A "Viagem Pitoresca pelo Brasil", hoje: Cartões postais / coleções.

a “Viagem Pitoresca pelo Brasil”, hoje: cartões postais / coleções Lucas Oriel

3 Trabalho de conclusão apresentado à Escola Guignard da Universidade do Estado de Minas Gerais, curso de pós-graduação lato sensu artes plásticas e contemporaneidade

Orientação: Profª. Drª. Elisa Campos [Maria Elisa Martins Campos do Amaral]

conteúdo • Introdução 5 • O souvenir, o cartão postal 9 • Coleção n°1

16 notícias estrangeiras 12

• Coleção n°2

5 paisagens sobrepostas 24

• Coleção n°3

5 dados estatísticos 38

• Coleção n°4

3 tribos indígenas 52

• Memória e crítica: Johann Moritz Rugendas, Forèt Viérge Près Manqueritipa (detalhe). Rio de Janeiro, 1827-1835 FONTE: Rugendas, 1998

sobre as coleções

• R eferências 65

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introdução

vistos como reflexo de “ontem”, representado aqui pelas imagens de Rugendas.

A viagem pitoresca pelo Brasil, ponto de partida dessa pesquisa, é o compilado de imagens e relatos de viagem do pintor Johann Moritz Rugendas em sua empreitada junto à missão Langsdorff, que, no século xix, reuniu diversos artistas e pesquisadores, percorrendo milhares de quilômetros no interior do país registrando os aspectos de sua natureza e sociedade.

Por fim, como recorte e referência para esse trabalho, a viagem de Rugendas procura simbolizar uma memória coletiva que pode ser lembrada para pensarmos um pouco sobre nossas condições atuais, a partir de recursos comparativos e críticos. Reconstruir essa viagem, partindo do ponto de vista do viajante antigo e colocando-o sob uma ótica política e social de nosso tempo, é um dos objetivos na busca por esse referencial. E desconstruíla como objeto da cultura da memória, é o modo encontrado para relacioná-la com as práticas artísticas contemporâneas, que em seus mais variados recursos, enxergam o mundo através das sombras do “agora”, sem perder os elos simbólicos com as figuras e documentos do passado.

Como documento, nos oferece (ao lado de muitos outros nomes, como Taunay e Debret), uma visão ilustrada da conformação social e territorial do Brasil num período ainda marcado pelo olhar e pela fala do estrangeiro, a base de nossa história e de nossa heterogeneidade; e também remonta ao momento onde a então colônia se configurava como nação, e onde a ideia de um indivíduo “brasileiro” passava a existir de fato.

Ao lado Johann Moritz Rugendas, Lagoa das Tretas Rio de Janeiro, 1827-1835 FONTE: Rugendas, 1998.

Como metáfora, parte do pitoresco, o excêntrico e inusitado por definição: adjetivo importante para pensarmos no quão peculiares podem ser alguns aspectos de nossa sociedade, e como essas aspectos podem ser

Próximas páginas Johann Moritz Rugendas, Indiens dans leur cabane e Johann Moritz Rugendas, Rio Jnhomerim 1827-1835 FONTE: Rugendas, 1998.

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o souvenir, o cartão postal Objetos variados de feitura e exibição de imagens são, assim, gradualmente destituídos de todo “valor de uso”, esquecidos ou atirados fora, justamente por aqueles que, em algum momento anterior, atribuíam-lhes sentido simbólico e prático.(dos anjos, 2012 p.33)

Memórias recebidas e engavetadas, empoeiradas em prateleiras, empilhadas pela casa. Os souvenires, objetos-viagem, essa coleção díspar de elementos que conota simbolicamente espaços e tempos, que tentam debilmente evocar ares de bom referencial cultural e histórico, são as caricaturas dos lugares. Perdemos o que dizem, esquecemos o que ilustram.

Ao lado Johann Moritz Rugendas, Matelots 1827-1835 FONTE: RUGENDAS, 1998.

