O Estado de S. Paulo - A Reforma

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O ESTADO DE S. PAULO

A REFORMA



Lucas Pretti

O ESTADO DE S. PAULO

A REFORMA

unesp


Copyright © 2005 by Lucas Pretti Capa e projeto gráfico: Lucas Pretti Revisão: Lilian Venturini e Luciano Guimarães Diagramação: Lucas Pretti Este livro é produto do Trabalho Final de Graduação O Estado de S. Paulo – A Reforma, apresentado pelo autor à Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação (Faac) da Universidade Estadual Paulista (Unesp), câmpus de Bauru-SP Orientação: Prof. Dr. Luciano Guimarães Agradecimentos: Alexandra Penhalver Carlos Alberto Di Franco Daniel Piza Eduardo Martins Francisco Amaral Madalena S. Kawakami Márcia Guerreiro Roberto Gazzi Rubens Augusto Rosa Sandro Vaia Sônia Maria Suzana Farinella

TXX

O Estado de S. Paulo – A Reforma / Lucas Pretti – Bauru, SP: Universidade Estadual Paulista, 2005. 120 p. Bibliografia. ISBN XX-XXXXX-XX-X 1.Jornal – O Estado de S. Paulo. 2.Jornalismo. 3.Reforma editorial. I.Pretti, Lucas. CDD-XXX.XX


SUMÁRIO

Apresentação, 7 A reforma, 9

ENTREVISTAS Protagonistas

Sandro Vaia, 47 Chico Amaral, 59 Daniel Piza, 65 Roberto Gazzi, 85 Analistas

Carlos Alberto Di Franco, 97 Eduardo Martins, 105


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APRESENTAÇÃO

APRESENTAÇÃO

Este livro de entrevistas reúne anseios, percepções, alegria e competência da equipe de protagonistas da reforma editorial e gráfica por que passou o jornal O Estado de S. Paulo no final de 2004. Entrevistados na turbulência dos acontecimentos, Sandro Vaia, Daniel Piza, Roberto Gazzi e Chico Amaral opinam, desabafam, avaliam, ensinam e mostram porque a cara e mente novas do Estadão podem levá-lo novamente à liderança do mercado brasileiro de jornais. O autor deste livro acompanhou de perto os principais momentos dos bastidores da reforma. Na condição de participante do Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado que a empresa oferece a jovens jornalistas, ele teve acesso a informações confidenciais antes de muitos e conta como chegou a ficar cara-a-cara com a nata do jornalismo brasileiro. A necessidade de avaliação da revolução que acontecia diante de seus olhos o fez procurar o que denominou “analistas”. Os renomados jornalistas Carlos Alberto Di Franco e Eduardo Martins deram suas opiniões sinceras sobre as movimentações do jornal e da imprensa como um todo. Seus depoimentos também estão reunidos neste livro. Nenhum dos entrevistados se arriscou a medir as conseqüências da reforma que capitanearam. O Estadão de 2004/ 2005 é como o Jornal do Brasil e a Última Hora dos anos 50, ou como o Jornal da Tarde e a Folha de S.Paulo dos anos 80, ou, ainda, se equipara ao Correio Braziliense de 2000, o último dos grandes jornais brasileiros a revolucionar o conteúdo e apresentação gráfica? Este livro não traz essa informação, mas é o primeiro de muitos passos para descobri-la. 7


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“Veja, em primeira mão, como um jornal com quase 130 anos de história, respeitado por todos e lido por muitos, é capaz de se reinventar e se transformar no maior acontecimento da mídia brasileira em 2004.” Foi com essa frase que confirmei a informação que recebera algumas semanas antes. Durante um minicurso sobre o programa de editoração usado nas redações do Grupo Estado, o Unysis Hermes, o diagramador da editoria de Economia Wanderley de Azevedo adiantou o que eu pensei que jamais ouviria: “O Estadão está fazendo uma reforma gráfica”. Isso foi mais ou menos no meio de setembro. Na hora, não imaginava que apenas um mês depois, no dia 17 de outubro, o jornal que aprendi a gostar estaria nas bancas totalmente renovado por uma reforma editorial e gráfica sem precedentes na história da empresa. Quando soube da boa nova pelo Wanderley tentei arrancar tudo o que podia. Mas ele não sabia de tantos detalhes – só depois eu saberia que a reforma foi capitaneada pela Cases i Associats, empresa espanhola da qual o designer brasileiro Francisco (Chico) Amaral é sócio. O que sabia, me adiantou: “Vai mudar tudo, até a tipologia”. Não me satisfiz. No final da tarde deste dia, procurei o jornalista e coordenador do Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado do Estadão, Francisco Ornellas. Ele foi um dos que me selecionaram para participar do programa de treinamento da empresa voltado para jovens jornalistas; conseqüentemente, foi quem me deu a oportunidade de conviver sob os domínios dos Mesquitas durante três meses. “Chico, soube da reforma gráfica e pensei em fazer 9


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alguma coisa, um livro, talvez, sobre isso. Com quem eu falo lá em cima?” Lá em cima, no sexto andar, é onde fica a redação, os cerca de 4,5 mil metros quadrados mais sagrados do prédio do Grupo, no Bairro do Limão, em São Paulo. “Hum... Fala com o Anélio Barreto. Ele é meio fechadão, mas pode te ajudar” – respondeu o Chico. Um nome era tudo o que eu queria. O jornalista Anélio Barreto é um dos editores-executivos de O Estado de S. Paulo, apenas dois postos abaixo da diretoria de redação, hoje ocupada pelo jornalista Sandro Vaia, mas que já abrigou nomes históricos da imprensa brasileira, como Rangel Pestana, Júlio de Mesquita Neto, Augusto Nunes, entre tantos outros. Assim que subi, por volta das 18 horas, Anélio Barreto estava um tanto ocupado, na reunião de fechamento da primeira edição do jornal. Minha cara de decepção deve ter sido o que atraiu uma das diagramadoras do jornal, Maria Isabel de Campos, a Isa, responsável pelo fechamento da primeira página: – Você está procurando alguém? – Estou, o Anélio Barreto. Mas acho que ele está na reunião, né? Quem é ele? – É aquele ali – e me apontou um senhor de uns 50 anos calvo, baixo, um tanto gordinho e de bigode. A cara fechada não me animou. – Você quer falar com ele? Expliquei minha curiosidade pela reforma, o interesse em fazer um livro e ela me adiantou algumas informações de bastidores. Foi aí que descobri, entre outras coisas, que o Chico Amaral estava envolvido. A Cases i Associats, empresa espanhola da qual é sócio, tinha feito outras reformas importantes na imprensa brasileira, como as dos jornais Valor Econômico, Correio Braziliense e Lance!, além do argentino Clarín, do português Diário de Notícias, da revista Lance A+ e do portal Lancenet, entre outras produções. Descobri também que o projeto estava fechado a sete chaves e nem ela, a diagramadora da primeira página, tinha tido acesso. “Teve gente que já viu e disse que está bem bonito, apesar de mais ‘quadradão’. Eles vão dizer que não, mas tenho certeza de que vai ser modulado, sabe? Bem parecido com o Valor”, me disse a Isa. A conversa também rendeu a data do projeto: domingo, dia 17 de outubro, o Estadão iria às bancas diferente. Ficamos papeando até o Anélio Barreto sair sozinho da 10


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reunião, avisado por alguém de que eu o estava procurando. Me olhou com cara de curioso, o semblante sério continuou em seu rosto, mas agora parecia mais incomodado, provavelmente por ter sido interrompido na reunião. Não me surgiu outra saída senão explicar novamente minha situação e pedir para acompanhar de perto o último mês antes da primeira edição nova – minha real intenção. Devo ter falado rápido demais, um pouco nervoso diante do mau-humor do Anélio, já que ele me respondeu pensando que estava pedindo um emprego. “Posso ver com a diretoria, mas estamos sem vagas agora.” Eu emendei: “Não é isso, só quero ver de perto a movimentação da reforma”. Ele não deve ter entendido novamente e, como já estava muito incomodado, me mandou falar com outro editor-executivo, o Roberto Gazzi. Jogou a bomba para o colega, dizendo que ele, sim, poderia me ajudar. Agora eu tinha um segundo nome – e o Chico Ornellas tinha razão, o Anélio Barreto era meio “fechadão”. Roberto Gazzi também estava na reunião de fechamento. Decidi não insistir em chamá-lo, já que sua cara também não estava tão animadora. Me despedi da Isa e fui procurar a secretária do Gazzi na redação. No Estado, os editores-executivos e diretores contam com o auxílio de uma secretária no planejamento e execução da rotina maluca em que estão inseridos. Pela manhã, por volta das 10 horas, acontece a reunião de “abre” do jornal, comandada pelo editor-executivo Flávio Gutti, que se reúne com os chefes de pauta de cada editoria. Depois disso, entre meio-dia e 14 horas, chegam os outros editores-executivos (Anélio Barreto, Daniel Piza e Roberto Gazzi), o editor-chefe, Flávio Pinheiro, e o diretor de redação, Sandro Vaia. Eles coordenam a produção das matérias e acompanham o desenvolvimento do jornal até as 18 horas, o horário da primeira reunião de fechamento. A partir daí, são duas edições, geralmente às 20h30 (para o Brasil) e 0h15 (para a Grande São Paulo). Resultado: o horário em que eu procurava o Gazzi naquele dia só seria pior se fosse mais tarde. Mesmo assim, a secretária Sônia foi atenciosa e mostrava o bom-humor e a simpatia que a mantem no cargo há anos. Contei minha história outra vez e ela sugeriu que esperasse o Gazzi voltar da reunião. Hesitei mas ela argumentou que ele era “muito bacana” e tal. Ok, foram não só uma hora e meia 11


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de espera, mas uma hora e meia de conversa com a Sônia, tanto sobre bastidores da reforma (cuja principal informação foi a seguinte: “Deve estar difícil porque eles não param de trabalhar”) quanto sobre assuntos gerais, estes predominantes. O Gazzi saiu da reunião junto com os colegas editores e entrou na sua sala, em frente à mesa da Sônia, onde eu estava. “Vai lá porque senão passam na sua frente”, me alertou ela. Pedi para entrar e recebi o mesmo olhar curioso do Anélio Barreto. A recepção, porém, foi mais afetiva, apesar de desconfiada: “Como você sabe da reforma? É secreto. Se escapou pra você, mais gente deve saber...” As informações que tinha colhido com o Wanderley, a Isa e a Sônia foram suficientes para preocupá-lo, e com razão. O Estadão tinha o mesmo projeto gráfico desde agosto de 1993, data da última reforma, que incluiu a cor azul no logotipo. O projeto editorial datava da mesma época, com quase os mesmos cadernos, seções e articulistas das edições anteriores ao dia 17 de outubro. A Folha de S.Paulo, principal concorrente do Estado, no mesmo período não só passou pela fase dos anabolizantes (brindes, fascículos e coleções que acompanhavam o jornal) como consolidou o Projeto Folha [projeto editorial que inseriu novos padrões no jornalismo brasileiro], implantado nos anos 80. Essa conjunção de fatores, somada a ações de marketing mais ousadas, linguagem mais jovem e abordagem mais atualizada e variada de assuntos, trouxe à Folha tanto a liderança de circulação como uma imagem mais positiva que a do Estado junto a todo tipo de público – jovens, homens e mulheres. Os planos de reforma do jornal, portanto, tinham motivos de sobra para serem os mais inacessíveis possíveis. A intenção era causar muito impacto com algo que pareceria vir “do nada”. Convenci o Gazzi de que não tinha interesse de contar o que sabia antes da hora, da mesma forma que falei da intenção de saber muito mais e acompanhar a reforma de perto. Já mais amolecido, ele concordou com a idéia do livro e passou a ser quem me colocava em contato com as pessoas com que gostaria de conversar. Naquele dia de setembro, nossa conversa terminou com a melhor informação do dia (ou da noite). No próximo dia 5 de outubro, às 15h30, a cúpula da redação se reuniria no auditório do prédio com todos os jornalistas do Estado para apresentar o novo projeto gráfico e editorial. Dois 12


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pensamentos logo me ocorreram: primeiro, a reunião aconteceria apenas 12 dias antes da primeira edição do novo projeto e, segundo, aquele seria o lugar perfeito para saber tudo o que queria sobre a reforma. Eu estava certo. CAFÉ PARA ANUNCIANTES

Minha rotina no Estadão obrigava-me a estar todos os dias, às 9 horas, no 1º Mezanino (1M) do Prédio Industrial, local da sala do Curso Intensivo de Jornalismo Aplicado. A manhã do dia 4 de outubro, porém, foi diferente. Logo no final da escadaria que conduz ao 1M, duas mulheres sorridentes me receberam, como a outros que também chegavam por ali. Morenas, vestidas de preto, as recepcionistas engrossavam o bolo de cerca de 200 pessoas bem vestidas que ocupavam o hall em frente ao auditório, também situado no 1º Mezanino. Recebi das mãos de uma delas um Estadão com uma folha de papel laranja presa no jornal por um clipe. Sobre o papel, a frase que abre este capítulo: “Veja, em primeira mão, como um jornal com quase 130 anos de história, respeitado por todos e lido por muitos, é capaz de se reinventar e se transformar no maior acontecimento da mídia brasileira em 2004”. No final, o convite: “Olhe o Estadão, deixe-o sobre as mesas e aproveite o café”. Sim, o jornal reformulado estava nas minhas mãos. O evento estava sendo promovido pelo jornal para convidados bastante especiais: anunciantes e equipes de agências de publicidade, nada menos que a principal fonte de renda da empresa. Todos receberam um boneco [edição produzida para “testar” o novo produto] do novo Estado, com os pilotos dos cadernos, seções, da nova diagramação; apenas os textos eram “falsos”, só ocupavam lugar, numa leitura sem lógica. A intenção de medir o impacto da surpresa era claro, mesmo porque não havia mais volta – o Estadão ia mudar com ou sem a aceitação dos anunciantes. O pequeno banquete servido aos convidados nessa manhã (bolos, pães, croissants, sucos, bolachas, etc.) sinalizava exatamente isso. O projeto estava indiscutivelmente bom e impactante, mas deveria ir goela abaixo tanto de anunciantes quanto, mais tarde, de leitores. Eu saberia alguns dias depois pelo Sandro Vaia, diretor de redação, que a impressão 13


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dos anunciantes e agências nesse dia foi a mais positiva possível, o que certamente aliviou os mentores da reforma. De posse do jornal, logo retirei a folha de papel laranja para vê-lo. O logotipo era o mesmo, da mesma cor. A tipografia, embora mais leve, mantinha o mesmo desenho. Todo o resto, entretanto, estava diferente. De primeira, os fios (linhas) em cima das matérias me chamaram a atenção: ora grossos ora duplos, tinham a intenção clara de facilitar a leitura. Pequenas bolinhas vermelhas introduzindo notas e textoslegenda me pareceram charmosas. Havia também novos cadernos. O antigo Informática virou Link, a experiência mais crossmedia da imprensa brasileira até então – bem que tinha visto o videomaker Marcelo Tas, um dos principais profissionais multimídia do país, circulando pela redação nas últimas semanas. Aliás (que nome criativo, pensei) era o novo caderno que resumia a semana, como revistas, e trazia reportagens e artigos mais analíticos. Cidades virou Metrópole. Depois disso, quase todas as surpresas traziam o “e” comercial: TV&Lazer, Casa&, Vida&, Economia&Negócios, Viagem&Aventura. Fora tudo isso, mais páginas, mais cores, mais identidade, pautas mais jovens e femininas. O slogan do jornal logo mudaria nos comerciais de televisão e anúncios em revistas ou no próprio Estadão e meu olhar de leitor também começava a se convencer. Era “muito mais vida num jornal”. REDAÇÃO NO AUDITÓRIO

Se a manhã do dia 4 de outubro foi movimentada, a tarde do dia 5 seria mais. Era o dia da esperada reunião da redação com seus comandantes, que lhe apresentariam o jornal em que iriam trabalhar pouco menos de duas semanas mais tarde. Depois eu saberia que a decisão de apresentar o projeto apenas 12 dias antes da execução foi proposital e, apesar dos pequenos problemas que trouxe, atingiu o objetivo da cúpula: impactar e evitar a sensação de déjà vu em relação ao projeto antigo. Às 15h30 em ponto, horário em que o encontro estava marcado, o elevador do 1º Mezanino se abriu e de lá saíram o editor-executivo Roberto Gazzi, o diretor de redação Sandro Vaia e o editor-chefe Flávio Pinheiro acompanhados de outros jornalistas. Vieram em direção ao auditório e se juntaram a outros membros da redação que esperavam por eles para iniciar a espé14


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cie de palestra que o Sandro comandaria. Em menos de meia hora, os 300 lugares do auditório já estariam ocupados por todos os jornalistas do Estado, de repórteres e estagiários a editorialistas e editores. Os nomes conhecidos são muitos, e talvez esqueça de vários: Márcia Glogowski (editora de cidades), Marcelo Onaga, Marcelo Godoy, Luciana Garbin, Laura Diniz, Vanessa Spada, Iuri Pitta (repórteres de cidades), Viviane Kulczynski (chefe de pauta de geral), Herton Escobar, Renata Cafardo (repórteres de geral), Antero Greco (editor de esportes), Tonico Pereira, Márcia Guerreiro, José Nêumanne Pinto (editorialistas), Eduardo Martins (autor do Manual de Redação e Estilo), Nair Suzuki (editora de negócios), Cley Scholz (chefe de pauta de economia), Patrícia Campos Mello, Alexandra Penhalver, Rafael Ribella (repórteres de economia), Sonia Racy (colunista de economia), Ricardo Anderáos (editor de informática), Otávio Lima Dias, Mari-Jô Zilveti (subeditores de informática), Cibele Gandolpho, Pedro Marques, Roseli Andrion, Kátia Arima (repórteres de informática), Fausto Macedo, Mariana Caetano, Roldão Arruda, Silvio Bressan (repórteres de política), Dib Carneiro Neto (editor do Caderno2), Luiz Carlos Merten, Jotabê Medeiros, Adriana Del Ré, Luiz Zanin (repórteres de cultura). E muitos, muitos outros. A reunião não podia começar de outra forma. Enquanto todos aguardavam o projetor ficar pronto, Sandro Vaia já estava em cima do pequeno palco com o microfone na mão. Diante do burburinho e da crescente impaciência do público, ele quebrou o gelo: “Enquanto ajeitam o laptop, fiquem tranqüilos que vou cantar Blowing in the wind para vocês”. A referência ao senador Eduardo Suplicy (PT-SP), que costuma cantar a música de Bob Dylan em palestras que dá, rendeu boas gargalhadas de todos, e aliviou um pouco o clima da espera. Finalmente, após quase dez minutos, Sandro Vaia começou o que seria a concretização do trabalho de cerca de oito meses. A redação do Estado estava ali reunida para dar boas-vindas ao novo jornal. Sandro preferiu uma abordagem histórica da reforma e começou lembrando a todos do que “os tecnocratas chamam de turn-over” administrativo, da reestruturação que a empresa sofreu em 2003. Lembrou do alto endividamento, das transformações do ano e também das demissões (ou “enxugamento de quadros”). Concluiu dizendo que a empresa terminou o 15


