Monografia Em Nome do Decoro

Page 1

Luciana Lima Vasconcelos

Em nome do decoro: o Cearense na construção de uma etiqueta urbana para Fortaleza

Universidade de Fortaleza Fortaleza 2008


ii

Luciana Lima Vasconcelos

Em nome do decoro: o Cearense na construção de uma etiqueta urbana para Fortaleza

Monografia Comunicação

apresentada Social

da

ao

Curso

Universidade

de de

Fortaleza, como requisito para a finalização do curso de graduação. Orientador: Profª. Ms. Ana Elisabete Freitas Jaguaribe

Fortaleza 2008


iii

Em nome do decoro: o Cearense na construção de uma etiqueta urbana para Fortaleza

Monografia apresentada ao curso de Comunicação Social da Universidade de Fortaleza, como requisito parcial para obtenção do grau de bacharel, com habilitação em Jornalismo.

Data de Aprovação: Fortaleza, 26 de junho de 2008 BANCA EXAMINADORA

Profª. Ms. Ana Elisabete Freitas Jaguaribe Orientador

Profª. Drª. Geisa Mattos de Araujo Lima Membro

Profª. Ms. Kátia Regina A. Patrocínio Membro


iv

DEDICATÓRIA Àqueles que me ensinam diariamente o amor genuíno e a escutar a música.


v

AGRADECIMENTOS Aos meus pais, que se esforçaram em proporcionar o melhor da educação, dedicando razoável de seus investimentos financeiros e incentivos ao meu crescimento como estudante, profissional e, sobretudo, como cidadã ética no cumprimento dos meus objetivos. À professora Elisabeth Jaguaribe por ter aceito prontamente a indicação em orientar minhas divagações. Agradeço também por ter sido sempre tão flexível com os meus horários, ainda que isso custasse suas noites e finais de semana, para não prejudicar os horários do meu mundo de trabalho. Obrigada ainda por suas preciosas considerações, sempre tão pertinentes. Aos colaboradores do setor de microfilmagem e periódicos da Biblioteca Pública Governador Menezes Pimentel, Gertrudes, Elmadan, Margarida, Mônica e Zuíla. Registro meus parabéns ao Governo do Estado pela iniciativa de disponibilizar o espaço também nos finais de semana, facilitando o trabalho de pesquisadores que trabalho nos horários comerciais. Também aos funcionários do NUDOC (Núcleo de Documentação Cultural da UFC- Deptº de História), do Arquivo Público do Estado do Ceará e da Academia Cearense de Letras. A Tanísio Vieira, que além de contribuir com seu trabalho de dissertação, foi grande incentivador. À Ana Carla Sabino que, mesmo distante e atarefada com a elaboração de sua tese, foi extremamente atenciosa, indicando trabalhos para a realização desta pesquisa. À minha contraparte masculina, pelo olhar sempre admirado com as mais simples idéias e palavras, pela eterna força nos momentos mais difíceis, de desânimo e cansaço. Pelo amor, carinho e companheirismo e, por fim, incansável compreensão por todas as vezes que foi “trocado” por um texto. A ele também, pela companhia em tardes na Biblioteca, pela ajuda na transcrição de textos do jornal que pesquisei e, sobretudo, pela paciência com os dias de mau-humor.


vi

Ao amigo Leandro Scapellato, que também cedeu algumas tardes de companhia na Biblioteca Pública e transcreveu trechos do jornal, meu muito obrigada. Ao amigo Rodrigo Pinto que cedeu tantas vezes, sem reservas, preciosos livros de sua rica coleção e seu apoio, com indicações e sugestões. Aos amigos Marina Mamede, Marcelo Oliveira, Jakeline Diógenes e Evellyne Matos por tornarem os meus dias de faculdade menos sacais e sempre despenderem palavras de incentivo. Ao amigo Fernando Pinheiro, por sempre dispor do seu tempo para o que quer que eu precise. Às amigas Bruna Benemann, Carolina Melo, Patrícia Gonçalves, Lívia Borges, Rachel Aguiar e Natália Leitão, pelas horas de diversão e pela audição apurada. Ao mestre Sebastião Rogério Pontes, que lançou em mim os raios da curiosidade sobre o tema com suas belíssimas obras sobre a cidade. À minha cidade, que não é natal, mas que foi onde cresci e, com todas as suas imperfeições, aprendi a amar e admirar, por isso tão atraente para o meu olhar inquiridor.


RESUMO VASCONCELOS, Luciana Lima. Em nome do decoro: o Cearense na construção de uma etiqueta urbana para Fortaleza. Monografia. Curso de Comunicação Social. Universidade de Fortaleza. Fortaleza, 2008 O jornal Cearense, como porta-voz de uma elite política, econômica e intelectual, deteve um papel ativo na construção de novas representações urbanas para Fortaleza. A postura conservadora do jornal pregava a elaboração de um novo devir citadino, a partir da medicalização dos espaços e dos comportamentos. A forma pela qual os escritores do periódico, enquanto formadores de opinião, noticiavam a seca e a varíola, mostra que estas eram vistas como uma ameaça à consecução do projeto modernizador que garantiria progresso e civilidade para a urbe. O tratamento temático da dupla-tragédia foi primordial para reforçar a legitimidade do discurso médico-social em Fortaleza e para dar vulto às intensas intervenções urbanas que se seguiram durante a Belle Époque. Respaldados na produção de um conhecimento histórico, científico e literário e apoiados na liderança política da província, o grupo letrado do Cearense julgava-se o juiz supremo da verdade e utilizava as notícias para reforçar suas ambições disciplinadoras. Campo por excelência do ideológico, o jornal se impunha como veículo transmissor do ideário do partido liberal e como lócus privilegiado para educação das massas tidas como indolentes e ignorantes. A metodologia utilizada foi a análise qualitativa do conteúdo em torno das temáticas da seca e da varíola, através do qual foram identificadas cinco categorias que marcam o referencial ideológico da folha: “civilização”, “ilustração”, “higiene”, “moral” e “verdade”. Palavras-chave: Belle Époque, civilização, progresso, reforma urbana, intelectuais.


SUMÁRIO

RESUMO.......................................................................................................... VII INTRODUÇÃO ................................................................................................... 9 REFERENCIAL TEÓRICO............................................................................ 14 AS CIRCUNSTÂNCIAS DA PESQUISA........................................................ 18 1. HISTÓRIA E JORNALISMO: MEMÓRIA SOCIAL E PODER ..................... 20 1.1. JORNAIS COMO FONTES E OBJETOS DE PESQUISA ....................... 25 1.2. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA USO DE JORNAIS COMO FONTE ............................................................................. 29 1.3. ENQUADRAMENTOS DA NOTÍCIA ...................................................... 33 2. BELLE ÉPOQUE: À PROCURA DA PARIS CEARENSE........................... 40 2.1. 1860 A 1930: FORTALEZA DE BELOS TEMPOS .................................. 40 2.2. TEORIAS MÉDICAS EUROPÉIAS: UM NOVO PARADIGMA URBANO 44 2.3. POR UMA ÉTICA ESTÉTICA DA CIDADE: TEORIAS MÉDICAS E O RECEITUÁRIO SOCIAL ............................................................................... 46 2.4. A SECA DE 1877-1879 E OS RENEGADOS DO SERTÃO: ATRASO DO PROGRESSO E DA ORDEM........................................................................ 51 3. PALAVRAS EM CENA: DISCURSO JORNALÍSTICO EM NOME DA CIVILIZAÇÃO .................................................................................................. 59 3.1. COMUNIDADES INTELECTUAIS NA ROMARIA DO PROGRESSO..... 63 3.2. VOZES CEARENSES ............................................................................ 71 3.3. HISTÓRIA DE UM CEARENSE ............................................................. 73 4. NA CONTRAMÃO DA “CALUMNIA”, O CEARENSE NA “VERDADE DOS FACTOS” ......................................................................................................... 79 4.1. VERDADES CEARENSES SOB A ANÁLISE DO CONTEÚDO .............. 80 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................... 110 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .............................................................. 116 ANEXOS ........................................................................................................ 122


INTRODUÇÃO

Quem? O Cearense. O quê? Como influenciou o comportamento urbano. Onde? Em Fortaleza. Quando? Durante o período da Belle Époque, mais especificamente durante o ano de 1879. Como? Através do seu conteúdo jornalístico. Por que? Para fomentar um projeto “civilizador” na cidade. Após anos estudando o ofício do jornalista e tentando colocá-lo em prática, nós, jovens estudantes, somos impelidos ao árduo trabalho de tentar condensar o conhecimento adquirido e adequá-lo a um determinado objeto. Nunca foi tão difícil elaborar um lead, aquilo que primeiro aprendemos nas aulas da faculdade, para chegar até este recorte empírico. Pois bem, desafio lançado e prontamente aceito. Seguem aqui algumas linhas de um estudo tão delicado, já que remonta a um passado relativamente longínquo, e exigente de tão maior aprofundamento, que não cabe nos limites desta monografia, no entanto, ficando este reservado para um momento posterior da trajetória acadêmica. A realização deste estudo teve por fim a análise da gama de discursos do periódico Cearense que se voltavam para as práticas e tentativas de reordenação urbana e social de Fortaleza, durante a Belle Époque, relacionados fundamentalmente à seca de 1877 a 1879, período precedido de uma epidemia de varíola que acometeu milhares de cearenses. O destaque conferido ao jornal Cearense justifica-se pelo fato do mesmo se constituir como um dos veículos mais lidos à época, como aponta Fernandes (2004). Além disso, este, que se pretendia caracterizar como liberal1, trazia, na prática, uma fala conservadora e ambiciosa, que, aparentemente, intentava participar ativamente da implantação de um arrojado projeto para a cidade, com vistas à garantia de progresso e moralidade. A pesquisa incidiria, inicialmente, sobre como o Cearense noticiou a morte de mais de mil pessoas em apenas um dia na capital, fato que ficou 1

A filosofia liberal preconiza, sobretudo, a liberdade individual e a mínima intervenção do Estado na sociedade. A idéia predominante dessa doutrina/corrente política é a maximização da liberdade individual mediante o exercício dos direitos e da lei, visando a uma sociedade caracterizada pela livre iniciativa, pelo livre mercado e pela liberdade de expressão.


10

conhecido como Dia dos Mil Mortos, de acordo com Ponte (2001). A verificação do material disponível, no entanto, fez necessária a mudança do período pesquisado. Nos exemplares do Cearense, que só encontram-se disponíveis e microfilmados na Biblioteca Pública Menezes Pimentel, não constam os números do ano de 1878. Optei, portanto, pelos exemplares que logo se seguiram ao acontecimento, passando para o ano de 1879. Para fins analíticos da pesquisa, o estudo contemplou os exemplares do jornal Cearense durante os três primeiros meses de 1879, que se seguiram ao Dia dos Mil Mortos, período que marca o último ano da tragédia que assolou o Ceará, com a ocorrência simultânea da seca e da epidemia. Juntas, estas emergiam como uma ameaça ao êxito do projeto modernizador da cidade e reforçavam ainda mais a força das falas ilustradas, que se exprimiam principalmente nos jornais. Parti do pressuposto de que o jornal, como veículo de promoção e disseminação de idéias, sendo à época o veículo porta-voz do grupo liberal no governo, se constituiu como importante vetor de instauração de uma nova etiqueta urbano-social em Fortaleza, inspirada nos “modernos ares” europeus, principalmente nos modelos parisienses de arquitetura, costumes, hábitos, comportamentos, etc. Busquei então averiguar como essa ordenação do ethos social fortalezense aparece no referido periódico a partir do tratamento temático da seca e da varíola. Considerei de extrema importância enunciar, num primeiro capítulo, noções acerca da confluência entre os saberes historiográficos e jornalísticos, visto que o apoio de estudos em História foram cruciais para o desenrolar desta monografia em Comunicação e que esses dois campos estão cada vez mais imbricados um ao outro. Apoiada nos trabalhos de outros pesquisadores, tentei mostrar o que existe de comum entre essas diferentes áreas. Abordo também algumas questões que muitas vezes nos passam despercebidas, mas que são primordiais para a tomada de zelo nos procedimentos metodológicos àqueles que tomam o jornal como objeto e fonte de pesquisa. Faço aí uma breve discussão a respeito do uso de jornais em pesquisas científicas de História, bem como da formação de estudos históricos sobre a imprensa no Brasil.


11

Exponho ainda alguns postulados sobre os passos metodológicos e questões fundamentais para análise de periódicos. Exponho ainda alguns postulados sobre os passos metodológicos e questões fundamentais para análise de periódicos. Outro elemento que direcionou a compreensão acerca de como se dá o noticiamento de um determinado fato, neste caso da seca/varíola em 1879, foi o estudo dos critérios de noticiabilidade, também apontados por alguns estudiosos como valores-notícia. Discorro sobre esses aspectos que permitiram apreender melhor a lógica de veiculação do tema naquele período. Num segundo momento, faço uma contextualização histórica da capital cearense, abordando os principais acontecimentos que marcaram o período da Belle Époque e, em especial, a década de 70 do século XIX. Falarse-á sobre a adoção do projeto modernizador para a cidade, encabeçado, principalmente, pelas elites políticas, econômicas e intelectuais de Fortaleza, que prescrevia a medicalização dos espaços e dos comportamentos. São apresentadas e discutidas as idéias, práticas médicas e ações administrativas adotadas durante este período. Conhecido como o tempo de ouro da cidade, quando se dão as principais mudanças estruturais, políticas, econômicas e sociais e Fortaleza experimenta um inédito crescimento, compreende as décadas de 1860 a 1930, conforme Ponte (2001). É durante este momento, especialmente a partir de 1870, que as elites e o poder público tomam para si a responsabilidade de instaurar na urbe alencarina as bases para o desígnio progressista e civilizatório. É justamente no final desta década que as principais transformações que marcariam a Belle Époque, em Fortaleza, tomam vulto. As leituras mostraram que a influência do discurso

médico-social

advindo

da

Europa

foram

cruciais

para

o

desenvolvimento de novas idéias, práticas e comportamentos desejosos de uma moral e assepsia representativas de uma nova realidade, civilizada, para a cidade. Foi quando o embelezamento da capital, com a reforma de praças, arborização e iluminação das vias e construção de novas edificações, acompanhado de um bio-poder médico, exercido sobre o corpo social, determinou um novo modo de convívio urbano, um novo cotidiano que


12

vingasse uma cidade asséptica e educada. São introjetados hábitos, cuidados higiênicos e ideais morais e cívicos. Neste sentido, a seca e a varíola colocavam-se como um retrocesso ao desenvolvimento alcançado até então. O terceiro capítulo traz um apanhado sobre o papel dos periódicos nesse processo pedagógico e sobre a história das comunidades letradas em Fortaleza, bem como sobre a lógica intelectual que permeava a atividade jornalística desses representantes ilustrados, sendo grande parcela formada por políticos. Os jornais se colocavam, desse modo, como vetor de comunicação e sentido, sendo suportes materiais preciosos ao olhar histórico sobre a urbe em seu processo de formação e normatização das condutas sociais, na medida em que veiculavam uma mensagem pretensiosa a gerir movimentos, ritmos, gestos e palavras. Assim sendo, foram responsáveis, em grande parte, pela apreensão e domínio dos códigos culturais e de representação simbólica, por isso, dispositivos de afirmação de tendências e autodisciplina. Para apreender o fio condutor da cobertura noticiosa do jornal Cearense, faço também um estudo histórico sobre os personagens que o fizeram, seus objetivos e visões e ainda sobre o conteúdo e a forma do órgão. Para isso, foi necessário, primeiramente, conhecer o lugar de produção do veículo, compreendendo quem fala, como fala e para quem fala. Aliado aos conhecimentos sobre os valores-notícia, pude alcançar uma melhor apreensão da lógica que dirigia o jornal Cearense e o tratamento temático da tragédia causada pela seca e pela varíola, que perduraram entre os anos de 1877 e 1879, que compreendo ter respaldado ainda mais o discurso higienista na cidade. Finalmente, adentro na análise da importância do veículo no processo

de

consolidação

das

transformações

dos

costumes

e

da

infraestrutura da cidade, sempre a fim de atingir valores éticos, morais, saudáveis e higiênicos. A influência do discurso jornalístico do Cearense na (re)elaboração do procedimento urbano e na divulgação da Fortaleza pretendida pelas camadas mais abastadas será o tema tratado no quarto capítulo. A ênfase foi sobre o papel do periódico no processo de difusão dos


13

ideais progressistas que se desenhavam para a urbe alencarina, visto que o jornal, como veículo de comunicação transmissor de mensagens, aproveitava da

visibilidade

para

defender

e

justificar

as

reformas

urbanas

e

comportamentais, assim como para ridicularizar aqueles que não seguiam os ideais aspirados e comentar as ações administrativas, ou a falta delas, no que diz respeito à adoção dos princípios “modernos” e civilizados. Enveredei pelos meandros da participação jornalística na construção de uma etiqueta urbana para Fortaleza. Mais especificamente, pretendi aferir a participação do Cearense na disseminação de um discurso que ambicionava impor esse projeto elitista para toda a cidade. A intenção deste estudo emergiu do profundo fascínio pela nossa história e do desejo de conhecê-la mais profundamente. Tentou-se aqui fazer uma reconstrução histórica do período vivido pelos nossos antepassados para entender a atual configuração sócio-espacial da nossa cidade. A paixão por esta Fortaleza e pela sua história foi o principal motivador destes escritos. Observar os comportamentos, espaços, gostos e idéias da atualidade e confrontá-los com o que se faz descrito nos livros de memorialistas e historiadores provoca a sede de conhecimento desse processo de modelação. Espero contribuir, de alguma forma, para os estudos acadêmicos sobre os jornais cearenses, que têm conquistado uma relevância cada vez maior na compreensão dos universos cultural, educacional, político e histórico da cidade nas pesquisas. Além do jornal, como objeto e fonte de análise, considero de extrema importância o cruzamento de informações, com a utilização de outras fontes. Assim sendo, utilizo também, como material de apoio, inúmeros outros documentos, como os diários oficiais do Estado do Ceará, o Código de Posturas de Fortaleza, relatórios da Inspetoria de Higiene Pública do Ceará, da Intendência Municipal, da Secretaria de Polícia e de Obras Públicas. Pesquiso também revistas do Instituto do Ceará, da Academia Cearense de Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, além de Revistas de História e de Comunicação Social. Predominam as chamadas “fontes oficiais”, embora


14

alertemos, no primeiro capítulo, para a necessidade de uma postura menos conservadora, com o reconhecimento da relevância de fontes alternativas, que procuram o escondido, o não-dito, o intraduzível naquilo que está à margem das narrativas oficiais, muitas vezes desconsideradas pela tradição acadêmica, como a própria imprensa que só muito recentemente recebeu acolhida nos estudos acadêmicos. Além de uma vasta pesquisa bibliográfica, acredito na importância da fidelidade memorialista e sentimental de homens que relataram esses acontecimentos também em crônicas e romances, importantes fontes de revelação dos detalhes da época. Defendo que inventários, material iconográfico, relatos orais e biografias são também importantes fontes documentais para o desenvolvimento deste e de qualquer outro trabalho. As fontes que possibilitaram a execução deste ensaio foram variadas. Contei com dados de trabalhos acadêmicos, fontes periódicas, além da literatura regional, que enfocaram o Ceará daquele período como narrativa nos trabalhos, a exemplo de Adolfo Caminha, Rodolfo Teófilo, Antônio Bezerra e Raimundo Girão.

REFERENCIAL TEÓRICO Muitos cuidados metodológicos para quem navega na “pororoca” da História com o Jornalismo são apontados neste trabalho. Ao contrário do que parece, a consonância dos dois saberes envolve rigorosos critérios de análise, posto que é preciso atentar para o uso das fontes. Tomamos, por muitas vezes, as fontes oficiais como sepulcros de verdade, porém, como almejamos irromper neste trabalho, é também preciso questioná-las, não diminuindo o seu valor para os estudos, mas estando sempre alerta para o seu caráter subjetivo, na medida em que, como qualquer outro documento, são mediadas pela percepção da realidade de quem as escreve. Os jornais, que têm sido cada vez mais tomados como fonte e objeto de pesquisa, passam pelo mesmo processo. Antes de serem vistos como


15

representantes de uma história ocorrida, estes são também objetos que remontam a uma percepção e passam antes por uma lente ideológica, social, econômica, cultural e técnica. Para adentramos na análise de como o jornal Cearense noticiava a seca em 1879, seguida pela epidemia de varíola que vitimou milhares de fortalezenses e sertanejos que vinham procurar socorros na capital, e como, a partir disso, legitimava seu discurso em torno das mudanças urbanas e sociais para Fortaleza, considero fundamental compreendermos como se dá o processo de elaboração da notícia. Norteei-me, portanto, numa breve incursão nos critérios de noticiabilidade, trabalhados pelos autores Mauro Wolf e Nelson Traquina. Como recurso metodológico, utilizo nesta pesquisa a análise de conteúdo do jornal Cearense, a partir de uma perspectiva qualitativa, analisando

o

tratamento

temático

do

fenômeno

seca/varíola

sob

o

aparecimento de determinados termos, construções e referências nos textos do referido periódico, que podem ser simplificados na recorrência de categorias que identifiquei como: civilização, ilustração, higiene, moral e verdade. A partir da análise temática, busquei apreender as representações sociais do jornal sobre o novo comportamento citadino almejado, muitas vezes presente em aspectos subjacentes e implícitos de mensagem. Seguindo os passos da metodologia da análise de conteúdo, formulei a hipótese de que o jornal Cearense deteve um papel ativo no desenho de um novo modo urbano e social para Fortaleza, que ganha maior relevo, com a necessidade de posturas higienizadoras, principalmente após a morte de milhares de cearenses pela epidemia e pela seca que assolavam o Ceará. O corpus do estudo foi definido de acordo com o material disponível para análise. Para tanto, coletei uma amostra de todos os exemplares disponíveis do jornal Cearense na Biblioteca Pública Menezes Pimentel durante os meses de janeiro a abril de 1879, o primeiro trimestre decorrente do Dia dos Mil Mortos. Como a Biblioteca não dispõe de nenhum exemplar do mês de março de 1879, ative-me a pesquisar os números disponíveis dos meses de


16

janeiro, fevereiro e abril. Ao todo, foram analisados 12 números2. De janeiro, os exemplares dos dias 26 (faltam páginas 1 e 2), 29 e 31. De fevereiro, os números dos dias 2 e 5. Devido a uma mutilação, a data de um exemplar não pôde ser identificada, deixando-nos a dúvida se pertencente ao mês de fevereiro ou abril. Deste último, foram pesquisados os exemplares dos dias 18 (faltam páginas 3 e 4), 20, 23, 26, 27 e 30. A definição das unidades de análise foi o passo mais problemático para esta pesquisadora iniciante. A recorrência ideal de material para este recorte seria, normalmente, a análise dos editoriais do jornal, onde a opinião e a ideologia que permeiam a produção do veículo é, geralmente, dada de forma bastante clara. Durante o período pesquisado, entretanto, um liberal3 encontrase na presidência da província do Ceará e grande parte do periódico passa a ser lócus de comunicação oficiosa do governo, além de comentários sobre as ações e determinações do presidente. Assim sendo, optei por fazer uma análise do tratamento temático da seca/varíola nas diversas seções do jornal, onde busquei aferir a ocorrência de mensagens implícitas e/ou explícitas de defesa desse novo plano sócio-urbano para Fortaleza. Essa metodologia pode ser definida como: (...) um conjunto de técnicas de análise das comunicações que, através de procedimentos sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, visa obter indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência deconhecimentos relativos às condições de produção e de recepção (variáveis inferidas) destas mensagens. (Bardin apud FREITAS, 2000: 47)

2

Faltam no setor de microfilmagem os números do mês de janeiro: dia 08 ao dia 24 nº 1 a 8, de fevereiro: dia 9 ao dia 28 – nº 15 a 23, todo o mês de março, e de abril: dias 2 a 16 – nº 35 a 40 3 José Júlio d´Albuquerque Barros, nascido em 11 de maio de 1841, em Sobral, era conhecido como Barão de Sobral, filho do Dr. João Fernandes de Barros e D. Luíza Amélia de Albuquerque Barros. Foi nomeado Presidente da Província do Ceará em decreto de 9 de fevereiro de 1878 e exonerado a pedido por decreto de 4 de maio de 1880.


17

Para Freitas (2000), o analista de conteúdo trabalha tal qual um arqueólogo que procura a manifestação de estados, dados, características ou fenômenos, manipulando esse material por inferência de conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou pelo conhecimento do assunto estudado de forma a obter resultados significativos a partir dos dados. O estudioso postula que a análise deve proceder segundo regras pré-estabelecidas, obedecendo a diretrizes suficientemente claras e precisas de forma a propiciar que diferentes analistas, trabalhando sobre o mesmo conteúdo, obtenham os mesmos resultados. A decomposição deve ser também sistemática, com o uso de categorias bem fundamentadas. Para os fins desta pesquisa, detenho-me num estudo qualitativo dos textos, privilegiando a cobertura temática do recorte eleito. Como propósito de investigação, relata Freitas (2000), a análise de conteúdo pode ser descrita como a determinação de características de comunicação que questionam “o quê”, “como” ou “de quem” é dito algo, e ainda a

inferência

dos

antecedentes

desta

comunicação,

que

envolve

o

questionamento de “por qual razão” algo é dito, e sobre os seus efeitos, questionando “com que intenção alguém disse tal coisa”. Em qualquer que seja a comunicação, existe um emissor que lança uma mensagem num dado conteúdo e forma, com um dado fim, e endereçada a um ou vários receptores. São esses elementos que busquei a partir da análise de conteúdo. Para isso, utilizei-me da decomposição do texto, que será estudado como uma função das idéias que ele representa. A escolha das palavras e o ritmo do discurso, por exemplo, podem, neste sentido, se mostrar bastante reveladores. A variedade de fontes possibilita inúmeras opções de modelos para exploração, processamento e análise de dados. Como já foi dito, optei pela crítica qualitativa indireta que, além de decompor o que se tem como resultado claro e manifesto, permite obter, por inferência, o que se encontra latente, uma interpretação mais sutil sob a linguagem explícita utilizada no texto. Orientada pelos pressupostos de Herscovitz (2007), me empreendi na análise do conteúdo do referido periódico, que segundo a teórica, nos ajuda a entender um pouco mais sobre quem produz e quem recebe a notícia, bem


18

como

a

estabelecer alguns

padrões

culturais

implícitos

e

a

lógica

organizacional por trás das mensagens, desvendando os significados aparentes e/ou implícitos dos signos e das narrativas jornalísticas ao expor seus conflitos, interesses, ambigüidades e ideologias presentes nos materiais examinados. Parti da hipótese de que o jornal Cearense, idealizado por indivíduos letrados e posicionados favoravelmente nas esferas econômica, social e política da sociedade, era utilizado como veículo de disseminação do discurso médico-social em Fortaleza e, por conseguinte, das mudanças na estrutura física e social da cidade.

AS CIRCUNSTÂNCIAS DA PESQUISA As

dificuldades

de

efetivação

deste

trabalho

deveram-se,

principalmente, à falta de tempo disponível para realização de uma investigação rigorosa, como era desejado. Um trabalho bem fundamentado exige um mínimo de aprofundamento, um verdadeiro mergulho nos dados de que dispomos e nas incansáveis leituras da bibliografia disponível sobre o assunto. Procurei trabalhar nesta perspectiva. Infelizmente o mundo do trabalho nos consome de tal forma que nos impede de radicalizar nesta dedicação. A maior dificuldade, sem sombra de dúvidas, foi a seleção de um objeto de pesquisa dentro da variada gama de possibilidades que temos dentro das pesquisas em Comunicação. Ainda depois de definido o objeto, contamos com o enquadramento, o recorte, e a tentativa de delinear como será o modus operandi da análise. Se por um lado o vasto leque de possibilidades se coloca como uma vantagem, tanto mais difícil se impõe a escolha do nosso foco. Entra aí mais um obstáculo: o material disponível para nos empreendermos nessa grande viagem. Tive grande dificuldade de acesso ao conteúdo dos exemplares do jornal Cearense. Além do já citado fator tempo, tive que nadar contra a maré da falta de conservação e disponibilização desses


19

periódicos, que somente são encontrados no setor de microfilmagem da Biblioteca Pública Menezes Pimentel. Além de certa precariedade do maquinário de visualização dessas fontes, não consegui acesso a alguns anos importantes. Como afirmei anteriormente, minha pesquisa seria inicialmente sobre o ano de 1878, quando numa terrível epidemia de varíola foram acometidas, em apenas um dia, mais de mil pessoas, o que acredito ter sido basilar para reforço e legitimidade do novo projeto urbano desenhado para Fortaleza, como mostraremos a seguir. O período, entretanto, não está disponível nos arquivos da Biblioteca. Decidi, portanto, partir para o período de 1879, pouco após o ocorrido. Ainda assim, no microfilme encontrado, faltam muitas edições do periódico e das que constam, muitas encontram-se mutiladas e de difícil legibilidade. A leitura do material requereu enorme esforço e despendeu bastante tempo. Sem possibilidades de pesquisa em horário comercial, quando a Biblioteca dispõe de um maior número de profissionais e maior movimento, tive que fazer uso do espaço nos horários noturnos e nos finais de semana. Relato com pesar que neste período, porém, a Biblioteca é ausente de um efetivo que garanta a segurança do local, causando certa tensão, muitas vezes acrescida pelo alerta dos próprios funcionários. Apreender o “dialeto” dos meus pesquisados, com um vocabulário bem

mais

denso

e

grafia

bem

diferente

da

que

adotamos

na

contemporaneidade, foi uma dificuldade particular. Para auxiliar a construção do meu pensamento acerca do objeto foi preponderante a relação dialógica que estabeleci com alguns textos que orientaram a lógica que segui na apresentação dessa reflexão coletiva. Sim, pois como afirma Souza & Neves (2002:apresentação), “apesar da escrita individual, todo trabalho acadêmico é coletivo”.