Próximas páginas Johann Moritz Rugendas, Nègres e Johann Moritz Rugendas, Habitans Pecheurs 1827-1835 FONTE: RUGENDAS, 1998.

A partir de uma temática inicial de pesquisa, que foram os relatos de viagem de Johann Moritz Rugendas pelo Brasil colonial, esboça-se aqui a proposta de pensar o dia de hoje no espelho do ontem: através de uma coleção de cartões postais que simboliza o souvenir dessa viagem iniciada dois séculos atrás, contendo imagens e que muito podem dizer sobre o Brasil contemporâneo. Dessa forma, é possível ativar memória e crítica, tornando-

as possibilidades discursivas sobre signos impressos que se colocam como dispositivos ativos no mundo.

Tempo e espaço homogeneizados no simplismo dos (in)utensílios de recordação, distanciam a crítica e nos amansam com sua aparente estupidez imagética. Algo se perde na reprodução desmedida e o sentido das coisas acaba na distração dos objetos, aos quais sim, temos acesso - em detrimento de uma consciência de seus simbolismos.

Conhecemos nossa história pelas imagens, e as imagens mentem quando colocadas atrás dos vários e opacos dispositivos ideológicos que observamos dia após dia. O cartão postal, instantâneo de um lugar qualquer, resume a não-função do souvenir em seu formato mais despretensioso - seu custo irrisório e sua ocupação mínima de espaço, transformam possibilidades de interação através da memória em apenas mais um item numa coleção. Nas quatro pequenas séries de postais criadas e aqui apresentadas, existe o objetivo de desafiar essa perda de sentido.

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Coleção nº1 16 notícias estrangeiras

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Coleção nº1 16 notícias estrangeiras

O olhar do forasteiro, já traduzido no espetáculo midiático é observado pelos nossos próprios olhos - um ângulo de visão reconfortante pela aparente sensatez do indivíduo no extracampo desse “circo”, porém desesperador, talvez pela equação simples que cada um de nós pensa, à sua maneira, ser a solução para o eterno drama político e social do Brasil.

Materializada em objeto comum, em item colecionável, as notícias veiculadas pelas mídias passam a ser imagens bipolares: tomam os ares da solidez questionável das figuras nos livros de História, que estampam parte de nossas recordações impressas, e ao mesmo tempo confirmam que a complexidade dos acontecimentos que nos rodeiam se torna entulho que nos soterra em um constante vai e vem de valores.

Instantâneo e duradouro A construção da memória nacional e de nossa própria percepção de nacionalidade, é uma atividade contínua a partir das várias inserções de indivíduos que aconteceram ao longo dos séculos no Brasil. Entre os portugueses na Bahia do século xvi e os correspondentes dos centros urbanos no século xxi, inscreve-se essa memória de um país construído sobretudo pelo olhar estrangeiro (martins; sochaczewski, 2014. p.14). Trata-se de um estrangeiro que já nos é familiar através de vários nomes, que evocam conceitos diversos e nos contam sobre a natureza de sua presença nesse território - descobridor, colonizador, missionário, catequizador, viajante, imigrante, invasor, explorador; o homem europeu, conhecido por quaisquer adjetivos dentre os citados, foi a voz que ditou o tom do discurso e a mão que moldou as diversas imagens de nossa sociedade.

Os idílicos relatos de viagem do século xvi evoluíram para diversas formas de comunicação nas mãos desses indivíduos deslocados, e seus resquícios talvez encontrem parentesco nos arquivos digitais das grandes agências de notícia internacionais, cujos conteúdos acerca do Brasil ainda são marcados, como nos séculos anteriores, por muitos contrastes e movimentos (parada, 2014. p.196). A complexidade dos cenários que se vislumbra nas ruas, na tv ou a cada

22 rolagem de página na internet substitui hoje a possibilidade do olhar do viajante, sempre representado de forma maravilhada, ainda que impregnada da noção de exotismo que condiciona sua experiência, pela impossível tarefa de análise crítica de cada uma das situações cotidianas exaustivamente compartilhadas, da (in)digestão de amargas e raivosas opiniões pessoais e da compreensão da mensagem original de conteúdos jornalísticos truncados e repletos de ideologias e preconceitos.

