29.03 - 07.06.2025
Av. Nove de Julho, 5162, São Paulo - SP


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Tatiana Gonçales
Como começou a sua carreira como artista, há mais de 65 anos?
Regina Silviera
Oficialmente, minha carreira como artista profissional começa com a minha primeira exposição. Minha primeira exposição foi quando eu tinha 17 anos, em 1957, quando eu ganhei um prêmio de aquarela da Aliança Francesa, em Porto Alegre. Então fui convidada a fazer uma exposição individual. Esse poderia ser um começo oficial, só que para ganhar um prêmio de aquarela significa que eu já estava na estrada há algum tempo. Depois, eu fui estudar arte na universidade e acho que isso pode contar como outro começo. Claro que, previamente, eu já executava pinturas e desenhos, estudos particulares, porque eu sempre busquei esse caminho.
TG
Já era uma coisa que você trazia desde sempre, pelo que eu entendo.
RS
É, acho que sim. Isso foi um começo de carreira, que depois se estendeu durante alguns anos, fazendo ilustrações para jornal, pinturas, desenhos, e acompanhava meus estudos na universidade, onde eu, recém-formada, fui convidada a trabalhar. Ou seja, minha carreira como docente, também na universidade, começa muito cedo. Começa antes de 1960, ou nos anos 1960 mesmo. Eu acho que são os primeiros passos de uma Regina que depois se transformou profundamente nos anos 1960 e nos anos 1970. Então, a carreira é comprida, é difícil olhar para trás e me reconhecer em cada etapa.
São muitos anos, Regina. Eu acho que você já respondeu um pouco a segunda questão, que é como você definiria o seu trabalho nesse início.
RS
No início, eu entendia a arte como expressão, na verdade. Depois, isso mudou. Mudou bastante em atitude, pensamento, mas, naquele momento, o mundo visível era o meu motivo. Eu fazia gêneros de paisagem. O meu estudo foi um estudo acadêmico, no melhor sentido, e no sentido mais restrito também. Você tinha que se dirigir, ou à pintura ou à escultura, como as escolhas na universidade. Até a gravura era considerada uma arte menor, tanto que não se ensinava a gravura na universidade. Assim era o ensino acadêmico tradicional. E que foi revolucionado por um curso do Iberê Camargo, que acentuou outras características do meu trabalho no início dos anos 1960.
Então, todo esse capítulo antecede a minha primeira viagem para a Europa, em 1967, com uma bolsa do Instituto de Cultura Hispânica. Eu ganhei uma bolsa para estudar pintura na Escola de São Fernando, em Madri.
TG
Você ficou quanto tempo na Espanha?
RS
Na Espanha eu fiquei um ano e meio, mas não propriamente na Espanha, porque eu fiquei na Europa depois de cumprir com o programa da bolsa, que eu modifiquei. Eu visitei a própria Escola de São Fernando e vi os alunos saírem com pinturas embaixo do braço. Eu achei que eu não tinha nada a ver com aquele mundo mais, e me inscrevi num curso de História da Arte na universidade, que depois foi ministrado no Museu do Prado. Então, minha vida já estava mudando a essa altura.
TG
Seu trabalho foi seguindo um fluxo do que vinha acontecendo no contexto dos anos 1960?
RS
Sim. Ele modfica completamente. Eu abandonei a pintura instantaneamente. Me entendi como um pequeno dinossauro. Então, eu tinha que entender...
TG
Você tinha que acompanhar o que estava acontecendo.
RS
Por força das amizades novas, da minha admiração por coisas que eu não conhecia, como coisas de arte e tecnologia, ligadas a um tempo, a um movimento, aos novos instrumentos, e também a uma concepção já conceitual da arte. Eu me tornei amiga de muitos artistas, inclusive do Júlio, que eu conheci lá, e convivia com o Grupo Fluxus. Era outro mundo. Sentia que estava vendo pela primeira vez aquilo que eu não conhecia.
Até a Pop Arte, por exemplo, na Inglaterra. Tem um capítulo bem interessante, em que eu mandei um postal para o Iberê Camargo, meu professor e muito amigo. Além da Pop Arte, eu estava vendo também a moda Pop, com as minissaias e tudo mais. Ele guardou. Está lá no Instituto Iberê Camargo até hoje, esse cartãozinho postal.
TG
E nessa época o que você passou a produzir? A mudança então aconteceu com a sua ida à Europa?
RS
Claro. Completamente. Me vi diante de uma nova paisagem das artes. Foi como reaprender. Fiz pequenas colagens, com as quais eu aprendi a linguagem visual. Eram como histórias em quadrinhos de formas.
TG
E você voltou ao Brasil no final da década de 1960, foi isso?
RS
Isso, 1967, 68. Fui chamada por uma boa galeria para fazer uma exposição. Mas não mais com as colagens. A Embaixada do Brasil patrocinou essa exposição. Eu estava em um novo encaminhamento, sem dúvida, voltada para uma visão mais conceitual da arte, que
implicava outro tipo de pensamento, que não era só expressão. E que derivou para o meu primeiro uso de materiais industriais. Eu trabalhei durante dois anos usando alumínio, aço inoxidável, fazendo não esculturas, mas pequenos objetos, às vezes com movimento. Eu estava explorando todas as possibilidades que se apresentavam. E isso perdurou até os primeiros anos da Universidade de Porto Rico, quando eu fui trabalhar lá, a convite de um novo programa que se instalava. Fiquei por um ano. Eu ainda era contratada pela Universidade do Rio Grande do Sul. Permaneci quatro anos e me desliguei da universidade, pensando que ia ficar toda a vida.
E aí, em Porto Rico, de novo, o meu caminho se modificou, porque eu comecei a entrar, de repente, nessa cadeia da comunicação, da mail art e das trocas comunicacionais de arte. Comecei a aprender os recursos da gráfica industrial. Ou seja, eu já estava inserida na litografia, na gravura, em madeiras, xilogravura, previamente com o Marcelo Grassmann, com o Francisco Stockinger, no Brasil. Mas eu nunca tinha aprendido, por exemplo, a trabalhar com offset. Então, a universidade montou uma gráfica e tivemos que aprender, eu e o Julio, a imprimir offset, especialmente pra fazer um catálogo de arte postal, que hoje em dia é reconhecido como o primeiro catálogo de arte postal.