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ano com uma situação financeira mais saudável, com as dívidas renegociadas, mas com um problema. “O que vamos fazer diante da decadência mundial da imprensa escrita? Esperar o inevitável ou tentar reagir e procurar um rumo novo para fazer a empresa crescer?” O turn-over que a S/A O Estado de S. Paulo sofreu em 2003 na verdade tem um significado mais profundo do que a simples renegociação de dívidas e o saneamento financeiro. A decisão de equilibrar a empresa passou pela profissionalização da gestão, nada menos que o afastamento da família Mesquita dos cargos executivos. Contratou-se um C.I.O. [Chief Information Officer, espécie de diretor executivo de negócios] de fora, deu-se mais autonomia aos diretores, inclusive ao de redação, e manteve-se apenas a figura de Ruy Mesquita como diretor de opinião do Estado; seria a prova da credibilidade de uma publicação de 129 anos, fundada em 1875. Os Mesquitas, já na quarta geração e muito numerosos, tornaram a S/A inadministrável. Os choques de gestão e brigas pessoais terminaram por inviabilizar uma administração saudável, o que resultou, entre outras coisas, no endividamento do jornal, na má evolução financeira e no envelhecimento de seu principal produto. No final de 2003, portanto, o trabalho dos Mesquitas foi concentrado nas cadeiras do Conselho de Administração, em que eles, agora acionistas, tomam as decisões estratégicas, mas não interferem diretamente no dia-a-dia da administração. Sandro continuou contando a história da reforma. Disse que paralelamente à reestruturação financeira da empresa, o comando da redação do Estado vinha trabalhando em uma reformulação gráfica, e apenas gráfica, com o intuito de modernizar a linguagem visual do jornal. Mas no decorrer das discussões, os acionistas consideraram importante aprofundar a pequena renovação estética em um projeto mais ambicioso, “mais completo”. Decidiu-se então pela contratação de uma consultoria da Universidad de Navarra, da Espanha, mas o esboço apresentado por eles, segundo o diretor, não foi satisfatório. Partiram aí para outra consultoria, “mais experiente”, mas também espanhola. A catalã Cases i Associats, em que atua o brasileiro Chico Amaral, foi eleita a responsável pelo processo de reforma editorial do Estadão, “que começa agora e termina em meados de março de 2005, com o lançamento de uma revista, que alguns de você 16


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inclusive já conhecem”, disse, referindo-se aos jornalistas que trabalharam no processo de reforma editorial. Com a história resumida e entendida, Sandro passou a mostrar a seqüência de slides apresentada aos Conselhos Consultivo e Deliberativo da empresa, ambos formados por membros da família acionista, ambos satisfeitos com o que viram. Os slides resumiam dados de pesquisas sobre a crise do meio jornal e traziam as principais estatísticas da pesquisa Mega Perceptor, encomendada pelo Estado justamente para embasar e concretizar a necessidade de reforma editorial. Essa pesquisa mede a percepção de clientes (no caso, leitores) sobre determinado produto (no caso, o jornal) em relação ao seu principal concorrente (no caso, a Folha de S.Paulo). Reproduzo na seqüência os dados mais relevantes e interessantes. CIRCULAÇÃO 1997 e 2003, Estado e Folha perderam, juntos, 39% do total da circulação. Sozinho, o Estado perdeu 38% e a Folha, 41%. Em números absolutos, isso significa que, em seis anos, um deles desapareceu.

●● Entre

RAZÕES PARA A QUEDA DE CIRCULAÇÃO ●● Substituição

da leitura dos jornais de domingo pela de revistas semanais. ●● A imagem do jornal, principalmente no fim de semana, é de uma leitura mais obrigatória do que prazerosa (aos domingos, o Estado chegou a vender 250 mil exemplares em bancas; hoje, vende cerca de 80 mil).

PERDA DE PUBLICIDADE ●● Como

um todo, o meio jornal no Brasil perdeu 22% das partes de publicidade entre 1997 e 2003. Enquanto isso, as revistas semanais ganharam 11%, a televisão perdeu 3%, o rádio ganhou 25% e os outdoors ficaram com mais 66% da parcela. ●● O volumes de páginas de publicidade também caiu nos jornais. A Folha perdeu 39% enquanto o Estado reduziu 36%.

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PERCEPÇÃO DO LEITOR ●● MEIO

JORNAL: – Meio de comunicação mais completo e confiável. – Registro de fatos diários que vai mais fundo. – Mais investigativo. – Tem profundidade. – Tem credibilidade. – Esclarece as dúvidas. Mas... – A leitura é obrigatória e não prazerosa. – Linguagem rebuscada e de difícil entendimento. – Baixa qualidade de impressão. – Papel solta tinta e suja a mão. – Distancia-se do público feminino. – Não se adapta ao direito de descontração e relax do final de semana.

PERCEPÇÃO ESPECÍFICA ●● O

ESTADO DE S. PAULO: – Tradicional e conservador, mantém o status quo. – Considerado o mais completo. – Tem credibilidade e experiência. – Possui corpo editorial de peso. – Linguagem rebuscada e tipologia antiga. – Leitura difícil e cansativa. – Dá pouco destaque a entretenimento. – Sério (sisudo), pouco atrativo. – Público projetado: pessoas intelectuais, conservadoras, detalhistas e maduras. – Comparação do jornal a um país: Alemanha.

●● FOLHA

DE S. PAULO: – Liberal, eclética, arrojada e jovem. – Mostra vários ângulos de uma mesma notícia (considerada mais imparcial). – Não tem história, é menos confiável. – Forte presença de colunistas e articulistas. – Linguagem simples, com muitos recursos visuais. – Didática. – Público projetado: pessoas conquistadoras, receptivas, abertas, divertidas e críticas. – Comparação do jornal a um país: Holanda. 18


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EIXOS DE AVALIAÇÃO ●● São

as variáveis consideradas mais importantes pelos leitores na avaliação da qualidade de um jornal.

1º – Tratamento sério das hard news, investigação e variedade de assuntos. 2º – Leveza, tom e linguagem. 3º – Soft news, forma e apelo ao público jovem. 4º – Imparcialidade. 5º – Tradição e referência. 6º – Promoção, prêmios e brindes.

EIXOS DE AVALIAÇÃO COMPARADOS pesquisa comparou o Estado à Folha nos eixos de avaliação apontados pelos leitores.

●● A

hard news

soft news

beleza leveza, imparcitom e alidade linguagem

tradição e referência

promoções

ESTADO FOLHA

QUALIDADE PERCEBIDA ●● Os

leitores, divididos por sexo e faixa etária, avaliaram os dois jornais.

homens mulheres jovens

15-19 anos

ESTADO FOLHA

19

20-29 30-39 + de 40 anos anos anos


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CASES I ASSOCIATS ●● Antes

de iniciar o trabalho de reformulação gráfica, a consultoria Cases i Associats apresentou um diagnóstico do projeto gráfico antigo: – O jornal tem dificuldade para tirar proveito de suas principais qualidades. – A apresentação gráfica atual transmite densidade, credibilidade e tradição, mas dificulta o acesso à diversidade de temas. – Transmite a sensação de um produto antiquado. – A estrutura de apresentação e edição das notícias é excessivamente simplificada. – Todos os títulos sofrem deformação tipográfica. – Tipo pesado no texto é difícil para o leitor. – Paginação confusa, hierarquização débil de assuntos. – Não ressalta os diferentes gêneros informativos. – Ausência de um sentido claro de navegação. – Ausência de humor e de elementos de descontração. – Não potencializa os conteúdos exclusivos.

●● Solução

propostas pela consultoria espanhola para os problemas identificados:

– Valorizar os atributos positivos do Estado com um processo de renovação gradual. – Valorizar graficamente o aspecto informativo (hierarquização, organização da informação). – Enriquecer a apresentação da opinião e da análise. – Aumentar a visualização da densidade do conteúdo oferecido. – Ressaltar os conteúdos exclusivos. – Renovar a apresentação das páginas 2 e 3. – Criar no primeiro caderno áreas de conteúdo ameno. – Introduzir elementos de humor. – Enriquecer a identidade própria da informação política. – Valorizar a seção Geral. – Rejuvenescer a apresentação de assuntos culturais e de entretenimento. – Criar âmbitos para o consumo do jornal dentro da família. – Fortalecer os aspectos de informação de serviços de utilidade para o leitor. – Revisar o papel da seção de Esportes. 20


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OBJETIVOS DO ESTADO COM A REFORMA – Retomar a liderança no mercado brasileiro de jornais. – Reforçar e diversificar o conteúdo. – Produzir um jornal de leitura atraente, visual moderno, convidativo, ampliando a relação com o leitor jovem. – Melhorar a linguagem e dar mais clareza e objetividade aos textos. – Tornar o jornal referência de qualidade sem alterar sua influência.

Os dados eram bem claros e apontavam insistentemente na direção do público feminino e jovem. O Estadão, com o passar dos anos e os problemas já relatados de envelhecimento, se tornou um jornal de velhos, influente mas ignorado pelos futuros leitores. A preocupação, portanto, visava também à manutenção da empresa daqui a 10 ou 20 anos; sem leitores novos, os antigos vão desaparecendo ano a ano. Apesar do recado claro, a pesquisa Mega Perceptor não era deliberativa. Sandro logo deixou claro, antes de apresentar o projeto propriamente dito, que a direção do Estado fez o que achou que deveria ser feito a partir dos dados levantados e não obedeceu cegamente ao que a pesquisa apontou. O levantamento da percepção do leitorado não era a reforma em si, mas o ponto de partida. Após algumas gargalhadas dos jornalistas, admirados com a jovialidade da Folha de S.Paulo e com a qualidade pessoal de seus leitores ou alegres com a piada do editorialista Tonico Pereira, que do alto de seus mais de 130 quilos se sentiu homenageado ao saber que o Estado tinha um corpo editorial de peso, Sandro concluiu a apresentação dos números e dados. Estava chegando a hora de todos conhecerem o novo Estadão. Ao contrário do que eu imaginava, apenas três exemplares do novo jornal estavam disponíveis naquela reunião para os jornalistas manipularem. Numa conta grosseira, foi distribuído um jornal para cada cem pessoas, algo um tanto quanto díspar. Ao mesmo tempo em que os novos cadernos do jornal piloto rodavam de mão em mão, Sandro explicava a nova função de cada um e os motivos 21


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que o fizeram ter a configuração que tinham. A reforma, enfim, abria as cortinas e se fazia conhecida. Abaixo organizo uma lista dos cadernos do novo jornal e um resumo das considerações do diretor de redação sobre eles. Após a lista, apresento fac-símiles das edições impressas de cada um.

NACIONAL – Deixou de ser editoria política para se tornar mais abrangente. Além das questões agrária, indígena e de diplomacia, que já eram cobertas pela Nacional, passa a noticiar também o que se relaciona a políticas públicas (saúde, educação, trabalho, etc.). Foi a forma de concentrar o noticiário nacional em uma editoria e aliviar a ex-seção Geral. ●●

●●

INTERNACIONAL – Continua como estava.

●● VIDA& – Ex-Geral, agora se concentra em temáticas “da vida”, mas não em suas variáveis politico-econômicas: ciência, tecnologia, medicina, saúde, educação, meio ambiente, bem-estar e religião. Além do noticiário do dia, há seções temáticas diárias, com reportagens ampliadas e colunistas. ●● PÁGINAS

A2 e A3 – Novo desenho para a seção de artigos e editoriais, mais arejado, além de nova disposição para a área de cartas de leitores. As antigas seções Fórum dos Leitores e Cartas foram agrupadas em apenas uma. ●● METRÓPOLE – Antigo Cidades, com novo nome na edição São Paulo. O nome antigo ainda é utilizado para os jornais distribuídos fora da capital. Mesmo conceito editorial, mas com os olhos mais voltados a temas comportamentais da vida urbana. Novo desenho e nova seção (SP 24h).

ESPORTES – Além da reforma no desenho, é o caderno que mais procura reformar os textos e a abordagem de assuntos. Pretende-se tornar a cobertura do futebol mais prazerosa, dar mais destaque a outros esportes, com ênfase aos radicais (embora a prioridade ainda seja o futebol), e experimentar novas maneiras de escrever e produzir o noticiário esportivo. É o caderno em que mais se pede experimentação nos títulos e na edição como um todo. ●●

●● ECONOMIA&NEGÓCIOS – Ganha quatro páginas adicionais para a nova seção Negócios. Segundo pesquisas, o jornal

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está prestes a substituir um caderno especializado em economia. A intenção é concretizar essa percepção. Além disso, abordar temas mais microeconômicos por meio das páginas temáticas de Negócios (responsabilidade social, carreiras, agronegócios, micros e cenários). O objetivo é que no futuro o caderno Negócios se desprenda de Economia e seja publicado à parte. ●● CADERNO2 – Já era considerado o melhor caderno cultural brasileiro. A idéia é que fique mais leve visualmente e se dedique mais à cobertura do universo jovem.

– O antigo Viagem ganha uma seção fixa de pelo menos duas páginas para aventuras. Além do turismo convencional, passa a cobrir o turismo para jovens, “aventuroso”. Continua sendo veiculado às terças-feiras.

●● VIAGEM&AVENTURA

●● ALIÁS – Veiculado aos domingos, o Aliás foi criado para substituir a leitura das revistas semanais. Traz o que aconteceu de importante na semana, números, “sobe-e-desce”, além de reportagens reflexivas sobre temas variados. O destaque do Aliás é a entrevista de duas páginas (inspirada nas Páginas Amarelas, da revista Veja) com algum personagem e/ou intelectual importante no cenário político, cultural, esportivo, ou qualquer outro. Pretende ser a “amarração” do que foi a semana, dar um sentido ao noticiário e projetar o que poderá acontecer na semana seguinte.

– Ex-Informática, é o caderno mais revolucionário da reforma e o primeiro projeto crossmedia da imprensa brasileira. O objetivo é ampliar o público leitor em direção aos “não iniciados” em informática, com foco no comportamento das pessoas diante da vida digital. O pacote do Link apresenta pela primeira vez uma sinergia completa entre os veículos do Grupo Estado. Às segundas é publicado no Estadão, às quintas-feiras no Jornal da Tarde, boletins diários são veiculados na Rádio Eldorado, além da comunidade virtual baseada no projeto do Orkut. Todas as notícias relacionadas ao mundo digital, mesmo as não publicadas no Link, ganham complemento no site do caderno (http://link.estadao.com.br). ●● LINK

●● AGRÍCOLA – Mantém a mesma linha editorial, mas abandona um pouco o produtor rural para dar mais atenção ao agronegócio. Continua às quartas-feiras. ●●

GUIA do CADERNO2 – Ganha novo formato, de bolso, e 23


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

papel melhor (a capa não é mais impressa em papel-jornal). A intenção é se diferenciar do Guia da Folha, também publicado às sextas-feiras, cuja característica é mais de um roteiro do que de um guia. O Guia do Caderno2 não quer ser apenas uma lista de endereços, mas atuar diretamente na programação de fim de semana dos leitores. ESTADINHO – Fica como estava. Sandro Vaia completou: “Se alguém tiver alguma idéia para o Estadinho... pode falar”. Só ouviu risos. É publicado aos sábados. ●●

●● CASA& – É a ampliação ambiciosa do Casa e Família, anexo

comercial que acompanhava o Suplemento Feminino. Publicado aos domingos, tem a pretensão de concorrer com as revistas de “casa e jardim” muito consumidas. Cobre decoração, móveis, produtos eletrônicos para casa, produtos de cama, mesa e banho e jardinagem, além de um guia de empresas de mão-de-obra para reformas. ●● TV&LAZER – É o upgrade do antigo Telejornal, também veiculado aos domingos. Não se dedica mais apenas ao mundo da televisão, mas do lazer caseiro em geral. Tem seções de cultura, tecnologia, bem-estar, diversão, os tradicionais resumos de novelas, filmes e a cobertura do universo televisivo. ●● URBANA – A primeira revista dominical do Grupo Estado tem

lançamento previsto para março de 2005. Não pretende ser nem uma Revista da Folha nem um produto editorial e comercialmente frágil. Pretende-se parar de publicar o Suplemento Feminino quando a Urbana estiver pronta. É o que internamente chamam de “coroamento” do processo de reforma do jornal.

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A REFORMA

CAPA 02/01/2005

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PÁGINA A3 (EDITORIAIS) 15/12/2004

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A REFORMA

EDITORIA NACIONAL 17/12/2004

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VIDA& 09/01/2005

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A REFORMA

EDITORIA INTERNACIONAL 09/01/2005

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ECONOMIA&NEGÓCIOS 26/12/2004

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A REFORMA

EDITORIA NEGÓCIOS 15/12/2004

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O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

METRÓPOLE 28/12/2004

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A REFORMA

CADERNO2 04/01/2005

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O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

ESPORTES 26/12/2004

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AGRÍCOLA 05/01/2005

SUPLEMENTO FEMININO 08/01/2005

A REFORMA

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O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

LINK 03/01/2005

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A REFORMA

VIAGEM&AVENTURA 04/01/2005

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O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

ALIÁS 26/12/2004

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A REFORMA

CULTURA 26/12/2004

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SEU BAIRRO 07/01/2005

ESTADINHO 25/12/2004

O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

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CASA& 02/01/2005

TV&LAZER 26/12/2004

A REFORMA

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ESPECIAL VESTIBULAR 06/01/2005

GUIA do CADERNO2 24/12/2004

O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

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A REFORMA

ESPECIAL TRAVESSIA 31/12/2004

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O ESTADO DE S. PAULO PROTAGONISTAS



ENTREVISTA SANDRO VAIA, DIRETOR DE REDAÇÃO

O italiano Sandro Vaia entrou no Grupo Estado de forma curiosa. Em 1965, o então jovem editor do Diário de Jundiaí escreveu uma carta ao diretor do recém-criado Jornal da Tarde. O artigo agradou e o imigrante foi então convidado para trabalhar na redação mais cobiçada da época. Em 40 anos, subiu todos os degraus e se tornou o diretor de redação do Estado. Depois de dias de insistência, às 15 horas do dia 19 de novembro abriu sua sala para conversarmos sobre a revolução do mais tradicional diário do país.


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

Na reunião com a redação antes da implantação do projeto, você comentou que “nenhum jornal se faz com a letra toda em bold [negrito]”. Era algo que eu nunca pensei que ouviria de um diretor do Estado. Ainda mais porque o jornal foi escrito todo em bold por mais de dez anos. Daí a pergunta. A vontade de mudar é antiga ou foi algo mais recente?

Na verdade, desde que eu assumi, há quatro anos, eu tinha vontade de mudar, não só a forma como também o conteúdo. Aí eu propus à direção da empresa, aos acionistas, a implantação daquilo, que eram as minhas idéias, o que eu achava que iria melhorar o jornal. Nesse meio tempo, surgiu uma pesquisa chamada Mega Perceptor, que reforçou muito a posição que eu já vinha defendendo há algum tempo. Essa pesquisa Perceptor foi feita pela primeira vez em 1999 e mostrava os gaps [buracos, falhas] existentes entre o Estado e a concorrência, onde se situavam estes gaps, etc. Eu tinha não só a percepção pessoal de que isso estava se aprofundando, como essa pesquisa de 2003 confirmou que realmente esse gap existia, e não só existia como entre 1999 e 2003 (a data das duas pesquisas), ele se aprofundou. Em relação à linguagem, à representação gráfica, à abordagem de assuntos, à própria posição do jornal em termos de discussão de problemas e tal, a Folha tomou a dianteira de um pioneirismo que foi sempre um patrimônio do Estado. Eu achava que tinha de ser tomada alguma providência para evitar que o aprofundamento desse gap ficasse depois incontornável, irreversível. A empresa deu todo o apoio ao projeto de mudança, então o que era no começo apenas uma tentativa de ir ajeitando aos poucos, através de uma reforma gráfica, acabou virando uma vontade da empresa de fazer isso e fazer mais profundamente, com mais rapidez do que a gente imaginava. E acabou sendo feito. 48


SANDRO VAIA

Mas só foi possível graças ao saneamento financeiro da empresa. Como foi isso? Já havia a proposta antes, mas faltava dinheiro para implantar?

