologia etc. Caso a empresa farmacêutica cause prejuízos às comunidades, deverá pagar pesadas indenizações. Além disso, o pedido de patentes para medicamentos farmacêuticos fitoterápicos depende da anuência de diversos órgãos estatais, inclusive da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA).

4. Conclusão Os mecanismos de controle existentes na legislação visam a proteger o patrimônio genético e os conhecimentos tradicionais dos danos provocados pela biopirataria, pela exploração predatória das tradições comunitárias e preservar a dimensão multicultural da sociedade brasileira. No Brasil, a medicina tradicional e as práticas integrativas são reconhecidas como especialidades médicas e integram os serviços prestados pelo Sistema Universal de Saúde, beneficiando milhares de pacientes. Ela também é vastamente praticada em hospitais e clínicas privadas , gozando de grande popularidade no país. Entre os sistemas complexos, o Estado brasileiro tem criado diversos mecanismos de proteção e controle para preservar

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os conhecimentos tradicionais, considerados patrimônio imaterial do povo brasileiro e um dos mais importantes direitos fundamentais. Diante da grande expansão da indústria farmacêutica de fitoterápicos, de produtos de origem animal e mineral, existe grande risco de biopirataria e de lesão dos direitos de propriedade das comunidades locais e indígenas, além de gravíssimos danos à fauna brasileira. A legislação brasileira é extremamente severa em relação à concessão de patentes, à autorização de pesquisas envolvendo patrimônio genético e conhecimentos tradicionais. Mas ainda é necessário avançar em termos de regulamentação de medicamentos a fim de preservar a flora e fauna, sem afetar os conhecimentos tradicionais – que é uma dimensão importante dos direitos culturais proclamados pela constituição de 1988. Por isso, o grande desafio consiste em se garantir a efetividade da legislação brasileira mediante o comprometimento não só dos órgãos governamentais legitimados para a fiscalização e controle do setor farmacêutico, mas também das comunidades detentoras dos saberes tradicionais, que são as principais vítimas de apropriação ilícita e da biopirataria. Da mesma forma, o Ministério Público e Polícia Federal devem ampliar o papel investigativo, para apurar os inúmeros crimes praticados no país. Isso também se aplica ao Poder Judiciário, que deve promover a especialização dos magistrados para o julgamento célere das ações penais e civis que envolvem lesões ao patrimônio imaterial dos povos indígenas, quilombolas, caiçaras, dentre outros grupos representativos da diversidade cultural que caracteriza a população do país.

Notas 1

Professor da Universidade Federal de Alagoas. Doutor em Direito Público (UFPE). Pós-doutor na Universidade Aix-Marseille (França). Pesquisador do Laboratório de Direitos Humanos/UFAL.

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2

CHAN, Margaret. Prólogo. Estratégia da OMS sobre medicina tradicional 2014-2013. OMS, 2013, p. 7.

3

Ministério da Saúde. Política Nacional de Medicina Natural e Práticas Complementares. Resumo Executivo. Brasília, 2005.

4

Portaria Ministerial n. 971, de 03 de maio de 2006.

5

Santos FAS, Gouveia GC, Martinelli, PJL, Vasconcelos, EMR. Acupuntura no sistema único de saúde e a inserção de profissionais não-médicos. Revista Brasileira de Fisioterapia, 13(4), 2009, pp. 330-334.

6

Segundo dados da Associação Médica homeopática Brasileira, existem centros formadores nos Estados de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.

7

KARL, Humberto Portugal. Homeopatia e a saúde do indivíduo. In: O Reformador, n. 2.227. São Paulo: FEB, 2014, pp. 12-14.

8

Metodologia proposta por Archie Cochrane em seu livro Effectiveness and Efficiency: Random Reflections on Health Services (1972), privilegia as estatísticas e as observações como evidências da eficácia de determinado medicamento.

9

Sobre o tema, AYRES, Nathalie. Animais também podem ser terapeutas e ajudar no tratamento de doenças, in Minha vida, publicado em 27/07/2016. http://www.minhavida.com.br/bem-estar/galerias/16239animais-tambem-podem-ser-terapeutas-e-ajudar-no-tratamento-de-doencas. Acesso em: 07/10/2016.

10

Informativo da ONG Patas Terapêuticas, in http://patastherapeutas. org/o-que-e-taa-eaa-aaa/. Acesso: 07/10/2016.

11

LE THANH, Tu. La protection des animaux sauvages utilisés dans la médicine traditionnelle asiatique: les cas des trois pays Laos, Cambodge et Vietnam. In La rencontre du droit français et la pharmacologie orientale : l’exemple vietnamien, Bordeaux : LEH Édition, p. 162.

12

GOMES, Leonardo Gonçalves. Animais que curam: os medicamentos e origem animal do Reino Português. In anais do XXVI Simpósio Nacional de História – ANPUH – São Paulo, julho 2011. www.snh2011.anpuh. org. Acesso: 22/10/2016.

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13

Sobre o tema: DAM, Joop van. Medicamentos provenientes do mineral, vegetal e animal. Arte médica Ampliada, v. 32, n. 3, julho/agosto/setembro de 2012.

14

Medida provisória 2.186-16/2001, art. 7, III.

15

Levantamento feito pela Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados (CGIIRC), da FUNAI.

16

Dados do Instituto Socioambiental. Disponível: http://pib.socioambiental.org/pt/c/no-brasil-atual/linguas/introducao.

17

REZENDE, E.A. e RIBEIRO, M.T.F. Conhecimento tradicional, plantas medicinais e propriedade intelectual: biopirataria ou bioprospecção? RV. BRAS.PL.MED, v. 7, n. 3, 2005, p.2.

18

Lei 9279, de , de 14 de maio de 1996.

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Teoria geral do Direito Jurisprudence



A condição de sujeito de direito dos animais humanos e não humanos e o critério da senciência The condition of subject of law of human and non-human animals and the criteria of sentience Fernanda Andrade Mestra em Direito pela Faculdade Meridional – IMED. Especialista em Direito Constitucional Contemporâneo. E-mail: fernandaandrade.pf@gmail.com.

Neuro José Zambam Pós-doutor em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. Doutor em Filosofia pela PUCRS. Professor do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade Meridional - IMED – Mestrado. Professor do Curso de Direito (graduação e especialização) da Faculdade Meridional – IMED de Passo Fundo. Membro do Grupo de Trabalho, Ética e cidadania da ANPOF (Associação Nacional dos Programas de Pós Graduação em Filosofia). Pesquisador da Faculdade Meridional. Coordenador do Grupo de Pesquisa: Multiculturalismo, minorias, espaço público e sustentabilidade. E-mail: nzambam@imed.edu.br. Recebido: 12.10.2016 | Aceito: 19.11.2016

RESUMO: Os seres humanos e os animais, em determinados períodos históricos e culturas, de acordo com o critério eleito pelo dominador, são subjugados (objetos) ou protegidos (sujeitos de direito). Nesse contexto, o problema desta abordagem é: qual o critério para o reconhecimento dos sujeitos de direito, com a complexidade que esse reconhecimento invoca – direito à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica –, e qual a possibilidade do direito dos animais contribuir

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para esse reconhecimento e para a ampliação do rol dos sujeitos de direito? Não se trata de uma tentativa de igualar homens e animais, mas de defender de forma igual os seus interesses, a partir da senciência. Desenvolve-se o direito dos animais como consectário dos movimentos civis pelo reconhecimento de direitos das minorias e grupos oprimidos. A coexistência pacífica, integradora, com vista à plenitude da vida, constitui um dos grandes desafios éticos do século XXI. O desenvolvimento da pesquisa está pautado no método de abordagem dialético. A técnica de pesquisa é bibliográfica. PALAVRAS-CHAVE: Animais humanos e não humanos. Ética; Senciência; Sujeito de direito. ABSTRACT: Human beings and animals, in certain historical periods and cultures, according to the criteria chosen by the dominator, are subjugated (objects) or protected (subjects of law). In this context, the problem with this approach is: what is the criteria for the recognition of subjects of law, with the complexity that this recognition invokes the right to life, to freedom and to physical and mental integrity - and what is the possibility of the right of animals to contribute to this recognition and to broadening the role of the subjects of law? It is not an attempt to equate men and animals, but to defend their interests in the same way, from the perspective of sentience. It develops the right of animals as a consecration of the civil movements for the recognition of rights of minorities and oppressed groups. Peaceful, inclusive coexistence, aiming the fullness of life, is one of the great ethical challenges of the 21st century. The development of this research is based on the dialectical method of approach. The research technique is bibliographical. KEYWORDS: Human and non-human animals. Ethic. Sentience. Subject of law. SUMÁRIO: Introdução; 1 Os critérios para o reconhecimento dos sujeitos de direito; 1.1 A senciência como critério para o reconhecimento dos sujeitos de direito; 2 A senciência para o reconhecimento ético dos sujeitos de direito humanos e não humanos; 2.1 Os animais humanos e não humanos no mesmo compromisso ético; Conclusão; Referências.

1. Introdução

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O tratamento jurídico dispensado aos animais não humanos é incerto e indefinido. Uma digressão pela Constituição Federal, Código Civil e Leis Federais, Estaduais e Municipais, bem como pela doutrina e jurisprudência, revela que ora os animais são tratados como sujeitos de direito, ora como objetos3. A objetificação é verificada na reivindicação do homem pelo direito de propriedade e superioridade sobre a vida animal, evidenciada na violência industrial, mecânica, química, hormonal e genética, presentes na produção, criação, confinamento, transporte e abate a que o ser humano submete os animais não humanos. Contudo, não é apenas sobre os animais que os homens exercem o seu poder de domínio e propriedade. Em determinados contextos e períodos históricos, a dominação humana também é praticada sobre os demais humanos. O exemplo mais dramático é a escravidão, que subjuga na condição de objeto o seu próprio semelhante. A eleição de critérios pelo dominador, que varia de acordo com a cultura e o momento histórico, torna alguns humanos e alguns não humanos ora passíveis de subjugação (objetos), ora passíveis de proteção (sujeitos de direito). Nesse contexto, o problema que orienta esta abordagem é: qual o critério para o reconhecimento dos sujeitos de direito, com a complexidade que esse reconhecimento invoca – direito à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica e qual a contribuição do direito dos animais para o reconhecimento e a ampliação do rol dos sujeitos de direito – humanos e não humanos? Os objetivos que norteiam o percurso desta abordagem são: a) questionar os critérios doutrinários para o reconhecimento dos sujeitos de direito, b) refletir sobre o reconhecimento ético dos sujeitos de direito a partir da senciência, c) apresentar a senciência como o critério de reconhecimento dos sujeitos de direito, contemplando os animais humanos e não humanos. O desenvolvimento da pesquisa está pautado no método de abordagem dialético, posto que confronta posições, considera os conteúdos abordados inseridos em um contexto social, em

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que transcendem relações e contradições, com a busca de soluções equitativas para uma problemática complexa e abrangente. A técnica de pesquisa é bibliográfica. Não se trata de uma tentativa de igualar homens e animais, mas da defesa da igual consideração dos interesses de ambos, compreendendo-os como seres com valor intrínseco. Desenvolve-se o direito dos animais como consectário dos movimentos civis pelo reconhecimento de direitos das minorias e grupos oprimidos, caracterizados pela demanda de expansão dos horizontes morais que o século XXI reclama, a partir da reconhecida diferença entre os próprios humanos e entre os humanos e os animais, e defende-se a inclusão dos humanos e dos animais no compromisso ético que impede a indiferença jurídica com base em critérios legitimadores de sociedades hierárquicas e discriminatórias.

2. Os critérios para o reconhecimento dos sujeito de Direito Uma breve digressão pelos manuais de direito civil, aponta que o critério da legalidade e o critério da autonomia moral, para o reconhecimento do ser humano como sujeito de direito, são os critérios recorrentes. Para o critério da legalidade4, sujeito de direito é aquele que a legislação diz que é. Ocorre que a legalidade, por si só, permite que um direito injusto e imoral seja válido e legítimo. É o que se verifica na doutrina de Hans Kelsen5, que buscou conferir à ciência jurídica um método e um objeto próprios – a norma. Para Kelsen, método e objeto devem ter o enfoque normativo, separado da moral e da política – “princípio da pureza” –, o que poderia dar ao jurista uma autonomia científica6. A existência específica da norma, nesse viés, é a sua validade. A norma vale não porque é justa ou porque é eficaz a vontade que a instituiu, mas porque está ligada a normas superiores por

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laços de validade (e com um mínimo de eficácia), numa série finita que culmina numa “norma fundamental”. O conteúdo da norma é irrelevante para a definição da validade7. A validade e a legitimidade de um direito sem preocupação com o conteúdo de suas normas, pode representar a imposição do racismo, do sexismo, do especismo, etc., presentes no regime nazista, nos ordenamentos jurídicos escravocratas, nas legislações que não reconhecem (ou não reconheciam) as mulheres, os idosos, as crianças, os desprovidos de posses, os deficientes físicos, entre outros, como sujeitos de direito. Para exemplificar essa realidade com um dado pátrio, a Constituição do Império, de 1824, extinguiu as penas de galés e açoites, mas o Código Criminal do Império repristinou os castigos. O Código, no entanto, não foi considerado inconstitucional, por dois motivos: Porque o controle de constitucionalidade era feito pelo Poder Legislativo e isso não funcionou no Império; e porque a Constituição somente se aplicava às pessoas e não às coisas. Escravos eram res. Sobre isso, afirmou Lenio Luiz Streck: “estás envergonhado de nosso Direito de antanho? Pois, por certo, daqui há 50 anos, poderemos dizer isso sobre o tratamento dado hoje ao direito dos animais”8. Ressalta-se, em adesão à doutrina de Daniel Braga Lourenço9, que “as aproximações realizadas entre o fenômeno do especismo com o do racismo ou com o do sexismo não devem ser interpretadas como equalizando, em sentido literal e absoluto, homens e não-homens”. O que se pretende evidenciar é que todos esses fenômenos são formas de discriminação e partem da falsa noção de que características moralmente irrelevantes (raça, sexo, espécie), podem ser utilizadas para subjugar seres com interesses e torná-los meros objetos. O critério da legalidade para o reconhecimento de um sujeito de direito, portanto, não é um critério seguro. Afirmar que um sujeito de direito é aquele que a lei diz que é, significa a possibilidade de condicionar essa categoria jurídica ao império do

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poder e da força e a possibilidade de imposição de um direito injusto. Outro critério identificado é o da autonomia moral10; o ser humano é merecedor de dignidade e respeito porque é um ser racional e autônomo, capaz de pensar e de escolher livremente fazer o que é moralmente certo. Essa noção é atribuída à Immanuel Kant (1724-1804). Kant11 afirma que duas coisas lhe enchem o ânimo de admiração e veneração: “O céu estrelado sobre mim e a lei moral em mim”. A primeira se refere à conexão entre o mundo exterior dos sentidos até o imensamente grande (“mundos sobre mundos e sistemas de sistemas”); a segunda começa no seu “eu”, na personalidade, e expõe-lhe no mundo. Dessa forma, se o ser humano é capaz de ser livre, deve ser capaz de agir não apenas de acordo com uma lei imposta, mas de acordo com a lei moral outorgada pelo ele próprio, produto da sua razão. Para Kant, o ser humano não é apenas um ser que obedece aos estímulos de dor e prazer de seus sentidos, mas é, também, um ser racional, que pode determinar sua vontade independentemente dos ditames da natureza ou de sua inclinação. Embora não tenha sido o primeiro filósofo a sugerir que os seres humanos raciocinam, sua noção de razão, assim como suas concepções de liberdade e moralidade são especialmente rigorosas, repudiando o papel subalterno e instrumental da razão, como escrava das paixões12. A autonomia kantiana pressupõe o ser humano como agente racional. Por meio da autonomia, cada pessoa teria uma bússola moral que permitiria dizer o que é consistente e o que é inconsistente com o dever13. Para Kant, se uma ação for boa em si, em sintonia com a razão, em obediência à lei moral, está-se diante de um “imperativo categórico”14. Um imperativo é descrito por Kant da seguinte forma: “age como se a máxima da tua ação devesse se tornar, pela tua vontade, lei universal da natureza”15. O imperativo deve pautar a interação entre os “agentes morais” (pessoas), que se distinguem de tudo aquilo que existe16.

