TFG | CARTAS DO ISOLAMENTO | COMPLETO

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UNIVERSIDADE MUNICIPAL DE SÃO CAETANO DO SUL

Lucas Almeida Oliveira dos Santos

Trabalho de conclusão de curso para obtenção do título de graduação em Arquitetura e Urbanismo apresentado para a Universidade Municipal de São Caetano do Sul.

Orientadora: Profa. Ma. Miriam Fernanda Lopes de Barros Moro

Aprovado em: BANCA EXAMINADORA

Profa. Ma. Miriam Moro

Prof. Dr. Enio Moro

Profa. Dra. Silvia Passarelli

São Caetano do Sul Dezembro de 2022

........................................

La muerte nunca nos venció porque todo lo que muere es por que alguna vez nació.

Calle 13

AGRADECIMENTOS

Assim como minha trajetória acadêmica, a lista de nomes que eu gostaria de incluir aqui é bastante longa, isso porque não agradeço somente a quem esteve diretamente ligado à realização desse trabalho, mas também a todos que contribuíram para minha jornada através desse ano tão denso enquanto realizava essa pesquisa de igual densidade. Como felizmente afirma minha orientadora, essa pandemia me marcou significativamente, acredito que não só por conta da calamidade coletiva que vivemos, mas também porque talvez tenha mudado mais em um ano de graduação do que nos últimos seis (sim, demorei tudo isso).

Ao meu pai, agradeço pelo carinho, compreensão e esforço de manter laços tão fortes, ainda que vivamos em universos diferentes.

À minha mãe, agradeço por me tornar o ser humano pensante que sou hoje, por tanta proteção e amor, ainda que a distância tenha sido uma grande parceira dessa relação. Por desromantizar a mãe guerreira, por ser hoje, minha amiga de verdade.

À Lara, por ser minha pessoa preferida e minha melhor amiga, e por abrir minha cabeça sempre tentando fazer piada comigo. Ich weiß, dass du der klügste Mensch der Welt bist, und ich liebe dich sehr E um igual cumprimento a meus meios irmãos paternos e minha madrasta, que apesar de não tão próximos, construíram cada qual seus próprios laços de afeto comigo.

Ao Guilherme, minha maior paz. Não apenas pelo companheirismo, mas também por tanta paciência em nós e por nós. Por me tornar a minha melhor versão, ainda que dentro dos meus limites, e por fazer eu me sentir a melhor pessoa do mundo.

À minha orientadora, Miriam, por tamanho conhecimento empregado nessa pesquisa, igualmente proporcional à amizade que nasceu da academia. E a Enio, me acolheu na USCS como professor, coordenador, companheiro de trabalho, amigo, carona e vizinho, e por tantas noites de histórias e risadas entre o Santo Antônio e a Santa Cecília. Também agradeço à professora Silvia por sua disponibilidade e interesse em participar dessa banca examinadora.

Aos professores que me marcaram minha trajetória, Isabela Sollero, Eloísa Ikeda, Hulda Wehmann, Akemi Morita, Tiago Franco, Toni Machado, Héber Cláudio, Luciano Santos, Luis Octávio Rocha, Ana Paula Barretto, Silvana Greff, Roberto Anau, Gisele Yamauchi e Ana Lúcia Spiassi.

No mais, agradeço a amigos, professores, conhecidos e colegas por tanta compreensão na minha ausência e tanta comemoração pelas minhas conquistas. À Shayene Carneiro, que é minha inspiração de arquiteta e ser humano; à Jennifer Barros, por tanto aprendizado e companheirismo; à Cibele Chiarot e Najlla Latif, que de tamanha amizade e carinho dividem o mesmo espaço nesse texto e na minha vida; ao Nicholas Pretto, por ser alguém que eu admiro e ter me dado a honra de estar nesse texto; à Camila Menezes, que passou de vizinha à grande amiga em poucos tragos; à Lícida Vidal, que me transformou em outro ser humano ao me ensinar a ver o mundo com argila nas mãos; ao Guillem Lahuerta, per fer me trobar a faltar Catalunya; à Giovanna Veraldi, Mabs, Guilherme Cajaíba, Paulo Assis, Natally Moraes, Calebe Marques, Fabiana Linchin, Vinicios Carlos, Marc Strasser, Vitor Vaz, Helena e Carol Spiassi, Paulo Henrique e Eduardo Koller. E à minha terapeuta.

RESUMO

A pandemia da Covid 19 ressaltou as profundas desigualdades sociais que a cidade de São Paulo comporta em seu território, entretanto, foi pela primeira vez possível acompanhar a evolução da doença em tempo real com uma quantidade nunca antes vista de informação georreferenciada disponibilizada globalmente graças à internet. A partir dessa experiência foi possível perceber que a geografia da doença segue um padrão bastante conhecido, entretanto, a situação de calamidade sanitária torna a relação entre a morbidade e o território ainda mais complexa. Essa pesquisa pretende investigar os territórios de exclusão, lugares na cidade de São Paulo que sofreram mais severamente a pandemia, buscando historicamente remontar esses mesmos lugares nas grandes epidemias do século XX. A mídia forneceu uma cobertura global da pandemia, nos permitindo acompanhar o avanço da Covid 19 tanto a nível global como municipal, entretanto os maiores surtos de doenças desde a Revolução Industrial foram marcados pela falta de rigor documental, sendo o SARS COV 2 o vírus mais observado por quase todos os campos das ciências.

No momento em que a medicina moderna parece estar mais preparada para identificar e lidar com um surto sanitário a vulnerabilidade na cidade de São Paulo evidenciou que saúde pública precisa estar completamente vinculada à uma clara leitura do território

Palavras chave: Morbidade; Saúde Pública; Covid 19; Tecido urbano; São Paulo.

ABSTRACT

The Covid 19 pandemic emphasized the deep social inequalities that the city of São Paulo holds in its territory, however, for the first time it was possible to observe the evolution of a disease in real time with an amount of georeferenced information never seen before, globally available due to internet. From this experience it was possible to notice that the geography of the disease follows a well-known pattern, but the situation of a sanitary calamity adds another layer of complexity in the relation of morbidity and territory.

This investigation aims to explore the territories of exclusion, places in the city of São Paulo where the pandemic was more severely suffered, attempting to historically reassembling these places in the greatest pandemics of the 20th century. The media has covered Covid 19 in both global and city levels, although the greatest sanitary outbreaks since Industrial Revolution were marked by the lack of documental accuracy, being SARS COV 2 the most observed virus from almost all the fields of study.

In the moment when modern medicine seemed to be the most prepared to identify and handle a sanitary outbreak the vulnerability in the city of São Paulo enlightened that public health must be completely attached to a clear understanding of the territory.

Key words: Morbidity; Public Health; Covid 19; Urban Tissue; São Paulo.

LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Mapa da mortalidade por Covid 19 na cidade de São Paulo. (esquerda)............................. 13

Figura 2: Mapa da população vacinada com duas doses na cidade de São Paulo (direita) 13

Figura 3: Mapa da territorialização da população negra na cidade de São Paulo. 13

Figura 4: Propagandas de Órgãos Públicos pedindo para a população ficar em casa, se puder. 15

Figura 5: Mapa do encolhimento do mundo por conta da globalização. 19

Figura 6: Pessoas em Itajaí (SC) aguardando para se vacinar contra a varíola em 1970. 26

Figura 7: Mapa da China destacando Yunnan (em vermelho) e Guangdong (em amarelo). 28

Figura 8: Caminhão transportando caixões durante a epidemia de gripe espanhola em São Paulo em 23/11/1918. 31

Figura 9: Principais rios do continente africano mostrando os rios Congo e Nilo. 34

Figura 10: Agente sanitário desinfetado a Piazza Duomo em Milão, Itália. 36

Figura 11: Diretor geral da OMS Tedros Adhanom declara a pandemia do novo coronavírus. .......... 42

Figura 12: Centro de São Paulo durante a pandemia do novo coronavírus. 43

Figura 13: Mapas 3.1, 3.2 e 3.4. 44

Figura 14: Mapas 3.1, 4.1 e 5.1. 51

Figura 15: Mapas 3.1, 3.2 e 3.4. ........................................................................................................... 52

Figura 16: Mapas 3.3, 3.4 e 4.4. 53

Figura 17: Mapas 3.3 e 5.3. 54

Figura 18: Mapas 3.1, 3.3 e 4.4. 55

Figura 19: Mapas 3.4 e 4.4. 56

Figura 20: Mapas 2.3, 3.1 e 4.2. 57

Figura 21: Mapas 2.3 e 3.3. 58

Figura 22: Mapas 2.3 (ampliação), 3.2 e 3.3 (ampliação). 58

Figura 23: Mapa 6.1. 62

LISTA DE MAPAS

Mapa 1.1 Mapa 1.2 Mapa 1.3

Mapa 2.1 Mapa 2.2 Mapa 2.3

Mapa 3.1 Mapa 3.2 Mapa 3.3 Mapa 3.4

Mapa 4.1 Mapa 4.2 Mapa 4.3 Mapa 4.4

Mapa 5.1 Mapa 5.2 Mapa 5.3 Mapa 5.4

Mapa 6.1

Mancha urbana da Metrópole de São Paulo | MSP e Estado de São Paulo Morfologia da mancha urbana da Metrópole de São Paulo | MSP Base Geopolítica do Município de São Paulo | MSP

Urbanização da cidade de São Paulo no começo do século XX Urbanização da cidade de São Paulo no meio do século XX Urbanização da cidade de São Paulo no final do século XX

Vulnerabilidade habitacional | Município de São Paulo

Vulnerabilidade habitacional | Ampliação região central Acesso a pé ao sistema metroferroviário Demografia por distrito

Mortalidade por Covid 19 na cidade de São Paulo

Territorialização da população preta e parta na cidade de São Paulo Densidade domiciliar por distrito Oferta de emprego formal por distrito

Vulnerabilidade habitacional e mortalidade por Covid 19

Vulnerabilidade habitacional e densidade por distrito

Vulnerabilidade habitacional e população preta e parda Demografia por distrito e acesso ao sistema metroferroviário

Territórios da exclusão

SUMÁRIO

01. Introdução....................................................................................................................12

02. Os surtos sanitários ....................................................................................................18

2.1. Do surto para a epidemia 20

2.2. A Cólera 22

2.3. A Tuberculose 23

2.4. A Varíola ............................................................................................................................. 24

2.4.1. A Revolta da Vacina de 1904................................................................................. 26

2.5. A Peste ................................................................................................................................ 27

2.6. A Gripe Espanhola 29 03. As epidemias viram pandêmicas................................................................................34

3.1. Bandeira amarela 36 3.2. Isolamento social 38 04. O isolamento social na cidade de São Paulo, que cidade é essa? 42

4.1. Da habitação...................................................................................................................... 44 4.2. Do saneamento e áreas livres....................................................................................... 46 4.3. Da desigualdade 47 05. Análise de dados .........................................................................................................50

5.1. Habitação 51 5.2. Acesso ao transporte...................................................................................................... 52 5.3. Renda................................................................................................................................... 54 5.4. Áreas verdes...................................................................................................................... 56 06. Considerações finais...................................................................................................60 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS....................................................................................66

01.

Introdução

Desde o começo de 2020 os mapas e infográficos sobre a territorialização da pandemia do coronavírus, não só em São Paulo, mas em todo o mundo, fez com que essa ferramenta científica de análise de território e tomada de decisão participasse das conversas cotidianas dos brasileiros, ainda que todos esses dados parecessem muito confusos e pouco esclarecedores. Acontece que, historicamente, notícias sobre doenças eram manipuladas ou escondidas de acordo com intenções políticas e econômicas, essa técnica foi utilizada por países em guerra, por economias em pleno crescimento e na ascensão de governos conservadores na América Latina, Estados Unidos e Europa. Pela primeira vez foi disponibilizada tamanha quantidade de informação para pessoas que não estão familiarizadas com a comunicação fria e científica, o resultado dessa ação certamente ainda não será visível na conclusão desse trabalho.

A presente pesquisa visa compreender e debater a ocorrência da pandemia e o território da cidade de São Paulo frente às desigualdades sociais pré-existentes. Com a elaboração de mapas foi possível compreender a geografia da doença e as fases de sua disseminação a nível global e, no caso da cidade de São Paulo, a nível de planejamento urbano, dessa maneira, foi possível observar como a doença atingiu as diversas formas de território da capital paulista. A hipótese inicial girava em torno das mudanças que a pandemia do coronavírus desencadearia no território, entretanto, ela não pôde ser comprovada; isso porque não foram criadas novas maneiras de ocupar o território, apenas foi alterado o modus operandi para fazer a manutenção de um mesmo status quo que seguiu como força dominante durante todo o período da doença: a produção de capital.

Dessa forma, entende-se que a pandemia apenas adiciona uma camada de vulnerabilidade, tornando ainda maior a desigualdade do nosso tecido social e urbano. Sendo assim, a presente pesquisa visa discorrer sobre as regiões da cidade de São Paulo onde a informalidade é tão dominante que sequer as medidas de proteção e contenção da disseminação do vírus tomadas pela Prefeitura Municipal tiveram algum impacto, isso porque ou a infraestrutura urbana básica não permitia que aquelas pessoas tivessem acesso pleno à higiene ou porque o modelo econômico não permitiu que essas pessoas salvaguardassem a própria vida ficando em casa por conta da ausência de uma fonte de renda fixa.

Segundo o Labcidade, laboratório da USP, as leituras territoriais da periferia da cidade de São Paulo durante a pandemia da covid foram estigmatizantes de simplistas e não consideraram a geografia da doença na tomada de decisão da prioridade na imunização. Os mapas produzidos por Aluízio Marino, Gisele Brito, Pedro Medonça e Raquel Rolnik clarificam que apesar de as periferias terem tido o maior número de hospitalização e morte por Covid e SRAGs entre 2020 e 2021 a vacinação foi muito mais ampla no centro expandido da cidade, onde se concentra a população branca e de classe alta. Outra pesquisa do mesmo laboratório argumenta que a população que passa maior tempo no deslocamento entre casa e trabalho

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também é a mais vulnerável a contaminação pela covid, sendo consequentemente os habitantes dos distritos mais periféricos, como evidenciam os estudos da Rede Nossa São Paulo para o Mapa da Desigualdade1

Figura 1: Mapa da mortalidade por Covid 19 na cidade de São Paulo. (esquerda)

Figura 2: Mapa da população vacinada com duas doses na cidade de São Paulo (direita)

Figura 3: Mapa da territorialização da população negra na cidade de São Paulo.

Fonte: Labcidade/USP

1 Mapa do Acesso ao Transporte de Massa por Distrito disponível em <https://www.nossasaopaulo.org.br/wp content/uploads/2021/10/Mapa Da Desigualdade 2021_Mapas.pdf>.

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Disponível em: http://www.labcidade.fau.usp.br/prioridade na vacinacao negligencia a geografia da covid 19 em sao paulo/ Schwarcz e Starling (2020) trazem à tona as semelhanças entre a pandemia de Covid com a Gripe Espanhola, que assolou o Brasil na segunda década do século passado, relatando que a peste sempre traz consigo grandes tumultos e um sentimento de negação, procurando buscar no outro a culpa da enfermidade. No mesmo livro é mencionado o pensamento do historiador Eric Hobsbawn, que discorre sobre o século XIX ter acabado em 1914 com o começo da Grande Guerra e não efetivamente em 1900, questionando se o mesmo não teria acontecido com o século XXI que tardaria vinte anos a chegar, com o início da pandemia de Covid-19. Contudo, diferente da Gripe Espanhola, a Covid acontece no século da informação, marcado pela presença massiva de dispositivos de georreferenciamento conectados à rede mundial de computadores e, com isso, com uma outra forma de coletar e exibir informações muito mais imparcial e científica do que durante a guerra.