Não, não. Não tem relação entre uma coisa e outra. O que na verdade aconteceu foi que a empresa passou por um problema financeiro e resolveu fazer um turn-over [redirecionamento administrativo], como eles chamam aí, e chamou uma consultoria de fora para fazer um saneamento, um replanejamento de pagamento da dívida junto aos bancos e tal. E as duas coisas acabaram se juntando quase sem querer. Foi no mesmo bolo: já que vai sanear, vamos sanear e tentar fazer um jornal novo também, para acompanhar a coisa. E as coisas se casaram naturalmente, não foi nada planejado nem deliberado. Uma coisa veio na conseqüência da outra. O saneamento da empresa não é uma tendência da mídia brasileira em geral. O Globo, Folha de S.Paulo, todos estão endividados. Você acha que o Estadão foi uma exceção boa nesse caso?

Acho que pela característica própria da empresa, e da família acionista, pela credibilidade do jornal que vem acompanhada da credibilidade financeira da empresa. Desde que ela existe, há 130 anos, houve uma grande preocupação e a empresa, a S/A, acabou saindo na frente das outras no trabalho de renegociação da dívida. Tomou a dianteira, digamos assim. Não sei se a situação financeira do Estado é pior do que a do Globo ou da Folha, mas o jornal (a empresa) tinha mais preocupação do que os outros estão demonstrando. Então, resolveu sair na frente por nenhuma razão, mas pela própria natureza da empresa. Acabou saindo e saindo bem, porque fez uma renegociação boa, tanto para os bancos, que ficaram satisfeitos, quanto para a empresa, que conseguiu acompanhar essa renegociação com uma modernização do produto principal da empresa. Você comentou sobre a família acionista, que é a posição em que os Mesquitas estão hoje. Essa saída deles da direção executiva da empresa teve a ver com a mudança? Eles barravam esse processo?

Não digo que barravam... Mas havia uma certa, digamos, acomodação. Uma acomodação de camadas geológicas (risos), tanto na área editorial quanto na área de gestão. Havia um certo acomodamento. É uma família que tem vários ramos e que ficou 49


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

grande demais, como acontece em empresas familiares, principalmente quando chega à quarta geração. Ela fica até certo ponto inadministrável. Se você começa a distribuir poder entre acionistas e retarda ou dificulta a profissionalização, a tendência é que se cristalizem situações. E felizmente isso foi resolvido com esse turn-over que foi feito. Implicou na colocação da família no Conselho (de Administração). É ela que gere a parte estratégica; para onde a empresa vai é uma decisão dos acionistas, claro. Mas a gestão profissional fica mais fácil agora. Ainda na reunião da redação, você brincou dizendo que, na pesquisa Mega Perceptor, compararam a Folha com a Holanda e o Estadão com a Alemanha (risos). Primeiro: isso é verdade mesmo?

Uma das coisas dessa pesquisa Perceptor é que ela é feita com bastante cuidado e demora bastante para fazer. Uma das perguntas era “se o jornal fosse um país, qual seria?”. E deu isso mesmo. Então, mais duas perguntas. O Estado quer ser que país com essa reforma, para fazer uma metáfora?...

Estados Unidos... (risos) A parte boa dos Estados Unidos... (risos) E você acha que realmente era a Alemanha antes?

Olha, eu tinha uma imagem um pouco de falta de cintura, de ter parado um pouco no tempo... A sociedade evoluiu, comportamentos diferentes, posturas diferentes. O jornal ficou parado no tempo. Isso refletiu pela própria linguagem. Hoje mesmo eu recebi uma carta (risos)... de um leitor de 84 anos reclamando do Suplemento Feminino. Ele acha o suplemento retrógrado. Imagine... (risos) Um leitor de 84 anos. Ele reclamou de outras coisas, mas no meio ele enfiou essas histórias. O que o jornal 50


SANDRO VAIA

precisava era de uma atualização. Eu acho que está no caminho. Vamos falar na história mais recente da reforma. Como foi a escolha pela Cases i Associats? Foi uma segunda tentativa, não foi?

Sim, foi. Primeiro foi contratada uma consultoria também espanhola, da Universidad de Navarra. O projeto também estava em outro estágio, não havia a percepção de que a mudança teria de ser tão profunda. Foi mais uma tentativa de reforma gráfica só mesmo, sem alteração de conteúdo. A Cases, por coincidência, umas duas ou três semanas antes da realização do Congresso Mundial de Jornais, na Turquia, esteve aqui a pedido da Agência Estado fazendo uma apresentação sobre a tendência de tabloidização da imprensa européia. Foi uma apresentação muito profissional... Eu já conhecia o grupo de referência, tinha visto catálogos deles e conhecia pessoalmente o Chico Amaral, que foi quem conduziu a reforma. Eu estive nesse congresso, na Turquia, em Istambul, e tive oportunidade de conversar bastante, bem aprofundadamente, e também ver as tendências da imprensa mundial. Tinha a presença do Chico Amaral e a gente pôde conversar bastante sobre o que poderíamos fazer para renovar o jornal. Eu achei as idéias boas e defendi a contratação deles. E eles foram contratados. Mas o que despertou mesmo foi essa apresentação sobre a tabloidização, que eu vi que foi uma apresentação feita com muito profissionalismo. Uma coisa bem fundamentada, muito bem feita e fiquei favoravelmente impressionado com o profissionalismo deles. O artista Tide Hellmeister criticou, no seu livro Capitular Collage, o fato de jornais contratarem consultorias estrangeiras para reformular seus produtos.

“Os jornais brasileiros investiram centenas de milhares de dólares em projetos gráficos feitos por designers estrangeiros, o que eu considero um escândalo, e quase nada em direção de arte no dia-a-dia da redação, como se o tal projeto gráfico garantisse alta qualidade visual às centenas de decisões estéticas que é necessário tomar a cada edição, e que ficam sob responsabilidade de profissionais mal pagos e sem condições decentes de trabalho”

Não foi o Alberto Dines? Ele sempre faz essa crítica... Não... O principal argumento é o de que as pequenas decisões estéticas do dia-a-

HELLMEISTER, Tide. Capitular Collage. São Paulo: Rosari, 2004. (Coleção Qual é o seu tipo)

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O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

dia acabam modificando algumas coisas do projeto, e que os consultores chegam, impões suas regras e vão embora. Isso acontece realmente? Vocês estão sentindo falta do Chico aqui todos os dias?

Não, não... Tanto que ele está aqui agora, neste momento. Foi feita uma programação, a reforma ainda não acabou, está em pleno desenvolvimento. Temos ainda contrato por mais um ano e eles continuam dando assistência. E há outros projetos, que envolvem a revista Investimento, da agência, o próprio Jornal da Tarde, o jornal dentro da internet, tal. Os trabalhos estão sendo desenvolvidos com eles também. Esse problema de vir, fazer a reforma e sair nós não estamos sentindo com eles, mesmo porque o contrato está em vigor. Eles mesmos estão indicando alguns profissionais para ser o diretor de arte do jornal, para preservar esse projeto e ir renovando de acordo com as necessidades. Com supervisão deles, assessoria... O jornalismo é plural, o chavão antigo já diz. Na reforma, teve alguma discussão em que você foi voto vencido? Algum elemento que até agora não desceu?

Isso é pessoal e um pouco delicado... Vou te dizer em off e você tira aí... Pode deixar... Vamos pular para a próxima, então. Já que estávamos falando de tradições, opiniões etc., o Daniel Piza costuma falar que há um “mesquitinha” dentro de cada um na redação do Estado...

Sim, sim, dentro de cada um de nós... (risos)

A "pesporrência" do título acima é um dos termos que Daniel Piza classifica de linguagem conservadora.

Ele cita inclusive os termos conservadores como exemplo de linguagem rebuscada. E é uma coisa gradual, não dá para 52


SANDRO VAIA

chegar a dizer “você vai escrever assim”. Como essa mudança cultural de texto está sendo gerida?

Está sendo gerida no corpo a corpo, no dia-a-dia. Eu coloquei um editor de texto para entrar nos títulos, trocar algumas palavras. Ontem mesmo eu, pessoalmente, que acompanho o fechamento pelo sistema, tinha essa chamada: “Sarney admite que sacou dinheiro do Banco Santos”. Na primeira edição estava “Sarney admite que sacou recursos do Banco Santos”. Por que usar recursos? O que você gasta? Dinheiro, pô... Qual é a coisa cultural que faz com que o cara procure uma palavra mais rebuscada pra dizer uma coisa simples? Eu chamei quem fez e perguntei “por que você escreveu recursos em vez de dinheiro?”. Ele não soube dizer... Aconteceu a mesma coisa na editoria de economia. Na primeira edição, essa história do Sarney não era manchete da capa do caderno de Economia, estava lá dentro. Tinha uma chamadinha em cima que usava, também, recursos. Aí eu fui reclamar com a editora e a pessoa que fez o texto, a redatora, estava lá perto. “Fui eu que fiz.” E eu: “Por que você escreveu isso?”. E ela: “Ah, eu não sei, não sei explicar porquê. Mas é verdade, dinheiro é melhor que recursos”. Não sei, deve ser um troço introjetado lá dentro... Não dá pra explicar direito o que é... Mas isso é um trabalho que leva tempo, até 53


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

porque está dentro da pessoa. Ou acha que é feio usar dinheiro porque é uma palavra muito coloquial, não sei... Falando um pouco da sua vida profissional. O que significa encabeçar uma mudança do Estadão?

Além da dor de cabeça profunda?... (risos) Acho que é um coroamento profissional interessante. Me diverte. (risos) Você acha que essa mudança significa algo pelo menos próximo das mudanças históricas do jornalismo brasileiro? Jornal do Brasil nos anos 50, Última Hora, Folha nos anos 80?

Eu não seria tão pretensioso, mas de fato eu ouço falar muito da mudança do JB. Eu tenho como referência de leitura e tal. Agora, eu não era nem leitor do jornal naquela época para saber... ... Mas você acha que o impacto vai ser parecido, de introduzir um novo conceito no mercado?

A tentativa é essa. Não que seja uma revolução no jornalismo, mas é uma revolução deste veículo especificamente. Eu acho também que, se a gente parar e deixar de evoluir, não vai dar em nada, vai ser só uma mudança estética. Eu não quero que seja só isso. Quero que seja uma mudança mais profunda, que isso sirva apenas de veículo para fazer mudanças mais profundas de conteúdo, de abordagem de matérias, de abordagem de temas, etc.; pra sair da mesmice do dia-a-dia que torna os jornais tão chatos e tão desnecessários, como está demonstrando a queda de circulação mundial dos jornais. O leitor acaba achando o jornal desnecessário, ou está abandonando para se informar por outros meios. O Carlos Alberto Di Franco acha que falta auto-crítica, algo como um ombudsman, para a reforma do Estado ser completa. Isso foi pensado alguma vez?

Eu acho que o uso do ombudsman tem dois aspectos diferentes. Um é mercadológico, questão de marketing. Mas o uso da autocrítica eu incentivo muito. E não precisa se tornar público. Eu estou fazendo uma experiência com um velho jornalista, que está fazendo uma crítica interna do jornal todos os dias. Tem duas avaliações, inclusive. Uma primeira, que serve como referência para a primeira reunião de pauta, das 10 horas. É o primeiro sobrevôo dos jornais, ver onde a gente foi 54


SANDRO VAIA

bem, onde foi mal, que furo que a gente levou etc. E depois uma mais tarde, lá pelas 14, 15 horas, mais aprofundada, que fala onde se comportou bem, onde se comportou mal, o que poderia ter feito e deixou de fazer etc. Eu sou muito a favor disso, incentivo muito a auto-crítica interna. E mesmo porque é um hábito não muito usado aqui dentro. A crítica, num primeiro momento, era interpretada como uma crítica pessoal. A matéria está mal editada e o editor acha que é uma ofensa pessoal, “ah, sou um mal editor”. Um dos esforços culturais que eu estou fazendo é para mudar essa mentalidade. A auto-crítica do jornal é uma crítica profissional. Errou, errou e acabou. Não estou dizendo que você é burro porque você errou. Simplesmente foi uma abordagem errada e é tentar corrigir. Junto ao público, não sei se tem tanta utilidade assim. Eu acompanho muito a ombudsman do El País e fica uma discussão um pouco estéril. Às vezes é aquela discussão meio localizada em probleminhas, principalmente lá na Espanha em função da divisão ideológica, do Partido Socialista contra o Popular. Fica “ah, porque o jornal deu mais destaque para não sei quem” e a ombudsman tentando explicar – essa discussão meio estéril, como aqui quando era campanha eleitoral. “Está dando mais Serra, ou mais Marta”. Essa coisa que não leva a nada. Então eu prefiro uma auto-crítica sem levar ao público. Acho que para advogado do leitor nós temos seções adequadas, que são problemas do leitor – problemas práticos, da vida prática, comprou tal coisa e não foi entregue. Pra isso nós temos duas seções, a São Paulo Reclama e a Tome Nota, que eu acho que cumprem essa função de relação com o leitor. Acho 55


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

que ajudam mais do que simplesmente ficar discutindo se a gente deu mais Marta do que Serra... Você disse que o Estadão quer voltar a ser o maior e mais influente jornal do país. Você acha que hoje ele não ocupa mais essa posição?

Bom, eu acho que ocupa. Ele perdeu alguns pontos nisso, por comodismo, acomodação editorial e tal, mas sempre foi um jornal respeitado. Não é o de maior circulação no momento, mas nem sempre o de maior circulação é o mais influente ou mais importante. Eu acho que o Estado nunca deixou de ser o mais influente e mais importante. É um jornal que tem opinião, às vezes até demais, mas o que ele diz é bem fundamentado e respeitado. Então, acho que influente e importante ele nunca deixou de ser. Eu gostaria que isso fosse acompanhado de circulação também, porque é o coroamento desta importância que ele tem. Você acha que a metáfora satírica da Folha de 93, da propaganda de um senhor muito antiquado com cabelo azul, cabe também ao novo projeto?

Não, não. Acho que não. Só com muita má vontade. Acho que o jornal continua com a mesma seriedade e só arejou, tornou a leitura mais fácil. Alguns exemplos são muito fortes. O Link, por exemplo, deu uma renovada nesse negócio de caderno de informática, com uma linguagem diferente, abordagem diferente. O Aliás está no mesmo caminho também. Os outros suplementos da vida, digamos, da futilidade, como o TV&Lazer. O Casa& é um suplemento muito útil para todas as pessoas – todo mundo mora em algum lugar e quer morar num lugar melhor. Ou seja, eu acho que está cumprindo bem. Mas não vamos parar por aí, temos que ir além disso. Também a renovação da editoria Geral, que era uma coisa sem muito pé nem cabeça, virou algo com estrutura, que tem um objetivo, uma coisa bem definida. Antes da mudança era uma espécie de lata de lixo do jornal. A gente não sabe pra onde vai tal matéria, põe na Geral, lá cabe tudo. E acabava saindo um monte de coisa que deixou de sair e ninguém sentiu falta. (risos) Já que tocamos no ponto da renovação e da necessidade de continuar mudando, vou fazer aquela pergunta batidíssima. 56


SANDRO VAIA

Pra onde caminha o meio jornal?

O meio jornal é um problema. Tem uma grande discussão aí, teórica e tal, se o jornal se tornará inútil, se será... ... Porque o Aliás e o Link são claramente novas formas de se fazer jornalismo, particularmente no Brasil.

É um pouco pra incentivar. O Link é a abordagem de um mundo meio desconhecido da vida digital. E com o Aliás estamos tentando introduzir um pouco mais de reflexão. Sair um pouco do hard news e tentar refletir um pouco sobre o significado dele. Acho que com a multiplicação dos meios de informação rápida, é claro que o papel do jornal vai ser cada vez mais reflexivo. Agora mesmo, nesse minuto, eu estava lendo o ombudsman da Folha, o Marcelo Beraba, que tem uma crítica interna todo dia e que está no site. Ele está falando e criticando a manchete da Folha – “no que ela avançou com relação aos telejornais de ontem?”. Deu uma notícia seca, pura, sem tentar nenhuma interpretação. Isso cada O Estado de S.Paulo - 19/11/2004 Folha de S.Paulo - 19/11/2004 vez mais os jornais tem que abandonar. Quem melhor se saiu hoje foi o Globo, a manchete deles foi um exemplo. A gente tentou esse caminho, mas por uma questão de tamanho não deu. O Globo a57


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marrou bem a questão toda: “Lula demite Lessa, fortalece Palocci e vai mudar ministério”. Fez o que a gente fez e foi um pouquinho além. É uma projeção; está indo além da simples notícia. A Folha parou na notícia que todo mundo sabia. Então tem que se cumprir o chavaozão de “não dar a notícia sobre ontem, mas sobre amanhã”?

É... É uma frase bonita... Mas a tentativa é essa. Ir além: explicar o que aconteceu e o que vai acontecer agora. Dizer o que aconteceu toda a televisão disse, todos os sites disseram. Mas porque aconteceu, já é diferente. E o que vai acontecer é que é o esforço. Pra fazer isso tem que ter jornalista mais qualificado, que cultive melhor as fontes, que saiba interpretar melhor os fatos, que veja a relação de causa e efeito entre as coisas. Isso requer uma qualificação. Por isso eu acho que provavelmente os jornais vão evoluir para uma quantidade menor de informação, mas uma quantidade maior de interpretação e explicação do sentido do que está acontecendo. E deixar o hard news para os meios eletrônicos.

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CHICO AMARAL

ENTREVISTA CHICO AMARAL, DESIGNER

Chico Amaral é sócio da Cases i Associats, a empresa de Barcelona que reformou nada menos que os jornais Valor Econômico, Lance!, Correio Braziliense, Clarín, entre outros bem sucedidos da imprensa mundial. Chegou a vez do Estadão, e lá estava a visão brasileira com vivência internacional de Chico. Sua permanência na redação do jornal durante a reforma foi intensa e muito ocupada. No final de dezembro, porém, atendeu a meu pedido virtual e respondeu as perguntas que enviara por e-mail. 59


O ESTADO DE S. PAULO – A REFORMA

É uma tendência nas artes gráficas o que faz o novo projeto do Estado remeter, por exemplo, ao Clarín ou ao Valor Econômico? Ou é um estilo da Cases?