Situada no centro desses dois cenários - o relato de viagem imortalizado pelo tempo e sua parente distante, a notícia “de fora”, mais instantânea que nunca quando assume a forma de um link ou URL - está a possibilidade da construção de dispositivos que podem tratar daquilo que esses extremos têm de comum: a presença externa e suas funções ou disfunções enquanto elemento dissonante da paisagem.

O descomprometimento (patriótico, político, social, etc) dessas personagens, suas posições estratégicas enquanto observadores e a existência simbólica da relação colonizador / colonizado, dão corpo e significância ao que dizem, e podem de alguma forma estabelecer o cruzamento poder X saber, que segundo o teórico Giorgio Agamben, é um dos três pontos que explicam o termo dispositivo, definido a partir das análises do uso do termo na obra de Foucault. Esses três pontos, colocados de forma resumida, dizem que o dispositivo:

– É um conjunto heterogêneo, linguístico e nãolinguístico, que inclui virtualmente qualquer coisa no mesmo título: discursos, instituições, edifícios, leis, medidas de polícia, proposições filosóficas, etc. O dispositivo em sim mesmo é a rede que se estabelece entre estes elementos.

– O dispositivo tem sempre uma função estratégica concreta e se inscreve sempre numa relação de poder.

– Como tal, resulta do cruzamento de relações de poder e de relações de saber. (agamben, 2009 p. 29)

Fixo e dinâmico O suporte escolhido / proposta de dispositivo para as coleções apresentadas é o cartão postal, que tem como objetivo o aprisionamento de uma imagética crítica num objeto que ainda mantém uma forte ligação com o passado, através da tradição da troca e da atividade de organizá-los em álbuns, mas que também guarda a noção contemporânea de viagem, ainda possuindo as funções de promover intercâmbios culturais, suplementar vivências e comunicar visualmente, definindo e congelando o tempo numa experiência transitória e momentânea (santillán, 2010. p.72). Essas características, acrescidas das estampas que colocam as descartáveis manchetes virtuais no lugar reservado para a lembrança, configuram uma tentativa dupla de abordar o choque entre passado fixo x presente dinâmico, em ambos, forma e conteúdo.

*Tradução livre. No original “Once more, in the best instances, a double refexivity is at work: a medium is (re)constituted in a recursive way that is nonethless open to social content - in a way, moreover, that reminds us that “form” is often nothing but “content” that has become historically sedimented.” (foster, 2012 p. 137).

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Tal conteúdo se faz a partir de imagens construídas sobre uma sucessão de capturas de telas de computador, contendo notícias de diversas fontes jornalísticas internacionais agrupadas por um tema comum. O olhar estrangeiro e o emolduramento desse olhar são pontos iniciais que pretendem legitimá-las enquanto comentário contemporâneo acerca das imponentes e bucólicas figuras dos antigos viajantes pelo Brasil; seus deslocamentos se relacionam com o choque passado x presente, ligando os resultados, díspares em temporalidade, à noção de não-sincronia proposta por Hal Foster, onde novas formas são criadas a partir de elementos remanescentes de linguagens antigas ou antiquadas, que, quando coladas e/ou veiculadas à novas mídias, criam uma estrutura visual singular, onde, [...] uma dupla reflexibilidade está em jogo: uma mídia é (re)constituída de maneira recursiva ficando, porém, aberta ao conteúdo social lembrando-nos, além disso, que a “forma” é frequentemente “conteúdo”, já sedimentado historicamente. (foster, 2012 p. 137)*

Código QR (sigla do inglês Quick Response) é um código de barras bidimensional que pode ser facilmente escaneado através de uma câmera e convertido em texto interativo (links, e-mails, etc).