Portanto, os objetivos deste trabalho são identificar historicamente os territórios onde os surtos de doenças foram mais severos na cidade de São Paulo no século XX a fim de mapeá-los; Compreender a morfologia desses espaços, assim como sua inserção urbana e as relações entre os focos de doença com a cidade; e produzir mapas analíticos e comparativos da morbidade da Covid 19 na cidade de São Paulo versus as características referentes às condições de infraestrutura urbana e habitabilidade da cidade, a fim de debater a produção do espaço urbano e desigualdades.

A pesquisa teórica irá investigar as mudanças socioeconômicas dos maiores surtos epidêmicos, desde o final do século XIX, através de levantamento de literatura especializada nas áreas de antropologia, sociologia, filosofia, direito e urbanismo e também ficção. Para entender quais surtos epidêmicos tiveram maior influência na transformação do espaço urbano e, consequentemente, serão objetos de estudo para essa pesquisa será realizado um fichamento bibliográfico compreendendo o estado da arte acerca do assunto, usando como critério de escolha as epidemias de doenças infectocontagiosas cujo vetor de contaminação seja a água ou o ar, como a cólera, a tuberculose, a varíola e a gripe espanhola. A cidade de São Paulo servirá como objeto de estudo para essa pesquisa por conta da familiaridade com o território e facilidade na coleta e apropriação dos dados e referências bibliográficas, visto que a produção primária de dados inviabilizaria a execução de uma pesquisa na abrangência de um trabalho final de graduação Como metodologia de trabalho para expressão dos resultados e reflexão, utiliza se a cartografia. A produção cartográfica será uma importante ferramenta de análise e discussão dos assuntos levantados neste trabalho pela clareza na representação da informação através de mapas, já o recorte temporal do levantamento bibliográfico será o período compreendido entre o final da Revolução Industrial, no século XIX, e a segunda década do século XXI, visto que a mudança da forma produtiva interferiu significativamente no território e nas relações socioeconômicas na Europa, somada a intensa urbanização desse continente, e tendo ressonância por todo o planeta. Também foi o período com maiores relações

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entre surtos epidêmicos e mudanças de comportamento por conta do avanço médico na era bacteriológica, conforme relatado por McNeil (1977, p. 242).

Como resultado, foi encontrada uma grande relação geográfica entre os territórios com maior vulnerabilidade urbana e as maiores taxas de mortalidade por Covid-19, levando a entender que a habitação é uma questão influente na morbidade. Entendeu se que a vulnerabilidade urbana está relacionada com a precariedade da moradia, isso porque historicamente os surtos sanitários foram mais severos em moradias com condições precárias de habitabilidade. Essa relação também existe ao especializar a população preta e parda e as maiores taxas de mortalidade, ou ainda a presença de vulnerabilidade habitacional; tamanha escala de aproximação começa a permitir que se crie um perfil do cidadão vulnerável e seja mais possível identificar quem são aquelas pessoas que não ficaram desassistidas somente durante a pandemia, mas também antes e depois dela. A partir da análise de território foi possível compreender que uma calamidade sanitária na cidade de São Paulo afeta a todos os CEPs mas é sentida de diferentes intensidades ao longo do tecido urbano, entender quais foram essas áreas foi importante para compreender a complexidade que é se tratar de um a vulnerabilidade que, apesar de estar bastante associada à pobreza, acontece em diferentes regiões da cidade e carrega consigo uma carga histórica de segregação e desassistência social. Ainda que a fria conclusão mostre uma estarrecedora realidade a história evidencia que, evidentemente, haverá poesia depois de Auschwitz.

Figura 4: Propagandas de Órgãos Públicos pedindo para a população ficar em casa, se puder.

Fonte: Prefeitura Municipal de Santa Ifigênia (MG), Prefeitura Municipal de São José do Calçado (ES) e Tribunal de Justiça do Amapá (TJAP). Disponível em: <https://www.santaefigenia.mg.gov.br/noticias/se puder fique em casa>, <https://pmsjc.es.gov.br/blog/artigo/se puder fique em casa leia um livro> e <https://twitter.com/tjap_oficial/status/1264231299709120515>.

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Os surtos sanitários

As estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda chance sobre a terra.

Endemia, surto, epidemia e pandemia são palavras que passaram a incorporar o repertório de quase toda a população global na segunda década do século XXI quando, rapidamente o mundo se viu englobado por uma doença provocada por um vírus microscópico que matava rapidamente suas vítimas, contudo apesar da surpresa esses conceitos são tão antigos quanto a história da humanidade. Segundo o Instituto Butantan um surto pode acontecer em qualquer espaço geográfico, até dentro de apenas um único hospital, quando um grande número de pessoas é infectada por uma mesma doença, contudo quando a doença convive com uma população por um longo período de tempo, ainda que com alta mortalidade, mas de maneira estável, é considerada uma endemia. A epidemia acontece quando um surto toma proporções maiores e acomete uma cidade ou uma região inteira, contudo, a pandemia é a única que não respeita limites geográficos, ela é facilitada com a rapidez das viagens internacionais e o grande fluxo de passageiros que transitam entre cidades, estados, países e continentes diariamente. De acordo com dados da GRU Airport (2022)2, concessionária que administra o Aeroporto Internacional de Guarulhos que serve à Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), apenas no mês de fevereiro de 2022 foram registrados 2,35 milhões de passageiros, sendo mais de 22 mil em viagens internacionais, isso representa um aumento em relação ao ano de 2021, mas uma diminuição se baseando em dados de 2020, antes do início oficial da pandemia do coronavírus. Esse dado isolado não diz muito sobre o fluxo de viagens internacionais no mundo, mas dimensiona a quantidade de pessoas que passam em uma grande metrópole diariamente vindas de todos os cantos do planeta.

Segundo Biernath (2020) o aparecimento de novos vírus está totalmente relacionado com a degradação do meio ambiente, a intensa urbanização e o aumento no consumo de produtos de origem animal. Em artigo escrito para a BBC Brasil o repórter comenta que o contato entre os mundos urbano e selvagem já foi epicentro de outras doenças, como o Ebola na África Ocidental e as influenzas no sudeste asiático. Segundo o World Cities Report de 2022, publicado pela UN HABITAT, metade da população global já vive em áreas urbanas, sendo um crescimento vertiginoso desde a metade do século passado quando apenas um quarto da população mundial era urbana, prospectando um aumento ainda maior para o futuro3. Outro dado importante é impacto de dietas incluindo carnes e

2 Disponível em <https://www.gru.com.br/pt/passageiro/noticias detalhe?code=263>.

3 Disponível em <https://unhabitat.org/wcr/>.

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02.

produtos de origem animal, cuja produção e criação pecuária capitalista gera muitos gases do efeito estufa (PEREIRA, 2022, p. 138), pois apesar da redução desses elementos ser vital para a preservação do planeta é necessário levar em conta a territorialização da desigualdade e entender que, em regiões onde existe a subnutrição e a falta de acesso aos alimentos, a solução não é tão simplista como um corte alimentar, conforme FERRE (apud. PLANELLE, 2019)4

A globalização, portanto, não apenas diminui distancias, mas também cria um cenário propício para o surgimento de novos vírus e bactérias, além de proporcionar o encontro de diferentes povos e culturas. Frente a essa mudança, entrando no século da informação, a compreensão da rápida propagação de surtos epidêmicos é fundamental para que as respostas sejam efetivas, eficazes e eficientes. A pandemia do coronavírus nos mostrou a emergência em se preparar para novos surtos sanitários e evidenciou a atrocidade que decisões políticas podem causar com a perda de vidas. Até a conclusão dessa pesquisa, segundo o Coronavirus Resource Center da Universidade John Hopkins, 6.644.660 vidas foram perdidas para a Covid 195

Figura 5: Mapa do encolhimento do mundo por conta da globalização.

Disponível em: <https://escolaeducacao.com.br/as caracteristicas da globalizacao/>.

É com a locomotiva a vapor que as viagens entre cidades e países começa a ficar mais rápida, não dependendo apenas dos oceanos para percorrer grandes distâncias, levando passageiros contaminados ainda mais longe antes que perecessem. Além disso a urbanização crescente, tanto na Europa por conta da

4 Disponível em <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/08/08/ciencia/1565285624_326508.html>.

5 Dado atualizado no dia 06/12/2022. Disponível em <https://coronavirus.jhu.edu/map.html>.

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Segunda Revolução Industrial quanto no Brasil, por conta da demanda de mercados produtores durante a Primeira Guerra Mundial, acelera o processo de globalização e diminuição das distancias internacionais, tornando os séculos XX e XXI propícios para o surgimento de uma nova pandemia global (SCHWARCZ e STARLING, 2020).

2.1. Do surto para a epidemia

A Revolução Industrial causou grandes mudanças no território europeu, com o êxodo rural e o súbito aumento da população urbana a qualidade de vida dos habitantes caiu enquanto o preço dos alugueis e custo de vida subia vertiginosamente. A nova população proletária, pobre e com jornadas de trabalho longas, se amontoava em porões e cortiços com pouca ou sem nenhuma ventilação, os dejetos eram despejados em latrinas comunitárias que chegavam a atender 250 pessoas em cidades como Manchester, famílias inteiras dormiam na mesma cama e 35 a 40 crianças a cada 100 chegaram aos cinco anos de idade por conta da sujeira urbana (UJVARI, 2020, p. 148-150).

Em sua obra de 1845 Engels retrata uma Manchester poluída e empoeirada com bulevares de lojas elegantes por onde a burguesia transitava escondendo vielas sem esgotamento sanitário, ventilação e iluminação própria. A classe proletária estava suscetível a doenças infectocontagiosas não apenas por conta do meio pouco higiênico onde viviam, mas pelo desgaste físico e imunológico decorrente das longas jornadas de trabalho com pouco tempo livre e raras opções de lazer e entretenimento, ainda mais com a necessidade de vender a mão de obra para pagar o alto custo de vida urbano. Para Ujvari (2020, p. 154) “A epidemia fazia aflorar as diferenças sociais numa sociedade marcada pela exploração excessiva e pelo desgaste do ser humano (...)”, pensamento que reforça a descrição da cidade operária visitada por Engels quase dois séculos antes Outra porta aberta para a proliferação das doenças infectocontagiosas na Europa foi o desconhecimento da microbiologia, a ciência médica concluía que as contaminações eram causadas por miasmas, substancias invisíveis emanadas por lixo orgânico e matéria em decomposição que se acumulavam nas ruas das grandes cidades, resultando no pensamento sanitarista de melhoramentos urbanos através do combate à imundice das vias públicas. Essas medidas foram benéficas no combate a doenças contagiosas, mas partiam de uma base errada, contudo a descoberta da bactéria aconteceria só no final do século XIX com estudos de Koch e Pasteur.

O espetáculo da imundice em que viviam as capitais industriais europeias, em descrição, não diferem muito da condição precária da habitação informal nas cidades brasileiras. A falta de infraestrutura sanitária é um problema recorrente na São Paulo da segunda metade do século XXI, segundo o Painel Saneamento Brasil 3,7% da população paulistana vive sem acesso ao sistema de esgoto enquanto 0,7% sequer teve acesso à água encanada durante a pandemia do coronavírus (SNIS, 2020)6. A população proletária segue vendendo grande parte do seu tempo

6 Dados segundo Painel Saneamento Brasil do Instituto Trata Brasil. Disponível em <https://www.painelsaneamento.org.br/localidade/compare?id=355030>.

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para o trabalho, adicionando às horas laborais todo o tempo gasto no deslocamento entre casa e trabalho o tempo livre continua escasso. Após o início da pandemia do coronavírus diversas medidas sanitárias foram aplicadas na cidade de São Paulo e espelhadas nos municípios da Região Metropolitana na tentativa de conter a disseminação do vírus e resguardar a população, porém a desigualdade social préexistente não foi levada em consideração para a equidade das decisões públicas. Durante o ano de 2020 apenas 11% dos brasileiros que continuaram empregados foram afastados para o regime de teletrabalho, entre eles, 56% mulheres, 65,6% brancos e 74,6% profissionais com ensino superior (LISBOA, 2021), evidenciando a vulnerabilidade da maior parte da população, em sua maioria negra e sem ensino superior, em relação à pandemia, paralelamente o número de pedidos de comida por aplicativo aumentou em quase 50% na cidade de São Paulo no começo de 2021, época de agravamento da Covid 19 e endurecimento das medidas de isolamento social na cidade7. Esses dados clarificam a relação entre burguesia e proletariado ao mostrar que enquanto parte da população pôde trabalhar em segurança com a possibilidade de isolamento social existiu toda uma estrutura proletária para servir essa população. Além disso, o país terminou o ano de 2021 com 11,1% da população desempregada8, isso atrelado ao emprego informal e a falta de vínculos empregatícios, como é o caso dos entregadores e motoristas de aplicativo, exponencia uma situação de fragilidade social em situação de calamidade sanitária quando essa população precisa expor a própria vida ao risco de contaminação pelo SARS COV2 para manter a estabilidade financeira do núcleo familiar.

Essa fragilidade é expressa também na forma de ocupar o espaço urbano uma vez que os bairros centrais e mais infra estruturados contam com mais opções de praças, parques, centros culturais e lazer em locais abertos, sendo também possíveis de acessar a pé pelos moradores das redondezas sem a necessidade de exposição no transporte público. A camada mais rica dos paulistanos também teve a chance de escolher se mudar para bairros mais baratos ou até mesmo outras cidades enquanto a população sem-teto aumentou 31% de 2021 para 20229. Essas atitudes não são inéditas na forma que as pessoas enfrentam surtos de doenças, em 1832 durante a epidemia de cólera em Paris cerca de 120 mil pessoas saíram da capital francesa na tentativa se livrar da doença (UJVARI, 2020, p. 154) porque a história se repete a cada novo surto, por isso a literatura oferece diversas respostas de como enfrentar crises sanitárias de acordo com experiencias passadas. Para entender como a pandemia do Covid 19 afetou a ocupação do espaço urbano e quais serão as cicatrizes que esse evento deixará em nosso tecido social é

7 CNN BRASIL, Delivery de comida cresce 45% em São Paulo com agravamento da Covid 19 Disponível em < https://www.cnnbrasil.com.br/business/delivery de comida cresce quase 50 em sao paulo-com-agravamento-da-covid-19/>. Acesso em 06/04/2022.

8 IBGE, 2021. Disponível em < https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php>. Acesso em 06/04/2022.

9 PALHARES e ZYLBERKAN para Folha de São Paulo. População de moradores de rua cresce 31% em São Paulo na pandemia. Disponível em < https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/na pandemia quase dobra o numero de familias que vivem nas ruas de sao paulo.shtml>. Acesso em 06/04/2022.

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primordial remontar os acontecimentos das grandes epidemias dos últimos séculos a fim de embasar a discussão que a qual essa pesquisa se propõe.