Remeter é demasiadamente vago. A tipografia, que é o principal elemento de identificação, é diferente, o sistema gráfico de filetes e peças é diferente, o uso de imagens é diferente…

O ponto de semelhança entre o Estado e estes dois jornais pode estar no fato de que todos eles são construídos a partir da modulação da página. Trabalhar o layout a partir de uma retícula modulada gera páginas cujos elementos terão uma proporção visual estável e equilibrada. A modulação é um princípio que foi aplicado às artes gráficas de uma forma extensa e variada a partir da escola Bauhaus. Remete à primeira metade do século passado. Para nós, a modulação não é somente um recurso estético, mas uma ferramenta para regular a produção editorial do jornal, uma vez que define porções a serem ocupadas pela informação a ser produzida, criando um padrão para todos os elementos editoriais. Outra semelhança é o critério de fluxo de leitura e hierarquização da notícia: da esquerda para a direita. O que é mais importante e, na maioria das vezes, e ocupa mais espaço estará sempre à esquerda. Daniel Piza chegou a comentar que o Estado vinha passando há algum tempo por uma reforma “oculta”, em que os textos

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CHICO AMARAL

ficaram mais leves, jovens, só que mesmo assim os leitores não mudaram a imagem que tinham do jornal. Você acha que o design tem essa função (ou até qualidade) de concretizar um discurso?

O design não pode ser um fim em si mesmo. Em uma publicação, o design é uma ferramenta muito eficaz para traduzir o conceito editorial, uma vez que regula a produção informativa e garante não só a presença de elementos-chave deste conceito, mas também a forma como deve ser produzido. No que a reforma do Estado foi diferente da do Correio Braziliense ou do Lance!, por exemplo? O que o Estado teve de particular?

Não se pode estabelecer nenhuma referência entre estes projetos. Como disse, o design é uma ferramenta para traduzir o conceito editorial. Cada um destes jornais tem um conceito distinto. O Correio era um jornal que, na capital do país, lutava contra os jornais nacionais (muito mais ricos) para se impor não só como o principal jornal local, mas também para ser ` uma das referências em termos de cobertura do poder. A estratégia foi valorizar ao extremo a investigação, a reportagem e criar novos padrões narrativos para se diferenciar, surpreender e criar uma relação muito estreita com os leitores. Em termos gráficos, era um jornal “feito à mão” página a página, buscando sempre a melhor tradução para cada história. Poucos recursos, muita 61


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criatividade e muita ousadia. O Lance! é um jornal esportivo, popular. Mais que informação, trabalha com emoção. O design é vivo, atrativo, de comunicação rápida. A paginação é muito automatizada para que o próprio editor defina a apresentação da página a partir de uma coleção de soluções gráficas. O Estado é um jornal de referência, um jornal tradicional que busca renovar seus leitores a partir da renovação do produto. Por suas características, demanda um processo de evolução gradual que não provoque rejeição entre seus leitores, mas que seja capaz de atrair, ao longo do tempo um novo público. O objetivo do projeto é dar visibilidade aos principais atributos que o jornal possui que de forma resumida podemos listar: a qualidade dos textos, a diversidade de conteúdos, a precisão da informação. A reforma do Estado foi mais difícil de ser implantada, já que havia a preocupação de “mudar sem mudar”?

Não. Como disse Daniel Piza, já estava em curso o processo de mudança. O projeto gráfico concretiza uma fase. A redação reagiu de forma extremamente positiva e participativa. A premissa de “mudar sem mudar” seria melhor abordada de outra forma. O que está ocorrendo é uma mudança gradual. Foram mantidas as tipografias e toda a estrutura já existente. O que há de mais inovador são os novos cadernos. Na década de 90, viu-se a tendência jornalística de se multiplicarem as fotos e cores nos jornais. Exemplo disso é o próprio Jornal da Tarde, bastante imagético até hoje. O novo Estado, a grosso modo, pelo contrário, diminuiu a quantidade de fotos, aumentou o tamanho das existentes e pretende melhorar a qualidade e plasticidade do material fotográfico. É uma nova tendência? A fase da multiplicação de fotografias foi superada?

Não. Deixemos de lado tendências. O uso de imagens responde ao modelo. O JT é um jornal po62


CHICO AMARAL

pular e, por isso “imagético” se assim você prefere definir. O Estado é um jornal sério, voltado para um público A/B. Faz um uso de imagens mais seletivo, mais elegante, com abordagem informativa diferenciada dos populares. Aqui vale quanto uma imagem pode expressar em um só golpe de vista. Pode-se dizer que tende a um uso mais editorializado da imagem, ou seja, transcende a informação escrita e agrega valor à notícia. No que diz respeito ao uso de cores, observa-se no novo Estadão a multiplicação de páginas coloridas. Mas vê-se também que elas se restringem ao material fotográfico; ícones, fios e outros elementos gráficos são pretos ou de uma gama pouco variada de cores (verde no primeiro caderno, laranja e vermelho no Esportes, cinza em Economia etc.; a exceção é o Caderno2, mais colorido que os demais). Essa gama pequena de cores também é tendência?

Não. É uma resposta à linha editorial do jornal: séria, sóbria. Última pergunta técnica. Comparando as capas do Estado antigo com as do novo, uma curiosidade pode ser levantada. Nas capas de antes de 17/10, há mais imagens completas na metade superior. Nas de agora, a manchete raramente recebe foto e tem um destaque bem maior do que antes. O problema é que as imagens de impacto ficam quase inteiras na metade inferior. Isso não é um “anti-marketing”? Ou só uma conseqüência da falta de preocupação do Estadão com a venda em bancas, já que a maioria dos leitores são assinantes?

A questão envolve vários aspectos. A idéia é que cada página, não só a capa, tenha um elemento visual predominante. É um princípio de hierarquização não somente estético, mas editorial. Quando se publica várias fotos em uma página, muitas vezes o que ocorre é que nenhuma tem valor. Uma escolha clara é uma opção editorial clara. Uma foto contundente, uma mensagem. Caso se utilize mais de uma foto, uma deve ser maior que as outras. Em geral, três vezes maior. A edição, ou seja, a seleção deve 63


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ser sempre muito clara. A questão da dobra na capa se rende a esta regra, tirando o partido de que este é um jornal de assinantes. Quase não se vende em banca. O conceito da mudança permanente, hoje em voga nos principais jornais do mundo, também pretende ser implantado no Estado? Refiro-me à não-estagnação gráfica, à correção permanente dos possíveis erros, à adaptação de determinadas soluções, ou seja, ao fato de a reforma não ser estática e conclusiva.

O Estado já havia entrado em um processo de mudança antes do projeto gráfico. E está nele. Uma redação, não pode parar. O produto estará sempre respondendo a questões postas pelo mercado, pelas mudanças na sociedade e as empresas de comunicação sempre serão forçadas a se movimentar. Este é o cenário.

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DANIEL PIZA

ENTREVISTA DANIEL PIZA, EDITOR-EXECUTIVO

Não é qualquer um que chega ao cargo de editor-executivo de um jornal como o Estadão. Muito menos para comandar as pautas especiais de domingo e... aos 34 anos. Piza começou a carreira no Estado, passou pela Folha Ilustrada e Gazeta Mercantil e há quatro anos voltou para casa. Convidado para “arejar” o jornalão do domingo, o criador do Vida& acabou tornando jovem todo o Estadão. Depois de escrever sua coluna Boleiros, no dia 4 de novembro falou por 40 minutos: uma aula de jornalismo. 65


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Inevitável começar a entrevista por cultura. A Folha Ilustrada sempre foi tida como mais pop que o Caderno2...

A Ilustrada é mais pop que o Caderno2... Desde que ele foi criado, nos anos 80... Você trabalhou na Ilustrada e agora foi um dos responsáveis pela “jovialização” do Caderno2. Você acha que sua experiência na Folha tem algo a ver com isso? Você trouxe alguma coisa de lá?

Essa não é nem uma idéia exclusivamente minha. Como o jornal todo está querendo chegar mais ao público jovem, sem perder o seu público, o Caderno2 obviamente é uma arma. Então não é alguma coisa assim que eu estou encabeçando; é até em comum acordo entre mim, o Sandro (Vaia, diretor de redação) e o Dib (Carneiro Neto, editor do Caderno2). O Caderno2 tem essa identidade, que eu acho superlegal de, por exemplo, dar um espaço supergeneroso para teatro, artes cênicas em geral, dança. A Ilustrada não tem isso, nunca teve e parece que não quer ter. Mesmo com as áreas chamadas eruditas, música e a parte de livros, excluindo a questão do Mais!, o Caderno2 sempre foi mais generoso. Exposições, também. A gente pode dar uma página inteira a uma exposição que está rolando em Paris, com um texto da Sheila Leirner. Ou em Nova York, com a Tonica Chagas, coisa que a Ilustrada, quando dá, dificilmente vai ser página inteira. E essa linha um pouco mais sofisticada do Caderno2 em relação à Ilustrada, um pouco menos pop, é superaprovada e faz sentido para o tipo de leitor que o jornal tem. Mas ela também pode incluir um pouco mais de pautas jovens, alternar um pouco mais esses assuntos com assuntos mais jovens, mais pop, sem perder essa identidade. Eu tenho até dado uns puxões de orelha no Dib porque, às vezes, ele dá duas bandas seguidas de capa, o que eu acho um equívoco. Eu acho que você tem que fazer uma calibragem bem legal. Isso que eu ia emendar. É possível agradar o leitor acostumado com o Caderno2 com assuntos da Ilustrada?

Eu acho que é... acho que sim... Acho que o leitor do Estadão, apesar da imagem que às vezes se tem, é mais aberto do que a gente pensa. Acho também que ele reconhece o seguinte: embora tenha tido uma experiência aqui com o Zap! – 66


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quando eu nem estava aqui –, pelo menos na gestão do Sandro, a gente nunca quis fazer um caderno para jovens, um Folhateen. Pelo contrário. A vontade é integrar os jovens um pouco nessa leitura do Caderno2. Talvez há 3 anos, não daríamos uma Pitty na capa. E agora damos. É abrir, mas não fazer uma concessão ou mudar a linha, entendeu? É abrir a linha, ampliar o espectro. A gente também pensou em algumas coisas para contrabalançar isso. Por exemplo, a criação do Aliás, embora não seja um caderno cultural, mas que tem um aspecto cultural forte, ajuda a trazer o lado de reflexão para o jornal. Porque é sempre um papel que a parte cultural costuma desempenhar. E lá haverá muitas pautas, inclusive culturais. No Cultura de domingo, tiramos os quadrinhos, o horóscopo e as palavras cruzadas e colocamos no TV&Lazer e, em vez de fazer como se faz nas reformas em geral (fechar essa página e meia que sobrou), dedicamos a assuntos culturais. Isso permitiu que a gente tivesse uma página dupla só para livros, em que se tem a estante de livros, os mais vendidos, notinhas do mundo literário e mais duas ou três resenhas. É uma dupla de livros garantida toda semana, além do livro que muitas vezes está na primeira página. Reforçamos as colunas, a minha e a do João Ubaldo (Ribeiro) estão na D3 [o sistema de marcação de páginas em jornais segue a ordem letra (referente ao caderno)-número da página]. A minha cresceu, a do João Ubaldo saiu do pé da D2 e foi pra D3, que é uma forma de ganhar visibilidade [páginas ímpares tem mais destaque que páginas pares], e a do (Luiz Fernando) Veríssimo foi para a contracapa, que também é uma forma de ganhar visibilidade. 67


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Todas as páginas são coloridas e ainda criamos aquela seção Antologia Pessoal,

que é um seção também de muita informação cultural. Ali são grandes artistas brasileiros indicando seus gostos culturais. E fizemos acordos com a Squire e com a New York Review of Books para comprar artigos, e ainda tem mais coisa que a gente vai fazer. A gente reforçou muito o Cultura, que, embora não seja um caderno literário, dá muita ênfase aos livros e volta-e-meia vai trazer grandes matérias de música erudita, de artes plásticas, desse mundo que as pessoas tendem um pouco a ter medo. A gente tentou fazer de uma forma que atraia as pessoas, e não que afugente, que eu acho ser o caso do Mais!. Outra coisa que eu também acho legal é a reformulação do Guia do Caderno2. Ele ficou mais prático (formato de bolso), mas também aumentou, o volume de informação é 68


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muito maior. Antes nós tínhamos 50, 60 restaurantes; hoje é o dobro, mais de 100 restaurantes toda semana. Aumentamos a parte de jovens do Guia, que agora também tem uma seção que chama Baladas. E aumentamos um pouco também a dinâmica: em vez de ser só um roteiro, é um guia. Tem materinhas, sacadinhas, dicas, comentários... Ficou menos roteiro e mais guia mesmo. A gente está introduzindo nesta semana, logo na abertura, uma coisa assim: “no que você tem que apostar nesta semana”. Se você quer ir ao cinema, é este o filme. Se quer ir ao teatro... É filtrar a informação para o leitor, além de dar ao longo do caderno todas as informações possíveis pro cara. Acho que com isso a gente reforçou o aspecto cultural do jornal. E ainda, com o lançamento da revista (Urbana), no início do ano que vem, vai reforçar mais ainda. A questão dos jovens você já tangenciou, mas vale a pena voltar. A escolha por espalhar pautas jovens por todos os cadernos, e não fazer um caderno jovem específico, veio da experiência da 69


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Folha? Ou foi inspirada nos resultados de algum outro jornal?

Veio um pouco de nossa percepção. Até pela experiência do Zap!, nós sentimos muito isso. Veio um pouco de uma constatação que as pesquisas que a gente fez de percepção de leitor, nos últimos dois anos, apontaram. É a mesma coisa que o Suplemento Feminino. Por que ele não dá certo, em nenhum sentido, qualidade, quantidade, nada? Pelo próprio nome. Com ele, eu digo “esta é a parte do jornal que é da mulher. O resto do jornal não é da mulher”. A gente não queria fazer a mesma coisa com o jovem, entendeu? Ah, “esta é a página do Caderno2 que é pro jovem”. Então o resto do Caderno2 não é para o jovem? Claro que é! Uma capa sobre uma estréia da semana de um grande filme vai ser vista por todas as faixas etárias, especialmente pelos jovens. O reforço na parte de televisão também, da qual a Folha vem fugindo, é coerente com você querer ampliar o público. Também porque interessa a vários públicos e especialmente aos jovens. Nesse sentido, a Folha deu um tiro no pé, porque televisão neste país é uma força cultural tremenda... Eu acho que o próprio leitor não se quer ver segmentado. Ele quer ver que tem coisas para ele e que elas fazem parte do organismo do jornal, que não são apêndices? A pesquisa mostrava que o pai da família lia o Estadão, mas a mulher e o filho não. Esse pai não vai ficar triste se a mulher e o filho também lerem o jornal dele. Pelo contrário, ele quer ver o filho lendo o jornal. Ele quer que a mulher curta o mesmo jornal que ele em vez de assinar outro, ou de assinar uma revista. O domingo aqui no Estadão até se “revistizou” um pouco mais do que vinha. Até na primeira página, que é para puxar um pouco as mulheres também. Então, o pai não está perdendo o jornal dele; está vendo a mulher e o filho também se interessarem pelo jornal. Isso é positivo. 70


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Pensando na mudança cultural da redação, o jornal hoje reflete a atual redação, mais jovem? Ou isso já vem há mais tempo?

Acho que são duas partes. Primeiro, a gente (a redação e a cúpula da redação) já vinha fazendo um esforço para o jornal ficar mais leve na abordagem, no leque e na edição dos assuntos. E a gente vinha conquistando algumas coisas. Por exemplo, eu vim pra cá para ser editor de domingo. O Estadão não tinha essa função, alguém só preocupado com as pautas especiais de domingo... Isso há quatro anos, não é?...

Quatro anos e meio, desde maio de 2000. Só para confirmar...

Então, o fato de você ter um editor de domingo, que faz uma reunião só para o domingo, que tem um fotógrafo só para o domingo, etc. permitiu que a gente, por exemplo, tivesse fotos bonitas no domingo, que é uma coisa que ajuda a tornar o jornal mais agradável. Pautas especiais são tanto pautas leves, de comportamento, de vida urbana, como os grandes artigos, as grandes reflexões, as grandes colunas, as reportagens abrangentes... A gente já vinha num esforço de ampliar a diversidade de temas do jornal, especialmente aos domingos. Depois, até começamos um esforço que chamamos brincando de “historinha de capa”. Cada editor tinha que ter uma “história de capa”, uma coisa que não é uma notícia do dia, mas uma história que a gente sacou na cidade, na economia. Muitas delas passaram a ganhar quadrinhos na primeira página. Histórias que personalizam muito, com um personagem legal, ou até que tenham um toque de humor, ou às vezes uma história muito trágica, muito forte. Essa preocupação de ter histórias, um pouco desvinculada do hard news, a gente vinha tendo, além desse esforço do domingo. Então, o jornal vinha trabalhando no sentido de ficar mais leve e diversificado do que era. Mas isso não se refletia tanto nas pesquisas de percepção. Porque a percepção é muito a sua impressão sobre as coisas. E é pra isso que serve o design?

O projeto gráfico é muito para isso. Em parte é para vender 71


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uma mudança que o jornal já vinha fazendo, mas, em parte também – e aí vem a segunda parte da resposta –, para forçar um pouco a própria redação, o próprio grupo a encarar o jornal de uma forma diferente. Então tem uma variável interna também?

Tem. Tem. O projeto, na sua própria configuração gráfica e editorial, já pede um título menos burocrático, um numerozinho, um boxezinho bem sacado, a valorização da foto, da edição da página (uma coisa mais hierarquizada que as outras). A própria configuração do projeto gráfico sinaliza para a redação que a gente quer determinadas coisas dela. E houve resistência ao projeto?

Não... A aprovação é geral, todo mundo do jornal acredita. É que também a gente manteve segredo até os últimos dias... Foi trabalhado entre nós, com o Chico Amaral. De propósito?

Sim. Claro que já sabiam de uma coisinha ou outra e tal, mas ainda não tinham visto a cara do negócio... Na hora que eles viram, acharam legal. Eu acho que a redação está sofrendo um pouco nesta primeira fase para a adaptação, porque é um projeto que envolve mais “bossas”. Tem um boxezinho, mas nesse boxezinho a fonte é diferente, tem três pontinhos, o texto é recortado e não justificado... Então, tem um pouquinho de dificuldade operacional. Mas eu acho que todo mundo gostou do projeto. E tem todo esse caminho para adaptar. Outro dia eu estava aqui no fechamento e havia um alto número de páginas com todas as matéria de abertura com o título em seis colunas. E a lógica desse projeto é o seguinte: nem toda matéria que está no abre [topo da página] vale as seis colunas que o abre pede – pode abrir em três, duas, quatro, em cinco. O próprio fato de você não ter sempre aberto em seis cria um jornal mais dinâmico para navegar. Este tipo de mudança a redação ainda está assimilando. Ainda tem também alguma coisa meio dura no texto. Outro dia tinha uma expressão... Sobre a economia argentina... Qualquer coisa como “Congresso ratifica pesificação”. Se você vai 72


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usar “pesificação”, já é melhor não usar o “ratifica”. Se vai usar “ratifica”, não usa “pesificação”. Muda esse negócio, sabe? Tem que reformular a frase. Isso afasta o leitor, mesmo o especializado sabe que aquilo pode ser escrito de outra forma, mais simples, com menos polissílabos... (risos). Foi o que eu falei, uma parte é o que a gente já tinha andado e não transparecia, mas outra parte era também ajudar a criar uma cultura nova. Porque um jornal de 129 anos tem vícios que às vezes as pessoas nem sabem que têm... Já que tocou no assunto da história, você acha que o afastamento dos Mesquitas dos cargos executivos foi fundamental para isso?