O primeiro desses deslocamentos, - a troca do ambiente virtual pelo impresso, real e tangível -, não é de todo estranho, sendo o papel o lugar primordial da notícia.

O incômodo dessa transposição de mídia é pretendido então pela manutenção de suas principais características enquanto item do ambiente online - o conhecido leiaute de páginas da web e a referência

ao seu endereço, apresentado na forma de código QR*, o qual permite acessar uma informação que está disponível no espaço virtual. O segundo deslocamento é aquele que coloca o trânsito incessante da internet em algo estático, moldura singela que fixa nossa pressa informativa num símbolo de lembranças queridas.

Por fim, o tema das imagens... trata-se de um momento político crítico; um terceiro deslocamento, de um presente fugidio para um presente eterno, através do objeto, que procura representar o cotidiano excesso de informação e prender no espaço e no tempo a visão do outro sobre o nosso hoje. Esse outro, agente ativo em nossa memória coletiva, construtor de nossas bases sociais e de nossa frágil democracia. Das muitas questões a partir do tema apresentado por esses postais, uma delas, observada sob o ângulo do estrangeiro, se torna mais necessária, mais urgente, mais ansiosa: [...] “como poderiam ser estruturadas e representadas as memórias regionais e nacionais? É claro, esta é uma questão fundamentalmente política sobre a natureza da esfera pública, sobre a democracia e o seu futuro e sobre a forma mutante da nacionalidade, da cidadania e da identidade. As respostas dependerão, em grande medida, das constelações locais, mas a disseminação global dos discursos de memória indicam que algo mais está em jogo.” (huyssen, 2000)

Coleção nº2 5 paisagens sobrepostas

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Coleção nº2 5 paisagens sobrepostas

Cartão postal de um lugar entre o duvidoso fascínio historicista e as figuras que ilustram algumas de nossas denúncias mais corriqueiras.

A imagem construída pelo olhar estrangeiro, que já anunciava uma sociedade em desequilíbrio, se realiza de forma plena, dois séculos depois, na desigualdade voraz dos imensos espaços que engolem ou ladeiam as belas paisagens das quais tanto no orgulhamos. Enquanto souvenir, a colagem de tempos pode ser lembrança efêmera, rapidamente esvaziável, da saudosa relação com o “ontem”, esse repetido à exaustão nos meios propagadores de informação, figura central numa sociedade que se apega à nostalgia do não-vivido.

Enquanto metáfora, aponta para a culminância de nossas desventuras sociais, políticas e econômicas: o “hoje”.

espaço & memória A paisagem natural brasileira, motivo de exaltação desde seu primeiro relato na Carta de Pero Vaz de Caminha (apesar de sua publicação tardia, apenas no século xix), vincula a ideia de maravilha aos nossos trópicos, contemplados através do olhar dos viajantes que edenizaram costas e matas. Num primeiro momento, essa natureza é vista como puro deslumbre, “tema paradisíaco em estado puro, abundância e viço sugerindo a impressão da vizinhança do Paraíso Terreal” (holanda, 2010 p. 356); séculos depois, no pós-1808, ela ganha dimensão pictórica relevante como matéria básica nos registros visuais das missões artísticas europeias.

Como um dos elementos mais básicos da coleção de alegorias do Brasil antigo ou ainda como mote para os mais diversos apelos publicitários atuais, essa paisagem surge, dia após dia, como imagem potencial em nosso entorno, passível tanto de admiração quanto de problematizações.

São lugares identitários, de relevância ambiental e histórica, que, apesar de separados conceitual e fisicamente da vida urbana cotidiana, exercem grande peso sobre a compreensão do espaço nacional -

37 e essa compreensão, por sua vez, aparece intimamente relacionada à noção de memória coletiva.

Ao lado Johann Moritz Rugendas, Vue de Rio Janeiro 1827-1835 FONTE: RUGENDAS, 1998.