2.2. A Cólera

A cólera encontra um cenário propício para sua propagação quando chega a uma Londres pobre, sem saneamento, com ruas imundas e dominada ideologicamente pela teoria miasmática. No final do século XIX ainda a ciência médica ainda não havia descoberto a existência da bactéria e o pensamento de que indivíduos doentes e objetos infectados poderiam contaminar outras pessoas era fortemente repreendida. Os hospitais europeus eram palco de infecções e mortes cotidianas por conta da falta de higiene de médicos cirurgiões:

As salas cirúrgicas era anfiteatros cheios de expectadores, ou salas escuras, úmidas, atulhadas de móveis e pó; muitas delas com vazamentos e mofo nas paredes (...) os aventais dos cirurgiões usados com as mangas arregaçadas até os cotovelos eram pretos e sujos de sangue e pus, e era neles que esfregavam as mãos para continuar o procedimento. (UJVARI, 2020, p. 167)

Frente a esse cenário era comum que as doenças virassem surtos localizados em hospitais e quando um vírus vindo do oriente chega a Inglaterra desafiando o sistema imunológico europeu já desgastado da rotina trabalhista, subnutrido por conta do alto preço dos alimentos e das fomes que não eram raras e vivendo em meio a imundice urbana rapidamente a epidemia se alastra pelos bairros mais pobres das capitais. A teoria miasmática ainda dominava o pensamento científico europeu e, com isso, a maior taxa de contaminação nas classes mais pobres da população era atrelada à imundice dos bairros proletários e a miséria que essas pessoas viviam, sendo combustível para medidas higienistas que visavam a limpeza urbana sem combater as desigualdades sociais causadas pela rápida industrialização do continente, como foi o Plano Haussmann10 de Paris.

A cidade de Londres sofreu com o cólera em diversos surtos, sendo o primeiro a atingir a Grã Bretanha no ano de 1832, contudo apenas em 1854 que John Snow, um médico londrino, estabeleceu um paralelo entre a contaminação de moradores de Londres com a fonte de água que abastecia aquela região da cidade após dois surtos em ruas diferentes cujos moradores coletavam a água do mesmo poço. Com o prosseguimento da investigação foi constatado que a empresa Southwark & Vauxhall, que abastecia este poço retirava a água de uma parte do rio Tâmisa que recebia esgoto, reforçando a teoria de que a contaminação se dava por um vetor de transmissão. Contudo a consolidação da teoria contagionista, que provava a contaminação de pacientes através de agentes infecciosos, começaria a ser amplamente aceita apenas no final do século após as descobertas de Koch e Pasteur (MCNEIL, 1977, p. 236 e UJVARI, 2020, p. 165 165).

10 Plano de reforma do desenho do centro de Paris de cunho higienista causando grande gentrificação da cidade com a abertura de novas avenidas ao redor do Arco do Triunfo e remodelação paisagística promovida pelo barão Georges Eugène Hausmann entre 1852 e 1870.

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Entretanto desde o aparecimento da doença foi estabelecido uma junta central de higiene, que por sua vez não tinha força política para promover reformas urbanas efetivas por ser composta por membros localmente eleitos e voluntários. Apenas na segunda aparição da cólera na ilha, em 1848, foi criada a Junta Central de Higiene composta de reformistas sanitários com poder legal, nascendo o projeto de Sir Edwin Chadwick do novo sistema de esgotamento para a cidade de Londres, com tubos de cerâmica mais estreitos e com fluxo de água constante, além de uma proposta de usar o esgoto como fertilizante para produtores rurais que nunca achou argumentos financeiros suficientes para sair do papel.

A doença chegou às Américas, entrando no Brasil por uma embarcação contaminada que aportou em Belém do Pará em maio de 1855. As cidades litorâneas foram as mais atingidas pelo flagelo, sendo o Rio de Janeiro, Belém e Salvador os focos mais importantes de contaminação. A cidade de São Paulo foi poupada da doença em sua primeira onda, uma vez que ela viajava por navios, e quando finalmente consegue subir a serra encontra uma cidade com esgotamento sanitário, diferente do cenário durante as primeiras contaminações quando as populações mais vulneráveis eram exatamente aquelas que não tinham acesso à água limpa. As obras de saneamento nas cidades brasileiras foram motivadas pelo sucesso do esgotamento das cidades inglesas, sendo contratada uma empresa daquele país para trazer a tecnologia ao Brasil, essa ação tardia das Juntas de Higiene das Províncias foi significativa no combate à cólera, ainda que tenham sido eficazes apenas para a parcela com acesso à infraestrutura urbana da época, o que já excluía escravos e pessoas livres não brancas, que representaram um terço dos mortos pela cólera no Brasil (SANTOS, 1994, p. 86-88).

A última epidemia de cólera no Brasil foi entre 1991 e 2004 com a maioria dos casos nas regiões Norte e Nordeste (BRASIL, 2019).

2.3. A Tuberculose

O período entre 1870 até 1914, conhecido como Belle Époque, é marcado por grande avanço médico científico na Europa, a bela época, do francês, foram anos de intensa efervescência cultural no velho continente, com a razão voltando a ganhar espaço nas ciências humanas e biológicas. Mattos (2005) ressalta a importância de essa produção cultural e científica ter gerado produtos ideológicos que poderiam ser mercantilizados, assim o conhecimento geraria lucro no mercado capitalista e teria ainda mais investimento. Diversas descobertas de agentes patológicos e vacinas foram feitas nesse período entre a guerra franco prussiana e a Primeira Guerra Mundial pois isso alimentou uma enorme indústria médico farmacológica. É nessa Europa que o médico alemão Robert Koch identifica o bacilo Mycrobacterium tuberculosis, causador da tuberculose. Posteriormente o bacilo ficaria conhecido como bacilo de Koch (BRASIL, 2007).

Estudos acreditam que o bacilo tenha chegado no Brasil junto com os portugueses, em 1500, porém a doença apenas ganha notoriedade no século XIX, quando aparecem vários institutos filantrópicos para o cuidado e profilaxia da doença e são elaborados planos federais de ação contra a tuberculose, coincidindo com a intensificação da urbanização e crescimento das periferias das cidades

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brasileiras impulsionada pela intensa industrialização do país durante a Segunda Guerra Mundial, como apontado por Maricato (2013, p. 24). Foi a partir da década de 1940, entretanto, que a taxa de mortalidade da doença decresce com o uso de antibióticos. Já em 1973 aparece a vacina de BCG que três anos depois passaria a ser obrigatória para menores de um ano. Contudo a tuberculose ainda representa um problema de saúde pública, em partes, porque a taxa de abandono do tratamento de 12% dos pacientes é considerada alta por especialistas. (HIJJAR e PROCÓPIO, 2006 apud. ACHCAR, 2016 p. 17). A doença dos poetas encontra um cenário propício para sua disseminação numa São Paulo, que assim como o Brasil, se urbanizava rapidamente e em meio ao crescimento da malha urbana junto ao crescimento da industrialização e ascensão econômica o acesso à terra não foi democrático. Apenas no meio para o final do século XX a população urbana brasileira vivendo em cidades aumentou em mais de vinte milhões de habitantes, o equivalente à população do Canadá (MARICATO, 2013, p. 16 17). Em meio a esse rápido crescimento as brechas para que uma doença se tornasse epidêmica eram muitas.

Com a proliferação dos cortiços no centro, com vários habitantes por cômodo e ambientes compartilhados, o bacilo não tinha dificuldade em achar novas vítimas, as habitações periféricas auto construídas também não contavam com boa insolação e ventilação, transformando os bairros pobres em grandes vetores da doença. A sociedade da época ligava o adoecimento de famílias pobres inteiras à predisposição genética dos menos abastados a morrerem de tuberculose, fazendo com que a administração pública pudesse ignorar essas mortes por um bom tempo até que a doença passasse a ser considerada algo grave. A tuberculose segue sendo uma doença grave no Brasil, sendo a principal causa de mortes de jovens por doenças infecciosas até a pandemia do coronavírus, isso dado ao seu diagnóstico arcaico e tratamento complicado11. No Brasil houve uma queda nos casos da doença nos últimos anos, por conta da pandemia de COVID, mas também por resultados positivos nos serviços do sistema de saúde, em 2021 foram notificados 68.271 casos novos de tuberculose (SAÚDE, 2022).

2.4. A Varíola

A varíola existia no litoral do Congo por muitos anos, contudo, com a colonização belga o país sofreu não apenas com a barbárie dos europeus, mas também com as suas próprias mazelas naturais. Junto com os nativos congoleses que adentravam a mata para extrair o látex viajava também o COVID, vírus causador da varíola, a doença que outrora estivera presente apenas no litoral do país entrou em contato com tribos que jamais tinham lidado com a infecção, não possuindo em seus sistemas imunológicos os anticorpos necessários. A colonização do Congo foi

11 Segundo site dos Médicos sem Fronteiras, disponível em < https://www.msf.org.br/o que fazemos/atividades

medicas/tuberculose/?utm_source=adwords_msf&utm_medium=&utm_campaign=doencas_geral_co municacao&utm_content=_exclusao saude_brasil_39923&gclid=CjwKCAjwsfuYBhAZEiwA5a6CDF5beYdpDAh2ua7dK8UXkoZkbqhJEJOd 7v qHjxC6eTgkceWiAp4WRoCpZoQAvD_BwE&playlist=734a15b&video=fcf0319>. Acesso em 12/09 2022.

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brutal não apenas por conta do massacre empreitado pelos belgas para a extração do látex e controle do território, mas também porque disseminou um vírus que seria letal não só para os africanos, mas também para os europeus, e posteriormente, os americanos (UJVARI, 2020, p. 184).

A doença chega à Europa em uma época de descobertas médicas, diversos bacilos, vírus e bactérias causadores de doenças são identificados e, consequentemente, vacinas começam a ser produzidas. O continente europeu vivia a chamada Belle Époque, que durou de 1870 a 1914 com o começo da Primeira Guerra Mundial (MATTOS, 2005). Apesar de parecer um cenário muito mais amistoso do que a chegada da cólera ou da tuberculose nas grandes cidades ocidentais o avanço médico não era socialmente igualitário, como afirma Mattos (2005), “A busca de criação de vacinas para doenças epidêmicas caminha ‘par e passo’ com a organização do mundo capitalista”. Isso se mostra evidente não apenas nos territórios colonizados, mas também nas metrópoles, devido ao mecanismo social de opressão capitalista que operava tanto sobre os proletários industriais quanto sobre os escravos. Ujvari (2020, p. 188) afirma que alterações políticas, econômicas e sociais foram determinantes para a chegada de grandes epidemias no Brasil na primeira metade do século XIX, especialmente na capital do Império, o Rio de Janeiro, que recebia não apenas um número crescente de navios a vapor com passageiros e cargas da Europa, mas também um número sem igual de escravos trazidos em navios negreiros da África.

A entrada dos africanos em território brasileiro trouxe consigo a varíola, as condições precárias da viagem, que pioraram com as tentativas de abolição da escravidão no país tornando o comércio ilegal, porém ainda crescente, e também sua proibição de usar sapatos contribuíam em muito para o aumento das epidemias urbanas. Na Europa, por outro lado, a guerra franco prussiana tratava de disseminar a doença pela Alemanha, França e Inglaterra uma vez que apenas o primeiro país impunha a obrigatoriedade da vacina, seguido pela Inglaterra. Ao fim, os franceses tiveram o maior número de baixas por conta da varíola, o único dos três países a não adotar a obrigatoriedade da vacina (UJVARI, 2020, p. 172).

Diferente das outras enfermidades pesquisadas nesse trabalho, a varíola tem uma ligação muito mais forte com a exploração por ser quase mineirada do território africano, fazendo uma analogia com o fato de ter sido retirada do seu território de origem e sido disseminada pelo planeta. Sua proliferação é reforçada pela sociedade escravocrata da época, cujos costumes opressores apenas faziam mais potente a transmissão da moléstia nos aglomerados urbanos onde a desigualdade social era extrema. Por conta das chuvas de verão a população carioca mais abastada, incluindo a família real, viajava para cidades afastadas como Petrópolis, a capital federal sem saneamento nem provisão de água potável junto com o lixo e sujeira urbana se tornava um espaço propício para o aparecimento de epidemias nessa época, especialmente as que eram transmitidas por picadas de mosquito12 . Esse comportamento de fuga das elites é visto em outros momentos da história,

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São as doenças febris epidêmicas ou diarreicas sazonais, que podem também causar epidemias e pandemias como a febre amarela (UJVARI, 2020, p. 189).

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como na epidemia de Gripe Espanhola que assolou São Paulo em 191813 e até a própria pandemia da COVID 19, em 2020, entretanto, como já ressaltado a cura de uma doença e a sua erradicação não andam de mãos dadas, existe vontades políticas entre elas.

Em abril de 1971 os dezenove moradores da Vila Cruzeiro, no Rio de Janeiro, foram os últimos brasileiros a terem varíola no país. Em 1980 a Organização Mundial da Saúde (OMS) reconhece a erradicação da doença causada pelo vírus Poxvirus variolae, causador da varíola, essa não somente foi a doença para qual se foi desenvolvida a primeira vacina pela ciência, mas também a primeira a ser erradicada mundialmente através da saúde pública em escala mundial, segundo Rita B. Barata, epidemiologista da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo (FIORAVANTI, 2021).

2.4.1. A Revolta da Vacina de 1904

Foi em 1904 que a imprensa divulga a nova lei federal que tornava obrigatória a vacinação contra a varíola de qualquer cidadão brasileiro com mais de um ano de vida, isso por conta das provas científicas de que a vacinação era de interesse comum para a saúde pública, visto que haviam diversos focos em todo o país, inclusive no Rio de Janeiro, até então Capital Federal. A oposição passou a atacar o sistema de saúde alegando que a vacina não era o problema e sim as campanhas de aplicação, que julgavam ser de pouca confiança, além de achar brutal a obrigatoriedade de vacinação, tirando lhes o direito de escolha (SEVCENKO, 2010). A falta de informação, somada à preconceitos da época pelo fato de a doença estar

13 Ver SCHWARCZ e STARLING, A Bailarina da morte: A gripe espanhola no Brasil, 2020, p. 187.

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Figura 6: Pessoas em Itajaí (SC) aguardando para se vacinar contra a varíola em 1970. Fonte: Acervo Oswaldo Cruz. Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/os caminhos abertos pela primeira vacina/>.

presente nas camadas mais pobres da sociedade, fazia com que as elites tivessem asco de lidar com a calamidade, refletindo o comportamento higienista da época.

Diferentemente das outras doenças estudadas nesse trabalho, a varíola já tinha uma cura conhecida. Popularmente acreditava se que injetar a secreção das pústulas dos doentes em pacientes sadios para que esses desenvolvessem a imunidade ao vírus naturalmente. Esse método, apesar de eficiente, resultou em revoltas populares por conta do desconhecimento científico por parte da população e a truculência política para a erradicação da doença, em meados do século XIX a vacina passa a ser inoculada em animais para que seja aplicada em humanos na sua forma não letal, e não em sua forma benigna como era feito popularmente, essa mudança também permitiu a produção e armazenamento industrial da vacina, fazendo com que campanhas de vacinação fossem mais rápidas e eficazes (MATTOS, 2005). Entretanto, no Brasil do século XIX a desinformação era grande e as autoridades de saúde da recém república ainda não tinham desenvolvido o tato necessário para lidar com a vasta população brasileira, composta de nativos, imigrantes e escravos, esse ruído de comunicação ocasionou um importante episódio no século XX, que faz com que o surto de varíola entre no recorte de estudo dessa pesquisa, foi a Revolta da Vacina de 1904 no Rio de Janeiro. Não apenas a literatura científica retrata a varíola, mas também a ficção, como no romance Capitães da Areia de Jorge Amado, sendo esse um período de intenso aumento na desigualdade social no país.