20

1. HISTÓRIA E JORNALISMO: MEMÓRIA SOCIAL E PODER

Antes de adentrar no cerne deste trabalho, considero de extrema importância levantar algumas questões acerca das operações que envolvem a construção dos fatos sociais como objetos de análise. Melhor dizendo, abordo alguns aspectos que devem ser considerados no processo de investigação do que se coloca como fato/objeto da pesquisa e como este é investido de sentido. Ribeiro (2000) nos ajuda, por exemplo, a refletir sobre elementos referentes aos lugares sociais de produção de conhecimento e às práticas do pesquisador. Assim, entender as operações discursivas de atribuição de sentido aos fatos é fundamental para compreender como os meios de comunicação, em particular os jornais, se legitimam como lugar social de produção de saber e pesquisa. Num

passado

não

tão

longínquo,

entretanto,

os

jornais

permaneceram por muito tempo relegados à marginalidade, no que tange à tradição das pesquisas científicas. Muito já se avançou num sentido de maior flexibilidade no seu uso como fonte, com o aparecimento de paradigmas “modernos”, que propõem a pluralidade de opções e consideração de falas “não oficiais”, mas há que se reconhecer a persistência de uma centralidade na documentação escrita. A interação entre os campos da História e do Jornalismo é dada tanto no que diz respeito ao campo das práticas sociais, como no campo científico-acadêmico. Segundo Romancini (2007), a interdisciplinaridade emerge nas práticas sociais devido ao papel do jornalista como relator dos fatos, portanto, de construtor de uma “história imediata”, bem como no campo teórico-acadêmico pela utilização dos jornais como fonte de pesquisa por parte dos historiadores e pelo uso de conhecimentos históricos em pesquisas jornalísticas. Historicamente, o estudo de fontes revela que o modelo de técnica e método das ciências físicas foi transposto para a elaboração dos métodos de outras ciências, como a própria História. Somente a partir do século XIX que esse campo sofreu uma profissionalização do e no fazer historiográfico, o que


21

provocou discussões sobre a necessidade de reconhecimento de certo relativismo na prática histórica, posto que o pesquisador, ao olhar para os fatos a partir de um determinado modelo teórico, apresenta uma versão do fato, sendo de certa forma improvável uma retratação tal e qual dos acontecimentos. Esta noção não exclui, a destarte, a imperatividade de rigor e fidelidade às fontes. Estas podem ser entendidas como todo o legado material e imaterial que serve de base para a construção do conhecimento científico. Algumas correntes de pensamento se debruçaram sobre as fontes de pesquisa. Segundo

o

paradigma

positivista,

para

adquirir

status

de

cientificidade, a análise só é válida se for realizada por meio de documentos originados de “autoridades constituídas”. A documentação privilegiada é aquela produzida pelos governos, devido a uma suposta autenticidade e confiabilidade. Esse caráter verticalizado da história proposta pela corrente positivista suscita inúmeras críticas. Dentre as principais, a necessidade de superação da mera descrição dos acontecimentos por uma análise estrutural que contemple uma maior complexidade, como os mecanismos que presidem as mudanças históricas. O marxismo refuta as noções positivistas, de modo que advogando em defesa de documentos estritamente oficiais, o pesquisador construiria uma história também oficial, a qual descartaria a voz de outros atores sociais. Assim, muitos historiadores preferem falar de “vestígios” no lugar de “documentos” ao tratar de fontes, denotando a idéia de ultrapassagem dos limites impostos por documentos meramente oficiais. O conceito de fontes vai sendo então modificado, quando o marxismo contesta a possibilidade de total objetividade na construção da história, ainda no século XIX. Como pressuposto básico, a corrente marxista afirma que todo historiador está “preso” à classe de onde é originado. Esses paradigmas influenciaram ainda o campo da interpretação e análise dos materialistas históricos e dos annales. Segundo Alves (2007), a Escola de Annales, grupo francês de pesquisadores que criaram a revista de mesmo nome, em 1929, como Lucien Febvre, Marc Bloch e Fernand Braudel, vai contribuir enormemente para os


22

estudos históricos, trazendo novos objetos, enfoques e métodos a partir de uma perspectiva mais ampla. O fato histórico deixa de ser compreendido como real e verídico através do documento, não sendo mais este o anunciador da verdade absoluta do passado. Para a história interpretativa, mais importante do que os documentos são as perguntas que o historiador lhe remete e a crítica documental, sem desconsiderar a sua origem e a ligação com a sociedade que o produziu. O respeito sagrado pelo documento [da história positivista] desaparece e com ele o mito do historiador-cientista, dono da verdade absoluta. Desta forma, sua tarefa [do pesquisador, sob paradigmas “modernos” ou “pós-modernos”] se tornou mais complicada. Antes dele se exigia coleta, crítica e organização das fontes; agora deve questionar e analisar seu instrumento básico de trabalho”. (CAPELATO apud ROMANCINI, 2000:34)

As discussões sobre fonte/documento são ainda mais expandidas pelos adeptos da Nova História, segundo a qual a imagem passa a ter inestimável valor para as pesquisas e diferentes objetos e escritos passam a se constituir como referencial histórico. Em princípio, a História é definida pelo senso comum como a ciência que estuda os fatos históricos, mas o que seriam exatamente esses fatos históricos? Ribeiro (2000) define a categoria como um acontecimento que estabelece relação com outros eventos, numa espécie de cadeia causal, relacionado a fatos que o antecederam e procederam, por isso, somente pode ser inteligível quando confrontado num amplo contexto. A pesquisadora nos alerta, ainda, que inexistem fatos que falem por si só, pois sua enunciação já traz como pano de fundo uma elaboração de sentido que lhe é anterior: Não existe fato histórico “bruto”. Ele é sempre produto de algum tipo de elaboração teórica, que o promove à categoria de histórico. Pressupõe um sistema de referência e uma teoria, nos quadros dos quais operam-se a seleção e a valorização dos acontecimentos e processos. Selecionar, relacionar e valorizar são operações de construção de sentido, impossíveis sem a intervenção dos sujeitos – no caso da ciência histórica, os historiadores. (RIBEIRO, 2000:26)


23

Podemos dizer, portanto, que a produção de conhecimentos históricos não pode jamais superar de todo uma certa dimensão subjetiva, como elucida Schaff apud Ribeiro (2000). As supostas conclusões sobre os fatos são, antes de tudo, provisórias, o que não impossibilita, entretanto, o conhecimento objetivo da realidade. Este é, sim, limitado no que se refere a um processo cognitivo, mas possível quando inserido num processo permanente de formulação. Como qualquer enunciador, um pesquisador dialoga com correntes específicas, seleciona, privilegia fontes em relação a outras, daí seu papel ativo na construção semiológica. Trata-se de um trabalho de manipulação do material significante para transformá-lo em objeto histórico. Quando falo em manipulação não me refiro ao conceito pejorativo de falsear, e sim ao sentido de operação técnica. Em última instância, há sempre uma “mediação” entre a realidade e a percepção dos indivíduos sobre esta, ou seja, entre os fatos e o significado que este assume no discurso dos agentes. Ribeiro (2000) refuta a idéia de que seriam, neste caso, duas realidades disformes, mas intrínsecas uma à outra. As obras que assumem o papel de relatar a história, ao intentar uma inteligibilidade sobre o passado, produzem sentidos sempre correlatos a um papel dos agentes que as elaboram. Não se pretende aqui, de forma alguma, desacreditar a veracidade dos relatos científicos sobre a História, menos ainda diminuir a sua importância, mas atentar para uma questão muitas vezes despercebida. Outro ponto primordial é que essa “subjetividade” intrínseca ao objeto não se mede apenas pelo seu caráter individual, mas também pela posição histórica e social ocupada pelo estudioso num âmbito coletivo de produção de conhecimento. O trabalho de Certeau (1988) é esclarecedor quando afirma que os ofícios do historiador, na construção significativa de um relato, são, na verdade, fruto da combinação entre “lugares sociais” e de “práticas científicas”. Os primeiros seriam os lugares socioeconômicos, políticos e históricos de produção, por excelência, que, adequados a uma tipologia de interesses, instauram um método e definem o que se configura ou não como fato histórico para a “prática científica”, o exercício da pesquisa.


24

Para a construção do objeto teórico, o historiador trabalha a partir de fontes, as matérias-primas a priori já investidas de sentido, deslocando essas informações de uma região de cultura para outra, ou seja, dos arquivos, coleções, recordações, etc., para os relatos historiográficos. Estes, por sua vez, assumem um papel fundamental na estruturação da memória coletiva, definida, segundo Bosi (1987), como a referência comum que mantém a coesão dos grupos. Essa memória coletiva é, portanto, instrumento de poder. Os relatos históricos funcionam como um dispositivo de constituição da memória coletiva e, sendo respaldados pelos lugares sociais, como as academias, colocam-se como uma memória oficial, em detrimento de memórias subterrâneas, caladas pela visão sobressaída, já que qualquer processo construtivo de memória pressupõe um enquadramento, uma seleção. Há, de um lado, uma memória oficial, que, ao selecionar e ordenar os fatos segundo certos critérios, se constrói sobre zonas de sombras, silêncios, esquecimentos e repressões. De outro lado, há, opondo-se à oficial, várias memórias coletivas subterrâneas, que, seja nos quadros familiares, em associações ou em grupos étnicos, culturais ou políticos, transmitem e conservam lembranças proibidas ou simplesmente ignoradas pela visão dominante. (RIBEIRO, 2000:31)

A História sempre desempenhou um papel fundamental na formalização da memória social já que, como afirma Ribeiro (2000), sempre manteve uma relação íntima com o discurso do poder, mas também porque conseguiu se legitimar como principal discurso semantizador dos fatos. Neste sentido, contudo, a História tem perdido cada vez mais lugar de destaque para os meios de comunicação. Estes se colocam, já há um certo tempo, como lugares de memória e construção das representações sociais. Sobretudo o discurso jornalístico, lugar em que se dão as principais significações das transformações do social, e que ocupa um espaço quase que institucional na produção de enunciados em relação à realidade social. Como afirma Nora (1995), os positivistas foram responsáveis pela santificação, com o selo da ciência, de uma tradição que faz do historiador o grande juiz do acontecimento, aquele que detém o poder de conferir ou não o


25

status de “fato” a um dado evento. Esse monopólio da história teria, no entanto, sido perdido para os mass media, somente através dos quais agora é dada a “possibilidade” de um acontecimento marcar sua presença nas sociedades contemporâneas, o que ele definiu como o “retorno ao fato”. Para Ribeiro (2000), essa tarefa dos jornais tem sido cada vez mais aceita pelo consenso da sociedade, de modo que o que passa ao largo da mídia é considerado fato sem importância. A pesquisadora defende que isso se dá em razão do mito da neutralidade e da imparcialidade, que surgiu em meados do século XIX, com a proposição do “jornalismo informativo”, como se o jornalista fosse um agente neutro e desinteressado e o seu discurso revestido de uma “aura de fidelidade aos fatos”. Por isso o estatuto de “porta-voz das verdades”. Daí a zona de convergência entre as práticas históricas e jornalísticas, hoje cada vez mais imbricadas uma à outra. Assim como os historiadores, os jornalistas se impõem como importantes agentes de produção histórica, tanto por enquadrar os fatos relevantes para a posteridade, e que por isso devem ser memoráveis, quanto pelo fato de se constituir como um dos principais meios de registro do tempo, sendo “testemunha ocular da história”. Contudo, é preciso atentar: Sabemos, entretanto, que nenhum registro é ingênuo ou descomprometido. Nenhum registro apenas registra. Todo ele pressupõe o trabalho da linguagem, pressupõe uma tomada de posição dos sujeitos sociais. Todo registro é discurso e possui, assim, um mecanismo ideológico próprio, uma forma de funcionamento particular. (RIBEIRO, 2000:38)

1.1. JORNAIS COMO FONTES E OBJETOS DE PESQUISA

É somente a partir da segunda metade do século XIX que vai se delineando uma história da imprensa brasileira. A pesquisa mais sistemática fica a cargo, principalmente, dos Institutos Históricos e Geográficos do país. São feitos levantamentos sobre jornais e sínteses descritivas, numa


26

perspectiva bem tradicional, relatorial e cronologista, aponta Romancini (2007). pesquisador revela ainda que é somente a partir de 1970 que surgem trabalhos mais aprofundados. O uso de jornais como fonte de pesquisa provoca inúmeras querelas e até hoje é questionado. Uma das razões se deve ao fato de serem considerados suspeitos, justamente pelas questões levantadas acima. A superação das noções históricas positivistas, segundo as quais apenas os materiais oficiais ou tradicionais seriam válidos, alarga a concepção acerca das fontes, de modo que todo documento torne-se passível de fonte de pesquisa, ainda que nenhum discurso seja mero reflexo da realidade e passe, primeiramente, por uma ação transformadora da linguagem. Lembrando que o real e o sentido não se excluem, tomando diferentes dimensões, são, ao contrário, dependentes um do outro. O debate no Brasil sobre a presença dos jornais no trabalho do historiador é parte constituinte do momento de mudanças na compreensão do documento e da própria concepção de História. A superação de uma pretensa objetividade histórica de submissão do historiador ao documento permitiu que expressões recorrentes como “deu no jornal é verdade” pudessem ser repensadas. Por outro lado, a compreensão da história como ciência em construção, passível de interpretações díspares a partir de fontes, abordagens e problemáticas diferentes, comprometeu o argumento da parcialidade dos jornais como empecilho para sua utilização na pesquisa histórica. Os historiadores, hoje, percebem que seu campo de atuação é amplo, mas impreciso; e todas as veleidades de uma “verdade histórica absoluta” se perderam nas brumas da própria experiência histórica das diferentes sociedades. As diferenças mostram os limites, e é através do confronto entre as várias versões que a validade do conhecimento histórico se constrói. (SOUZA; NEVES, 2002: apresentação)

Para Ribeiro (2000), a solução para compreender o funcionamento da produção das representações sociais pelos periódicos seria dada via Semiologia. Lembrando sempre que o discurso nunca é, segundo ela,


27

monológico. Trata-se de uma zona sempre tensional e encará-lo como mero reflexo da ideologia de seus produtores seria um tanto ingênuo. Para a realização deste trabalho, parto do pressuposto de que, apesar de considerar imprescindível a atenção para as subjetividades inerentes à produção histórica através dos jornais, considero os periódicos como importante fonte de conhecimento de uma realidade, portanto, objetos válidos e preciosos para pesquisa que, no entanto, exige certo cuidado nos procedimentos. Gradativamente, a imprensa vai ganhando espaço como fonte e objeto de pesquisa no desnudamento de discursos e jogos de interesses que ela, veladamente ou não, revela. Para ganho de importância, a diversificação das temáticas historiográficas, a partir da segunda metade do século XX, foi fundamental. A desconstrução do conteúdo veiculado nos jornais é o que permite a identificação do discurso. Esta busca é denunciadora de um espaço onde se travam relações de poder que, embora vistas superficialmente, a partir dos textos publicados, permitem ao pesquisador aventurar-se na compreensão destas engrenagens; um olhar cuidadoso sobre os jornais pode permitir a reconstrução de cenários e de relações de poder imprescindíveis para a compreensão de dinâmicas locais. Como aponta Capelato (1988), até a primeira metade do século XX, duas posturas foram hegemônicas no que diz respeito ao jornal como fontedocumento: seja como repositório da mais pura verdade ou como objeto digno de suspeita. As duas vertentes, segundo a pesquisadora, são absolutamente contestáveis. Se por um lado os jornais não são, de fato, transmissores neutros e imparciais, por outro a subjetividade que lhes é inerente não pode torná-los desprezíveis como documentação de costumes, idéias, fatos, usos e dados de uma determinada sociedade em um dado momento histórico. Para a historiadora, o conhecimento da história através da imprensa pressupõe a adoção de um método rigoroso de trabalho, com um tratamento adequado da fonte e vasta reflexão teórica, caso contrário, corre-se o risco de


28

repetir a história já contada pelo jornal. A concepção de documentos passou por uma verdadeira revolução. A distinção entre falso e verdadeiro, por exemplo, continua a se fazer necessária, mas diversamente do que era feito até a década de 20 do século XX. Os “documentos falsos” passam a ser percebidos como relevantes tanto quanto os considerados verdadeiros, cabendo a averiguação das condições de produção; o porque e como foram aqueles produzidos. Eleger a imprensa como objeto e fonte dos estudos históricos, que antes pressupunha apenas coleta, crítica e organização das fontes, requer agora também o questionamento e análise desse elemento básico de trabalho. É indispensável lembrar, como aponta Capelato (1988), que esse estudo não basta por si só. É preciso ainda fazer cruzamento com outras fontes, para amplificar sua própria compreensão, sendo também importante levar em conta suas significações manifestas ou não. Conforme a estudiosa, há vários tipos de imprensa e formas de estudá-la. Jornais de luta política e social, de observação dos costumes, humorísticos, literários ou de entretenimento são apenas alguns exemplos. Dentre as modalidades de periódicos que abrangem a chamada grande imprensa, emergem ainda aqueles depreciados por irem de encontro à “ordem” e aos “bons costumes”. Este veículos são costumeiramente marginalizados, inclusive pela própria História, deixando-os à parte do arquivamento dos documentos ditos oficiais. Capelato (1988) propõe inúmeras possibilidades para a realização de pesquisa sobre idéias políticas e sociais na imprensa, como os estudos lingüísticos da ideologia, a identificação dos pressupostos dos projetos políticos veiculados ou das matrizes das idéias. Alguns pesquisadores valem-se desse material como fonte primária, enquanto outros servem-se do mesmo para complementar outros elementos da pesquisa. A parte opinativa, como editoriais e artigos, noticiários, colunas sociais e até classificados, são lócus muitas vezes privilegiados para quem almeja esse tipo de análise. Para realizar esta pesquisa, optei por não selecionar uma seção, posto que o jornal Cearense, à época estudada, com um representante liberal


29

no governo da província, utilizava todo o espaço do jornal para dispor dos ideais do partido e para fazer expostas as determinações governamentais em leis e orientações. Preferi analisar todos os espaços do jornal e verificar como eram tratadas as temáticas da seca e da varíola. Assim, busquei averiguar se a hipótese de que a cobertura jornalística desse fenômeno serviu para corroborar o discurso de mudanças sociais e estruturais da cidade pode ser confirmada. Antes,

porém,

faz-se

necessário

atentarmos

para

algumas

questões

metodológicas.

1.2. PROCEDIMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS PARA USO DE JORNAIS COMO FONTE Luca (2005) oferece indicações teórico-metodológicas para quem trabalha com os arquivos periódicos como fonte. Um dos pontos para os quais a pesquisadora atenta é a materialidade do impresso, segundo a qual a aparência está diretamente ligada à relação entre métodos de impressão disponíveis e o lugar social ocupado pelos periódicos. Segundo ela, nessa materialidade podemos encontrar inscrita a história da indústria gráfica. Alves

&

Guarnieri

(2007)

afirmam

que,

para

um

melhor

aproveitamento histórico das fontes, é preciso considerar as condições técnicas de produção, bem como as funções sociais desse processo. Dessa forma, o historiador que se utilizar desse tipo de fonte deverá dentre outros aspectos investigar: de que forma os impressos chegaram as mãos dos leitores, qual a aparência física do mesmo (formato, tipo de papel, qualidade de impressão, capa, presença/ausência de ilustrações), a estruturação e divisão do conteúdo, as relações que manteve ou não com o mercado, a publicidade, o público a que visava atingir, os objetivos propostos, entre outros. Condições materiais e técnicas em si dotadas de historicidade, mas que engatam a contextos sócio-culturais específicos, que devem permitir localizar a fonte escolhida numa série, uma vez que esta não se constitui em um objeto único e isolado. Dito de outra maneira, o conteúdo em si não pode ser dissociado do lugar ocupado pela publicação na história, sendo essa a tarefa primeira e passo


30

essencial das pesquisas com fontes periódicas. (ALVES, GUARNIERI, 2007: 42)

Outro elemento de considerável importância é a investigação de que critérios foram estabelecidos para que o fato histórico tenha sido publicizado e, por conseguinte, tornado-se notícia. Segundo Luca (2005), é imprescindível considerar em que espaço se deu a publicação, pois a linguagem, a ênfase e a natureza do conteúdo tratado está diretamente associado aos interesses do órgão e ao público para o qual é direcionado. É importante também identificar o grupo responsável pela linha editorial do jornal, a maneira sobre a qual ele faz a representação do passado, do presente e que expectativas tem acerca do futuro, pois assim são apreendidas as idéias que defende. Igualmente devem ser observados elementos nem sempre latentes, recorrendo a outras fontes de informação para contemplar o processo pelo qual se deu a organização, a publicação e a manutenção do periódico. A consulta a outras fontes faz-se também importante, segundo Romancini (2007), para obter dados e indicadores que visem à compreensão de conjunturas, como indicadores de população, alfabetização, mortalidade, preços, entre outros. Desta forma, os periódicos, que são a um só tempo fonte e objeto de pesquisa, não devem ser tomados meramente pela análise de textos isolados. Antes, devem ser considerados sob o aspecto do contexto no qual estiveram inseridos. Neste sentido, importante também alertamos para outras questões, como a relação entre a produção material e o simbólico. Segundo Serra (2007), a produção da notícia é principalmente explicada pela relação com a estrutura de poder na sociedade capitalista. A abordagem da economia política crítica postula a inter-relação entre os aspectos simbólicos e econômicos das comunicações públicas. Desta forma, os diferentes tipos de financiamento e organização da produção cultural têm conseqüências para a gama de discursos e representações no domínio público. A produção e circulação de sentidos tem conseqüências geradas também pela organização econômica.


31

Deste modo, o processo de inserção de notícias num veículo como os jornais não pode ser jamais considerado como atividade neutra e natural. Antes perpassa por um processo ideológico e técnico. Considero, assim, que a política editorial da empresa jornalística tem influência direta sobre o processo de seleção dos acontecimentos. O fato de o dizer ser construído de forma intersubjetiva exige compreendê-lo como histórico e subordinado aos enquadramentos sociais e culturais. Se o vemos deste modo, necessariamente somos obrigados a abandonar uma outra visão ingênua, a de que o discurso poderia ser analisado sem considerar o contexto de produção de sentidos. Sabemos que a relação entre linguagem e exterioridade é constitutiva do discurso. O dizer do homem é afetado pelo sistema de significação em que o indivíduo se inscreve. Esse sistema é formado pela língua, pela cultura, pela ideologia e pelo imaginário. (BENETTI, 2007: 108-109)

Segundo Serra (2007), a produção midiática depende das aspirações pessoais e sociais, bem como de um contexto influenciado por códigos e ideologias profissionais. Traquina (2005) também aponta nesta perspectiva. A política editorial influencia a disposição dos recursos da organização e a própria existência de espaços específicos dentro do produto jornalístico através da sua política de suplementos e sobretudo de rubricas. A criação de espaços regulares, como suplementos e rubricas/seções, tem conseqüências diretas sobre o produto jornalístico de uma empresa porque a existência de espaços específicos sobre certos assuntos ou temas estimula mais notícias sobre esses assuntos ou temas, porque tais espaços precisam ser preenchidos. (TRAQUINA, 2005:93)

Para Certeau (1988), não existem considerações capazes de apagar o lugar de onde se fala e do domínio através do qual é conduzida uma investigação. A operação histórica refere-se à combinação entre lugar social e prática científica e toda interpretação depende de um sistema de referências


32

que permanece como uma “filosofia” implícita particular, que infiltra-se no trabalho de análise e organiza-o sem saber. Por fim, é fundamental sempre atentar para as circunstâncias em que foram produzidos os valores, entender a fonte sob o contexto em que foram criados, para que fatos tão remotos não sejam tomados com os valores de hoje, aferir se houve transformações sobre o trato do assunto e por quanto tempo foi veiculado. Como vimos, muitos são os aspectos a serem considerados nas pesquisas que convergem os campos da História e do Jornalismo. Para os fins deste trabalho e por conta ainda da imaturidade acadêmica desta pesquisadora, nem todos os aspectos serão devidamente elucidados, ficando esta incumbência para um próximo momento acadêmico. No entanto, o que tratamos até aqui alerta para o que defende Benetti (2007). A compreensão dessas condições não é acessória, e sim um pressuposto para qualquer estudo de jornalismo. Evidentemente, uma pesquisa sobre o texto jornalístico não precisa contemplar o detalhamento de todas as condições – ainda assim, é fundamental que o analista mantenha, como horizonte da pesquisa, consciência da complexidade de seu objeto. (BENETTI, 2007: 110-111)

Para Alves (2007), as imagens devem sim ser privilegiadas também como fontes de pesquisa, visto que são portadoras de discurso e necessárias de decodificação. Outros teóricos defendem a mesma idéia. ‘As práticas e representações’, presentes nas novas opções metodológicas da História, além de servirem como estímulo a temáticas inéditas, nos permitem redefinir assuntos consagrados na produção historiográfica regional, graças a uma possível imersão em fontes antes consideradas insignificantes. Além dos documentos oficiais e da dimensão analítica dos jornais, os depoimentos orais, as fotografias e as imagens afloram como mananciais reveladores de conteúdos, que ultrapassam a dimensão limitada presente nas fontes tradicionais. Nelas o ‘inconsciente individual’ e o ‘inconsciente coletivo’ brotam de forma espontânea, permitindo versões inéditas, graças à maleabilidade dos conceitos de ‘interdisciplinaridade’ e ‘transdiciplinaridade’, que aproximam espaços culturais, antes ilhados. (JUCÁ, 2008: 29)


33

Para chegar ao nosso objetivo, no entanto, não avançaremos no mérito desta questão. Importante é a sinalização de variados procedimentos metodológicos básicos. A oportuna reflexão de Romancini (2007) me acompanhou nesta pesquisa: Enfim, a conclusão (ou recomendação) geral de nosso trabalho é a de que: o pesquisador do campo científico da Comunicação/Jornalismo que pretende utilizar reconstruções históricas ou trabalhar fundamentalmente nessa dimensão em seu trabalho tem a obrigação de expor com a máxima clareza suas fontes (de modo a permitir, se possível, que outros consultem-nas), os supostos que orientaram a coleta de seus dados, a problemática conceitual construída para o estudo e que orientou a análise. Não por pedantismo ou teoricismo, mas porque tais elementos são requisitos para que outros pesquisadores possam julgar as explicações e conclusões ao que o trabalho de patamar mais elevado (científico) possa ter chegado. Isso, claro, se o objetivo foi ultrapassar a mera descrição do “fato” histórico sob qualquer registro (jornalístico, de senso comum). (ROMANCINI, 2007:40)

1.3. ENQUADRAMENTOS DA NOTÍCIA Antes de analisar a cobertura do Cearense para o efeito desta pesquisa, considero importante entendermos como se dá o processo de produção de notícia e que elementos precisam ser considerados na análise desta. Como aponta Luca (2005), é preciso compreender os critérios estabelecidos para que o fato tenha sido publicizado e, por conseguinte, virado notícia. Para além dos cuidados metodológicos, compreender o processo de produção da notícia revela-se basilar para quem deseja compreender a cobertura jornalística de um fato. Ao contrário de ser objeto dado naturalmente, a notícia envolve inúmeros elementos que não devem ser desconsiderados em sua análise, como fatores inerentes a aspectos políticos, sociais, econômicos, culturais, ideológicos e de sua própria elaboração, como os critérios utilizados para noticiar um dado acontecimento.