Foi. Eles... ... Vamos exagerar: se eles estivessem aí, não aconteceria a reforma?

Em uma perspectiva histórica, não. Por quê? É aquele ditado do chinês, “na crise está a oportunidade”. Foi preciso haver uma crise para que eles brigassem entre si e tomassem, eles mesmos, a decisão de profissionalizar a gestão, de se afastar e chamar um interventor que colocasse a empresa no azul. O nosso medo era que, uma vez que isso acontecesse (que a empresa entrasse no azul), eles quisessem voltar. Mas não voltaram. Foi acertado entre eles que, com exceção do dr. Ruy (Mesquita) – que fica como o “selo” da tradição, da credibilidade familiar, tal –, não voltassem e se profissionalizasse a gestão, se tivesse um CIO [Chief Information Officer, espécie de diretor executivo de negócios] que não fosse da família, se tivesse uma autonomia maior para o diretor de redação e seus respectivos diretores e tudo mais. Embora, claro, o Conselho (de Administração) esteja aí, todo mês eles se reúnem, a família continua a mandar. O jornal é deles, certo? É propriedade privada, não pública. Você também tem que ver que eles quiseram fazer isso. Não só para resolver a briga deles, mas uma vez resolvida a briga e posta a empresa no azul, eles começaram a não só aceitar que o jornal precisava sofrer uma modernização, mas a maioria começou a cobrar que houvesse essa modernização. Até porque a empresa precisava dar uma renascida. 73


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Por uma questão até comercial...

E a gente tinha muito medo de apresentar um projeto ousado, como é ousado... Bom, é ousado na medida em que pode ser, porque não se pode jogar fora 129 anos... É o “mudar sem mudar”...

É... Bom, isso é um pouco a versão deles. Porque mudou. Mudou sem ferir o patrimônio. Mas foi uma mudança mais profunda do que a gente imaginava que eles fossem topar. Aquele negócio: você chuta mais longe, onde chegar é lucro.

Foi exatamente isso. A gente fez o que queria fazer. Pensamos assim: “Vamos fazer o que a gente quer fazer, depois a gente vai tirando”. E eles aprovaram o que a gente quis fazer. Claro que tem um detalhe ou outro que eles pediram, e a gente aceitou alegremente (risos). Historicamente, quando forem contar essa história da reformulação do Estadão, obviamente ela envolve essa profissionalização que foi necessária para que o jornal criasse um espaço de trabalho para fazer uma reforma de verdade, e não um ajuste gráfico. Que é o que tinha acontecido 10 anos atrás, 15 anos atrás. Foram ajustes gráficos, e não coisas que foram mais fundo na cultura do jornal. E eu acho que dessa vez a gente está indo um pouco mais fundo na cultura do jornal. Você acha, então, que a reforma do Estado pode ser comparada a outras reformas históricas do jornalismo brasileiro, como a do Jornal do Brasil dos anos 50 ou à da Folha, nos anos 80/90?

Difícil dizer. O JB não mudou só o JB, mas todo o jornalismo brasileiro. A própria Folha, com todos os problemas que tem lá, mudou... Os próprios cadernos diários. O sucesso da Ilustrada, por exemplo, fez com que todos os jornais do Brasil lançassem cadernos culturais diários. O próprio Estadão foi lançar o Caderno2 em 1986... A Ilustrada já existia desde os anos 50, mas a Ilustrada que a gente conhece aí surgiu no começo dos anos 80. A partir dali, todos os outros quiseram ter caderno cultural diário. Mais cedo ou mais tarde isso aconteceria, porque aconteceu no mundo inteiro, mas de qualquer forma a Folha foi pioneira nisso, como em outras coisas.

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De tempos em tempos, o jornalismo precisa renovar sua linguagem, porque a linguagem escrita tende a ficar mais estável ao longo do tempo. A linguagem coloquial vai se renovando. Então, de tempos em tempo, “opa, peraí, estamos meio distantes da linguagem do leitor, vamos mudar isso”. O JB fez isso, assim como o Diário Carioca e o Correio da Manhã. Até então se dizia “o senhor Carlos Lacerda”, “o senhor Walmor Chagas”, e isso acabou. Houve a introdução do lead, o respiro gráfico... Periodicamente, tem atualizações nesse sentido. Até porque os jornais não são mais a única mídia escrita que existe. O que eu acho... Bom, eu não sei se o Estadão vai ter esse impacto na história como tiveram o JB e a Folha... Você acha, então, que foi mais um desses respiros de linguagem?

Acho que sim. O modelo praticado a partir do Projeto Folha, unânime hoje na maioria dos jornais, já estava desgastado?

Sim, já estava. Acho que neste aspecto, sim. No aspecto de você corrigir algumas distorções que as últimas mudanças no jornalismo brasileiro tinham causado. Nisso eu acho que a gente pode inspirar muitos jornais a tentar um pouco do que o Estadão fez. O que acontece? Foi o que eu falei. As reformas gráficas, em geral, como as da Folha, vêm em prejuízo do conteúdo; a favor da forma, mais colorida, com textos mais curtos e imagens maiores, e prejudicando o conteúdo. Quando eu estava na Folha, vivi muito isso. Essa época da Folha foi a dos anabolizantes [brindes, fascículos e promoções do jornal], em que não podia ter mais crítica na Ilustrada. Ou, se tinha, era uma coisa de 20 linhas num canto. E não podia mais assinar assim: “Inácio Araújo, crítico de cinema”; todo mundo tinha que assinar “Da reportagem local”. Não existe mais crítica, todo mundo é repórter! Eles combateram muito a opinião. O grande negócio desta reforma do Estado é que ela mexe no visual mas valoriza a opinião – você vê que a gente dá muito mais opinião, mais análise, mais “contra e a favor”, mais colunistas (como no Esportes, com colunistas todo dia) e mais produtos. Tem o Casa&, que é o caderno de decoração, 75


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o Aliás, o próprio Cultura aumentou, a Informática aumentou e virou Link. Houve um aumento no recheio e na embalagem. Em geral, no Brasil, quando se muda a embalagem, corta-se o recheio (risos). A gente mudou a embalagem, mas não cortou o recheio. Pelo contrário, recheou mais. Você disse que a reforma foi a continuação de um processo de modernização que o jornal já vinha sofrendo. Mas, depois dela, o que mudou no cotidiano da produção? Vamos falar no jornal de domingo, em que você atua mais diretamente.

O domingo é o pior exemplo, porque já estava num tom novo de certa forma. Já vinha dando matérias de comportamento... A família, os Mesquitas, o dr. Ruy, eles nunca gostaram de matérias de comportamento. Outro dia, a gente deu uma página inteira sobre pílula do dia seguinte, que virou moda entre a molecada. Mas isso não é só para o jovem ler, é uma coisa da vida social brasileira, mundial; os pais estão preocupados com isso. E eles (os Mesquitas) não gostam, acham que isso é assunto de revista, que, como não é hard news, não é importante, relevante. Mas é. Essas coisas ganharam importância na sociedade e são mesmo mais importantes do que se costuma pensar. A gente tenta fazer uma abordagem não-fútil, não-frívola, como as revistas muitas vezes fazem nessas áreas de comportamento e saúde. Mas, um pouco mais em termos práticos, no domingo o que já está mudando um pouco é... Por exemplo, a gente tem aquela faixa onde a gente chama aquelas imagens de pessoas recortadas. Só que aí não vamos colocar uma foto de uma pessoa só porque ela é bonita; vamos colocar uma pessoa interessante. Então, a gente pôs a Leandra Leal, que é a melhor atriz da geração dela, na TV com certeza, e o Tom Zé, que é um cara que tem o que dizer. E que bonito não é...

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Sim, não é bonito. Longe disso (risos). A gente agora tem que mentalizar um pouco a produção destas personagens. O jornal está um pouco mais personalista, mas eu acho que no bom sentido. As matérias falam muito mais de gente, tem mais perfis, mais gente, mais personalização. Se for fazer uma matéria de economia, tem que ter um personagem. Eu acho que isso é uma coisa que o projeto abriu e vai reforçar. Já vinha acontecendo. E isso é uma tendência no jornalismo como um todo?

Acho que sim, acho que sim... É difícil hoje não individualizar a coisa, não colocar um personagem... A gente estava fazendo uma matéria agora, por exemplo, sobre essa onda de brechós e pontas de estoque que tem em São Paulo. A cidade virou capital da moda e existe um esforço para que essa moda não seja só para quem pode pagar. Então, é legal, são brechós, pontas de estoque que a mulherada de classe média está indo atrás. E o que nós fizemos? Pegamos alguns estilistas (Jum Nakao, Thaís Losso) e levamos essas pessoas para os brechós. É um truque de usar uma pessoa famosa? É. Mas essa pessoa também não é famosa à toa, é famosa porque faz um trabalho bom na área dela. E ajuda a humanizar, no sentido de que não é uma conversa em abstrato, entendeu? Foi alguém que falou. E com uma pitada de entretenimento também. 77


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É fazer um jornal mais agradável, sem virar as costas para os problemas da realidade. Não dá para fazer, hoje em dia, com tanta mídia, um jornal que só dá má notícia. A Folha chegou ao ponto de criar uma seção chamada Boa Notícia, na primeira página. Lembra daquilo? Não faz sentido. As pessoas querem ler um jornal com política, economia, crime, etc., mas também com um caderno de esportes legal, com opiniões, fotos, querem um Caderno2 simpático, suplementos... Agora todos os dias temos um suplemento. O caderno Vida&, concebido por mim, é o seguinte: tinha a Geral, que falava de tudo, inclusive justiça, religião, questão agrária. O nome Geral já falava isso: “o que não é nada, é Geral”. Pronto, ia para lá. Se não é política, economia, esporte ou cultura, é Geral. E ainda a Geral pega a cultura na segunda edição, porque o Caderno2 fecha mais cedo. Então, Geral falava de tudo mesmo. E a página era completamente balcanizada, o que batia de frente com o projeto, que colocou uma página mais limpa. Então, qual foi a idéia? Um caderno sobre vida, sobre ciências da vida. Vai ter ciência, tecnologia, saúde, medicina, comportamento, educação, bem-estar. Tem agora as páginas temáticas, colunistas falando de meio ambiente (o Marcos Sá Corrêa), de ciência (o Fernando Reinach). São gente de altíssimo nível. E escrevendo em uma seção com um foco muito mais definido. Eu acho que uma das coisas mais simpáticas desse jornal novo é o Vida&. Porque ali não é o crime, não é o político e não é o índice de inflação. Mas são assuntos que dizem bastante à respeito do seu dia-a-dia, mais do que esporte ou cultura de certa forma. Outra coisa legal foi a idéia, que também eu, o (Roberto) Gazzi e o Sandro (Vaia) conversamos muito, de que Economia não pode ser só o índice de inflação que Brasília divulga, a entrevista do (ministro da Fazenda, Antonio) Palocci, a cotação 78


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do petróleo. É só macroeconomia oficial... Não! Temos que fazer um caderno que fale da vida econômica, de business, de negócios, de gente que faz negócios, de gente que cria produtos. Então a gente criou a seção Negócios, que também tem suas páginas temáticas, inclusive de carreiras, onde se personaliza também. É uma tendência essa coisa de personalizar. A questão é como você assimila essa tendência em um jornal que tem a respeitabilidade do Estadão. Mas eu acho que a gente está conseguindo. Quero falar um pouco da Urbana agora. Mas não se preocupe que quando esta entrevista for publicada, já vai ter sido lançada...

Não, não, a Urbana é segredo.... (risos) 79


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Vou fazer uma pergunta para você caracterizar a revista. A Urbana vai vir para competir com a Revista da Folha ou com a Veja?

Com as duas e com nenhuma... (risos). Talvez mais com a Vejinha (Veja São Paulo) do que com a Veja... Alguma coisa que o Aliás tem já é para brigar com as revistas, que têm a capacidade de sintetizar um pouco a semana e dar a coisa mastigada para o leitor. Aí coloca a foto da semana, a frase da semana, o sobe-e-desce; as pessoas gostam desse negócio, todo mundo lê isso, do Antonio Candido ao faxineiro... Mas a Urbana vem para pegar uma área que o Estadão não tinha tradição em dar, vem começando a dar no domingo, e que a revista vai consolidar de vez: moda, design, arquitetura, comportamento, um pouquinho de saúde, ginástica. São coisas que o jornal vem aprendendo a fazer. Arquitetura, por exemplo, é uma coisa que eu acho que os jornais brasileiros ignoram, inclusive as revistas semanais. Arquitetura, urbanismo e design... Daí vem até o nome, Urbana. Primeiro que é feminino e segundo que é uma revista sobre vida urbana. Isso não impede que a gente fale de uma guerra, plantação de soja ou alguma outra coisa. Mas a gente quer falar de vida urbana, das coisas que as pessoas estão precisando pensar em uma cidade. Também é um espaço em que vai ter gente, vai ter entrevista. A gente tem um número zero [edição piloto produzida para “testar” o projeto] aí já feito com a Cláudia Abreu na entrevista principal, outra com a Débora Falabella. Quer dizer: pessoas interessantes, mas que fazem trabalhos de qualidade, naquela mesma linha. A revista vai ter mais reportagens, mais perfis e mais autonomia em relação ao jornal. O que acontece com a revista do Globo (Revista da TV) e com a Revista da Folha? Estão mais para suplementos do jornal do que para revistas com uma identidade própria, uma maneira própria de ver o mundo. Elas complementam o jornal. Tem lá umas colunas, em geral de comportamento, crônica, etc., e umas materinhas de moda e gastronomia. Mas é uma cara de suplemento. A Urbana vai ter cara de revista mesmo. O aspecto físico, o cardápio de assuntos e um certo registro. Não vai ser uma revista sofisticada, mas vai ser um degrau a mais de sofisticação do que a da Folha e a do Globo. Ao mesmo tempo, não é uma revista de domingo, porque não é noticiosa como 80


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a Veja, e nem uma Vejinha, cujo forte é o roteiro. Nosso forte de roteiro é na sexta-feira, com o Guia. Mas ela, em termos de anúncio e leitura, vai brigar um pouco com essas duas, porque vai trazer não só mulheres, mas também homens que gostam de ler sobre design, moda, etc. Ao mesmo tempo é uma revista, aquela coisa que tem a relação da revista (a pessoa pegar, ficar lendo ao longo da semana, com reportagem e um perfil maior, etc.). A Urbana está ficando muito legal. Eu acho que o grande trunfo dela – assim como o grande trunfo da reforma é ter mexido na embalagem enriquecendo o conteúdo, e não empobrecendo – vai ser colocar um novo modelo de revista de domingo de jornais no Brasil. Porque no país as revistas de domingo são suplementos, em geral dedicadas só a esses assuntos de uma forma até meio frívola. E a gente, não. Vamos fazer uma revista de domingo no padrão que você encontra na revista do El País, na New York Times Magazine, na revista do Le Monde Diplomatique, quer dizer... Uma revista bem recheada. E não uma coisa fraquinha, ali, só suplemento. Pra terminar, a última pergunta. Para sair um pouco do assunto, vamos falar de esporte (se bem que esporte também é cultura)... Você já tinha feito jornalismo esportivo antes?

Bom... Fiz. Tenho até um livro sobre futebol, o Ora, Bolas. Desde que a minha coluna Sinopse existe (foi criada em 1996 na Gazeta Mercantil) eu falo de futebol nela. Depois, durante a Copa de 1998, eu fiz uma coluna dia sim dia não na Gazeta Mercantil, no caderno São Paulo, sobre a Copa do Mundo. Depois, quando eu vim pro Estadão, continuei escrevendo a Sinopse e comecei a fazer muitas matérias no caderno de esportes. Fiz o perfil do Zico, do Pelé, do Sócrates, fiz muitas matérias para o Esportes, principalmente no período em que eu fiquei como repórter especial, em 2001. Depois, em 2002, eu fiz um diário da Copa. Eu iria para a Copa, mas acabei não indo porque minha segunda filha nasceu. Mas fazia o diário, uma coluna todo dia, ao lado da coluna do Veríssimo, no caderno de Copa do Mundo. Agora é que eu comecei a ter uma coluna só para futebol, independentemente de ser Copa ou não. Mas aí, qual é a idéia, que é um pouco também o fato de ter uma coluna do (Luiz) 81


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Zanin, do Nando Reis, do Ugo Giorgetti? É tirar o esporte da exclusividade do comentarista especializado. Primeiro que o índice de especialização já é uma coisa confusa em futebol. O que você vê de comentarista que age como torcedor é impressionante (risos)... Segundo que o cara está ali há tantos anos naquela área que termina pegando os vícios. Como o crítico de cinema pega os vícios da crítica de cinema e assim por diante. A idéia é essa. Pelo menos no meu caso, o que eu tento muito fazer é levar um olhar um pouco cultural para o esporte. Eu não vou falar só de como o craque jogou ontem, mas também de como a sociedade vê aquele craque, para o mal ou para o bem. Não vou falar só se o esquema 3-5-2 é melhor que o 3-4-3, mas sim como é a idolatria (como na coluna de ontem) das crianças em relação ao futebol e aos atletas globalizados de hoje. Então, eu quero ficar no meio termo entre o comentário esportivo estritamente dito e um comentário mais simbólico, mais cultural, mais perspectivo. Eu fui a primeira pessoa a dizer que o Ronaldo voltaria a jogar em um nível alto, talvez não igual ao do Barcelona, mas um altamente competitivo, de ser um dos melhores jogadores do mundo, como voltou a ser. Fui fazer uma Boleiros – Esportes matéria, mas estava completamente desarmado. Fui como alguém que admirava o jogo dele e que queria ver como ele estava fisicamente. E eu cheguei lá e ele tinha mais força na perna que tinha sofrido a cirurgia do que na outra. Eu assisti a um joguinho dele de final de tarde, mas superdisputado (sete contra sete e tal), o cara absolutamente com todos os movimentos possíveis. O meu desarme me permitiu acreditar que ele voltaria, quando todo mundo falava “o Ronaldo é fruto do marketing, agora que está bichado então”, “se já não era grande coisa, imagina agora”. E o erro era duplo. Primeiro que ele era grande coisa – o cara é artilheiro de Copa do Mundo, fez oito gols numa Copa do Mundo, é um dos maiores jogadores brasileiros surgidos desde o Zico. Segundo porque a fisiologia esportiva melhorou muito – ele foi operar com um papa desse negócio 82


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de tendão patelar. E ele demonstrou uma tremenda vontade, uma força de caráter, etc. para voltar a jogar. Então, esse meu desarme de não-especialista, embora eu conheça, estude futebol e jogue desde moleque, permitiu-me enxergar a coisa que os outros não estavam enxergando. Então o que é fazer jornalismo esportivo hoje? O Estadão está tomando um rumo diferente?