TG
Vocês implementaram isso lá?
RS
Implementamos isso na universidade. Fizemos o catálogo, porque a universidade, naquele momento, disse que não tinha verbas alocadas para fazer um catálogo da exposição que o Julio montou, mas que tinha verba para montar uma gráfica inteira. Eu disse “ok, então vamos aprender”. Aí a universidade montou uma gráfica e fizemos o catálogo. E isso me abriu as portas para um campo de trabalho que persiste até hoje, que é o campo da apropriação das imagens prontas, que eu modifiquei criticamente, de muitas maneiras, ao longo do meu percurso.
TG
Você implementou essa pesquisa no Brasil quando você voltou na década de 1970?
RS
Eu voltei para o Brasil para ensinar, convocada pelo Walter Zanini e pelo Donato Ferrari, para trabalhar na FAAP e na USP também, onde eu transformei o ensino da gravura, complementando com técnicas mais industriais, como já era a serigrafia. Eu a entendia como um campo muito aberto, onde valia tudo. Valia microfilmagem, valia fotocópia, valia offset, etc.
TG
Também foi muito rico esse momento no Brasil. Talvez um pouco atrasado, na década de 1960, 70, mas foi quando começou mesmo toda a experimentação em arte conceitual, com o MAC e o Zanini.
RS
Muito diferenciado também da cena brasileira. Bastante diferenciado.
TG
Um paradoxo se pensarmos que esse período dos anos 1960 e 70 foi quando aconteceu toda a experimentação em arte no Brasil, em plena ditadura militar.
RS
A ditadura conseguiu mexer com o sistema, quando houve a intervenção naquela Bienal em Salvador. Mas, no geral, a ditadura não tinha repertório para controlar e censurar esse tipo de manifestação. Então, elas passavam. Passavam, assim, de graça.
TG
Sim, como era na música. Como com a Tropicália, eles não tinham como entender a profundidade do que estava acontecendo. Não tinham repertório.
RS
Porque a gente apresentava aquilo não com retórica, mas com desvios, completamente conceituais, né? Então, passava limpo. Não era fácil.
TG
E, Regina, ao mesmo tempo que tudo isso acontecia, você seguia
com a carreira acadêmica também?
RS
Minha carreira acadêmica durou por muitos anos. Na realidade, eu me aposentei no ano 2000. Não, me aposentei oficialmente em 1993, mas continuei trabalhando na pós-graduação até 2000. E não foi só ensinar. Eu fui chefe de departamento, participei de diversas comissões junto a órgãos como a CAPES, o CNPQ. Foram os anos em que os programas de arte se definiram e se afirmaram no Brasil. Você tinha que ajudar a configurar esses programas e marcar uma presença dentro desses órgãos, que decidiam sobre a pesquisa, bolsas de estudos etc. Não havia pós-graduação. Tínhamos que formular a pós-graduação. Tudo estava por ser feito nesses anos.
TG
Então você também contribuiu para implementar o ensino de arte no Brasil?
RG
Bastante. Até demais. Eu fui chefe de departamento, participei de todas as comissões, ajudei a formular a pós-graduação, fui um dos primeiros docentes às quais se exigia a pós-graduação, que não estava definida. Que serviram de modelo depois para todo o Brasil. Não havia presença nem sequer na própria universidade para gente de teatro, gente de música, gente de cinema. Precisava formular, precisava provar que tinha pensamento, que tinha pesquisa, que tinha cabeça para competir, às vezes, com um pequeno documento de química ou física.
TG
Competir pelas verbas públicas, principalmente.
RS
Sim, e pelo reconhecimento dentro da própria universidade. Então, isso durou até que eu me senti capaz de deixar a universidade, no sentido de não precisar me dedicar mais. E eu escapei para ser só artista.
TG
Mas, ao mesmo tempo que você seguia com a carreira acadêmica,
você também seguia com o seu trabalho como artista, e as duas coisas se entrelaçavam, não é?
RS
Eu seguia, porque, por sorte, a universidade onde eu trabalhava estimulava muito o intercâmbio internacional. Então, pude ter licenças de até mais de um ano. Quando eu ganhei a bolsa da Guggenheim, por exemplo, para morar em Nova Iorque. Mas, a essa altura, eu já estava na estrada internacional fazia bastante tempo. Porque eu sempre encontrei melhor interlocução fora do Brasil, do que dentro do Brasil. Então, eu já tinha formado uma pequena rede, desde os tempos da comunicação por mail art nos anos 1970.
TG
E, falando do seu trabalho, quando é que você inseriu a arquitetura, o espaço urbano, na sua investigação?
RG
Não sei dizer exatamente, porque eu sempre estive interessada nesse assunto. No espaço urbano e no público, que não era o público da arte. Justamente pela função que a arte tem de poder transformar a experiência do mundo. Então, sempre estive interessada, no começo, por fazer obras na rua, como outdoors. Me lembro quando fiz meus outdoors, acho que foi na década de 1980. E tenho uma experiência muito curiosa de trabalho junto ao público, que eu mesma não entendia o que estava fazendo. Foi um impulso. E já mostraram na galeria, por exemplo, uma receita de pudim da arte brasileira. Era muito complexo o entendimento daquela receita e a transposição para o que eu estava criticando na arte e política brasileira. Mas eu não sabia como tornar público, então fui imprimir uns 500 exemplares em fotocópia e fui para a saída do metrô na Praça da Sé, onde eu distribuí para as pessoas que saíam da escada rolante. Não sei porquê, nem como e nem o que as pessoas pensaram disso até hoje. Mas logo eu pude participar, nos anos 1980, daquele Festival das Mulheres nas Artes, onde eu convoquei minhas alunas, todas as artistas que se formaram, como a Ana Tavares e a Leda Catunda.
TG
Uma geração inteira que você formou, a geração dos anos 1980.
RS
Então convoquei essas artistas para participar dessa exposição de outdoors, na rua. Depois participei daquele programa do Painel Arte Acesa, que foi o primeiro painel eletrônico em São Paulo. Eu acho que foi a própria Ana Tavares que fez a organização disso, que foi distribuir folhetos de novo para compensar as falhas do primeiro. No Arte Cidade, na Rebouças, junto com meus alunos. Eu sempre estive interessada nessa dimensão pública, no sentido de enxertar esse tipo de provocação no meio urbano. Eu fiz também o projeto Pronto para Morar. Tudo isso se antecedeu à minha relação com o espaço arquitetônico, com intervenções sobre arquitetura, que começaram, eu acho que nos anos 1990. Meados dos anos 90, quando eu fui chamada para operar dentro daquilo que eu entendi depois como uma gráfica expandida. Uma gráfica que não necessariamente estava no papel, mas revestia espaços arquitetônicos diversos.