34

O campo jornalístico constitui-se como lugar relevante na construção da realidade social, por isso tão utilizado como fonte de pesquisa nos últimos anos. De acordo com a abordagem do newsmaking, conforme Vizeu (2007), é primordial a centralização das articulações dos jornalistas com a organização do trabalho e dos processos produtivos. A notícia, como uma representação social da realidade cotidiana, é entendida como um bem público, produzido institucionalmente para possibilitar o acesso das pessoas ao mundo dos fatos. Estes satisfazem a operações e construções jornalísticas para tornarem-se notícia e nesse processo os jornalistas convertem-se em “mediadores creditados”, autorizados, entre cidadania e poder, sendo eles próprios parte dessa realidade social apresentada. Deve-se levar em conta, na produção de notícias, a cultura profissional: (...)“entendida como um conjunto emaranhado de retóricas, astúcias, táticas, códigos, estereótipos, tipificações, representações de papéis, rituais e convenções relativos às funções da mídia e dos jornalistas da sociedade, à concepção do produto-notícia e às modalidades que superintendem a sua confecção. Isso se traduz, pois, numa série de paradigmas e práticas profissionais dadas como naturais.” (VIZEU, 2007:224)

Além disso, dão-se ainda restrições ligadas à organização do trabalho, sobre as quais se criam convenções profissionais que atuam no processo de definição do que se coloca como notícia e que contribuem também para legitimar todo esse processo, que envolve desde o uso de fontes até a seleção dos acontecimentos, criando todo um conjunto de critérios para definir a noticiabilidade de um fato. Dentro dele, os valores-notícia, segundo Vizeu (2007), não estão presentes apenas na seleção de notícias, mas participam de todas as operações anteriores e posteriores a ela. São valores dinâmicos, que mudam em função de aspectos culturais, sociológicos e tecnológicos. Apesar disso, Traquina (2005) mostra que mesmo em períodos absolutamente diversos da história, as notícias veiculadas detinham um referencial que as aproximava nas seleções temáticas. Num estudo histórico das notícias nos anos 70 do século XX, nos anos 30 e 40 do século XIX e nas


35

primeiras décadas do século XVII, Traquina (2005) conclui que os critérios adotados para dar tratamento jornalístico aos fatos pouco foi alterado. O autor refere-se aos jornalistas como uma tribo, um grupo dotado de um “enquadramento de referência partilhado”, “quadros de referência” que lhes são comuns. São os chamados valores-notícia que operam na cobertura noticiosa, mais conhecidos como critérios de noticiabilidade. Conforme o autor, os jornalistas compartilham códigos que organizam a sua percepção dos fatos tal como uns óculos, que define tudo aquilo que é ou não notícia. Tal prerrogativa reforça a idéia de que a notícia, longe de ser um elemento natural, passa antes por um prisma de elementos técnicos e ideológicos. A despeito das diferentes tendências políticas, os diferentes jornais possuem, como mostra Traquina (2005), similitudes nos critérios para noticiar, num sentido de uma cultura noticiosa comum. Segundo Traquina (2005) a teoria do agendamento causou mudanças profundas no paradigma da teoria dos efeitos dos media no sentido de não apenas selecionar o acontecimento dos temas noticiáveis, mas também para enquadrá-los, dando sentido a esses acontecimentos. A notícia é, mais do que relato, uma construção acerca dos fatos que são contados como “estórias”. Isso não minimiza o seu valor, apenas nos alerta para o fato de que ela é, como todos os documentos públicos, uma realidade construída sob a lente do jornalista que, por sua vez, está ligado a “sistemas de crença” que dão sentido à sua prática laborial e, como indivíduo que atua em grupo, desenvolve estilos de pensamento dentro de uma gama variada de respostas a um determinado fato. Durante o século XIX, o jornalismo vai se constituindo como pólo ideológico, mas também econômico; simultaneamente um negócio e um serviço público. Neste período inicia-se a incorporação de um paradigma de que os jornais deveriam, a partir de então, fornecer notícias, e não propagandas, o que traz à tona valores como a busca da verdade, a independência jornalística, a exatidão e a noção de idéias que dão forma a este campo.

O

meio

profissionalização

jornalístico advindo

com

também a

acompanhou

industrialização

e

o

processo

urbanização

de das


36

sociedades. Vale ressaltar, no entanto, que nossa pesquisa demonstra que o jornal que utilizamos aqui como fonte e objeto de pesquisa, o Cearense, se apresenta marcadamente como um veículo ideológico, que “vende” todo um conjunto de princípios e conceitos e que, durante o período analisado, se dispõe à defesa do governo provincial, sendo ele adepto do partido liberal. O conceito de imediatismo apresentado por Traquina (2005) afirma as notícias como um bem altamente perecível, valorizando assim a velocidade com que essas informações são veiculadas, especialmente com a emergência do ciberjornalismo, que preconiza um tempo quase real entre os fatos e seu relato. A política jornalística do “furo” nos direciona sempre para a busca do fato novo e recente. No jornal Cearense, todavia, a noção de tempo era percebida diferentemente. Um mesmo tema era recorrentemente abordado durante meses e um fato ocorrido a um tempo relativamente longínquo era noticiado, às vezes, meses depois. Devemos levar em consideração, contudo, que a velocidade da produção dessas notícias ocorria de modo muito mais lento, se compararmos com a operação noticiosa na atualidade. A

prática

jornalística

envolve,

para

Traquina

(2005),

uma

competência profissional específica dotada de saberes particulares, que envolve um conjunto de saberes profissionais: “o vocabulário de precedentes”. Este, por sua vez, englobaria os saberes de reconhecimento, de procedimento e de narração. Por saber de reconhecimento entende-se a capacidade de identificar

os

acontecimentos

dotados

de

valor-notícia.

O

saber

de

procedimento refere-se ao recolhimento de dados para elaboração da notícia. A competência de compilar todas essas informações e transformá-las numa narrativa noticiosa constitui o que o pesquisador aponta como saber de narração. Para Traquina (2005), o saber jornalístico envolve a seleção dos acontecimentos do mundo real e a construção de “estórias” sobre esta realidade, sendo os valores-notícia, elementos fundamentais dessa cultura jornalística. Ele afirma que até o século XVIII as publicações periódicas eram eminentemente dominadas pelo pólo político, sendo os meios de comunicação vistos como uma arma política, até que aparecessem as chamadas penny


37

press na década de 30 do século XIX. Eram também divulgados crimes, escândalos, tragédias e notícias curiosas e divertidas. No jornal Cearense, no entanto, percebemos que o veículo permanece caracterizado eminentemente pelo cunho político. No século XVII surgem as folhas volantes, publicações irregulares voltadas a um determinado tema, com avisos moralistas e interpretações religiosas. Nesse período, pouca importância era dada a assuntos de interesse local. Já assuntos relativos a celebridades, como reis e rainhas, milagres, abominações, catástrofes e acontecimentos bizarros e insólitos ocupavam espaço privilegiado. Já em 70 do século XX, figuram com grande relevância assuntos referentes à proeminência do ator social, atividades ligadas ao governo, crimes, escândalos e investigações, protestos, desastres e casos insólitos. A mudança na essência noticiosa durante os três períodos é desprezível e mostra que a atividade jornalística desenvolveu um modus operandi particular na definição do que se coloca ou não como notícia. São seguidos determinados critérios de avaliação do valor dos acontecimentos até que eles sejam merecedores ou não do tratamento narrativo. Traquina (2005) se furta à intenção de sistematizar todas as abordagens acerca dos critérios de noticiabilidade, mas informa que inúmeros acadêmicos estudaram o assunto. Ele apresenta sua própria lista de valores notícia, mas diferentemente de outros estudiosos, faz, influenciado pelo trabalho de Mauro Wolf, uma distinção desses critérios em duas categorias: valores-notícia de seleção e valores-notícia de construção. Os valores-notícia de seleção seriam aqueles utilizados para eleger os acontecimentos candidatos ao tratamento jornalístico. São subdivididos em critérios substantivos de avaliação direta, em termos de relevância e interesse, e critérios contextuais, referentes ao contexto da produção, qualidades que sugerem o que deve ser ressaltado e emitido. Assim,

dentro

dos

valores-notícia

de

seleção,

os

critérios

substantivos seriam referentes à morte, notoriedade do ator principal, proximidade (em termos físicos e culturais), relevância (o impacto que têm na


38

vida das pessoas), novidade, ao tempo (quanto à atualidade, duração do fato e efeméride de um fato já ocorrido), e ainda sob notabilidade (qualidade de ser tangível, com fatos concretos e facilmente observados) e pela falha (como acidentes, defeitos, excesso e escassez em função do padrão, insólito, inversão do normal), o inesperado (tudo aquilo que surpreende), conflito e controvérsia (violência física e simbólica), infração (violação e transgressão das regras) e escândalo. Outros valores-notícia de seleção seriam referentes ao contexto de produção, como disponibilidade (facilidade de acesso de cobertura), equilíbrio (quantidade de notícias do evento já existentes), visualidade (disponibilidade de elementos visuais), concorrência (busca de exclusividade perante os demais veículos) e dia noticioso (o que seria noticiável em um dia pode não ser interessante no dia seguinte, em virtude das outras opções noticiosas). Os acontecimentos passam ainda pela malha fina dos valores notícia de construção, que seria a orientação do processo construtivo da notícia,

de

acordo com

Traquina

(2005).

Seriam

eles: simplificação

(desprovimento de ambigüidade ou complexidade), amplificação (alcance da notícia),

relevância

(atribuição

de

maior

sentido

ao

acontecimento),

personalização (referência a envolvidos, acentuando o fator pessoa), dramatização (reforço dos aspectos mais críticos, como o lado emocional e a natureza conflituosa) e consonância (inclusão de novos elementos num contexto já conhecido). A compreensão dessas categorias que conferem valor a um determinado fato é fundamental para compreendermos como as notícias são dadas. Para esta pesquisa, particularmente, interessa perceber como o noticiamento de questões em torno da seca e da varíola de 1877 a 1879, no Cearense, envolve uma série de questões no ato de sua produção e que a recorrência do assunto encontrada durante a pesquisa não é gratuita, ao contrário, fundamentada em princípios que conformam a orientação para a necessidade de mudanças dos comportamentos e da estrutura urbana de Fortaleza, que caracterizam o discurso médico-higienista, objeto central de minha investigação.


39

Por inúmeras razões, dentre elas o comprometimento do governo com o assunto, a cobertura noticiosa da seca e da varíola não seriam interessantes para o jornal aqui analisado, já que estava na presidência da província um representante liberal. Se levarmos em consideração a origem e os interesses ideológicos dos produtores das notícias do periódico Cearense e a sua cultura profissional, poderíamos supor que o tratamento temático de tais eventos revelaria uma possível ineficácia administrativa para solucionar esses problemas. De todo modo, são freqüentes, como mostra esta pesquisa, as referências ao tema, que eu diria até ser uma questão privilegiada durante o período que estudei. São, portanto, os critérios de noticiabilidade que nos ajudam a compreender a razão da exposição sobre os prejuízos causados pela seca e pela varíola, regularmente mencionados, ainda que pudessem expor os liberais a algum embaraço. A presença de valores-notícia substantivos, como “morte”,

“proximidade”,

“relevância”

e

de

construção,

tais

como

“personalização”, “dramatização” e “consonância” no conteúdo jornalístico da pesquisa configuram a legitimidade da recorrência do tema. Produtores de sentido, os escritores do Cearense utilizam a notícia, como mostro adiante, para reforçar o discurso ideológico, ressaltando características disciplinares e corretivas. Tomando-se como sujeito distinto na regulamentação de condutas e no estabelecimento de padrões de normalidade, o jornal analisado julga-se ditador de verdades. Tratados esses pressupostos da pesquisa, partamos agora para a abordagem histórica da Fortaleza da Belle Époque, destacando o modelo de urbanização e mudança social elegido durante este período.


40

2. BELLE ÉPOQUE: À PROCURA DA PARIS CEARENSE

No período caracterizado como a Belle Époque, segundo Ponte (2001), de 1860 a 1930, Fortaleza experimenta uma série de transformações nos âmbitos da política, da economia, da sociedade e da própria configuração espacial. Grande parte desses acontecimentos e dessas ações ocorre em conseqüência de um projeto político desenhado para a cidade, calcado no discurso de médicos e urbanistas que ambicionavam um novo status para a urbe, com vistas, principalmente, ao ideal europeu de civilidade e modernidade. É sobre este período e, particularmente, sobre esta ideologia que nos debruçamos neste capítulo e que considero de suprema importância para compreender nossas maneiras contemporâneas de pensar, sentir e se comportar. De influência notadamente européia e guiada por ideais de modernidade, esses planos de desenvolvimento urbano tiveram impacto decisivo no desenvolvimento da urbe. Em outras cidades do país, como Rio de Janeiro, à época a capital do governo federal, e São Paulo, por exemplo, esse processo se deu de forma ainda mais intensa.

2.1. 1860 A 1930: FORTALEZA DE BELOS TEMPOS Até meados do século XIX, a cidade de Nossa Senhora de Assunção tinha funções meramente administrativas e defensivas, além de servir de apoio logístico à navegação entre as províncias de Pernambuco e Maranhão. O surgimento da cultura do algodão, produzido na Serra de Uruburetama, e a sua expansão4 em Fortaleza, ainda no mesmo século, 4

O início da Guerra Civil Americana, de 1861 a 1865, devastou as lavouras americanas e impossibilitou o fornecimento de matérias-primas para as indústrias têxteis inglesas, o que concorreu para o aumento no preço do algodão no mercado mundial e elevou o nível das exportações cearenses. Fortaleza passou a ser o principal porto exportador da produção regional, o que dinamizou a economia cearense e repercutiu no crescimento da capital, originando a construção de novas edificações e a implantação de modernos serviços urbanos.


41

possibilitaram que a cidade se consolidasse como centro social, econômico e político do Ceará, status antes reservado à cidade de Aracati. De 1860 até 1930 Fortaleza viveu movimentos sociais e culturais marcantes, bem como mudanças estruturais que definiram o atual modelo da cidade. Assim, a cidade passou por um período de enriquecimento e melhoria das condições urbanísticas, com a execução de diversas obras. Já em outros anos deu-se início à criação de alguns equipamentos públicos, como o Liceu do Ceará, criado em 15 de julho de 1844, pela Lei nº 304, sancionada pelo Presidente da Província José Maria da Silva Bittencourt, sendo instalado em 10 de outubro de 1845; e o Farol do Mucuripe, em 1845. Entretanto, é a partir da Belle Époque que se intensificam as mudanças na cidade. São criados a Santa Casa de Misericórdia, antecipada pela ocorrência da maior epidemia de febre amarela que assolou a cidade, em 1851; em 1861, o Seminário da Prainha, em 1864, a Biblioteca Pública, em 1868, e a Cadeia Pública, entre outros. Em 29 de setembro de 1866, as fontes do Sítio Benfica inauguram o primeiro sistema de abastecimento de água da urbe. Em 1870 inicia-se a construção da Estrada de Ferro de Baturité, através da qual seriam escoadas as produções agrícolas e pastoris do interior para o porto e seria impulsionado o desenvolvimento industrial da cidade. Nessa mesma década são iniciados movimentos em prol do abolicionismo da escravatura, que vão culminar, em 25 de março de 1884, na libertação dos escravos no Ceará, com quatro anos de vanguarda ante a abolição oficial do país, que só ocorre em 13 de maio de 1888. A

elite

intelectual

e

política,

formada

principalmente

por

comerciantes e profissionais liberais, como médicos, vindos de outras regiões brasileiras e do exterior, de onde importavam os ideais “iluministas”, foram os principais promotores dessas “revoluções”. Em 1859 o arquiteto pernambucano Adolfo Herbster elabora a primeira planta detalhada de Fortaleza. Em 1875, o então intendente Antonio Rodrigues Ferreira encomenda a Herbster a elaboração da Planta Topográfica


42

da Cidade de Fortaleza e Subúrbios5, considerada o marco inicial da modernização urbana. Inspirado nas realizações de Paris, boa parte delas implementadas pelo Barão de Haussmann, o engenheiro estabeleceu o alinhamento de ruas segundo um traçado ortogonal, em xadrez, de forma a disciplinar a expansão da cidade, marcada pelos bulevares que favoreciam a circulação dos fluxos e o olhar vigilante. Mais do que ato puramente de zelo pela saúde pública, estes eram bastante propícios à vigilância policial, ao olhar panótico, ao qual se refere Wolff (1996), que barrava as rebeliões e manifestações populares. Segundo Castro (1994), mesmo as quadras que ainda não se encontravam construídas eram meticulosamente previstas em uma vasta expansão para além do riacho Pajeú, no leste, na zona conhecida por Outeiro. As ruas largas também aspiravam a passagem das correntes de vento, já que se acreditava que epidemias e mortes eram causadas pela concentração dos aglomerados e a conseqüente contaminação do ar. Nesse sentido, foram instaladas praças arborizadas e abertos bulevares, onde atualmente são denominadas as Avenidas do Imperador, Duque de Caxias e Dom Manuel. Em 1872 foi criada a Academia Francesa do Ceará, com vistas à divulgação das teorias cientificistas, darwinistas e evolucionistas que estavam em voga na Europa e marcaram as atitudes diante da configuração do espaço urbano. A cidade crescia e com ela emergiam também os dispositivos voltados à educação. Assim, surge a Escola Normal, criada em 1878. A partir de 1880, a cidade ganhou serviços e equipamentos urbanos, como o transporte coletivo por meio de bondes com tração animal, serviço telefônico, caixas postais, construção do Passeio Público e instalação da primeira fábrica de tecidos. O Teatro José de Alencar, então principal espaço cultural da cidade, foi inaugurado em 1909. Em 1910 circularam os primeiros automóveis, ônibus e caminhões, bem como foram implantados bondes.

5

Vide Figura 1 nos Anexos. A primeira planta da cidade data de 1726 e é atribuída ao capitão-mor Manuel Francês. Em 1818, o português Antônio José da Silva Paulet elabora o que seria a atual configuração das ruas do Centro.


43

Na virada do século, Fortaleza já detinha a sétima maior população urbana do país, passando a tomar medidas de higienização social e saneamento ambiental, além de executar um plano urbano de reformas com a implantação de jardins, cafés, coretos e monumentos, e a construção de edifícios segundo padrões estéticos europeus, especialmente o parisiense. A Praça do Ferreira se constituía como principal centro comercial. Somente em 1911 é projetado o primeiro sistema de esgotos da capital, pelo engenheiro João Felipe, nome que atualmente batiza a Estação, no Centro de Fortaleza, e o seu funcionamento só ocorre, de fato, em 1927. Entre as décadas de 20 e 30 foram inaugurados diversos cinemas e os bairros como Jacarecanga, Praia de Iracema, e Aldeota passaram a ser habitados pelas elites, que começam a valorizar a proximidade com o mar. Enriquecidos com o comércio do algodão, os grupos mais abastados passaram a imitar os hábitos da cultura francesa. Era a chamada Belle Époque, que influenciou o modo de vestir, falar, as formas de lazer, os hábitos de consumo e o desenho da cidade. Cordeiro (2000) apresenta um panorama de Fortaleza, na metade do século XIX, período que, segundo ela, foi marcado pelo surgimento de novas idéias, ligadas principalmente ao cientificismo e ao liberalismo político, intensos movimentos políticos e partidos, pela forte atuação da imprensa, crescente circulação de idéias, com a formação de inúmeros agrupamentos intelectuais, e pela preocupação com a educação. Segundo Lima (2003), a mola propulsora do “olhar científico-europeu" incide também sobre o corpo, sendo a responsável pela institucionalização da Educação Física, num processo social desencadeado pela preocupação de educar corporalmente os indivíduos para alinharem-se aos interesses, paixões e padrões estéticos, econômicos e higiênicos locais, nacionais e internacionais. A Educação Física, afirma a pesquisadora, atuou como instrumento de correção dos chamados desvios físicos e morais, além de ajudar na modernização de Fortaleza. Os preceitos médicos atrelados às atividades físicas perduraram, ganhando cada vez mais legitimidade.


44

Para Pontes (2005), não seria inoportuno deduzir que as atividades físicas e os esportes tenham desempenhado forte apelo junto aos jovens no início do século XX, ainda sob os influxos do discurso higiênico e modernizador. O importante perceber é que essas mudanças estruturais, acompanhadas por um processo de mudança social, não foram aleatórias. Foram, ao contrário, situadas num contexto de produção intelectual e planejamento, sempre com vistas à imitação do estilo de vida europeu, considerado, pela elite local, como modelo ideal de civilização. Ao longo dos séculos XVIII e XIX, a ciência sofreu um desenvolvimento sem precedentes. Na Europa, principalmente, surgiram as principais

teorias

médicas,

que

logo

ganharam

relevo

nas

cidades,

influenciando normas e regulamentos de controle do comportamento da população e do espaço urbano. Fortaleza não fugiu à regra e importou, especialmente de Paris, essa gama de discursos que se fizeram presentes nas práticas urbanas, sempre na busca da modernização e do status de civilidade. Essa adoção de ações e representações sobre a cidade podem ser vistas durante todo o período da Belle Époque. Para os fins desta pesquisa, entretanto, nos deteremos sobre as práticas médicas e ações administrativas adotadas durante a seca que assolou milhares de retirantes em Fortaleza, que vieram a Fortaleza por conta da estiagem, entre 1877 e 1879, e acabaram contraindo a varíola. Sem condições estruturais de atender a toda a população sertaneja que migrava para a capital, a administração da capital esforçava-se para implementar as recomendações dos médicos, baseadas nos modernos princípios de higienização que advinham da Europa.

2.2. TEORIAS MÉDICAS EUROPÉIAS: UM NOVO PARADIGMA URBANO O pensamento médico europeu do século XVIII foi caracterizado pela retomada da tradição hipocrática6, uma medicina que privilegiava a ação 6

Referente a Hipócrates, um dos precursores da ciência médica.


45

do ambiente sobre o organismo do homem, voltada para os elementos físicos, como o ar, a água, decomposições, fermentos, etc. Para Costa (2004), essa preocupação com as causas, origens e localização da doença no meio geográfico vai favorecer a realização de levantamentos sobre comportamentos e hábitos da população, bem como de condições naturais e socioeconômicas de lugares, cidades e regiões. São as chamadas topografias médicas, que ofereciam, a partir de então, subsídios para intervenções no espaço urbano. Costa (2004) aborda as principais teorias médicas que orientaram, durante o século XIX, as ações urbanísticas na Europa e no resto do mundo, inclusive em Fortaleza. Segundo ela, de acordo com os princípios telúricos, a principal causa de doenças seria decorrente de emanações do solo. Daí surgiria a necessidade de aterro de pântanos e alagados. Conforme os defensores da “medicina das constituições”, as doenças seriam provenientes de condições meteorológicas ou de um conjunto de fenômenos naturais, do clima. Assim, a direção dos ventos e a incidência de insolação, por exemplo, passaram a ser levados em consideração no caso de serem realizados povoamentos e construções. Já a corrente miasmática propunha que o ambiente, tanto físico quanto social, seria produtor de emanações nocivas que corrompiam o ar e atacavam o corpo humano. Esses miasmas seriam provenientes da decomposição de substâncias orgânicas, vegetais, animais ou humanas, que deveriam ser expurgadas por meio da renovação e circulação do ar. Nesse contexto, água, lixo, dejetos e sujeira viraram objeto do olhar médico, assim como a concentração populacional, por, supostamente, favorecer o surgimento de males e epidemias. O contagionismo postulava que um vírus reproduzido no organismo humano seria transmitido de um indivíduo a outro através do ar, das vestimentas e de outros objetos. Para evitar a contaminação, os higienistas propunham a realização de quarentenas. Durante todo o século XIX, essas correntes médicas permaneceram em embate explicativo acerca da origem de epidemias e doenças urbanas,


46

mas, na maioria das vezes, formaram um conjunto de explicações que influenciavam, com veemência, as ações administrativas. Desenvolveu-se, então, um comportamento de medo, de angústia diante da cidade. Nasce o que Foucault denominou "medo urbano": medo das fábricas, dos cemitérios, dos hospitais, das cadeias, do amontoamento da população, das epidemias, dos esgotos, do lixo, da sujeira, dos pântanos, dos vapores telúricos desprendidos da terra, das águas estagnadas, das exalações mefíticas. A natureza e um conjunto de construções e de instituições, considerados produtores de miasmas, foram postos sob vigilância médica e normatizados pela legislação sanitária dos séculos XVIII e XIX. Água, ar e terra, três elementos indispensáveis à vida humana, apresentavam-se como inimigos potenciais. (COSTA, 2004)

Paralelamente, emergiam também análises de cunho social para explicar a origem das enfermidades. A estas passaram a ser associados fatores como pobreza, excesso de trabalho, má alimentação e proximidade de ambientes insalubres, dentre outros fatores socioeconômicos. Baseados nesses princípios, médicos-urbanistas-higienistas ditavam novas

regras

de

comportamento

e

organização

do

espaço

urbano,

normatizando a construção de equipamentos e definindo os locais mais adequados à sua instalação. Conforme Costa (2004)7, “a partir do século XIX nenhuma intervenção urbana na sociedade ocidental foi feita sem o aparato ideológico das doutrinas higienistas”.

2.3. POR UMA ÉTICA ESTÉTICA DA CIDADE: TEORIAS MÉDICAS E O RECEITUÁRIO SOCIAL Como já foi dito, o discurso sanitarista tem origem européia, chegando ao Brasil somente em meados do século XIX, com a finalidade de instituir um sistema de controle e disciplina social através da higienização das 7

O referido artigo, retirado da biblioteca eletrônica Scielo, não possui paginação. <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-59702004000100004>. Acesso em: 06 abr. 2008.


47

cidades e medicalização das populações. A ciência, a técnica e o progresso, evidenciados nessas iniciativas, tiveram grande atuação em Fortaleza, especialmente após 1860. Essas ações incluíam o esmero com a saúde pública e o desenvolvimento urbano, mas também a transformação de idéias, hábitos e costumes citadinos entendidos como provincianos e anti-higiênicos. Os agentes que encabeçavam esse movimento se demonstravam abertamente defensores da assepsia e da moral, tomando para si a incumbência de inspecionar preventivamente os espaços e as comunidades. A urbanização dos principais centros e o adensamento populacional culminou na necessidade de normatização dos aglomerados e controle dos espaços, com o alargamento de ruas e construção de bulevares para livre circulação do ar e dos fluxos, a distribuição salubre de água e a expulsão de cemitérios e matadouros para fora do perímetro urbano, a fim de evitar doenças e precaver a contaminação, sobretudo da água e do ar. A ação médica foi centrada na questão da higiene pública, privilegiando a análise dos meios físicos e de sua influência sobre a saúde do organismo humano. O crescimento das cidades brasileiras, a partir do século XIX, impulsionou o anseio de ordenação e planejamento, mas, de acordo com Ponte (2001), é somente a partir de 1918, que o poder público brasileiro começa a intervir regularmente nos Estados, com o fomento de políticas públicas nacionais de saúde. Nas décadas anteriores, contudo, são iniciadas inúmeras reformas. Não apenas os espaços urbanos, mas também os comportamentos públicos e privados passam a ser problematizados, sempre alvos da vigilância e vistos como potencialmente periculosos. Para cobrir todos os aspectos que envolviam a cidade e intervir com eficácia, amplitude e profundidade, foi imprescindível que esses remodeladores incrementassem seus conhecimentos médicos com noções históricas, geográficas, estatísticas e topográficas, rendendo-lhes uma análise mais rigorosa de fatores como a vida social, o clima e o solo, por exemplo. Além de medidas públicas como o aterro de pântanos, a destruição de morros, a transferência de abatedouros e cemitérios extra contorno central,


48

a inspeção de estabelecimentos, a vacinação obrigatória, dentre outras ações, foram adotados também procedimentos sobre a vida particular dos habitantes, visando à correção de hábitos como o depósito de lixo nos quintais, próximos a poços e a utilização de água não fervida. Era preciso, segundo as verdades médicas, expurgar todo e qualquer ato por eles considerado ignorante, primitivo e supersticioso, que ameaçasse o atraso da urbe frente aos valores europeus. De acordo com Ponte (2001), a inspeção higiênica de escolas, hospitais, fábricas, bordéis, postos e praças também fazia parte do programa sanitarista. Além disso, o isolamento de doentes contagiosos, de loucos em hospícios, e mendigos em asilos, a obrigatoriedade de vacinações e campanhas pelo aleitamento materno foram outras das inúmeras iniciativas implantadas por todo o país. A separação entre sãos e doentes, com a criação de prisões, hospícios e hospitais, facilitou, segundo ele, a incidência dos olhares objetivadores, que muitas vezes contava com o aparato da força repressora para isolar aqueles que representassem percalços à manutenção da ordem almejada. O espaço privilegiado do Centro precisava ser resguardado, por isso foram expulsos mendigos, loucos e doentes. Em nome da caridade e benevolência, as instituições filantrópicas reforçavam esse discurso segregador, minando hábitos tidos como promíscuos e anti-higiênicos, desodorizando habitações, e difundindo concepções agradáveis aos estratos mais abastados. Subvencionadas pelo Estado (que só depois de 1930 organizaria as políticas públicas de assistência social), supervisionadas pela Igreja Católica Romana do Ceará e integradas por “senhoras de caridade”, médicos e grupos de intelectuais católicos da Capital, tais organizações, pela estreita aliança estabelecida entre sua ação beneficente e as práticas de assistência médica da medicina local, possibilitaram a transformação da filantropia de caráter caritativo (predominante nos meados do século XIX) em um novo modelo de assistencialismo: a filantropia higiênica. Retirando velhos, meninas e meninos pobres das ruas em nome da erradicação da mendicância, da delinqüência e da prostituição urbanas, e internando-os em asilos onde realizava a disciplinarização moral e social por meio da catequese e do trabalho adestrador do corpo e da mente, esta filantropia higiênica institucionalizada teve, sem dúvida, decisiva participação no processo de normalização social de Fortaleza. (PONTE, 2001:163)


49

A vigilância permanente dos costumes e da moral, principalmente daqueles que se colocam como uma ameaça de degeneração urbana, foi aos poucos tecendo um novo roteiro ético e estético, ambicioso de unificação da complexa tessitura de imaginários urbanos no projeto de progresso e beleza para a urbe, ainda que fossem necessários violentos meios para garantir sua efetivação. Orientada pelo discurso higienista e pressionada pelos médicos da província, a administração começa a adotar medidas profiláticas pela higiene pública. Os códigos de posturas disciplinavam o crescimento da cidade e o comportamento dos habitantes, definindo também normas de construção. Objetivando a salubridade da população, alagados e pântanos passaram a ser aterrados, ruas calçadas, edificações insalubres, tais como hospitais e cemitérios, construídas a sotavento do centro da cidade, variolosos segregados nos lazaretos8, e as práticas de quarentena e cordões de isolamento eram incentivadas. Sempre justificadas através do discurso médico, essas intervenções foram decisivas no desenho urbano de Fortaleza. Dotados de prestígio e reconhecimento, o corpo brasileiro de médicos9 legitimava seu poder científico, e por vezes político, como sábios detentores da verdade, especialmente após a criação de respeitadas faculdades, como as academias de medicina na Bahia e no Rio de Janeiro, existentes desde 1832. Como mostra Silva Filho (2001), através dos mais variados meios, como planta topográfica, relógios públicos, placas de trânsito, espaços de lazer e iluminação pública, os poderes públicos atuam na afirmação da ordem urbana e na perpetuação de valores dominantes.