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Toda a retórica kantiana, no campo da moral, se fundamenta na racionalidade humana. As demais criaturas estariam alijadas de quaisquer considerações de ordem ética ou moral. Avançando-se nessa concepção, surge a distinção entre seres que seriam fins em si próprios (pessoas) e seres que teriam valoração apenas relativa, de meios ou instrumentos destinados a fins subjetivos (coisas). Esse mundo de Kant é um mundo marcado pela dominação, em que a razão deve enfrentar a natureza, com o homem como senhor do universo e dominador de todas as coisas, os seres que são coisas devem ser sujeitados aos interesses individuais dos seres humanos17. Kant nega qualquer obrigação para com os animais, considerando-os seres sem racionalidade e sem aptidão de autonomia. Os agentes morais, para Kant, são livres para usá-los; contudo, devem evitar crueldades – não com fundamento nos animais em si –, mas por interesse humano de não se tornar cruel (especismo, pois a consideração depende das consequências benéficas para os humanos) – dever indireto –. Dentre as críticas à teoria dos deveres indiretos, pode-se apontar que “a tese parte da premissa de que haveria uma nítida linha divisória entre animais e pessoas e que, por tal motivo, animais seriam meras ‘coisas’. Por que razão haveria de se concluir que o fato de matar animais tenderia a brutalizá-las?”18. Entre as várias objeções feitas à teoria kantiana, também está o fato de que os conhecimentos comportamentais e biológicos atuais permitem afirmar que alguns animais possuem níveis de consciência, capacidade para julgamentos e certa autonomia – “possuem preferências e agem de modo a satisfazê-las a todo instante”19. Sob outro aspecto, nem todos os humanos são plenamente racionais e autônomos, como, por exemplo, bebês, portadores de deficiências mentais severas, senis, etc. (casos marginais)20. Não possuindo absoluta racionalidade e autonomia, de acordo com Kant, os deveres para com eles seriam apenas “deveres indiretos”21.

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Se, por acaso, Kant afirmasse que eles também são “fins em si mesmos”, então as características de racionalidade e autonomia não poderiam servir de base para o status de agente moral (sujeito de direito). Kant, então, para manter seu critério, teria de negar esse status a esses seres humanos, da onde se conclui que há uma falha estrutural na sua fundamentação. Se é o fato de que os humanos são racionais (ou autônomos, ou conscientes, ou possuírem linguagem) que permite negar o status moral aos animais, então, analogamente, ter-se-ia que negá-lo a todos os humanos desprovidos de tais características22. Verifica-se, assim, que nem o critério da legalidade, nem o critério da autonomia moral, apontados pela doutrina pátria, são capazes de albergar todos os seres humanos; ambos são falhos, não são bons critérios. E, verificando-se que tais critérios não contemplam todos os seres humanos, não se pode insistir que esses são critérios para o reconhecimento dos sujeitos de direito.

1.1 A senciência como critério para o reconhecimento dos sujeitos de direito Carlos Naconecy23 explica que um ser senciente tem capacidade de sentir, importa-se com o que sente e experimenta satisfação e frustração. Seres sencientes percebem ou estão conscientes de como se sentem, onde e com quem estão e como são tratados. Possuem sensações como dor, fome e frio; emoções relacionadas com aquilo que sentem, como medo, estresse e frustração; percebem o que está acontecendo com eles; são capazes de apreender com a experiência; são capazes de reconhecer seu ambiente; têm consciência de suas relações; são capazes de distinguir e escolher entre objetos, animais e situações diferentes, mostrando que entendem o que está acontecendo em seu meio; avaliam aquilo que é visto e sentido e elaboram estratégias concretas para lidar com isso. Importa dizer, senciência não é o mesmo que sensibi-

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lidade; organismos unicelulares, vegetais, etc., apresentam sensibilidade, mas não senciência. Seres sencientes interpretam as sensações e informações que recebem do ambiente por meio de cognição e emoções. A “senciência é um pré-requisito para se ter interesses”24. Rudolf von Jhering25 (1818-1892) afirmou que o direito subjetivo assegura a proteção de interesses. “Dizer que uma criatura tem interesses significa supor que ela se importa com o que lhe acontece; que ela prefere experienciar satisfação à frustração – num nível mínimo, ela prefere não sofrer ou não reduzir seu bem estar”26 –. Se o elemento interesse é posto na essência do direito subjetivo, a noção de proteção e titularidade do direito subjetivo alberga todos os seres que possuem interesses (seres sencientes), noção na qual estão inclusos os animais. Por essa compreensão, todo o ser vivo senciente é apto a ser sujeito de direito, categoria na qual, por esse critério, estão incluídos todos aqueles que são ou podem ser excluídos pelos critérios da legalidade e da autonomia moral. Dessa forma, a utilização do critério da senciência para a definição dos sujeitos de direito, ao mesmo tempo em que possui o condão de abarcar todos os seres humanos, implica, necessariamente, no reconhecimento, como sujeitos de direito, de todos os seres sencientes como os seres humanos – incluindo-se todos os animais sencientes –. Afastar os animais do reconhecimento como sujeito de direito, assim, seria uma adesão ao especismo, que é um critério tão arbitrário quanto o racismo ou o sexismo. A senciência é o critério adotado pela Ética Animal27. Peter Singer28, a partir da senciência, constrói o princípio da “igual consideração de interesses”, explicando, em sua obra “Libertação Animal”: Há importantes diferenças óbvias entre os humanos e os outros animais, e estas diferenças devem traduzir-se em algumas diferenças nos direitos que cada um tem. Todavia, o reconhecimento deste fato não constitui obstáculo à argumentação a favor da ampliação do princípio básico da igualdade aos animais não humanos. As diferenças que

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existem entre homens e mulheres também são igualmente inegáveis, e os apoiantes da Libertação das Mulheres têm consciência de que estas diferenças podem dar origem a diferentes direitos. [...] A extensão do princípio básico da igualdade de um grupo a outro não implica que devamos tratar ambos os grupos exatamente da mesma forma, ou conceder os mesmos direitos aos dois grupos, uma vez que isso depende da natureza dos membros dos grupos. O princípio básico da igualdade não requer um tratamento igual ou idêntico; requer consideração igual. A consideração igual para com os diferentes seres pode conduzir a tratamento diferente e a direitos diferentes. [...] Se um ser sofre, não pode haver justificação moral para recusar ter em conta esse sofrimento. Independentemente da natureza do ser, o princípio da igualdade exige que ao seu sofrimento seja dada tanta consideração como ao sofrimento semelhante – na medida em que é possível estabelecer uma comparação aproximada - de um outro ser qualquer. [...] Assim, o limite da senciência (utilizando este termo como uma forma conveniente, se não estritamente precisa, de designar a capacidade de sofrer e/ou, experimentar alegria) é a única fronteira defensável de preocupação relativamente aos interesses alheios.

O princípio da igualdade dos seres humanos não é a descrição de uma igualdade de fato, mas a prescrição de como se deve tratar os seres humanos. A defesa da igualdade não depende da inteligência, da capacidade moral, da força física, ou outros atributos, mas na capacidade de sofrer, que deve conferir a um ser igual consideração. A igual consideração de interesses deve ser aplicada também aos membros de outras espécies, posto que demarcar essa fronteira com outras características seria arbitrário, possibilitando escolher alguma característica como a cor da pele. Assim, a senciência é necessária e suficiente para assegurar que um ser possui interesses – no mínimo o de não sofrer29. Tom Regan30, também a partir do critério da senciência, apresenta a compreensão dos animais como “sujeitos de uma vida”, com valor inerente, como expõe em sua obra “Jaulas Vazias”: O que eu tinha aprendido sobre direitos humanos provou ser diretamente relevante para aminha reflexão sobre os direitos animais. Se os animais têm direitos ou não depende da resposta verdadeira a uma pergunta: Os animais são sujeitos-de-uma-vida? Esta é a pergunta que precisa ser feita sobre os animais porque é a pergunta que precisa-

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mos fazer sobre nós. Logicamente não podemos nos colocar diante do mundo e declarar: O que esclarece o porquê de termos direitos iguais é o fato de sermos todos igualmente sujeitos-de-uma-vida; mas outros animais, que são exatamente como nós enquanto sujeitos-deuma-vida, bem, eles não têm nenhum direito! [...] Então, eis a nossa pergunta: entre bilhões de animais não humanos existentes, há animais conscientes do mundo e do que lhes acontece? Se sim, o que lhes acontece é importante para eles, quer alguém mais se preocupe com isso, quer não? Se há animais que atendem a esse requisito, eles são sujeitos-de-uma-vida. E se forem sujeitos-de-uma-vida, então têm direitos, exatamente como nós. Devagar, mas firmemente compreendi que é nisso que a questão sobre direitos animais se resume.

A compreensão dos animais como sujeitos de direito, com a adoção do critério da senciência, importa, não em garantir melhorias nas condições de tratamento aos animais, quando instrumentalizados, mas no questionamento direto sobre o direito (humano) de utilizar qualquer ser senciente (humano ou não humano), para seus fins. O reconhecimento dos animais como sujeitos de direito implica que se leve em consideração seus interesses de vida, liberdade e integridade física e psíquica. Embora eventualmente legal, a instrumentalização e violência contra os animais para pesquisas, vestuário, alimentação, rituais religiosos e entretenimento, desconsidera esses interesses – circunstâncias cuja possibilidade de serem levadas à apreciação do Poder Judiciário devem ser analisadas –. A reificação animal, sem compromisso com a sua realidade física, biológica e psíquica, está presente no direito. No entanto, avanços científicos, jurídicos e éticos têm provocado uma divisa entre os animais e as coisas inanimadas. A reprodução irrefletida da ideia dos animais como objetos, embora ainda presente no sistema jurídico, mostra indícios de novas possibilidades compreensivas. Lourenço31 afirma que a “mudança pauta-se numa exegese construtiva que teria por finalidade a tutela específica do interesse do próprio animal, como possuidor de valoração moral e jurídica intrínseca”. A teoria dos entes despersonalizados pode ser utilizada para fundamentar a concessão de direitos subjeti-

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vos fundamentais aos animais. Sujeito de direito é um gênero que abarca sujeitos personalizados humanos (pessoas naturais/ seres humanos) e personalizados não humanos (pessoas jurídicas); ainda, abarca sujeitos despersonalizados humanos (nascituros) e despersonalizados não humanos (exemplificativamente: massa falida, condomínio, herança jacente e vacante, espólio, sociedades sem personalidade jurídica (artigo 75 do Código de Processo Civil)32. Lourenço33 defende que os animais podem ser inseridos na categoria de sujeitos de direito despersonalizados não humanos. Ressalta que o que se pretende é que animais, embora não sejam pessoas (sujeitos despersonalizados), sejam sujeitos de direito e possam, nessa condição, usufruir de um patrimônio jurídico.

2. A senciência para o reconhecimento ético dos sujeitos de direito humanos e não humanos A ética se preocupa em como conduzir a vida de maneira justa, em como agir bem34. Adotar uma ética significa estar disposto a julgar certas ações como preferíveis a outras. Naconecy35 explica que algumas escolhas só dizem respeito ao seu autor: “Onde devo morar, a que horas devo dormir, se devo fazer uma tatuagem, etc.” Mas há escolhas que afetam o outro; o que comer, por exemplo, afeta os animais que serão servidos. Quando um ato afeta o outro, ele deverá ser avaliado por critérios da moralidade, não sendo possível adotar como princípio válido “cada um sabe de si”. Em caso de isso ser possível, não se poderia considerar antiética a agressão física ou psíquica a um ser humano, já que o agressor decidiria o que é ético. A crueldade, a imposição de dor e sofrimento, a escravidão, são situações imorais por si mesmas, independentemente de serem legalmente permitidas, porque afetam negativamente a vida dos que as sofrem. Ao professar que todos os animais sencientes possuem valor moral, a ética animal defende que esses animais possuem, de

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forma plena, direito à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica, para além de uma postura “bem estarista”, de preservação da espécie ou de proteção contra maus-tratos. Aprisionar, utilizar ou matar um animal para satisfazer interesses humanos, ainda que sem sofrimento (considerando-se isso possível), não é reconhecer o seu valor intrínseco. O sofrimento é apenas um componente do erro moral (se bem que o torna muito maior). O que está fundamentalmente errado, em vez, é o sistema inteiro, e não seus detalhes. Pela mesma razão que mulheres não existem para servir aos homens, os pobres para os ricos, e os fracos para os fortes, os animais também não existem para nos servir. Não basta assim propor que os animais sejam usados para a cura do câncer, mas não em testes de cosméticos. Ou que os animais sejam criados livres nos campos, mas não em baias nas fazendas. Não se trata de refinar ou reduzir o uso de animais em laboratórios, nem dar aos animais um tratamento mais humanitário nas fazendas. Não se corrige nem se elimina desse modo um erro moral básico, que consiste em concebê-los e tratá-los como mero recurso humano renovável. Não se muda instituições injustas apenas limpando-as do sofrimento desnecessário36.

A ética animal não defende um melhor uso dos animais, mas denuncia o próprio uso. Regan37 explica que possuir direitos morais é ter um “sinal invisível dizendo: ‘entrada proibida’”, significando que ninguém é livre para causar mal a quem possui o sinal e que esse sinal protege os bens mais importantes: vidas, corpos e liberdade. Os direitos morais estão imbuídos de igualdade, são os mesmos para todos os que os têm, ainda que todos sejam diferentes uns dos outros. Alguns são geniais, têm talento para música, correm longas distâncias, nadam contra correntezas, têm olfato apurado; outros têm deficiências mentais, não seguram um tom musical, não possuem aptidões físicas diferenciadas, etc., “mas quando pensamos sobre o mundo em termos de igualdade moral fundamental, essas diferenças não são importantes”. Para Regan, se existem animais conscientes do mundo e do que lhes acontece, independentemente de alguém

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mais se preocupar com isso ou não, esses animais são “sujeitosde-uma-vida” e, nessa condição, possuem direitos. Singer38 se preocupa em sublinhar que a ética animal não afirma uma igualdade absoluta entre animais humanos e não humanos (igualdade que não é possível nem mesmo no conjunto da humanidade). O princípio de igualdade que defende é a consideração de interesses sem que essa consideração dependa da aparência ou das capacidades do outro. O que a consideração exige pode variar de acordo com aqueles que são afetados; exemplifica que a preocupação com o bem-estar de crianças em fase de crescimento exige a alfabetização, enquanto a preocupação com o bem-estar de porcos exige apenas deixá-los com outros porcos num lugar onde exista comida adequada e espaço para correrem livremente. A consideração de interesses deve ser estendida a todos os seres – “negros ou brancos, do sexo masculino ou feminino, humanos ou não humanos” 39. Embora a maior complexidade da vida humana não seja relevante para a questão de infligir dor (dor é dor independentemente das demais capacidades que se tenha), a capacidade de pensar o futuro, ter esperanças e aspirações, estabelecer relações significativas com outros, são relevantes para o valor da vida40. Ao lado do interesse em evitar o sofrimento, Singer atribui às criaturas conscientes de si uma preferência particular por continuarem existindo. Os indivíduos capazes de fazer planos para o futuro, se mortos, terão esses planos frustrados. Sua morte implica, então, em uma perda maior do que seria para criaturas sem essa capacidade. Uma pessoa adulta e com desenvolvimento físico e psíquico completo tem uma noção de si mesma e de futuro que a maioria dos animais não têm. A morte dessas pessoas, portanto, tem um significado maior do que a morte desses animais, porque com elas morrem expectativas e projetos41. A ética animal também não esquece da legítima defesa e do estado de necessidade, inclusive em lógica mais alargada no que tange ao contato homem-animal. A ameaça (ainda que não iminente) e a possibilidade de transmissão de doença (mesmo não