2.5.

A Peste14

Durante o século XIX a Peste Bubônica invadiu a Europa matando quase um terço da população desse continente, desde então todas as suas aparições resultaram em altíssimas taxas de mortalidade e medo por conta da ausência de informações sobre o contágio e transmissão. A doença aparece em uma época na qual ainda não existiam estudos microbiológicos e, portanto, não se sabia que era causada pela bactéria Yersinia pestis e muito menos que ela era transmitida de ratos infectados para pulgas que, posteriormente, picavam humanos levando o bacilo que causaria altas febres e bubões negros nas axilas e virilha até levar o paciente à morte em poucos dias.

A doença sempre ganhou o mundo por conta das rotas comerciais, especialmente por vias marítimas pelas quais saia da China e chegava à Europa antes de embarcar em novos navios rumo às Américas e África. Em 1759 o governo britânico tentou melhorar a relação comercial com a China, que se abria para os produtos estrangeiros apenas no porto de Cantão, na província de Guangdong. Devido à hostilidade do Imperador Chien Lung a coroa britânica decidiu inserir o ópio na cultura chinesa a fim de criar um forte mercado consumidor dependente da droga e, assim, adentrar no território do país asiático. Dessa maneira Yunnan, uma

14 Apesar de não ter como vetor de contaminação o ar ou a água, o recorte de estudo desse trabalho, a peste bubônica foi uma força motriz na consolidação do espaço urbano de São Paulo, especialmente na questão sanitária, desse modo, esse subcapítulo se dedica a aprofundar se na compreensão desse surto para que algumas ideias sejam relacionadas com o recorte de análise de forma concisa.

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província agrícola isolada no sudoeste da China onde o bacilo da peste aparecia esporadicamente, passou a receber comerciantes e ter suas estradas movimentadas, mesmo após a droga ser proibida o comércio clandestino fez com que não levasse muito tempo para que a peste viajasse junto desses comerciantes de volta à Cantão e os outros quatro novos portos que haviam sido abertos ao comércio estrangeiro, entre eles Xangai, Xiamen (antiga Amoy) e Hong Kong (UJVARI, 2020, p. 209 211).

Figura 7: Mapa da China destacando Yunnan (em vermelho) e Guangdong (em amarelo).

Fonte: Produzido pelo autor.

A abertura comercial da China foi essencial para a disseminação do bacilo da peste dentro do próprio país e pelo mundo. Quando começam a aparecer os primeiros casos de infecções em Cantão e Hong Kong a teoria dos miasmas já era ultrapassada na Europa, onde médicos com seus microscópios estudavam as bactérias, portanto não demorou muito para que o soro antipestoso fosse criado pelo Instituto Pasteur e produzido a todo vapor, pela primeira vez a peste se espalhava em um mundo que já conhecia um possível antidoto. Por outro lado, diversas cidades litorâneas tinham um cenário urbano propício para a presença de ratos: ruas lamacentas, mercados a céu aberto com esgoto e lixo no passeio e a pobreza da população urbana que crescia, do Havaí à cidade do Porto a peste assolou essas regiões deixando um rastro de contágio até que, em meados de 1899, ratos mortos começaram a aparecer no porto de Santos; a peste havia chegado no Brasil.

A doença chega ao estado de São Paulo em um contexto de expansão da capital, a cidade se limitava ao rio Tamanduateí e o córrego do Anhangabaú e o cemitério da Consolação, a três quilômetros do centro, era o terreno mais afastado da cidade para conter os miasmas dos mortos. A expansão para o oeste da cidade continuou com a construção do Hospital de Isolamento da atual Avenida Doutor Arnaldo, que funcionava apenas quando eclodiam as epidemias sazonais. Por fim, com a chegada da peste e com a impossibilidade do Instituto Pasteur exportar o

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soro antipestoso da França por conta da alta demanda o governo brasileiro decide iniciar a produção nacional, para tanto era necessário criar animais nos quais o vírus seria inoculado antes de virar um soro seguro para ser administrado em humanos doentes, assim a cidade anda nove quilômetros em direção ao rio Pinheiros por estradas lamacentas, iniciando a ocupação do que viria a ser a zona oeste paulistana com a abertura do Instituto Butantan (UJVARI, 2020, p. 223 229). A peste bubônica seguiu um importante rota sanitarista da cidade de São Paulo, de procura por novas terras mais salubres. A peste bubônica figura entre as maiores epidemias da história, tanto em tempo, pois seus surtos espaçados duram desde a Idade Média, quanto em mortes, por ter sido responsável pela morte de dois terços da população europeia no seu auge, segundo estimativas. Junto da peste, no rol de maiores epidemias da história, estão também a gripe espanhola, a peste antonina15 e a AIDS16

2.6. A Gripe Espanhola

Durante a Grande Guerra, em 1918, a Europa enfrentou uma epidemia de influenza muito mais virulenta e mortal que aquelas sazonais que já acometiam a sociedade ocidental há tempos. O cenário de conflito político aumentou a desinformação por conta do foco total dos países envolvidos no combate, que não queriam demonstrar fraqueza diante do inimigo invisível. Por esse motivo a Espanha foi a única nação a identificar e noticiar o aumento dos casos da nova influenza e, com isso, teve a sina de carregar o nome da doença, a espanhola já era um perigo maior que a guerra.

A moléstia demorou a entrar na América Latina, isso porque não se sabe ao certo se a doença se originou na Europa ou se foi levada pelos navios estadunidenses com destino as trincheiras, porém apenas no final de 1918 que o navio Demerara desembarca no porto de Recife com passageiros contaminados abrindo as portas para que a influenza fizesse sua rápida viagem pelo litoral e, posteriormente, para o interior do país. A rota do vapor Demerara serviu de documento histórico para traçar a cronologia do contágio pelo interior da América do Sul, de Liverpool fez uma escala em Lisboa antes de atracar em Recife, depois uma nova escala em Salvador antes de atracar no Rio de Janeiro, quando finalmente hasteou a bandeira amarela que indicava doença a bordo. Ainda assim o navio foi liberado para seguir para Montevidéu, onde as autoridades também fizeram pouco caso e deixaram para os argentinos desinfectarem o navio apenas quando chegou em Buenos Aires, já era tarde demais17 .

A partir das aglomerações urbanas litorâneas a gripe começou a adentrar o interior do continente rapidamente, segundo Schwarcz e Starling (2020, p. 66), traço que tornava o vírus mais fatal. As grandes cidades brasileiras não tardaram a ser afetadas pela epidemia e, em pouco tempo, o número de óbitos superava os de

15 Surto de varíola no Império Romano que começou no ano 165.

16 Disponível em < https://mundoeducacao.uol.com.br/curiosidades/as piores epidemias historia.htm>. Acesso em 12/09/2022.

17 Rota do vapor Demerara, proveniente de Liverpool com destino à cidade de Buenos Aires (SCHWARCZ e STARLING, 2020, p. 61 62)

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caixões e coveiros disponíveis. Sem direcionamento em nível federal, os governos locais começaram a tomar medidas desuniformes que resultou em números diferentes de mortes pelo país, que apesar da imprecisão mostra alguma diferença entre capitais que mantiveram comércio e escolas fechados por mais tempo e os moradores em quarentena daquelas que não seguiram esses protocolos (tendo as primeiras menos mortes per capta que as segundas).

A falta de comunicação territorial nas respostas frente à epidemia foi o cenário propício para o que viria a seguir. Adotando uma postura de negacionismo, o governo pernambucano começou a divulgar casos de mortes por “tanatomorbia”18 , doença que não existia e apenas significava “moléstia que determina a morte”, esse embaralhamento de dados escondeu o registro oficial de mortes pela gripe espanhola, cumprindo a intenção de ser apenas “uma estratégia adotada por um governo estadual que acreditava ser capaz de dominar a peste fingindo que ela não existia” (SCHWARCZ e STARLING, 2020, p. 73).

Em São Paulo, a rotina de restrições durante a espanhola ficou conhecida como “cotidiano epidêmico”, depois de um comunicado oficial publicado no Estado de S. Paulo em 17 de outubro de 1918 que mudou a rotina da cidade. Escolas, restaurantes, casas noturnas, teatros e igrejas encerraram suas atividades e era recomendado que as pessoas não saíssem à noite para evitar o contágio. Ainda assim, a doença foi tratada como passageira na capital paulista e mesmo com o alarmismo da imprensa, considerado demasiado exagerado pela sociedade política da época, pensou se que seria apenas “uma gripezinha”. A questão central da gripe espanhola é que ela ocorre em um momento de estabilização da república brasileira, o cenário político era miscigenado, com a instancia federativa respondendo à epidemia com toda a força enquanto o Estado de São Paulo a tratava como um surto sazonal e, com isso, a população ficou à mercê da própria conduta. Também porque a saúde passou a integrar o orçamento dos Estados e não mais da federação, abrindo espaço para que cada governador (ou presidente do estado, como era chamado na época) tivesse uma conduta própria para conter o surto da espanhola. Boa parte da mobilização de combate à epidemia veio de hospitais e colégios privados enquanto a saúde pública, que contava com grandes hospitais, ainda tinha déficits de atendimento (SCWARCZ e STARLING, 2020, p. 173 174).

18 Do Grego “Thánatos” (morte) e do Latim “Morbus” (doença). Não nomeava nenhuma patologia ou doença, significava apenas “moléstia que determina a morte” (SCHWARCZ e STARLING, 2020, p. 71).

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Fonte: Fausto Salvadori.

Disponível e <https://www.saopaulo.sp.leg.br/apartes/a gripe que derrubou sao paulo/>.

A população paulistana seguiu à risca as medidas sanitárias que incluíram o isolamento social e quarentena de doentes, logo a cidade se viu com ruas sem pedestres e cemitérios trabalhando vinte e quatro horas por dia, contudo, sabe-se que apesar da disciplina rígida das elites de permanecerem em casa a população pobre pereceu mais à moléstia, pela necessidade de sobrevivência. Para que essa população se isolasse foi preciso de um complexo sistema de engrenagens que manteve a cidade ligada, os bondes que transportavam caixões eram conduzidos por pessoas, as coletas de defuntos e enterros apressados eram feitos por pessoas, o atendimento à população enferma era feito por pessoas e todas essas não tiveram a oportunidade de se isolar. Além disso, a espanhola encontra uma São Paulo do século XX, sem internet e ainda recebendo iluminação elétrica (como foi o caso do Cemitério da Consolação, que passou a ser iluminado para que os enterros não parassem durante a noite), portanto estar em casa resultava em não estar produzindo e, para grande parte da população, a não produção está ligada à não remuneração, e apesar de a vida ser mais importante que a economia de um país durante à espanhola não foi discutido se o vírus era o único mal que assolava a população proletária e pobre de São Paulo, é dizer, ao se proteger de um vírus toda essa gente se viu vulnerável por um outro ponto de vista, o do capitalismo. Parece que, já no século XXI, esse tema ainda não foi discutido efetivamente.

Acredita se que entre os anos de 1918 e 1920 a gripe tenha matado entre 17 e 50 milhões de pessoas, com projeções chegando a 100 milhões de óbitos. O vírus chegou a infectar 500 milhões de pessoas sendo uma das epidemias mais mortais da história (SCHUELER, 2021).

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Figura 8: Caminhão transportando caixões durante a epidemia de gripe espanhola em São Paulo em 23/11/1918.
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03.

As epidemias viram pandêmicas

Na pandemia do coronavírus o Código de Endereçamento Postal foi mais determinante que o código genético das vítimas.

Foi na migração de grupos humanos que as doenças pegaram carona para se espalhar pelo mundo. Os europeus foram responsáveis pela dizimação de populações nativas não apenas pela colonização violenta das Américas e Oceania, mas também porque trouxeram diversos vírus da Eurásia para os quais essas populações não tinham memória imunológica, a varíola dizimou nativos americanos nas três porções do continente com a chegada de portugueses e espanhóis assim como os britânicos a levaram para a Austrália junto com os prisioneiros que foram povoar a ilha.

Na África a violência da colonização extrativista disfarçada de missões humanitárias se juntou com a virulência do surto de varíola que, a bordo dos barcos europeus, desceu o rio Congo até o interior do continente e dizimou populações que ainda não haviam tido contato com a doença. As alterações ambientais decorrentes da exploração europeia dos recursos naturais nas margens desse rio também alteraram a ecologia do interior africano espalhando doenças que já existiam isoladamente para as novas concentrações humanas que se formavam nas regiões de extração de látex. A chamada doença do sono, por causar letargia em seu quadro infeccioso, já estava presente no território africano, mas foi levada junto com a atividade extrativista até alcançar o rio Nilo e atingir o Congo, Uganda, Nigéria, Gana e então se expandir por todo território oeste africano, em 1903 restavam menos de cem nativos em Léopoldville (atual Kinshasa), capital da atual República Democrática do Congo (UJVARI, 2020, p. 185).

Figura 9: Principais rios do continente africano mostrando os rios Congo e Nilo.

Disponível em: <https://www.coladaweb.com/geografia/hidrogr afia da africa>. Modificado pelo autor.

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Entretanto o continente africano tinha uma barreira biológica que liquidou grande parte dos colonizadores que adentravam as terras ainda não exploradas pelos europeus. Como a malária era endêmica apenas naquela região os britânicos que tinham o objetivo de navegar os rios Gâmbia e Níger para fazer um reconhecimento da área em 1805 foram acometidos por um surto de malária por conta do aumento de mosquitos na temporada de chuvas, exatamente quando aconteceu a expedição. De todas as investidas britânicas para adentrar aquele território calcula-se uma taxa de letalidade de 33% a 56% de malária e disenteria (UJVARI, 2020, p. 176 177). Contudo não seria essa a única vez que a Europa seria vítima da globalização dos vírus e bactérias.

O SARS-COV2 foi primeiramente identificado na China, mas não demorou muito para se espalhar pelo resto do globo, especialmente por conta de viagens aéreas que transportam rapidamente passageiros já infectados, mas ainda sem sintomas, se tornando ainda mais complexo o rastreamento do contágio. Em poucos dias, mesmo antes de ser decretado oficialmente o início da pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) todos os continentes já haviam registrado a presença do vírus, com exceção da África subsaariana e as porções central e sul da América. Fora da China a Coréia do Sul, Japão e Cingapura eram os países com maior incidência de casos, na Europa a Itália liderou a lista, seguida por Alemanha, França e Reino Unido (BBC, 2020). A geografia da disseminação da Covid 19 pelo mundo seguiu uma rota oposta à das pandemias dos séculos XIX e XX, se por um lado esses séculos foram marcados pela relação entre a doença e a pobreza o novo coronavírus subverte a lógica a partir do momento que se espalha primeiramente pelo norte global pelas viagens internacionais e exclui, por este motivo, a população que não tem condições de arcar com os elevados custos desse tipo de deslocamento.