8

Como o da Lagoa Funda, criado fundamentalmente para abrigar, leia-se isolar, os possíveis atingidos pela epidemia do cólera, procedentes de portos infectados que desembarcavam em Fortaleza. Foi o principal âmbito para cura e tratamento da população pobre, principalmente por ser o único hospital público da capital até que se instalassem as Casas de Saúde e o Serviço de Assistência Municipal, no começo da década de 1930. 9 Como José Lourenço de Castro e Silva, Antônio Manuel de Medeiros, Meton da França Alencar, Francisco Jacintho Pereira da Motta, Pedro Augusto Borges, Antônio Pompeu de Souza Brazil e o inspetor da saúde pública João da Rocha Moreira.


50

A partir de 1870, quando as tentativas de normatizar a cidade sob rígidas regras tomam vulto, os dispositivos institucionais aspiravam sempre uma sociedade formada por indivíduos sãos, tanto em termos físicos como morais, por isso, não atuavam apenas sobre os moldes arquitetônicos e espaciais, mas também em manifestações sociais, como o Carnaval e a moda feminina. O primeiro passava a ser visto como uma “orgia carnavalesca”, enquanto o vestuário era criticado pelos efeitos sobre os hábitos e o corpo. A inspiração européia era notória na arquitetura de Fortaleza, mas também no uso supervalorizado de artigos, expressões francesas, e na adoção dos costumes e modelos de arborização, configuração das praças, das ruas, da moda, de saneamentos, entre outros. Mas a influência européia ia além. O processo de remodelação urbana e de disciplinarização social ao qual Fortaleza é submetida incorporam ideologias fundamentadas no fascínio que Paris exercia sobre a elite. Segundo Silva Filho (2001:108): “Aderindo às reformas sociais e espaciais da capital do século XIX, Fortaleza representava no plano material seu enquadramento simbólico na linha temporal e ascendente do progresso ocidental, de matriz indiscutivelmente européia.” É importante lembrar que a força dessas idéias reformistas não foram acriticamente aceitas pela população, sem qualquer contestação, sendo necessário grande esforço pedagógico, que contava com a educação dada pelos pais e pelas escolas, bem como pela influência da imprensa escrita para mudar os hábitos e as mentalidades. A criação de leis e punições, com o estabelecimento de uma polícia especializada que vigiava e garantia as condições de limpeza urbana e identificava e punia aqueles que intentavam contra ela, adveio como suporte. Com a aproximação do século XX, particularmente com a República, esse processo de múltiplas reformas foi intensificado no anseio de afastar da metrópole o atraso imposto pelo regime monárquico. Além da mudança na paisagem e na sociedade, emergem novas representações simbólicas. Batista (2002) é reticente em afirmar que o processo iniciado na cidade abalou não apenas a estrutura física de Fortaleza, mas também os costumes da urbe, com a imposição de regras civilizatórias. Esse ordenamento comportamental ocorreu nos diferentes estratos da


51

sociedade, inclusive na elaboração de novas simbologias, como as referentes à morte, posto que o discurso higiênico-sanitário incidiu também, conforme Vasconcelos

(2006),

sobre

os

costumes

tradicionais

dos

enterros,

determinando a condenação de tradicionais práticas fúnebres, com a proibição das inumações nas igrejas e a transferência de cemitérios para fora do perímetro central.

2.4. A SECA DE 1877-1879 E OS RENEGADOS DO SERTÃO: ATRASO DO PROGRESSO E DA ORDEM Período especialmente idiossincrático foi o compreendido entre os anos de 1877 e 1879, quando a seca e a varíola atingem milhares de cearenses e interrompem o desenvolvimento acelerado e a prosperidade que até então Fortaleza havia alcançado. Os fatos representavam, desta forma, uma séria ameaça a uma nova retomada do “progresso”. Os últimos anos da década de 70 do século XIX foram marcados por uma das mais danosas secas já ocorridas no Ceará. Com a elevação da temperatura e o reduzido índice das precipitações, as lagoas e os riachos secaram, as culturas foram devastadas e o gado morreu de fome e sede. A escassez de água e alimentos no interior levou a população interiorana a migrar para as cidades litorâneas, principalmente para a capital. Além da estiagem, que por si só já desestruturava a economia e a estrutura urbana, Fortaleza foi acometida por uma violenta epidemia de varíola. Mesmo com todos os esforços para atender à multidão que se instalava nos arredores da cidade, as medidas tão recomendadas pelo corpo médico, como a limpeza dos espaços,

a

higienização,

vacinação,

organização

da

população

em

abarracamentos a sotavento da cidade, entre outras, não foram suficientes para conter a epidemia que assolou toda a cidade. O aumento vertiginoso do contingente populacional fazia emergir as primeiras grandes favelas de Fortaleza, que se alocavam nas praças e nos


52

arredores da urbe, contribuindo para agravar o desequilíbrio entre a população e a disponibilidade de alimentos e habitações. Segundo Silva et al. (2004), a cidade, que antes possuía aproximadamente 25 mil habitantes, passou, com a seca de 1877 e a chegada dos migrantes, a ter uma população com cerca de 130 mil pessoas. Destes, quase a metade morreu acometida pela varíola que abateu a cidade, devido às precárias condições de higiene deste contexto de penúria e inchaço populacional. Rodolpho Teóphilo descreve bem o cenário de desolação que interrompia o período de grande crescimento na cidade. Tinha Fortaleza o aspecto da sombria desolação. A tristeza e o luto estavam em todos os lares. O commercio completamente paralisado dava as ruas mais publicas a feição de uma terra abandonada. Os transeuntes que se viam eram vestidos de preto ou mendigos sahidos dos lazaretos com os signaes recentes de bexiga confluente que lhes esburacou a cara e deformou o nariz. (THEÓPHILO, 1997: 23).

A seca e a epidemia, que atraíam para a província milhares de sertanejos famintos e doentes, eram algumas das principais adversidades confrontadas pela leva de médicos higienistas e urbanistas, o que legitimava ainda mais a necessidade de procederem sobre a vida urbana. Segundo Lopes (1989), os desordenados conglomerados de migrantes advindos do sertão, além de “enfeiar a cidade”, eram apontados como foco de doenças e de vadiagem. O aumento expressivo e desordenado da população acarretou em um crescimento inesperado de mendigos, o que por sua vez era considerado como sério risco à saúde e à segurança pública. O aumento das favelas era visto como ameaça à formosura da “Europa Cearense”, logo o apelo médicosocial ganharia a adesão das elites para isolar estes percalços. ... a cidade começou a perder seu encanto, seu refinamento, seu “chiquê”, conseqüência das violentas secas que se abateram sobre o sertão, despejando milhares de flagelados famintos em nossa Capital, originando as favelas, a profusão de mendigos, gerando, enfim, uma nova condição social que


53

modificou, radicalmente, os costumes da nossa urbe. (LOPES, 1989: 113-114).

O abarracamento nas proximidades das residências dos mais abastados apavorava as autoridades, mais um incentivo para o governo fazer distarem esses conglomerados o máximo possível do centro da cidade. O medo provocado por essa multidão de pedintes dava-se não apenas pelo risco de doenças, mas também pela situação de violência que começava a ser criada. As estratégias de sobrevivência dos agricultores arruinados pela seca, desenvolvidas após um rápido e sofrido aprendizado na cidade, tornavam-nos fontes de temor por parte das elites, que temiam não só o contágio com doenças perigosas, mas também a degradação moral da sociedade, com o aumento descontrolado da criminalidade e da prostituição – sem falar no potencial de rebelião e violência. O roubo, o saque, a mendicância e a fraude pareciam emergir subitamente como uma natureza adormecida, subterrânea e reprimida, que somente a pressão permanente e o controle rigoroso dos proprietários de terras pareciam conter. (NEVES 2008:58)

Segundo Ponte (2000), considerados um obstáculo ao processo civilizador, os poderes públicos tentavam realocar trabalhadores de rua, prostitutas, vadios, pobres, idosos, loucos e órfãos, como forma de garantir a ordem social e a disciplina. Para isso, foram criados, por exemplo, dispositivos como o Asilo de Alienados São Vicente de Paulo10, destinado aos loucos, o Asilo de Mendicidade, construído em 1886, juntamente com o Asilo de Alienados, na Parangaba, para idosos pobres e a Colônia Christina, que teria sido fundada pelo conselheiro José Julio de Albuquerque Barros para acolher as crianças vítimas da orfandade e da miséria. Além disso, os abarracamentos na periferia da cidade eram também dispositivos de confinamento dos retirantes.

10

Atualmente conhecido como Hospital Psiquiátrico São Vicente de Paulo, permanece no local original, na entrada do distrito de Parangaba.


54

Como aponta Gadelha (2008), o isolamento não representava uma medida puramente para execrar os doentes, mas também uma forma de observação mais atenta da doença e de sua evolução sintomática. De acordo com Lima (2003), em nome do "aformoseamento" da cidade, foi travado um conjunto de reformas que implicavam a domesticação do povo, sobretudo dos setores populares, cujos hábitos e costumes eram tidos como rudes e selvagens pelos agentes daquele processo. A educação corporal era exigida na formação de homens polidos, disciplinados, limpos e sadios. Através da pedagogia, intentava-se adaptar os "rudes" sertanejos às novas disciplinas e tecnologias sociais: vida em comum, banheiro, horários rígidos, higiene pessoal, vacinação, novas hierarquias e a uma vigilância contínua. De fato, originários de um mundo rural tradicional, onde viviam em comunidades isoladas, em regime de produção autônoma familiar, os retirantes – agricultores pobres, em sua grande maioria – não dominavam os conceitos de urbanidade e salubridade. Desta forma, ao ocuparem a cidade, desconheciam seus códigos e suas formas de vida. Aglomerando-se, pretendiam enfrentar juntos a adversidade da fome e da miséria, podendo barganhar esmolas ou trabalho nas obras públicas com maior possibilidade de êxito. Poderiam, ao mesmo tempo, retomar costumes rurais comunitários, de solidariedade e apoio mútuo, como o mutirão, cada vez mais necessários. A aglomeração dos abarracamentos, contudo, levou-os a uma situação diferente, em que a pressão dos comissários e a necessidade de compartilhar equipamentos novos – refeitórios, cozinhas, casas, banheiros etc – colocava-os em competição pelo trabalho mais confortável, pela ração completa ou menos estragada, pela proximidade com os comissários e seus apadrinhados. (NEVES, 2008:56)

Para atender à imensa quantidade de flagelados, ainda segundo Lima (2003), foram criados campos de concentração, locais que as autoridades governamentais reservavam para prestação de socorros aos retirantes, como a "ração alimentar”. A quantidade de comida era desproporcional à multidão, logo era grande o número de mortos. Em razão disto, esses campos passaram a ser denominados "cemitério dos santos".


55

De acordo com Teóphilo (1997), foram enormes as devastações deixadas pela epidemia de 1878. Em pouco mais de dois meses, 27.378 pessoas sucumbiram. O farmacêutico calcula cerca de 130 mil habitantes de Fortaleza, dos quais 110 mil eram retirantes fugidos da seca e fome, que assolava o Ceará. Dentre estes, 95% não eram imunizados contra a varíola e viviam nos mais rudimentares preceitos de higiene. Para Gadelha (2008), o Ceará apresentava uma salubridade precária e uma higiene pública omissa, o que concorria para o surgimento e proliferação de epidemias. O contato direto propagava a doença rapidamente. Para garantir renda, comida, aguardente e roupas, alguns homens se dispunham a transportar os doentes ou mesmo os cadáveres dos variolosos pela cidade. Rodolpho Teóphilo via essa atividade com desprezo e repugnância, considerando-a um atentado à higiene pública e à moralidade: Disse ser repugnante o espectaculo do transporte dos cadáveres dos variolosos. E de facto o era. Imagine-se um cadáver, meio putrefacto, vestido apenas de ligeiros trapos, amarrado de pés e mão a um pão, conduzido por dois homens, ordinariamente meio embriagados, e se terá visto o modo porque iam para a vala os retirantes mortos de varíola em Fortaleza. Quantas vezes as famílias chegando as janellas de suas casas, entravam horrorisadas porque deparavam com estes esquifes estendidos nas calçadas e ao lado os carregadores, que excitados pelo álcool, descansavam da carga palrando sem descanso. (...) E assim, expostos iam a luz do sol, a vista de todos, escandalisando o publico e mais comprometendo a saúde da empestada cidade. (TEOPHILO, 1997:13)

Dos fins de setembro ao fim de dezembro de 1878, foram sepultadas cerca de 24.849 pessoas somente no cemitério da Lagoa Funda. Considerados os cadáveres cremados nos abarracamentos dos subúrbios e os enterrados clandestinamente nos matos da cidade ou ainda os que eram destinados ao São João Batista, o número dispara. Costa (2004) afirma que apesar de todas as medidas adotadas, a administração não conseguiu impedir o progresso da varíola e a doença estendeu-se a todas as classes sociais, vitimando, inclusive, a esposa do presidente.


56

A mortalidade pela varíola continuou aumentando durante todo o ano de 1878. Em novembro, o número de vítimas fatais atingia a cifra de 9.844 e em dezembro, 14.491. Apenas no dia 10 de dezembro de 1878 morreram 1.004 pessoas, dia que ficou conhecido como “Dia dos Mil Mortos”. Defensor absoluto do discurso médico e das transformações sanitárias de hábitos e costumes, Teóphilo (1997) descreve com indignação o tratamento dispensado aos corpos na trágica data. O administrador redobrou de esforços e actividade. Era impossível cincoenta e dois homens abrirem valas para tantos corpos. Embora o terreno de areia, e portanto de fácil perfuração, embora a diária augmentada e a ração de aguardente dobrada com o fim de animar os enterradores, ficaram, as 7 horas da noite quando os coveiros largaram por mais não poderem de cançados, duzentos e trinta cadáveres insepultos! Quando pela manhã voltaram os coveiros a continuar sua labuta, encontraram cães e urubus cevando-se na carniça humana!... (TEOPHILO, 1997:27)

Na tentativa de lutar contra o que parecia impossível, a administração da província realizou uma ampla limpeza, retirando a sujeira e combatendo os miasmas, saneando os alojamentos insalubres, fiscalizando fontes d'água, distribuindo mantimentos e vestimentas e oferecendo trabalho aos migrantes “válidos”, aqueles que tinham condições de trabalhar. A iniciativa de empregar a força de trabalho do retirante na realização de obras públicas fazia parte da “cartilha” de higiene moral e da política de combate à ociosidade, ao vício e à vadiagem. Como já foi dito, todos os esforços e práticas médicas foram insuficientes para deter a epidemia de varíola. A quantidade de vacinas não atendia ao excedente populacional e a carga que chegava ao Ceará já não surtia efeito, por ser ineficaz e de má qualidade. Para agravar a situação, a população muitas vezes rejeitava a vacina, que exigia a inoculação do vírus no corpo. Passado o período mais crítico desta seca, desmobilizaram-se as comissões de socorros e os abarracamentos, levando muitos retirantes a


57

retornarem à região de origem. Ainda assim, parcela considerável permaneceu em Fortaleza e nos arredores. O alto índice de mortalidade desestruturou muitas famílias, o que concorreu para a busca de alternativas como a mendicância, o meretrício e o trabalho informal. Em contraste com os signos da cidade, perambulavam pela cidade, muitos deles marcados pela doença. A modernização não alcançava todos os espaços; nos arrabaldes, o controle sanitário não havia sido implementado. Havia indícios sobre trabalhadores pobres na capital cearense, geralmente, trabalhadores de rua, sem local fixo de trabalho. Em momentos de seca e epidemia, muitos tornavam-se carregadores de cadáveres, empregando-se temporariamente na Santa Casa. {...} Em períodos normais, dividiam-se em vários trabalhos, como: vendedores de carne verde, aguadeiros, vendedores de frutas, acrobatas e quimoeiros. Outros eram pedintes, batiam nas portas das casas, mostrando as chagas deixadas pela varíola (CORREIA, 2003: 12-14)

Conforme o Relatório do Presidente da Província do Ceará, Heráclito D’Alencastro Pereira da Graça, elaborado a 1º de março de 1875, a cidade de Fortaleza apresentava uma população de 21.372 habitantes. Já em 1887, de acordo com o resumo da população de Fortaleza na Falla do Presidente da Província do Ceará, Dr. Enéas de Araújo Torreão, de 1º de julho de 1887, a capital cearense era constituída por uma população de 26.624 habitantes. O aumento seria justificado, em parte, pela parcela de retirantes que permaneceu na cidade, mesmo após o término do período da seca de 1877-1879. A seca/varíola de 1877-1879 tornou-se o foco de atenção das elites e do poder locais no sentido de inserir novamente a cidade num processo de racionalização do espaço urbano ligado ao ideal de progresso, na tentativa de apagar as marcas do atraso. Nesse processo, os jornais exerceram um papel fundamental, seja cultuando ou criticando as ações governamentais e o comportamento da população referentes às medidas sanitárias. As chuvas de 1879 aos poucos foram dando trégua ao terrível período vivido pela cidade. Os jornais estampavam o horror com o qual se via a situação da salubridade de Fortaleza, especialmente com a disseminação da varíola e a morte de milhares de pessoas. Formados por representantes da


58

elite intelectual, política e social, os periódicos passam então a participar do processo de pregação do discurso médico e da necessidade de reformas urbanas urgentes. É sobre esta intelectualidade à frente dos editoriais dos periódicos que nos debruçamos no próximo capítulo.


59

3. PALAVRAS EM CENA: DISCURSO JORNALÍSTICO EM NOME DA CIVILIZAÇÃO

Como

mostra

Fernandes

(2004),

os

jornais

cearenses,

especialmente aqueles ligados a uma ideologia partidária, se constituíram numa arena de disputas ideológicas, em que foram inseridos discursos apaixonados

e

racionalizadores

de

jornalistas,

escritores,

intelectuais,

tipógrafos e leitores. Estes agentes, como produtores de sentido aos fatos, transpuseram aos impressos sentimentos, interesses e posturas políticas na cobertura noticiosa dos fenômenos da seca e da varíola. Ao passo em que a cidade era dotada de um aparelhamento técnico e reordenada em seus espaços, emergiam também falas desejosas de imposição de uma reforma também das personalidades e sentimentos urbanos, delineando novos parâmetros de modos de agir. Devido à institucionalização da condição de cidade e capital da província cearense, Fortaleza foi o espaço privilegiado de divulgação dos interesses burgueses de comerciantes, proprietários de terra, funcionários de governo e militares, em diferentes nuanças, e dos intelectuais cearenses que criaram sociedades literárias, jornais e revistas, órgãos fundamentais na projeção, visibilidade e leitura de idéias e propostas de atuação social e política, em nome da imprensa, do progresso, da civilização, do Ceará e da nação brasileira. (FERNANDES, 2004:45)

Hábitos tidos como desviantes ou subversivos eram comumente expostos à vida social pública. Conforme Santiago (2004), o riso e o escárnio eram instrumentos que serviam como punição e correção, pela repreensão e censura, através da ridicularização dos destoantes. Os olhares censores dos “bons cidadãos e guardiões dos bons costumes” estavam sempre atentos e fitados sobre a urbe. Como parte desse processo, os proprietários e redatores de pasquins e jornais, “contaminados” pela ideologia sanitária do corpo e da “alma”, foram fundamentais, intentando o decoro moderno e civilizado do projeto almejado para Fortaleza. Suas pautas, a partir de então, passavam a ser o convívio social tido como adequado. A inspeção da vida social incluía


60

tudo que representasse uma ameaça ao bem-estar de todo o corpo social, fosse a moda, as festas públicas, os passeios, os costumes, ou quiçá o ambiente privado das casas. A imprensa funcionava como um rigoroso fiscal na observância dos valores que levassem ares civilizatórios e higiênicos. Um poderoso e estratégico mecanismo de divulgação do novo ethos pretendido para os transeuntes, mas também na internalização11 de uma disciplina autoreguladora, primeiramente medida pelos olhares alheios. Os discursos, por sua vez, eram carregados de uma pedagogia do “bem-viver”, que determinava a licitude (ou não) das ações. A linguagem, muitas vezes insultuosa, reprimia tudo que não se enquadrasse nos códigos específicos de comportamentos. As pequenas folhas (pasquins), ao virem a público, diziam sair com o fim de divertir a população e, em especial, o “belo sexo” (a mulher). No entanto, na medida que envolviam seus leitores com curiosas “fofocas” sobre a vida do outro, terminavam por apontar aloés que consideravam lícitas para o decoro da convivência social e que colocavam em risco uma ordem que se estabelecia como moderna e civilizada. Acabavam, ainda, por estimular o olhar do outro e coadjuvante da ação (o leitor) a assumir o papel de quem corrige e/ ou restabelece hábitos adequados à ordem de interação social moderna para a cidade. (SILVA MAF, 2004:34)

As condutas impróprias e descontextualizadas eram alvo de ironia e malícia, objetivando a criação de embaraço, humilhação, intimidação pública e, por fim, um castigo que levasse a um conseqüente aprendizado, quase que behaviorista12.

11

Faço aqui referência ao termo utilizado por Norbert Elias, em “O Processo Civilizador”, volumes 1 e 2, para designar a incorporação de uma auto-disciplina sofrida pelo Ocidente no que tange a um comportamento “civilizado”, melhor dizendo, a um aspecto de impulso civilizador, de controle dos afetos e comportamentos. 12 Refiro-me às experiências de Burrhus Frederic Skinner, que mostrou, em testes comanimais, o condicionamento comportamental a partir da produção de estímulos.


61

Pequenas

gazetas

utilizavam

seu

poder

de

influência

e

instrumentalizavam seus discursos impressos no modelo hegemônico de “bemestar e estar bem” no mundo, com o balizamento das dimensões da vida. No estudo que faz sobre o embate político de três periódicos cearenses, Fernandes (2004) analisa como os veículos de comunicação impressa serviam à promoção política e ao pleiteamento de cargos. A pesquisadora utiliza a metáfora da teatralização dos jornais, comparando o público leitor aos espectadores, as pautas ao roteiro seguido pelas personagens, a disposição das pautas ao cenário e os tipógrafos, jornaleiros e impressores como atores do espetáculo. Aproveito o ensejo para metaforizar o meio jornalístico a uma escola, onde os escritores são os mestres, as notícias são as cartilhas e os leitores são os alunos que devem ser incitados ao estudo fervoroso da “tabuada social”. Sinais de prestígio, progresso e poder político, os jornais, de um modo geral, utilizavam o espaço noticioso para promover seus partidos políticos, mas também para abarcar uma tarefa que era vista como inata da atividade: o dever de educar/bitolar as massas incultas. Motta (2005) alerta-nos, entretanto, para refutar o que ele compreende ter orientado o paradigma hegemônico da pesquisa em jornalismo no Brasil nas últimas décadas, identificado como “midiacêntrico”. Segundo ele, uma visão ingênua e simplista, para a qual é privilegiada uma demasiada autonomia do jornalismo, então visto como um ator social ativo na configuração da cultura política da sociedade, “confirmando seu lugar hegemônico de dizer e de poder dizer” (MOTTA, 2005:2). Como contraponto, o autor propõe o paradigma “sociocêntrico”, que leva em conta a potência do jornalismo e o seu lugar como espaço privilegiado da sociabilidade contemporânea e reconhece que a dinâmica social e política se altera com a presença da mídia e das novas formas,

recursos

e

linguagens

do

jornalismo,

sendo

este,

todavia,

absolutamente permeável às contradições sociais e às pressões da sociedade civil, sujeito, portanto, a inúmeras negociações. Os meios de comunicação tendem a desviar as vistas dos leitores ou espectadores para os planos e ângulos convenientes aos dominantes. A manipulação das visões, por objetivos de lucro e/ou ideológicos, impede que os interesses dos menos


62

favorecidos sejam expressos. Isto não significa que nunca encontrem oportunidade de veicular suas reivindicações. Uma forte mobilização popular em torno de um tema pode fazer com que a mídia seja levada a encampá-lo. (CAPELATO, 1988:11)

Não desconsidero, deste modo, a força da sociedade que se impunha também sobre o jornal. Não podemos entendê-la como um elemento meramente passivo. Para os fins desta pesquisa, no entanto, analisamos a potência do jornalismo como instituição política na (ambição de) determinação de um novo desenho urbano da cidade e dos comportamentos, sem nunca desconsiderá-lo como um ator social capaz de ceder e de negociar. Como veremos adiante, grande parte dos jornalistas que fazia parte do corpo profissional dos jornais eram profissionais letrados, muitas vezes formados nos grandes centros, e que, por isso, diante da massa analfabeta, detinham grande legitimidade. Segundo Fernandes (2004), Fortaleza contava, em 1887, com cerca de 27 mil habitantes, dos quais pouco mais de nove mil pessoas sabiam ler ou tinham profissão, muito menos acesso ao referido jornal. O alto índice de analfabetismo, todavia, não pode ser visto como empecilho para a disseminação dos assuntos abordados nos textos do Cearense, tampouco dos seus valores. Capelato (1988) mostra que desde o período colonial, quando a Coroa Portuguesa colocava barreiras ao desenvolvimento da imprensa, para evitar oposição, diários e panfletos surgiam e, no drible à falta de “letramento”, a comunicação oral desempenhava um papel fundamental. Lia-se em voz alta nas esquinas, nas farmácias, e nos serões familiares, o que possibilitava a disseminação dos conteúdos. Não apenas jornalistas, mas intelectuais como bacharéis de Direito, profissionais liberais, políticos e críticos da sociedade, enquadravam idéias nas colunas, colaborando ativamente na fomentação do “caminho da virtude, alto e fragozo. Mas no fim doce, alegre e deleitozo”, como afirma Studart apud Fernandes (2004). Redatores, tipógrafos e leitores viam, na imprensa, uma das principais instituições, em que se poderia ensaiar e construir uma cultura urbana. Compreender o ambiente em que emergiam essas idéias e orientava o corpo profissional que estava à frente desses períodos é salutar.


63

3.1. COMUNIDADES INTELECTUAIS NA ROMARIA DO PROGRESSO Fruto da enorme expansão econômica e da nova situação política que se desenhava, Fortaleza foi marcada por uma intensa atividade intelectual a partir dos finais do século XIX. Tento aqui apresentar algumas idéias engendradas por estes intelectuais, lembrando que estas não podem ser dissociadas da vida social e cultural em que se encontravam situadas, tampouco vistas como mero reflexo da vida econômica. Deste modo, é imprescindível conhecer o pano de fundo que tange essa lógica letrada, adentrando na vida e no contexto sócio-político que a cerceava. Esses pensadores defendiam apaixonadamente as legendas da sociedade

industrial-civilizatória

como progresso,

tecnologia e

ciência.