Nesse ponto, a segunda coleção de postais quer explorar o vasto território da cultura da memória e da ideia de passados presentes, a partir da colagem e da sobreposição, possibilitando exercícios de compreensão comparativos dos espaços de ontem e de hoje. O olhar do expedicionário colonial acrescido de fotografias retiradas de sites de busca, diretamente atreladas ao que temos de crítica mais óbvia à nossa sociedade, procura questionar o status das imagens Históricas (com “H” maiúsculo), bem como do próprio entretenimento memorialístico, presença constante no consumo midiático contemporâneo (huyssen, 2000 p. 14). Se podemos utilizar tais recursos de memória enquanto cultura de massa a ser monetizada, podemos também nos valer dessas peças distantes para montar um quebra-cabeças que parte da literalidade e do óbvio - a montanha virgem versus a mineração, o assentamento das cidades versus a favela, o campo fértil versus o latifúndio e a monocultura, etc - para atingir objetivos simples como uma breve reflexão acerca da ocupação dos espaços, urbanos, rurais ou privados, no Brasil.

o ideal maculado Essas imagens quiméricas dialogam como antagonistas à montagem do roteiro de um país ideal, de natureza exuberante e povo acolhedor, “onde se plantando, tudo dá” - a eterna ladainha de 1500, que talvez seja a versão tupiniquim do panem et circences, repetida à exaustão por todos os meios de comunicação apaziguadores dos nervos da nação, os canais de tv, as páginas de Facebook de grandes corporações, a abertura dos jogos olímpicos.

Ainda que as realidades estejam mais à vista do que nunca, esses ideais permanecem; construídos por profissionais, disseminados por todos: que escolhem não compreender as misérias de um Brasil rural, ignorado, devastado. A visão do estrangeiro, as imagens de duzentos anos atrás, coladas às visões de nossos dias comuns, àquilo que construímos desde então, se assemelham às distopias literárias... feituras do imaginário memorialístico onde o real se assemelha a uma ficção do real.

Coleção nº3 5 dados estatísticos

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Coleção nº3 5 dados estatísticos

Se perdem onde se encontram, os objetos-caricatura: dentro de armários, caixas, gavetas ou misturados às nossas fotos de infância. A menor possibilidade de uma atitude questionadora a partir de seu “conteúdo” se torna uma barreira no rápido processo de construção de suas inutilidades conceituais - construção essa que é a glória do souvenir enquanto existência inerte dentro de nossas residências; uma celebração da disfunção desses objetos que parecem ter sido produzidos com um único propósito: o de serem adicionados ao entulho de memórias efêmeras, de espaços visitados.

Ao posicionar dados crus e deslocados em suas superfícies desprovidas de pulso (seja criativo ou informativo), ativase a possibilidade, ainda que remota, de conectar essas coisas ao curso de nossa história.

informações ignoradas A imagem da imagem, a mensagem dentro da mensagem: por vezes, nosso entendimento do macro que nos rodeia, se situa na superfície; é tarefa complexa a de se conectar com seus tempos, com seus contextos; apenas as leituras e releituras que construíram nossa educação (ou má educação) sociopolítica parecem estar disponíveis. Quantos somos, como vivemos, onde nos situamos na pirâmide social?

E quem somos, comparados aos outros tantos milhões? Simples questões de cunho situacional que nos desconcertam, no ato de perceber que somos alheios à nossa posição enquanto indivíduos que partilham um “teto” comum.

As grandes façanhas históricas brasileiras foram a conquista de um território continental e a construção de uma população que ultrapassa os 150 milhões. Nenhum desses feitos foi gratuito. (ribeiro, 2006 p. 134)

Descontextualizada, a frase do escritor e antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro soa cética, mas aqui pretende ser ponto de partida para uma reflexão acerca dos custos, a longo prazo, de uma política demográfica espontaneísta, que em seus

51 acidentes populacionais, despovoamentos e repovoamentos, permitiu o florescer da desigualdade, que é, assim como a diversidade étnica, símbolo nacional.