Utilizando como referência os dados na Pnad Contínua Turismo de 2019, divulgados pelo IBGE19, em apenas 21,8% dos domicílios brasileiros um membro ou mais realizou algum tipo de viagem, tendo em sua grande maioria (96,1%) destinos nacionais e apenas 3,9% para fora do país. Apenas na faixa de renda de 2 a 4 salários mínimos o número de domicílios onde alguém realizou uma viagem supera o número daqueles em que nenhum membro viajou no decorrer da pesquisa e quase metade dos entrevistados (48,9%) alegaram que o motivo de não terem viajado foi a falta de dinheiro. Esses dados reforçam a hipótese de que a Covid-19 teve uma disseminação inversa das epidemias dos séculos passados por afetar primeiramente as regiões mais ricas e colocam esses territórios afetados em posições frágeis ao se tratar do enfrentamento do vírus, visto que mesmo com a infraestrutura médica consolidada países como Itália, Espanha e Estados Unidos enfrentaram grandes turbulências com o aumento exponencial de casos de contágio e mortes pela doença, não dispondo sequer de infraestrutura física e humana para enterrar as vítimas.

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<https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101739_informativo.pdf>.

Pesquisa Nacional de Amostra de Domicílios (Pnad) Continua Turismo 2019 divulgado na biblioteca online do IBGE disponível em

3.1. Bandeira amarela20

Foi registrada em 2 de fevereiro de 2020, em Manila, a primeira morte fora da China por complicações decorrentes de Severe Acute Respiratory Syndrome, nome em inglês da condição médica causada pelo vírus SARS COV2, o segundo coronavírus registrado e causador da Coronavirus Disease of 2019, a Covid-19. O paciente foi um viajante chinês vindo da cidade de Wuhan, epicentro da doença, e alarmou as autoridades em todo o Sudeste Asiático em memória do surto de SARS de 2003. Até esse momento a Província de Hubei registrava 304 mortes, de acordo com a TV Estatal Chinesa, porém os números oficiais do surto eram questionados pela Universidade de Hong Kong21 Nesse mesmo período o Conselho Europeu informa que os casos de infecção por coronavírus começam a subir nos países do bloco, a Presidência croata já havia ativado o Mecanismo Integrado da UE de Resposta Política em Situações de Crise (Integrated Policy to Crisis Response na sigla em inglês, IPCR), quando a primeira morte é noticiada em Pádua, na Itália, pelo G1. A Coréia do Sul decreta situação de emergência e aparecem casos no Líbano, Israel e Irã, país sem relações com a China. Em 21 de fevereiro de 2020 haviam 1152 casos confirmados de Covid 19 fora da China, em 26 países22. Um mês e dez dias depois da primeira morte fora da China são confirmados um óbito por Covid 19 no Hospital Municipal do Tatuapé, as próximas mortes no Brasil já aconteceram nos dois dias seguintes, três em São

20 Um navio com uma bandeira amarela hasteada indica que existe uma epidemia a bordo.

21 “Coronavírus: O que se sabe sobre a primeira morte fora da China” por BBC News Brasil. Disponível em <https://www.bbc.com/portuguese/internacional 51347379>. Acesso em 20/09/2022.

22 Disponível em < https://g1.globo.com/ciencia e saude/noticia/2020/02/21/italia confirma primeira morte por coronavirus.ghtml>. Acesso em 20/09/2022.

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Figura 10: Agente sanitário desinfetado a Piazza Duomo em Milão, Itália. Disponível em: <https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/com segunda onda de casos de covid 19 europa pode repetir o pico de mortes/>.

Paulo e duas no Rio de Janeiro23. Existiram duas novidades que todas essas notícias e boletins sanitários traziam: era a primeira que uma doença se espalhava pelo planeta em velocidade de cruzeiro e também em que era possível traçar a rota do vírus de um dia para o outro de Wuhan, na China, até o bairro do Tatuapé, em São Paulo.

O verbete “pandemia” vem do grego e significa “todo o povo”, ele descreve apenas a expansão geográfica de uma doença e não sua gravidade24. As epidemias eram frequentes na Idade Média por conta da demora no deslocamento em viagens transoceânicas, deixando os vírus contidos a regiões próximas (como a península ibérica ou o continente Europeu), com o desenvolvimento dos meios de transporte foi possível encurtar o tempo gasto para o deslocamento por terra, mar e, posteriormente, pelo ar, sendo fisicamente possível afirmar que as distâncias foram encurtadas25. Na pandemia do Covid 19 a internet ajudou a encurtar mais ainda o espaço, em termos arquitetônicos, é possível dizer que conseguimos observar a evolução global da doença na escala 1:1

Entretanto a internet não é um bem natural e nem está democraticamente disponível em todas as regiões, o acesso à rede mundial em uma economia de mercado está atrelado à interesses econômicos de quem detém os meios de produção, é dizer, não basta a informação estar disponível para que todas as pessoas a conheçam. Em 2021 o país ainda contava com 35,5 milhões de pessoas sem acesso à internet, evidenciando queda nos domicílios de classes mais baixas com computadores26. Ademais, recursos naturais tampouco são distribuídos democraticamente pelo território, como mostram os dados divulgados pelo IBGE em 2020 relatando a que três a cada dez domicílios não tinham acesso à banheiro e sistema de esgoto27. Felizmente a produção histórica de dados fornece bases capazes de servirem como comparação histórica para estudar a evolução do território, e um novo dado foi adicionado a esse banco: a espacialização de uma doença a nível global e de bairro ao mesmo tempo, no mundo todo. Isso produziu enorme avanço científico porque a verdade podia ser refutada a qualquer momento, o que também criou espaço para que notícias falsas se espalhassem e servissem como mecanismo de ataque, influenciando em toda a geopolítica mundial e também no enfrentamento da pandemia.

23 Disponível em < https://www.cnnbrasil.com.br/saude/primeira morte por covid 19 no pais ocorreu em 12 de marco em sp diz ministerio/>. Acesso em 15/11/2022.

24 Do grego, pan (todo, tudo) e demos (povo). Disponível e < https://www.dicio.com.br/pandemia/>. Acesso em 20/09/2022.

25 Segundo a Teoria da Relatividade de Albert Einstein.

26 Segundo dados divulgados pela Agência Brasil em 21 de junho de 2022, disponível em < https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022 06/em 2021 82 dos domicilios brasileiros tinham acesso internet>. Acesso em 20/09/2022.

27 Segundo dados divulgados pelo G1 em 04 de setembro de 2020, disponível em < https://g1.globo.com/jornal nacional/noticia/2020/09/04/tres em cada dez domicilios brasileiros nao tem banheiro e acesso a rede de esgoto diz ibge.ghtml>. Acesso em 20/09/2022.

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3.2. Isolamento social

Quando o poder público começou a fechar museus, centros culturais, shopping centers e suspender as aulas, a cidade de São Paulo tinha registrado apenas uma morte pelo novo coronavírus, entretanto o poder público começava a agilizar maneiras de reduzir o contato entre pessoas e evitar aglomerações na capital paulista e em todo o país, que na época registrava 200 casos confirmados da doença. Apesar de não ser proibido sair nas ruas os comércios e serviços foram obrigados a fechar, em 17 de março de 2020 entraram em vigor as medidas que proibiam o funcionamento desses estabelecimentos na capital, começava então o isolamento social28 (EXAME, 2020). A partir dessa data a mídia retratou uma cidade de São Paulo sem a correria, o trânsito e as multidões, sobrando apenas o cenário de prédios, asfalto e, cada vez mais, pessoas vivendo pelas ruas. Entre 2019 e 2022 o número de sem tetos na capital quase dobrou, crescendo 31% apenas entre 2021 e 2022 (PALHARES e ZYLBERKAN, 2022)29, deixando a desigualdade social estampada na cidade que estava finalmente vazia de pedestres, automóveis e turistas.

Entretanto, para que a cidade continuasse funcionando era preciso que a produção de capital não cessasse completamente, por isso, não apenas os profissionais da saúde continuavam a trabalhar com jornadas ainda mais extenuantes, mas também os empregados informais que não teriam outra fonte caso optassem por se isolar em casa como parte da população pôde fazer. Ainda que não fosse permitido o funcionamento de comércios e serviços não essenciais existiram operadores de caixa, motoristas e cobradores de ônibus, maquinistas de trens, profissionais da saúde, profissionais da limpeza urbana e um grande coletivo de outros trabalhadores que não poderiam deixar de exercer suas profissões nem mesmo em estado de calamidade para que ainda houvesse alguma infraestrutura urbana para conter a disseminação do vírus; contudo, também existiram faxineiras, manicures, babás, entregadores e motoristas de aplicativo e diversos outros profissionais informais que, apesar de não essenciais em uma crise sanitária não puderam optar por parar de trabalhar para não cessar a fonte de renda, e ainda existiu toda uma vasta clientela que podia se isolar em suas casas e utilizar da vulnerabilidade desses trabalhadores para não precisar se expor ao vírus. Conforme aponta Maricato (2013, p. 36) é impossível dissociar o território das condições socioeconômicas e da violência. Portanto, ainda que as medidas de contenção do vírus fossem inspiradas em outros países que também se articulavam para descobrir juntos a melhor maneira de frear a pandemia, ela se faria valer apenas para quem consegue acessar e ocupar a cidade formal. Isso porque quando fomos orientados para não sair de casa a não ser que seja de extrema importância não foi levado em conta a necessidade diária de se produzir renda de parte da população e nem que as casas em questão muitas vezes não estavam conectadas às redes de água e esgoto ou sequer tinham ventilação e insolação suficiente para a

28 Disponível em < https://exame.com/brasil/periodo de isolamento comeca a valer nesta terca no estado de sao paulo/>. Acesso em 08/11/2022.

29 Disponível em <https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2022/01/na pandemia quase dobra o numero de familias que vivem nas ruas de sao paulo.shtml>. Acesso em 15/11/2022.

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quantidade de moradores. Toda a complexidade do tecido urbano da Metrópole de São Paulo foi ressaltada e esgarçada durante a pandemia do coronavírus, com parte do seu parque habitacional composto por autoconstrução e em áreas de várzea ou risco geológico, com cicatrizes de difícil transposição que dificultam o acesso à certas porções do território, com uma complexidade étnica cultural imensa e ainda com áreas rurais e de difícil acesso tanto de pessoas como de infraestruturas urbanas. Entender a complexidade do isolamento social se faz necessário para podermos estabelecer em quais situações ele é realmente benéfico e aquelas em que a qualidade da habitação o torna pouco eficaz ou até mesmo ele nem chega a ser uma opção.

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04.O isolamento social na cidade de São Paulo, que cidade é essa?

Il n'y a pas de politique qui ne soit pas une politique des corps.

A Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) é uma doença respiratória causada por lesões nos alvéolos dos pulmões, levando o paciente a ter complicações respiratórias e, em casos mais graves, a óbito. A doença apareceu pela primeira vez em 2002, na China, e se espalhou por diversas regiões do mundo até, abruptamente, desaparecer. No final de 2019 uma nova síndrome respiratória aparece em Wuhan, na província chinesa de Hubei, e rapidamente se alastra por todo o planeta a partir de viagens internacionais. Poucos meses depois diversos países começam a adotar medidas de isolamento social, quarentena e teletrabalho e, finalmente, em onze de março de 2020 a Organização Mundial da Saúde (OMS) declara o início da pandemia do vírus SARS COV 2, o novo coronavírus.

Fonte: Fabrice Coffrini/AFP. Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/11/oms declara pandemia de coronavirus.ghtml>.

Pela primeira vez na história uma pandemia começou exatamente na metade de uma semana, numa quarta-feira. Isso considerando apenas aquelas notificadas pela Organização Mundial da Saúde como Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional (ESPII), que são aquelas englobadas no recorte de estudo dessa pesquisa. O termo pandemia, que rapidamente se incorporou ao nosso vocabulário, determina apenas a extensão territorial de uma doença, mas não a sua gravidade. Sendo assim, a pandemia (ou a ESPII) do coronavírus foi somente

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Figura 11: Diretor geral da OMS Tedros Adhanom declara a pandemia do novo coronavírus.

a sexta vez que uma doença dessa gravidade foi notificada pela ONU, conseguindo ter assim uma melhor dimensão dessa doença que foi demasiadamente e ainda é nebulosa para todos nós. As demais foram [1] o surto de Ebola na República Democrática do Congo, em 18 de maio de 2018; [2] o vírus Zika e aumento de casos de microcefalia e outras malformações congênitas em 01 de fevereiro de 2016; [3] o surto de Ebola na África Ocidental em 08 de agosto de 2014; [4] a disseminação internacional do poliovírus em 05 de maio de 2014 e [5] a pandemia de H1N1 em 25 de abril de 2009. Segundo a Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) todas essas doenças são

um evento extraordinário que pode constituir um risco de saúde pública para outros países devido a disseminação internacional de doenças; e potencialmente requer uma resposta internacional coordenada e imediata (OPAS)30

Coube a cada país avaliar e empregar as melhores formas de prevenção e controle da doença, a China, epicentro da pandemia, decretou quarentena na cidade de Wuhan e, logo em seguida, em toda a província de Hubei, a Coréia do Sul logo traçou planos de rastreamento de contágio, assim como a Itália e Espanha que tiveram os maiores números de mortes na Europa (UOL, 2020). De todas essas medidas, estudos mostram que os países cuja população apresenta maior nível de identidade nacional tiveram maior eficácia na contenção do vírus como Nova Zelândia, Alemanha e Dinamarca, o inverso ocorreu em países cujas populações apresentavam maior senso de individualidade como Estados Unidos, Rússia e Brasil. Outro fator evidenciado é que países comandados por líderes femininas como Noruega e Finlândia apresentaram as melhores respostas à pandemia (FIORAVANTI, 2020).

Fonte:

30 Disponível em < https://www.paho.org/pt/covid19/historico da pandemia covid 19#:~:text=Em%2031%20de%20dezembro%20de,identificada%20antes%20em%20seres%20human os.>. Acesso em 10/09/2022.

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Figura 12: Centro de São Paulo durante a pandemia do novo coronavírus. Léo Ramos Chaves.

Disponível em: <https://revistapesquisa.fapesp.br/eficacia de cada pais no combate a covid 19 reflete senso de coletividade/>.

Entretanto os esforços de combate à pandemia não foram uniformes nem consideraram as desigualdades pré existentes na hora de estabelecer critérios de prioridades, isso ocorreu em nível global, quando nota-se que das dez medidas para lutar contra a pandemia divulgadas pelo Parlamento Europeu apenas uma diz respeito à luta conjunta com nações de fora do bloco, sendo as demais um apelo para a solidariedade entre os Estados-membros. O mesmo refletiu-se dentro dos limites nacionais e municipais, tomando a cidade de São Paulo como exemplo, estudos evidenciam a falta de pensamento territorializado no emprego de medidas de contenção e rastreamento do vírus, assim como na vacinação.

Figura 13: Mapas 3.1, 3.2 e 3.4. Fonte: Elaborado pelo autor.