TG
Foi uma pesquisa que começou no Brasil, dentro da universidade, e depois se estendeu internacionalmente para os espaços museológicos?
RS
Não acho que tenha começado dentro da universidade, não. Eu acho que começou no ambiente das artes, nacional e internacional. Mas o meu trabalho já tinha sido, por diversas décadas, uma exploração de espaço, em que eu fazia instalações de grande porte, desde a Bienal de 1983, geralmente pintadas, objetos recortados, dentro do universo da polaridade das sombras e depois do universo da luz.
Mas eu acho que o que marcou profundamente o meu salto para essas ocupações maiores foi a minha passagem para recursos digitais, no final dos anos 1990. Teve um tempo de hibridização, em que eu trabalhava com desenhos digitais e pintava nas paredes e chão, como foi em San Diego, até que, de repente, me dei conta de que eu podia saltar efetivamente com esses recursos, o que me abriu um campo muito extenso de possibilidades para executar trabalhos maiores à distância.
TG
E otimizar todos esses processos.
RS
Exato. E trabalhar com uma família de signos que podiam ser repetidos, que podiam se adaptar e se adequar às diversas situações, com tecnologias simples e conhecidas internacionalmente. Então abriu-se um campo, abriu-se a porteira.
TG
Isso até vem de encontro com a minha próxima pergunta, que é falar dos processos de produção. Se naquela época era muito mais trabalhoso, depois o processo começou a ficar muito mais prático?
RS
Eu sempre me interessei pelos meios e fui classificada como artista multimídia nos anos 1970, o que tinha outro significado do que tem agora. Mas eu queria deixar bem claro que os meios como tais são completamente diferentes ao meu uso. Ou seja, eu não estou obcecada pelo meio e não sou especialista em nenhum meio. Tanto é que eu me apoio e consulto aqueles que são especialistas para me ajudarem a elaborar o trabalho. Eu escolho o meio de acordo com as ideias, de acordo com a necessidade. E em um clima de abertura. Tudo está acessível. Depende daquilo que eu quero fazer. Mas, na verdade, eu incorporei diversas possibilidades abertas pelos meios, especialmente gráficos e temporais, como o vídeo, desde os anos 1970. Então, não sei se eu consigo me classificar agora como artista multimídia, mas eu tenho feito coisas que estão dentro da tradição do ilusionismo e da ótica. Por exemplo, como realidades virtuais e realidades aumentadas. Eu tenho exercido essas práticas em diversos trabalhos, em que eu refaço a noção das fantasmagorias. Fantasmagorias do século 17. Com aparelhos básicos que estão na história do pré-cinema, que estão na história da fotografia. Então, é toda uma cadeia.
TG
Você vai explorando todas as possibilidades, de acordo com as ideias. O que as ideias pedem, você explora.
RS
Então, por que eu incluí na minha exposição em Barcelona um disco voador, naquele céu do pátio anterior do Palácio La Virreina? Porque me pareceu que era interessante essa aparição, mesmo que muito breve, de um UFO, e que seria uma espécie de arte pública para as pessoas que não precisam visitar a exposição, que estão nas ramblas e que podem entrar naquele pátio interno e acionar nos seus celulares, que todo mundo tem, acionar um código QR e virar o telefone para o céu e ver o disco voador. Me pareceu que era uma arte pública…
TG …atual.
RS É, atual.
TG
Você se utilizou de ferramentas do momento.
RS
Não tenho censura para esse uso. São explorações possíveis, como o recente vídeo mapping que eu fiz no sul da França, em que eu botei fogo e inundei um aqueduto romano, Fazendo uma espécie de pilha histórica em que o tempo milenar daquela ruína se soma às previsões do futuro, que não são nada boas, não é? Previsões climáticas catastróficas. Então, achei que era um discurso possível e que esse era o meio adequado para isso.
TG
E que, na verdade, você não poderia ter feito isso há alguns anos atrás.
RS
Não. Mas o que mostra é que primeiro está a intenção e depois é a procura do meio. Mas isso se superpõe na cabeça do artista. Não é que seja programático.
TG
E sobre essa obra dos anos 1990 que você vai reproduzir agora na
Luciana Brito Galeria? Fale um pouco sobre ela.
RS
Isso é uma longa história. Outra longa história. Começa com a minha preocupação com a efemeridade do trabalho, já em 1983, quando eu fiz a instalação “In Absentia”, um trabalho pintado nas paredes e em painéis. E uns meses depois eu vi os pedaços de painéis, utilizados por mim, e um pedaço da roda de bicicleta, numa feira de carros. Então eu levei um choque, porque eu fui ao edifício onde estava o Museu de Arte Contemporânea e tinha uma feira de carros. Eu levei um choque! Eu disse “não pode ser assim”. O trabalho tem que perdurar. Eu não tinha acesso, então, à ideia de permanência, que é fornecida pelos arquivos digitais, que podem ser refeitos, reproduzidos. Além de copiar exaustivamente todo aquele desenho de 200 metros quadrados, eu passei a explorar outras coisas, como as tapeçarias, como os recortes.
Toda essa busca está ocasionada por algum motivo. Nos anos 1990, quando eu fui provocada por uma abertura de possibilidades por uma galeria de Nova Iorque, que era uma galeria muito experimental, que abrigava performances e obras bastante conceituais, eu imaginei fazer essa obra que eu agora estou refazendo lá na galeria, que é uma correção virtual do espaço com um ângulo agudo, ou seja, um triângulo. A planta é um triângulo, corrigida virtualmente por quem chega em um determinado lugar, que é o ponto de vista que, automaticamente, proporciona essa correção. Mas na época eu propus pintar, não tinha outra maneira de fazer, então, claro que não pude fazer. Agora eu vou poder fazer. Claro que eu tive que introduzir diversas mudanças, porque agora não é a mesma coisa, não são as mesmas medidas, o lugar de olhar é outro. Eu estou refazendo conceitualmente essa instalação, mais de 30 anos depois.