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grave a ponto de ensejar o falecimento) é comumente considerada, por defensores dos direitos dos animais, motivo suficiente para justificar a morte de animais. Logo, é compreensível matar piolhos. Ainda que muitas vezes exista disparidade (a morte em relação a uma picada de mosquito; a morte em relação ao mal estar da presença de uma barata; a morte em relação à perda patrimonial decorrente de cupins, etc.), a reação fica por conta de alguma liberalidade humana42. A compreensão da maior complexidade da vida humana e a admissão de certa liberalidade no exercício da legítima defesa e do estado de necessidade, no entanto, não significam legitimar a satisfação humana em detrimento da vida, liberdade e integridade dos animais sencientes. Da mesma forma, a liberalidade descrita não pode ser compreendida como salvo conduto para qualquer atitude que provoque o sofrimento ou a morte de animais. O exposto permite afirmar que não há incompatibilidade entre direitos dos humanos e dos animais. A opressão de seres não humanos sencientes por seres humanos acontece simultaneamente a problemas como fome, miséria, racismo, guerras, sexismo, desemprego, preservação ambiental, entre outros. “Nada impede aqueles que devotam seu tempo e energia a problemas humanos de aderir ao boicote a produtos ligados à crueldade do agronegócio”43. Os problemas não se solucionam por meio de uma hierarquia de direitos com resolução engessada da mais alta para a mais baixa (como por exemplo: somente se investe em esporte após solução total do problema da saúde; somente se investe em educação após solução total do problema da fome, somente se trata dos direitos dos animais após a solução total dos problemas humanos,...). Os humanos não possuem a necessidade de gerar confinamento, dor, sofrimento e morte dos animais para suprir suas necessidades (alimentação, vestuário, força de trabalho, entretenimento, experimentação científica). Uma vez que existem

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opções disponíveis, a instrumentalização animal não passa pelo crivo ético. Singer44, desencadeando uma sequência argumentativa que defende a igual consideração de interesses, com suporte no critério da senciência, explica o direito dos animais com um exame da argumentação em defesa da igualdade entre homens e mulheres. A oposição ao direito dos animais pode afirmar que essa igualdade não pode ser estendida aos animais porque há uma série de semelhanças óbvias entre homens e mulheres que não são verificadas nos animais, como o direito de votar. Contudo, também são inegáveis as diferenças entre homens e mulheres; tais diferenças originam direitos distintos (direito à amamentação, por exemplo). Portanto, a extensão do princípio da igualdade não requer a concessão dos mesmos direitos, mas a igual consideração de seres diferentes, o que leva a tratamentos e direitos distintos. Sob outro aspecto, Singer45 afirma que a oposição à discriminação étnica e sexual sem a consideração dos animais torna a argumentação pouco sólida. Quando se diz que todos os seres humanos são iguais, sem distinção de raça e sexo, os defensores de sociedades hierárquicas e desiguais mostram que os seres humanos são diferentes, para justificar seu pensamento e suas atitudes (tamanhos, cor, capacidade intelectual, capacidade de se comunicar, por exemplo). Além disso, é possível que as capacidades e habilidades não estejam distribuídas de maneira uniforme entre as diferentes etnias e sexos, o que reforçaria a discriminação. Em outra análise, a oposição à igualdade pode sugerir a maior consideração dos interesses daqueles que obtiverem QI superior a “x”; no entanto, ainda que tal critério não envolva sexismo ou racismo, não se pode afirmar que uma hierarquia social desse tipo (com critério de reconhecimento embasado no QI) seria melhor do que a baseada em etnia ou sexo. A defesa da igualdade dos seres humanos, portanto, “é uma ideia moral, não é a afirmação de um fato. [...] é a prescrição de como devemos tratar os seres humanos”46.

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A defesa da igual consideração de interesses, com suporte na senciência, não é apenas “mais um” critério, posto que admite a consideração de quaisquer interesses (escola, tomar sol, alimentação adequada, convivência com semelhantes, não experenciar a dor, entre outros), diferentemente da defesa do critério da posse da razão ou da linguagem, por exemplo, que em outro momento histórico ou cultura pode ser a cor da pele. A capacidade de sofrer e de sentir prazer é um pré-requisito para um ser ter algum interesse, uma condição que precisa ser satisfeita antes que possamos falar de interesse de maneira compreensível. Seria um contrassenso afirmar que não é do interesse de uma pedra ser chutada na estrada por um menino de escola. Uma pedra não tem interesses porque não sofre. Nenhum modo de atingi-la fará diferença para o seu bem-estar. A capacidade de sofrer e de sentir prazer, entretanto, não é apenas necessária, mas também é suficiente para que possamos assegurar que um ser possui interesses – no mínimo o interesse de não sofrer. Um camundongo, por exemplo, tem interesse em não ser chutado na estrada, pois, se isso acontecer, sofrerá47.

A senciência, portanto, não deve ser utilizada apenas para a defesa do direito dos animais, mas deve ser aplicada aos seres humanos, como barreira ao preconceito, à exclusão e à crueldade, e como auxílio para o reconhecimento do outro, que possui valor intrínseco. Portanto, o que a ética animal propõe não agride ou reduz a condição humana. As aproximações realizadas com as discriminações humanas (racismo e sexismo) reforçam que tais discriminações decorrem de critérios inseguros, irrelevantes e excludentes para a concessão de direitos, ao passo que o critério da senciência integra, não discrimina e não exclui.

2.1 Os animais humanos e não humanos no mesmo compromisso ético A libertação animal está imbricada com os direitos humanos, inclusive pelos critérios que conduzem à defesa plena e democrática de ambos, como esclarece Sônia T. Felipe48:

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Não haverá, de fato, uma defesa genuína dos direitos humanos enquanto não houver um resgate radical da nossa história milenar de violência contra os animais não humanos. Enquanto não pararmos de usar os corpos dos outros animais para obter deles benefícios para nós, não pararemos de julgar que temos o direito de usar os corpos de outros humanos para obter deles benefícios para nós. Somos todos, igualmente, animais. O modelo de interação que empregamos contra os interesses animais viola o direito desse animal de estar em vida com liberdade para expressar sua singularidade e obter a defesa dos direitos fundamentais à vida singular. Simples assim. Por outro lado, não haverá uma defesa genuína dos direitos dos animais se não for uma defesa dos direitos fundamentais, tidos, erroneamente, como exclusivos dos humanos. Os animais de todas as espécies são sencientes e capazes de sofrimento e tormento, quando aprisionados, manejados e abatidos, quanto nós o somos. E nós o somos justamente por termos essa mesma natureza animada, animal e senciente. Logo, não há uma defesa legítima dos direitos humanos que não passe pela defesa dos direitos animais fundamentais dos humanos: à vida, à liberdade, à não privação, ao não aprisionamento, à não escravização, ao bem próprio, à expressão espiritual, à sexualidade, à individualidade, à singularidade e não ser violentado quando em situação vulnerável, nem física, nem emocional, nem espiritualmente. [...] A ética abolicionista não ergue muros especistas. Quem o faz são os humanos que não querem agir segundo o princípio do igual respeito aos interesses semelhantes.

O Papa Franciso, na Encíclica Laudato Si, de 201549, nessa mesma linha argumentativa, defendeu que a indiferença ou a crueldade com as outras criaturas deste mundo sempre acabam repercutindo no tratamento que reservamos aos outros seres humanos. Afirmou Francisco que “o coração é um só, e a própria miséria que leva a maltratar um animal não tarda a manifestar-se na relação com as outras pessoas. [...] Tudo está relacionado”. Em determinado momento histórico, antiescravistas se deram conta do horror que era sequestrar africanos e vendê-los em mercados públicos como objetos. Os demais cidadãos, do mesmo período histórico, incluindo a igreja, a nobreza, os proprietários de terra, os juristas e os comerciantes, estavam a favor da prática. Algo semelhante acontece com os animalistas abolicionistas, que perceberam o horror de transformar o corpo dos

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animais em matéria comestível – após condená-los a uma vida de tormentos, do nascimento à morte –, além de contribuir para a fome, degradação ambiental e doenças50. Oliveira51, fazendo alusão ao “romance em cadeia” de Dworking, trabalha juridicamente sobre o tema: E o que dizer dos juristas da época da escravidão que defendiam lá, naquele período, que escravos tinham direitos (por completo, e não parcialmente) e que a instrumentalização a que se viam submetidos era já naquele momento da história indevida? Estavam eles a sustentar um romance desencadeado? A necessidade de um novo romance? Estavam falando a partir de uma Ética divorciada do Direito? Estavam eles juridicamente errados? Em que instante passaram a estar certos? Pode até ser que aos juristas animalistas de hoje seja negado escrever este capítulo do romance, mas, ocorrendo com os animais o que aconteceu com escravos humanos, isto é, a libertação, um dia ele será escrito e lido. E, assim, os abolicionistas animais da atualidade podem se contentar em escrever os rascunhos de novos capítulos que virão e que já estão, pelo menos, nas entrelinhas.

Os juristas defensores do abolicionismo humano por certo enfrentaram questionamentos e rejeições das suas ideias em decorrência da previsão da inevitável mutação social, política e econômica a ser enfrentada. Não há dúvidas de que muitos dos senhores das grandes propriedades rurais enfrentaram problemas, da mesma forma que as cidades e a sociedade que teve de acolher os então escravos sofridos, doentes, sem família e sem renda. A economia precisou de resiliência até que a nova ordem fosse definitivamente estabelecida. Mas o abolicionismo humano não foi e nunca será colocado em questionamento em decorrência das questões que tiveram de ser – e foram – administradas e superadas, em decorrência. A transformação histórica e democrática compreende a reflexão, a educação, a informação e a superação de preconceitos, sob pena de aprisionamento de conteúdos e dos participantes democráticos, e do aproveitamento exploratório da lógica da conflitualidade. A historicidade e a abertura às mudanças que (dentre outros aspectos) caracteriza a democracia exige que os poderes que a

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compõe propiciem a coexistência e a proteção diferença, lógica que pode ser balizada e desenvolvida a partir da ética animal. A coexistência pacífica, integradora, com vista à plenitude da vida, constitui um dos grandes desafios do século XXI. Quando um grupo majoritário, o das mulheres, começou sua luta por emancipação, muitos pensaram que se tinha chegado ao final da batalha contra a opressão; a discriminação com base no sexo seria a última fronteira discriminatória a ser rompida. No entanto, é sempre arriscado falar-se em última forma de discriminação52. Os movimentos sociais – feminista, ecológico, indígena, negro, camponês, urbano, LGBT, dentre tantos outros –, ampliaram o âmbito das lutas sociais e trouxeram consigo novas concepções de vida e de dignidade, provocando transformações e recontextualizações de mundo. Os refugiados, migrantes, exilados ambientais, provocam a todo momento discussões sobre seu amparo, recepção e titularidade de direitos. Somente uma Ética pensada a partir do Outro, como limite moral da ação humana do Eu, permite que se constituam condições de agradabilidade e de interação tais que possibilitem uma convivência desejável, harmoniosa e equilibrada entre os seres vivos, humanos e não humanos, base para uma cidadania mundial fundamentada na troca de experiências possibilitadas pelo vínculo antropológico compartilhado por todos os humanos, entre eles e com o meio que os circunda, caracterizando-se como fundamento estético e sustentável da vida compartilhada, dessa experiência de ser-no-mundo. [...] Retoma-se, no momento presente, a era da moral como o resgate da autonomia do agir humano, devolvendo-lhe a autoridade da responsabilidade do “Eu” para com o “Outro”, porque a partir do olhar dirigido para o Outro, o Eu moral se limita, se conforma, pois conscientiza-se de sua finitude humana a partir da proximidade com o Outro. As emoções legitimam-se nesse novo sentir, recheado de ambivalência e instabilidade53.

Conclusão

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O debate sobre o direito dos animais não humanos envolve os direitos humanos. Os seres humanos não são todos iguais e quaisquer características comuns a todos os humanos também são características dos animais. Os humanos compartilham com os animais a senciência; não há característica relevante que distinga todos os humanos de todos os membros de outras espécies. Humanos e animais estão interconectados pelo sofrimento causado pelas formas de opressão que experimentam. A existência de problemas específicos da humanidade não deve conduzir à indiferença em relação aos animais, uma vez que os animais também sentem e sofrem; não há incompatibilidade entre os direitos humanos e os direitos dos animais, mas complementariedade; os problemas deste tempo são simultâneos e não são passíveis de resolução por hierarquia; e a instrumentalização dos animais projeta consequências para além de suas próprias vidas. A razão, o pensamento, a consciência da finitude, deveriam servir para fazer o ser humano livre e ao mesmo tempo conectado e responsável com e por tudo aquilo com o que divide a existência neste planeta. Também deveriam servir para a reflexão sobre a experiência, para a abertura para o novo, para a paz e para o desenvolvimento pleno de todos os terráqueos. No entanto, o que se verifica é uma demarcação de si e do outro e uma frequente rejeição ou objetificação a tudo e a todos que são diferentes. A razão pronta e definitiva em certezas, torna o que era para ser fecundo (reflexão, experiência, abertura cognitiva, desenvolvimento), estéril. O direito dos animais desafia as ideias e os costumes arraigados, denuncia o pensamento que precisa ser repensado – antropocêntrico e não inclusivo –, e impede que tudo permaneça como já foi. A provocação que o direito dos animais incita deve ocupar espaço no diálogo acadêmico e social. É necessária a ve-

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rificação constante das concepções opostas, como possibilidade experiencial de novas compreensões. A senciência – critério adotado pela ética animal –, identifica os sujeitos de direito – sem a falibilidade do critério da norma válida (Kelsen) e da autonomia moral (Kant) –, abarcando nessa categoria jurídica todos os seres humanos e todos os animais sencientes, o que implica no reconhecimento, para todos eles, do direito à vida, à liberdade e à integridade física e psíquica – ainda que não conferidos ou (até mesmo) negados pela lei. Dessa forma, os fundamentos do direito dos animais (ética, senciência) contribuem para a ampliação do rol dos sujeitos de direito – uma das grandes questões dessa época –, com a completude que esse reconhecimento encerra.

Referências AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; SERRAGLIO, Priscila Zilli. A utopia de uma cidadania mundial sustentável. In: Veredas do direito: direito ambiental e desenvolvimento sustentável. v.12, n. 24, Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara, p. 257-286, 2015. A SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si’, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado da Casa Comum. Disponível em: <http:// w2.vatican.va/content/francesco/pt/encyclicals/documents/papafrancesco_20150524_enciclica-laudato-si.html>. Acesso em: 20 Jul. 2016. COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000. FELIPE, Sônia T. Acertos abolicionistas: a vez dos animais: crítica à moralidade especista. São José: Ecoânima, 2014. GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do direito. 23.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Campinas: Bookseller, 2002.

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KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1994. KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2006. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994. LIMA, João Franzen de. Curso de direito civil brasileiro. 7.ed. V.1: introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1977. LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008. MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 35.ed. V.1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1997. NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos humanos e direitos não humanos. In: KLEVENHUSEN, Renata; FLORES, Nilton Cesar (Orgs.). Direito público e evolução social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direito e ética animal: uma leitura a partir da categoria romance em cadeia, de Ronald Dworking. In: BOFF, Salete Oro; ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira; TRINDADE, Andre Karan (Orgs.). Direito, democracia e sustentabilidade: anuário do programa de pós-graduação da Faculdade Meridional. Passo Fundo: Imed, p. 163-188, 2015. REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002. REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006. SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014. SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001. SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

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STRECK, Lênio Luiz. Quem são esses cães e gatos que nos olham nus? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-06/sensoincomum-quem-sao-caes-gatos-olham-nus>. Acesso em: 03 Nov. 2015.

Notas 1

A natureza humana se aperfeiçoa em sua relação com o outro. A referência à “humanidade”, assim como a referência à “animalidade” – em seu sentido de pureza, amorosidade e delicadeza –, importam na compreensão da ampliação do rol dos sujeitos de direito. A natureza animal humana e a natureza animal não humana não possuem um sentido isolado entre si, nem um sentido isolado em relação ao restante do mundo natural.