Buscando alcançar um convencimento de outrem a seus ideais e projetos, intelectuais imprimiam nas mais diversas expressões, como em jornais, livros, debates, instituições de saber, partidos políticos, etc., a sua reflexão sobre o mundo. Muitos deles eram filhos de sertanejos, mas a grande maioria das ricas famílias de Fortaleza. Conhecidos como “Mocidade Cearense” e os “Novos do Ceará”, os membros desse universo letrado fortalezense podem ser caracterizados como um grupo que participou ativamente de campanhas em prol do racionalismo filosófico e do movimento abolicionista, bem como das causas republicanas. Muitos deles, posteriormente, fundariam agremiações como:

Academia

Francesa,

Sociedade

Libertadora

Cearense,

Centro

Abolicionista, Clube Literário, Instituto do Ceará, Academia Cearense e Centro Literário, estes últimos criados em 1894. Outros mais tarde fundariam a Padaria Espiritual. Como principal entreposto da atividade algodoeira do Ceará, Fortaleza, a partir da década de 1870, desenvolve rapidamente seus contatos com outras regiões do Brasil e também com o exterior, o que resulta em importantes incrementos na bagagem cultural da cidade. O universo intelectual foi um dos principais beneficiários, já que aqueles que aportavam, como os estudantes que vinham à Fortaleza para freqüentar os cursos secundários, traziam consigo as impressões de outros ambientes intelectuais e, com isso,


64

novas idéias. Como afirma Oliveira (2002:16), “o porto de Fortaleza tinha movimentos nacional e internacional garantidos todos os dias 05, 11, 18, 20, 21, 25 e 30”. Produtos dos mais diversos embarcavam e desembarcavam no local. Juntamente com sacas de algodão, tonéis de vinho, louças, cristais, perfumes e outras quinquilharias, chegavam aqui, muitos por encomenda, revistas, jornais e livros. A procura dos cursos secundários e a chegada de estudantes que realizavam seus cursos superiores em outros lugares do país dinamizou ainda mais o âmbito intelectual de Fortaleza. Até 1845, quando é criado o Liceu do Ceará, o acesso ao ensino superior permanecia bastante restrito, posto que aqueles que concluíssem as “primeiras letras” somente poderiam prestar cursos secundários ou preparatórios para as academias em outros estados, o que certamente era possível apenas para indivíduos abastados. A abertura do Liceu possibilitou o ingresso de membros da elite local nas academias e aumentou significativamente o seu nível de participação no universo político imperial. Para Oliveira (2002), abriu-se, a partir de então, as portas para a possibilidade de uma elite letrada local e o estabelecimento de parâmetros intelectuais para uma visão crítica, fosse política ou não. A elite política imperial exaltava a cultura bacharelesca, onde destacavam-se os bacharéis em Direito, parcela significativa da minoria dirigente do Brasil. Alguns aspectos como o tempo prolongado do curso, que durava entre cinco e seis anos, sem um bom aproveitamento para os exames gerais, e a falta de permissão para conferir o título de bacharel em Letras, situavam o Liceu a um passo atrás do ensino particular, que teve considerável impulso neste período. Dentre os particulares merece destaque o Atheneu Cearense, que inaugurou o regime de internato no ensino secundário e propiciou grande influência na socialização e formação da elite local, bem como no encaminhamento de seus alunos ao ensino superior, à política e burocracia locais. Utilizando o “moderno” sistema de prêmios e punições morais, a escola buscava desenvolver bases sólidas de instrução literária. Outras escolas particulares podem ser citadas: Pantheon Cearense, Universal, São José e Cearense.


65

Os intelectuais se configuravam como minoria não apenas por serem parcela minoritária alfabetizada13, mas também por serem provenientes das camadas mais favorecidas da população alencarina. Eles se reuniam e lançavam um olhar próprio sobre o restante da sociedade, o que futuramente seria reproduzido em outros movimentos intelectuais e políticos ou ainda em outros espaços formais e informais levados a efeito por estes grupos. No que diz respeito à formação intelectual, além das idéias, outros elementos de classe eram reforçados, como obediência, disciplina, organização hierárquica da sociedade e, principalmente, o culto às práticas culturais europeizadas. A Academia Francesa, por exemplo, da qual participaram Thomaz Pompeu Filho e Tristão de Alencar Araripe Júnior, ambos à frente do jornal Cearense, pode ser entendida como um movimento com fins de leitura, articulação política e intelectual, além de uma forte preocupação pedagógica, sendo a primeira experiência de grêmio filosófico e literário cearense. Marcada pelo cientificismo e pelo positivismo, a Academia promovia conferências noturnas que ficaram conhecidas como “Escola Popular”, situada à rua Conde d´Eu nº 98, destinada principalmente às massas pobres e analfabetas e que, de modo geral, irradiou um sistema de referências de leituras. Estas conferências faziam uma abordagem cientificista de temas diversos. Conhecida também como “Escola Noturna”, dispensava ensino gratuito à população sobre História Universal, explicações da Constituição, política do império, ensino moral e leitura de jornais, principalmente o Cearense, onde também eram publicadas as convocações para as aulas e notas sobre o funcionamento da escola14. Isto mostra que o Jornal era visto também como instrumento de ensino e educação, sobretudo às populações carentes. Utilizado como material pedagógico e veículo de instrução, ganha notoriedade como valor literário, portanto educacional, na imprensa política. Inaugurada em 31 de maio de 1874, a Escola Popular oferecia cursos de primeiras letras e de cadeiras de língua nacional, francês, história, aritmética e geografia a operários e homens pobres da capital. Referindo-se a 13

Conforme Oliveira (2002), Em 1872, 88,46% da população era analfabeta; 85,84% se deduzida a população menor de cinco anos de idade. 14 Essas notas não constam no período que analisei.


66

ela, Antônio Bezerra apud Oliveira (2002) afirma, na revista A Quinzena, de 1888: Começa-se daqui por diante a notar uma certa orientação nos estudos, que embora vagarosamente e tendo pela frente a indiferença dos ignorantes, se divulgou até 1887, quando a catástrofe da seca, que atrofiou as forças vivas da província, trouxe a debandada dos mais valorosos propagadores do nosso desenvolvimento literário, bem fraco por certo ainda.

Criado em 1875, o Gabinete Cearense de Leitura se coloca como outro espaço privilegiado para desenvolver essas reflexões e criar laços de identificação que mais tarde culminariam em movimentos políticos e literários de 1880. Sua proposta era manter uma biblioteca e difundir na província as leituras modernas da ciência. Outro local de leitura era o Reform Club, criado em 1876. Em 1875 diversas conferências também eram realizadas por Capistrano de Abreu, que buscava encontrar no determinismo as influências da natureza sobre a sociedade brasileira. Para ele, o clima, a alimentação e o solo seriam fatores determinantes para a inaptidão natural do povo brasileiro ao trabalho. Essas leituras da sociedade permitem-nos compreender a visão de mundo e as posturas desses intelectuais que representariam nos próximos anos uma geração atuante no seio político da cidade, sempre com fins de combater a “atrofia da sociedade”. A relação entre a Academia Francesa e a imprensa maçônica foi fundamental para a promoção desses pensamentos em prol do progresso. A proposta da Escola Popular, de “educar o proletariado”, pôs em evidência a tarefa educativa da ciência, do conhecimento verdadeiro, que tem, entre suas obrigações, a de encaminhar os espíritos para uma diretriz do progresso. Esse materialismo cientificista encontrou a sua primeira possibilidade de combate com a crítica ao clero na chamada questão religiosa. As críticas ao clero voltavam-se ao espiritualismo e aos seus enganos. Nisso aproximaram-se dos maçons e de sua imprensa. Transformar os preceitos científicos em preceitos morais foi o passo seguinte. (OLIVEIRA, 2002:35)


67

Segundo Neves (2002), a partir da década de 70 do século XIX até a primeira década do século XX, a loja maçônica ocupou um espaço privilegiado de convivência, exercício intelectual e político. Através de sua imprensa, grande parte da elite intelectual fortalezense exercitava as novas formas de sociabilidade importadas da Europa e reafirmavam valores racionais burgueses que desejavam verem triunfantes. Novos espaços de reunião, convivência e promoção dessa intelectualidade foram posteriormente desenvolvidos, como os cafés, por exemplo. Na base das representações, os ideais de progresso, civilização e liberdade de consciência tinham matrizes liberais e iluministas, pensadas a partir do modelo europeu de desenvolvimento social. Durante o século XIX, era prática comum entre a intelectualidade alencarina a formação de espaços, muitas vezes exclusivos, de discussão de temas de caráter filosófico, político e literário, onde eram produzidos e divulgados trabalhos. Essas agremiações e grêmios literários cumpriam o dever de fazer circular jornais e revistas, já que não havia ainda centros de pesquisa nem universidades. Somente na segunda metade do século XIX, segundo Mota apud Oliveira CF (2002), surgiram cerca de 36 agremiações no Ceará. Oliveira (2002:75) cita o artigo “As Conferências do Club Literário”, onde Oliveira Paiva exprime a relação entre cultura letrada e civilização: “Comece-se por encarar que as Lettras, cujo orgams são a tribuna e a imprensa, hoje em dia por tal modo se interessam com a humanidade, que ellas podem dar-se como a melhor synthese da civilisação”. Influenciados pelas teorias de Charles Darwin, Hebert Spencer e Lamarck,

por

exemplo,

esses

intelectuais

discutiam

temas

como

o

evolucionismo, a mulher cearense e o índio, inserindo essas temáticas no contexto da modernidade. Na tentativa de livrar o Ceará do “marasmo cultural”, esses pensadores empreenderam-se no desenvolvimento da cultura letrada, abrindo espaços para discussão e (re)produção de idéias advindas, principalmente, da Europa. As formações adquiridas por esses intelectuais distinguia-os do restante da sociedade, conferindo-lhes status e legitimando-os como detentores de um saber institucionalizado e “culto”. Como afirma Oliveira


68

(2002), é importante ressaltar que mesmo importando teorias, bem como modelos teóricos e estéticos, e tomando-os como efígie do progresso para Fortaleza, esses homens tentavam adequá-los à realidade local, para explicar os acontecimentos históricos da província. Seria, portanto, uma atitude um tanto reducionista afirmar que a absorção dessas idéias teria se dado de forma totalmente acrítica. As representações maçônicas, identificadas com idéias iluministas e liberais, expostas na imprensa dos anos 70 da centúria retrasada, emprestaram, a partir da vulgarização do livro e da imprensa e da educação popular laica, importante papel à educação e à cultura da cidade em suas propostas de reforma social. Apostando no poder da educação para promover a regeneração social das camadas populares e transformar as massas “maleducadas”, esses intelectuais investiam em programas de instrução popular. Neste sentido, lançaram seus esforços em escolas apoiadas ou por eles criadas, pela literatura de modo geral e, principalmente, através da imprensa. Na luta pela hegemonia da educação das massas, eram freqüentes os conflitos entre esses grupos e a Igreja, que trocavam, via jornais, constantes acusações. Os iluministas com o corrente argumento de que a Igreja, na tentativa de dominar as consciências ingênuas, promovia a ignorância e por vezes o fanatismo. Os maçons sabiam que era através das missões, principalmente, que a Igreja ultramontana angariava mais adeptos nos sertões para a causa da romanização, à qual estava comprometida. Daí a insistência em afirmar que essas missões alimentavam as superstições e o fanatismo dos sertanejos, ao invés de contribuírem para transformar suas “índoles” rudes e grosseiras. Além disso, insistiam ainda – dentro de uma preocupação típica da medicina social que já dava seus primeiros passos no Ceará por esses tempos – que essas missões não eram recomendadas pelo fato de que amontavam muitas pessoas numa época em que as epidemias de cólera, febre amarela e varíola eram ameaças constantes. (NEVES, 2002:115)


69

Essas reflexões, baseadas, sobretudo, no cientificismo, foram o pilar das práticas intelectuais da elite letrada no Ceará tendo como eixo definidor a modernização das estruturas. A seca de 1877/1879 causou grande crise produtiva, demográfica e social no Ceará. Finda a tragédia, a reorganização das estruturas materiais, sociais e culturais da província se mostrou o ambiente ideal para que estes intelectuais exercessem suas atuações não mais nas academias, apenas, mas também nos movimentos sociais que ansiavam pela inserção do estado no progresso material da civilização européia e na modernização que adviria com a abolição da escravatura, com a República e com a reestruturação de Fortaleza. Nesse sentido, a imprensa foi o espaço por excelência para a exaltação dessas ações. Durante a passagem do Segundo Reinado para a República, a imprensa fortalezense foi palco de intensas atividades políticas e literárias. O crescimento demográfico, causado tanto pela migração dos sertanejos desvalidos pela seca, quanto pelo crescimento da cultura do algodão, a partir de 1860, fez com que emergissem distintos grupos com interesses diversos. Adeptos do ideário positivista, esses pensadores exaltavam os princípios do trabalho disciplinado e do ajustamento social, de forma que o seu discurso respaldava uma elaborada instituição disciplinar urbana em Fortaleza, esboçada

já em 1850, com intensas formas de controle social sobre as

camadas ditas baixas da sociedade, como retirantes, crianças abandonadas, moradores dos subúrbios, mendigos e doentes contagiosos. Exemplos desses mecanismos, já citados no capítulo anterior, foram os asilos de mendicidade e de alienados, lazaretos, reformatórios e abarracamentos. A racionalidade instrumental do controle dos comportamentos e o exercício legítimo do poder desses homens letrados calcava-se no ideal sociocrático de Augusto Comte, para o qual o positivismo seria o meio ideal de regeneração da sociedade. Acreditando no poder da atividade letrada enquanto ação transformadora da realidade social, o que Nicolau Sevcenko apud Cardoso (2002:42) denomina “literatura como missão”, esses intelectuais colocavam o seu público leitor a par dos debates políticos e filosóficos que envolviam os principais centros do país, seja na frente no jornalismo político ou do jornalismo literário-científico.


70

Caminha (2001:150) exprime bem a lógica desses letrados através da fala do personagem Zuza: “Cada vez me convenço mais de que isso é terra selvagem, seu José Pereira! Isto é um país de bárbaros. Vocês da imprensa devem civilizar este povo, devem ensinar a esta gente a pensar e a ter juízo...”. Como afirma Cardoso (2002:51), enquanto porta-voz dos interesses hegemônicos dominantes, o segmento intelectual foi responsável pela estruturação de um raciocínio orgânico que veio não só legitimar, mas também viabilizar “os empreendimentos institucionais daquela geração, a garantir, naquele território social, espaços institucionais para seu exercício de poder”. Além de subtrair grande parte da população das questões políticas e sociais, esses discursos, que buscavam alinhar os comportamentos das classes trabalhadoras e pobres à disciplina do trabalho na ordem industrial e na moral, legitimavam o que Foucault apud Cardoso (2002:53) denomina “uso legítimo dos saberes disciplinadores”. Instituições repressoras como o aparelhamento policial, os códigos de postura e doutrinas higienistas eram utilizados a fim de garantir a legalidade da razão social e dos interesses que representavam as classes privilegiadas, que impunham tecnologias punitivas de correção e ajustamento da população ao trabalho disciplinado. Grandes eram os investimentos de médicos, sanitaristas e psiquiatras sobre os hábitos e os comportamentos tidos como desviantes, por comprometerem a moral e os bons costumes. Como

apontado

anteriormente

acerca

dos

procedimentos

metodológicos, para apreender a lógica que permeia o noticiamento dos fatos por um viés específico do jornal, fazem-se primordiais algumas indagações sobre quem são seus proprietários, a quem se dirigem e com que objetivos. São essas as questões iniciais para delinear um perfil provisório do periódico eleito como objeto e fonte de pesquisa. Conheçamos, então, um pouco da história do Jornal Cearense para adentrarmos no destrinchamento de seu conteúdo.


71

3.2. VOZES CEARENSES O Cearense descendeu dos jornais Vinte e Três de Julho, de 1840, e A Fidelidade, de 1844, ambos publicados em Fortaleza. O primeiro foi fundado em comemoração à ascensão liberal à presidência da província cearense, com a posse do senador Alencar. O segundo foi fruto da substituição do Vinte Três de Julho. Os periódicos permaneceram sob a direção e redação de Frederico Pamplona, Tristão Araripe e do senador Thomaz Pompeu, até que, dois anos depois, fosse fundado o Cearense, com o apoio dos redatores Miguel Ayres, João Brígido, Paula Pessoa, Dr. José Pompeu, Conselheiro Rodrigues Júnior e João Câmara, que atuou como gerente até 1880, quando o substituiu o Dr. Paula Pessoa. Já como aponta o relato de Studart (1852:79), baseado no que teria lhe declarado o próprio Thomaz Pompeu de Souza Brazil, o senador cearense só teria feito parte da redação do Cearense em 1848, dois anos após a fundação da folha liberal. Em 1850, Frederico Pamplona, Miguel Ayres e Tristão Araripe viajaram, deixando o jornal sob a direção exclusiva do senador Thomaz Pompeu, que imprime seu olhar de bacharel em Direito, professor de Teologia, político e chefe do partido liberal cearense - como também o foi seu colega jornalista e renomado criminalista Vicente Alves de Paula Pessoa, Dr. Paula Pessoa. O senador foi o primeiro diretor do Liceu no Ceará, autor de várias obras sobre geografia, história e estatísticas do Ceará e dos cearenses, além de sócio do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras, dentre outras sociedades científicas e literárias. Seu filho, Thomaz Pompeu de Sousa Brasil Filho, foi correspondente do mesmo veículo em Recife, no ano de 1868, quando era estudante na Academia de Direito. Depois de formado, em 1872, assumiu a redação junto com seu pai, José Pompeu e João Brígido e fundou, em 1873, um jornal maçônico denominado Fraternidade. Tanto quanto o pai, o jovem bacharel ocupou-se também de estudos sobre geografia e história, além do ensino primário, secundário e superior. Ele inaugurou, juntamente com João Lopes


72

Ferreira Filho, Raimundo Antônio da Rocha Lima e Joaquim Lino da Silveira, a “Escola Popular”. Outro idealizador do Cearense, Tristão de Alencar Araripe, foi também bacharel em Direito, conselheiro da Corte, membro do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, do Instituto do Ceará e da Academia Cearense de Letras, com trabalhos sobre a história do Ceará, de outras regiões do Brasil e sobre legislação. Frederico Augusto Pamplona, deputado pelo Ceará em 1846, um ano depois da eleição, também fundador do jornal, permanece na redação da folha até 1864, quando falece. Além de bacharel, Pamplona era também apreciador de poesia e romance. Defendia a noção de que a imprensa deveria ser o espaço para o debate civilizado de questões políticas em favor do juízo público. O que pudemos perceber, no entanto, ao longo de toda a consulta do Cearense foi a permanente referência ríspida aos jornais adversários, como o Pedro II e a Constituição, órgãos do partido conservador. O jornalista José Pompeu de Albuquerque Cavalcante participou da Folha até o último ano, 1891. Formado em engenharia militar, atuou também como vereador e presidente da Câmara de Fortaleza, deputado e presidente da Assembléia Provincial e deputado geral em três legislaturas, além de, no Rio de Janeiro, ter sido fiscal da empresa de viação central e intendente da Câmara Municipal da capital fluminense. Antônio Joaquim Rodrigues Júnior passou a fazer parte do veículo em 1872. Conhecido como conselheiro Rodrigues Júnior, era também bacharel em Direito e tornou-se um dos principais líderes partidários do liberalismo no Ceará. Assim como ele, João Eduardo Torres Câmara, João Câmara, foi vereador e deputado pela província cearense. Outra personalidade que influenciou bastante a ideologia do periódico Cearense foi João Brígido dos Santos. Segundo Studart apud Fernandes (2004), o jornalista enviava crônicas e comentários de Sobral para a redação do jornal Cearense, sob o pseudônimo de KKK. Além de ser reconhecido pelo talento jornalístico, ele destacou-se ainda como deputado, senador e advogado. Participou de muitos outros jornais, como O Araripe, o


73

primeiro jornal publicado no Crato, fundado e dirigido por Brígido em 1855; Fraternidade, de 1873; Libertador; Estado do Ceará, órgão da União Republicana Cearense de 1890; Martins Soares, também de 1890; A República, em 1892, Centro Republicano e da União Republicana; Unitário, em 1903; e ainda o jornal Gazeta da Noite. Poucos dados são encontrados sobre Miguel Ayres, que, conforme Fernandes (2004), teve sua história política e jornalística relegada ao quase total anonimato pelos donos do jornal Cearense. O que pudemos perceber, até o momento, é que o corpo profissional e idealizador do jornal foi concebido basicamente por uma parcela privilegiada da sociedade fortalezense, formada por uma minoria de intelectuais e representantes políticos. Filho apud Fernandes (2004) aborda a cultura política, pautada no liberalismo, que acompanhou o desenvolvimento urbano da cidade de Fortaleza, durante o século XIX. Segundo ele, modernidade, classes senhoriais, cidade, pobreza, catolicismo e literatura seriam as palavras-chave para desvendar a leitura de Fortaleza e dos fortalezenses sob a ótica do jornal Cearense.

3.3. HISTÓRIA DE UM CEARENSE Caracterizado por Fernandes (2004) como aquele que tem “o desejo de estima e de boa opinião”, o jornal Cearense foi idealizado em 1846 pela facção liberal, também conhecida como chimanga, e circulou até 1891. Seu primeiro número foi impresso em 4 de outubro de 1846, onde permaneceu sendo produzido, durante os primeiros anos, na tipografia de Francisco Luiz de Vasconcelos, na Rua da Amélia15, n.º 14. O último número saiu em 25 de fevereiro de 1891. Após a proclamação da República, em 1889, os idealizadores substituíram a epígrafe “orgão liberal” por “orgão democrático” e, para abranger outras tendências políticas, fundaram, em 1895, o jornal Ceará, órgão do Partido Republicano Democrata do Estado. 15

Atual Rua Senador Pompeu.


74

O slogan era ressaltado em todas as edições, em especial, nas datas do aniversário. Para seus redatores, era, por excelência, exemplo do exercício da liberdade de idéias e crenças, princípio básico da filosofia liberal que, nas sociedades européias capitalistas, propagava a liberdade total do indivíduo e a limitação dos poderes do Estado. Os comunicados eram de responsabilidade do emissor e deviam ser remetidos em carta fechada. O Cearense saía uma vez ou mais, por semana, dependendo, por exemplo, da chegada dos paquetes com o material tipográfico, o que fazia com que a regularidade não fosse bem definida. As assinaturas para a capital podiam ser feitas durante um ano ou por nove, seis e três meses. Para assinar o jornal, o fortalezense precisa dispor de: 12$000 para um ano; 10$000 para nove meses; 7$000 por um semestre e de 4$000 pelo trimestre. Para receber o periódico no interior, ou no exterior, esses valores aumentavam para, respectivamente, 14$000, 11$000, 8$000, e 5$000. O número avulso custava 500 réis, e os anúncios 100 réis por linha. Como afirma Fernandes (2004), os valores eram bem pouco atrativos para a população pobre, quando o litro de feijão custava 240 réis e o quilo da carne verde 400 réis. Segundo a autora, “O Cearense custava 100 réis a mais que um metro de ‘lanzinhas’, o que demonstra, de um lado, não ser um produto acessível a muitos, e, de outro, sua importância, e “status”, para parte da sociedade que o adquiria”. Mesmo os leitores interessados nos ideais propagados pelos jornalistas liberais do Cearense dificilmente pagavam com assiduidade. Um dos problemas relatados por Fernandes (2004) tratava-se da alta inadimplência dos assinantes. Talvez para tentar resolver o problema, a capa exibia, logo após a tabela de preço das assinaturas: “Pagamento Adiantado”. Apesar disso, o jornal circulou por quase meio século, 45 anos, fosse vendido por número avulso ou por assinatura para a capital, comarcas do interior do Ceará e até para o exterior, quando já estava com as quatro páginas completas de várias colunas e anúncios. O Cearense constava, geralmente, de quatro páginas, cada uma com quatro colunas, mas isso não pode ser tomado como regra. Nas edições de 29 e 31 de janeiro de 1879, por exemplo, as capas trazem apenas três


75

colunas. Algumas seções eram fixas, enquanto outras poderiam surgir de acordo com a necessidade. A análise que se segue baseia-se na investigação feita por Fernandes (2004) e pela observação que fizemos durante o ano estudado. Identifiquei como colunas fixas as seções: Parte Official, Cearense, Chronica, Noticiario, Interior, Exterior, Publicações Solicitadas e Annuncios. A Parte Official correspondia às informações, comunicações e expedições do governo da província cearense, referentes à capital e ao interior, notas de nomeações para cargos públicos, despachos, etc.. Tratava-se, inúmeras vezes, de comissões de socorros públicos aos abarracamentos de indigentes e retirantes da seca de 1877-1879, ora efetivados, ora suprimidos. Na seção Cearense, as questões tratadas na Parte Official eram analisadas pelos jornalistas, aprofundando alguns fatos e tecendo comentários, quase sempre de aprovação ao governo. Assim, os jornalistas apoiavam sem reservas os encaminhamentos do presidente liberal José Júlio de Albuquerque Barros, publicados na Parte Official. Um desses encaminhamentos, por exemplo, refere-se ao internamento de retirantes fugidos da seca em abarracamentos. A Chronica, mais literária, sarcástica e menos “política”, trazia assuntos da ordem do dia envolvendo os periódicos conservadores, jornalistas, partidários e leitores. O Noticiario constava de notícias da capital, do interior e do exterior, com destaque para assuntos referentes à imprensa, ao jornal, e ao jornalismo, geralmente insultando os periódicos conservadores. Respondia-se também, através da coluna, as críticas que os conservadores faziam às medidas adotadas pela administração, como as que voltavam-se para amenizar o cotidiano de seca dos cearenses do interior e dos retirantes chegados à capital. Além de apoiar a ação do governo provincial, o Cearense denunciava o fato de os jornais opositores lhe faltarem com a verdade. Eram também abordados dados sobre o movimento nos lazaretos, no que concerne ao tratamento de doentes ou mortos pela varíola.


76

Ainda na coluna Noticiario, uma subcoluna chamada Telegrammas trazia notícias da França, Suíça, Itália, Espanha, Portugal, Egito, América Central e do Sul, emitidas pela agência telegráfica francesa Havas. De acordo com Fernandes (2004), este serviço particular de captação de notícias do Cearense mostra que o jornalismo político cearense calcava-se cada vez mais num conjunto de ações bem organizadas, produzidas dentro e fora das tipografias, manobradas por jornalistas interessados em tornarem-se parte do sistema de condução da sociedade, mesmo que isso implicasse altos gastos para a redação. O objetivo seria a sensibilização dos leitores para as causas liberais, na adaptação da sociedade cearense aos modelos de países considerados modernos, como a Inglaterra ou França. A coluna Interior trazia informes sobre as comarcas interioranas do Estado e a Exterior expunha informações sobre os principais acontecimentos do mundo, geralmente resumidos a Paris. Nas Publicações Solicitadas, geralmente publicavam-se cartas enviadas pelos leitores. Os Annuncios se configuravam como o esboço dos atuais “classificados”, com publicações de lojas, farmácias, propagandas de peças teatrais e anúncios de compra e venda. Eram, em suma, reclames de interesse comercial e de lazer. Outras colunas, como já foi dito, não eram fixas. A Secção Livre, por exemplo, atuava como espaço de debates e meios de possíveis viabilizações das “crenças liberais”. De modo geral, o Cearense atuava na exaltação do ideário liberal nas diferentes colunas, sempre em razão de interesses do dia. A coluna Santa Caza de Misericordia, por exemplo, publicou por vários meses o relatório de atividades referente ao ano de 1879 em diversas seções e subcolunas, como: Avizos, Assemblea Provincial, Justiça, Folhetim, Jurisprudencia, Editaes, Telegrammas,

Instituições,

Secção

Religiosa,

Comunicado,

Parlamento

Brasileiro, Litteratura, Secção Juridica, Correspondencia, Exterior, Variedade e Transcripção, Educação, Hygiene, Hygiene Prática, Instrução Publica, História, A Mulher e Ultima Hora. Nestas, eram relatadas situações e atividades que


77

abrangiam quase todos os aspectos da vida social, político-administrativa e intelectual. O Cearense era um dos periódicos mais lidos na cidade. Segundo Fernandes (2004), livros de leitores de 1878-1887 e de 1894-1896, da Biblioteca Pública do Estado do Ceará, mostram que cerca de 60% dos freqüentadores liam os jornais Cearense, Pedro II e Constituição. Além disso, as fontes mostram também que havia circularidade entre os jornais cearenses e os de outras províncias, apesar da grande maioria da população fortalezense nesse período ainda ser analfabeta. A ideologia que permeava o fazer jornalístico do periódico era bastante influenciada pelas idéias de clássicos liberais como Adam Smith, David Ricardo, Thomas Hobbes, Montesquieu e Jean-Jacques Rousseau, embora seus nomes não fossem diretamente citados. Suas idéias acerca da separação de poderes, entretanto, assim como de soberania do povo sob o comando e intermédio dos eleitos, foram adaptadas para a realidade do Ceará e dos cearenses, para a maior parte da população analfabeta e sem profissão, portanto sem meios autônomos para também expressar, com maior amplitude, suas idéias e vontades. Segundo Rocha (1966), enquanto na década de 1850, o número de jornais no Ceará somava 21, nas duas décadas que se seguiram, contabilizava-se cerca de 116 novos jornais, que formavam um conjunto heterogêneo de partidarismos e intenções. Fernandes (2004) cita o trabalho de Celeste Cordeiro, no capítulo “Confronto de idéias políticas no jornalismo cearense-1865-1889”, segundo a qual jornais como o Cearense, Pedro II e Constituição, não obtiveram êxito na tentativa de detenção de papel significativo na contribuição do desenvolvimento intelectual, civil e de progresso, sendo improváveis fomentadores da discussão sobre comportamentos e sociabilidades na província, pelo menos até meados do século XIX. Essa legitimidade, para a autora, só ganha espaço e legitimidade no segundo quartel do XIX, quando as folhas partidárias ganham status e relevância. Com um projeto liberal pretensioso e autoritário para Fortaleza, o jornal Cearense pretendia-se porta-voz da opinião e dos modos de agir de seu


78

público leitor e se impor como sinônimo de “status” social, de saber e poder diante de uma sociedade de iletrados.