TG
E você se lembra, Regina, da primeira vez que você fez um trabalho em vinil adesivo? Quando se deu essa transição?
RS
Eu me lembro, sim. Acho que o trabalho de transição foi aquela instalação que eu fiz no Museu de San Diego, que se chamou “Gone Wild”, em que eu usei as pegadas de coiote, que é um animal típico daquela região, e como são chamados os imigrantes que cruzam ile-
galmente a fronteira. Então eu fiz, em San Diego, uma escapada dos coiotes. Eu já tinha feito introduções pontuais no mundo digital, na verdade, desde 1991, com a ajuda do Ronaldo Kiel, um ex-aluno, que trabalha no Brooklyn College. Ele me ajudou a fazer a obra “Encuentro”, com aquelas sombras de objetos cortantes e perigosos, atreladas a um grupo de políticos, pequeno, central, e aquelas sombras gigantes. Ele me ajudou a fazer isso para vencer a dimensionalidade da obra que me pediam, que era uma obra de nove metros, feita à distância. Era para fazer um outdoor. Então, o Ronaldo continuou me assessorando a fazer aquelas camadas de pegadas de coiote, que eu imprimi sobre papel e recortei, e tive vários assistentes que me ajudaram a pintar nas paredes. Mas a primeira obra de grande formato digital foi feita na Bienal de São Paulo, “Tropel”, que ficava na fachada, com índices de pegada de animais. Também tem o “Super-herói”, de 1997. Agora não me lembro exatamente, mas lembro que a do super-herói gigante me deu muito medo durante a execução. Eu ficava na rua olhando para cima, na região da Paulista, e as pessoas, claro, quando veem uma pessoa olhando para cima, param e olham também. Era um carrinho descendo e fazendo uma sombra que estava irreconhecível naquele momento, e eu fazendo que eu não tinha nada a ver com isso, com medo daquele negócio cair de lá.
TG Era um desafio.
RS
Eram coisas novas também, experiências. Depois eu fiz o trabalho da Bienal, com a mesma companhia que tinha me ajudado a fazer o super-herói. Mas com uma diferença, pois naquela Bienal, um curador canadense, que morava na Austrália e viu a execução, me perguntou se eu poderia fazer um trabalho em Ottawa, no Canadá, para uma exposição que celebrava a história da aviação. Eu disse que sim. Então começou uma conversa totalmente nova, com o curador que foi para a Austrália e com o diretor do museu de Ottawa, por e-mail. Acertamos o projeto, e o projeto foi realizado com muito sucesso. Eu voltava de uma viagem e passei em Ottawa para a inauguração. Esse projeto descortinuou para mim a possibilidade de trabalhar à distância. Foi uma coisa completamente nova para mim. O tanto de controle que eu podia ter e a facilidade de eliminar
transporte, seguro, viagens.
TG
Você acha que esse foi um dos momentos mais importantes na sua carreira?
RS Foi um momento de poder abrir uma porta.
TG E também de mais independência, não é?
RS É.
TG E quais os outros momentos marcantes na sua carreira?
RS
Acho que todos foram marcantes. Todos apresentaram um desafio, que tem que vencer, tem que trabalhar em coordenação. Estou olhando aqui as maquetes do meu estúdio e pensando nos diferentes desafios. Não são comparáveis, tá?
Mas um enorme desafio, por exemplo, foi ter feito aquela instalação no Palácio de Cristal, no Reina Sofia. Aquele foi uma queda de braço forte com o edifício, porque o edifício era todo transparente, atravessado pela luz, uma estufa tradicional, um prédio preservado. Então, precisei armar um discurso que me levou ao local cinco vezes, para estudar os efeitos dentro do edifício, e tive que modificar todas as minhas escolhas até chegar àquela síntese. E o Museu de Taipei, por exemplo. Eu fui convidada pelo Dan Cameron para uma Bienal em que sempre tinha um artista convidado, que nesse caso fui eu, a trabalhar com o próprio edifício. Já vinha esse desafio no convite. Então, a dimensionalidade, a história de Taiwan, a localização do museu… tudo isso motivou a gráfica das invasões, das pegadas. Eu fui uma vez previamente e uma vez para a inauguração, quando já estava produzido, mas lembro que eu não podia chegar perto do trabalho, o museu estava rodeado de andaimes. A curadora dizia assim “agora nós não queremos mais tirar esses andaimes, porque agora nós parecemos o Pompidou”. Aquele
foi um desafio gigantesco também. Mas, recentemente, eu pude fazer outra exposição do mesmo motivo gráfico, transformado, para expor dentro do museu. Isso mostra a flexibilidade e a confiança na preparação aqui no estúdio e na execução lá no museu.
TG
Foi como a do aeroporto também, que você acabou de abrir em Houston?
RS
Sim. Eu só vi a obra depois de pronta e em uso.
TG
Foram uns três anos de preparo?
RS
Três anos de preparo, mas dois terços do trabalho foram realizados aqui. A produção em vidro, especialmente, porque eu pude estar perto e ver o que correspondia ao projeto, mas também tive uma colaboração grande da galeria, que me ajudou a preparar tudo, além do transporte de obras, a preparação, o contrato. A estrutura que eu inventei parece leve, transparente, mas ela pesa mais de cinco toneladas.
TG
Sim, é aí que está o truque. Estrutura sólida para um efeito fluido, alado.
RS
Sim, uma estrutura de grade metálica forte, capaz de suportar esse peso e teve que ser embutida e feita junto com o próprio teto do terminal, já que é uma obra permanente. A obra do chão foi a única que foi vista antes pelo Eduardo Verderame, meu assistente, que foi lá para controlar a gradação das cores da obra de cimento líquido, que foi feita localmente. Mas as obras que foram transportadas daqui por avião pesavam toneladas. Foi uma trabalheira só, mas o aeroporto inaugurou esse terminal em agosto do ano passado. E agora eu consegui ver completamente em uso.
TG
E ficou feliz com o resultado?
RS
Fiquei e ainda estou entendendo como funciona uma obra num espaço público de aeroporto, sabe? Fiquei o tempo que eu pude, observando as pessoas passarem com suas maletas.
TG
Por cima e por baixo das obras.