3

Exemplificativamente, não se pode submetê-los a práticas cruéis, mas se pode confiná-los e/ou matá-los para satisfazer o paladar dos humanos, para que os humanos vistam suas peles/lã/penas, para “fins científicos” e para “fins religiosos”; os maus-tratos são proibidos, mas o confinamento, a instrumentalização em pesquisas e diversão (circos, zoológicos, rodeios, pescarias) e a morte (nos casos referidos) são juridicamente aceitos; em caso de reconhecimento de crime de maus-tratos ou morte, o “dono” do animal (ou o meio-ambiente) é a vítima e não o animal que sofreu a conduta; a produção agropecuária é constitucionalmente incentivada, mas um abatedouro de cães e gatos é tratado como crime; cães e gatos não são utilizados para a alimentação, mas não há problema jurídico na sua utilização como mercadoria (reprodução e comercialização) e/ou submissão à angústia e intensos sofrimentos em aulas e laboratórios; entre outros.

4

João Franzen de Lima, afirma que sujeito de direito “é o ente a quem a ordem jurídica assegura” (LIMA, João Franzen de. Curso de direito civil brasileiro. 7.ed. V.1: introdução e parte geral. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 133). Washington de Barros Monteiro, diz que o direito subjetivo é uma “faculdade reconhecida à pessoa pela lei” (MONTEIRO, Washington de Barros. Curso de direito civil. 35.ed. V.1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 04). E, no mesmo sentido, Paulo Dourado de Gusmão refere que o direito subjetivo é o “poder de agir, garantido pela norma jurídica” (GUSMÃO, Paulo Dourado de. Introdução ao estudo do

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direito. 23.ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 250). O critério adotado por esses autores, como facilmente se identifica, é o da lei; sujeito de direito seria aquele que a legislação diz que é. 5

KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994.

6

“Como teoria, quer única e exclusivamente conhecer o seu próprio objeto. Procura responder a esta questão: o que é e como deve ser o Direito, ou como deve ele ser feito. É ciência jurídica e não política do Direito. Quando a si própria se designa como “pura” teoria do Direito, isto significa que ela se propõe garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito. Quer isto dizer que ela pretende libertar a ciência jurídica de todos os elementos que lhe são estranhos. Este é o seu princípio metodológico fundamental” (KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 01).

7

COELHO, Fábio Ulhoa. Para entender Kelsen. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2000.

8

STRECK, Lênio Luiz. Quem são esses cães e gatos que nos olham nus? Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2013-jun-06/senso-incomumquem-sao-caes-gatos-olham-nus>. Acesso em: 03 Nov. 2015.

9

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 532.

10

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27.ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 232.

11

KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Edições 70, 1994, p. 183-184.

12

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014, p. 150-151.

13

SCHNEEWIND, J. B. A invenção da autonomia. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 560.

14

SANDEL, Michael J. Justiça: o que é fazer a coisa certa? 13.ed. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2014, p. 151-156.

15

KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2006, p. 52.

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16

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 314.

17

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 233-235.

18

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 233-235, 297, 316, 323.

19

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 318-319.

20

“Mas a maioria de nós acredita que pessoas mentalmente incapazes (demasiadamente débeis, jovens ou velhas) têm um direito à proteção contra a exploração, contra o tratamento desrespeitoso e degradante, e contra toda a ordem de abusos. Então, como atribuir um status moral a retardados graves e não aos animais, uma vez que, no que tange ao desenvolvimento mental, à habilidade comunicativa observável e a uma vida emocional, tais pessoas deficientes são incomparavelmente inferiores a muitos animais? Uma vaca é mais racional que um bebê. Um porco tem mais inteligência, capacidade mental e entendimento do mundo que uma criança recém-nascida” (NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 163).

21

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p.313-323.

22

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 321-322.

23

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 117.

24

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 178.

25

JHERING, Rudolf von. A finalidade do direito. Campinas: Bookseller, 2002, p. 57.

26

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 178.

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27

“[...] a expressão ‘Ética Animal’ (do inglês Animal Ethics), que deve ser interpretada pelos leitores como a forma elíptica de ‘ética do tratamento dos animais (não humanos) por parte dos humanos’. A Ética Animal, como um subcampo da Bioética ou da Ética Ambiental, constitui-se assim num ramo da Ética Aplicada” (NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 18).

28

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 05, 14-15.

29

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 09, 13, 15.

30

REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 65-66.

31

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 482-485.

32

Lourenço exemplifica a doutrina que realiza a distinção entre “pessoa” e “sujeito de direito” citando Gustavo Tepedino, Cristiano Chaves de Farias, Rafael Garcia Rodrigues, Eduardo Ramalho Rabenhorst, José Lamartine Corrêa de Oliveira e Francisco José Ferreira Muniz, e Claudio Henrique Ribeiro da Silva (LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 500-502).

33

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 509-510.

34

“O fato de algo ser legalmente proibido ou permitido não faz com que ele seja automaticamente bom ou mau, justo ou injusto. Se formos a um lugar no qual é legalmente permitido o apartheid, estaremos autorizados a concluir que a legislação é justa? Diríamos também que a escravidão era justa antes de ser abolida por lei no nosso país e injusta depois da abolição? Tampouco devemos confundir princípios morais, tais como ‘não agredir o próximo’, ‘não roubar’, ‘dizer a verdade’, ‘socorrer a quem está em perigo’, com regras de etiqueta ou costumes de uma sociedade. Em geral tais normas também são ao mesmo tempo regras de convivência social. Mas a Ética exige uma base racional para legitimar, com pretensão de universalidade, essas normas sociais. A Ética, em suma, tem seus próprios padrões internos de justificação e crítica, que constituem

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um domínio autônomo. Em outras palavras, a autoridade da moral é diferente e não determinada pela autoridade da legislação local ou pelas convenções de uma sociedade. É bem provável que muitas normas jurídicas e costumes sociais sejam plenamente razoáveis, mas não é possível garantir a coincidência (a priori) entre o jurídico/social de um lado e o moral de outro. Não é possível garantir que o eticamente válido coincida com o sociojuridicamente vigente. Se o correto ou o bom é aquilo que uma pessoa sinceramente pensa que é, ou aquilo que uma sociedade considera correto, então pessoas ou culturas seriam eticamente infalíveis. Mas é óbvio que indivíduos ou sociedades podem estar eticamente equivocadas. De fato, muitos de nós frequentemente descobrimos que estávamos enganados em ocasiões passadas, mudamos então nosso parecer ético, e consideramos isso como um progresso moral pessoal. Também qualquer pessoa superficialmente informada sobre a história da humanidade e de seus preconceitos poderá reconhecer que a sabedoria coletiva errou muitas vezes ao longo dos tempos.” (NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 81-82. 35

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 14-17.

36

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 185.

37

REGAN, Tom. Jaulas vazias: encarando o desafio dos direitos animais. Porto Alegre: Lugano, 2006, p. 47-48, 61, 65-66.

38

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-36.

39

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-36.

40

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 32.

41

NACONECY, Carlos. Ética & animais: um guia de argumentação filosófica. Porto Alegre: Edipucrs, 2006, p. 180.

42

OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direitos humanos e direitos não humanos. In: KLEVENHUSEN, Renata; FLORES, Nilton Cesar (Orgs.). Direito público e evolução social. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011.

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43

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 318-319.

44

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-35.

45

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-35.

46

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-35.

47

SINGER, Peter. Libertação animal. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 03-35.

48

FELIPE, Sônia T. Acertos abolicionistas: a vez dos animais: crítica à moralidade especista. São José: Ecoânima, 2014, p. 42-43.

49

A SANTA SÉ. Carta Encíclica Laudato Si’, do Santo Padre Francisco, sobre o cuidado da Casa Comum. Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/ francesco/pt/encyclicals/documents/papa-francesco_20150524_enciclica-laudato-si.html>. Acesso em: 20 Jul. 2016.

50

FELIPE, Sônia T. Acertos abolicionistas: a vez dos animais: crítica à moralidade especista. São José: Ecoânima, 2014, p. 116-117.

51

OLIVEIRA, Fábio Corrêa Souza de. Direito e ética animal: uma leitura a partir da categoria romance em cadeia, de Ronald Dworking. In: BOFF, Salete Oro; ESPINDOLA, Angela Araujo da Silveira; TRINDADE, Andre Karan (Orgs.). Direito, democracia e sustentabilidade: anuário do programa de pós-graduação da Faculdade Meridional. Passo Fundo: Imed, p. 163-188, 2015.

52

LOURENÇO, Daniel Braga. Direito dos animais: fundamentação e novas perspectivas. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p. 21.

53

AQUINO, Sérgio Ricardo Fernandes de; SERRAGLIO, Priscila Zilli. A utopia de uma cidadania mundial sustentável. In: Veredas do direito: direito ambiental e desenvolvimento sustentável. v.12, n. 24, Belo Horizonte: Escola Superior Dom Helder Câmara, p. 257-286, 2015.

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JurisprudĂŞncia Precedente



“Presentación efectuada por A.F.A.D.A respecto del chimpancé “cecilia”sujeto no humano” Mendoza, 03 de noviembre de 2016

Y vistos: Estos autos nro. P-72.254/15 arriba intitulados iniciados en este Tercer Juzgado de Garantías a fin de resolver la acción de habeas corpus en favor de la Chimpancé Cecilia, interpuesta por el Dr. Pablo Buompadre, Presidente de A.F.A.D.A., con el patrocinio letrado del Dr. Santiago Rauek,

De lo que resulta: I.- Que a fs. 01/07 el Dr. Buompadre argumenta que Cecilia ha sido privada ilegítimamente y arbitrariamente de su derecho de la libertad ambulatoria y a una vida digna por parte de autoridades del zoológico de la Ciudad de Mendoza, Argentina. Que su estado de salud físico y psíquico se halla profundamente deteriorado y empeorado día a día con evidente riesgo de muerte siendo deber del estado ordenar urgentemente la libertad de esta persona no humana, que no es una cosa y, por ende, no puede estar sujeto al régimen jurídico de la propiedad sobre la cual cualquier persona pueda tener el poder de disposición de ella. Expresa el Dr. Buompadre que peticiona la liberación de la chimpancé Cecilia, privada arbitraria e ilegalmente de su libertad en el Zoo de Mendoza, y su posterior e inmediato traslado

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y reubicación final en el Santuario de Chimpancés de Sorocaba ubicado en el Estado de Sao Paulo, República Federativa del Brasil u otro que se establecerá al efecto oportunamente, previa evaluación de especialistas de la especie. Todo ello de conformidad a lo previsto en los arts. 43 de la Constitución Nacional, arts. 17, 19, 21 y cc de la Constitución Provincial de Mendoza, art. 440 y ss del Código Procesal Penal de Mendoza o, subsidiariamente, en lo previsto en la Ley Nacional n° 23.098 u otras leyes y Tratados Internacionales con jerarquía constitucional, art. 75 inciso 12 de la Constitución Nacional, que resulten aplicables al caso. Refiere el presentante que Cecilia es una chimpancé hembra, científicamente denominada “Pan troglodytes”, de unos “30” años de edad, que casi la totalidad de su vida vivió en cautiverio en el Zoológico de Mendoza, en una jaula de cemento que es verdaderamente aberrante, en otras palabras, se encuentra ilegalmente privada de su libertad, siendo una clara prisionera y esclava hace más de 30 años en el zoológico de Mendoza solo por decisión arbitraria de sus autoridades, afectándose de esta forma, al menos, dos de sus derechos básicos fundamentales, su libertad ambulatoria y locomotiva y el derecho a una vida digna que por esta vía pretenden hacer cesar. Argumenta el Dr. Buompadre que la chimpancé se encuentra viviendo en condiciones deplorables, en una jaula con piso y muros de cemento, extremadamente pequeña para un animal no humano de esa especie con un muy reducido habitáculo. Que no cuenta siquiera con mantas o paja para acostarse, en la cual pueda resguardarse de las inclemencias del tiempo o del propio viento, a lo que los chimpancés le tiene mucho miedo, o de los ruidos y gritos de las constantes visitas escolares y público en general que visitan ese establecimiento y de los elementos que a esta le lanzan como mero “objeto de burlas”, lugar al que prácticamente le llega la luz solar muy pocas horas al día, exponiendo a la primate a altas temperaturas, que en verano superan los 40° recalentando el piso y las paredes de cemento, y en invierno se

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hallan por debajo de los 0°, incluso nevando en varias oportunidades y congelando las superficies, con total falta de higiene y llena de excrementos que no se limpian diariamente. Agrega que luego de la muerte de sus compañeros de celda “Charly” (julio 2014) y Xuxa (enero/2015), la chimpancé Cecilia se encuentra viviendo de modo absolutamente solitario sin ningún tipo de compañía de sus congéneres, siendo que los chimpancés son animales extremadamente “sociales”, sin ningún espacio verde o árboles para ejercitarse ni tampoco algún enriquecimiento ambiental, como instrumentos y juegos para entretenerse, y sin contar con un bebedero propio, con el que pueda saciar su sed cuando lo desee, condiciones estas que han agravado su situación poniendo en evidente riesgo su vida y su salud física y psíquica, en función de la edad que posee, las características propias de la especie y fundamentalmente por el propio estrés con el que ya vive en cautiverio. Manifiesta el presentante que desde su alojamiento en el zoo de esta chimpancé, por más de tres décadas, nada se hizo desde ese establecimiento y sus autoridades a favor del bienestar de esta Gran Primate, la han tenido esclavizada, privada de libertad de modo arbitrario e ilegal, sin ninguna otra finalidad que la de ser exhibida al público como objeto circense. Esto nunca mejoró, ni incluso a fines de 2013 con la enorme presión social y relevancia de los acontecimientos que pusieron al descubierto la grave situación de esta “cárcel de animales”. Considera el Dr. Buompadre que Cecilia, a pesar de tener una identidad genética del 99,4% con cualquier ser humano, fue y es una verdadera esclava del zoo de Mendoza, discriminada por su especie, víctimas de lo que la Filosofía y la Ética llaman “Especismo Antropocentrico”, a lo que se está tratando como esclava, privándola injusta e ilegítimamente de su libertad locomotiva, como a muchos otros no humanos. Cecilia tampoco ha cometido delito algún para estar padeciendo un sufrimiento innecesario de esta naturaleza, en una situación de confinamiento extremo que no es otra cosa que un encierro ilegítimo

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e injustificado sine die de un ser sintiente, que no es una cosa y no debe ser tratada como tal, y sin que dicho encierro haya sido ordenado por una autoridad competente –juez. Entiende el presentante que las condiciones de cautividad para esta especie, como es en la que se halla Cecilia en el Zoo de Mendoza, son verdaderamente aberrantes, no solo por las circunstancias antes descriptas, sino también por las características etológicas de estos homínidos que son seres que sienten, se organizan en grupo sociales, son animales gregarios que viven en grandes grupos familiares con una jerarquía determinada; además de poseer autoconciencia, cuentan con habilidades específicas como las de reconocerse a si mismos, fabricar herramientas e incluso poseen el concepto de “cultura” con enseñanzas que se heredan de padres a hijos. Señala el Dr. Buompadre que un chimpancé no es una mascota y tampoco puede ser usado como mero objeto de diversión, cobayo de experimentación o mera exhibición. Ellos piensan, sienten, se afeccionan, odian, sufren, aprende e inclusive trasmiten lo aprendido. Agrega que la proximidad entre el hombre y el chimpancé es tal que éste puede ser donador de sangre para humanos y viceversa, son entes individuales y únicos, poseen necesidades emocionales. Son seres racionales y emocionales. Expresa el presentante que no se pretende que se considere a chimpancés, gorilas, orangutanes y bonobos como humanos, que no lo son, sino como homínidos que si son. Señala el presidente de A.F.A.D.A que la manutención de animales en cautiverio en ambientes artificiales e inadecuados y sobre todo para este especie en particular, constituye un evidente acto de abuso por parte de las autoridades que la tienen en esa situación de aislamiento y confinamiento extremo, constituyendo eso un clara y verdadera trasgresión a la ley de malos tratos y actos de crueldad a los animales (Ley. Nac. 14346) y a la Ley de Conservación de la Fauna Silvestre (Ley Nac. 22.421) actualmente vigentes en nuestro país, que llevará a Cecilia, pro-

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na e irremediablemente, a la pérdida de su propia identidad y seguramente a un destino mortal que se pretende impedir. En definitiva, manifiesta el Dr. Buompadre, Cecilia es una persona no humana, inocente, que no ha cometido delito alguno y que ha sido condenada a vivir en el encierro de una forma arbitraria e ilegítima, sin proceso previo, legal y válido, dispuesto por una autoridad pública que no es judicial, zoológico de Mendoza, donde actualmente cumple una pena de prisión (establecimiento que no garantiza mínimamente sus condiciones de “Bienestar animal”) y que nunca tuvo la más mínima posibilidad de ser libre y de vivir esa libertad, aunque sea en sus últimos días de vida. Seguidamente, el Sr. Presidente de A.F.A.D.A realiza una exposición sobre los antecedentes de Habeas Corpus de Grandes Primates y sobre la admisibilidad de la acción de Habeas Corpus. Luego realiza un pormenorizado análisis de la extensión de derechos básicos fundamentales humanos a los grandes primates. Finalmente, el Dr. Buompadre efectúa un análisis sobre el chimpancé como sujeto de derecho y los zoo como cárceles de animales.