O Estadão está tentando tomar um rumo... A opinião cresceu muito. Hoje não tem transmissão esportiva que não tenha um comentarista junto. Até comentário de arbitragem, que aliás é uma coisa exclusiva do Brasil. Antigamente, nem toda transmissão tinha um comentarista junto, nos anos 80. Outra coisa é que, nos jornais, cresceu muito a importância de dar uma bela foto. A qualidade das fotos melhorou muito. Quem viu o jogo pela televisão ontem não vai querer ver uma foto feia, em preto e branco, pequena no dia seguinte. Mas eu acho que ainda tem que avançar na crônica do jogo do dia anterior, que fica muito assim “ah, o Corinthians ontem não jogou bem, o seu craque Fulano de Tal esteve apagado e papapá”. Falta olhar um pouco mais o futebol sem cair muito no modismo do “craque do momento”, do “perna-de-pau do momento”. A cobertura do futebol é muito viciada, aquele cara que vai no São Paulo ver o treino todo dia, aí vê tudo pelo prisma do São Paulo e nem sabe que faz isso. É uma cobertura ainda muito clubística, burocrática, muito do dia anterior. E aquela coisa: cada semana tem um herói... Não existe isso. Tem heróis e heróis, tá certo? (risos) Tem o herói do jogo que é aquele cara que sem querer fez um gol de canela aos 40 minutos do segundo tempo. E tem herói que é o Ronaldinho Gaúcho que resolve um Barcelona contra Milan, com uma jogada linda... Acho que o esporte precisa ganhar essa riqueza de percepção. O texto tem que ser mais inteligente, sem abandonar o jargão ou escrever de forma editorializada, empolada, longe disso. Pelo contrário, quanto mais descontraído, melhor. Mas tem que ter inteligência, tem que ser um olhar mais inteligente, menos de torcedor ou aquela coisa especializada.

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DANIEL PIZA

ENTREVISTA ROBERTO GAZZI, EDITOR-EXECUTIVO

Roberto Gazzi foi o mais acessível dos entrevistados. Sim, talvez não gostasse de minhas insistentes interrupções, mas o fato é que seu bom humor e tesão se destacam entre os que ocupam funções equivalentes na imprensa escrita brasileira. O editor-executivo com quase 30 anos de Estado me recebeu na tarde de segunda-feira, dia 22 de novembro, com um sorriso no rosto. Depois de tanto importuná-lo com questões burocráticas da execução do livro, chegara a hora de falarmos sobre coisas boas. 85


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Vamos começar falando do jornal antigo. Ele era “inadequado”? Tinha uma fórmula superada?

Não sei se chamaria de “inadequado”, é uma palavra complicada... Ele tinha alguns problemas de envelhecimento. Veja, o Estado é o jornal mais tradicional do país, então ele é, e continua sendo, um reflexo dessa história de quase 130 anos e da evolução que veio tendo com o tempo. Mas chegou a um ponto em que nós tínhamos muita dificuldade de fazer alguns avanços de algumas coisas que queríamos. Não que fosse um jornal superado, antiquado. Era um bom jornal, continuava sendo super-respeitado, com ótimas coisas. Mas tinha alguns problemas. Um dos maiores não era nem tanto a feiúra ou beleza gráfica, mas era que nós estávamos vendo que no projeto antigo não tínhamos mais como conseguir destacar algumas coisas boas que o jornal tinha mas que, em razão do envelhecimento do projeto gráfico, não conseguíamos dar visibilidade. Acho que esse era o principal problema que identificávamos, de querer destacar alguns conteúdos que o jornal já tinha, mas não conseguir porque, enfim, não tínhamos formas gráficas para fazer isso. Você acha que tem um período ideal para se reformular um jornal? Algo como de “10 em 10 anos”, ou de “5 em 5”? Ou a mudança tem que ser constante?

É, não existe esse tempo mágico de transformação do jornal. Acho que depende muito da característica de cada um, da evolução da própria comunicação. Nos últimos anos, com a internet e toda a vida digital, evidentemente houve uma mudança nos hábitos das pessoas, de como elas pegam a informação, de como isso está visualizado. Então, nesse sentido, a necessidade de mudança foi mais cristalina nos últimos anos. Mas, insisto: depende muito de como está o seu jornal, de como você fez a mudança dele. O ideal é que sempre, paulatinamente, se faça alguma mudança. Quanto mais imperceptível, me parece que é melhor. Principalmente para um jornal como o Estado, que é tradicional de leitor continuado, que não tem a preocupação de vender em banca, que é lido todo dia por 80% dos seus leitores. Jornal é hábito, as pessoas gostam de encontrar aquilo 86


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que elas gostam sempre no mesmo lugar, até para facilitar sua vida e a leitura do jornal. Então, quanto mais você conseguir mexer imperceptivelmente, se ajustando às novidades editoriais que eventualmente você tenha, melhor. Melhor do que uma ruptura muito grande que choque ou que mexa muito com o leitor. O Alberto Dines é um dos que defendem a mudança lenta para, em um período longo, estar totalmente diferente. Mas o Estadão optou claramente pela fórmula de amanhecer diferente. Por quê? Isso é Chico Amaral (que fez o mesmo no Correio Braziliense)?

Não, não. Aí foi circunstância. Uma das nossas preocupações era justamente diminuir ao máximo o estranhamento do leitor. Nós sabíamos que ia haver um impacto muito grande, que o jornal ia mudar muito visualmente. Mas queríamos preservar algumas características que eram básicas do jornal préreforma: credibilidade, textos parrudos sem muita preocupação de cair em alguns modismos como textos muito curtos... O objetivo era manter tudo aquilo que o jornal sempre teve de bom e que é reconhecido pelos seus leitores. Por uma série de circunstâncias, o jornal tinha ficado muito tempo sem fazer essas mudanças imperceptíveis. Ou as que nós tentamos fazer não deram certo, porque o projeto já estava muito defasado. Chegamos a tentar fazer algumas tentativas de mudanças. Não que não tenham melhorado o jornal, mas não no nível que nós gostaríamos que tivesse ocorrido. Então, chegamos a um ponto em que sabíamos que tínhamos que quebrar alguns paradigmas do antigo projeto – ou seja, não daria mais para fazer reformas e mais reformas imperceptíveis. Tínhamos que chegar a um break-point ou a um turning-point. É muito difícil. Pensamos muito, discutimos muito se valia a pena, se não iríamos causar um certo estranhamento. Mas chegou uma hora que vimos que não teríamos como fazer o que gostaríamos, o que achávamos que o jornal tinha que ser, sem romper com aquele padrão anterior. Embora boa parte do jornal hoje continue igual. A tipografia, por exemplo, que é uma das partes mais reconhecíveis, continua exatamente igual. Não mudamos a tipografia, que é uma coisa que o leitor estranha muito.

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Você acha que esse equilíbrio do “mudar sem mudar”, anunciado no editorial do primeiro dia, foi satisfatório? Pensando já com o feed-back dos leitores, você acha que a mensagem ficou clara?

Acho que sim. Não tem nenhuma pesquisa qualitativa ainda, mas a percepção é de que todo mundo achou que o jornal não mudou e ganhou em qualidade. A gente conseguiu fazer com esse projeto nosso principal objetivo: mostrar que o jornal tinha muita coisa boa, diferenciada, e que a gente não conseguia mostrar naquele projeto. Com o novo, tudo isso apareceu. Tanto que uma das reações mais comuns é as pessoas fa-

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larem “pô, o jornal tem hoje muito mais informação do que tinha antes”. E não tem! Continua tendo mais ou menos a mesma quantidade de informação. O que acontece é que hoje é muito mais visível. Tem muito mais foco de atenção, algumas seções foram criadas, alguns recursos gráficos que estão sendo utilizados hoje é que acabam dando visibilidade àquelas informações que antes estavam meio perdidas no texto e tal. Acabam até dando essa impressão de que o jornal tem hoje muito mais informação do que tinha. E como é produzir um jornal diferente de um dia para o outro? Muda muita coisa no dia-a-dia ?

Ah, muda. Muda... Dói? Não pela pena, mas pelo esforço de pensar dentro de uma outra lógica?

É um esforço supergrande. O jornal vive uma rotina sem rotina. Cada hora a gente está tratando de um assunto novo. Em razão do processo industrial, acabamos fixando rotinas pra conseguir fechá-lo [fechamento é o termo utilizado nas redações para definir o momento da conclusão da edição]. Esse é o desafio de todo dia: conseguir fechá-lo. E é muito difícil fazer o jornal. Há muitas coisas soltas no dia-a-dia, ao contrário de um processo industrial mecanizado em que você sabe exatamente quais as etapas que tem que cumprir, e só tem que agir nas emergências ou nas coisas anormais. O processo de feitura do jornal é anormal todo dia. O que acontece? Pra conseguir juntar esse caldo diário, precisa ter uma rotina muito planejada, muito complexa. Enfim, precisa saber lidar com todas essas variáveis de conseguir ir juntando todas aquelas peças, para seguir fechando todas as páginas e chegar naquele horário do fechamento e conseguir, então, colocar o jornal na máquina. Nesse sentido, quando houve a mudança do projeto, boa parte dessas rotinas tiveram que ser alteradas. Tem que tratar a pauta, a reportagem de uma outra forma, porque tem que destacar algumas coisas. Isso exige que o repórter passe a ter uma preocupação que antigamente não tinha. Você tem que se preocupar em fazer um novo desenho de página em relação ao que você estava acostumado. O fechamento é completamente diferente, os comandos, a forma com que você digita. 89


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A forma com que você vai colocando todos os elementos na página mudou de um dia pro outro. Isso é alteração de rotina, é o pior ambiente. Tem que se replanejar pra conseguir transformar essa nova rotina em algo conhecido por todos. O aspecto operacional talvez seja a maior dificuldade realmente. E é do que a redação mais reclama. Você acha que essa estratégia de abrir o projeto para os jornalistas apenas há duas semanas da veiculação foi legal? Não deixou o processo mais traumático para a redação?

Não foi bem isso que aconteceu... Na verdade, o que aconteceu é que nós tivemos que fazer uma coisa contra o tempo. Por uma série de razões editoriais, comerciais, de circulação, de mercado publicitário, nós tínhamos um dead-line para o lançamento do projeto. E nós fomos definindo coisas. A partir do primeiro projeto que foi apresentado, pedimos uma série de mudanças, de ajustes, que eram basicamente pra tentar diminuir o trauma da mudança inicial. Basicamente era isso, sempre no sentido de tornar aquele choque menor. E também outros ajustes, alguns ajustes em seções novas, ou cadernos novos, como o próprio Aliás, que fomos evoluindo no final em cima do projeto dele. O que aconteceu é que no final foi mesmo corrido. Nós deveríamos ter tido um tempo... Era melhor se tivéssemos tido um tempo melhor para treinamento, conhecimento do projeto por parte de todos. Teria sido bem melhor. Mas no fim fizemos o que foi possível de ser feito dentro do prazo que tínhamos. Se teve esse impacto negativo pelo tempo pequeno, muita correria no final pra fazer um treinamento desses comandos, por outro lado teve um aspecto positivo. O impacto da mudança, do inusitado, das coisas novas que tinham, foi muito grande. Tanto no mercado leitor e publicitário quanto aqui na própria redação. As pessoas ficaram impactadas positivamente, e isso foi muito importante para a implantação do projeto, para ele ter dado certo do jeito que deu. As pessoas na redação ficaram entusiasmadas com o resultado da mudança, gostaram, vestiram a camisa, se esforçaram em aprender os comandos. Esse pouco treinamento evitou aquela sensação de déjà vu que às vezes acontece quando se treina muito, 90


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vem vindo e quando entra na mudança aquilo já está tão conhecido, tão na cabeça que... já é rotina. Essa saída da rotina, embora com todos esses problemas e dificuldades de fechamento, que foram gerados por essa falta de tempo, de outro lado foi um pouco compensada por essa disposição, essa alegria de estar fazendo uma coisa que a pessoa via que era legal, diferente, bonita, melhor do que estava fazendo antes. Então, se esforçou para dar tudo certo. Não teve nenhuma resistência interna, de nenhum setor?

Não, que eu saiba, não. Olha... Se teve, foi pouquíssima. Eu senti uma certa sensação generalizada de que tinha mesmo que mudar, isso era um jogo de carta marcada. Muita gente falava isso, que estava demorando demais. Tinha uma certa sensação de que era preciso, de que era uma coisa precisa... E também teve muito a reação das pessoas dizendo que gostaram. Eventualmente, um ou outro resistente pensou “será que é isso mesmo?”, mas acabou não se manifestando... (risos) Em relação aos leitores também aconteceu isso. Alguns reclamaram: “Por que mexer em time que está ganhando?” – essa acho que foi a principal reação. Mas foi muito menor do que as manifestações de parabéns: “Legal, tem coisas novas”, “o jornal ficou mais moderno”, etc. E ficou mesmo. Continua o Estadão tradicional, só que um Estadão moderno, dos novos tempos, antenado. Como algumas pessoas disseram, pode ser colocado lado a lado a qualquer grande jornal do mundo. E muita gente falando “pô, fiquei orgulhoso do meu Estadão”, o que é uma coisa muito importante. O jornal como produto é uma das coisas mais – se não a mais – difíceis de serem feitas e mudadas. Ao contrário de outros produtos, muitos deles importantes – sabonete etc. –, o comprador, o cliente tem com o jornal uma relação completamente diferente. Uma relação de amizade, aquela coisa meio que uma pessoa da família, que dificilmente você tem com outro produto. Para aquele outro produto, basta que funcione, que seja bom, barato, enfim... Com o jornal não acontece isso. Tem outras qualidades e outros defeitos que levam você a gostar ou não daquele título, daquela publicação. A principal alteração editorial, excluindo a parte gráfica, foi a 91


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proposta que foi até para o logotipo “muito mais vida em um jornal”. O principal agente pra isso foi o Vida&, que procura se aproximar bastante da realidade. Você acha que hoje isso é um diferencial que o Estadão tem ou apenas uma adequação?

Acho que são os dois pontos. É uma diferenciação no sentido de ter um produto nova – seja o Vida&, seja o Aliás, seja algumas seções do Metrópole, que tenta aproximar muito mais o jornal do dia-a-dia do leitor; principalmente do leitor de uma metrópole como São Paulo, em que as relações tendem a ficar cada vez mais impessoais, em que se tem cada vez mais problemas, em que se precisa cada vez mais de ajuda pra poder viver. Para, enfim, conseguir navegar no dia-a-dia de uma grande cidade como essa. Acho que os outros jornais tentam, mas não no nível que o Estado colocou. E além do que foi mesmo uma adequação a essa necessidade que nós sentimos de estar mais próximo do leitor e fazê-lo enxergar isso. Enxergar que o jornal está preocupado não só com as grandes questões políticas e econômicas nacionais, que continuam sendo o grande ponto do jornal como sempre foi, que continua sendo um jornal noticioso (que noticia aquilo que a gente acha que é importante, em todas as áreas da vida da cidade, da vida do Estado, da vida nacional e da vida internacional), mas passou a dar uma coisa que tinha dificuldade de fazer: essa aproximação de temas mais do dia-a-dia das pessoas, da cidade, do país. Acho que isso foi mesmo um dos grandes diferenciais, um dos grandes saltos do jornal. Como o jornalismo é coletivo, plural, tem aquela coisa da negociação para qualquer produto que se vá elaborar. Tem algo na reforma que você gostaria que fosse diferente, pessoalmente falando?

É... Isso é normal... Tem alguns elementos que estão demais ainda. E estão faltando outros, mas... Nada que você possa falar... (risos)

Não, não... (risos) Eu sempre defendi, por exemplo, que a gente fizesse o Guia de sexta-feira como acabou sendo feito. Mas ao mesmo tempo eu imaginava que a gente podia ter um guia mais elaborado no dia a dia. As pessoas procuram muito 92


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filmes de TV, cinema pelo país inteiro, peças de teatro, que em São Paulo começam na terça mas também em alguns outros lugares já começam na quinta. Há uma certa ebulição cultural e uma necessidade, uma procura por isso cada vez maior. E eu imaginava que a gente poderia então ampliar esse espaço, e por razões industriais, etc. acabou não saindo nessa primeira parte da reforma. Estamos sempre afirmando que, na verdade, isso aqui é o início de um processo de mudanças. Vários ajustes já foram feitos nesse um mês e pouco de projeto, ajustes em cima de algumas reclamações de leitores, em que eles tinham razão – a legenda estava um pouco menor, tiveram alguns ajustes com formatos de letras que não estavam muito adequados, seções tinham sido prejudicadas e a gente voltou atrás, outras tinham sido um pouco superdimensionadas e nós recuamos... Esse processo já é normal ao dia-a-dia de qualquer jornal. De um jornal que passou por uma mudança um pouco maior, como é o caso do Estado, claro que esse processo exige mais cuidado e tem que ser feito com mais presteza ainda. Ainda é um processo de ajuste, fora o fato de que é realmente um primeiro passo de uma mudança maior, que a gente pretende que passe a ser daquela forma que achamos ideal, a mudança imperceptível, ou o mais imperceptível possível. Esse agora é o nosso desafio daqui pra frente. Está mais gostoso, dá mais tesão fazer o Estadão agora?

Com certeza, com certeza... Não que não desse antes. A feitura do jornal exige isso: você tem que querer fazer, descobrir uma notícia, fazer uma boa edição de uma página, aquela sacada, aquela frase que estava perdida e você conseguiu valorizar... O que nós tínhamos era muita frustração de querer fazer uma coisa dessas e não ter meios. Nós vivíamos isso, eu vivia muito isso na primeira página, que é o que eu mais faço no dia-a-dia, além de todas as outras minhas funções de operação da redação, que também está muito na minha mão. Mas eu sentia muita dificuldade na primeira página. Nós queríamos fazer alguma coisa diferente e o projeto era tão amarrado que não conseguíamos. Ou tentávamos fazer diferente e saía de uma forma que não ficava muito adequada.

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Nesse começo de mudança, a dificuldade que a redação está tendo nós estamos tendo na primeira página. Estamos fazendo muito mais tensos, visivelmente, ainda até hoje, com uma tensão maior, porque são novas regras, não sabemos exatamente o que pode e o que não pode, o que fica bom e o que não fica. Mas toda vez que conseguimos desenhar aquela página que acha ideal, ou consegue fazer uma coisa diferente, que fica bonito, ou que fica agradável ou mais informativo, é um prazer danado. O jornal está bonito. E conseguir fazer um jornal mais bonito dá mais prazer, com certeza.

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ROBERTO GAZZI

O ESTADO DE S. PAULO ANALISTAS

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DI FRANCO

ENTREVISTA DI FRANCO, JORNALISTA

A cada 15 dias, o leitor do Estadão tem o prazer de ler um artigo do jornalista Carlos Alberto Di Franco. E não são muitos os que ocupam a área nobre da página A2. Professor de Ética Jornalística e coordenador do Master em Jornalismo para Editores, curso que a Universidad de Navarra mantém no Brasil, Di Franco é responsável pela formação de muitos dos grandes jornalistas do país. Uma conversa rápida no Estado foi suficiente para avaliar o novo projeto, criticar a imprensa e eleger o melhor jornal brasileiro. 97


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Quando, em 1993, o jornal colocou a cor azul no logotipo, na última reforma gráfica antes dessa, a Folha veiculou um comercial ironizando. Era um senhor todo certinho, formal, mas com o cabelo azul. Essa metáfora da “velha de mini-saia” serve também para o projeto novo?