79

4. NA CONTRAMÃO DA “CALUMNIA”, O CEARENSE NA “VERDADE DOS FACTOS”

Tendo uma base acerca dos princípios regedores da lógica intelectual que estava à frente dos jornais cearenses, objetivo, neste capítulo, aferir como se deu a retratação do fenômeno seca/varíola pela folha Cearense. Depois de introduzir como são empregados os critérios de noticiabilidade num determinado tratamento temático, busco agora analisar como o periódico faz referência ao fato e utiliza, para isso, algumas categorias que pude apreender do seu conteúdo, na prática de atuação e legitimação do seu poder através do espaço noticioso, na defesa da civilização, do culto à higiene, à moral, à ilustração à verdade. A permanente referência a países estrangeiros, particularmente Paris, tomados como modelos a serem copiados como tendência de conduta e urbanidade exprimem a ambição de civilizar a sociedade alencarina segundo esses moldes europeus. Por isso me refiro à “civilização” como uma categoria inerente ao pensamento desses representantes liberais. De igual modo, a excessiva preocupação expressa na constante referência a questões de “higiene”, “moral” e “ilustração”, permitem-nos tratar esses temas também como tipos ideais que marcam a linguagem editorial do Cearense. Locados em um âmbito acentuadamente analfabeto e respaldados pela sua formação, os intelectuais que estavam à frente do jornal sentiam-se como juízes capazes de determinar “o bem da verdade” para seus leitores. Ainda como representantes da instituição governamental, além de utilizar o Cearense para expor seu ideário intelectual, esses homens faziam uso do mesmo para fazerem conhecidas as determinações da presidência da província. Sua “verdade” deveria ser tomada como lei para os citadinos. Através do Jornal, identifiquei as formas pelas quais os sujeitos, formadores de opinião, tomam consciência do evento e o relatam. Nesse processo, uso a análise do conteúdo das mensagens, mas, sobretudo, das estratégias discursivas ligadas às relações de força de uma determinada conjuntura, já que sendo espaços privilegiados, campo por excelência do


80

ideológico, os jornais se impõem como lugar onde várias vozes disputam a hegemonia das representações. Pretendi mensurar como essa ideologia médico-social foi explicitada no jornal, ou mesmo se foi dada de forma velada e sutil, intimando à remodelação urbana e social da cidade. As passagens transcritas do jornal foram mantidas na sua grafia original.

4.1. VERDADES CEARENSES SOB A ANÁLISE DO CONTEÚDO Os

colunistas

liberais,

que

descrevemos

anteriormente,

procuravam transformar o Cearense em instrumento “ideal” para adequada leitura e compreensão do espaço urbano e social de Fortaleza do século XIX. A idéia era sensibilizar a população para a exigência de novas posturas, rumo a uma moralização e higienização, corrigindo os “infratores” dos “códigos da moral e dos bons costumes” da cidade em favor dos “homens de bem”. Por acreditarem que o jornal era um dos mais notáveis veículos da comunicação literária, administrativa e política do final do século XIX, jornalistas e colaboradores do Cearense passaram a imprimir os anseios liberais de forma mais contundente, a partir da segunda metade do século XIX, apoiados na “necessidade” de aformosear a cidade, de manter os corpos sadios em ruas limpas, de vigiar e regenerar a sociedade, de vislumbrar o progresso e a civilização “iminente”, não em favor da maioria necessitada, mas da minoria de bacharéis e abastados. Para atingir seus fins, os articulistas do Cearense projetavam para a sociedade algumas reformas urbanas e sociais que, na diversidade de colunas e de conteúdos, conduziam o fio das diretrizes liberais, solidificadas através do canal político-partidário local. Mesmo com o desenvolvimento do jornalismo informativo, a imprensa não perdeu sua força opinativa, como sugere todo o noticiário do jornal Cearense. Muitas vezes a imprensa desempenha papel semelhante ao dos partidos, chegando a sobrepujá-los. Como diz Weffort apud Capelato (1988:18): “Jornais não são partidos. Mas como se parecem às vezes!”


81

Através do periódico Cearense, eram encaminhadas determinações do governo provincial, em geral medidas para disciplinar os problemas de moradia, saúde, educação, arbitrados pelas poucas cartas dos leitores que eram selecionadas, para servir como termômetro da aceitação ou resistência da opinião pública a gerência do presidente, e para tomada de providências urgentes. Atrelar o conteúdo e a linguagem dos jornais com o cientificismo foi a estratégia dos bacharéis liberais para cativar seu público leitor e intentar convencer a opinião pública quanto à importância das suas posições. Para apreender o tratamento temático da seca/varíola no Cearense, analisei as edições disponíveis na Biblioteca Pública durante três primeiros meses de 1879, quando já se mostravam menores os males do fenômeno e já estavam consolidadas

as

bases

para

instituição

do

poder/saber

sanitarista.

Considerando que faltavam os exemplares de todo o mês de março, busquei, nas edições disponíveis de janeiro, fevereiro e abril, averiguar os ideais impressos na abordagem do tema, sempre com vistas ao alcance das categorias que identifiquei como civilização, ilustração, higiene, moral e verdade. O estudo dos critérios de noticiabilidade apontados por Traquina (2005) nos deu subsídios para compreender algumas razões para o predomínio destas categorias ao longo de todas as edições analisadas. Entre os valoresnotícia que legitimavam sua abordagem identifiquei, por exemplo, aspectos que remetem à morte, notoriedade do ator principal, proximidade, relevância, amplificação, personalização, dramatização e consonância. A noticiabilidade do próprio discurso médico (onde estão presentes as categorias destacadas) respalda-se pela presença desses valores-notícia. Uma primeira observação que faço é que além dos princípios perseguidos pelos intelectuais que elaboravam o periódico, não podemos jamais fazer referência ao mesmo sem associar o discurso supostamente informativo do jornal e o seu papel como porta-voz de um partido que encontrava-se na “situação”, já que a folha, diretamente ligada ao partido liberal, era representativa daqueles que, durante o período estudado,


82

encontravam-se no auge do poder, sendo o próprio presidente da província um liberal. Como afirma Capelato (1988:18), “segundo a tradição liberal, os governantes devem tornar públicos seus atos e tomar conhecimento dos anseios dos governados. A imprensa é o canal entre ambos.” Desta forma, como vemos na edição de 29 de janeiro de 1879, Expediente do dia 22 de agosto de 1878 - 1ª Secção, muitas seções do periódico, especialmente a Parte Official - Governo da Provincia, eram utilizadas para relatar as atividades administrativas do governo, boa parte delas referentes ao envio de socorros, entre medicamentos e mantimentos, para todo o estado. Ao Dr. Inspector de saúde publica idem aviar e remetter á commissão de Pedra Branca, por intermedio do commissario Andre Joaquim d’Oliveira, uma ambulancia com medicamentos adaptados a debellar as enfermidades ali reinantes. (...) Ao comissão de compras e transporte, por terra, ordem para enviar os seguintes generos á localidades infra declaradas: Maranguape – 2:700 kilogrammas de farinha, 2:400 ditos de arroz, 1:200 de feijão e 30 atados de carne do sul; Pacatuba – 9:000 de farinha, 6:000 de arróz, 3:000 de milho e 50 atados de xarque. Ao mesmo idem os viveres infra mencionados ás seguintes commissões, por intermedio do cidadão Francisco Xavier Moreira: A’ da cachoeira 3:150 kilogrammas de farinha, 1:200 de arroz e 600 de milho; E á de S. Bernardo, na localidade supra, 1:800 ditos de farinha, 600 de arroz e egual quantidade, (600) para distribuição aos respectivos indigentes. Ao mesmo idem idem, por intermedio do cidadão José Thomaz d’Araujo, 810 kilogrammas de farinha e 120 de arroz. Ao commissario de transporte no Aracaty, idem idem idem, pelo cidadão Ignacio Joaquim Gonçalves, os seguintes gêneros para consumo dos indigentes das procedencia abaixo declaradas: Jaguaribe-mirim – 4:500 kilogrammas de farinha, 600 de arroz, 600 de feijão, 600 de milho e 10 costaes de carne do sul; Bóa Vista – 3:600 kilogrammas de farinha, 600 de arroz, 600 de milho, 600 de feijão e 4 fardos de xarque; bem como 30 peças de agodãosinho, 30 ditas de chita e 30 de americano. Deu-se sciencia ás commissões destinaria.

Esses relatos são, geralmente, acompanhados da defesa e exaltação das atividades desempenhadas por funcionários e representantes do


83

governo (liberal). Na secção Interior, da mesma edição, publica-se uma carta particular tratando sobre a distribuição do atendimento médico no Ceará, ressaltando que as medidas não são suficientes, mostrando, contudo, o esforço do governo para resolver a situação calamitosa na qual encontrava-se o estado. Foi transferida para amanha a sahida do vapor <<espiritosanto>> afim de conduzir uma commissão de medicos, que vai encarregada de se occupar do tratamento dos affectados da epedemia reinante; compõe-se ella dos Drs. José Maria Teixeira presidente; Souza Costa, Freire Vasconcelos, Leopoldino dos Passos, Teixeira de Souza, Fernando Abott, e Rodrigues Caldas. Consta mais que o governo pretende nomear uma outra commissão especial encarregada do estudo da nova epedemia, que apparece, bem como da natureza e causa das molestias, que se tem ahi desenvolvido; para esta commissão já se falla que forão convidados os Drs. Saboia e Motta Maia, sem duvida muito competentes para a importante missão, que tem em vistas o governo. O numero de medicos nomeados não é quanto a mim sufficiente para as necessidades, que se me afigura existir na provincia, porem o governo, que se tem mostrado tão interessado nos negocios relativos ao estado calamitoso do Ceará, não deixará de fazer menos nomeações por ventura ellas tornarem-se necessarias. (Carta Particular)

Na edição de 5 de fevereiro de 1879, na seção Noticiário, o registro do movimento realizado no Lazareto militar, de novembro a fim de janeiro, a cargo do Dr José Lourenço, ressalta que apesar de todos os cuidados proferidos pelo governo, o “mal” da “epidemia reinante” insistia em atingir os transeuntes: Soldados 97 presos 47 Curados 33 curados 10 Fallecidos 63 fallecidos 37 Transferencia para o lazareto da Boa-Vista Enfermeiros inteligentes, práticos e dedicados prestarão seus serviços aos doentes; a alimentação foi sempre de optima qualidade. O medico tratou-os sempre com a maior solicitude. O lazareto achava-se montado nas melhores condições. Mas a varíola predominante foi a hemorrhagica, complicada de muita syphilis.


84

Capelato (1988) afirma que na imprensa se mesclam o público e o privado, e os direitos dos cidadãos acabam por se confundir com os do dono do jornal. O papel deste seria criticar o poder e os poderosos, mas como podem exercer, de forma independente, o dever da crítica se estão ligados, por vínculos estreitos, a indivíduos e grupos cujos atos devem denunciar? Também na edição de 31 de janeiro de 1879, a seção Publicações Solicitadas exprime a defesa das tentativas do governo de forma bastante clara, além de servir como espaço para a prestação de contas: Na qualidade de presidente da commissão que foi organizada nesta capital, por nossa iniciativa, com o fim de agenciar donativos entre nossos irmãos de armas para as victimas do flagelo que ainda agora tenta exterminar-mos -a secca-, venho dar-vos as informações que se seguem, por ter de em breve ausentar-me desta infeliz provincia que tão generosamente hospedou-me as provas mais honrosas de sua confiança e sympathia. A commissão com quase sempre com limitados recursos e por esta rasão não chegou muito mais efficazmente ao seu fim com era de seu intuito: ficou-lhe porém o grande consolo da concorrência de ser esforço para a diminuição do mal; - e se não fez mais foi porque encontrou difficuldades insuperáveis. A grande distancia que a separava da maioria de nossos camaradas espalhados em guarnições longínquas, e nas fronteiras tudo dificultava e tudo demorava. Forçoso é porem confessar aqui, que ao nosso apello la dos extremos do imperio, de quando em vez, vinha um minguado obulo cahir na sacola das victimas. Era a prova da existência de orações generosos, talvez de victimas não menos infelizes que bem comprehenderão as lacinantes dores produzidas pela fome e pela mizeria. O nosso reconhecimento, as bênçãos das victimas é a única recompensa digna delles. A commissão arrecadou até hoje 2:760$460, despender em esmolas. 2:460$920. O mappa que junto acompanha a receita e despeza em todos os seus detalhes. O saldo de 299$540 ficou em poder do thesoureiro, e secretaria o Sr capitão Manoel Bezerra de Albuquerque para ocorrer as despezas do mez. Falta arrecadar outras quantias agenciadas que segundo communicacao de alguns collegas, forão recolhidas a diversas thesourarias, para terem opportunamente destino a desta província. Dou-vos estas informações, e passando hoje a presidência aos Sr major Manoel Moreira da Rocha, mais graduado dentre nós. Resta-me o dever de agradecer-vos com toda a abundancia de meu coração, o concuso valioso que me prestarão: e é confiado ainda nesse vosso procedimento, e no caracter que bem distingue a cada um de vós, que conto que presgão no trilho já


85

encetado, servir á pátria e a humanidade. Deos guarde a V.Sª; Illms, Srs. membros da commissão militar. O Coronel A. Augusto de Farias Villar.

Em resposta, o novo presidente da comissão de socorros responde e exalta as atividades realizadas por seu antecessor: De posse do officio de V.S em que me passa a presidencia da commissão agenciadora de soccorros e bem assim do balancete, que ao mesmo acompanhou, cumpro agora o mais sagrado dos deveres agradecendo em meu nome e dos cavalheiros que com V.S collaborarão os os relevantes serviços prestados por V.S naquella commissão, e faço votos para que sempre continue a dar prova do seu mais entranhado amor a pátria e a humanidade. Deos guarde a V.S Illm Sr Coronel t.t de Frias Villar. O Major Manoel Moreira da Rocha Fortaleza, 25 de janeiro de 1879.

Outro exemplo claro do uso do espaço jornalístico como medida de apresentação documentada feita pelos administradores públicos ou particulares sobre o emprego de verbas destinadas à prestação se serviços referentes à seca/varíola pode ser encontrado no exemplar de 20 de abril, em Sessão Ordinária de 23 de janeiro de 1879, publicada na subseção Santa Caza de Mizericordia: Expediente (mutilado) administrador da Empresa Funeraria Antonio da Rosa Oliveira, pedindo gratificação pelo excesso de trabalho que há tido na referida Empresa, devido a grande mortalidade, consequencia da epidimia reinante. A mesa por maioria de votos concedeu-lhe a gratificação pedida, na importancia de 500$000 reis, durante a epedimia.

Segundo Cardoso (2002), na liderança editorial dos jornais partidários, periódicos literários e revistas científicas, os intelectuais dirigiam ao público leitor os interesses políticos das oligarquias locais, os modelos científicos e filosóficos e as narrativas literárias que deveriam corroborar com a nova formação da nação em prol de uma realidade industrial-civilizatória e próxima à realidade dos centros industriais europeus. Segundo o autor, um


86

impasse aos anseios civilizatórios eram os comportamentos dos sertanejos que vieram morar na capital com a “tenebrosa” seca dos anos de 1877 a 1879. No exemplar de 02 de fevereiro, na seção Noticiario, denota-se a necessidade de urgência das ações, bem como a referência ao socorro dos “indigentes”, referência estas tantas vezes recorrente nos textos do jornal. O termo aparece com um certo viés depreciativo, como fossem estes um fardo, representantes do atraso ao projeto de modernização que ensejava-se para a cidade. Serviço sanitário: Achando-se quase extinta a variola nesta capital, tendo porem manifestado n´outras localidades que reclamam promptos soccorros, o Excm. Sr presidente da província, de acordo com o Sr. Dr. José Maria Terceira, chefe da commissão medica que veio da corte para se encumbir do tratamento dos indigentes, affectados da epedemia, detalhou assim o serviço. O Sr. Dr. Bejmanin Franklin de Almeida Lima segue para Pacatuba. O Sr. Dr. José Eduardo Teixeira de Souza para o Aracaty. O Sr. Dr. Fernando Abbott para o Acarahu. O Sr. Dr. Leopoldino dos Passos p/ mecejana. O Sr. Dr. José Maria Teixeira fica na capital encarregada da propagação da vaccina e revaccinação. Dos Pharmaceuticos, o Sr. Idelfonso de Azevedo também fica nesta capital trabalhando na phramacia da santa casa e da conta dos medicamentos vindos da corte; o Sr. José Rafael Vianna segue para o Acarahú com o Sr. Dr. José Abbott.

No Noticiario de 25 de abril, por exemplo, fica bastante explícito o incômodo com o descontrole na migração desses “infelizes” retirantes para acomodar-se na capital e a evidente ambição de controlar esse êxodo: Retirantes - De 15 de março findo ao principio do corrente mez, foram despachados dos diversos abarracamentos desta capital para o centro da provincia 59.797 retirantes, recebendo cada um: roupa – uma muda, rações para 15 a 30 dias e sementes de feijão milho e arroz, tudo de accordo com as instrucções da presidencia. Ficaram abarracados nos diversos districtos 11483 viuvas, orphãos, velhos e doentes, e mais de 6000 pessoas que declararam não quererem regressar para os seus domiciolios. Estes dados foram colhidos dos commissarios domiciliários conforme se segue. Districtos Sahiram Ficaram Lagoa-secca 4560 1470 S. Sebastião 6403 1368


87

Moinho Jacarecanga (mutilado) (mutilado) (mutilado) (mutilado)

3919 2203 2891 8881 616 543

1309 775 913 2500 635 256

22:139

2260

(mutilado) José Júlio, honrado administrador deste inditosa provincia, trata da occupação de abarracar esses infelizes ao longo da estrada de ferro de Baturité, a proposito, não apenas de dar-lhes occupação, como de evitar que, aqui aglomerados, não venhão a ser presa de uma nova epidemia. Para Maracanahú e Acarape já seguiram diversas familias que vão ser ali abarracadas. Aqui na capital está prohibido o alistamento, e só com esta sabia medida consegueria S. Exc. Evitar uma nova e talvez mais desastrosa aglomeração.

Na seção Noticiário, edição de 5 de fevereiro, uma nota sobre o envio de socorros públicos mostra como eram concebidos esses “indigentes” e exalta a benfeitoria da administração. Socorros públicos – No quartel de setembro a desembro ultimo o presidencia fez remmeter para o centro pela estrada de ferro de Baturité até Maranguape e Pacatuba, os seguintes socorros para os indigentes, e operários empregados no prolongamento da mesma entrada segundo se evidencia do relatório do digno chefe do trafego o Sr Dr. Amarilio. Farinha 1351 toneladas e 398 kilos Arroz 76(?) “ ” e 4 “ ” Milho 331 “ ” e 54 “ ” Feijão 538 “ ” e 955 “ ” Xarque 545 “ ” e 2 “ ” Medicamentos 1 Fazenda 7 “ ” e 88 “ ” 3,533 15?1 Resumos 5,533 toneladas e 34 kilos Pelos portos do Aracaty, Mundahú, Acaracú e Granja seguiu seguramente o duplo, temos pois cerca de 17,000 toneladas de soccorros que foram enviados para serem distribuidos com os indigentes; é graça a sollicitude com que o honrado administrador tem curado da sorte de seus infelizes patrícios, deve se o não haver perecido à fome milheres delles.


88

Na tentativa de lutar contra o que parecia impossível, a administração da província realizava ampla limpeza, saneava os alojamentos insalubres, fiscalizava fontes d'água, distribuía mantimentos e vestimentas e ofereceria trabalho aos migrantes. Lotados nos abarracamentos espalhados pela cidade, esses “infelizes patrícios” deveriam ser colocados à disposição da própria máquina estatal e, através do trabalho, deveriam ser disciplinados. A iniciativa de empregar a força de trabalho do retirante na realização de obras públicas fazia parte da “cartilha” de higiene moral e da política de combate à ociosidade, ao vício e à vadiagem, como mostra a edição de 29 de janeiro de 1879, Expediente do dia 22 de agosto de 1878 - 1ª Secção: Ao comissario de districto João Carlos da Silva Jatahy suggerindo a conveniencia de procurar persuadir aos operarios, que hontem enviára para a Pacatuba e que se recusam ao serviço da via-ferrea de Baturité, por insinuação dos chefes de turma, de que devem applicar-se ao trabalho; e declarar-lhes que, a insistirem no seu proposito, deixarão de receber soccorros nos abarracamentos os ditos operarios, e serão demittidos os chefes de turma.

No expediente do dia 23 de agosto, publicado na seção Parte Official de 5 de fevereiro, determinações são expostas para evitar o extravio dos gêneros reservados às vítimas da seca e da varíola, bem como para indicar o que deve ser feito com os homens “válidos”, aqueles que tinham condições de trabalhar. Communicou-se à thesouraria da fazenda para os devidos fins. A mesma recommento que à, bem da regularidade do serviço a seu cargo, observe as seguintes instruções: 1º - O armazém do deposito dos gêneros ficará à cargo do collector geral, o qual deverá ter um livro de entrada e sahida dos ditos gêneros. 2º - O commandante do destacamento, à requisição do referido colletor ou da commissão, prestará a guarda precisa para o deposito, e bem assim para segurança dos gêneros durante o seu desembarque e transporte. 3º - A distribuição dos generos far-se-há publicamente, distribuindo-se as rações aos indigentes alistados pela commissão, na presença de um ou mais membros d´ella, a


89

quem competir o serviço do dia, conforme a divisão de trabalho, feita pela commissão. 4º - Não poderá sahir do deposito volume algum para ser distribuido em outro lugar sem ordem, por escriptos assignada pela commissão. 5º - Os homens validos, soccorridos pelo estado deverão ser empregados em obras publicas e, na falta d´ellas, em abrir e preparar roçados que, quando se fizerem, serão distribuídos eqüitativamente aos indigentes, que nelles trabalharem.

Como já mostramos, a seca de 1877-1879 atingiu todo o território cearense, e repercutiu nas várias instâncias da vida social, como nas relações de trabalho, na sociabilidade, na economia, na cultura, etc. Foram formadas várias comissões de socorros públicos, responsáveis pela distribuição de gêneros alimentícios na capital e comarcas do interior cearense. Foram recorrentes, na imprensa liberal e conservadora, nos jornais Cearense, Pedro II e Constituição, acusações e defesas de correligionários quanto aos supostos atos ilícitos dos comissários, referentes à construção de açudes para atender a interesses particulares, venda dos víveres ou uso impróprio dos recursos. A análise do ideário e da prática política dos representantes da imprensa revela a complexidade da luta social. Grupos se aproximam e se distanciam segundo as conveniências do momento; seus projetos se interpenetram, se mesclam e são matizados. Os conflitos desencadeados para a efetivação dos diferentes projetos se inserem numa luta mais ampla que perpassa a sociedade por inteiro. O confronto das falas, que exprimem idéias e práticas, permite ao pesquisador captar, com riqueza de detalhes, o significado da atuação de diferentes grupos que se orientam por interesses específicos. (CAPELATO, 1988:34)

Atuando como porta-voz do governo na comunicação com seus “(e)leitores”, para utilizar a expressão de Fernandes (2004), o jornal era permanentemente veículo de acusações e defesas diante das gazetas conservadoras, por isso rivais, como o Pedro II e a Constituição. Centro da troca de acusação entre os veículos é a suposta corrupção na gestão dos recursos destinados aos socorros das vítimas da tragédia. Na edição de 26 de janeiro, na seção Publicações Solicitadas:


90

Agora responda o Pedro II: - Quando este indivíduo merecialhe mal conceito, ao tempo em que escreveu tudo isto e muito mais horríveis cousas, cuja transcripção ira longe, como dia 1º do corrente – quando transcreveu-lhe as accusações calumniosas contra a commissão de socorros, no intuito de accusar a presidência, valendo-se do prestimo da mesma creatura, que na sua phrase põe em almoeda a justiça publica, e que em peça official mui recente informava em sentido contrario ao que hoje accura?(...) Appellamos para sua honra e coherencia - para que não omita a resposta(...)

Quanto aos embates que se seguiam entre periódicos liberais e conservadores, o Cearense se dizia, conforme Fernandes (2004), defensor de uma harmonia intelectual, em prol da pátria, da liberdade privada e recatada, almejando um jornalismo sem ofensas pessoais ou “insultos grosseiros”, a despeito de disputas partidárias, em nome da continuidade de um projeto liberal pretensioso e autoritário para a imprensa brasileira, com a busca de fórmulas adequadas ao evitamento e à correção das deformidades do “corpo social”. Na oposição política via discurso jornalístico, eram empregadas metáforas e feitas constantes acusações, formando um léxico político, que exacerbava atritos e disputas pelo poder, numa permanente tensão que envolvia “códigos locais e vocabulários políticos”. Nas Publicações Solicitadas de 31 de janeiro, encontramos a passagem: Depois que a commissão de socorros de S Francisco não consentio que o bacharel f. Othon lançasse mão de gêneros em proveito proprio e de seus affins, continuasse a estragar as peças chita destinadas aos indigentes, e pesseguisse emformar contas fraudulentas para haver o dinheiro dos soccorros, figurado entre outras torpesas suas a exigência que fez de 100$000 em paga de sua passagem na capital da provincia, como se provou com os documentos de seu puho, já produzidos em juízo; ficou esse bacharel em completo delírio para commeter toda sorte de desatinos á que tem arrastado a imaginação escaldad. Isso de falsar testemunhar. Esta forma de depoimento S Othon aprendeu dos depoimentos publicados no jornal Pedro I de 5 a 16 de junho de 1874(...)


91

Sempre dotando-se como promotor da verdade e da justiça, o Jornal utiliza correntemente expressões como “mentiras”, “calúnias”, “falsidades” e “insultos”, referindo-se aos seus adversários. Os discursos apegados aos ideais liberais europeus que marcaram o periodismo brasileiro, no século XIX, eram proferidos por redatores, colaboradores e leitores que se achavam merecedores do direito de se portarem como “verdadeiros sentinelas”, em oposição às administrações e aos periódicos conservadores. Destes, criticavam o fazer dos jornais por não seguirem os princípios da democracia, da liberdade, do progresso e do patriotismo. O dever de lealdade, justiça e verdade incumbida à imprensa, segundo afirmavam, faziam recorrentes, no Cearense, afirmações sobre a vocação do jornalista na busca pela verdade e pelo “bem (in)formar”, como um compromisso para com o público de leitores. Para os jornalistas do Cearense, a idéia de uma imprensa livre e comprometida com a verdade significava seguir a missão de mostrar resignação às aspirações progressistas. Muitos textos literários abordavam uma diversidade de assuntos que defendiam, inclusive, a religião como educador e normatizador do comportamento dos fortalezenses. A pretensão de poder dos jornalistas em classificar os fatos como verdadeiros ou falsos advém, em parte, do fato de muitos colunistas terem sido membros dos Institutos Históricos e Geográficos Brasileiros que estavam espalhados por todo o Brasil. Em 02 de fevereiro, no Noticiario:

S. Bernardo - Sr. Manoel Joaquim continua a vomitar no Pedro II improperios de toda sorte contra o digno promotor publico da comarca de S. Bernardo e Dr J. Facó. É mau gosto e tempo perdido. Com insultos ao Dr. Facó o Sr. Manoel Joaquim não conseguirá reabilitar-se no conceito da opinião publica, nem tão pouco fazer descer ao nível da sua a reputação do nosso amigo. Portanto seria prudente que mudasse de rumo.