RS
Por cima e por baixo. E os bares e todo aquele comércio dos terminais… muito próximos, assim, quase em cima. De repente, eu mesma me vi em cima de uma mariposa gigante daquelas. De repente, sou eu.
TG
E, Regina, falando agora dessa parceria com a galeria. Você está praticamente desde o começo da Luciana Brito Galeria, certo?
RS
Na verdade, começou antes da galeria, porque a Luciana foi minha aluna. Depois eu acompanhei a carreira profissional dela, quando ela trabalhava junto a Bienal, trabalhava junto ao MAC. Depois ela se associou, por um tempo, como ajudante, na galeria da Raquel, que tinha sido minha primeira galerista. A Raquel e a Mônica, nos anos 1970. Depois ela me ajudou muito na exposição que eu fiz no MASP, quando a minha galerista já era a Luisa Strina. Eu sou uma artista que ficou sem galeria voluntariamente até a metade dos anos 1980. Então, quando ela abriu a galeria na casa dela, ela já tinha me ajudado bastante. E tem sido uma parceria, para mim, muito confortável e carinhosa, porque a Luciana entende tudo. Ela viu todos os meus trabalhos, praticamente. Então, não preciso explicar nada para ela.
TG É sintonia.
RS
E efetiva colaboração. Ela entende meus projetos, me dá todo o espaço de liberdade que eu preciso e colabora nas mínimas coisas. Ela entende o processo. Então, é uma coisa de afeto também, de afeto e de apoio. De compreensão de trabalho. Ela respeita todas as direções que meu trabalho toma, nas muitas decisões que eu tenho que tomar sozinha. Então, ela é uma parceira.
TG
E uma última pergunta: quando você se entendeu uma artista e que seguiria uma vida profissional como artista?
RS
Na verdade, eu nunca pensei em ser outra coisa. Eu acho que estive direcionada para isso desde que eu tenho consciência. Primeiro, meus pais me encaminharam para um ensino particular com uma professora muito acadêmica. Quando eu tinha uns 12, 13 anos, antes de entrar na universidade. Foi sempre o que eu quis com muita força. Abdiquei de muitas coisas na vida por causa disso, coisas que estavam travando no meu caminho. E tive que aprender muitas coisas. Eu acho que o meu período de formação não foi só durante a universidade, onde eu já trabalhava como assistente, convocada primeiro pelo professor Fahrion, que era um professor muito especial de desenho na universidade, depois pelo Ado Malagoli, que era o meu professor de pintura. Mas eu entendi que essas transformações no meu trabalho e minha própria formação, depois a autoformação, durou quase uma década. Praticamente uma década. Em que eu estive aberta a essas explorações. Eu mudei meu quadro de amigos, mudei o lugar onde morava, mudei a minha geografia.
TG
Foi uma questão tratada sempre com muita liberdade. É um certo privilégio poder escolher ser artista num momento tão difícil. Se é difícil hoje, imagine naquela época.
RS
Eu fui uma artista que até me alistei, sabia? Na primeira vez, com o movimento de golpe militar, que foi aquele em que o Brizola apoiou a volta do Jango pro Brasil, houve um convocatório de artistas para
pintar umas espécies de faixas ou bandeiras para as passeatas que se organizaram. Eu me alistei. Todos os artistas se alistaram. Eu me lembro sempre das fichas que a gente tinha que preencher. Se você sabia atirar, eu disse que sim. Se você sabia nadar, eu disse que sim. Eu passava com a minha maletinha de pintura…
TG
Era essa a sua arma.
RS
Era a minha arma. E os artistas estavam lá todos reunidos. Isso foi em 1961. Em 1964 não teve jeito. Foi muito rápido aquele golpe. Os artistas foram convocados de novo. Mas, eu não sei quanto tempo durou essa formação. Claro que eu sei quanto tempo duraram as ditaduras. E no meu passeio pelo mundo, eu também vivi sobre a ditadura de Franco. Tantas e tantas vezes… E nos próprios Estados Unidos, que tinha a questão da Guerra do Vietnã, que afetava a todos os meus alunos. No próprio campus tinha o serviço militar. E muitos conflitos. Conflitos de invasão, de gás no campus. Houve uma morte também. Estive aberta a todas essas transformações. Mudei meu campo de amigos. E foi quando eu conheci a Liliana.
TG
A Liliana mencionou na entrevista dela, que, na verdade, foi você que a apresentou a Luciana.
RS
Foi. Eu convivi bastante com a Liliana, mas eu conheci a Liliana e o Camnitzer quando eu estava trabalhando na universidade. Acho que era no Brooklin, quando eu fui para Nova Iorque nas primeiras vezes. E depois, nos anos 1990, quando eu ganhei a Bolsa Guggenheim, nós convivíamos muito em Nova Iorque. Há grande admiração e empatia da minha parte com o seu trabalho.
TG
Sim, ela falou a mesma coisa, é recíproco.
RS
Vai ser uma alegria.
TG
Vai ser um encontro muito bacana.
TG
E sobre os vídeos naquele contexto do MAC dos anos 1970, 80?
RS
Ah sim! Eu interrompi esse processo nos anos 1980, no início dos anos 80, quando eu tinha o Aster, que tinha acesso a uma produção, por causa da vizinhança do Sandoval, que tinha um estúdio ali. Mas eu entendi que não era por aí que eu tinha que caminhar. Porque tinha meus alunos tomando caminhos paralelos ao vídeo, como o Rafael, como o Tadeu Jungle. Então eu entendi que eles tomavam partidos diversos a partir daquela experiência deles com o vídeo naqueles anos. Eu só retomei o vídeo como vídeo instalação, como animação digital. Retomei nos anos 2000.
TG
O vídeo foi talvez a sua primeira ferramenta tecnológica, ali no final dos anos 1970.
RS
É, mas eu queria dizer que tecnologia existe em tudo. O lápis é uma super tecnologia, sabe?
TG
Sim, cada um no seu tempo.
RS
Cada um no seu tempo e mesmo agora. Mesmo agora os lápis são produzidos como uma super tecnologia. Então eu acho que existe uma apreciação que eu gostaria de corrigir. Eu acho que tecnologia está embutida em tudo. Naquelas experimentações gráficas dos anos 1970, que agora são entendidas como uma base da gráfica industrial, que barateava e dava velocidade à produção e se podia intercambiar com facilidade. Aquelas eram tecnologias tão complexas como as de vídeo. Só que sem a dimensão do tempo.