III. Y considerando: Que a fs. 35/79 se encuentra agregado informe sobre la situación del chimpancé Toti en el Zoológico de Bubalcó por el Sr. Pedro Pozas Terrados. A fs. 99/103 el Dr. Fernando Simón, Fiscal de Estado de la Provincia de Mendoza, contestó la acción interpuesta por A.F.A.D.A y solicitó el rechazo de la acción intentada. Expresó el Fiscal de Estado que la acción carece del elemento más importante que es la existencia de persona humana y no un animal, el que para la legislación actual continúan siendo una cosa, tal como lo establece el art. 227 del C.C. Sin perjuicio de entender que los animales merecen protección, no comparten la asimilaci-

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ón que se hace de ellos a la persona como sujetos de derechos en general y destinatario de la protección de la garantía del habeas corpus. Agregó el Fiscal de Estado que con la falta de cumplimiento de los requisitos básicos, se puede advertir que no se está ante una detención tal como el accionante intenta demostrar, ya que ella es una medida cautelar personal que consiste en la privación temporal de la libertad ambulatoria ordenada por una autoridad competente. Añade que la libertad ambulatoria es un derecho personalísimo del que solo gozan las personas humanas, y no los animales o los llamados sujetos no humanos, como de manera dogmática y carente de fundamentos jurídicos se intentan hacer valer mediante esta acción. Que no estamos ante un acto ilegal, ya que el zoológico de la provincia fue creado el día 18 de mayo del año 1903, el que se acordó mediante la promulgación de la Ley Nro. 30 del año 1897, el que contempla la tenencia de distintos animales, los que permanecen dentro del recinto, y que por una cuestión de seguridad hacia las cosas y las personas humanas, son albergados dentro de jaulas confeccionadas especialmente para cada una de las especies. Entendió el Sr. Fiscal de Estado que la A.F.A.D.A carece de capacidad procesal dado que no está acreditado que exista y que tenga capacidad jurídica. En subsidio, expresa que existe improcedencia sustancial activa dado que el Titular de la acción sería un animal (cosa) y no una persona humana, ya que conceptualmente habiendo legitimación es el reconocimiento que el ordenamiento jurídico hace a favor de un sujeto (persona humana), en cuya virtud le confiere la posibilidad de ejercitar eficazmente su poder de acción en base a la relación existente entre el sujeto y los derechos e intereses legítimos cuya tutela jurisdiccional pretende. A fs. 87 obra agregada acta en la que se consigna que el día 7 de julio de 2015 el personal jerárquico de este Tercer Juzgado de Garantías, integrado por la Dra. María Alejandra Mauricio, Juez de Garantías, el Dr. Gerardo Manganiello, Secretario Ad

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Hoc y la Dra. S. Amalia Yornet, Prosecretaria, concurrieron al Zoológico de la Provincia de Mendoza, donde se llevó a cabo una inspección ocular. A fs. 112/147 corre agregada copia certificada del expediente administrativo nro. 332-D-2.015-18010, el cual tramita en la Administración de Parques y Zoológicos. A fs. 150/153 se encuentra agregado informe remitido por el Méd. Vet. Gustavo Pronotto, en aquel momento Director del Zoológico. A fs. 158 obra agregada acta en la que se consignó que comparecieron ante este Tribunal el Dr. Pablo Buompadre, Presidente de AFADA, el letrado patrocinante Dr. Santiago Rauek, el Dr. Claudio Sar Sar y el Dr. Cristian Thompson por Fiscalía de Estado, el Dr. Alejo Guajardo de Asesoría de Gobierno, el Dr. Gustavo Pronotto, Director del Zoológico de la Provincia de Mendoza y el Dr. Raúl Horacio Vicchi de Coordinación de Políticas Públicas del Poder Judicial de la Provincia de Mendoza, a efectos de llevar a cabo la audiencia programada respecto del chimpancé Cecilia. A fs. 161/165 el Dr. Fernando Simon, Fiscal de Estado de la Provincia de Mendoza, presentó propuesta de traslado de Cecilia al Zoológico de Bubalco, conforme audiencia del día 02 de septiembre del año 2015. A fs. 184/210 obra agregada pericia efectuada por … A fs. 214/234 se encuentra agregada pericia realizada por la Médica Veterinaria Dra. Jennifer Ibarra. A fs. 235/240 corre agregada pericia llevada a cabo por el Médico Veterinario Dr. José Emilio Gassull. A fs. 244 se encuentra agregada acta en la que se consignó que el personal jerárquico de este Tribunal se constituyó en el Zoológico de la Provincia de Mendoza y constató que en el recinto contiguo a la jaula donde se encuentra alojada Cecilia existe una obra en construcción que se habría iniciado con dinero de particulares.

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A fs. 246/247 rola agregado informe remitido por el Ministerio de Tierras, Ambientes y Recursos Naturales de la Provincia de Mendoza. A fs. 275/281 corre agregado informe de SENASA. A fs. 284 vta. se encuentra agregada acta en la que se consignó lo acontecido en audiencia en los estrados de este Tercer Juzgado de Garantías a la que asistieron el letrado patrocinante de A.F.A.D.A Dr. Santiago Rauek, el Dr. Claudio Sar Sar y el Dr. Cristian Thompson por Fiscalía de Estado, el Dr. Alejo Guajardo de Asesoría de Gobierno y las nuevas autoridades, la Ing. Mariana Carm como Directora del Zoológico de la Provincia de Mendoza, la Dra. Paula Llosa, asesora letrada, y el Sr. Humberto Mingorance, Secretario de Ambiente y Ordenamiento Territorial, el Lic. Eduardo Sosa, Jefe de Gabinete, ante la presencia de la titular del Tribunal y la Sra. Secretaria autorizante. En esa audiencia las partes acordaron que la mejor opción es enviar a la chimpancé Cecilia al Santuario de Brasil. A fs. 287/309 la Magister Mariana Caram, Directora del Zoológico, Adm. de Parques y Zoológico, el Arq. Ricardo Mariotti, Administrador General y el Lic. Humberto Mingorance, Secretario de Ambiente y Ordenamiento Territorial, señalaron que el traslado de Cecilia al Santuario de Brasil es factible. Los trámites y procedimientos necesarios para llevar a cabo el traslado requerirían un plazo de entre tres a seis meses, aproximadamente. A fs. 310 este Tribunal otorgó a la Magister Mariana Caram, Directora del Zoológico, Adm. de Parques y Zoológico, el Arq. Ricardo Mariotti, Administrador General y el Lic. Humberto Mingorance, Secretario de Ambiente y Ordenamiento Territorial el plazo máximo de seis meses a fin de llevar a cabo los procedimientos que sean necesarios para el traslado de la chimpancé Cecilia a Sorocaba, Brasil. IV.- Puesta a resolver la cuestión traída a conocimiento y decisión de este Tribunal entiendo que corresponde realizar las siguientes consideraciones. En primer lugar, y atento a los plan-

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teos efectuados por el Sr. Fiscal de Estado, he de referirme a la legitimación del presidente de A.F.A.D.A. y seguidamente a la competencia que atañe a este Tribunal para entender en las presentes actuaciones. Veamos: a.- El cauce procesal elegido por los iniciadores no sujeta al tribunal. Debo sí respetar el principio de congruencia (art. 18 CN). Se denunció una situación de hecho y se solicitó que esa situación cesara. Me corresponde como juzgadora la calificación jurídica de la pretensión y de aquellos hechos que han sido probados en la causa, tanto más cuanto que, como se verá, la decisión que adoptaré no consistirá en una imputación penal, de modo que no se afectarán los principios de “nullum crimen”, “nulla pena”, etc. Así procedió el juez del célebre caso “Kattan” (el caso de las “toninas overas”). Allí los actores habían requerido al juez que prohibiera la caza o captura de toninas overas en nuestro mar “hasta tanto existan estudios acabados acerca del impacto ambiental y faunístico que dicha caza pueda provocar”. La acción había sido motivada por dos autorizaciones otorgadas por el Poder Ejecutivo para capturar 14 toninas overas. El juez sostuvo que “la estricta medida pedida supone una sentencia de futuro que, por tal motivo, no resulta viable”. Pero agregó: “Sin embargo, por aplicación del principio “iura novit curia” considero que puedo anular las resoluciones permisivas que son las que han provocado la cuestión”. (Juzgado de 1ª Instancia en lo Contencioso Administrativo Federal N° 2, 10.05.83, “Kattan Alberto E. y otro c./Poder Ejecutivo Nacional sobre amparo” (firme), MJ-JU-M-8640-AR/MJJ8640). Como se verá, entiendo que el caso planteado involucra la protección de un bien o valor colectivo, que más adelante identificaré y considero también que, dadas las particulares características tanto de fondo como procesales que la causa exhibe,

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no sólo estoy autorizada sino obligada a emitir resolución de fondo. La Constitución Nacional reconoce expresamente desde 1994 una nueva categoría de derechos: los “derechos de incidencia colectiva” (art. 43 segundo párrafo CN), aludiendo –entre otrosal derecho al ambiente consagrado en el art. 41 CN citado. El derecho al ambiente fue incorporado expresamente en el art. 41 CN con el siguiente texto, que me permito reproducir para facilitar la lectura de la argumentación que desarrollaré. “Todos los habitantes gozan del derecho a un ambiente sano, equilibrado, apto para el desarrollo humano y para que las actividades productivas satisfagan las necesidades presentes sin comprometer las de las generaciones futuras; y tienen el deber de preservarlo. El daño ambiental generará prioritariamente la obligación de recomponer, según lo establezca la ley. Las autoridades proveerán a la protección de este derecho, a la utilización racional de los recursos naturales, a la preservación del patrimonio natural y cultural y de la diversidad biológica, y a la información y educación ambientales. Corresponde a la Nación dictar las normas que contengan los presupuestos mínimos de protección, y a las provincias, las necesarias para complementarlas, sin que aquéllas alteren las jurisdicciones locales…” El “derecho al ambiente” es un “derecho de incidencia colectiva”. Así resulta, sin duda alguna, del art. 43 CN que en su segundo párrafo consagra el denominado “amparo colectivo” en los siguientes términos: “… Podrán interponer esta acción contra cualquier forma de discriminación y en lo relativo a los derechos que protegen al ambiente, a la competencia, al usuario y consumidor, así como a los derechos de incidencia colectiva en general, el afectado, el defensor del pueblo y las asociaciones que propendan a esos fines, registradas conforme a la ley, la que determinará los requisitos y formas de su organización…”

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La noción de “derecho de incidencia colectiva” o “derecho difuso” se encontraba reconocida en nuestra Provincia aún antes de la reforma de la Constitución Nacional de 1994. Recuérdese a nuestra pionera ley 5961 de 1993 sobre “preservación del ambiente”. En su Título IV (“De la defensa jurisdiccional del ambiente”) se regula un sistema de acciones destinados a la defensa jurisdiccional de derechos e intereses que hoy, con la terminología del art. 43 CN denominaríamos “de incidencia colectiva”. El Art. 16 que inicia el citado Título IV dispone que la defensa jurisdiccional se otorga a “los intereses difusos y los derechos colectivos, brindando protección a esos fines al medio ambiente, a la conservación del equilibrio ecológico, los valores estéticos, históricos, urbanísticos, artísticos, arquitectónicos, arqueológicos y paisajísticos” y a “cualesquiera otros bienes que respondan en forma idéntica a necesidades comunes de grupos humanos a fin de salvaguardar la calidad de la vida social” (Art. 16 ley 5961). Sigamos. El art. 41 CN incorpora una noción amplia de “ambiente”, que incluye, junto al patrimonio natural, los valores culturales y la calidad de la vida social. En cuanto al primero, téngase presente que la orangutana Cecilia integra la fauna silvestre de nuestro país y que, por tanto, está comprendida en el alcance de la ley nacional 22.421 de protección de la fauna silvestre, a la que adhirió nuestra Provincia mediante la ley 4602. Adelantémonos a recordar que el art. 3° de la ley 22.421 dispone que a los fines de la ley se entiende por “fauna silvestre” a los animales “bravíos o salvajes que viven bajo control del hombre, en cautividad o semicautividad”. Pues, bien, el art. 1° de la ley declara “de interés público” la protección y conservación de la fauna silvestre. Es oportuno señalar que el mismo art. 1° dispone que “todos los habitantes de la Nación tienen el deber de proteger la fauna

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silvestre”, norma que, como diré más adelante, robustece el reconocimiento de legitimación procesal en acciones e iniciativas orientadas a hacer efectiva esa protección. Advierte Tawil que “adhiriéndose a una concepción amplia del concepto de medio ambiente … la cláusula constitucional ha puesto a cargo de las autoridades la obligación de proveer tanto a la preservación del patrimonio natural como del cultural…” (Tawil, Guido S. “La cláusula ambiental en la Constitución Nacional”, en Estudios sobre la reforma constitucional, Cassagne, Juan Carlos (dir), Buenos Aires, Depalma, 1995, página 21, en página 50). Dice Mariana Valls, refiriéndose al pasaje en el que el art. 41 CN impone a las autoridades el deber de proveer a la protección del patrimonio natural y cultural que “adhiriendo a una concepción amplia del ambiente, habilita al Estado a regular en materia de … b) lugares históricos y culturales, zoológicos y jardines botánicos, entre otras” (Valls, Mariana, Derecho Ambiental, Ciudad Argentina, 1999, pág. 40) La noción amplia de ambiente se confirma en la ley N° 25.675, conocida como Ley General del Ambiente (la publicación en el Boletín Oficial la tituló como “Ley de Política Ambiental Nacional”) que es una de las “normas de presupuestos mínimos de protección” que el Art. 41 CN consagró como nueva especie normativa (“corresponde a la Nación dictar las normas conteniendo los presupuestos mínimos de protección, y a las provincias las necesarias para complementarlas…”). El art. 2 de la ley 25.675 fija entre los objetivos de la “política ambiental nacional” los siguientes: “… a) Asegurar la preservación, conservación, recuperación y mejoramiento de la calidad de los recursos ambientales, tanto naturales como culturales…; b) Promover el mejoramiento de la calidad de vida de las generaciones presentes y futuras, en forma prioritaria” Dice el Art. 27 de la ley 25.675: El presente capítulo establece las normas que regirán los hechos o actos jurídicos, lícitos o ilícitos que, por acción u omisión, causen daño ambiental de