A conformação do povo brasileiro e sua estratificação em camadas sociais a partir de cada uma de suas origens - indígena, europeia, africana - se evidencia em dados; informações dignas, a nível conceitual, de figurarem entre as estampas de uma coleção imaginária de postais que discursam sobre nós mesmos e as posições que ocupamos nesses diversos placares.

nomes & números

Ao lado Johann Moritz Rugendas, Creoles (detalhe) 1827-1835 FONTE: RUGENDAS, 1998.

A escolha temática para cada gráfico / lista apresentado nessa série de postais é um pequeno exemplo de fatos e estatísticas que povoam o imaginário do brasileiro minimamente informado e que permitem, à primeira vista, análises rasas, conclusões fáceis e reações exacerbadas. Tendo em vista o atual cenário de ativismo virtual, onde toda a informação pode ser deturpada em pessoalidades deformadoras, qualquer tentativa de posicionamento ou interpretação das possíveis relações entre as informações e as situações sociopolítica

ou econômica do Brasil foi suprimido do conteúdo dos postais. Não existe indicação ou explanação sobre sua natureza (salvo a fonte dos dados), uma escolha que pretende relacionar as imagens impressas nos postais com o ato de revirar antigas memórias, das quais se perdem alguns pontos importantes e nos aparecem primeiro como algo sem nexo, para depois surgirem enquanto fragmentos de nossa existência e percepção de mundo.

Esses fragmentos se apresentam como espectros problemáticos do século xx no país - os crimes ambientais, a utilização predatória do enorme território nacional, a onipresente questão da população e da miscigenação - e também de seus traumas - o período de ditadura militar, assunto de abordagem ainda nebulosa, principalmente nos meios de comunicação de massa. Pontos de partida para uma discussão em torno de temas urgentes e constantes, esses postais também podem simbolizar a dúvida de Huyssen acerca da amnésia do capitalismo: a comercialização de memórias (aqui representada pelo souvenir) gera apenas amnésia? Talvez possa atuar como ativadora de discursos através dos mesmos canais midiáticos que prolifera...

Coleção nº4 3 tribos indígenas

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Coleção nº4 3 tribos indígenas

As figuras idealizadas que se tornaram figuras generalizadas. Povoam nosso imaginário de pré-conceitos cotidianos e nos impedem de alcançar determinados patamares críticos por se colocarem como avatares simplórios de uma estrutura social extremamente complexa - um campo minado para nossas opiniões, freneticamente compartilhadas real e virtualmente. O outro perde o sentido em detrimento de sua figura transformada em caricatura: é parte de uma sólida massa problemática que fingimos não ignorar, é símbolo que pode ser portado como bandeira, mas de difícil (re)construção enquanto indivíduo pelas diversas distâncias, não percorridas, necessárias para alcançá-lo.

Onde estamos nós, na cadeia produtiva desses souvenirs da vida real?

os outros Os indígenas eram [...] seres belicosos, de quem o indianismo literário brasileiro do século xix procriado por Chateaubriand e estimulado pelo espírito político da independência, ansioso de romper toda a ligação com a época colonial, havia de fazer criaturas superiores pela bravura, altivez e nobreza. (lima, 1997 p. 43)

Ainda que idealizadas por esse momento da literatura, essas “criaturas superiores” acabaram por ter as identidades particulares de cada tribo ou grupo anuladas, no momento em que “o índio” passa a ser uma denominação genérica. Jogados a escanteio como parcela ínfima da população, são apenas lembrados nas celebrações públicas do espetacularizado orgulho nacional da miscigenação.