Acho que não. Assim como o anterior foi de fato muito mais um adorno do que uma reforma, acho que o projeto novo do Estado é uma reforma com cabeça, tronco e membros. Quer dizer, não é uma reforma parcial. É uma reforma que contemplou o jornal como um todo, que introduziu novos cadernos. O Link não existia, era outro caderno de informática. O Aliás não existia, no fundo é o “arrevistamento” do jornal no domingo (dar um formato e um conteúdo de revista para um leitor carente desse tipo de produto no domingo). Toda a concepção gráfica tem uma claríssima finalidade de facilitar a leitura do jornal. Então me parece que é efetivamente um projeto gráfico bem pensado, bem bolado, bem articulado. O que é importante é que esse projeto gráfico seja sustentado com um processo de mudança e de melhoria de qualidade do conteúdo. Você acha que essa reforma veio para começar a tal revolução dos conteúdos que você defende?

Começa a haver sintomas disso. Mas é preciso aprofundar.

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O que é preciso para se chegar nisso?

A "revolução nos conteúdos" é um dos itens do que Di Franco considera o

Nos dois últimos domingos, Decálogo da Qualidade no jornalismo: por exemplo, tem havido 1. Humildade, coragem, prudência 2. A revolução nos conteudos algumas entrevistas muito 3. O diálogo com o leitor real 4. Investir na leveza formal boas. Paulo Vanzolini, que 5. Revalorizar a reportagem foi a primeira entrevista... 6. Privilegiar a informação local 7. A hora da ética Quer dizer, são entrevistas 8. Investir na formação permanente 9. Independência: chave da qualidade importantes, de fundo. Eu 10. Imaginação no poder acho que o jornal tem investido muito mais em reportagem. Eu acho que o Estado tem que recuperar o que ele tinha no passado, e hoje perdeu um pouco, que é a reportagem investigativa. O Estado tem reportagens memoráveis, como a “república socialista do Brasil”, que foi toda uma análise feita pelo Estado e pelo Jornal da Tarde sobre o crescimento tremendo das estatais, já que no fundo o Brasil era um país socialista sem saber, na fase da estatização das empresas. É preciso investir muito no jornalismo investigativo, na reportagem. O leitor está pedindo. Nós temos que fugir deste jornalismo de registro, oficialista, e partir para passar a vida para o leitor. A vida como ela é e não a Aliás Estado vida oficial, abstrata. (17/10/2004) Você acha que faltou à reforma algum elemento de crítica interna, ombudsman ou ouvidor?

Eu acho que falta. Falta criar núcleos de discussão do jornal. Não núcleos de planejamento, que já existem. Mas núcleos de discussão a posteriori. Saiu o jornal de hoje, beleza, vamos ver que jornal nós pusemos na rua, o que foi bem, o que foi mal, por que foi mal, quais as providências podemos tomar... Normatizar tudo isso, não começar cada dia do zero. Se você traduz os 99


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erros, e também as coisas positivas, e redige num pequeno papel, num documento, é óbvio que você vai conseguir utilizar os recursos. Amanhã você vai fazer uma coisa com uma experiência que já tinha adquirido e que está consolidada num texto. Isso é não um problema só no Estadão, mas na imprensa como um todo. A imprensa está muito preocupada com o fechamento, com o planejamento daquele dia, mas muito pouco preocupada com a reflexão crítica do produto que está levando para o leitor. Falando no jornal como produto, para onde nós estamos caminhando? Já sabemos que o conceito de veículo de massa já não serve já há certo tempo, desde que a televisão começou a se popularizar. Caminhamos para uma elitização clara. Como vai ser um jornal daqui a alguns anos?

Eu acho que vai ter [jornal], e acho que um jornal com o perfil do Estadão, focado em classe A e B fundamentalmente. Tem que cuidar extremamente bem deste público. É um público qualificado, educado, crítico. Então, tem que ser feito um jornal com mais qualidade, com reportagens, com matérias mais analíticas e, por que não, pensar em desenvolver um certo jornalismo de antecipação. Você tem que dar e continuar dando os fatos e a informação (a televisão dá, o rádio dá, etc.). O leitor do jornal quer o que não saiu na televisão, quer uma informação um pouquinho mais apurada. E isso agrega leitores. O The New York Times teve um crescimento significativo de leitores, que não liam o NYT e passaram a ler, que eram leitores do jornal na internet. Os caras ficaram interessados em aprofundar aquelas matérias que saíam na internet e passaram a comprar o jornal impresso. O que significa que, quando um produto é realmente bem feito, agrega leitores. Eu acho que, no fundo, o que é fundamental a partir desta reforma gráfica é nós todos nos convencermos de que temos que parar de dizer que a perda de leitores se deve à internet, à televisão, ao mundo audiovisual, e devemos perguntar-nos: será que estamos oferecendo um produto qualificado para o nosso leitor? Será que ele não está se afastando porque o nosso produto não é bom, porque nós não surpreendemos o leitor em cada edição?

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Você costuma comentar que o leitor não quer ver tanta opinião no jornal. E o Estadão valorizou bastante isso: mais colunistas, principalmente no Esportes, o Cultura de domingo é bem analítico, o Aliás acaba tendo artigos de opinião. Você acha que isso foi ruim?

Não. Quando eu falo sobre opinião, é o seguinte: o que o leitor não quer é postura opinativa no noticiário. Ele gosta da opinião, de colunistas, mas o que não gosta é que a opinião, de uma maneira clara ou disfarçada, esteja inserida no noticiário. No noticiário ele quer informação bem apurada, bem escrita, quer que o jornalista não troque bilhão por milhão. Veja um exemplo de como os jornais deixam passar erros de uma maneira assustadora (não foi o Estado). O título da matéria me chamou a atenção, eu li, e não é aceitável porque o erro saiu no título, no subtítulo e no corpo da matéria (portanto, três vezes): “o Museu do Prato, na Espanha”, em vez de Museu do Prado. O editor leu e passou. O subeditor leu e passou. Passou por todo mundo! É feio, não é? Há jornalistas no Brasil que defendem o fim do gênero reportagem no jornalismo brasileiro. Inclusive o Ricardo Kotscho já veio a público para dizer que acabou. Quais as razões para isso, já que é claro que o leitor é muito atraído por elas? E qual a solução prática? É preciso contratar? O que mais?

O argumento é que a reportagem está desaparecendo, em grande parte porque supõe mais custos, etc. Mas eu acho o seguinte: a gente tem que ser muito objetivo. Nós queremos que haja crescimento, que haja circulação (porque de alguma maneira até a sustentabilidade dos veículos depende dos anunciantes, e o anunciante anuncia quando há circulação – ele quer conversar com muita gente). Ora, se os leitores, em todas as pesquisas de opinião, demonstram um interesse pela reportagem e se, realmente, tradicionalmente sabemos que a reportagem eleva o nível de interesse dos leitores, é uma análise custo-benefício: vale a pena investir. Vamos cortar em outra área, mas não na reportagem. Vale a pena otimizar os recursos. Por que eu não monto uma equipe (e não precisa ser com muita gente) de três, quatro repórteres especiais e vou dizer para esse cara “você vai ganhar, mas vai passar um mês e meio atrás dessa matéria e vai me trazer uma matéria redonda” [redonda significa bem acabada, bem finalizada]. Será que 101


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não é mais interessante a cada mês e meio aparecer no jornal uma matéria dessa, de Prêmio Esso [o mais consagrado prêmio do jornalismo brasileiro], do que aparecer todos os dias uma matéria sem sal, sem nada? O que é melhor? Eu opto pela primeira fórmula. Eu acho que vale a pena apostar na possibilidade de ganhar o Prêmio Esso. Você acha que o problema está só relacionado ao custo?

Acho que está relacionado ao custo, à burocratização, a uma acomodação da imprensa. Para que fazer? É mais fácil tocar o barco como ele está indo. Ganhar dinheiro sem isso...

Sim, uma parte vai por aí. A mídia está em crise há algum tempo e de alguma forma acompanha a recessão brasileira dos últimos anos. 2003 foi um ano de dívidas, demissões, enxugamento de redações. E nesse cenário houve o turn-over do Estadão, que saneou as finanças da empresa. É uma exceção?

É uma das exceções. Existem alguns veículos que estão mais ou menos conseguindo colocar a casa em ordem. A Editora Abril está conseguindo equacionar seu problema, embora seja um problema grande. Ainda é grave a situação do Globo, das Organizações Globo, pelo tamanho da dívida. A Folha de S.Paulo também tem problemas. Enfim... O Estadão então é um fenômeno pontual, não um sinal de que a crise está acabando?

A solução do Estadão está sinalizando que é uma das primeiras empresas que conseguiram equacionar bem, fazer bem a lição de casa. Por outro lado, o lado positivo de tudo isso é que o país está com uma sinalização econômica boa. Claro, se o país for bem, retoma-se o investimento, retoma-se a publicidade, aí as empresas vão ter uma boa recuperação. Eu acho que vai nessa direção... O Sandro Vaia disse, na reunião que teve com a redação antes da reforma, que o Estadão quer “voltar a ser” o maior e mais influente jornal brasileiro, posto que exercia em áureos tempos. Você considera hoje o Estadão o maior e mais influente? Se não, qual? 102


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O Estadão tem uma marca fortíssima do ponto de vista editorial. Os editoriais do Estadão, a página A3 do Estadão, continuam repercutindo fortemente. Basta ver a reação dos políticos, eles se sentem atingidos; a Marta (Suplicy, ex-prefeita de São Paulo), por exemplo, fica uma onça com a cobertura e, mais do que isso, com os editoriais do Estadão. Ela percebe que isso repercute mesmo, que os formadores de opinião lêem. Mas hoje eu acho que o jornal que está fazendo o melhor jornalismo é O Globo. Se você observa o seguinte: “Máfia do Sangue”: Globo; “Superfaturamento da Ayrton Senna, do Maluf”: Globo; “Caso Waldomiro”: Época, Organizações Globo; “Denúncia do caso dos juízes federais envolvidos em vendas de sentenças”: Globo. As quatro matérias investigativas mais importantes dos últimos meses foram dadas pelo Globo. O Globo aposta todos os dias em uma grande reportagem na página 3. Todo dia. O Globo tem uma massa de informação muito consistente. O que falta ao Globo, o que ainda não conseguiu, é o peso da marca de credibilidade que tem o Estadão. Por mais que o Globo faça, sempre tem alguém que diz “ah, o Globo é oficialista, na hora da verdade vai apoiar quem está em cima”. Não que seja assim, mas ele não conseguiu vencer totalmente essa imagem de chapa-branca. O Estadão sempre teve uma posição de grande independência. Só para voltar em uma questão, já que você não falou da Folha. É o jornal de maior circulação. Então, naqueles dois “quesitos”, de circulação e influência, é campeã no primeiro. Aqueles mitos de “toque de caixa”, “equipes pequenas”, “racionalidade industrial” que se ouve sobre a Folha procedem? Por que os leitores não acham isso?

A Folha tem a maior circulação porque fez uma opção de marketing nessa linha, aquele crescimento maluco com os anabolizantes [brindes, fascículos e promoções do jornal]. E porque foi, durante um bom tempo, um grande jornal. Eu acho que ela agora está numa crise. A Folha teve o Projeto Folha, criou muitas coisas novas, ousou muito, mas hoje ela está em uma situação parecida com a que estava o Estadão anos atrás. É uma espécie de doença da liderança. O líder que começa a se acomodar, que vai perdendo o norte, o rumo, e começa a cair. Você não vê a Folha hoje com a garra que ela tinha há cinco anos. A minha impressão é de que o projeto esgotou e não há um projeto novo para substituí-lo. 103


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Precisava, então, de uma reforma como a do Estado? Refletir sobre o seu papel como o Estado?

Exatamente. Fazer uma nova mexida.

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ENTREVISTA EDUARDO MARTINS, JORNALISTA

Do alto de 45 anos de Estado, Eduardo Martins afirma que não conhece o leitor do jornal. Logo ele. Atualmente chefe do Arquivo da empresa e professor de texto jornalístico, sua consagração como profissional da imprensa veio com o best seller Manual de Redação e Estilo do Estado, hoje referência para a edição de qualquer jornal. Pouco menos de duas semanas antes da reforma, no dia 6 de outubro, o jornalista me recebeu em sua sala na sede do jornal para analisar e criticar os novos passos do jornalismo. 105


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Você estava aqui em 1993, na última mudança gráfica. Como foi?

Essa reforma, na verdade, foi conduzida num terréu do jornal entre duas administrações. O Augusto Nunes tinha saído da redação do Estado, se não me engano, em 1991. Ele e o Jô Acs, que trabalhou com ele, já tinham feito uma reforma. Tanto que esse Jô Acs, que era o diretor de arte, depois fez reformas em outros jornais do Brasil, no interior, acho que no Vale Paraibano. Teve um de Pernambuco também, se não me engano, não sei se o Jornal do Comércio mesmo ou algum outro. O jornal (Estado) ficou usando um pouco aquelas normas que foram criadas na época, mas ficou um território de ninguém. Depois o Augusto saiu, assumiu o Aloísio Maranhão, com o Pedro Cafardo como editor-chefe. E aí o Julinho Mesquita (então diretor da Unidade de Negócios Estado), numa das reuniões da CIP, de que participava, conheceu o cubano Mario García, que tinha feito a reforma, se não me engano, do Miami Herald, ou de algum desses jornais importantes americanos. Ele viu, gostou e então convidou esse Mario García para vir para o Brasil e fazer um projeto para o Estado. Ele veio, trouxe um assistente, e fez o projeto global do jornal, este que criou as janelas e todas as outras estruturas... E eu sei bem porque na época eu estava no dia-a-dia da edição. O objetivo básico desse projeto era, por exemplo, pegar uma página do jornal, uma matéria que te interessasse e... Vamos dizer que você fosse ler aquilo antes de sair pra trabalhar. Então tinha um chapéu na matéria, que era uma indicação do assunto (digamos, “Reforma Agrária”), com um título “MST invade fazenda em tal lugar”. Depois um olho, que era uma complementação daquilo: “Propriedade estava desativada, etc., etc.”. Normalmente também tinha uma ou duas janelas, conforme o tamanho da matéria, e mais uma legenda. Agora, a indicação (e o problema é que nem sempre era seguida) era que cada elemento desse tivesse um tipo de 106


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informação. Então, por exemplo, se você pegasse uma matéria e desse cinco informações (uma no título, uma no olho, outras nas janelas e mais uma na legenda), o leitor à primeira vista já saberia de cara, já teria uma idéia de qual era o assunto. Teria ali quase o noticiário que ele receberia no Jornal Nacional, em um noticiário de rádio, qualquer coisa assim. A idéia era essa: que com esses elementos visuais já se passasse para a pessoa um resumo da informação. Tanto que esse sistema vigorou até hoje, praticamente. Agora vai ser reformulado, mas de uma certa maneira funcionou, permaneceu mais ou menos dez anos em vigor. Esse cubano fez depois a reforma, se não me engano, aqui no Brasil, do jornal O Dia, do Rio, e fez de mais uns dois ou três jornais por aí, em Santa Catarina ou algum lugar desse. Você acha que esses conceitos de 1993 foram superados? O leitor de hoje quer mais do que as informações logicamente divididas? Resumindo: com a internet, o modelo saturou?

Eu tenho um pouco de receio pelo seguinte. Eu não tinha tido ainda a percepção real do problema da internet. Claro, todos nós sempre desconfiamos que ela tirava público dos jornais. Se você analisar, de 2001 para cá o Estado e a Folha perderam mais ou menos 30% de leitores, assinantes, etc. Dois fatores explicam isso. Um é o econômico, porque R$ 500 por ano para um sujeito assinar o jornal (quase R$ 50 por mês) pesa no orçamento. O outro fator é a necessidade de informação. Eu fiz uma viagem, de turismo, em férias, e conheci um camarada que todo dia pela manhã levantava, ia aos computadores do hotel e abria o portal do Estadão. Então perguntei: “Você faz isso regularmente?”. Ele disse: “Ah, faço. Já faz seis meses que eu cancelei a assinatura do Estado e agora só leio na internet. Leio de noite (antes de deitar) e de manhã (antes de sair)”. Quer dizer, para esse leitor o que o portal publica é suficiente. Na verdade é um problema, um canibalismo. Você cria um portal que termina tirando seu próprio leitor. Mas é uma coisa inevitável. Não há como, hoje, não ter um portal. Por isso que alguns jornais já estão começando a cobrar o acesso ao conteúdo digital. Agora, eu acho que os jornais ainda estão apalpando um pouco para saber que caminho devem seguir para enfrentar ou se desviar da internet. 107


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Você acha que as reformas gráficas mais ousadas, como essa atual do Estado, visam combater a internet ou é a velha competição entre jornais?

Primeiro, eu acho que é uma competição entre jornais. Nessa reforma do Estado, há o objetivo claro de atrair o leitor mais jovem e o feminino (já que a predominância entre os leitores do Estado é de homens adultos). Mas esse objetivo de pegar o leitor mais jovem existe desde que eu entrei aqui. Sempre houve uma espécie de consenso de que a seção de esportes era aquela pela qual se pegava o filho do assinante. Com o sucesso da Folha Ilustrada, se percebeu que havia outra maneira. Tanto que o Caderno2 do Estado nasceu por causa da Folha Ilustrada. Isso é público, eu posso dizer. A maneira de renovar o quadro de leitores era por esse tipo de noticiário: música, futebol e outras coisas. E não pelo editorial, política e economia. É algo que dá peso ao jornal, mas que a pessoa vai ler só mais tarde. Tanto que o Estado é o que tem o maior volume de editoriais (o Globo tem um, a Folha tem dois ou três, menores que os do Estado). Mas eu, sinceramente, não sei se isso vai funcionar contra a internet. Ela é na verdade uma arma de dois gumes, porque não tem profundidade. Às vezes eu quero ler um noticiário de futebol, de fim de semana, por exemplo o clássico Palmeiras e Corinthians. Enquanto os jornais dão quatro ou cinco retrancas sobre o jogo, a internet dá uma, quando muito duas, e de 20 linhas cada uma. Para mim, isso não é suficiente. Mas eu não sei se é para o leitor habitual da internet. Esse é o problema. Se você me pedir uma resposta, eu não sei. Em um congresso da WAN [World Association of Newspapers] de que eu participei em 2000, no Rio, com jornalistas do mundo inteiro, especialmente os americanos diziam, com base em experiências de alguns jornais de lá, que na verdade a internet tinha aumentado a leitura e a tiragem dos jornais. No Brasil isso não aconteceu. Não sei o que houve lá, como foi... Também não sei se eles souberam usar muito bem a internet como elemento para levar o leitor a eventualmente também consumir o jornal. Uma maneira seria essa: no portal, colocar o resumo de um artigo e, no final, o aviso de que “a íntegra você encontra no Estadão de hoje”. Se o cara quer muito ler, ele compra o 108


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jornal. Mas não sei também se isso não é uma deslealdade com o sujeito... Você não acha que o Link vem exatamente com essa proposta de cruzar as mídias e criar a sensação no leitor de que ele precisa da internet, ou do jornal, para saber mais?