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incidencia colectiva. Se define el daño ambiental como toda alteración relevante que modifique negativamente el ambiente, sus recursos, el equilibrio de los ecosistemas, o los bienes o valores colectivos. “ El art. 31 de la ley 25.675 dispone que los actores de un daño ambiental colectivo son responsables “frente a la sociedad”, mientras que el art. 32 de la misma ley, otorga amplias facultades al juez que interviene en el proceso por daño ambiental colectivo “a fin de proteger efectivamente el interés general”. Por tanto, el derecho a la preservación del patrimonio natural y cultural y el derecho a la calidad de vida forman parte del “derecho al ambiente” (Art. 41 CN), constituyen “derechos de incidencia colectiva” y están esencialmente conectados con el interés general de la sociedad. Bustamante Alsina ha dicho que el art. 41 CN “incorpora a la Constitución Nacional los dos postulados universalmente reconocidos, como la calidad de vida… y el “desarrollo sustentable” (Bustamante Alsina, Jorge, Derecho Ambiental. Fundamentación y Normativa. Abeledo-Perrot, Buenos Aires, 1995, pág. 64). El mismo autor recuerda que la noción de calidad de vida “expresa la voluntad de una búsqueda de calidad más allá de lo cuantitativo, que es el nivel de vida. Es decir que el medio ambiente concierne no solamente a la Naturaleza sino también al hombre en sus relaciones sociales…” Por su parte, Lorenzetti señala: “Uno de los valores más importantes que se introducen en las legislaciones es el referido a la calidad de vida. El inciso b) del art. 2 de la ley 25.675 establece como objetivo “promover el mejoramiento de la calidad de vida de las generaciones presentes y futuras, en forma prioritaria”. (Lorenzetti, Ricardo L. “Teoría del Derecho Ambiental”, 1ª. Ed. Buenos Aires, La Ley, 2008, pág. 59). En una pionera sentencia mendocina anterior a la reforma de la Constitución Nacional de 1994 se dijo que la tutela del medio ambiente “coincide con la protección del equilibrio psicofísico del hombre…” (Juzgado de Primera Instancia en lo Civil,

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Comercial y Minas N° 4, 02.10.86, “Morales Víctor H. y otro c. Provincia de Mendoza”, ED 123-537, en pág. 543). En el caso, el juez declaró nulo el decreto provincial que había levantado la veda de pesca y caza deportivas en la reserva faunística de la laguna Llancanelo. Dijo el juez que “el decreto impugnado… ordena el levantamiento de la veda… sin el previo e indispensable estudio acerca del impacto ambiental… Tal medida nos coloca… frente a la posibilidad cierta de la degradación del entorno y del empobrecimiento de los recursos naturales. Esto compromete consecuentemente en forma directa la calidad de vida de los habitantes” (considerando 4°, ED 123-537, en pág.542). Vigente ya la reforma de 1994 se resolvió que la calidad de vida es un postulado incluido en la tutela del art. 41 CN (cf. Cámara Nacional de Apelaciones en lo Civil Sala H, 01.10.99, “Subterráneos de Buenos Aires S.E. c/Propietario de la Estación de servicio Shell calle Lima entre Estados Unidos e Independencia” (J.A. 1999-IV, pág.308, en pág. 315). El goce y disfrute de un parque fue considerado como un elemento integrante del valor “calidad de vida”, amparado por el art. 41 CN (Supremo Tribunal de Justicia de Entre Ríos, Sala 1 en lo Penal, 23.06.95, “Moro Carlos Emilio y otros c. Municipalidad de Paraná” E.D. 167-69). La Suprema Corte de la Provincia de Buenos Aires protegió el “derecho al paisaje” de la comunidad de Cariló. La acción que acogió alegaba que la Municipalidad hacía caso omiso de la ley que había declarado de interés provincial ese paisaje, pues continuaba aplicando ordenanzas que en la práctica autorizaban acciones tales como la extracción de arena de médanos, la modificación de niveles originarios de calles, la destrucción de árboles añosos, etc. El tribunal ordenó a la Municipalidad que dictara una ordenanza que diera efectiva protección al paisaje de la localidad, reglamentando adecuadamente la ley provincial. (SCBA, 29.05.02,

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“Sociedad de Fomento de Cariló c. Municipalidad de Pinamar” La Ley Buenos Aires -2002- página 923). La privación del goce estético proporcionado por un grupo escultórico tradicional erigido en la vía pública de la ciudad de Tandil, destruido por la embestida de un colectivo, fue resarcida a título de “daño moral colectivo” sufrido por los habitantes de esa ciudad (Cámara Civil y Comercial de Azul, Sala II, 22.10.96, “Municipalidad de Tandil c./Transportes Automotores La Estrella y otro s/daños y perjuicios”, Microiuris MJ-JU-E12493-AR/EDJ 12493) La Suprema Corte de Justicia de la Provincia de Buenos Aires dispuso que la lesión del patrimonio arquitectónico y cultural de los habitantes de la Ciudad de La Plata “afectaría el interés público, implicado en la tutela constitucional del ambiente” (SCBA, 24.05.11, causa I.71-446 “Fundación Biósfera y otros c./ Municipalidad de La Plata s/ inconst. ord. N° 10.703” Microiuris MJ-JU-M-65229-AR | MJJ65229 | MJJ65229). Es interesante anotar que ya en aquel hito jurisprudencial que significó la sentencia de “Kattan”, a la que arriba me referí, el juez agudamente señaló que el Estado demandado en el amparo, al argumentar asimilando la captura de las toninas con lo que sucede con “vacunos, ovinos, porcinos, etc.” y con la pesca comercial de otras especies, “ha confundido el concepto de recurso natural con el de recurso cultural” (fallo citado, considerando III). Es decir que el juez percibió que en la tutela de la especie tonina overa no sólo estaba involucrada la protección de la fauna (el fallo contiene extensas consideraciones sobre la ley 22.421) sino que estaba en juego la dimensión “cultural”. Ahora bien, ¿cuál es en nuestro caso el bien o valor colectivo, comprendido en el amplio objeto del derecho al ambiente y cuál es el “interés general” que el juez está llamado a proteger de manera efectiva (Arg. Art. 32 ley 25.675)?

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Entiendo que en el caso que me ocupa se trata del bien y valor colectivo encarnado en el bienestar de Cecilia, integrante de la “comunidad” de individuos de nuestro zoológico. Ello porque Cecilia tanto pertenece al patrimonio natural (ley 22.421) como, en la medida de su relación con la comunidad de humanos, integra –en mi opinión- el patrimonio cultural de la comunidad. Por una y otra razón su bienestar atañe al resguardo de un patrimonio colectivo. Asimismo, integra la calidad de vida de la comunidad, hace a su equilibrio psicofísico (fallo “Morales, Víctor H. citado) que ese patrimonio sea protegido o, lo que es lo mismo, que Cecilia goce de bienestar. Adelanto que decidiré conforme lo propuesto por el Gobierno de la Provincia, esto es, en el sentido de trasladar a Cecilia a un destino mejor, fuera de nuestro país. No encuentro que esa decisión sea contradictoria con la protección del patrimonio natural y cultural y de la calidad de vida de nuestra comunidad. Se ha probado que hoy nuestra comunidad no puede proveer a Cecilia el bienestar que tanto la parte iniciadora como el Gobierno de la Provincia se han manifestado interesados en proteger. En esas particulares circunstancias, el traslado más allá de nuestra frontera aparece como el medio idóneo para que quien hoy integra “nuestro” patrimonio pueda proseguir su vida en mejores condiciones. El lazo espiritual que vincula a una comunidad con los elementos de su patrimonio no depende de la proximidad física sino de la intensidad con la que la relación sea vivida y fortalecida a lo largo del tiempo, con independencia de la condición dominial del elemento o de la jurisdicción a la que él quede sometido.

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Así pues, Cecilia podrá seguir siendo integrante de “nuestro” patrimonio ambiental si nosotros, como colectividad, así nos lo proponemos. En cuanto a nuestra calidad de vida, estoy convencida de que si la comunidad es debidamente informada y educada (art. 41 CN: “las autoridades proveerán a la… información y educación ambientales”) acerca de las circunstancias que llevan a la solución que adoptaré, experimentará la satisfacción de saber que actuando colectivamente como sociedad hemos podido darle a Cecilia la vida que merece. La situación actual de Cecilia nos conmueve. Si atendemos a su bienestar no será Cecilia quien estará en deuda con nosotros sino nosotros quienes deberemos agradecerle la oportunidad de crecer como colectividad y de sentirnos un poco más humanos. Ahora, dedicaré la atención al tema de la legitimación. El iniciador del proceso invocó la representación de una asociación. El Sr. Fiscal de Estado la objetó. La amplitud con la que cabe reconocer legitimación activa en este tipo de causas hace que no quepa desconocerla al iniciador, con independencia de su invocada condición representativa. La legitimación debe serle reconocida en virtud de la aplicación directa o analógica, según el caso, de variadas normas de fondo y procesales, según se verá. El actor es “afectado” en el sentido del art. 43 CN. Está legitimado por el art. 1° de la ley 22.421 de protección de la fauna, a la que adhirió nuestra Provincia mediante la ley 4602 (conforme fallos “Kattan” y “Morales” citados). Es “afectado” en el sentido del art. 30 de la ley 25.675 de Política Ambiental Nacional. El mismo art. 30 habilita a “toda persona” a “solicitar, mediante acción de amparo, la cesación de actividades generadoras de daño ambiental colectivo”. El art. 1712 del Código Civil y Comercial legitima a toda persona que “acredite un interés razonable” a “reclamar” median-

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te la acción consagrada en el art. 1711 en procura de impedir la “continuación” de un daño. El Art. 10 del Código Procesal Penal de nuestra provincia otorga legitimación como “querellante particular” a “cualquier persona” en relación con delitos que lesionan “intereses difusos.” b.- Analizada la legitimación activa, pasaré ahora a señalar los fundamentos de la actuación a la que me siento convocada. El Dr. Pablo Nicolás Buompadre, Presidente de la Asociación de Funcionarios y Abogados por los Derechos de los Animales, con el patrocinio letrado del Dr. Santiago Rauek, peticionan por intermedio de una acción de habeas corpus el recupero de libertad de la Chimpancé de nombre “Cecilia” en razón de que ésta habría sido arbitraria e ilegalmente privada de su libertad ambulatoria. En consecuencia, solicitan el inmediato traslado y reubicación de la chimpancé en el Santuario de Chimpancés de Sorocaba, Brasil. Ahora bien, en el afán de formular una resolución jurisdiccional acorde a la pretensión que se pretende satisfacer, estimo que, previo a todo, deviene imperioso vislumbrar si la vía impetrada, esto es, la interposición de la acción de Habeas Corpus, art. 43 de la Constitución Nacional, arts. 17, 19, 21 y cc de la Constitución Provincial de Mendoza, art. 440 y ss del Código Procesal Penal de Mendoza y Ley Nacional 23.098, resulta acorde en orden al tratamiento y consecución de los fines esgrimidos. La doctrina, citando al constitucionalista Bidart Campos, tiene dicho que la acción de habeas corpus es una garantía urgente y “suprema mediante la cual el particular afectado, o aun otra persona por él, acude a la autoridad judicial demandando la recuperación de la libertad; si la detención no ha emanado de una autoridad competente, o no se ha guardado la debida forma, o carece de causa legal”. (FALCON, Enrique M.; “TRATADO DE DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL. TOMO II”, Ed. Rubinzal- Culzoni, Santa Fe, 2010, pág. 531). El habeas corpus es el mecanismo constitucional idóneo para proteger la libertad ambulatoria.

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Esta garantía se encuentra prevista en el art. 18 de la Constitucional Nacional en cuanto prevé que “Nadie puede ser…arrestado sino en virtud de orden escrita de autoridad competente” y en el art. 43, después de la reforma del año 1994, en tanto expresa “Cuando el derecho lesionado, restringido, alterado o amenazado fuera la libertad física, o en caso de agravamiento ilegítimo en la forma o condiciones de detención, o en el de desaparición forzada de personas, la acción de hábeas corpus podrá ser interpuesta por el afectado o por cualquiera en su favor y el juez resolverá de inmediato, aun durante la vigencia del estadio de sitio”. Asimismo, la Constitución de la Provincia de Mendoza establece en su artículo 21 que: “Toda persona detenida podrá pedir por sí, u otra en su nombre, que se la haga comparecer ante el juez más inmediato, y expedido que sea el auto por autoridad competente, no podrá ser detenida contra su voluntad, si pasadas las veinticuatro horas no se le hubiese notificado por juez igualmente competente, la causa de su detención. Todo juez, aunque lo sea de un tribunal colegiado, a quien se le hiciera esta petición, o se le reclamase la garantía del art. 19, deberá proceder con el término de veinticuatro horas, contadas desde su presentación, con cargo auténtico, bajo multa de mil pesos nacionales. Proveída la petición, el funcionario que retuviese al detenido o dejase de cumplir dentro del término señalado por el juez, el requerimiento de éste, incurrirá en la misma multa, sin perjuicio de hacerse efectivo el auto”. El artículo 440 del Código Procesal Penal de la Provincia de Mendoza prevé que: “Toda persona detenida o incomunicada en violación de los artículos 17, 19, 21 y correlativos de la Constitución de Mendoza, o que considere inminente su detención arbitraria podrá interponer hábeas corpus para obtener que cese la restricción o la amenaza. Igual derecho tendrá cualquier otra persona para demandar por el afectado, sin necesidad de mandato. Cuando el hábeas corpus tuviere como fundamento el reagravamiento de las condiciones de prisión impuesta por el órgano judicial

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competente, se procederá de conformidad con la Ley Nacional N° 23.098…”. Néstor Pedro Sagués, al estudiar la temática de los derechos constitucionales protegidos por el Hábeas Corpus, expresa que existen dos posturas, a saber: “TESIS RESTRICTIVA. Una caracterizada y tradicional doctrina argentina sostiene que la ley fundamental, al permitir la acción de hábeas corpus, solamente la programa para la protección de la libertad física o corporal, el ius movendi et ambulandi del derecho romano, o power of locomotion del derecho anglosajón… TESIS AMPLIA. Pero hay que señalar, no obstante, que ciertos sectores de la doctrina y la jurisprudencia (seguidos también en el derecho público provincial por varias normas), auspiciaron la proyección del hábeas corpus para garantizar todos los derechos constitucionales de libertad… LEY 23.098. Esta norma vino a modificar en parte el régimen patrocinado por la ley 16.986 de amparo, puesto que si bien en el inc. 1 de su art. 3° habilitó el hábeas corpus para subsanar toda limitación o amenaza actual de la libertad…, también lo programó para reparar la agravación ilegítima de la forma y condiciones en que se cumple la privación de la libertad… REFORMA CONSTITUCIONAL DE 1.994. El nuevo art. 43 de la Const. Nacional entiende que el derecho tutelado es la libertad física, aunque siguiendo también los moldes de la ley 23.098, atiende los casos de agravamiento ilegítimo en la forma o condiciones de una detención…” (SAGÜÉS, Néstor, DERECHO PROCESAL CONSTITUCIONAL. HÁBEAS CORPUS. Ley 23.098 Comentada y concordada con la Constitución Nacional y Normas Provinciales. 3° Edición Actualizada y Ampliada. Editorial Astrea de Alfredo y Ricado Depalma. Buenos Aires. Año 1.998. Páginas 135/138). Completando el criterio adoptado, el doctrinario agrega: “Las notas de sumariedad y urgencia que matizan el hábeas corpus no son legalmente incompatibles con la consideración y el análisis de todos los elementos de juicio necesarios para atender su objeto, y sentenciar. Tal doctrina emerge también de la Corte Suprema, al puntualizar que dentro del hábeas corpus deben ventilarse todos los hechos y todas las causas, cualesquiera sean, que le sirvan de fundamento… En definiti-