Enquanto tema para a última coleção de postais, a imagem das tribos observadas por Rugendas no século XIX vem representar o rechaço de certos grupos étnicos sempre representados nos meios de entretenimento por imagens prontas e ultrapassadas. Do indígena padrão dos quadrinhos infantis aos papéis representados pelos negros na TV, existe um certo consenso da mídia que nos joga de volta ao esquema montado por Darcy Ribeiro, onde

61 o surgimento de uma etnia brasileira, inclusiva, que possa envolver e acolher gente variada que aqui se juntou, passa tanto pela anulação das identificações étnicas de índios, africanos e europeus, como pela indiferenciação entre as várias formas de mestiçagem, como os mulatos (negros com brancos), caboclos (brancos com índios) ou curibocas (negros com índios). (ribeiro, 2006 p.119)

Ao lado Johann Moritz Rugendas, Chasse au tigre 1827-1835 FONTE: RUGENDAS, 1998.

Talvez seja possível questionar aqui a anulação da identificação étnica do europeu, uma vez que a parcela branca da população não sofreu os processos dizimatórios e excludentes de índios ou africanos, e historicamente se vale da superioridade inegável representada pelo colonizador desde o século xiv (ribeiro, 2006 p.118). Assim, o indígena nessa coleção simboliza o outro que ignoramos.

E de nossa posição urbana, oriunda de privilégios acumulados, adquiridos por relações que passam pela conformação étnica e social, e/ou enquanto brasileiros, ou seja, não pertencentes a nenhum grupo identitário original (a saber, índio, europeu e africano, das matrizes descritas por Darcy Ribeiro), é possível observar esse outro como peça no complexo quebra-cabeças que formou uma ideia de nação e através dele, confrontar nossa própria hipocrisia em enxergá-lo como caricatura.

Enfim, a partir da proposta dessa coleção de cartões postais, colam-se memória coletiva e memória individual no ambiente do ordinário, do automatismo visual e da desatenção, observados sobre o viés do preconceito étnico e racial. Elementos diversos, que tentam unir os termos que são palavras-chave para suscitar a discussão aqui proposta: o olhar do estrangeiro, a anulação da crítica, o papel de nossas relações com o outro no questionamento de uma sociedade problemática.

memória & crítica

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sobre as coleções A proposta das coleções de cartões postais, pretende colocar em contato vivências e pesquisas pessoais - a temática ligada à história do Brasil e os próprios postais, elementos pinçados do universo da comunicação e escolhidos como forma de apresentação - a uma prática de estudo que, em seu resultado final, se apresenta entre o fazer e o pensar. Refletir sobre certas questões básicas de nossa sociedade talvez nunca tenha sido uma atividade mais urgente; as sucessivas e anunciadas crises, e os agudos problemas políticos e econômicos que nos assombram, confundem sentidos e sentimentos... observar seus resultados cotidianamente, nos meios digitais e na fala das pessoas, apenas confirma essa urgência.

A mídia, as redes sociais e as grandes agências de notícias, como protagonistas do apagamento da memória política e do soterramento do senso crítico, executados pela instantaneidade das manchetes e dos rápidos cliques de compartilhamento que ignoram conteúdo (além de seus posicionamentos nada imparciais), têm deixado cada vez mais clara a necessidade de reaprender

determinados conceitos que remontam às bases de nossa sociedade heterogênea.

E em algumas dessas bases “clássicas”, sejam históricas ou antropológicas, estão os ingredientes para o trabalho das coleções aqui apresentadas: nossa inatingível classe política que remonta aos tempos do Brasil colônia, a devastação da paisagem, denunciada pelas comparações do ontem bucólico e do hoje caótico, as complexas estratificações sociais do país e suas relações de necessidade mútua, o lugar do outro ignorado na compreensão da pluralidade social do Brasil.

Os itens estão agrupados numa relação conceitual com as narrativas de viagem do século xix, momento importante na construção de nosso imaginário coletivo, e dispostos em um símbolo impresso da memória, de nossas viagens, uma peça na construção de nosso imaginário pessoal: os postais. Essa mescla na qual se baseia a proposta desse trabalho, que é crítica, procura simbolizar o quanto é preciso se debruçar novamente sobre o já vivido, para que essa memória seja ponto de partida, quem sabe decisivo mesmo em nossas mais simples atitudes questionadoras.

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