TG
Exato. Mesmo o Xerox na época também.
RS
Nossa! Uma tecnologia nova. Claro! Eu me lembro exatamente de quando o León Ferrari me mostrou os primeiros resultados de Xerox em alta qualidade gráfica, que eu tenho até hoje. Então, eu acho que foram agregados ao campo de produção de imagens um modo muito peculiar. Porque eu estive aberta todo o tempo.
Tatiana Gonçales
São mais de 65 anos de carreira, certo? Como tudo isso aconteceu? Como sua carreira começou?
Liliana Porter
Comecei a escola de artes depois do Ensino Fundamental, aos 12 anos, na Escola de Belas Artes. Então, eu sempre estive muito envolvida com arte desde o começo. Eu viajei com minha família para o México quando eu tinha 16 anos de idade e me matriculei em um workshop de gravura. O professor, um dia, veio e disse que ele tinha organizado uma exposição para mim em uma galeria muito prestigiada. Então, eu fiz minha primeira exposição, uma individual no México, quando eu tinha 17 anos. Para mim, foi uma grande experiência fazer uma exposição. Além disso, os mexicanos foram muito generosos e eu recebi avaliações super positivas. Acho que isso me estimulou e me tornou mais segura de que eu estava no caminho certo.
TG
E sobre o que foi essa exposição?
LP
A exposição foi composta por cerca de 12 gravuras e, não me lembro exatamente, algo como 10 pinturas a óleo.
TG
E você ainda tem algum desses trabalhos?
LP
Tenho algumas das gravuras, mas as pinturas não mais.
TG
E naquela época, você acha que aquelas obras já eram uma espécie de sinal para o que viria?
LP
Não, elas foram mais influenciadas pela maneira como estudei arte na Argentina, que era muito focada na arte europeia, com influência de, digamos, Braque, ou das naturezas-mortas do cubismo e também das figuras alongadas de Modigliani. E os temas das pinturas, das gravuras, especialmente, tinham a ver com meu contexto no México.
TG Era bem o começo da sua carreira?
LP Sim TG
E como foi que você acabou indo para Nova York e decidiu ficar por lá?
LP
Bem, porque do México eu voltei para a Argentina, mas meu irmão ficou no México. Então um dia eu decidi ir visitá-lo no México e, de lá, eu iria para a Europa, pela primeira vez, para ver os museus. Mas um amigo meu, um colega de classe na Argentina, da escola de arte, estava morando com suas irmãs em Nova York e disse, você tem que vir para Nova York para ver a Feira Mundial. E eles me convidaram para ficar com eles por uma semana. Então eu fui para Nova York. Isso foi em 1964 e eu tinha 22 anos. E eu fiquei tão impressionada com os museus e tudo o mais, que eu disse, uma semana não é suficiente para ver tudo isso. Então eu fiquei mais tempo. E estou lá até hoje.
TG
E naquela época você sabia que era uma artista, que realmente trabalharia com artes visuais pelo resto da sua vida? Ou como foi isso?
LP
Sim, acho que sim, porque era algo que eu fazia desde muito jovem. Já fazia parte da minha vida. Cheguei na hora certa em Nova York porque, como eu já tinha estudado Belas Artes em Buenos Aires, eu realmente pude apreciar os museus, pois eu já conhecia história da arte e tudo mais. E Nova York, naquela época, 1964, estava se tornando o centro da arte, substituindo Paris. Foi um momento incrível estar lá.
TG
Eu posso imaginar o quão maravilhoso foi tudo isso. E como você realmente conseguiu ficar lá? E você já estava trabalhando?
LP
Quando cheguei em Nova York e decidi ficar, eu imediatamente me matriculei em uma oficina de gravura que ficava no centro de Manhattan, na Broadway, o Pratt Graphic Arts Centre. E eu estava trabalhando principalmente com gravura naquela época. E foi incrível porque em Nova York eu tinha todas essas facilidades técnicas que eu não tinha na Argentina ou no México, como qualquer material e o que mais eu quisesse. Então foi incrível. E também conheci Luis Camnitzer na Pratt, que se tornou meu marido no ano seguinte, e Louis Philippe Benoit, que era, na época, seu colega de quarto argentino, um artista que eu admirava muito. Foi a primeira vez que o conheci pessoalmente.
TG
Aí você percebeu que não voltaria mais para a Argentina. E como foi ficar longe do seu país e viver no exterior?
LP
Bem, eu cheguei e no ano seguinte me casei com Luis. Continuamos lá porque era o lugar para se ficar naquele momento. Nós tivemos muitas oportunidades, como vender as obras, dar aulas, etc. Também organizamos o New York Workshop. Tudo ia bem, do nosso jeito. E eu mantive o relacionamento com a Argentina, então eu não senti que tinha que me adaptar a nada novo, porque eu acho que quando você é jovem, você se sente muito confortável.
TG É simplesmente natural
LP
Sim, foi tudo muito natural
TG
Você costuma ir muito para a Argentina? Agora mesmo, por exemplo, você está no Uruguai. Como funciona isso na sua vida?
LP
Eu mantenho uma relação com a Argentina. Tenho uma galeria que me representa, então eu faço exposições uma vez a cada dois anos ou algo assim, e visito a Argentina com frequência. Tenho muitos amigos lá. E, frequentemente, represento a Argentina em diferentes exposições.
TG
Quando você se apresenta no exterior, você sempre representa a Argentina?
LP
Bem, depende. Às vezes sou uma artista nova-iorquina. Em Nova York todo mundo é estrangeiro.
TG
E isso é uma coisa boa, certo?
LP
Sim, muito boa.
TG
E como você vê a arte latino-americana hoje em dia e como ela realmente se desenvolveu ao longo dos anos?
LP
Não creio que exista realmente uma arte latino-americana, mas sim artistas da América Latina.
TG
Faz total sentido
LP
Sim, porque há tantos países diferentes e abordagens diferentes para a arte, e muitas delas, você sabe, não se referem necessariamente a algo específico sobre o país em si. Isso é muito importante, pois a arte pode ser de qualquer lugar e, mesmo assim, baseada nas raízes. Mas, atualmente, há tanta informação circulando entre diferentes países, que precisa ser algo bem pontual para falar sobre a América Latina. Porque muitas vezes o artista nasce, digamos, no Peru, mas mora em Nova York ou em Paris, e todas as influências se cruzam, e isso é enriquecedor.