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va, concluye la Corte, interpuesto un hábeas corpus se debe determinar la existencia o no de un acto u omisión que afecte, sin derecho, a la libertad personal; lo que implica realizar los trámites judiciales razonablemente aconsejables con aquella finalidad” (Obra citada, página 344/345).Así las cosas, tenemos que para atender al objeto principal de la acción de Habeas Corpus, esto es, la libertad corporal y libertad ambulatoria, se elevan como características fundamentales del instituto en cuestión la sumariedad, que tiende a que en el procedimiento no se ventilen cuestiones de incidencia previa, y la urgencia, la que se traduce en el procedimiento previsto para la acción de habeas corpus. Específicamente, el objeto del habeas corpus consiste en la protección de la libertad corporal ilegalmente restringida así como también la corrección en las formas o condiciones en que se cumplen las detenciones de una persona, ello conforme surge de la normativa señalada en los párrafos que anteceden. El habeas corpus está destinado a considerar la violación de un derecho o garantía sobre la libertad física de una persona por el acto de una autoridad que ha excedido el marco de su competencia o ha ido más allá de la razonabilidad que sus actos deben tener. La denuncia de hábeas corpus podrá ser interpuesta por la persona que afirme encontrarse ilegítimamente detenida o que se hayan agravado sus condiciones de detención o por cualquier persona a su favor, esto es, parientes, amigos o cualquier tercero El Dr. Buompadre señala que la chimpancé Cecilia se encuentra detenida arbitraria e ilegalmente en el zoológico de Mendoza dado que no existió orden de autoridad competente que disponga esa detención. Disiento de la afirmación del letrado presentante. Es una obligación de los operadores jurídicos ubicar los actos jurídicos y administrativos llevados a cabo por las autoridades del Estado Provincial en el momento histórico en que se sucedieron. Ello

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sin emitir un juicio de valor moral o reproche sobre aquellos actos. El Zoológico de la Provincia de Mendoza fue creado el 18 de mayo de 1903 mediante la promulgación de la Ley nro. 30 del año 1897. Es decir, las autoridades de hace más de un siglo atrás previeron la incorporación de distintas especies de animales en los recintos y jaulas del zoológico provincial. Así las cosas, fueron reunidas especies de osos, tigres, monos, chimpancés, aves, elefantes, etc., en las instalaciones del zoo. Sin embargo, no podemos soslayar que, como regla de experiencia innegable, las sociedades evolucionan tanto en sus conductas morales, pensamientos y valores como así también en sus legislaciones. Hace más de un siglo atrás muchos de los derechos individuales que hoy en día se encuentran expresamente reconocidos por las constituciones de los distintos países y por los Tratados Internacionales de Derechos Humanos eran ignorados y, en algunos casos incluso, inadvertidos por la sociedad o, peor aún, denostados como los derechos concernientes a la perspectiva de género. En la actualidad podemos ver cómo se ha tomado conciencia de situaciones y realidades que, aunque suceden desde hace un tiempo inmemorable, antes no eran conocidas ni reconocidas por los actores sociales. Tal sería el caso de la violencia de género, del matrimonio igualitario, del derecho igualitario del sufragio, etc. Idéntica situación sucede con la conciencia sobre los derechos de los animales. No puede catalogarse de ilegítimo el acto jurídico llevado a cabo por las autoridades de 1897 en la creación del zoológico provincial toda vez que ese acto así como la incorporación de la chimpancé Cecilia se realizó en el marco de la legislación vigente y con un criterio propio de la época respecto de la exhibición de animales de distintas especies. Expuestos sucintamente los principios inspiradores de la acción de Habeas Corpus debemos resolver si la vía intentada por la parte actora resulta correcta. Se trata de una cuestión, como

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casi siempre sucede, de una textura de elementos normativos que conjugados permiten arribar a una definición. Vemos que el Art. 5º del Código Procesal Penal dispone: “Art. 5. Solución del conflicto. Los tribunales deberán resolver el conflicto surgido a consecuencia del hecho, de conformidad con los principios contenidos en las leyes, en procura de contribuir a restaurar la armonía social entre sus protagonistas.” En causas en las que está en juego el derecho colectivo a la preservación del patrimonio natural y cultural el juez actúa para “proteger efectivamente el interés general” (arg. art. 32 de la ley 25.675). La Corte Suprema de Justicia de la Nación en el conocido caso “Mendoza” (contaminación del río Matanza-Riachuelo) dijo respecto de la consagración expresa del derecho al medio ambiente en el art. 41 CN que “el reconocimiento de status constitucional del derecho al goce de un ambiente sano, así como la expresa y típica previsión atinente a la obligación de recomponer el daño ambiental no configuran una mera expresión de buenos y deseables propósitos para las generaciones del porvenir, supeditados en su eficacia a una potestad discrecional de los poderes públicos, federales o provinciales, sino la precisa y positiva decisión del constituyente de 1994 de enumerar y jerarquizar con rango supremo a un derecho preexistente…” (CSN, 20.06.06, “Mendoza, Beatriz Silvia y otros c/Estado Nacional y otros s/daños y perjuicios (daños derivados de la contaminación ambiental del Río Matanza-Riachuelo”, Fallos: 331:1622). En el mismo precedente la Corte dijo que “La mejora o degradación del ambiente beneficia o perjudica a toda la población, porque es un bien que pertenece a la esfera social y transindividual, y de allí deriva la particular energía con que los jueces deben actuar para hacer efectivos estos mandatos constitucionales” (considerando 18). Dijo también que en la tutela del bien colectivo ambiental “tiene una prioridad absoluta la prevención del daño futuro” y señaló la relevancia de esa concepción para la solución del caso, en el que se alegaba que se trataba de “actos continuados”. (considerando 18 citado, primer párrafo). En nuestro caso, la

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situación de hecho denunciada hace imperativo el dictado de una resolución judicial que proteja el valor colectivo en juego. La actividad que deteriora o daña el núcleo de valores y bienes colectivos comprendido en la amplia noción de ambiente debe cesar cuanto antes. La Suprema Corte de la Provincia de Buenos Aires dijo que la prevención en el terreno ambiental tiene una importancia superior a la que tiene otorgada en otros ámbitos, ya que la agresión al medio ambiente se manifiesta en hechos que provocan por su mera consumación un deterioro cierto e irreversible, de tal modo que permitir su avance y prosecución importa una degradación perceptible de la calidad de vida de los seres humanos, por lo que su cesación se revela como una medida impostergable (SCBA, 19.05.98, “Almada, Hugo N. c. Copetro S.A.”, JA 1999-I-pág.259, voto del Dr. Pettigiani, punto 6). No es posible, por tanto, postergar o negar una decisión de fondo que resuelva el conflicto y contribuya a restaurar la armonía social entre sus protagonistas (art. 5 CPP citado). c.- Para responder sobre la procedencia o no de la vía pretendida por la actora, previamente es necesario tratar el gran interrogante y el escollo insoslayable por el que ha de transitar la presente resolución: ¿Son los grandes simios –orangutanes, bonobos, gorilas y chimpancés- sujetos de derechos no humanos? Al ingresar en el análisis del punto en cuestión resulta imprescindible referirse a la legislación civil actual. El art. 227 reza: “Son cosas muebles las que puedan transportarse de un lugar a otro, sea moviéndose por sí mismas, sea que sólo se muevan por una fuerza externa, con excepción de las que sean accesorias a los inmuebles.”. El precepto reseñado engloba, conforme lo señala la doctrina, tres categorías distintas: Las que pueden desplazarse por sí mismas pueden ser animales, que se denominan semovientes; o cosas inanimadas que tiene incorporados mecanismos de propulsión para ser accionados por el hombres o por máquinas, como los automóviles, que se denominas locomóviles. (RIVERA, Julio César; MEDINA, Graciela; “CÓDIGO CIVIL Y COMERCIAL

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DE LA NACIÓN. COMENTADO. TOMO I”, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2014, pág. 505) La regla tradicional de consideración de los animales como cosa mueble, en tanto puedan desplazarse por sí mismas, se mantiene en el nuevo art. 227 del C.C.C. citado. Sin embargo, a poco de introducirse en el estudio de la clasificación de las cosas muebles, se observa que la doctrina nada dice sobre la discusión que aquí nos ocupa, dando por hecho que tanto el Estado como los particulares pueden tener bajo su dominio- propiedad a los animales dada su condición de cosas- semovientes. El Código Civil y Comercial recientemente sancionado incorporó en el art. 240 los límites al ejercicio de los derechos individuales sobre los bienes y estableció “El ejercicio de los derechos individuales sobre los bienes mencionados en las Secciones 1° y 2° debe ser compatible con los derechos de incidencia colectiva. Debe conformarse a las normas de derecho administrativo nacional y local dictadas en el interés público y no debe afectar el funcionamiento ni la sustentabilidad de los ecosistemas de la flora, la fauna, la biodiversidad, el agua, los valores culturales, el paisaje, entre otros, según los criterios previstos en la ley especial.”. Esta norma guarda estricta relación y coherencia con la Ley General de Ambiente N° 25675 del año 2002. El artículo relativiza el ejercicio de los derechos individuales en función de la protección de los derechos de incidencia colectiva, que son aquellos que garantizan a la humanidad una vida digna y sustentable a futuro. De este modo, no escapa a quien suscribe que desde hace más de una década nuestra sociedad ha comenzado un proceso lento de concientización y aprendizaje sobre la incidencia que tiene el uso desmedido e ilegítimo de los bienes que componen el patrimonio de las personas privadas o públicas por lo que de antaño se viene imponiendo fuertemente la idea de protección y preservación del ambiente. No obstante el avance, poco se ha preguntado el hombre qué sucede con los animales dentro del escenario natural en el que discurre la sociedad de los hombres. Menos aún, los operadores

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jurídicos se han cuestionado, ya acercándonos al tema que nos ocupa: ¿Son los animales sujetos de derechos? Para Llambías no resulta necesaria la definición de lo que es la persona humana dado que si “hay algo que no requiere definición…es el propio ser humano”. (RIVERA, Julio César, MEDINA, Graciela, Op. Citada, pág. 114). Sin embargo, disiento del prestigioso autor en tanto la categoría de persona debe necesariamente ser definida toda vez que en el ámbito del derecho se identifica el concepto de persona con el concepto de sujeto de derecho. Dada esta premisa, se sigue que ¿Solo el ser humano puede ser considerado como persona en tanto sujeto de derecho? ¿El hombre es el único que posee capacidad de derecho? Siguiendo a los grandes pensadores de la filosofía como Aristóteles, se ha dicho que el ser humano se diferencia de los animales porque tiene la capacidad de relacionarse políticamente, es decir, crear sociedades y organizar la vida en ciudades. Es decir, hombres y animales seríamos todos de la misma especie, diferenciándonos los primeros por nuestra capacidad política. Clasificar a los animales como cosas no resulta un criterio acertado. La naturaleza intrínseca de las cosas es ser un objeto inanimado por contraposición a un ser viviente. La legislación civil sub-clasifica a los animales como semovientes otorgándoles la “única” y “destacada” característica de que esa “cosa” (semoviente) se mueve por sí misma. Ahora bien, es una regla de la sana crítica- racional que los animales son seres sintientes en tanto les comprenden las emociones básicas. Los expertos en la materia coinciden de forma unánime en la proximidad genética que tienen los chimpancés con los seres humanos y agregan que estos tienen capacidad de razonar, son inteligentes, tienen conciencia de sí mismos, diversidad de culturas, expresiones de juegos mentales, manifestaciones de duelo, uso y fabricación de herramientas para acceder a los alimentos o resolver problemas sencillos de la vida cotidiana, capacidad de abstracción, habilidad para manejar símbolos en la comunicación, conciencia para expresar emociones tales

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como la alegría, frustraciones, deseos o engaños, organización planificada para batallas intra-específica y emboscada de caza, poseen habilidades metacognitivas; poseen estatus moral, psíquico y físico; poseen cultura propia, poseen sentimientos de afecto (se acarician y se acicalan), son capaces de engañar, usan símbolos para el lenguaje humano y utilizan herramientas. (Ver fs. 200/209, 214/234, 235/240) Resulta innegable que los grandes simios, entre los que se encuentra el chimpancé, son seres sintientes por ello son sujetos de derechos no humanos. Tal categorización en nada desnaturaliza el concepto esgrimido por la doctrina. El chimpancé no es una cosa, no es un objeto del cual se puede disponer como se dispone de un automóvil o un inmueble. Los grandes simios son sujetos de derecho con capacidad de derecho e incapaces de hecho, en tanto, se encuentra ampliamente corroborado según la prueba producida en el presente caso, que los chimpancés alcanzan la capacidad intelectiva de un niño de 4 años. Los grandes simios son sujetos de derechos y son titulares de aquellos que son inherentes a la calidad de ser sintiente. Esta afirmación pareciera estar en contraposición con el derecho positivo vigente. Pero solo es una apariencia que se exterioriza en algunos sectores doctrinarios que no advierten la clara incoherencia de nuestro ordenamiento jurídico que por un lado sostiene que los animales son cosas para luego protegerlos contra el maltrato animal, legislando para ello incluso en el campo penal. Legislar sobre el maltrato animal implica la fuerte presunción de que los animales “sienten” ese maltrato y de que ese sufrimiento debe ser evitado, y en caso de producido debe ser castigado por la ley penal. La doctrina nos ilustra respecto a las dos líneas teóricas que justifican el reconocimiento de los derechos de los animales: “En primer término se presentan las tesis de corte utilitarista que encuentran su primera formulación en el pensamiento de Bentham, quien postula como sujeto moral a todo aquel capaz de sentir placer o dolor, y ante la afirmativa eleva a sujetos de derechos a

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todos aquellos que cumplan esta condición, comprendidos entre ellos los individuos del reino animal. En la misma línea, Salt por su parte aboga a favor del reconocimiento de los derechos de las razas animales inferiores. Este desarrollo teórico culmina con la obra de Peter Singer quien define el sufrimiento como característica vital a partir de la cual debe atribuirse la condición de sujeto de derecho. Propone un criterio “antiespecista”, solicitando un tratamiento igualitario entre todos los sujetos de derecho independientemente de su especie…La segunda vertiente teórica es la que podemos denominar ecología profunda y da fundamento al trabajo de Zaffaroni citado en el fallo de la C.F.C.P. Parte de la base de la hipótesis Gaia del Teólogo Leonardo Boff según el cual “La tierra es un organismo vivo, es la Pachamama de nuestros indígenas, la Gaía de los cosmólogos contemporáneos. En una perspectiva evolucionaria, nosotros, seres humanos, nacidos del humus, somos una única realidad compleja. Entre los seres vivos e inertes, entre la atmósfera, los océanos, las montañas, la superficie terrestre, la biósfera y la antropósfera, rigen interrelaciones. No hay adición de todas esas partes, sino organicidad entre ellas. Esta naturaleza o Pachamama como organismo vivo es para esta teoría titular de derecho y consecuentemente persona…”(MUÑIZ, Carlos M., “Los animales ante la Ley. De Objetos y Sujetos”, Ed. La Ley, AR/DOC/594/2016) El autor citado critica ambas posturas por los vacíos legales que ambas producen. No obstante, considero que los vacíos legales no resultan fundamento razonable y suficiente para no dar el puntapié inicial a la controversia de si los animales deben ser considerados cosas o sujetos de derechos. No es una declaración dogmática y sobreabundante declarar a los grandes simios como sujeto no humano titular de derechos dado que la ley de fondo civil y comercial los declara expresamente cosas. No basta con la protección contra el maltrato animal y preservación de ellos. La desidia humana en la omisión del estudio y profundización sobre la calidad (o no) de sujeto de derecho no humano de los grandes simios conforma un comportamiento contrario al con-

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cepto de dignidad humana, dado que el hombre debe atender a su preservación en la posteridad, la que depende primordialmente del ecosistema que la rodea. Y en él, claramente, están los grandes simios, con quienes compartimos entre el 94 y el 99% de ADN y quienes poseen características análogas al ser humano. La dignidad humana es producto de una construcción y no algo impuesto y ello en base a la capacidad del hombre de ser racional. Tan así es que, por ejemplo, hasta no hace muchos años atrás la homosexualidad era considerada una desviación en el orden sexual, discusión que actualmente se encuentra ampliamente superada. Cabe señalar que en el delito de maltrato animal regulado por la Ley nro. 14.346 el bien jurídico protegido es el derecho del animal a no ser objeto de la crueldad humana. La interpretación del fin perseguido por el legislador implica que el animal no es una cosa, no es un semoviente sino un ser vivo sintiente. La conclusión entonces, no es otra que los animales son sujetos de derecho, que poseen derechos fundamentales que no deben ser vulnerados, por cuanto detentan habilidades metacognitivas y emociones señaladas en los párrafos que anteceden. La construcción moral y ética del hombre y su dignidad se encuentran en permanente evolución. El reconocimiento del hombre como individuo socializado, con aptitud de aprendizaje, lo ha llevado a entender que la naturaleza debe ser protegida y los animales no deben ser maltratados, sin perjuicio de que esa evolución- aprendizaje venga determinada por la encrucijada ambiental en la que se ha visto envuelto en las últimas décadas. Al respecto el Dr. Pedro David, en comentario al fallo dictado por la Cámara Federal de Casación Penal de la República Argentina, Sala II, expresó “Pues bien, nunca el hombre se ha encontrado hasta aquí con una encrucijada histórica, donde su forma de vida en las sociedades más avanzadas económica y tecnológicamente está destruyendo el planeta, y con ello pone en riesgo su propia vida y las aguas, el clima, y la supervivencia de las especies. Por ese motivo, hoy, a través de valores de