4.1. Da habitação

Na literatura os cortiços são apontados como principais focos de transmissão de doenças infecciosas por conta da alta densidade habitacional em edificações com poucas qualificações arquitetônicas, portanto, nem sempre com ventilação e insolação eficientes. Em São Paulo os cortiços ocuparam antigos casarões da elite cafeeira, mas também bairros operários, isso porque a elite subia as colinas da Consolação em busca de melhores ares enquanto a poluição das fábricas e áreas de várzeas dos rios eram deixadas para a população mais pobre, que as ocupava sem mais opções. Engels (1845, p. 84 87) descreve a cidade de Manchester durante a Segunda Revolução Industrial como um local cinza e poeirento, onde as casas são cobertas por fuligem das chaminés das indústrias e muita névoa; entretanto, havia um cinturão verde e avenidas de luxo com altos edifícios modernos e bulevares arborizados que levavam as mansões dos ricos, como uma faixa de transição entre o bairro burguês e as áreas pobres, onde se localizavam esses vários tipos de habitação precária. Para estudar esse tipo de habitação tomamos a definição para o verbete aglomerado subnormal, do IBGE

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[...] uma forma de ocupação irregular de terrenos de propriedade alheia públicos ou privados para fins de habitação em áreas urbanas e, em geral, caracterizados por um padrão urbanístico irregular, carência de serviços públicos essenciais e localização em áreas com restrição à ocupação (IBGE). 31

A partir desse pressuposto histórico é possível identificar os cortiços, favelas e habitações em terrenos alagadiços como os principais focos de doença na cidade de São Paulo, sendo possível localizar historicamente onde esses focos deveriam ter acontecido. Os bairros do Brás, Pari, Mooca, Lapa e Barra Funda, historicamente conhecidos pela predominância industrial por conta da proximidade com a ferrovia Santos Jundiaí da São Paulo Railway (atuais linhas 7 Rubi e 10 Turquesa da CPTM) concentravam a maior parte dessas habitações subnormais. Schwarcz e Starling (2020, p. 188) concluem que a Hospedaria dos Imigrantes, no bairro da Mooca, foi um grande epicentro da Gripe Espanhola por conta da quantidade de pessoas que desembarcavam no porto de Santos tomavam o trem diretamente para lá, os quartos compartilhados também auxiliavam na proliferação da doença que chegava a bordo dos navios europeus. Entretanto essa barreira industrial que delimitava a cidade no começo do século XX logo foi superada pela grande periferia que cresceu para a zona leste, estabelecendo uma série de novas vulnerabilidades como o acesso ao centro, a falta de saneamento básico e infraestrutura da cidade informal que crescia mais que a cidade formal (MARICATO, 2013, p. 25), a necessidade de transpor barreiras naturais, como os rios Tietê, Tamanduateí e Aricanduva e, posteriormente, barreiras artificiais como as linhas de metrô e trem e a própria avenida Radial Leste. Nota se que apesar de a barreira industrial continuar no mesmo lugar a vulnerabilidade acompanhou o crescimento da cidade, os bairros mencionados acima passaram a fazer parte de um centro expandido que tinha grande valor imobiliário e, por isso, começou a ser ocupado pela população de classe média e, posteriormente, classe alta. Sendo assim, é possível concluir que os focos de contaminação mudaram de lugar, mas não por melhoria na qualidade de vida das pessoas e sim por conta da expulsão das classes mais baixas do centro da cidade.

Na mesma cidade, a contradição se expressa desde 1911 com os quinze milhões de metros quadrados de terras adquiridas por uma empresa europeia, já no ano seguinte, a sede em Londres se muda definitivamente para São Paulo, fundando a City of Sao Paulo Improvements and Freehold Land Company Ltd. (Companhia de Propriedade Privada e Melhoramentos da Cidade de São Paulo LTDA, em tradução livre), ou como é comumente conhecida, a Companhia City. A empresa de urbanização diretamente agiu sobre a organização do território na capital paulista, seus inúmeros loteamentos seguiam conceitos muito claros cunhados por Ebenezer Howard numa Inglaterra que convivia com cavalos, lama e fumaça da recém revolução industrial que ali sucedera. Entretanto a cidade formal produzida pela City e diversas outras companhias representam uma fração do território urbano conhecido como “cidade formal”, historicamente seguindo os

31 Disponível em < https://www.ibge.gov.br/geociencias/organizacao do territorio/tipologias do territorio/15788 aglomerados subnormais.html?=&t=o que e>.

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interesses da burguesia na produção do espaço, sendo adquirida através de capital. Para aqueles que não podiam pagar pela terra longe da poluição ou mais perto do trabalho, ou até mesmo não podiam pagar por terra nenhuma, sobrava apenas aqueles espaços sem interesse comercial, ou seja, os espaços sem infraestrutura adequada.

4.2. Do saneamento e áreas livres

São Paulo foi fundada entre dois rios, o córrego do Anhangabaú e o rio cujos meandros enchiam na época de chuvas e esvaziavam nas secas fazendo com que o curso d’água mudasse de lugar, assim vários peixes ficavam para fora d’água e morriam, atraíam formigas que por sua vez atraíam tamanduás; por isso os ocupantes daquela região o chamavam de rio do tamanduá, em tupi, Tamanduateí. Apesar de que os rios não façam mais parte ativa da paisagem urbana, por conta de décadas de urbanismo sanitarista, a sua importância para a capital paulista foi tanta que até hoje mantemos o nosso principal porto no meio da cidade, bem no pé da Ladeira Porto Geral

A morfologia da cidade foi se moldando organicamente por esse território, uma pequena planície alagável muito própria para a agricultura, mas que não combinaria nem um pouco com a metrópole suntuosa que a cidade almejava se tornar. Ainda no século XX a capital paulista passou por um intenso processo de urbanização formal e informal, não apenas subindo as colinas que levavam ao espigão da Paulista e Pacaembu, mas também loteando a várzea do rio Pinheiros, saltando a linha de ferro que ligava Santos à Jundiaí e expandindo se para a zona leste, ocupando as margens do rio Tietê e ocupando a zona norte. Nesse processo, a burguesia foi determinante para definir não apenas os locais onde iria residir mas também quais seriam os lugares que as classes mais pobres teriam acesso através da especulação imobiliária, desde então, o preço da terra já era determinante para definir o acesso à cidade e a ocupação espontânea já se mostrava como uma alternativa à exclusão social, tanto nas novas periferias que iam sendo ocupadas cada vez mais longe do centro quanto nas regiões centrais que iam sendo abandonadas pela burguesia.

Ainda que a abundância de água fosse um benefício para a consolidação de uma grande metrópole a disputa por terra tornou seu acesso um produto de mercado, excluindo parte da população desse direito por não poder pagar por ele, existindo na ocupação informal a possibilidade de subsistência mais digna que parcela da população conseguirá encontrar. Essa forma de ocupação informal, por conta da ausência do poder público na regulamentação dessas áreas, passa a carecer de uma série de serviços públicos que são de obrigação do Estado, porém que não podem ser reivindicados judicialmente por conta da ilegalidade da ocupação. O entrave direto que essa situação provoca, historicamente, é a falta de acesso ao saneamento básico nas grandes metrópoles brasileiras pela parte mais pobre da população, contudo a tipologia de cidade que essa população ocupará também vai estar de acordo com o interesse do poder público em qualificar a terra urbana, sendo assim, a presença de equipamentos urbanos que não tenham fins

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lucrativos mas que melhorem a qualidade de vida da população também passa a ser uma disputa política e econômica.

Os primeiros parques da cidade foram, cronologicamente, o Jardim da Luz (1798), o Parque do Trianon (1882) e o Parque Buenos Aires (1913). A semelhança da conformação urbana dos três se dá no fato de que eram parques de encontro e lazer, funcionando como uma área verde para a população burguesa passear e se encontrar. Apenas em 1974 é aberto o Parque do Guarapiranga, o primeiro a ser inaugurado fora do centro expandido ou de um bairro nobre, visto que até então os únicos parques municipais existentes eram o Parque da Aclimação, o Parque do Ibirapuera e o Parque Alfredo Volpi, no Morumbi32

Essa maior concentração de parques em áreas centrais hoje é pouco expressiva, visto que desde meados do último século diversas áreas verdes foram transformadas em parques por toda a cidade, entretanto, nota se que na periferia estão concentrados os parques ecológicos e Áreas de Proteção Permanente (APPs), não tendo como objetivo principal a mesma função dos parques centrais de apenas abrir áreas verdes de lazer para a população. Essa característica isolada pode não ser de grande valia analítica para esse trabalho, contudo entende se que o território periférico é mais carente de infraestruturas urbanas, em geral, do que o centro expandido da cidade, sendo a presença de áreas livres uma grande evidência dessa carência. Isso porque em um território cujo valor comercial é disputado uma área livre é, consequentemente, uma área sem lucros, visto que não existe uma ocupação mercadológica do solo. Essa constatação se reforça com as inúmeras discussões de privatizar e cobrar entrada dos visitantes do Parque do Ibirapuera, um dos maiores da cidade.

Sendo assim, não apenas a habitação informal é uma questão de saúde pública como também a cidade formal que se constrói ao redor dessa forma insurgente de ocupação, também a cidade formal que é ocupada pelas camadas mais pobres e, que pela falta de interesse público, não conta com planos de embelezamento como contou o centro expandido, que para além da reforma estética tinha como objetivo o melhor uso da insolação e ventilação nas quadras. Por fim, a população vive em condições de vulnerabilidade não enfrenta apenas o problema da habitação precária, mas também o da vizinhança precária e significativa distância de um centro bem infra estruturado.

4.3. Da desigualdade

A cidade do sul global é, historicamente, um espaço de conflito. São Paulo e Rio de Janeiro, as maiores metrópoles brasileiras, são cenários de disputas urbanas por moradia, trabalho e lazer há muitas décadas, isso porque a pobreza sempre foi um ator influente na arena política dessas cidades sendo refletida de maneira brutal na precariedade da habitação. No Brasil a autoconstrução sempre foi o padrão de moradia acontecendo em loteamentos periféricos, regulares ou não, ou na ocupação de edifícios e terrenos ociosos no centro das grandes cidades, como é o caso de

32 Segundo listagem de Parques Municipais da Secretaria do Verde e do Meio Ambiente (SVMA PMSP), disponível em < https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/meio_ambiente/parques/>.

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São Paulo e Rio de Janeiro. Nessas cidades a população residente em favelas teve um aumento significativo durante a redemocratização do país, passando de pouco mais de 1% no ano de 1973 para 11% da população paulistana no último Censo realizado, em 2010. Já a capital fluminense tinha 23% da população residente em favelas no Censo de 2010, situação vista como entrave para a política higienista da administração pública carioca, resultando em medidas de apartamento da população mais pobre através da construção em massa dos Conjuntos Habitacionais Populares, as Cohabs tanto na então capital federal, mas também em outros estados brasileiros, incluindo São Paulo. Esses grandes empreendimentos tinham como característica primária a repetição modular e monótona e o afastamento dos centros urbanos, criando bairros dormitórios cujos moradores passariam a fazer um longo movimento pendular diariamente no trajeto entre casa e trabalho, nascendo as comunidades como Cidade de Deus no Rio de Janeiro e Cidade Tiradentes em São Paulo (ROLNIK, 2019, p. 277 285).

A criação desses bairros afastados não são um entrave apenas por conta das distâncias percorridas, afinal os subúrbios são encontrados em diversas aglomerações urbanas pelo mundo e, ainda em São Paulo, a criação de uma periferia de luxo com os loteamentos de Alphaville, contudo, diferente das classes altas que podem escolher viver afastada do centro da cidade sem comprometer sua qualidade de vida a população periférica é empurrada para as margens da cidade dado o alto custo de vida na região central, isso porque, conforme foi cunhado por Villaça (2000, p. 11) as metrópoles brasileiras contam com uma área central mais bem infra estruturada onde mora uma minoria que tem acesso aos frutos da urbanização enquanto a grande maioria da população mora nas áreas periféricas, excluída desse acesso.

Em seu livro Espaço Intraurbano no Brasil, Villaça ensaia a compreensão de centro e centralidade, entendendo o que o termo significa em cada contexto urbano. Nesse ensaio é clarificado que, independentemente de sua localização na cidade, o centro infra estruturado nunca é a moradia das classes operárias mais pobres que, por conta do alto valor da habitação e do custo de vida nesses bairros, é empurrada para as margens da cidade em localizações que não contam com a mesma oferta de emprego, transporte público, educação, lazer e outros serviços urbanos básicos. Villaça argumenta que esse movimento social não é por acaso e as localizações que esses grupos ocupam tampouco são, portanto existe uma lógica na ocupação burguesa no sítio onde se localiza o centro de São Paulo e do subúrbio operário nas várzeas de rios e lindeiros a córregos e linhas de trem, portanto, é possível dizer que existe um motivo para o Higienópolis ser localizado exatamente naquela localização assim como Cidade Tiradentes é no extremo leste e não em outro ponto cardeal. Esse posicionamento é vital para a análise do espaço urbano a ser desenvolvida nessa pesquisa pois trará uma descrição da cidade de São Paulo que a pandemia do Covid 19 encontrou ao chegar no Brasil e, dessa forma, poder qualificar espacialmente a contaminação pelo vírus e o desenvolvimento da doença relacionando esses fatores aos dados socioeconômicos da cidade.

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05.Análise de dados

Per fer les coses bé cal: primer, l'amor, segon, la tècnica.

Conforme aponta Maricato (2013, p. 16-23) a cidade de São Paulo passou por diversas reformas sanitárias e de embelezamento a fim de eliminar as epidemias urbanas durante o final do século XIX e começo do século XX, nesse espaço começava a ser criada a base legal para o crescimento do mercado imobiliário na capital. Já na metade do século o PIB brasileiro teve um dos maiores crescimentos do planeta, contudo isso não democratizou o acesso à terra e habitação e muito menos à infraestrutura urbana, ou seja, uma nova classe média urbana foi criada enquanto boa parte da população ainda era excluída da cidade formal. Dados do IPEA mostram que, no final do século XX, a cidade de São Paulo cresceu 1,46% como um todo enquanto sua periferia teve um crescimento de 16,3%, ficando atrás apenas das periferias de Belém, Curitiba, Salvador e Belo Horizonte, evidenciando que as áreas pobres crescem com mais rapidez que as áreas centrais.

A situação de vulnerabilidade social, intensificada pela pobreza, desemprego e falta de acesso à educação, torna as periferias cenários de maior violência urbana, uma vez que esses fatores são atrelados. A densidade demográfica dessas regiões costuma ser maior que na cidade formal, criando um espaço propício para o surgimento de doenças, como foi visto no decorrer dessa pesquisa, isso atrelado à falta de acesso ao sistema de transporte público, evidenciado pela distância geográfica e maior número de viagens a pé nessas regiões, tornam a vida na periferia uma espécie de exílio com redução drástica na qualidade de vida dos moradores e qualidade urbanística e paisagística da cidade (MARICATO, 2013, p. 34 35).

Através do estudo metodológico do território da cidade de São Paulo durante o curso do século XX é possível perceber a forma com que a sociedade se organizou política, social e economicamente em momentos de calamidade sanitária, tendo em vista os recortes étnicos e de classe. A pandemia do coronavírus apresentou uma nova maneira de observar uma crise: a partir da sistematização de dados geográficos territorializados, ou o SIG, sendo a primeira pandemia na era da internet. Dessa forma é possível olhar para a história das epidemias com outros olhos, a partir da escala municipal, criando assim uma série histórica e comparativa a fim de entender mais minunciosamente a dinâmica urbana no estado de calamidade. Com esse avanço informacional e investigativo que a pandemia de 2020 nos trouxe foi possível esgotar ainda mais a literatura e propor uma organização dessa informação através de mapas.

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5.1. Habitação

Procurando a relação territorial que existe entre a morbidade e a habitação na cidade de São Paulo essa pesquisa encontra uma significativa semelhança entre o padrão habitacional e a vulnerabilidade de contaminação por Covid 19. É visto que as habitações subnormais se encontram, por todo o território, nas áreas com maior taxa de mortalidade pela doença, evidenciando pela distribuição territorial desses dois indicadores que a qualidade da habitação é diretamente proporcional com a mortalidade. Os mapas 3.1 e 4.1 ilustram esse apontamento, resultando no mapa 5.1.