Qualquer insinuação proferida contra O Cearense é prontamente desmentida. Ainda na mesma edição, na seção Publicações Solicitadas, encontramos um exemplo onde além de desqualificar as acusações, são respondidas ao veículo opositor com recíprocas denúncias:


92

Villa do Cascavel, 18 de janeiro de 1879 Em a noite de 3 do corrente, do porta da Barra-Nova, foi assaltada, uma barcaça, que trazia generos alimenticios para socorro a população indigente. Todo povo fez seus comentários, mas ninguém se lembrou de culpar os liberaes. O Pedro II teve as honras de feliz intento, e no empenho de malsina a benefica e patriotica administração da provincia, civitlosmente procurou insinuar que os liberaes desta villa não são estranhos ao facto. É porem o caso de dizer-se: chama antes que te chamem.

Na mesma edição, seção idem, outra publicação: A feze dos Carcarás existentes nesta villa, despeitada e quase em dellirio, por se não achar agarrada ao poder para perseguir a seus adversários, nem de posse dos generos dos soccorros para delles se utilizar, mandou publicar no jornal suas diffamações – o Pedro II n 80 de 14 de novembro ultimo. Mais uma varilla propria mesmo de carcará, em que se deleitou em injurias e calumnias a todos que são da sui grey; por isso envolveram os nossos amigos – Arraes, a commissão de soccorros e o Dr. Souza Lima, honrado juiz de direita desta comarca. Não há que estranhar nessa linguagem torpe e infamante, é esta a política baixa de carcará, que, por esse meio estão a car fiel copias do que são, fazendo bem conhecer os seus miseráveis costumes. Não desceremos a responder nem discutir com esse canalha, que acobertado com negro manto do anonymo, pretende tão cobiruemente abocanhar a reputação alheia; damos lhe o devido despeso, que será sempre a nova resposta em quanto o leproso calumniador não assumir a responsabilidade dos factos – assinando o seu nome. Portanto, pode o rafeiro carcará continuar seu gosto de insultar e calumniar, pode ladrar, até que se esgote o ultimo vírus hydrophobico, e não será encomendado, salve-se alguma pedra douda –arremessadalhe vier quebrar os dentes. Saboeiro, 27 de dezembro de 1878.

No Noticiario da edição de 5 de fevereiro: Desmentido sollemne – chamamos a attenção dos leitores para o communicado que publicamos hoje do nosso amigo Dr. Daniel Alves de Queiroz Lima, em que pulverisa completamente uma das mais Torpes calumnias levantadas pela desaforada emprensa da opposição contra o Exm. Sr. Dr. José Julio. A Constituição que tem primado pela intriga e pela difamação dos melhores caracteres, urdiu lá no seu laboratório de


93

infameas, entre outros, essa negra calumnia a que nos referimos. Não se atrevendo porem a perfilhal-a, procurou uma victima dos seus ódios para dar-lhe a autoria e assim fomentar uma intriga. Essa outra victima foi o nosso amigo Dr. Daniel. Não logrou, porem, o seu intento a folha grande. O nosso amigo desfaz hoje vantajosamente mais esse produto de um espírito affeito às paixões ruins.

Ainda no mesmo número: Communicado – Protesto contra a cavilosa intriga da Constituição. Venho protestar perante o publico, perante os homens de bem e de criterio, contra a chicana que inspirou a Constituição a chronica politica de seu numero de hontem, em que se prentende attribuir-me, e a outros amigos da situação, a paternidade das miseraveis calumnias, que a principio a roda de calçada, e depois a própria redação de Pedro II, e tem feito circular nas trevas do mysterio, contra a S. Exc. O Sr. Presidente da província) (...)

Na seção Chronica, ainda de 5 de fevereiro, a folha defende com veemência a honestidade e o compromisso das ações administrativas realizadas no que concerne à limpeza da província, deixando claro que para alcançar tal fim, o governo não abdicaria do uso, tanto fosse preciso, dos recursos necessários para resolver a situação. A câmara municipal soffreu hontem um ataque brutal da folha dos praxedes e nogueiras. A quanta ousadia não conduz o cynismo de certa gente, enrilecida na pratica de maldizer! Desperdicios da camara actual! Ella que tem sido o mais possível zelosa dos dinheiros a seu cargo, que tem exercido a mais rigorosa fiscalização. Sobre as despesas municipaes! Assumiu o encargo a nova camara, encontrando apenas um conto de réis em cofre, sugeito a despezas muito e muito superiores àquella somma. Melhorou o serviço, cortou por abuzos, condemnou praticas prejudiciaes à administração do município, deu ordem aos trabalhos, avigorou o systema de fiscalização, fez das posturas letra viva, regulamentou as attribuições e encargos dos empregados, creou novas fontes de receita, está provendo sobre muitos serviços uteis e além de tudo isto, pagou todo o seu passivo e teria um caixa dez vezes mais do que recebeu de sua antecessora, se já tivesse começado a arrecadação dos impostos deste anno. E accusa se a câmara de disperdicios.


94

É para a nova câmara um titulo de gloria os estado de limpeza da cidade, no que há sido auxiliada o mais possível pela illustrada administração da província, S. Exc. o Sr. Dr. José Julio. Ao principio sendo urgente e imprimir a maior actividade ao serviço da limpeza, a nova câmara commeteu- o a quetro cidadadãos, que o desempenharam do melhor modo, mostrando a cidade em pouco tempo o melhor aspecto, quando a epidemia estava no período de maior intensidade. Era preciso remunerar bem o encargo quer tomaram os quatro emprezarios da limpeza e a camara viu bem, que não era occasião de regatear serviço de tanto momento. Hoje que a cidade está limpa por toda a parte, dispensou os serviços dos empresários e commeteu o encargo a agentes seus e sem gratificação alguma. De sorte que a câmara realisa actualmente uma economia de 600$000 réis mensaes. E é a isso que se chama – ruína dos cofres! Os emprezarios da limpeza não são caos eleitoraes do partido liberal, como avança o grão pasquim graúdo. Admira até que não distinga entre elles coreligionários seus. Liberaes certo não são, notando que se dizem contrários aos interesses do nosso partido ou a elles inteiramente indifferentes. A camara não espera o menor favor de seus adversários no julgamento de seus actos; tem direito, sim, a que o publico lhe faça justiça rigorosa. E com effeito o que pode ella esperar dos vendedores de patente da guarda nacional de Santa Anna e dos falsificadores de eleições, senão esses despeitos mal contidos e essa saraivada de insultos?

Na subseção Peça Official, de 20 de abril, segue uma fala de defesa contra calúnias publicadas no próprio jornal. Copias – Comissão de soccorros de Campo-Grande, 28 de março de 1879 – Ilm e Exm. Sr. – Em cumprimento à ordem de V. Exc., exarada no officio de 11 do corrente, para informarmos, com relação as gratuitas e falsas accusações, que um anonymo, correspondente d´esta villa, fez inserir no Cearense n 25 contra a comissão de soccorros desta localidade, damo-nos pressa em faze-lo, sem que desçamos a imitar a linguagem pouco urbana, de que usou aquelle correspondente, no furor de que, sem duvida, achava-se possuido, quando taes falsidades escrevia, não trepidando em phantasiar factos estupebdos e imaginarios, que repygnam ao bom senso e à moralidade publica; porém sim com aquella franqueza e sinceridade, compativeis com homens de caracter e bons sentimentos, que se presam em respeitar a sociedade. Os membros da commissão João de Mendonça Furtado, Padre Antonio Ferreira de Paula e Clinio d´Oliveira Memoria.


95

Para defender-se dos insultos e “falsas acusações” proferidas contra os representantes do governo liberal, comuns eram os ataques à moral dos adversários. O jornal coloca-se a serviço da exposição da vida social como punição àqueles que destoam dos costumes moralmente aceitos. A ironia e a ridicularização pública fazem-se presentes como instrumentos de repreensão e censura. Na edição de 26 de janeiro, por exemplo, na seção Publicações Solicitadas, uma passagem denota críticas a comportamentos socialmente inaceitáveis: Não há de ter a força de me chamar de ebrio e atirarmo outro epitheto proprios de sua-apurada educação – que conseguirá tornar-me igual a bacharel Othon, que dansa em sambar com escravos em pleno deboxe das orgias e bebedeiras. Que vive em publico e escandaloso concumbinato, seduzindo orphans para a prostituição. Quando o dever de seu cargo lhe impõe diversso procedimento, que expede portarias para examinar legítimas no intuito de calcular vantagens de casamentos, quando alias consta que tem mulher e dois filhos no Ingá, sertão da Parahyba, segundo pessoa de verdade affirmou ao Rvd. Vigário do Tamboril.(Depois disto casou-se em S Franscisco)

Em 29 de janeiro, condutas dirigidas àqueles que ferem os bons costumes são ensinados:

(...) E as theses e paradoxos chovem como saraiva. Discute-se, a código, admira-se os povos não civilisados. Que sei eu.Quanto nós tambem temos a nossa opinião: O marido deveria abandonar a adultera á sua própria vergonha. O homem de bem não deve tornar-se assassino porque uma mulher hysterica se lançou nos braços d´um lacaio. O nojo deve matar o amor que tinha por ella e a virtude passa junto da impureza com a ponte erguida e sem que esta lhe mereça um olhar.

Em devolução às acusações feitas aos jornalistas do Cearense, a exposição da vida íntima, vista como imprópria para a ética social, aparece como uma admoestação. Nas Publicações Solicitadas do exemplar de 02 de fevereiro:


96

Ao seu Pinto Alegre. Não há mais termo de qualificação as mentiras e calumnias que tem sahido da fedorenta immunda bocca do Pinto Alegre da Cachoeira. Este apostolo da mentira, e da intriga, filho do escandalo não cessa de praticar quanta immoralidade lhe vem a mente? Sua vida doméstica é mergulhada no charco da imprudicia, na casa de uma pobre mulher a quem tomou para sua consinheira, onde vive dia e noite, praticando e suas gentilesas de homem namorado! Ahi almoça, janta e ceia, e sai as 11 e 12 horas da noite! Ahi se mercadeja a reputação alheia de quem tem sido victma, iqualmente meu companheiro de commissão? É publico e notorio que os poucos gêneses que para aque veem são destribuidos com justiça e com parcialidade mas o Pinto Alegre, não tendo razão para me accusar na Constituição, que dispesco açudes alheios e compro burroz, caluminas estas tão revoltantes que o seus proprios amigos o tem desmentido na cara, que não é verdade, mas este infame que não tem vergonha porque já se cobrio no lado da impudir. Nada mais admira; todavia esta invenção de compra de burro e estar a commissão cheia de generos e dinheiro em grande quantidade e dispescar açudes alhieos, e de sua maldita cabeça e de seu comparsa Joaquim Menta que sendo zeloso como já disse a Constituição, não dá o conhecimento aos carneceiros que aqui matão gados! (...) ass. AA.

O peculiar da folha está no fato de que apesar de se supor liberal, o Cearense apresentava, na prática, um discurso altamente conservador. Seus registros foram expressões da construção da narrativa de imposição, particularmente, de letrados, políticos de carreira e comerciantes que almejavam uma cidade moderna e civilizada. O jornal demonstrava ser mecanismo de comunicação, de apresentação social, política e partidária, de defesa às críticas da oposição, de associação e de divergência, mas segundo Fernandes (2004), não havia grandes diferenças ideológicas entre as folhas liberais e conservadoras da província. Liberal e conservador foram termos circunstanciais, mais que conceitos, que muitas vezes só nomeavam grupos distintos de pessoas e forjavam as ações jornalísticas diante de disputas, como as eleições, em prol da posse de seus representantes, e de contendas que aconteciam, antecipadamente, nos bastidores das redações dos jornais e que, de forma bastante subjetiva,


97

eram impressas e “publicizadas”, a despeito do lema de que a melhor defesa dos ideais é o ataque aos princípios alheios. (FERNANDES, 2004: 25)

Como afirma a pesquisadora, o jornal era liberal na teoria apenas, na prática, muito do seu discurso era bastante conservador. Contradições da filosofia liberal destes “jornalistas” podem ser vistas, por exemplo, na edição de 31 de janeiro de 1879, na seção Ceara – Assemblea Legislativa Provincial. Sou d´aquelles que opinnam que a assemblea provincial pode legislar sobre divisões, quaesquer que sejam, quer civil quer ecclesiastica, sem dar satisfação a ninguém. (...) O acto addicional assim determina, e acima do: acto addicional que é a constituição do imperio parece-me que não há poder algum.(...) (...)Como já disse uma vez, senhores, o mais que concebo é que o poder ecclesiastico seja consultivo, nunca deliberativo; porque neste caso seria um estado no estado, seria a assembléa a humilhar-se a ponto de perder sua dignidade (Sr Paiva)

Na edição de 26 de janeiro de 187916, encontramos, na seção Ceara – Assemblea Legislativa Provincial, o culto aos costumes europeus, imbuídos de modernidade e civilização, aos quais deve-se adequar a cidade de Fortaleza: E se isto era commetido entre os bárbaros se elles observavão este principio como não o observamos nós, povo meio civilisado, que procuramos adquirir essa luz que se derrama na Europa? E por esta maneira, senhores, que um povo se torna respeitado; é primeiramente respeitando suas leis e fasendo cumplil-as exactamente. E por este meio que a Inglaterra, temse elevado á altura que se acha entre as nações civilisadas. (Sr. Paiva)

Mais adiante, no mesmo texto, a discussão dos políticos exprime ainda a exaltação da ilustração: (...) Folgo, portanto, senhores, de me achar em sociedade tão illustrada; folgo em diante d´ella expender minhas toscas 16 Faltam neste exemplar as páginas 1 e 2. opiniões(não apoiadas) 16

Faltam neste exemplar as páginas 1 e 2.


98

para serem devidamente aguilatadas por esses espíritos esclarecidos de que se compõe a assemblea provincial.

A valorização dos modelos europeus, especialmente do parisiense, de ações e idéias fica explícita nas inúmeras notícias estrangeiras que aparecem ao longo de todas as edições. Na edição de 29 de janeiro, por exemplo, encontramos alusão a um correspondente: “Do nosso correspondente em Paris...”. Constantes curiosidades e notícias sobre esse país, local privilegiado de “irradiação dos ares de civilização”, aparecem constantemente. Além dos correspondentes que mediavam essas informações, o acesso a produtos como jornais e revistas importadas fica subentendido: “Esta facécia insulsa tornou-se quasi uma realidade como se vae ver pela veridica historia que extrahimos dos jornaes de Pariz.” O culto aos preceitos de higiene também é assunto privilegiado, temática que se fazia recorrente, especialmente para evitar a contração de doenças. Ao que podemos observar no Cearense, o assunto era colocado como um valor que, junto aos princípios morais e religiosos, deveria ser aprendido também no seio escolar. Na edição de 02 de fevereiro, por exemplo, seção Parte Official – Governo da Provincia, a publicação dos actos legislativos, lei nº 1:790 de 28 de dezembro de 1878, nº 21, exibe a autorização concedida à presidência para reforma da instrução publica na província. O artigo 2º determina que “a eschola normal formará um curso de tres annos, annexo ao lyceu desta capital, em que se ensinarão”, além das disciplinas como português, geografia, matemática e pedagogia, “philosophia, moral e religião e physica elementar e preceitos de hygiene”. Na edição de 02 de fevereiro, na seção Annuncios, percebemos como o tema tinha uma preocupação central naquele período:

Perfumaria Hygienica Salicylatada de Schlumberger & Cerckel 26, rua Bergére, Paris Sabonete de toucador salicylatado – Recommenda-se principalmente as pessoas que soffrem de transpiração desagradável. Preservativo contra as erupções da pelle, cura arfíveras e outras afecções da pelle.


99

Pos de Amido Salicylatados - Complemento insdispensável do sabonete solicylatado. As mães usam-nos para acalmar as comichões das crianças. Água Dentrificia salicylatada – Pela sua acção anti-septica, destre immediatamente os effeitos do máo halito, impede a caria e supprime as dores de dentes. Pos Dentrificios (de Coral Salicylatado). – Teem as mesmas propriedades que a agua dentrificia. Agua de Toucados Salicylatada – Excelente para o toilette íntimo, previne a acção deleteria dos miasmas e das moléstias contagiosas e epidemias.

No número de 27 de abril, na seção Parte Official – Governo da Provincia, o presidente José Júlio de Albuquerque Barros determina o seguimento rigoroso das instruções públicas concernentes ao estado sanitário dos abarracamentos da capital. O presidente da Provincia, reorganisando o serviço medico das enfermarias dos abarracamnros de indigentes, n´esta capital, e tomando, de accordo com o Dr. Inspector da Saude Publica providencias a bem do estado sanitario e condições higyenicas, resolve: 1º Determinar que todos os indigentes que forem accomettidos de variola, sejam transportados para o Lazareto da Lagôafunda. 2º Distribuir o serviço medico das enfermarias pela forma seguinte Enfermarias Medicos Da Pacatuba Dr. Rufino Antunes D´Alencar Da Tijuvana Dr Guilherm Studart Da Boa Esperança Dr José Lourenço de Castro e Silva Do Alagadiço-Grande Dr. Meton da Franca Alencar. Da Jacarecanga Dr. Pedro Augusto Borges É arbitrada a cada um dos referidos medicos a gratificação mensal de 200$000, excepto ao ultimo, em quanto estiver encarregado do Lazareto dos variolosos com os vencimentos que lhe forem marcados. 3º Ordenar que no serviço sanitario dos abarracamentos a suas enfermarias e no fornecimento de dietas, observem-se as instrucções que abaixo se seguem, assignadas pelo Dr. Inspector da Saude Publica. O que cumpra-se e publique-se. Palacio do Foverno do Ceará, 26 de abril de 1879. José Júlio de Albuquerque Barros Instrucções para o Serviço Sanitarios das Enfermarias e Abarracamentos de Emigrantes Enfermarias


100

1º Cada enfermaria conterá quarenta leitos, e terá um médico, um enfermeiro, um ajudante de enfermeiro, e tantos serventes quantos forem precisos. Deveres dos médicos 2º Visitar diariamente aos doentes recolhidos das enfermarias, e em dias determinados receitar aos doentes dos abarracamentos, cujas molestias permittião curar-se em suas barracas. 3º Communicar ao inspector de saude publica o apparecimento de molestias contagiosas e infecto-contagiosas, indicando as medidas que devão ser tomadas no sentido de evitar a generalisação de epidemias. 4º Dar, mensalmente, ao inspector de saude publica um mappa do movimento dos doentes entrados, curados e fallecidos nas enfermarias e abarracamentos, bem como dar trimensalmente um mappa pathologico. 5º Vaccinar o pessoal dos abarracamentos, solicitando a lymphia necessaria, e remmetendo, mensalmente, aos inspector de saude publica um mappa, com declaração do nome, idade e naturalidade dos vaccinados. 6º Fazer transferir para o hospital de Misericordia os doentes que tenhão de ser operados, dando-lhes uma guia. 7º Observar a maior economia nas prescripções de medicamentos, não receitando preparados estrangeiros, nem medicamentos caros, sinão em casos mui especiaes; não fasendo depositos nas boticas dos abarracamentos, nos quaes só devem haver os remedios mais usuaes, que sejam precisos de momento e possam ser, sem prejuizo dos doentes, applicados pelos enfermeiros. Estes medicamentos devem ser, com antecedencia, requisitados ao Presidente da Provincia. 8º Indicar na papelada do doente os medicamentos prescripyos e o modo de applical-os, bem como o numero da dieta. Tomar a seu cargo a hygiene dos abarracamentos, solicitando as medidas que julgar convenientes para melhorar, as condições de salubridade. O inspector> João da Rocha Moreira

O olhar desses letrados, em muito influenciados pelo discurso sanitarista e cientificista que se destacava no período, incide com força sobre o corpo e sobre tudo que é considerado fora dos “conformes”. A notícia é um dos eixos norteadores dos “consensos” e parâmetros sociais de normalidade e anormalidade. Ao lidar essencialmente com o que é inesperado, incomum ou perigoso, o jornalismo acaba indicando o que seria socialmente desejável, normal ou adequado. (BENETTI, 2005:110)


101

Na edição de 02 de fevereiro, por exemplo, um relato minucioso sobre a estrutura de um homem demonstra a preocupação e a visão depreciativa que tem do fenômeno: “Hermaphrodita: tem preocupado a curiosidade publica um hermaphrodita que acaba de apparecer nesta capital. O nosso amigo Dr Meton da França Alencar, tendo procedido um minucioso exame nesse monstro...”. Como sugere o critério de noticiabilidade adotado pelo Cearense, o insólito, exemplo vivo da inversão da “normalidade”, o fato não poderia passar despercebido. Para determinar o novo comportamento urbano da cidade, cerceado por multas e repreensões públicas (pelo jornal), sempre com vistas ao cumprimento dos ideais de civilidade, modernidade e progresso inspirados nas experiências européias, apresenta-se no periódico, seção Parte Official – Governo da Provincia – Actos Legislativos – de 18 de abril, a resolução nº 1818 do 1º de fevereiro de 1879, nº 49, que aprova o Código de Posturas da Câmara Municipal

de

Fortaleza,

mostrando

a

interferência

do

governo

na

regulamentação das mais diversas instâncias da vida social. Capítulo 5º Venda e Uso de diversos objectos Art. 105 E prohibido: 1º A venda de laranginhas para o entrudo. 2º O jogo ou brinquedo de entrudo seja qual for a substância empregada. 3º A venda de qualquer objeto nas praças e ruas da cidade depois das 9 horas da noite Os infractores serão multados em 5$000 reais, sendo utilizados os objectos prohibidos. Capitulo 6º JOGOS E REUNIÕES ILLICITAS Art 106º São permitidos somente os jogos denominados, voltarete, boston, sólo, wisth, espadilha, bilhar, damas, dominó, e gamão, os quaes poderão ser um publico ou particularmente exercidos. Todos os mais são prohibidos. Os infractores soffrerão a multa de 20$000 reis. Art. 107º É prohibida a reunião de escravos, filhos-família, famulos ou creados, nas lojas, tavernas, e calçadas, por mais de 15 minutos, para qualquer fim, so pena de 20$000 reis de multa ao dono da caza, em que se fizer a reunião. Capítulo 8º DA BOA CONSERVAÇÃO DO PASSEIO PUBLICO Art. 112º A entrada de pessoas no Passeio publico terá lugar somente das 5 horas da manhã às 6 e ½ da tarde.


102

Art. 113º É prohibido: 1º A entrada de quem não estiver decentemente vestido, dos embriagados e dos que se acharem ilegalmente armados. (...) Art. 114º O infractor de q incorrerá na multa de 5$000 reis. Titulo 7º DAS LICENÇAS, IMPOSTOS, EMOLUMENTOS E OUTRAS CONTRIBUIÇÕES Capítulo 1º DAS LICENÇAS Art 115º Não é permittido sem licença da camara: 1º Construir ou reconstruir predios ou cazas, frentes ou edificios de qualquer natureza nos terrenos comprehendidos na planta da cidade e povoações. 2º Construir sobre frentes ou paredes já existentes, e não conformes com as posturas embora tenha o proprietario a licença anterior para o levantamento das mesmas frentes ou paredes. 3º Accumular nas ruas materiaes para edificação ou qualquer obra, não podendo, apezar da licença, occupar com materiaes maior espaço do que o da frente da obra até o meio da rua ficando livres as coxias. (...) 6º Levantar (mutilado), tablados ou barracas, nas ruas e praças da cidade para dar espectaculo publico, seja ou não lucrativo. 7º Fazer barreiros, buracos, fossos e regos dentro da planta da cidade. 8º Abrir o calçamento para qualquer encamento ou obra; devendo os que obtiverem a licença, reparar tudo ao seu antigo estado, retirando os entulhos ou fragmentos. 10º Ter tavernas em que se vendam liquidos e gêneros alimenticios. Art 116º Em geral, toda e qualquer licença pagará quatro mil reis, excepto as que disserem respeito a municipalidade, porque neste cazo, pagará somente um mil reis pela mesma. Art 117º Pela falta de licença, ou quando esta não for própria para o estabelecimento, incorrerá o infractor na multa de 10$000 reis.

A seção Parte Official – Governo da Provincia – Actos Legislativos – de 20 de abril, apresenta a resolução nº 1819 do 1º de fevereiro de 1879, nº 30, seção 7ª, que aprova o regulamento elaborado, pela Câmara Municipal de Fortaleza, para o exercício das atividades dos servidores municipais, que devem cumprir e fazer cumprir as observações sobre as posturas, em permanente vigilância. Dentre eles, fiscais, médicos e arquitetos recebem


103

instruções para resguardar o estado sanitário da cidade, o alinhamento da planta e a manutenção da ordem.

Dos fiscaes Art 10º Compete aos fiscaes, de conformidade com o art. 85 da lei do 1o de outubro de 1878: 1º Vigiar na observancia das posturas, promover sua execução advertindo particularmente ou por meio de editaes que fará imprimir, quando isso for conveniente. 2º Declarar incursos nas multas estabelecimdas pelas posturas os infractores. Fazendo testemunhar a infracção e a declaração da multa por duas pessoas, pelo menos. 5º Propor à camara quaesquer medidas que lhe parecer conveniente ao serviço municipal. 6 Visitar, sempre que lhe for possível, as casas de commercio, tavernas e estabelecimentos, onde se venderem gêneros alimenticios, em grosso ou à retalho, e bem os assim bilhares e hoteis, armarinhos e taboleiros. Este serviço será distribuido na Capital entre os respectivos fiscaes pelo presidente da camara. 7º Visitar diariamente o matadouro, açougues, barracão do peixe e assistir à venda do leite no lugar destinado para o exame do mesmo. 8º Acudir ao lugar onde se der alguma infracção de postura, logo que isso lhe seja denunciado, attender cuidadosamente e com justiça às queixas e reclamações que lhe forem feitas contra o abuso e inobservância das posturas. 9º Visitar as fontes, chafarizes, açudes e cacimbas de servidão, fora do perímetro da cidade, verificar o seu estado e asseio. 10º Visitar as ruas, estradas, calçamento e caminhos, verificando o seu estado de conservação e de commodidade ao transito publico. 11º Fazer correição ou visitas geraes para saber se as posturas são observadas, precedendo annuncio pela imprensa. 12º Levar ao conhecimento da camara ou do seu presidente, nos casos urgentes, o estado em que se achar as fontes, açudes, cacimbas, chafarizes, estradas, calçamento, caminho e limpezas das ruas, indicando qualquer reparação ou providencia que achar conveniente. 13º Organisar diariamente e remetter à camara uma relação das rezes mortas no respectivo matadouro publico para o consumo, enviando copia fiel dellas à secretaria de policia. 14º Convidar o medico da camara, sempre que for necessario, a examinar o estado das rezes mortas para o consumo e dos generos alimenticios, no caso de lhe parecerem imprestaveis, corrompidos ou prejudiciaes à saúde, isto no caso de suscitarem-se duvidas ou contestações a semelhante respeito. (...) Secção 9ª Do medico.


104

Art. 13 Ao medico incumbe 1º Tratar as pessoas pobres (mutilado) 2º (mutilado) 3º (mutilado) estado sanitario do municipio, expondo as causas das alterações e motivando-a 4º Medicar os doentes pobres, em cujo numero se incluem os presos da cadeia desta Capital. Seccção 10ª Do architecto Art. 14 Ao architecto incumbe: 1º Alinhas as ruas, casas, cêrcas, estradas e quaesquer obra d´architectura, dar os seus nivelamentos e planos de desaguamento, attestando os actos que praticar, quando lhe for ordenado por despacho da camara. 2º Organisar a planta e orçamento de qualquer obra municipal. 3º Inspeccionar as obras da camara, ou se façam por contracto arrematação ou administração. 4º Levantar a planta e organisar o plano de desaguamento da cidade e povoações. 8º Verificar si os chafarizes, reservatorios, tanques, carroças, carros, valvulas, empregados pela companhia d´agua do Bemfica, conservam-se no fornecimento d´esta com o asseio devido, si são observadas as posturas e, si há regularidade no serviço; levando ao conhecimeno da camara municipal as reclamações justas que lhe parecerem.