TG
Você acha que as principais oportunidades para quem trabalha com arte ainda estão nos EUA e na Europa? Como você acha que isso se desenvolveu ao longo dos anos?
LP
Por causa da comunicação, que agora é muito mais rápida, acho que as pessoas se conhecem mais. Por exemplo, os curadores precisam conhecer os artistas para poder incluí-los em exposições. Então, acredito que toda essa comunicação, as publicações, a internet e tudo mais ajudam a criar conexões e, consequentemente, tornam os artistas mais representados em diferentes lugares.
TG
Falar sobre comunicação e sobre as possibilidades digitais de comunicação me leva à minha próxima pergunta: você começou nos anos 60, e já se passou tanto tempo desde então. O que você acha que mudou? Ou como você posicionaria a arte hoje, considerando 60 anos atrás?
LP
Acho que é como dissemos antes, agora os países estão mais conectados, os curadores viajam, os artistas viajam e a informação também circula muito. Então, nesse sentido, as pessoas conhecem a arte feita em outros países com mais facilidade do que antes. Antigamente, isso era mais difícil.
TG
Sim, mas e quanto à própria arte? Antes, tudo era analógico, e nos anos 1960 havia um grande foco na arte conceitual, sendo um período de muitas descobertas. Acha possível afirmar que realmente houve um desenvolvimento na arte em comparação com o passado?
LP
Acho que são sempre as mesmas perguntas, para as quais não temos respostas definitivas, então continuamos pesquisando e buscando. Nesse sentido, não sei o quanto realmente evoluímos. Ainda estamos em busca de respostas, mas as perguntas continuam sendo as mesmas, apenas as formulamos de maneiras diferentes. Em diferentes linguagens também.
TG
Então é isso que a arte significa, não é? Continuar buscando. Agora eu gostaria de falar um pouco sobre o seu trabalho. Como começou o seu interesse por trabalhar o colecionismo na arte? Como isso se tornou o foco do seu trabalho?
LP
Bem, na verdade, eu não encaro como uma coleção. Eu não coleciono, mas é mais como se fossem os temas do meu trabalho, das minhas fotografias, vídeos. Eles são como um elenco de personagens que eu uso para realizar a minha obra. Eu não os vejo como uma coleção, mas, claro, acabaram se tornando uma coleção, mas sem um objetivo específico para isso.
TG
Primeiro vem o trabalho e, depois, a coleção?
LP
Bem, digamos que eu vou a uma feira de antiguidades e, de repente, vejo objetos que se relacionam com as minhas questões ou com o que estou fazendo, e aí eu os compro. Daí surgem os objetos que frequentemente aparecem em fotografias ou vídeos. Mas alguns deles eu uso depois. É interessante porque fui acumulando-os e, de repente, penso, vamos ver o que eles têm em comum. E, também, em geral, eles são dos anos 1950. Tenho poucos que são contemporâneos. E as estatuetas têm essa aparência como se não entendes-
sem. É tudo isso que me atrai.
TG
E você mora perto da natureza, onde tem o seu estúdio também. Como você organiza esses objetos?
LP
Meu estúdio é um celeiro antigo, com cerca de cem anos, que tem dois andares. O andar de baixo é onde eu pinto ou onde ficam as partes mais “empoeiradas”, e o andar de cima é onde ficam os computadores, os livros e os objetos. Os objetos estão colocados em alguns armários com portas de vidro, que você pode ver de fora, e em algumas prateleiras.
TG
Parece muito interessante. Uma coleção mesmo.
LP
Sim. Na verdade, é uma coleção, mas como eu disse não há a intenção de fazer uma coleção. Ela simplesmente se tornou uma.
TG
E aí quando você tem a ideia de fazer determinado trabalho, com determinados objetos, você começa a fazer suas experimentações?
LP
Sim. Por exemplo, às vezes eu coloco uma mesa e um grande papel branco de fundo, e então eu digo, ok, vamos trabalhar... Eu adoro fazer uma espécie de retrato de família, usando elementos que não têm relação entre si, mas ao mesmo tempo ficam juntos, mesmo que venham de épocas diferentes, passam a ocupar o mesmo espaço. Então, começo a reuni-los, acumulando. Às vezes não funciona, mas de repente você tem a obra.
TG
Parece que você brinca com eles, se diverte.
LP
Sim. Eu adoro fazer isso, o que eu chamo de diálogos, confrontar dois objetos. Por exemplo, um feito de madeira dos anos 40, e o ou-
tro, de um material diferente, e até de uma escala diferente, e eles, por algum motivo, se relacionam. É interessante quando eu faço essas obras, porque coloco um e depois vou trazendo outros até que “clicam”. É como se eles pertencessem juntos desde o começo e eu só tivesse que encontrá-los, não que eu os tenha criado.
TG
É como se eles já nascessem pra isso.
LP Sim TG
E como você busca inspiração? Como você escolhe os temas que quer abordar no seu trabalho?
LP
Acho que todo artista tem um assunto que o rodeia, mesmo que a solução formal seja diferente. E eu acho que, no meu caso, sempre tive muito interesse pela própria representação. O que isso significa me interessa muito. E também, a relação entre o objeto e a imagem é fascinante, além do limite entre o que chamamos de realidade e o que chamamos de espaço virtual. Então, os objetos ficam no meio disso, porque são representações e, ao mesmo tempo, são objetos físicos. E toda essa ambiguidade me interessa muito.
TG
E quanto aos vídeos? Como você os produz?
LP
Antes, eu não gostava de arte em vídeo. Mas um dia, eu tinha um brinquedo que era um Pinóquio com símbolos, que, quando você dava corda, fazia um som “ta-ta-ta-ta-ta”. E o que me tocou foi o silêncio no final. Mas você não poderia mostrar esse silêncio em uma fotografia, então precisava do som antes para mostrar o silêncio depois. E a única maneira possível era filmar. Então, por essa razão, esse foi o meu primeiro vídeo.
TG
Em 1999, certo?