Figura 14: Mapas 3.1, 4.1 e 5.1

Fonte: Elaborado pelo autor.

O padrão habitacional de um aglomerado subnormal, que se caracteriza pela ausência de alguma infraestrutura básica, é historicamente retratado como epicentro de várias doenças. O cortiço, a hospedaria, as ocupações em margens de rios e áreas pantanosas e a habitação operária foram os cenários de todas as descrições literárias utilizadas nessa pesquisa para retratar o ambiente onde essas doenças mais prosperavam, devido exatamente à falta de acesso à água potável ou sistemas de esgoto e, em alguns casos, até pela densidade domiciliar (UJVARI, 2020, p. 150, 219; SCHWARCZ E MORITZ, 2022, p. 166 167, 188).

A densidade domiciliar, sozinha, também demonstra uma questão delicada do ponto de vista epidemiológico, a literatura ressalta em diversas ocasiões o papel vital da superlotação de ambientes fechados na proliferação de doenças, isso porque essa lotação costuma ser mais expressiva nas áreas mais pobres e com problemas na qualidade da habitação. Os mapas 3.1 e 3.4 mostram que a alta densidade não ocorre apenas nas áreas de aglomerados subnormais, entretanto os aglomerados acontecem sempre em áreas de média alta e alta densidade, inclusive no eixo histórico de ocupação industrial nos bairros do Brás, Pari, Mooca e Bom Retiro, onde atualmente concentram se parte dos cortiços, conforme é visto no mapa 3.2. Ela também aumenta gradativamente do centro para a periferia, com exceção dos

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bairros mencionados acima, geometricamente inversa à oferta de empregos formais, que se concentra na região do centro expandido.

Figura 15: Mapas 3.1, 3.2 e 3.4.

Fonte: Elaborado pelo autor.

A relação entre população por distrito e densidade domiciliar também é bastante relevadora, pois nota-se que enquanto no número de população dos bairros não segue um padrão concêntrico a densidade populacional sim, é dizer, mesmo que a periferia não concentre o maior número absoluto de população as habitações periféricas habitam mais pessoas do que as centrais. Ao pensar então nos surtos sanitários estudados nessa pesquisa e, mais diretamente na Covid 19, é possível concluir que as habitações periféricas têm mais vulnerabilidade por reunir mais pessoas em uma mesma unidade habitacional, além de estar mais longe do centro e onerar a população em tempo e custo no acesso à cidade formal e estar mais vinculada à padrões subnormais de construção do que no centro. No geral, é possível compreender que a habitação periférica não somente tem características morfológicas que impactam negativamente na sua vulnerabilidade para a proliferação de doenças como também a localização urbana é uma condicionante negativa para essa população que precisa, de alguma maneira, acessar o centro da cidade para fins de trabalho, educação e lazer. Além disso, é possível perceber que essa população menos assistida pela infraestrutura urbana é composta, majoritariamente, por pessoas negras, ainda assim com maior predominância nos extremos norte, leste e sul e no eixo industrial histórico do centro, que apesar de estar em uma região não periférica apresenta problemas qualitativos da habitação.

5.2. Acesso ao transporte

Um fator importante relacionado à localização da habitação das classes mais pobres é o acesso à cidade formal para fins de trabalho, educação e lazer, pois apesar de existir linhas de transporte de massa que conectam as periferias com o

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centro expandido o tempo que se passa no trajeto é maior nas áreas mais vulneráveis da cidade. O acesso às estações metroferroviarias também mostram essa desigualdade entre centro e periferia, tendo a região do centro novo e eixo da Avenida Paulista com quase a totalidade do território servido por estações de metrô enquanto as periferias sul, norte e leste precisam de transportes adicionais para acessar o sistema, onerando esse deslocamento também em custo.

Para os moradores das regiões mais longe do centro as viagens de transporte público são um risco de exposição maior às doenças infectocontagiosas do que para aqueles que gastam menos tempo no deslocamento ou podem utilizar outros meios, como a bicicleta ou o deslocamento não motorizado. Isso porque a maior oferta de empregos formais se concentra no centro expandido da cidade, fazendo com que essas pessoas precisem realizar um movimento pendular diário e passem mais tempo expostas no transporte público.

Ao sobrepor os mapas 3.3, 3.4 e 4.4 é possível notar que o sistema metroferroviário é mais capilarizado e funciona em rede no centro expandido, no perímetro do centro histórico e eixo Paulista Vila Mariana, correspondente aos distritos com maior oferta de emprego formal e população residente, o mesmo ocorre no eixo Rebouças Faria Lima e Brooklin Santo Amaro. Entretanto nas periferias de todas as zonas as linhas de trem passam a ter cada vez menos conexões, transformando se no famoso movimento pendular de ida e vinda do centro da cidade, nessas regiões a relação entre população e acesso ao metrô é menos evidente, sendo estabelecida por forças mais espontâneas do que aquelas vistas na cidade formal, onde o capital é a principal fonte para aquisição e ocupação das terras urbanas.

Figura 16: Mapas 3.3, 3.4 e 4.4.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Nota se também que a população negra é a mais desfavorecida no acesso ao sistema metroferroviário, residindo majoritariamente em bolsões nos extremos leste, sul e norte. Ainda existe um eixo com população majoritariamente negra entre o centro e zona leste, no eixo histórico industrial que, atualmente, concentra grande

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parte dos cortiços e aglomerados subnormais do centro expandido da cidade. Apesar de a territorialização dessa população ter pouca ligação com a rede de metrô e trem é possível estabelecer uma ligação entre a ocupação desse eixo histórico com a habitação operária industrial que foi bastante influente nessa região, compreendendo os bairros da Mooca, Brás, Pari e Bom Retiro; a ferrovia, lindeira à indústria, foi uma importante forma de estruturação desse território e, consequentemente, está vinculada com a população que o ocupa atualmente, entretanto esses trechos que contam com trem e metrô de superfície também representam cicatrizes no tecido urbano que dificultam sua transposição, sendo paradoxal aferir se a presença desse sistema facilita ou dificulta o acesso desses moradores à cidade formal por conta da ambiguidade da sua conformação urbana.

Figura 17: Mapas 3.3 e 5.3. Fonte: Elaborado pelo autor.

5.3. Renda

Um apontamento interessante acontece ao observar a territorialização do aspecto renda e aglomerados subnormais, para essa análise foi utilizado o mapa 4.4 que mostra a oferta de empregos formais por distrito pois essa pesquisa objetiva explorar a vulnerabilidade, sendo assim, entende se que o emprego formal garante maior autonomia financeira e melhores condições de vida do que aqueles informais que tanto sofreram com as incertezas da pandemia de Covid-19. Dessa forma, busca se comparar a área de residência e a área de maior oferta de empregos formais juntamente com a capacidade de trânsito entre essas duas porções da cidade, relacionando-as com a morbidade.

Dessa forma, existe agora uma diferenciação entre os tipos de aglomerados subnormais que até então foram entendidos como uma unidade irredutível. Os cortiços, que se concentram na região central e no eixo industrial histórico, se encontram em distritos com grande oferta de emprego formal; entretanto os núcleos e favelas encontram se, majoritariamente, nas periferias onde a oferta de emprego é significativamente reduzida. Essa condição não é de grande surpresa pois a

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literatura já entende que a diferença entre a habitação precária central e periférica é exatamente que primeira ocupa edifícios subutilizados de uma cidade já construída enquanto a segunda ocupa áreas de menor ou nenhum valor de mercado para a auto construção, sendo em ambos os casos consideradas vulneráveis por conta da fragilidade na posse e ocupação da terra e por conta das características qualitativas da habitação, como densidade domiciliar, insolação, ventilação, ligação com os sistemas de abastecimento de água, energia elétrica e esgoto.

Figura 18: Mapas 3.1, 3.3 e 4.4.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Conforme já foi constatado no subcapítulo anterior, o acesso ao transporte metroferroviário e o tecido urbano possuem relações profundas e que fogem da área de investigação dessa pesquisa, como valorização da terra urbana, entretanto é fato que os sistemas de transporte de alta capacidade influenciam o tipo de aglomerado subnormal que será encontrado no território, sendo os cortiços muito mais atrelados à presença de estações metroferroviárias em uma porção com infraestrutura urbana já consolidada. Dessa forma é possível entendermos que existe uma fragilidade para as populações periféricas acessarem o emprego formal por conta do tempo e custo da viagem, entretanto isso se mostra um fator territorial e não de qualidade da habitação especificamente.

Observa se que a oferta de emprego formal tampouco segue a proporção populacional de cada distrito, estando todos os distritos com maior número de residentes em áreas com as piores ofertas de vagas de trabalho33. Isso evidencia que a tendencia de ocupação da cidade não é de acordo com a infraestrutura ou com o emprego, fatores vitais para a diminuição da vulnerabilidade da população, mas segue lógicas capitalistas que não consideram as desigualdades sociais pré existentes no tecido urbano na hora de definir o acesso à moradia.

33 São eles Brasilândia, Capão Redondo, Cidade Ademar, Grajaú, Jardim Ângela, Jardim São Luís, Sacomã e Sapopemba. Fonte: Portal Infocidade População Recenseada por Distrito. Disponível em <https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/7_populacao_recenseada_195 0_10491_1658414892.htm>.

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Figura 19: Mapas 3.4 e 4.4

Fonte: Elaborado pelo autor.

5.4. Áreas verdes

Uma relação interessante entre a ocupação espontânea e as áreas verdes é que elas se concentram, na sua maior parte, na periferia. O centro da cidade carece de áreas verdes numa proporção parecida com a ausência de aglomerados subnormais e, consequentemente, de população negra. Uma hipótese para essa constatação é a de que o centro foi urbanizado com ideais de suprir a necessidade habitacional da burguesia e a demanda comercial de uma cidade cosmopolita com lojas, magazines e escritórios, sendo assim, as áreas verdes eram apenas a arborização urbana e os jardins particulares das mansões, assim como alguns poucos parques que abriam locais de encontro e contemplação nesses novos bairros, como é o caso do Jardim da Luz, Parque do Trianon e Parque Buenos Aires. Entretanto as cidades brasileiras e latino americanas viveram um grande inchamento populacional não compatível com a geração de empregos, deixando parte da população trabalhando na informalidade. Essa tragédia urbana remonta à privatização da terra (1850) e a emergência do trabalho libre (1888), sendo assim, sobra para essa população vulnerável áreas de várzea, riscos geológicos ou de mata remanescente, que atualmente viraram parques ecológicos, como o Parque do Carmo, por exemplo (MARICATO, 2013, p. 23).

A relação entre área verde e mancha urbana é interessante pois foi em Londres, durante a Segunda Revolução Industrial e a epidemia de tuberculose, que se percebeu a necessidade de ventilação e insolação das ruas e edifícios para prevenir doenças, assim nascem os pensamentos da Cidade Jardim de Ebenezer Howard que foram importados durante a urbanização de São Paulo, resultando em bairros como os Jardins América, Europa e Paulistano e diversos outros espalhados pelo centro expandido. Sendo assim, não é possível dizer se o acesso às áreas livres é ou não um indicador da vulnerabilidade do território e, consequentemente, dos seus habitantes, isso porque nas áreas que essa pesquisa identifica como

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vulneráveis existem concentrações significativas de áreas verdes, sendo necessário fazer uma avaliação qualitativa de cada uma delas, o que foge da abrangência desse trabalho.

Figura 20: Mapas 2.3, 3.1 e 4.2

Fonte: Elaborado pelo autor.

Entretanto, é interessante notar que existe uma diferença na tipologia dos parques periféricos e centrais, isso porque no centro essas áreas verdes foram planejadas para serem lugares de encontro, esporte e lazer enquanto os parques periféricos tendem a ser reservas ambientais para frear a expansão urbana em áreas de biomas remanescentes, ou seja, nem sempre são espaços abertos para o uso de lazer para a população. Ainda existe a questão do acesso, pois os parques centrais costumam estar em áreas próximas às estações metroferroviárias, isso porque existem eventos importantes que acontecem neles como a Bienal de Arte de São Paulo no Parque do Ibirapuera, enquanto os parques periféricos têm uma relação mais regional por não estarem localizados próximo ao sistema de transporte de massa. Isso reforça a ideia de movimento pendular da periferia para o centro não apenas para fins de estudo e trabalho, mas também para lazer, sendo mais fácil acessar equipamentos que se encontrem em territórios servidos por estações metroferroviárias do que aqueles que ficam em áreas mais residenciais e sem o transporte de massa.

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Figura 21: Mapas 2.3 e 3.3

Fonte: Elaborado pelo autor.

Os cortiços, especificamente, encontram uma situação urbana mais delicada. Isso porque esse tipo habitacional é caracterizado pela alta densidade domiciliar, o que pode ser um fator negativo quando relacionado com a insolação e ventilação dos ambientes. Isso porque eles ocupam, majoritariamente, a área do centro velho, cujo parque construído é do começo da urbanização paulistana e não seguia normas sanitárias que são mais recentes. Além disso, elas estão em uma zona da cidade que carece de áreas verdes, ainda que seja uma zona bastante servida com empregos e estações metroferroviárias. Conforme dito anteriormente, esses parques centrais são planejados para o lazer de uma burguesia que ocupa os novos bairros nobres, sendo a presença dos cortiços uma forma insurgente da ocupação seguindo a lógica de mercado. Sendo assim, é possível entender a vulnerabilidade que esses cortiços encontram por se localizarem sua região bastante árida da cidade e com pouca presença de maciços vegetais.

Figura 22: Mapas 2.3 (ampliação), 3.2 e 3.3 (ampliação).

Fonte: Elaborado pelo autor.

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Considerações finais

Os factos só são verdadeiros depois de serem inventados. (Crença de Tizangara).

Esta pesquisa não pretende ser conclusiva, isso porque o objeto de estudo é a cidade de São Paulo durante o surto de Covid 19 e ainda não temos a distância temporal necessária para poder tecer teorias e críticas sobre esse período e a sua influência no espaço urbano. Neste último capítulo serão levantadas as questões principais observadas nas análises cartográficas e no levantamento literário a fim de refletir sobre o objetivo central deste trabalho: investigar a relação entre a morbidade e o território da cidade de São Paulo

Para que as análises fossem melhor estruturadas este trabalho foi separado em quatro áreas do urbanismo, sendo elas a habitação, o acesso ao transporte de massa, a renda e as áreas verdes. No decorrer da pesquisa é explicado e elucidada a importância dessas áreas do urbanismo para a compreensão do território, assim como listadas as referências bibliográficas que indicam ser esses os tópicos mais debatidos na literatura sobre urbanização emergente.