Como afirmado anteriormente, esses pensadores, adeptos do ideário positivista, respaldavam uma elaborada instituição disciplinar urbana para conter as camadas menos privilegiadas da sociedade, dentre os quais retirantes, crianças abandonadas, moradores dos subúrbios, mendigos e doentes contagiosos. Inúmeros mecanismos de controle, já citados no capítulo anterior, como os asilos de mendicidade e de alienados, lazaretos, reformatórios e abarracamentos foram criados. Várias referências aparecem no periódico sobre as atividades realizadas nesses ambientes. A apresentação de dados estatísticos, como mortalidade causada por diversas doenças, principalmente da varíola, é bastante comum, exibida em praticamente todos os exemplares analisados, o que denota a excessiva preocupação com os males. Para exemplificar, o Noticiario de 29 de janeiro traz um relato sobre o números dos atingidos pela “epidemia reinante”:

Varíola em Mecejana - Movimento do lazareto de Mecejana do dia 22 de novembro a 20 de corrente.


105

Entraram Sahiram curados Falleceram Ficarão em tratamento

514 296 160 58

No Noticiário de 02 de fevereiro podemos encontrar, ainda que de forma velada, um certo otimismo em relação ao aumento das chuvas, que, em comparação com os anos anteriores, parecem anunciar o fim da seca no estado. Pluviometro – Durante o mez que findou tivemos apenas 9 dias de chuvas. A altura do pluviometro foi a seguinte: dia 4 9,80 7 1,20 8 4,24 9 1,00 10 7,00 11 23,40 19 11,00 21 6,00 29 1,60 TOTAL 65,40 Em 1876 nesse mez tivemos 3 dias de chuva; attingindo o pluviometro a 52 millimetros. Em 1877 4 dias de chuva 24,24 Em 1878 5 dias de chuva 39,00

Sobre o movimento do Lazareto da Boa Vista, na mesma seção: Lazareto da Boa Vista – movimento do lazareto da Boa-Vista durante os mezes de dezembro a janeiro, à cargo do Dr. José Lourenço: Doentes 1837 Falleceram 1028 Curados 714 Continuarão em tratamento 90 Durante a epedemia este (mutilado) Chegou a mais de 800 diariamente o numero de doentes da Boa-Vista. Varíola – esta epidimia tem se desenvolvido com grande intencidade em Maranguape. Para ali seguiram hontem os Drs. Fernando Abbolt e Leopoldino dos Passos.


106

Apesar de todos os esforços empreendidos no pronto atendimento dos retirantes chegados à capital, a quantidade de falecimentos, causados pela fome, miséria, mas principalmente pela varíola, ainda era assustadora. A permanente exposição dos números de mortos nos exemplares do Cearense reforçava ainda mais a necessidade de um novo ambiente urbano, limpo e saudável. No número de 27 de abril, no Noticiário: Variola em Maranguape - O medico empregado no tratamento dos variolosos indigentes daquella cidade dirigiu o seguinte officio a Presidencia. Cidade de Maranguape 16 de abril de 1879 Ilm. E Exm. Sr. Apresento a V. Exc. o movimento do Lazareto de variolosos estabelecido nesta cidade, durante a primeira quinzena do corrente mez. Em 1º de abril existião 53 doentes Entrarão 59 Sahirão 33 Fallecerão 34 Existem 35 Recapitulando o movimento desde 22 de novembro próximo passado até 15 do corrente e attendendo às idades dos doentes tratados, temos o seguinte quadro. Mortalidade segundo as idades Idade entr sah fall exist 1 mez a 1 anno 6 2 3 1 2 annos a 5 annos 31 10 18 3 6 annos a 10 annos 103 55 38 10 11 annos a 20 annos 251 147 94 10 21 annos a 30 annos 177 71 99 7 31 annos a 40 annos 105 34 62 9 41 annos a 50 annos 56 18 35 3 51 annos a 60 annos 27 6 19 2 61 annos a 70 annos 13 2 11 0 71 annos a 80 annos 7 1 6 0 _______________________________________ 776 316 385 45 Se considerarmos - que só procurão o Lazareto os indivíduos indigentes, - que a maior parte dos doentes de variola tem sido tratados em seus domicílios – que em grande numero delles a molestia tem revestido em caracter gravissimo, podemos aproximadamente avaliar em mil o numero de fallecidos neste periodo de 5 mezes. Por falta de assentamento de todos os obitos dados na cidade com a do Lazareto, entretanto tomando por base o movimento de março até 15 do corrente, calculamos que a mortalidade


107

entre os doentes tratados em suas casas é quase igual a do Lazareto. Assim, de 1º de março a 15 de abril fallecerão no Lazareto 99 Na cidade 119 Total: 218 A epidemia continua, manifestando de preferencia seus estragos em 2 bairros da cidade, o da Alegria, juncto a Estação da linha ferrea e do Cemiterio e o caminho que segue para o Lazareto. Hoje recebi communicação que se manifestou a variola na Tabatinga, d´aqui a 1 ½ legoa, e sigo amanhã para lá afim de providenciar. Deus guarde a V. Exc. Illm. E Exm. Sr Dr. José Júlio de Albuquerque Barros M. D. Presidente da Provincia do Ceara Dr. Antonio Leopoldino dos Passos

No Noticiario de 5 de fevereiro, mais relatos sobre o número de variolosos: Varíola em Maranguape – Movimento do Lazareto do Guatiguaba de 16 a 31 de janeiro, a cargo do encarregado do tratamento, pharmaceutico Antonio Mavignice Lopes Gama. Existião 137 Entraram 108 Total 245 Falleceram 65 Sahiram curados 60 Ficam em tratamento em más condições 44 Ficam ainda em tratamento fora de perigo 46 Total 245

No Noticiario de 18 de abril, nº 41, nota-se certo otimismo em relação à diminuição de mortos: Obituário: Do dia 1 a 15 do corrente, foram sepultados no cemitério de S João Batista 257 cadáveres, sendo 184 de adultos e 83 de parrulos a saber: Dia 1 – 16, dia 2 – 15, dia 3 – 14, dia 4 – 18, dia 5 – 19, dia 6 – 17 , dia 7 – 22, dia 8 – 17, dia 9 – 20, dia 10 – 22, dia 11 – 15, dia 12 – 19, dia 13 – 13, dia 14 – 14, dia 15 – 21. O anno passado a mortalidade nessa quinsena elevou-se a 1854, differença por tanto para menos este anno 1587. (faltam páginas 3 e 4).


108

Enfim, como pude perceber, ao longo da análise do conteúdo dos 12 exemplares disponíveis, dos meses de janeiro, fevereiro e abril de 1879, do jornal Cearense, na Biblioteca Pública Menezes Pimentel, a temática da seca e da varíola era bastante recorrente no Jornal. Além de se configurar como um fenômeno que aterrorizava todos os cearenses pelos males que causava, representava um perigo particular contra o projeto que as elites políticas, sociais e intelectuais, uma minoria da qual grande parte estava à frente de periódicos como o Cearense, intentavam para Fortaleza. Na cobertura noticiosa dos fenômenos pela folha podemos identificar algumas categorias recorrentes, dentre as quais destaquei as que valorizam os princípios do civilização, ilustração, higiene, moral e verdade, em nome do progresso e da modernidade para a urbe, componentes dos ideários liberais. É imprescindível destacar que as condições de noticiabilidade dos acontecimentos da cidade, durante o período analisado, muitas vezes iam de encontro à linha editorial do Cearense, que tinha como eixo central a defesa do projeto de modernização do governo. A referência aos malefícios causados pela seca e pela varíola, por exemplo, poderiam sinalizar a ineficácia das ações administrativas, mas as condições de noticiabilidade do fato figuraram sua exposição como inevitável. Pressionados pela lógica da operação jornalística, em que os valores-notícia são elementos substanciais na definição dos processos de noticiabilidade, o jornal fazia uso do conteúdo noticioso para legitimar o referido projeto e seu discurso disciplinador. Em situações como a da epidemia de varíola, que ocasionou um número assustador de óbitos (o que impôs sua presença na mídia, em decorrência dos valores-notícia substantivos da proximidade, morte e relevância), o Cearense incorporava em seu discurso elementos legitimadores do projeto modelador, orientando posturas e disciplinando ações. A exemplo disto, a edição de 5 de fevereiro de 1879, na seção Noticiário, exibe o relato sobre o movimento na enfermaria da Companhia de Aprendizes Marinheiros, o qual é seguido pela incitação à importância da vacina contra varíola. Movimento da enfermaria da companhia marinheiros durante o ano de 1878:

de aprendizes


109

doentes 322 falleceram 8 curados 304 continuão em tratamento 10 Os fallecidos forão victimas de tuberculose pulmonar e de febre biliosa Deu- se apenas um caso de varíola, na companhia, e este mesmo benigno; o doente acha-se reestabelecido Convem notar que pela frente do quartel passarão diariamente centenas de cadaveres de variolosos e nas proximidades do edifício derão-se muitos casos fataes. É a melhor prova em prol da boa-vaccina – Dr. José Lourenço de Castro e Silva.


110

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Esta pesquisa foi desenvolvida com vistas a uma tentativa de reconstrução do discurso dos escritores do jornal Cearense, tendo como enfoque algumas das principais noções que compuseram seu pensamento moderno nos fins do século XIX, incluindo concepções de evolução, ciência, progresso, civilização, higiene e moral, em torno da temática da seca/epidemia de varíola que atingiu a população fortalezense entre os anos de 1877 a 1879. A partir dos fins do século XIX, até o início do século XX, Fortaleza foi uma cidade com intensa atividade intelectual, quando borbulharam novas idéias e tendências estéticas, literárias, culturais, sociais, comportamentais, políticas, entre outros campos. É neste período, caracterizado como Belle Époque, que se dão as principais transformações sociais e estruturais de Fortaleza, com a tentativa de aproximá-la de centros urbanos como Paris e Inglaterra, tomados como modelo de cultura. As elites políticas, econômicas e intelectuais exprimiam seu desejo obsessivo pela higiene e saúde da população tanto através de procedimentos técnicos e intervenções nas mais diversas instâncias da vida social, como no campo da moda, do lazer, da estética, do consumo e dos comportamentos, quanto no discurso dos impressos. Na vanguarda deste processo de mudanças estava uma minoria de intelectuais que desejavam instalar em Fortaleza a sua própria Paris. Inicialmente um público díspare e bastante reduzido, formado principalmente por comerciantes de casas exportadoras, servidores públicos, literatos, professores, militares, livreiros, tipógrafos, membros de irmandades secretas, clérigos e estudantes de liceus e cursos jurídicos, os intelectuais que deram vazão a estes movimentos tiveram uma intensa participação na política e na imprensa local. Ainda que fosse pequeno o número de tipografias, jornais e escolas, podia-se perceber, a partir de então, considerável e rápido desenho de novos


111

lugares sociais e dos sujeitos, o que acabava por culminar em uma nova vida cultural, social e estrutural da cidade. Como afirma Nogueira apud Souza & Neves (2002), ainda poucos eram aqueles que falavam a “linguagem do século e do progresso”, mas este seleto grupo já representava um papel ativo na ebulição desse novo ethos urbano, que aos poucos ia se expandindo, dotado de mecanismos de controle social e disciplinarização. Com o recente enriquecimento possibilitado pelo crescimento da cultura algodoeira, essas elites locais buscaram a criação de um novo espaço público que expurgasse qualquer resquício de um passado colonial ou o convívio com as camadas pobres e desviantes da população, que assombravam o projeto excludente e modernizador dessa nova sociabilidade burguesa e europeizada. A partir de 1870, o ambiente educacional de Fortaleza, através do ensino secundário, passou a favorecer uma socialização dos estudantes que reforçava laços de classe, a obediência disciplinada e deu as bases para uma hierarquia social fundada em práticas culturais européias e que também promoviam afinidades intelectuais e sociais, basilares para os futuros movimentos sociais e políticos que eclodiriam na cidade. Os ambientes de leitura criados a partir de então marcaram profundamente toda uma geração de intelectuais e a instituição de uma cultura letrada no Ceará. Seguindo estudos notadamente cientificistas e positivistas, esses homens de letras encontraram as bases para interferência nas mais diversas questões da sociedade, destacando seu papel diante dos problemas da cidade. Conforme Oliveira (2002), “como arautos de um conhecimento pragmático, voltados para uma ação direta que indicaria o caminho da civilização e progresso social esperados para o Ceará” e identificados como missionários, muitos deles tiveram forte ligação com movimentos políticos, o que permitia sua ação de forma ainda mais direta. A supervalorização das idéias cientificistas ganhou uma dimensão não apenas intelectual como embasou uma leitura/visão do mundo que constituiu um repertório promissor entre intelectuais, estudantes, atingindo ainda uma clientela mais ampla, significativa parcela das sociedades letradas da


112

província. Através destas atividades, estabeleceu-se no Ceará o início de um sistema de referências modernas para a geração de 1870, aglutinando setores como a imprensa local. As questões científicas discutidas vincularam-se às questões políticas do período, propiciando uma contínua intervenção dos intelectuais na vida social da província no final do século XIX. (OLIVEIRA, 2002:38)

Identificados com os ideais que emergiam no novo cenário da Belle Époque, muitos destes ilustrados ocupavam lugar privilegiado nas tribunas jornalísticas, encontrando espaço para difusão de seus princípios e projetos. A imprensa do período colonial se constituiu como espaço salutar, talvez dos mais importantes, de comunicação e divulgação de idéias. Foi justamente nesse período que ela se fez mais livre. Segundo Morel & Barros (2003), a imprensa brasileira exerce um papel fundamental na sociedade desde o primeiro quartel do século XIX, momento da gênese da opinião pública nacional. Santos17 afirma que a imprensa, juntamente com agentes políticos, fez parte de redes de sociabilidades, modificando os espaços por onde se fizeram presentes. Conforme Morel & Barros (2003), uma das facetas desse instrumento de formação de opinião teria funcionado como estratégia para construção do Estado Nacional brasileiro, que seria fruto de uma herança18 da Revolução Francesa, em que os impressos exerceram importante papel na mediação de idéias advindas das luzes. Para os autores, os “homens de letras”, sendo formadores de opinião pública, agiram de forma contundente na imprensa, participando ativamente do processo de formação nacional através do seu discurso defensor dos novos moldes. Na cidade imperial, esses homens, oriundos principalmente de cursos universitários portugueses, franceses e ingleses, com formação predominante em Direito e Medicina, puseram em 17

SANTOS, Marileide Lopes dos. Sociabilidades, política, cultura e história: a corte imperial e os espaços públicos. Trabalho apresentado ao Programa de PósGraduação em Educação Conhecimento e Inclusão Social. Faculdade de Educação da UFMG. Trabalho sem data. Disponível em: http://www.fae.ufmg.br/pensareducacao/downloads/resenhas/sociabilidadespolitica.pdf 18 O termo é aqui utilizado para substituir a palavra “influência” e refutar, deste modo, noção de passividade.


113

prática suas idéias e visões de mundo na busca de um “progresso para o Brasil”. Conforme Morel (2005:218): “Estes homens de letras apresentavam-se como cidadãos e escritores ativos, como construtores da opinião que almejava levar a sociedade a algum tipo de progresso e de ordem nacional”. Nos periódicos encontramos projetos políticos e visões de mundo representativos de vários setores da sociedade. A leitura dos discursos expressos nos jornais permite acompanhar o movimento das idéias que circularam na época. A imprensa constitui um instrumento de manipulação de interesses e intervenção na vida social. Partindo desse pressuposto, o historiador procura estudá-lo como agente da história e captar o movimento vivo das idéias e personagens que circulam pelas páginas dos jornais. A categoria abstrata imprensa se desmistifica quando se faz emergir a figura de seus produtores como sujeitos dotados de consciência determinada na prática social (CAPELATO, 1988:21)

O Cearense não fugiu à regra e desempenhou importante papel na formação sócio-cultural de Fortaleza. Formado por uma minoria culta e intimamente ligada ao partido liberal, o jornal constituiu-se também como instrumento capaz de gerar distinção, prezando o lugar e o papel do letrado como importante elaborador e difusor da civilização, do progresso, que através das letras e prensas, construiu a história política, estrutural e comportamental da cidade. O Jornal se colocava como paladino da idéia de que seria possível a civilização da sociedade alencarina. Antes de ser objeto de leitura dos fatos relevantes, o veículo representava a leitura de como deveriam ou não ser as condutas urbanas. Através do seu discurso, as elites encontraram um importante canal de coro na luta pela modernização dos hábitos, costumes, sentimentos e da própria formação arquitetônica da cidade, ainda que os elevados índices de analfabetismo no século XIX restringissem bastante esse alcance. Apesar de se supor mero objeto de lazer, diversão e informação, o Cearense se mostrava um instrumento de controle social que carregava nas


114

entrelinhas um forte discurso moralizador. Os hábitos, como namoros escandalosos, vícios e meretrício eram repreendidos, muitas vezes, em nome da moral, dos bons costumes e da honra familiar. Defendia-se a saúde dos corpos e espíritos, por meio das instruções sanitárias e do culto às modificações urbanas. Neste sentido colocava-se o jornal Cearense em seu papel reformador, dotado de um viés ideológico elitista e burguês, que assim como outros tantos jornais, buscava uma participação ativa na orientação das mentes e dos comportamentos em Fortaleza. Tratei nesta pesquisa como o jornal, no ano de 1879, abordava a temática da seca e da varíola e legitimava, sob influência do discurso médico-social, mudanças com vistas aos ideais de civilização, ilustração, higiene e moral, apresentando o que entendiam estes intelectuais como “o bem da verdade”. Apesar de se contrapor vorazmente aos partidos considerados conservadores, representados na imprensa pelos periódicos Constituição e Pedro II, por exemplo, na luta pelo monopólio do governo, pude observar que o jornal Cearense funcionou como um instrumento de instituição de normas, leis e intensa vigilância da vida coletiva e muitas vezes, inclusive, da vida privada, diligindo para promover uma sociedade decorosa e saudável, para a qual seriam necessárias inúmeras procedências urbanas e sociais. A postura do Cearense frente ao aperfeiçoamento moral, social, eugênico e intelectual da cidade, com a defesa da remodelação da cidade e instalação de novos serviços urbanos e disseminação de ideais, confirmava a exigência de adequação à assepsia e modernidade. Parti do pressuposto de que, calcados no discurso médico sanitarista que aqui ganhava força, nos meados do século XIX, o relato desses intelectuais sobre a seca e a varíola desempenhou um papel preponderante na elaboração de uma nova etiqueta urbana para Fortaleza, influenciando a adoção de novas representações. A cobertura noticiosa da seca/varíola pelo jornal Cearense foi fundamental para reforçar a legitimidade do discurso médico-social em Fortaleza e, por conseguinte, para dar vulto às intensas intervenções urbanas


115

que se seguiram do final do século XIX até a década de 20 do século XX. Ao mesmo tempo, a difusão dos saberes sanitaristas fornecia as bases para a promoção das idéias e ações burguesas. Nesta perspectiva, a notícias do jornal

Cearense,

mascaradas

sob

a

função

informativa,

eram

instrumentalizadas como elemento (re)formador de opinião. Tentei, a partir da análise de conteúdo do Cearense, fazer uma reconstrução da “trama” da cidade, compondo suas trajetórias no contexto sócio-cultural do século XIX. Espero que estas reflexões iniciais possam contribuir para desvendar um pouco daquele que entendo ser um momento histórico decisivo para a atual configuração de nossa cidade, bem como para instigar novos debates.


116

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADERALDO, Mozart Soriano. História abreviada de Fortaleza e crônicas sobre a cidade amada. Fortaleza: Imprensa Universitária, 1974. ALVES, Fábio Lopes; GUARNIERI, Ivanor Luiz. A utilização da imprensa escrita para escrita da história: diálogos contemporâneos. Revista Brasileira de Ensino de Jornalismo, Brasília, v.1, n.2, p.30-53, ago./nov.

2007.

Disponível em: <http://www.fnpj.org.br/rebej/ojs/viewissue.php?id=7>. Acesso em: 23 mar. 2008. ARAÚJO, Maria do Carmo Ribeiro. O poder local no Ceará. In: SOUZA, Simone (Coord.) História do Ceará. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 1994. AZEVEDO, Miguel Ângelo de. Fortaleza de ontem e hoje. Fortaleza: Tiprogresso, 1991. AZEVEDO, Otacílio de. Fortaleza descalça: reminiscências. Fortaleza: Edições UFC, 1983. BARBOSA, Francisco Carlos Jacinto. As doenças viram notícia: imprensa e epidemias na segunda metade do século XIX. In: NASCIMENTO, Dilene Raimundo do; CARVALHO, Diana M. de (orgs). Uma história brasileira das doenças. Brasília: Paralelo, 2004. BENETTI, Marcia. Análise do discurso em jornalismo: estudo de vozes e sentidos. In: LAGO, Cláudia, BENETTI, Marcia. Metodologia de pesquisa em jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. BEZERRA, José Tanísio Vieira. Quando a ambição vira projeto: Fortaleza, entre o progresso e o caos (1846-1879). São Paulo, 2000, 184p. Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembranças de velho. 2ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1987.


117

BRÍGIDO, João. Ceará: homens e fatos. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2001. CAMINHA, Adolfo. A normalista. Fortaleza: ABC Editora, 2001. CAMPOS, Eduardo. Capítulos da história de Fortaleza do século XIX. Fortaleza: Edições UFC,1985. CAPELATO, Maria Helena Rolim. A imprensa na história do Brasil. São Paulo: Contexto/Edusp, 1988. CARDOSO, Gleudson Passos. Literatura, imprensa e política (1873-1904). In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (orgs). Intelectuais. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002. CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (orgs.). História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988. CORDEIRO, Celeste. O Ceará na segunda metade do século XIX. In: SOUSA, Simone de (org). Uma nova história do Ceará. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. COSTA, Maria Clélia Lustosa. Teorias médicas e gestão urbana: a seca de 1877-79 em Fortaleza. História, Ciência e Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, vol.11, n.1., Jan./Apr. 2004.

Disponível

em:

<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010459702004000100004>. Acesso em: 06 abr. 2008. _____. Urbanização da sociedade cearense. In: DAMIANI, Amélia et al. O espaço no fim do século: a nova raridade. São Paulo: Contexto, 1999. _____. Do higienismo ao ecologismo: os discursos sobre o espaço urbano. In: SILVA, J.B. et al. A cidade e o urbano: temas para debates. Fortaleza: Edições UFC, 1999. FERNANDES, Ana Carla Sabino. A Imprensa em pauta: entre as contendas e paixões partidárias dos jornais Cearense, Pedro II e Constituição na segunda


118

metade do século XIX. Fortaleza, 2004, 204p. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal do Ceará. FREITAS, Henrique Mello Rodrigues de. Análise léxica e análise de conteúdo:

técnicas

complementares,

seqüenciais

e

recorrentes

para

exploração de dados qualitativos. Porto Alegre: Editora Sagra Luzzatto, 2000. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Petrópolis: Vozes, 2004. GADELHA, Georgina da Silva. As doenças no Ceará: salubridade, higiene e teorias epidêmicas no século XIX. In: OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro; GADELHA, Georgina da Silva. (orgs.). Ceará: ciências, saúde & tecnologia (1850-1950). Fortaleza: Expressão Editora, 2008. HERSCOVITZ, Heloiza Golbspan. Análise de conteúdo em Jornalismo. In: LAGO, Cláudia, BENETTI, Marcia. Metodologia de pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. JUCÁ, Gisafran Nazareno Mota. Memória social: novas práticas metodológicas, nos trilhos da ferrovia. In: OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro; GADELHA, Georgina da Silva (orgs.). Ceará: ciência, saúde e tecnologia (1850-1950). Fortaleza: Expressão Editora, 2008. LAGO, Cláudia; BENETTI, Marcia. Metodologia de pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. LIMA, Ariza Maria Rocha. Vestígios da educação física em Fortaleza (18631945). Revista digital - Buenos Aires, 2003, Año 9, N° 64. Disponível em: <http://www.efdeportes.com/>. Acesso em: 12 abr. 2008. LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSK, Carla Bassanezi. (org.). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2005. MENEZES, Raimundo de. Coisas que o tempo levou: crônicas históricas da Fortaleza antiga. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2000. MOREL, Marco; BARROS, Mariana Monteiro. Palavra, imagem e poder: o surgimento da imprensa no Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Editora DP&A, 2003.


119

MOTTA, Luiz Gonzaga. Pesquisa em jornalismo no Brasil: o confronto entre os paradigmas midiacêntrico e sociocêntrico. Revista de economía política de las tecnologías de la información y comunicación, Ene, Vol. VII, n. 1. 2005. Disponível em: <www.eptic.com.br>. Acesso em: 18 abr. 2008. NEVES, Berenice Abreu de Castro. Intrépidos romeiros do progresso: maçons cearenses do império”. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (orgs). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. NEVES, Frederico de Castro. A companheira da seca: narrativas sobre as epidemias de varíola no Ceará”. In: OLIVEIRA, Almir Leal de; BARBOSA, Ivone Cordeiro; GADELHA, Georgina da Silva. (orgs.). Ceará: Ciências, saúde & tecnologia (1850-1950). Fortaleza: Expressão Editora, 2008. NOBRE, Geraldo. Introdução à história do jornalismo cearense. Fortaleza: Gráfica Editorial Cearense, 1974. NORA, Pierre Nora. O retorno do Fato. In: LE GOFF, Jacques, comp. História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves: 1995. OLIVEIRA, Almir Leal de. Universo letrado em Fortaleza na década de 1870. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (orgs). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. OLIVEIRA, Cláudia Freitas de. As idéias científicas do século XIX no discurso do Club Literário. In: SOUZA, Simone; NEVES, Frederico de Castro (orgs). Intelectuais. Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2002. PONTE, Sebastião Rogério. Fortaleza belle époque: reformas urbanas e controle social (1860-1930). 3ª ed. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2001. PONTES, Albertina Mirtes de Freitas. A cidade dos clubes: modernidade e “glamour” na Fortaleza de 1950-1970. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2005. RIBEIRO, Ana Paula Goulart. A mídia e o lugar da História. In: Revista Lugar Comum, nº 11: estudos de mídia, cultura e democracia. Rio de Janeiro: Escola de Comunicação/UFRJ. Maio/Agosto, 2000.


120

ROCHA, Demócrito. A imprensa do Ceará. In: GIRÃO, Raimundo e MARTINS FILHO, Antônio. O Ceará. Fortaleza: Ed. Instituto do Ceará, 1966. ROMANCINI, Richard. História e Jornalismo: Reflexões sobre campos de pesquisa. In: LAGO, Cláudia. Metodologia de pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. SANTIAGO, Pádua. Pirambu: espaço estratégico de inserção no modelo hegemônico de bem-estar e estar bem no mundo. In: GADELHA, Francisco Agileu (org.). Outras histórias: Fortaleza, cidade(s), sujeito(s). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. SANTOS, Marileide Lopes dos. Sociabilidades, política, cultura e história: a corte

imperial

e

os

espaços

públicos.

Disponível

em:

<http://www.fae.ufmg.br/pensareducacao/downloads/resenhas/sociabilidadespo litica.pdf>. Acesso em: 12 abr. 2008. SERRA, Sônia. Vertentes da economia política da Comunicação e Jornalismo. In: LAGO, Cláudia, BENETTI, Marcia. Metodologia de Pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. SILVA, André Felix Marques da et al. Modernização e desigualdades sociais em Fortaleza na segunda metade do século XIX. In: XIV ENCONTRO NACIONAL DE ESTUDOS POPULACIONAIS, ABEP, Caxambu, MG, 2004. SILVA, Marco Aurélio F. da. Fortaleza: uma cidade (in)decorosa. In: GADELHA, Francisco Agileu (org.). Outras Histórias: Fortaleza, cidade(s), sujeito(s). Fortaleza: Edições Demócrito Rocha, 2004. SILVA FILHO, Antonio Luiz Macêdo e. Fortaleza: imagens da cidade. Fortaleza: Museu do Ceará/Secretaria da Cultura e Desporto do Ceará, 2001. TEOPHILO, Rodolpho. Varíola e vacinação no Ceará. Fortaleza: Fundação Waldemar Alcântara, 1997. TRAQUINA, Nelson. Teorias do Jornalismo. 2ª ed. Insular: Florianópolis, 2005.


121

VASCONCELOS, Luciana Lima. Remodelação urbano-social na Fortaleza da belle époque: o impacto sócioantropológico do discurso sanitarista na transformação

das

representações

mortuárias.

Fortaleza,

2006,

77p.

Monografia (Graduação) – Universidade Federal do Ceará, 2006. VIZEU, Alfredo. O newsmaking e o trabalho de campo. In: LAGO, Cláudia, BENETTI, Marcia. Metodologia de pesquisa em Jornalismo. Petrópolis, RJ: Vozes, 2007. WOLFF, Philippe. O outono da Idade Média ou primavera dos novos tempos? São Paulo: Martins Fontes, 1996.


122

ANEXOS

Figura 1: Figura 1: Extraída de PONTE (2001:26). O traçado retilíneo das ruas, favorecendo a melhor circulação do ar e possibilitando também um maior controle e ordenamento da cidade.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.