LP
Sim, por aí. E foi um choque, porque quando você vê a imagem na tela, ela fica enorme. E para mim, era importante que elas fossem menores do que você. Mas depois percebi que, quando você vê um filme, na sua mente, você muda a escala. Algo na sua mente coloca na medida certa. Então, havia muitas coisas para aprender sobre vídeo. Incluindo o som ou o quão manipuladora é a música. Ela pode mudar a emoção ou a percepção de algo.
TG
Acredito que Sylvia Meyer tenha um papel importante nisso?
LP
Muito importante. A primeira vez que fiz um vídeo, alguém disse “espere até colocar música”. E eu não sabia como fazer isso. E a Ana [Tiscornia] disse “olha, eu tenho uma amiga, uma musicista uruguaia, que seria perfeita, porque ela faz música para filmes. E se você não gostar, não será um problema. Ela não se importaria.” Então, conheci a Sylvia. Foi interessante, porque na primeira vez que ela trouxe a música, percebi o que eu gostava e o que não gostava. Percebi, por exemplo, que o som não deveria ser literal. Por exemplo, se alguém anda, não deveria ser o som de alguém andando. E assim, comecei a trabalhar com ela. E até hoje, sempre trabalhamos juntas. E agora, nós realmente nos entendemos super bem.
TG
Seus trabalhos encaixam perfeitamente.
LP
Sim. E ela tem essa voz incrível e sabe muito sobre música e instrumentos. Ela é muito perceptiva. Você pode ver que o trabalho que ela faz para outras pessoas não tem nada a ver com o meu.
TG
Lembro de alguns dos seus trabalhos em que as pessoas precisavam usar fones de ouvido.
LP
Ah, sim. Eu adoro, por exemplo, usar em uma gravura. Eu tinha uma gravura de um porco tocando bateria. Então, eu coloquei música e
as pessoas precisavam usar os fones de ouvido para ouvir as batidas da bateria e um pouco de música, enquanto olhavam a imagem estática disso. Eu gosto dessa combinação.
TG
Você está, na verdade, dando vida a esses objetos inanimados. Quando você começou a trabalhar com esses pequenos objetos? Quando percebeu que poderia combiná-los para contar uma história?
LP
Acho que foi um barco que eu adicionei a uma pintura em uma prateleira pequena. As formas geométricas, o cubo, a pirâmide e a esfera, também como arquétipos, eu as usava fisicamente em algumas pinturas em pequenas prateleiras. Então, pouco a pouco, comecei. E depois o Mickey Mouse. Não, na verdade, o Pato Donald, em uma pintura, e as coisas começaram a aparecer e, de repente, eu tenho esse elenco de pessoas. E eles foram ficando menores, porque no começo eram um pouco maiores. Esses objetos bem pequenos começaram a ser muito atraentes para fazer colagens ou sobre papel.
TG
E quanto tempo faz, você se lembra?
LP
Eu tenho que olhar no currículo, mas já faz muitos e muitos anos. Lembro que eu fiz uma exposição, acho que em 2017, em Veneza, “The man with the axe”. Havia uma grande plataforma com um homem com um machado, que tinha cerca de quatro polegadas de altura, e ele estava quebrando tudo. Começou com objetos muito, muito pequenos e depois terminou com um piano de cabeça para baixo. Mas, nesse meio tempo, eram pequenas situações feitas com personagens bem pequenos, como alguém varrendo, por exemplo.
TG
Há algum momento na sua carreira que você considera ser um ponto de virada ou algum momento muito importante, como algo que realmente levou o seu trabalho para um caminho diferente?
LP
Bem, não teve um único momento, mas diferentes momentos em que eu tive oportunidades, como esse em Veneza, que foi uma oportunidade de fazer algo que estava na minha mente, e eu nunca tinha conseguido fazer no estúdio, sabe? Ou, vamos dizer, em 1973, em que eu tive uma sala de projetos no MoMA, enquanto fazia uma serigrafia na parede, com pregos realistas e depois combinando-os com pregos reais. Fazer isso no MoMA foi uma oportunidade incrível. Mas há muitos momentos, não só uma situação. Acho que, a cada vez, é como se você aprendesse algo novo.
TG
Sua primeira exposição na Luciana Brito Galeria foi em 2001. Então, já são 24 anos dessa parceria. Pelo que eu me lembro você teve quatro exposições na galeria e essa será a quinta. Você se lembra de como foi a primeira, em 2001? Qual a diferença entre aquela e agora?
LP
Há diferenças, sim. Provavelmente. Mas acho que o tema, o que nos move, são os mesmos. De alguma forma, eles voltam, mesmo que formalmente sejam diferentes. Mas lembro de ter mostrado algumas prateleiras com as formas geométricas. Eu realmente não lembro muito bem do que mostrei em cada exposição. Mas sim, acho que poderiam ser mostrados todos juntos e veríamos que há uma relação. Não houve grandes rupturas.
TG É uma continuação, certo?
LP Sim TG
A Luciana abriu a galeria por volta de 1997, 98. Vocês se conheceram nessa época?
LP
Acho que foi através da Regina Silveira.
TG
Que ótimo! E você se lembra desse encontro?
LP
Não me lembro, mas sinto que as conheço desde sempre.
TG
E você gosta de vir para o Brasil? Como é essa experiência para você?
LP Muito bom. Maravilhoso. Eu amo o jeito do brasileiro. E eu adoro a Regina, que é uma pessoa maravilhosa.
TG
E agora vocês vão abrir exposições ao mesmo tempo na galeria.
LP
Isso é ótimo! Ela é um ser humano maravilhoso e uma ótima artista.
TG
E como surgiu a ideia dessa exposição na Luciana Brito Galeria?
LP
Vamos mostrar alguns objetos sobre base, alguns trabalhos em tela e um vídeo.
TG
E também aquela instalação “O anarquista”.
LP
Sim, essa é uma instalação que eu adoro muito, que eu já mostrei em contextos diferentes. Eu vou adorar fazer novamente. É uma pequena figura de uma mulher vestida de vermelho que faz um labirinto com fios vermelhos.
TG
Tem também o vídeo que empresta o nome à mostra
Sim. Estou super feliz e não vejo a hora.
TG
Há uma última pergunta que eu gostaria de te fazer. Considerando sua capacidade de síntese, você pode descrever seu trabalho em uma palavra?
LP
Não é tão fácil, porque eu penso em termos de imagens, não em termos de palavras. Então, em uma palavra é difícil.