A habitação figurou como fator central para definir a vulnerabilidade de uma população, sendo a sua precariedade diretamente relacionada não apenas com a morbidade pela Covid 19, mas também com as outras epidemias estudadas nessa pesquisa. Entretanto o quesito habitação está diretamente relacionado a outros fatores como renda e perfil social da população, pois nota se que a distribuição de empregos não é homogênea na cidade e a forma de acessar as áreas mais infra estruturadas determina, também, a vulnerabilidade da população. A partir dessas conclusões é possível direcionar o olhar para a análise territorial com série temporal, podendo aferir com mais precisão, em um futuro próximo, se a cidade conseguiu absorver essa desigualdade e, ainda mais, se as políticas públicas para a diminuição da vulnerabilidade urbana efetivamente puderam chegar às populações mais vulneráveis. Exemplificando, sabe-se que durante a pandemia o mercado imobiliário teve um crescimento significativo, ainda que a economia brasileira sofresse duramente com a reorganização social imposta pelo isolamento (NAGASHIMA, 2022)34, entretanto, vinte mil pessoas viviam nas ruas em São Paulo em 2021, muitos tendo perdido suas casas por conta dos efeitos da pandemia (BETIM, 2021)35. Saber se essas famílias inteiras que foram excluídas do mercado imobiliário por terem perdido suas rendas, formais ou informais, puderam se reestabelecer

34

“Com taxas de juros atrativas, mercado imobiliário cresceu na pandemia” de Correio Braziliense. Disponível em < https://www.correiobraziliense.com.br/cidades df/2022/08/5030659 com taxas de juros atrativas mercado imobiliario cresceu na pandemia.html>.

35

“Pandemia leva famílias para as ruas de São Paulo e acelera mudança de perfil da população semteto” de El País. Disponível em < https://brasil.elpais.com/brasil/2021 06 02/pandemia leva familias para as ruas de sao paulo e acelera mudanca de perfil da populacao sem teto.html>.

60
06.

social e economicamente será vital para analisar conseguimos superar a pandemia.

Figura 23: Mapa 6.1.

Fonte: Elaborado pelo autor.

Dessa forma, foi elaborado um último mapa, funcionando como uma síntese de todo o conhecimento abordado até aqui, no qual são identificados os locais com maior vulnerabilidade sanitária na cidade de São Paulo, sendo possível em futuras pesquisas analisar o desempenho desses territórios específicos e poder concluir com mais certeza se a pandemia do coronavírus efetivamente mudou a forma de ocupar a cidade a ponto de trazer melhoras positivas para a qualidade de vida da população que esteve mais suscetível ao impacto da doença. Assim será possível entender melhor o impacto político, social e econômico de uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional na estruturação de um território onde o crescimento espontâneo é muito maior que o crescimento formal.

A necessidade de mapear esses territórios de exclusão, onde a pandemia foi mais severa, surgiu a partir do reposicionamento na forma de abordar o trabalho ao constatar que a literatura e coleta de dados não seriam suficientes para comprovar a hipótese de que a pandemia surtiu mudanças na cidade, sendo assim, essa pesquisa pôde ser melhor aproveitada como uma ferramenta de monitoramento da vulnerabilidade social. A cartografia foi capaz de descrever a organização política e econômica da cidade de maneira muito fidedigna e a possibilidade de confrontar a territorialização de um surto sanitário com as bases geopolíticas da cidade evidenciou que a maior fragilidade urbana acontece nos pontos onde existe a menor presença do Estado na ordenação do território. A ideia de fragilidade teve na habitação sua maior expressividade, mas também pôde ser reforçada ou mitigada por sua localização no aglomerado urbano, isso porque a habitação vulnerável nem sempre esteve vinculada à distância do centro. A relação mercadológica entre moradia e posse de terra também é apontada como um ponto de influência nessa vulnerabilidade, uma vez que a informalidade expressiva do emprego diminui a margem de atuação do Poder Público em incluir essas pessoas no mercado de consumo e, consequentemente, garantir lhes a moradia, uma vez que a valorização

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da propriedade privada exerce poder dominante sobre a garantia do direito à moradia digna. Essa pesquisa buscou entender diversos aspectos que configuraram uma situação de calamidade sanitária: a organização social, a reorganização produtiva, as desigualdades pré-existentes, a atuação e ausência do poder público, as formas de ocupar a cidade e as relações de poder para poder discorrer sobre o território a partir do prisma urbanístico, tentando estabelecer relações entre o tempo presente e os fenômenos urbanos da cidade de São Paulo. Entende-se, por fim, que existiu uma reorganização da cidade, entretanto ela aconteceu em camadas sociais que já se reorganizam historicamente de acordo com seus próprios interesses, não representando uma efetiva novidade àqueles que precisam manter a força produtiva acima dos interesses pessoais para garantir a subsistência; para esses, a pandemia do Covid 19 apenas adicionou uma camada a mais de vulnerabilidade a um tecido social já esgarçado.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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No te rindas, aún estás a tiempo de alcanzar y comenzar de nuevo, aceptar tus sombras, enterrar tus miedos, liberar el lastre, retomar el vuelo.

No te rindas que la vida es eso, continuar el viaje, perseguir tus sueños, destrabar el tiempo, correr los escombros y destapar el cielo.

No te rindas, por favor no cedas, aunque el frío queme, aunque el miedo muerda, aunque el sol se esconda y se calle el viento, aún hay fuego en tu alma, aún hay vida en tus sueños, porque la vida es tuya y tuyo también el deseo, porque lo has querido y porque te quiero.

Porque existe el vino y el amor, es cierto, porque no hay heridas que no cure el tiempo, abrir las puertas quitar los cerrojos, abandonar las murallas que te protegieron.

Vivir la vida y aceptar el reto, recuperar la risa, ensayar el canto, bajar la guardia y extender las manos, desplegar las alas e intentar de nuevo, celebrar la vida y retomar los cielos,

No te rindas por favor no cedas, aunque el frío queme, aunque el miedo muerda, aunque el sol se ponga y se calle el viento, aún hay fuego en tu alma, aún hay vida en tus sueños, porque cada día es un comienzo, porque esta es la hora y el mejor momento, porque no estás sola, porque yo te quiero.

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01
Contextualização

Contextualização

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022)

Elaborado pelo autor.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022)

Elaborado pelo autor.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022)

Elaborado pelo autor.

Série Histórica

02

Histórica

1

PARQUES

2 Parque do Trianon 1882

O COMEÇO DA

No começo do século XX a cidade de São Paulo se resumia aos bairros do que hoje conhecemos como centro, alcançando o espigão da Avenida Paulista, ao sul, a atual região da Água Branca, ao oeste e a Mooca, ao leste, sendo o eixo leste-oeste de grande predominância industrial. Ao norte a cidade se delimitava pelo rio Tietê, com um pequeno aglomerado na atual região de Santana. Os parques que existiam no começo do século foram projetados como jardins para os bairros burgueses, sendo eles o Jardim da Luz, o Parque Buenos Aires e o Parque do Trianon, todos em regiões ocupadas pelas camadas mais altas da sociedade e com a finalidade de abrir áreas verdes e arborizadas para a cidade que começava a se adensar. Junto às indústrias instalavam-se os cortiços e habitações precárias, que hoje poderiam ser consideradas aglomerados subnormais; essas residências, ocupadas pelas camadas mais pobres e, muitas vezes, trabalhadores industriais, se localizavam em regiões mais áridas e com piores qualidades de ar, saneamento e abastecimento de água, é um eixo que viria se consolidar, históricamente, como uma região de vulnerabilidade habitacional por conta do seu tecido urbano.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022) SVMA (2022)

Elaborado pelo autor.

URBANIZAÇÃO
NOME ABERTURA
NÚMERO
da Luz
Jardim
1798
3 Parque Buenos Aires 1913 URBANOS ATÉ 1914

PARQUES URBANOS ATÉ 1980

NÚMERO NOME ABERTURA

1 Jardim da Luz 1798

2 Parque Siqueira Campos 1882

3 Parque Buenos Aires 1913

4 Parque da Aclimação 1939

5 Parque do Ibirapuera 1954

6 Parque Alfredo Volpi 1971

7 Parque do Guarapiranga 1974

8 Parque do Carmo 1976

9 Parque do Piqueri 1978

10 Parque Vila dos Remédios 1979

11 Parque da Previdência 1979

12 Parque Anhanguera 1979

13 Parque do Nabuco 1980

A METADE DO SÉCULO

Já na metade do século XX a cidade havia se expandido para todas as direções, mantendo seu centro ainda no eixo Sé-Paulista. A presença de industrias no eixo histórico, leste-oeste, é reforçada com a ferrovia Santos-Jundiaí da empresa britânica São Paulo Railway que, futuramente serviria como transporte metropolitano, correspondendo às atuais linhas 7 - Rubi e 10 - Turquesa. Entretanto, a ferrovia desde então é uma cicatriz de dificil transposição do tecido urbano que figurou como uma barreira importante separando a cidade burguesa, a oeste, da cidade proletária, a leste.

As áreas verdes começam a aumentar mas ainda se concentram, majoritariamente, na região a oeste da linha férrea, exatamente aquela ocupada pelas camadas mais ricas. A expasão da zona leste é bastante significativa, chegando ao que hoje conhecemos como extremo leste quando a ocupação das outras zonas acontecia em ritmo menos acelerado.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022) SVMA (2022)

Elaborado pelo autor.

NÚMERO NOME ABERTURA

1 Jardim da Luz 1798

2 Parque Siqueira Campos 1882

3 Parque Buenos Aires 1913

4 Parque da Aclimação 1939

5 Parque do Ibirapuera 1954

6 Parque Alfredo Volpi 1971

7 Parque do Guarapiranga 1974

8 Parque do Carmo 1976

9 Parque do Piqueri 1978

10 Parque Vila dos Remédios 1979

11 Parque da Previdência 1979

12 Parque Anhanguera 1979

13 Parque do Nabuco 1980

14 Parque Raposo Tavares 1981 15 Parque São Domingos 1982 16 Parque Rodrigo de Gasperi 1982 17 Parque do Trote 1986 18 Parque Severo Gomes 1989 19 Parque Raul Seixas 1989 20 Parque Ecológico Chico Mendes 1989 21 Parque da Independência 1989 22 Parque Luís Carlos Prestes 1990 23 Parque Jardim da Felicidade 1990 24 Parque Santo Dias 1992 25 Parque Cidade de Toronto 1992 26 Parque Santa Amélia 1992 27 Parque dos Eucaliptos 1995 28 Parque Burle Marx 1995 29 PARES Guarapiranga 1999 30 Parque Chácara das Flores 2002 31 Parque do Sena 2003 32 Parque das Águas 2004 33 Parque Tenente Brigadeiro Faria Lima 2004 34 Parque Natural Cratera da Colônia 2007 35 Parque Parelheiros 2007 36 Parque do Cordeiro 2007 37 Parque Ipiranguinha 2007 38 Parque Colina de São Francisco 2007 39 Parque Jacinto Alberto 2007 40 Parque Sao José 2008 41 Parque Shangrilá 2008 42 Reserva Morumbi 2008 43 Parque Sapé 2008 44 Parque do Povo 2008 45 Parque do Fogo 2008 46 Parque Ermelino Matarazzo 2008 47 Parque Tiquatira 2008 48 Parque Tiquatira 2008 49 Parque Lions Clube Tucuruvi 2008 50 Parque Consciência Negra 2009 51 Parque Praia São Paulo 2009 52 Parque Pinheirinho d'Água 2009 53 Parque Itaim Paulista 2009

54 Parque Vila do Rodeio 2009 55 Parque Água Vermelha 2009 56 Parque Sete Campos 2010 57 Parque Zilda Arns 2010 58 Parque Leopoldina-Villas Boas 2010 59 Parque Bananal-Canivete 2010 60 Parque Guaratiba 2010 61 Parque do Lajeado 2010 62 Parque Mário Covas 2010 63 Parque Nebulosas 2011 64 Parque da Ciência 2011 65 Parque Guanhembu 2011 66 Parque Jardim Herculano 2011 67 Parque Castelo 2011 68 Parque Benemérito José Brás 2011 69 Parque do Jardim Sapopemba 2012 70 Parque Mboi Mirim 2012 71 Reserva Altos da Baronesa 2012 72 Reserva Savoy City 2012 73 Reserva Quississana 2012 74 Parque Aricanduva 2012 75 Parque Aterro Sapopemba 2013 76 Parque Jardim da Conquista 2013 77 Parque Guabirobeira Mombaça 2013 78 Parque Jardim das Perdizes 2013 79 Parque Central do Itaim Paulista 2013 80 Parque do Tatuapé 2015 81 Parque Chácara do Jockey 2016 82 Parque do Chuvisco 2016 83 Parque Nascentes do Ribeirao Colônia 2020 84 Parque Nair Bello 2020 85 Parque Paraisópolis 2021 86 Parque Alto da Boa Vista 2021 87 Parque Augusta 2021 88 Parque Natural Itaim 2012 89 Parque Ribeirao Caulim 2008 90 Parque Nove De Julho 2008 91 Parque Jardim Prainha 2008 92 Parque Lina e Paulo Raia 1981 93 Parque Casa Modernista 2008 94 Parque Ribeirão Oratório 2011 95 Parque Senhor do Vale 2010 96 Parque Rio Verde 2012 97 Parque Lídia Natalizio Diogo 1996 98 Monguaguá 2011 99 Parque Ecológico de Campo Cerrado 2010 100 Parque Zilda Natel 2009 101 Vibra Parque Vila Guilherme 1986 102 Parque Juliana de Carvalho Torres 2012 103 Parque Vila Sílvia - Izaias Wingter 2009 104 Parque Linear Feitiço da Vila 2015 105 Parque Linear Cantinho do Céu 2011

A VIRADA DO MILÊNIO

Atualmente a cidade de São Paulo conta com 105 parques municipais, entre eles, muitos são referentes a áreas de proteção permanente (APPs) ou parques ecológicos, não cumprindo mais o papel de apenas abrir áreas verdes para melhorar os ares da capital mas também a função de preservação dos biomas remanescentes. Nota-se que o eixo histórico de ocupação industrial nas margens da ferrovia, de leste a oeste, ainda figura como uma área ocupada por essas plantas industriais e que, lentamente, vem sendo modificada com a ocupação desse novo território central, uma vez que o crescimento da periferia expandiu o centro da cidade. Muitas dessas áreas industriais serviram como boas candidatas à construção de condomínios por conta dos seus lotes grandes e não parcelados.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022) SVMA (2022)

Elaborado pelo autor.

PARQUES URBANOS ATÉ 2022

Bases de

03

de análise

FONTES: IBGE (2019) Geosampa (2022)

Elaborado pelo autor.

FONTES: Geosampa (2022)

Elaborado pelo autor.

FONTES: Geosampa (2022)

SMT/Metrô (2018) SMT/CPTM (2019, 2021)

Elaborado pelo autor.

FONTES: IBGE (2021) Geosampa (2022) Infocidade (2010)

Elaborado pelo autor.

04
Referências

Referências

FONTE: Labcidade (2020)

Modificado pelo autor.

FONTE: Labcidade (2020)

Modificado pelo autor.

FONTE: Rede Nossa São Paulo (2020)

Modificado pelo autor.

FONTE: Rede Nossa São Paulo (2020)

Modificado pelo autor.

Análises

05
Análises

FONTES: IBGE (2019) Geosampa (2022) Labcidade (2020)

Elaborado pelo autor.

FONTES: IBGE (2019) Geosampa (2022) Infocidade (2010)

Elaborado pelo autor.

FONTES: IBGE (2019) Geosampa (2022) Labcidade (2020)

Elaborado pelo autor.

FONTES: Geosampa (2022) Infocidade (2010) SMT/Metrô (2018) SMT/CPTM (2019, 2021)

Elaborado pelo autor.

Conclusões

06

Conclusões

FONTES: IBGE (2019) Geosampa (2022 Ortofoto (2022)

Elaborado pelo autor.

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