Eu não conheço o projeto do Link em profundidade. Não haveria razão de produzi-lo se não houvesse esse objetivo, de cruzar todas as mídias. Eu consulto muito a internet, até por causa de pesquisas daqui do Arquivo. Volta e meia eu estou no Google [principal site de busca da web] procurando coisas, inclusive para as colunas de língua portuguesa que eu escrevo. Por exemplo: há pouco eu escrevi sobre lugares-comuns e um deles é chamar de “negócio da China” tudo aquilo que envolva chineses. Então eu fui no Google e digitei lá “negócio da China”. Vieram 13 mil ocorrências. Na internet há essa possibilidade que não se encontra em nenhum outro lugar. Ela funciona também como um tremendo banco de dados. E eu acho que a tendência é que cada vez mais a internet seja uma pedra no caminho dos jornais. É o que eu acho. Hoje ainda se tem uma geração grande que não usa a internet. Eu conheço várias pessoas da minha idade, até mais novas, na faixa de 50 anos, que não usam. Até 40 e poucos às vezes também não. Daqui a vinte anos, porém, não vai ter mais ninguém de 40 anos que não use a internet. Esse camarada hoje está com 20 e já usa a internet há 10. Por isso que eu acho que o grande perigo para os jornais está um pouco mais além, daqui a uns 10 anos. Existe inclusive um ditado que diz que um jornal demora para morrer. Mesmo que esteja muito ruim, ele leva uns dez anos, moribundo, até editar o último número. É a tal história: qualquer coisa que se afirme é prematura. Se eu disser que não tenho medo da internet, é prematuro. Mas eu tenho. Até por uma razão muito simples. Eu não sei se hoje a pessoa precisa de uma informação tão aprofundada como a que aparece no jornal. Ela precisa, claro, daquilo que a interessa diretamente. Por exemplo, um jornal econômico, ou um caderno econômico como o do Estado (que substitui muitos deles) para um empresário. Ou o leitor do Caderno2, que dificilmente será suprido pela internet, com os cronistas do mesmo nível, etc. Eu acho que os jornais 109


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terão que viver um pouco dessas ilhas diferenciadas que eles vão ter dentro deles. Em uma hora de eleições, por exemplo, se você quiser levantar tudo o que saiu na internet, dá. Mas no jornal tem quadros que a internet muitas vezes não consegue produzir. Como colocar um quadro de uma página, imenso, com todos os resultados das eleições no Brasil, em uma telinha de computador? Eu acho que o que falta no Brasil são pesquisas mais ou menos aprofundadas com o público que mudou de mídia. Por exemplo, esse camarada de que eu falei, que lia e assinava o Estado e passou a só consultar o portal. Por quê? Esse é um sujeito que, provavelmente, quer saber só um pouco mais do que o Jornal Nacional divulga diariamente. Muitas vezes é isso. É o leitor que só quer aquela hard news, aquilo que está acontecendo, um pouco de esportes e de fofocas. Um colunista ou qualquer outra coisa diferente que o jornal ofereça não seduz. Eu vejo por mim mesmo. Eu tenho sobrinhos que não lêem jornal, apenas se informam pela internet. Vamos mudar de assunto, do futuro para o presente. Você acha que a cara do jornal como empresa hoje está diferente da de antigamente? Essa reforma vai fazer o jornal refletir, na verdade, uma nova empresa?

Pois é. Sempre se espera que esse tipo de reforma reflita, e termina não sendo exatamente isso. Eu acho muito engraçado quando as pessoas chegam e dizem, como na exposição que foi feita ontem (reunião da diretoria com a redação), que a Folha é mais leve, mais fácil de ler do que o Estado, que a Folha não sei o quê. Se você pegar a redação do Estado, 60% já trabalhou na Folha e vice-versa. Na verdade, o que importa é o que o Sandro (Vaia) falou ontem: o leitor deve ter o conceito da coisa. Aí entra muito a força do marketing, em que a Folha é muito mais eficiente. A Folha, por exemplo, lança um manual de redação e fica anos falando dele. Toda matéria é “ah, porque segundo o Manual da Folha, etc. e tal”, eles insistem. Porém, o manual da Folha não vendeu um terço do que vendeu o do Estado, que já está perto de um milhão de exemplares. Eu acho que falta para o Estado o alarde que a Folha faz para as coisas que ela lança. Isso não quer dizer que o jornal vai passar a ser, de uma hora 110


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para a outra, mais bem escrito porque mudou-se sua aparência. Tudo bem, para esses projetos novos estão sendo contratadas pessoas de fora. Mas grande parte delas também já trabalhou aqui. Por exemplo, vai ter uma revista, que vai ser dirigida pela Laura Greenhalg. Ela trabalhou 15 anos no Jornal da Tarde. Tem um outro projeto em que estão a Lucinha Carneiro e a Marion Frank. A Lúcia estava no portal (Estadão.com.br) e a Marion trabalhou no lançamento do Caderno2. São, na verdade, pessoas cujo texto já foi utilizado pelo jornal. Essa questão da renovação, da mudança do texto, para torná-lo mais agradável, é uma coisa muito difícil. Há determinadas normas jornalísticas das quais não se pode fugir. Por exemplo, uma notícia de um acidente. Como você vai escrever? Tem que dizer que um caminhão ontem bateu num ônibus e em conseqüência morreram 50 pessoas. Não dá para florear num negócio desse. Mas é claro que há casos em que é possível fazer uma matéria muitíssimo bem escrita. Quando morreram os Mamonas Assassinas, por exemplo, o Elio Gaspari estava no Estado e fez uma matéria fantástica, de clima. Ele foi para Guarulhos e fez toda uma reportagem que era de repercussão, de ambiente, de tudo o que se pode imaginar. Mas quantos Elios Gasparis você tem disponíveis para fazer isso? Não dá pra generalizar na questão do texto. Tanto que nesse projeto que o Sandro apresentou, há determinados suplementos em que estão previstas uma matéria especial por dia. Tudo bem. Ali você presume que a matéria vai ser trabalhada, etc, etc. Mas ele não pode ser inteiro só com matérias especiais ou mais trabalhadas. Claro, você pode ter a matéria bem escrita, baseada no “novo jornalismo”, ou em algum texto parecido com os do Gay Talese [um dos mais consagrados repórteres do The New York Times], ou coisa assim. Mas onde estão as 111


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pessoas que podem escrever como o Gay Talese? Grande parte está no mercado, mas 90% estão editando revistas, chefiando redações, e não estão disponíveis para fazer esse tipo de matéria. A própria revista Realidade, que talvez tenha sido a maior experiência de texto neste país, também foi formando muitas pessoas durante a própria produção da revista. Há pessoas que ficaram famosas na Realidade que, quando foram para lá, não tinham esse nome. Ali foram publicadas matérias fantásticas, mas que tinham um mês para serem produzidas. Agora me diga: hoje em dia, quantas vezes você pode pegar alguém e dar um mês para escrever uma matéria? Conversei um dia com um redator do The Times, de Londres, especialista em América Latina. Ele disse que se não encontrasse nada que interessasse ao público inglês, ele ficava um mês inteiro indo ao seu escritório sem escrever uma linha. É um luxo que no Brasil infelizmente não se pode ter. O dr. Ruy Mesquita, por exemplo, em uma entrevista contou-me a inveja profunda que sentiu quando visitou pela primeira vez o The New York Times. Eles jogavam fora todos os dias dois terços do material que produziam. E ele disse outra coisa que é extremamente sugestiva: o NYT tinha um departamento de psicólogos para cuidar dos profissionais, que às vezes ficavam dois ou três meses sem publicar uma linha no jornal. Não porque eles eram ruins, mas por questão de edição. Por isso é que é perigoso comparar a Newsweek ou a Time, por exemplo, à Veja. Não temos os recursos que eles têm. Em uma época, o NYT teve 900 repórteres só em Nova York. Isso é o equivalente a umas três redações de jornais brasileiros. Se você levar em conta a falta de recursos e as dificuldades em fazer matérias, eu acho que o jornalismo brasileiro é extremamente evoluído. Com a televisão é a mesma coisa. Os jornais brasileiros são muito mais bonitos graficamente que os jornais americanos, tirando o USA Today. Eu acharia quase inviável ler todos os dias o NYT. Claro que eu acostumaria, mas é muito mais agradável ler a Folha, o Estado, o Globo. Felizmente neste ano a mídia começou a se recuperar um pouco. O Estado está contratando, fazendo novos suplementos, lançando uma revista. Outros jornais estão contratando, com exceção apenas da Folha, que promoveu quase 50 demissões, sem ninguém saber ainda exatamente por quê. Aqui 112


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no jornal neste ano, que eu saiba, não teve nenhuma demissão por contenção de gastos. Aqui no arquivo, em dois anos antes, eu tinha perdido 12 pessoas. Neste ano, pelo menos até agora, não tive nenhuma demissão. A perspectiva é boa, mas os jornais têm que obviamente se readaptar a essa nova situação, com investimentos auto-sustentáveis. Por exemplo, a revista. Ela só vai sair dentro do prazo (março de 2005) se se pagar. É uma condição que foi colocada internamente. O dr. Ruy Mesquita foi à televisão e disse que ficava profundamente angustiado ao ver que o Jornal da Tarde teve de reduzir a qualidade para passar a dar lucro. Ele foi diretor do JT durante mais de 20 anos. Há esses dilemas todos, o jornalismo é complicado. Eu, por exemplo, tenho uma grande falha nas minhas previsões, porque eu achei que a revista Caras não fosse durar mais de um ano e hoje é o maior sucesso editorial do Brasil. Eu superestimei o grã-fino brasileiro. Uma Contigo pra gente chique vai vender? Vendeu, e é o maior sucesso brasileiro. Como é ser um jornalista e trabalhar numa redação que está prestes a mudar o projeto do jornal que produz? Como é fazer um jornal diferente amanhã?

Em 1993, foi uma reforma bem cosmética, estética. Mas teve a preocupação de atender o leitor, tornar mais fácil a leitura, como eu expliquei aqui, mas não provocou nenhuma mudança... Claro, no começo dá mais trabalho. Tem que fazer um olho, um intertítulo, uma legenda não sei de que jeito. Essa é a pergunta. A adaptação demora?

Demora um pouco. Se você pegar uma redação, a do Estado por exemplo. Esse pessoal que vai trabalhar nos novos projetos? Um veio de revista, outro veio de uma redação de jornal e vai fazer um suplemento de informática, que é bem diferente, vai ter comportamento de informática, que não é uma coisa comum no mercado. Então tem outro que era de revista e vai trabalhar na primeira página, fazendo chamadas como “o presidente da república disse ontem...”, o que ele não estava acostumado a fazer na revista. Quer dizer... Este tipo de experiência, na realidade, todo jornalista passa. É o mesmo que mudar de jornal, então?

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É a mesma experiência. É um pouco fantasiada essa comparação entre Folha e Estado, de que a Folha é mais fácil de ler do que o Estado. O que acontece é que o Estado normalmente, em alguns dias, especialmente, tem mais anúncios que a Folha – isso se chama medida larga. Uma página de muito anúncio é sempre uma página difícil de diagramar, e se torna difícil de ler. Três quartos da página estão tomados por anúncio e sobra um buraquinho para colocar a notícia. Aí o leitor diz: “Pôxa, que coisa chata”. Agora, no fundo, se você pegar o projeto da Folha é do mesmo tipo do Estado, horizontal, com blocos, hoje em dia todos os jornais são editados assim. É industrial até. Dos diagramadores daqui, por exemplo, provavelmente metade trabalhou na Folha, no Diário de S. Paulo, no Globo ou em algum outro lugar. A adaptação demora, mas é um mês, 15 dias, 20 dias. No começo, você se atrapalha. Em 1993, a gente às vezes esquecia de fazer a janela e o pessoal da gráfica ligava: “Olha, a janela da página tal não desceu”. Mas hoje em dia é tudo “layoutado” no terminal [hoje, a editoração dos jornais é feita toda no computador do próprio repórter], então não adianta, isso não acontece mais. Essa adaptação é rápida. Quem é profissional, passou por várias redações, está acostumado, não tem problema nenhum. Temos gente aqui nesses projetos novos... A Marion Frank, por exemplo, já trabalhou em teatro, no Caderno2, em jornais do exterior. Essa coisa, do ponto de vista profissional, não chega a causar nenhum trauma pra ninguém, na verdade. O pior é quando há mudança de estilo de redação, que foi, por exemplo, a Veja. Se você ler todas as entrevistas do Mino Carta sobre a criação da Veja, vai perceber que eles queriam criar um novo estilo de revista, você vê que eles ficaram três ou quatro anos e não sabiam que estilo de revista iriam fazer. O Carmo Chagas, meu amigo, deu entrevista dizendo isso: um escrevia, outro escrevia, aí ia-se chegando... Hoje em dia, é um ponto tão perfeito que você lê a Veja e ela parece escrita pela mesma pessoa da primeira à última página. Agora, eles levaram 30 anos para chegar a isso. Tanto que a Veja não faz reformas toda hora. É um processo por que o Esportes do Estado está passando. Estavam achando que o texto do Esportes era qua-

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drado demais, então estão tentando fazer um texto mais acessível, vivo, criativo. Mas você sempre fica ali no fio da navalha, corre o risco de ser repórter de rádio, usar a terminologia deles. A matéria, para ser mais bem escrita do que as matérias que estão saindo, tem que ser atraente, mas ao mesmo tempo estar nos padrões do jornal no qual você está escrevendo. No Estado, você não pode escrever do jeito que o Agora (São Paulo) escreve, assim como a Folha. Hoje em dia, se você examinar algumas seções, a Folha é, entre aspas, mais “quadrada” do que o Estado. Mas varia. No Esportes eles têm títulos mais estranhos. Anteontem, por exemplo, uma manchete da Folha era sobre os médicos que venceram o Prêmio Nobel por causa de pesquisa sobre o olfato ou coisa assim. Aí o título era “Americanos de faro fino ganham o Nobel”. Essa idéia de faro fino para o sujeito que ganhou o Nobel é relativa... Os leitores vinham reclamando de alguma coisa em especial que o Estadão vai atender com a mudança? Emendando: qual você acha que vai ser a reação dos leitores, principalmente dos mais tradicionais?

A reação do leitor é um negócio absolutamente imprevisível. Especialmente do leitor do Estado, que é absolutamente estranho, como o de qualquer jornal. Eu sei que o leitor da Folha é menos rigoroso do que o leitor do Estado com relação a erros de português. Ontem mesmo recebi uma carta: “Se fosse na Folha, tudo bem, mas no Estado eu não admito que...”. E às vezes é um erro de digitação, de grafia não tão grave: um “desconcertante” que em vez de sair com “c” sai com “s”; não é um “você” com “ç”, essas coisas. É uma coisa mais ou menos clara. Agora, por exemplo, para você ter uma idéia. Na reforma de 1991, quando o jornal adotou a cor, teve leitor que reclamou. Para o leitor, o jornal colorido era menos sério do que o jornal em branco e preto. Aí não tem jeito. Você tem que dizer “o leitor que me desculpe, mas vai ter que se acostumar à cor”. O mais surpreendente é que o jornal mudou o logotipo (de preto para azul) e 90% dos leitores não perceberam. Mas reclamaram da cor do jornal, com a alegação de que a cor não passava uma imagem de credibilidade. Hoje ninguém mais reclama de um jornal colorido. 115


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Num primeiro momento, para quem está acostumado com aquilo, sempre vai achar ruim. Pelas páginas que eu vi, o jornal vai ser mais quadrado, mais “blocado”, com alguns textos em uma coluna descendo, vai ser menos “recortado” do que é hoje. Mas já foi blocado antes, e o leitor não percebe, ou se não mudou, reclama porque não mudou. Hoje em dia, acho que a reclamação vai ser menor. Mesmo porque, com o tempo, está havendo uma renovação no leitor do Estado. Vamos dizer que há 20 anos a maior parte dos leitores do jornal tinha mais de 50 anos. Hoje, a maior parte tem mais de 40, e não 50. Nessas faixas a reação é um pouco menor. Mas haverá que alguns vão achar ruim... O Estado tem uma grande vantagem sobre outros jornais, e soube manter ao longo do tempo: a distribuição bastante uniforme dos textos e das editorias. Mesmo quando o jornal era em dois cadernos, sem nenhum separado, o leitor sabia exatamente onde encontrava cada coisa. Ia direto à seção que ele queria encontrar, enquanto em outros jornais essa ordem não era tão rigorosa. Agora, hoje os jornais todos estão cadernizados, divididos. Eu acho que nenhum leitor vai deixar de comprar um jornal porque houve uma reforma gráfica. E também nenhum leitor vai passar a comprar um jornal porque está mais bonito. Acontece com um ou outro, mas não é o leitor que permanece no jornal. O Estado e a Folha têm uma característica curiosa, que são os leitores flutuantes, assinantes especialmente, que de tempos em tempos mudam de jornal. Existe uma faixa de 15%, 20%, movediça, que você não consegue “fidelizar”. Ele sabe que o noticiário do Estado e da Folha tem pouca diferença como noticiário. Na Folha, tem alguns comentaristas mais incisivos do que o do Estado. No Estado, os editoriais são mais incisivos do que os da Folha. Então, no fim, tudo se compensa. Se ele é contra o governo, há noticiário no Estado contra o governo e a favor do governo. Na Folha, também. No fundo, pelo menos nesses dois jornais, é o mesmo tipo de reação, de noticiário, de alternativa, de opção. Agora, a questão do perfil de leitor de jornal é algo muito difícil. Eu tenho 45 anos de Estado e ainda é muito difícil entender o leitor. Você acha que a reforma apresentada no próximo domingo ao 116


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público vai ser, como foi dito aos anunciantes em uma cartinha, “o maior acontecimento da mídia brasileira em 2004”? Chega a esse nível?

Não, não chega a esse nível. Mesmo porque não teve nenhuma mudança grande na mídia brasileira neste ano. Não foi lançada nenhuma revista de grande repercussão nem nada. Eu sei que a Folha está trabalhando também em um novo projeto editorial, mas não sei quando vai ficar pronto. Do ponto de vista do marketing, isso é correto. Mas eu aqui dentro é difícil dizer se concordo ou não. Se não tem nenhum outro assunto e nenhuma outra reforma desse tipo no horizonte, talvez seja realmente. Vai depender da repercussão que isso vai ter. Pelo que se disse, a repercussão com os anunciantes, agências de publicidade, foi muito boa. Se foi realmente, acho excelente. Essas mudanças sempre arejam um pouco o jornal, qualquer tipo de jornal, sempre mexem um pouco com a redação, estabelecem um desafio na própria redação. Você quer melhorar a sua editoria, vê que a outra está super na frente e quer concorrer. O jornal termina melhorando até por uma concorrência interna mais intensa. Digamos que eu sou editor de política e vejo que a editoria de cidades está uma beleza. Eu quero que a minha no mínimo esteja igual. Isso é saudável, desde que não vire uma neurose. Mas eu acho que vai ser um acontecimento, principalmente se você vir o tempo que passou desde a última reforma do Estado. Vai depender da capacidade do pessoal de absorver a reforma rapidamente. Quando a reforma é bem explicada, todo mundo absorve bem; às vezes a coisa fica meio nebulosa, então é mais difícil.

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Este livro foi composto nas tipologias Times e Helvetica. Impressão e acabamento produzidos pela Avalon Gráfica Rápida. Impresso em papel Off-set 75 g/m2; capa em Cartão Supremo 250 g/m2. Bauru, janeiro de 2005.



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