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solidaridad y cuidados con la creación, ellos son extendidos, de manera imperativa, legislativa y judicialmente, desde el plano internacional y en muchos países, a la mejor protección jurídica de aquellas especies como los orangutanes y bonobos, y delfines, y otras especies protegidas a las que hay que cuidar efectivamente desde las garantías de derechos propias de las personas. No en su totalidad de protección, sino en el modo y forma más efectivos de su propio cuidado y supervivencia. No se trata de eludir parches de protección circunstancial que den la apariencia de protección frente a la dilapidación del planeta que las legislaciones nacionales aún toleran, cuando no la fomentan…” (DAVID, Pedro, “NOTA SOBRE EL CASO DE SANDRA, SUJETO DE DERECHO NO HUMANO”, Revista El Derecho Penal, El Derecho, ISSN 1667-1805) Por ello, en la presente no se intenta igualar a los seres sintientes –animales- a los seres humanos como así tampoco se intenta elevar a la categoría de personas a todos los animales o flora y fauna existente, sino reconocer y afirmar que los primates son personas en tanto sujetos de derechos no humanos y que ellos poseen un catálogo de derechos fundamentales que debe ser objeto de estudio y enumeración por los órganos estatales que correspondan, tarea que excede el ámbito jurisdiccional. Los animales deben estar munidos de derechos fundamentales y una legislación acorde con esos derechos fundamentales que ampare la particular situación en la que se encuentran, de acuerdo con el grado evolutivo que la ciencia ha determinado que pueden alcanzar. No se trata aquí de otorgarles los derechos que poseen los seres humanos sino de aceptar y entender de una buena vez que estos entes son seres vivos sintientes, que son sujetos de derechos y que les asiste, entre otros, el derecho fundamental a nacer, a vivir, a crecer y morir en el medio que les es propio según su especie. No son los animales ni los grandes simios objeto de exposición como una obra de arte creada por el hombre. No podemos soslayar que un gran sector doctrinario se alza en contra del reconocimiento de los animales como sujetos de

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derecho resultando que, para algunos, no se explica cómo sería posible que aquéllos ejerzan sus derechos, en tanto que, para otros, los genes humanos serían aquéllos que determinarían la calidad de sujeto de derecho (especismo excluyente). Entiendo que el primero de los argumentos debe ser rechazado toda vez que la incapacidad de derecho no excluye en la actualidad a aquellos seres humanos que carecen de la capacidad del lenguaje. Tal es el caso del sordomudo, quien no posee la capacidad del lenguaje sonoro y, no obstante, se comunica mediante el lenguaje de señas. Asimismo, podemos incluir dentro de los incapaces de derecho que son seres humanos a los oligofrénicos o dementes. No obstante que una conducta no le puede ser imputada a un ser humano no implica por ello desconocerle su condición de persona, tal es el caso de los recién nacidos. Los derechos de los incapaces los ejercen sus representantes legales, que en el caso de los animales bien podrían ser representados por ONG, por alguno organismo del Estado o por cualquier persona invocando intereses colectivos y/o difusos. En cuanto a la segunda postura, especismo excluyente, considero que los estudios científicos ponen en tela de juicio este argumento en tanto los genes humanos y los genes de los grandes simios son compartidos entre el 94 y el 96%, permitiendo de este modo cuestionarse fuertemente si nuestros genes resultan excluyentes y exclusivos. El maestro civilista Guillermo Borda señala “…En otras palabras la persona no es un producto del derecho, no nace por obra y gracia del Estado; es el “hombre de carne y hueso, el que nace, sufre y muere –sobre todo muere- el que come y bebe y juega y duerme y piensa y quiere”. Aun en las “personas jurídicas” el destinatario último y verdadero de los derechos y obligaciones es siempre el hombre porque el derecho no se da sino entre hombres. Por eso es que el derecho, que no crea esas personas, tampoco podría desconocerlas ni menos aún crear arbitrariamente otras que no fueran el hombre o las entidades en que él desenvuelve sus actividades y sus derechos. No po-

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dría, por ejemplo, reconocer el carácter de personas a animales o cosas inanimadas” (BORDA, Guillermo A., “TRATADO DE DERECHO CIVIL. PARTE GENERAL”, Tomo I, Ed. La Ley, Buenos Aires, 2008, pág. 243) Adhiero a la afirmación expuesta por el autor citado ut supra en tanto señala que la persona –en tanto ser humano- no nace por obra y gracia del derecho o porque el Estado así lo decida. El ser humano es persona, sujeto de derecho, dado que es de carne y hueso, nace, sufre y muere, bebe y juega y duerme y piensa y quiere. La mayoría de los animales y, concretamente, los grandes simios son también de carne hueso, nacen, sufren, beben, juegan, duermen, tienen capacidad de abstracción, quieren, son gregarios, etc. Así, la categoría de sujeto como centro de imputación de normas ( o “sujeto de derecho”) no comprendería únicamente al ser humano sino también a los grandes simios –orangutanes, gorilas, bonobos y chimpancés. Insisto, no se trata entonces de adjudicarles a los grandes simios los derechos enumerados en la ley civil y comercial. Tampoco es función de este órgano de control crear un catálogo de derechos de los grandes simios. Se trata de enmarcar a estos en la categoría de sujetos de derechos no humanos donde realmente pertenecen. Edgardo I. Saux comentando el ya citado fallo de la Cámara Nacional de Casación Penal, citando a Picasso expone: “Y finalmente se pregunta –y lo compartimos: Personificar a los animales ¿No es precisamente poner al hombre en el centro del mundo y erigirlo en amo de la naturaleza? ¿No es una ilusión narcisista? ¿Por qué no pensar en cambio que respetarlos implica dejarlos en paz lo más que se pueda y evitar la crueldad innecesaria para con ellos, en vez de hacerlos involuntarios actores en el teatro del Derecho Humano? Irrefutable”. (La negrilla me pertenece). (SAUX, Edgardo. I, “PERSONIFICACIÓN DE LOS ANIMALES. DEBATE NECESARIO SOBRE EL ALCANCE DE CATEGORIAS

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JURÍDICAS”, Ed. La Ley, Tomo La Ley 2016-B, AÑO LXXX N° 64, Buenos Aires, 2016, pág. 1/5) Este Tribunal se pregunta sí frente al argumento calificado como irrefutable por el doctrinario, ¿No es ya el animal acaso un actor involuntario en el teatro del derecho humano? El interrogante es respondido inmediatamente por cualquier actor social. Los zoológicos son escenarios donde los grandes simios son expuestos a las visitas de los seres humanos los que abonan una suma de dinero para el acceso a estas instituciones. Los grandes simios nacidos en libertad son capturados y vendidos por grandes sumas de dinero, es decir, son un objeto involuntario del derecho. En consecuencia, los animales son actores involuntarios en el teatro del derecho humano. Reconocer a los grandes simios como sujetos de derechos es el mejor acto de inclusión como actores involuntarios en el campo del derecho que puede el ser humano realizar, no como ente narcisista sino en razón de la dignidad de la persona humana, que se erige como un ser que sabe que siente y piensa, y como ser pensante que reacciona y acciona ante este gran fenómeno observable y por demás evidente de que los animales no son cosas. Posteriormente Saux señala que “…Ese correlato biológicojurídico, indestructible e indefectible, se relaciona con facetas de la condición humana que es ajena al mundo animal “no humano”; la libertad y la voluntad. El derecho rige conductas, y las conductas son propias de las personas. Los animales se mueven por instintos, necesidades o hábitos, peros sus supuestas conductas no son judiciables”. Este argumento, reitero, pierde fuerza convictiva y lógica en tanto algunos seres humanos carecen de voluntad y no por ello se los deja de considerar humanos. Más aún, decir que la libertad no es inherente al mundo animal es errado en tanto “la privación de la libertad” a la que se somete el animal no viene dada por naturaleza, es el hombre quien racionalmente captura, caza y coloca en cautiverio a los animales, pero éstos nacen en libertad y es el hombre quien los priva de ella.

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“Es que el hombre tiene una naturaleza que lo pone más allá de su naturaleza: es un ser limitado que tiende constantemente a superar sus propios límites; es un ser organizado en el tiempo y en el espacio que su conciencia intencionada capta y trasciende. Es un ser histórico. Es en la historia que el hombre se hace y rehace continuamente. Historia humana, de otra parte, entretejida con el mundo. Realización del hombre a través de la transformación del mundo. Por esto, los valores deberán ser siempre replanteados, la sociedad debe ser en cada momento reformada: búsqueda incesante tras la meta de la liberación, de la humanización, del ser más. La condición histórica del hombre hace que la educación esté llamada a insertarse en la tarea de conquistar la forma humana que se nos presenta siempre más allá de la actual facticidad. El “aprender a ser” de la educación será, por esto, un proceso constante de liberación del hombre que redundará también en re-creación y transformación del mundo” (DAVID, Pedro, obra citada) Resulta imprescindible resaltar que la Declaración Universal de los Derechos Animales, elaborada en el año 1977 por la UNESCO, y aprobada por la Organización de las Naciones Unidas, les reconoce a los animales derechos y, específicamente en su artículo nro. 4 prevé: “a) Todo animal perteneciente a una especie salvaje, tiene derecho a vivir libre en su propio ambiente natural, terrestre, aéreo o acuático y a reproducirse. b) Toda privación de libertad, incluso aquella que tenga fines educativos, es contraria a este derecho.”. De este modo, en el ámbito internacional, se reconoce expresamente que los grandes simios entre otras especies tienen derecho a vivir en libertad. El hecho que aquí nos ocupa es que en el Zoológico de la Provincia de Mendoza reside la chimpancé Cecilia de 20 años de edad en una jaula de pequeñas dimensiones, donde el sol da en pocas horas del día durante el invierno y acecha calor extremo durante el verano. Este Tribunal realizó una inspección sorpresiva al zoo de Mendoza y constató que Cecilia se encontraba en

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un rincón del recinto dado que allí –únicamente- daba el sol, que el bebedero ubicado en el recinto estaba vacío y Cecilia contaba con unos pocos elementos como pelotas, sogas, ruedas de automóvil, etc., para su entretenimiento. Sin embargo, se pudo observar la triste y penosa imagen de que en las paredes de la jaula, las que eran de cemento, existían dibujos de árboles y arbustos, intentando torpemente imitar el habitad natural del simio. Y se dice torpemente no porque el personal del zoológico no haya cuidado del animal sino porque escapa a las posibilidades financieras y edilicias de esta sociedad, otorgarle a Cecilia un ambiente realmente adecuado. Dicho esto, surge un nuevo interrogante ¿Es una jaula, aun con grandes dimensiones, el lugar adecuado? Y la respuesta negativa brota de forma inmediata. Lo adecuado y correcto es que los hombres, con el grado de razón que nos asiste, cesemos con el cautiverio de los animales para su exposición y entretenimiento de personas, dado que éstos son sujetos de derechos no humanos y como tales poseen el derecho inalienable a vivir en su hábitat, a nacer en libertad y conservarla. Cecilia nació en cautiverio y por ello nos hemos arrogado el derecho de disponer de ella y mantenerla en ese cautiverio para su exposición. Sin embargo debo destacar que las autoridades de la Provincia de Mendoza han reconocido la realidad de que no por ser el hombre un ser inteligente y sentiente –en tanto sabe que siente- puede inferir sufrimiento a otros seres vivos que carecen de esa característica netamente humana (inteligencia sentiente). Las actuales autoridades de la Provincia de Mendoza en su conjunto, en una comprometida colaboración con la problemática que nos aqueja, han atendido a la imperiosa necesidad de ponerle fin al cautiverio de Cecilia mediante su reubicación en el Santuario de Sorocaba y, por tanto, han tomado las acciones necesarias para establecer contactos con las autoridades de Brasil y han obtenido los certificados necesarios para proceder a su traslado a Sorocaba.

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En definitiva, aclarado y expuesto el criterio de este Tribunal el que ha quedado plasmado en la totalidad de los argumentos vertidos en la presente resolución, en tanto los grandes simios son sujetos no humanos de derecho, entiendo que corresponde hacer lugar a la petición de Dr. Pablo Buompadre, presidente de A.F.A.D.A, con el patrocinio letrado del Dr. Santiago Rauek. Finalmente, corresponde reiterar el interrogante que dio comienzo a la presente resolución: ¿Es la acción de habeas corpus la vía procedente? Considero que la respuesta ha de ser afirmativa. Dado que ni la regulación procesal de la provincia ni ley nacional alguna contemplan específicamente una vía procesal para evaluar la situación de animales en estado de encierro en establecimientos zoológicos o de cualquier condición de encierro en contrario a las necesidades básicas y al hábitat natural del animal de que se trate, considero que la acción de habeas corpus es la vía procedente ajustándose la interpretación y la decisión que recaiga a la situación específica de un animal privado de sus derechos esenciales en tanto éstos están representados por las necesidades y condiciones esenciales de la existencia del animal en cuyo favor se acciona. Así las cosas, la acción de habeas corpus, en el caso que nos ocupa, ha de ajustarse estrictamente a preservar el derecho de Cecilia a vivir en un medio ambiente y en las condiciones propias de su especie. Por lo tanto;

Resuelvo: I.- HACER LUGAR A LA ACCIÓN DE HABEAS CORPUS interpuesta por el Dr. Pablo Buompadre, Presidente de la Asociación de Funcionarios y Abogados por los Derechos de los Animales –A.F.A.D.A., con el patrocinio letrado del Dr. Santiago Rauek.

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II.- Declarar a la chimpancé Cecilia, actualmente alojada en el zoológico de la Provincia de Mendoza, sujeto de derecho no humano. III.- Disponer el traslado del chimpancé Cecilia al Santuario de Sorocaba, ubicado en la República del Brasil el que deberá efectuarse antes del inicio del otoño, conforme lo acordado por las partes. IV.- Destacar la colaboración de la Magister Mariana Caram, Directora del Zoológico, Adm. de Parques y Zoológico, el Arq. Ricardo Mariotti, Administrador General, el Lic. Humberto Mingorance, Secretario de Ambiente y Ordenamiento Territorial y el Lic. Eduardo Sosa Jefe de Gabinete de Secretaría de Ambiente, para la resolución del presente caso. V.- Solicitar a los integrantes de la Honorable Legislatura de la Provincia de Mendoza proveer a las autoridades competentes de las herramientas legales necesarias para hacer cesar la grave situación de encierro en condiciones inapropiadas de animales del zoológico tales como el elefante africano, los elefantes asiáticos, leones, tigres, osos pardos, entre otros, y de todas aquellas especies exóticas que no pertenecen al ámbito geográfico y climático de la Provincia de Mendoza. VI.- Recordar las siguientes reflexiones: ““Podemos juzgar el corazón de una persona por la forma en que trata a los animales” (Immanuel Kant). “Hasta que no hayas amado a un animal una parte de tu alma permanecerá dormida” (Anatole France). “Cuando un hombre se apiade de todas las criaturas vivientes, sólo entonces será noble.” (Buda). “La grandeza de una nación y su progreso moral puede ser juzgada por la forma en que sus animales son tratados.” (Gandhi) CUMPLASE. NOTIFIQUESE. REGISTRESE Dra. S. Amalia Yornet

Prosecretaria Secretaria Interina

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